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Editor
josé carlos de paiva
i2ADS | Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Coordenação Editorial
givânia silva
AQCC | Associação Quilombola de Conceição das Crioulas
Comissão Editorial
fabiana vencezlau, AQCC
felipe calheiros, i2ADS
maria diva rodrigues, AQCC
márcia jucilene do nascimento, AQCC
maria da penha e silva, AQCC
rita raínho, i2ADS
Design
pedro brochado
i2ADS | Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Impressão
Empresa Diário do Minho, Lda.
ISBN
978-989-99839-7-7
Depósito Legal
438048/18
2
16 - 2 4 J U L H O 2 0 17
-
ENCONTRO COM AS ARTES,
A LUTA, OS SABERES
E OS SABORES DA COMUNIDADE
QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO
DAS CRIOUL AS
Conceição das Crioulas - Salgueiro, PE - BRASIL
ENTIDADES PARTICIPANTES
BRASIL, ESTADO DE PERNAMBUCO EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA
• AQCC
Associação Quilombola de Conceição das Crioulas
• Escola Municipal José Neu de Carvalho
• Escola Municipal Bevenuto Simão de Oliveira OFICINAS
• Escola Municipal Professor José Mendes
• Escola Quilombola Rosa Doralina Mendes
• Comissões da AQCC, Comunidade Interessada,
DESENHO
Artesãs e Crioulas Vídeo
• UFPE
CERÂMICA
Universidade Federal de Pernambuco
Departamento e Teoria da Arte e Expressão Artística
VÍDEO
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
• UFRPE TÉCNICAS DE IMPRESSÃO
Universidade Federal Rural de Pernambuco
• FACHUSC TECNOLOGIAS AFRICANAS
WEBDESIGN
Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central
• IF
Instituto Federal de Salgueiro
• Escola Municipal Quilombola Águas do Velho Chico (Orocó) COMUNICAÇÃO E EDIÇÃO
BRASIL, ESTADO DO CEARÁ
• URCA
MÚSICA E DANÇA
Universidade Regional do Cariri - Centro de Artes
• UECE
Universidade Estadual do Ceará
CED - Centro de Educação FORMAÇÃO DE PROFESSORES
• UNILAB
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira - Grupo de Pesquisa Educação, Cultura
e Subjetividades APRESENTAÇÃO DE TRABALHOSACADÉMICOS:
BRASIL, ESTADO DA PARAÍBA
• UFPB
TESES E DISSERTAÇÕES
Universidade Federal da Paraíba Programa Associado
de Pós Graduação em Artes Visuais UFPB/UFPE
PREFEITURA
ORGANIZAÇÃO: APOIO: SALGUEIRO
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ÍNDICE
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ÍNDICE
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Apresentação
EDUARDO FERNANDES DE ARAÚJO1
Gostaria de ser poeta, ainda não sou, fui estudante, ainda sou, de tanto caminhar,
virei advogado popular, tento ser um pouco pesquisador, daqueles que pensa meio
“penso” que cansa de tanto pensar. Dizem, que sou educador ou professor, um dia
fui chamado de “Fera”, no outro dia, a mesma pessoa me chamou de “Doutor”, em
Conceição das Crioulas, já fui “Doutor de chinelas!”.
Um dia (ou noite), terei sido um pouco de cada momento que me marcou, já sou,
pois, sou um daqueles que nasce depois de vivo, sendo aquele que já foi, aquele que é e
ainda tornando-me o que serei.
Poucas certezas se tem sobre essas questões todas de ser, de “soul” e do que foi ou
será, mas o pouco, desse muito pouco que sei, do que sou, é que “(...) vou sendo como
posso, jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos, e pela lei natural dos
encontros, eu deixo e recebo um tanto, e passo aos olhos nus ou vestidos de lunetas, passado,
presente, participo sendo...(Mistério do Planeta, Novos Baianos, 1972)”, atravessado, (re)
nascido ou (re)encontrado por aquelas bandas de Conceição das Crioulas, talvez
assim, devidamente apresentado sem as formalidades de notinhas de rodapé, eu
possa apresentar a Partilha sobre as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da Comunidade
1 Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), prestou assessoria jurídica
popular à Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (2004 – 2008), fundador e último diretor da Dignitatis –
Assessoria Técnica Popular (2002 – 2015). Defendeu a dissertação: “Agostinha- Por três léguas em quadra. A temática
quilombola em uma perspectiva global-local.” Atualmente está doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra, tentando construir uma tese a partir/com da mobilização de direitos em Conceição das Crioulas.
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EDUARDO FERNANDES DE ARAÚJO
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APRESENTAÇÃO
“(...) para transmutar trago meus tambores, histórias e amores, com os ancestrais girando
no ar, semente que brota cresce, vigora e fortifica, e recomeça sua trajetória, o presente mais
à frente é nossa memória (...) dança, nessa ciranda de dimensões interconectadas, presente,
passado, futuro, é, costumo achar o que procuro, futuro, presente, passado, acredite, tem
sempre um guia do seu lado , passado, futuro, presente, xi...passado, futuro, presente, mizifi,
acredite no que vê e mais ainda no que sente.” (No ar (Convocação), BNegão & Seletores de
Frequência,2015).
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EDUARDO FERNANDES DE ARAÚJO
Conceição das Crioulas, Ó Pá! Boas leituras, aventuras e gostosuras que expandem
as mentes-territórios e as Identidades, conquistam os corpos-territórios, fazem lutas e
lutos, alegrias, desafios e tristezas, assim como essa apresentação “fora de ordem”, é
a vida que segue entre os passados, os presentes e os futuros que são A experiência do
encontro e outros dispositivos de emergência (Luana Andrade Borre), permitindo a união
Das periferias urbanas ao sertão pernambucano: (re)significando olhares na Comunidade
Quilombola de Conceição das Crioulas (Stefany Lopes de Lima), alimentando-se Sobre
a partilha, as trocas e os deslocamentos no Encontro em Conceição das Crioulas (Luísa
Magalhães), para que no final se tenha O Livro (Maria Portela), para que afinal de
contas, seja um contínuo por vir para abraçar xs amigxs, entre eles o Paiva, cozinhando
lá em Conceição das Crioulas (Leão Lopes).
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ensino superior, a AQCC e suas comis-
Em busca de sões internas, o Crioulas Vídeo, escolas
outras formas públicas da educação básica e centenas
de estudantes das escolas quilombolas
de construir do território de Conceição das Crioulas
- Salgueiro (PE) e do território Águas do
conhecimentos Velho Chico - Orocó (PE) durante uma
semana3. Nesse período o encontro, não
GIVÂNIA MARIA DA SILVA1
apenas promoveu o encontro de mundos
diferentes, mas, sobretudo, fortaleceu
Este artigo, busca de forma resumida
parcerias, construiu estratégias de luta
registrar, refletir e compartilhar a ex-
em defesa dos direitos quilombolas, da
periência do primeiro encontro com as
artes, a luta, os saberes e os sabores da educação e buscou construir outras me-
comunidade quilombola de Conceição todologias, além de desconstruir parte
das Crioulas, Salgueiro/PE, realizado desses mundos (comunidade acadêmica
no período de 16 a 24 de julho de 2017. e comunidade quilombola) que se encon-
A iniciativa nasce do diálogo do quilom- traram naquele período e apontou para
bo de Conceição das Crioulas por meio outros caminhos e formas de construir,
da Associação Quilombola de Conceição (des) construir e (re) construir conheci-
das Crioulas - AQCC e do Movimento mentos, muitas vezes naturalizados de
Intercultural Identidades (Portugal), da forma hegemônica. Tentarei de forma
Faculdade de Belas Artes da Universida- resumida tratar desse encontro na espe-
de do Porto. Com o objetivo de reunir rança de que a experiência ali vivenciada
comunidades quilombolas, instituições
públicas e privadas de ensino da educa- Universidade Federal da Paraíba, Universidade de Brasília-
MESPT, Instituto Universitário de Artes e Tecnologia-
ção básica e superior, para trocar saberes. Cabo Verde, Faculdade de Ciências Humanas do Sertão
O encontro reuniu 102 instituições de Central(PE), Instituto Federal-Salgueiro.
3 Escola Municipal Quilombola José Néu de Carvalho –
Estudantes professores e professoras; Escola Municipal
1 Mestre em políticas públicas e gestão da educação pela Quilombola Bevenuto Simão de Oliveira – Estudantes,
Universidade de Brasília (2010-2012) e doutoranda em professores e professoras; Escola Municipal Quilombola
Sociologia na mesma Universidade (2017-2020). Professor José Mendes – Estudantes, professores e
2 Universidade Federal de Pernambuco e Universidade professoras; Escola Estadual Quilombola Rosa Doralina
Federal Rural de Pernambuco, Universidade Regional do Mendes – Estudantes, professores e professoras; Comissões
Cariri/CE, Universidade Estadual do Ceará, Universidade da AQCC; Comunidade Interessada; Artesãs e Crioulas
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasiliera, Vídeo.
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GIVÂNIA MARIA DA SILVA
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EM BUSCA DE OUTRAS FORMAS DE CONSTRUIR CONHECIMENTOS
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GIVÂNIA MARIA DA SILVA
uma expectativa de aprender com a aca- beres e os sabores, se constitui como algo
demia, mas, talvez fosse maior ainda o específico e ocorreu da seguinte forma:
desejo de ensinar, compartilhar... Como aqueles e aquelas que trilharam caminhos
conciliar e dosar as duas dimensões do acadêmicos mais intensos (mestrados,
conhecimento? doutorados e pós-doutorados), forman-
Apostou-se na capacidade de mobiliza- do-se com os/as que possuem também
ção da comunidade e no seu protagonis- formação superior em menor grau, mas
mo que ocorre por meios de seus instru- detém outros saberes oriundo do ato de
mentos dentro de uma pedagogia crioula, pertencer que podem contribuir ou com-
apoiada pelas escolas do território, a As- plementar. O caminho inverso também
sociação Quilombola de Conceição das fluiu com muita intensidade. Além desses
Crioulas - AQCC, comissão estadual de (nossas mestras e mestres dos saberes
quilombos, redes sociais e redes de par- do quilombo), buscaram fazer com que a
ceiros para viabilizar a realização do en- formação desses profissionais, cujas fun-
contro, como um momento de formação ções nas suas respectivas instituições se
continuada para as instituições de ensino relacionam com formação inicial seja ela
superior e básica, e para a comunidade em qual área for, tivessem sentidos mais
anfitriã de Conceição das Crioulas. Ou- práticos. Na minha compreensão ficam
tra grande aposta foi sua coordenação. duas grandes perguntas: como transpôr
Um grupo de mulheres assumiu na sua as experiências do primeiro encontro
íntegra o pensar e fazer acontecer no/do com as artes, a luta, os saberes e os sa-
encontro em diálogo com o movimento bores para as nossas práticas cotidianas,
IDENTIDADES / PORTUGAL. Foi por sejam elas na educação básica, superior,
meio desse encontro que se promoveu du- gestão escolar ou em qualquer outro lo-
rante o referido período, a formação con- cal de atuação? Como fazer com que as
tinuada. A formação continuada nessa experiências desse encontro possam se
perspectiva procurou alcançar parte dos repetir em outras comunidades e contex-
limites e lacunas deixadas na formação tos, respeitando as dinâmicas locais, sem
inicial, justamente pelo distanciamento perder um olhar global sob um dos pro-
entre os saberes acadêmicos e não acadê- blemas que precisamos enfrentar que é a
micos não cabendo hierarquias entre um dicotomia entre os saberes acadêmicos e
e outro. os não acadêmicos? As tensões existem e
O encontro com as artes, a luta, os sa- apareceram no decorrer do encontro em
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EM BUSCA DE OUTRAS FORMAS DE CONSTRUIR CONHECIMENTOS
Conceição das Crioulas. Como sabemos, de pensar de ver o mundo. Não creio nas
a academia foi pensada para um mode- certezas absolutas e nem nas repostas
lo de construção de conhecimento, que prontas e rápidas, mas, no ato de se lan-
tem como princípio a hierarquização dos çar para encontrar pistas e caminhos para
saberes, onde um saber se sobrepõe ao um novo diálogo (academia e comunida-
outro. O exercício de encontrar as artes, des quilombolas). Esse deverá ser nosso
a luta, os saberes e os sabores, caminhou horizonte rumo ao segundo encontro
na direção contrária. Os saberes que ali com as artes, a luta, os saberes e os sabo-
circularam não estavam colocados na res e rumo à construção de outros espaços
perspectiva da hierarquização e sim da de formação que levem em conta outras
complementaridade, onde os lugares e abordagens metodológicas e outras epis-
valores de cada um/uma não precisavam temologias. Portanto, esse encontro en-
competir e, sim, foram durante esse mo- tra na lista das possibilidades e espaços
mento se complementando. de formação continuada para todos os ní-
É natural e compreensível a estranheza, veis: educação infantil, básica e superior e
pois não são muitos exemplos de exercí- para lideranças quilombolas.
cios como esse na formação acadêmica.
Mas, a superação desse desafio nos levou 2. O sabor das oficinas e trocas do/no
a sair mais fortalecidos/as e certos/as de primeiro encontro com as artes, a luta,
que queremos continuar apostando na os saberes e os sabores.
construção de espaços multidisciplinares Ao finalizarmos a programação final,
sejam do ponto de vista metodológico ou confesso: tive medo do tamanho do en-
epistemológico, pois é com/neles que es- contro. Um conjunto de oficinas foi pre-
peramos romper alguns obstáculos que o parado e que deveriam acontecer simulta-
pensamento único e hegemônico forjou neamente, além de outras que surgiram
ao longo dos tempos. e/ou se reordenaram no decorrer do en-
É a partir de momentos como esses contro. Ao mesmo tempo, não havia um
que se percebe a necessidade de se fazer formato único. Creio que nesse momento
um movimento de cunho estrutural em plantamos as primeiras sementes da in-
nossas instituições de ensino para abri- ter-multidisciplinaridade. Porém, sem
garem espaços como esses, não apenas referências de algo similar, as perguntas
como projeto pontual, mas como uma eram inevitáveis. Como os participantes,
contribuição à formação de outros jeitos que em muitos casos tinham o primeiro
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GIVÂNIA MARIA DA SILVA
contato com um território quilombola, tras. O destaque aqui vai para o papel do
mas, detinham conhecimentos acadêmi- professor/a, que pela visão de Paulo Frei-
cos em níveis elevados? Como organizar re pode ser substituída por educador/a e
e dinamizar esses conhecimentos (aca- que o seu papel durante o encontro foi es-
dêmicos e não acadêmicos) sem que um tabelecido pelos conhecimentos e não pe-
se sobrepusesse ao outro? O encontro los seus títulos acadêmicos. Portanto, os
começou e todas as atividades construí- educadores/a tanto os que foram forma-
ram suas próprias pedagogias. As tensões dos pela academia, quanto os formados
vieram. Os diálogos foram estabelecidos pelos livros da vida, da experiência e dos
e o resultado foi, sem dúvida acima do saberes na comunidade com seus limites
esperado, pelo menos do nosso lado, do institucionais visíveis puderam conviver
lado do quilombo. O saldo de tudo isso num mesmo espaço sem a necessidade
foi uma riqueza indescritível, inimagi- de silenciar um para o outro existir. E as-
nável e incapaz de expressar de qualquer sim foi o primeiro encontro com as artes,
forma. Entre os sabores produzidos, ao lutas, saberes e sabores, que esperamos
barro que molda parte de nossa história, continuar dando frutos e produzindo
ao caroá5 que forja e tece parte significada novas sementes e novos sabores/saberes
de nossas vidas, as danças que alegram, que tornem mais próximas a comunidade
movimentam e contam histórias, aos de- acadêmica e as comunidades quilombolas
senhos e bordados que constroem rostos no Brasil.
e pontuam entrelaçando história, vida e
lutas, as mais variadas formas de comuni- 3. Caminhar para o segundo encontro
car e expressar o pensamento. Outro sa- com as artes, a luta, os saberes e os sa-
bor/saber foi o diálogo entre professores/ bores de Conceição das Crioulas
as, alunos/as e a construção de muitas Se a construção do conhecimento em
pontes e (des) construção de tantas ou- si, já se constitui como um grande desafio
na história da humanidade em todos os
5 O caroá (nome cientifico: Neoglasioviavariegata), também contextos e tempos, esse desafio aumenta
conhecido como gravatá, gravá, caruá, croatá, caraguatá
e coroatá, é um tipo de bromélia de poucas folhas, com quando nos lançamos a imaginar o que
flores vermelhas ou rosadas. Seu nome vem da palavra em isso significa quando queremos que esses
tupi karawã, que significa talo com espinho. É uma planta
resistente e típica das áreas de Caatinga. As folhas do caroá conhecimentos construídos percebam a
fornecem fibra para a confecção de barbantes, linhas de
pesca, tecidos, cestos, esteiras e chapéus, além de outras
presença, ouçam as vozes e visualizem os
peças artesanais e decorativas. corpos de sujeitos que historicamente fo-
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EM BUSCA DE OUTRAS FORMAS DE CONSTRUIR CONHECIMENTOS
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de Conceição das Crioulas. A comunidade
Mulheres & quilombola, sua história oral e sua práxis
Lutas & Olhares de lutas são a base de minhas reflexões em
mais uma visita. Mulheres que direcionam
Relacionais uma vida comunitária desde a sua funda-
ção, passando pela resistência à expropria-
MADALENA ZACCARA1 ção da terra e à transmissão de sua cultura
e que investem na educação como instru-
palavras-chave mento de resistência e conquista. Através
Arte Relacional, Gênero, Educação, Conceição delas que encontro meu espaço de observa-
das Crioulas, Movimento Intercultural ção, reflexão e, ainda, de pouca ação na co-
IDENTIDADES. munidade. O presente texto visa analisar
meu processo de pesquisa e de tentativa de
Resumo (inter) ação com o universo das crioulas de
A estrada é longa espacialmente e con- Conceição.
ceitualmente. Trata-se de um deslocamen-
to que envolve corpo e certezas entre a Pé na estrada: da academia para o
partida de Recife, a chegada e a despedida mundo real
É muito chão e muito sol até chegar-
1 Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Univer- mos à Conceição das Crioulas. Na rota,
sidade Federal de Pernambuco (UFPE), bacharelado em Di-
reito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
no micro ônibus cedido pela Universida-
mestrado (DEA) em História e Civilizações - Université Tou- de Federal de Pernambuco, entre alunas
louse II, Toulouse, França e doutorado em História da Arte
- Université Toulouse II, também em Toulouse, França, como entusiasmadas, colegas decididas e baga-
bolsista Capes. Tem pós-doutorado pela Escola de Belas Artes gens enfim acomodadas não dá para não
da Universidade de Porto, Portugal, também como bolsista
Capes. Atualmente é professor Associado da Universidade pensar na história oral daquela comuni-
Federal de Pernambuco. Ensina no Programa Associado de dade que eu iria (re) encontrar fora dos
Pós Graduação em Artes Visuais UFPE-UFPB. Lidera o grupo
de pesquisa intitulado “Arte, Cultura e Memória” que se textos acadêmicos. A estrada traz me-
volta para a pesquisa da História e Teoria das Artes Visuais mórias e me desperta para o fato de que,
no Brasil com ênfase para o Nordeste. Atua principalmente
nos seguintes temas: História da Arte e Crítica de Arte. É para mim, naquele caminho, nunca deu
membro da Associação Nacional dos Pesquisadores de Artes para esquecer como deve ter sido difícil
Plásticas (ANPAP), da FAEB (Federação dos Arte Educadores
Brasileiros) e do Instituto de Investigação em Arte, Design chegar (e se estabelecer) naquele espaço
e Sociedade I2ADS (Porto, Portugal). Tem vários livros,
capítulos de livros e artigos publicados. Endereço eletrônico:
geográfico; no quanto deve ter sido duro
madazaccara@gmail.com para as fundadoras: as seis negras livres
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MADALENA ZACCARA
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MULHERES & LUTAS & OLHARES RELACIONAIS
mento, das interações no bar-mercearia lher, e ser escrava dentro de uma sociedade
da esquina, da ida à rezadeira da comuni- opressora e sexista, significava ser vulnerá-
dade indígena Atikum que divide o terri- vel à exploração econômica, sexual e alvo
tório com os quilombolas, das reuniões de injustiças e humilhações por parte das
nas escolas com alunos e professores e, demais camadas sociais.
principalmente, das conversas ao acaso A escrava sofria o assédio, o estupro e a
no ir e vir sem destino descobrindo novas opressão generalizada por parte do senhor
pessoas. Enfim: o que não fazemos na ve- e não escapava dos ciúmes da sinhá que
locidade de nossos dias de metrópole. Ela se vingava como podia e sempre na mu-
(a memória) vai falar de como, mais uma lher. Por outro lado, as mulheres escravas
vez, me deixei levar pela energia do lugar constituíam a maioria dos libertos e, em-
e pelas lembranças e fatos já registrados bora reste sempre a ideia de que, genero-
por mim através de olhares acadêmicos samente, o senhor de escravos libertasse a
que resultaram em textos e livro que abor- escrava como uma espécie de recompensa
daram principalmente a relação do Movi- pela submissão sexual, alguns historia-
mento Intercultural IDENTIDADES com dores se posicionam no sentido de que
a comunidade. foram elas que conquistaram essa alforria
(CARVALHO, 2010, p.222). Uma liber-
O papel da mulher na sociedade dade que era mais facilmente aceita pelos
patriarcal e escravocrata brasileira donos do poder por questões de gênero
Dentro da pirâmide social estruturada uma vez que o fato de ser mulher tornava o
na sociedade escravocrata brasileira os caminho para a verdadeira liberdade bem
brancos ficavam no topo, distribuídos em mais difícil e então a alforria fornecia uma
posições melhores em relação ao alto desta liberdade “de direito”, mas não “de fato”.
por meio do seu poder aquisitivo. Em um Essa liberdade concedida não assegurava
degrau abaixo estavam as mulheres, bran- possibilidades econômicas de mantê-la,
cas que eram, apesar de brancas, cidadãs de nem a incluía em um grupo de pertenci-
segunda categoria. Em baixo desta cons- mento. As mulheres, portanto, tinham
trução social ficavam os negros e os indíge- um caminho bem mais árduo em direção
nas considerados inferiores. Em um nível à liberdade, mesmo quando alforriadas.
mais inferior ainda estavam as mulheres E era um caminhar extremamente difícil
negras escravas tanto por serem mulheres, não só para as mulheres negras, embo-
como por serem negras e escravas. Ser mu- ra a estas coubesse o ônus maior. Afinal,
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MADALENA ZACCARA
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MULHERES & LUTAS & OLHARES RELACIONAIS
suas mulheres fundadoras. Trata-se de ção oral de cunho quase mitológico esta-
um quilombo fundado por mulheres e belece a forma de ocupação da terra pela
onde, até hoje, são elas as protagonistas comunidade no início do século XIX.
das lutas e conquistas do grupo de per- No ano 2000 foi fundada a Associação
tencimento por elas criado. Os padrões Quilombola de Conceição das Crioulas
discriminatórios em relação às mulheres (AQCC). Seu objetivo maior é a luta por
nas tantas sociedades, cronologicamente seus direitos, manutenção da sua iden-
e espacialmente diversificadas, parecem tidade, educação acessível para todos e
nesse espaço social ali construído terem pela reintegração na posse da terra in-
se erradicado ou pelo menos amenizado. vadida por fazendeiros. A reintegração
Naquele espaço, as mulheres se organi- aconteceu no dia vinte e dois de setem-
zaram na construção de uma nova so- bro de 2014, um dia histórico para a co-
ciedade utilizando-se dos instrumentos munidade. Nesta data foram entregues
possíveis para a desconstrução de ideias e pelo Instituto Nacional de Colonização
atitudes que viessem a negar seus direitos e Reforma Agrária (INCRA) três títulos
dentro do quadro maior dos próprios di- de domínio de cinco imóveis rurais que
reitos humanos. estavam dentro do território quilombola
assegurando assim direitos históricos e
garantindo segurança jurídica quanto à
Sobre a comunidade quilombola Con-
situação fundiária. A partir de uma reali-
ceição das Crioulas: um conceito de na-
dade onde, há poucas décadas, não havia
ção conjugado no feminino.
qualquer política de apoio ou acessibili-
Localizada no município de Salgueiro,
dade à educação, transformar o contexto
Pernambuco, Conceição das Crioulas
significou resistência e libertação. Com a
tem uma história oral que remete à luta
educação a memória poderia (e pode) ser
de seis negras livres que chegaram à re-
preservada, levando-se em conta a fatali-
gião, arrendaram uma área e, graças ao dade do apagamento de uma história oral
cultivo, fiação e venda do algodão (que no universo comunicacional contempo-
era comercializado na cidade de Flores), râneo em transformação e expansão.
conseguiram arrendar três léguas de ter- A maioria dos habitantes habita os “sí-
ra. Gleba esta que depois compraram e tios” que se espalham no território co-
escrituraram em um cartório da referida mum3. Esta comunidade quilombola faz
cidade Flores, em 1802, por um escrivão
de nome Pedro José Delgado. Essa tradi- 3 Fonte: Relatório da Fundação Cultural Palmares, publicado
23
MADALENA ZACCARA
parte das muitas já reconhecidas pelo Es- do e só em 2014 a posse da terra foi le-
tado Brasileiro por meio de “certificação gitimada pelo governo federal e os fazen-
feita pela Fundação Cultural Palmares deiros invasores intimados a abandonar
(FCP) (certificação do autorreconheci- a terra5. O dia vinte e dois de setembro
mento) e da abertura de processo de re- daquele ano passou a ser um dia históri-
gularização dos territórios quilombolas co para a comunidade. Naquela data, fo-
pelo Instituto Nacional de Colonização ram entregues pelo INCRA três títulos de
e Reforma Agrária (INCRA)”4. Conceição domínio de cinco imóveis rurais que es-
das Crioulas, juntamente com outras co- tavam dentro do Território Quilombola.
munidades semelhantes espalhadas pelo Dessa maneira, aproximadamente 898
território brasileiro formam grupos de hectares passaram a compor efetivamen-
resistência negra à escravidão inicial e à te o patrimônio coletivo da comunidade,
exploração de mão de obra posterior. beneficiando 750 famílias. A titulação
No início do século XX, as terras adqui- ocorreu mediante a outorga de título co-
ridas diminuíram de extensão em virtude letivo e pró-indiviso à comunidade, em
de invasões e aquisições ilícitas por parte nome da Associação Quilombola de Con-
de fazendeiros. O território foi encolhen- ceição das Crioulas (AQCC).6
As mulheres e suas ações têm forte sig-
no Diário Oficial da União, em 11/09/1998. Apud LEITE,
Maria Jorge dos Santos. Conceição das Crioulas: Terra, nificação dentro desta comunidade desde
Mulher e Política in Sankofa. Revista de História da a sua fundação, passando pela resistência
África e de Estudos da Diáspora Africana, Ano III, Nº 6,
Dezembro/2010. Disponível em file:///C:/Users/mada/ à expropriação da terra, à transmissão de
Pictures/88789-126256-1-SM.pdf acesso em 23 de agosto de sua cultura. Essa resistência está intima-
2015.
4 Entende-se por comunidades quilombolas certificadas mente ligada à formação das lideranças
todas aquelas que manifestaram a afirmação da sua que compõem a estrutura política em
identidade étnica como comunidades remanescentes de
quilombos e tiveram seus dados incluídos no cadastro geral
junto a FCP conforme o Art. 3º do Decreto 4.887/2003: 5 A terra foi desapropriada e os fazendeiros receberam
“§ 4o a autodefinição de que trata o § 1o do art. 2o deste indenização do governo.
Decreto será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação 6 A Associação luta pelo direito da comunidade quilombola
Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma de Conceição das Crioulas ao seu território e pela
do regulamento ”apud SILVA, Givânia Maria da. Educação sustentabilidade dessas famílias. Nesse sentido, produzem,
como processo de luta politica. A experiência de ‘Educação de forma sustentável, artesanatos da fibra do caroá, que
diferenciada’ do território quilombola de Conceição das contam a história e reafirmam a identidade étnica e cultural
Crioulas. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- do povo quilombola, fortalecendo, ainda, a organização
Graduação em Educação da Faculdade de Educação da política local. Fonte: site da AQCC disponível em http://
Universidade de Brasília (UnB), como parte dos requisitos www.caatingacerrado.com.br/aqcc-associacao-quilombola-
para a obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas e de-conceicao-das-crioulas-pe/ acesso em 20 de agosto de
Gestão da Educação. 2012.p. 29 2015
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MULHERES & LUTAS & OLHARES RELACIONAIS
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MADALENA ZACCARA
valores, a cultura, os costumes, as tradi- palavras de sua principal líder política Gi-
ções, a sabedoria das pessoas mais velhas vânia Maria Silva quando fala sobre sua
e a história dos antepassados fazem parte comunidade:
do processo educativo.
A presença e a consciência do papel da Mergulhada numa busca constante de
ações direcionadas à educação, à saúde
mulher nas conquistas da comunidade e ao reconhecimento da sua cultura, do
são marcos a serem observados em um processo da reconstrução da identidade e
espaço social que poderia englobar um de seu território. Mesmo diante do cená-
conceito de nação. Uma nação, em seu rio de dúvidas, a educação era entendida
pelos seus moradores (as) como atividade
sentido político moderno: uma comuni-
importante. (SILVA, 2013, p. 47)
dade de indivíduos vinculados social e
economicamente geralmente de um mes-
É nessa conjuntura, a partir dessa pro-
mo grupo étnico, que compartilham certo
posta, que prioriza a educação como veí-
território, que reconhecem a existência de culo de emancipação, que a arte relacional
um passado comum, que têm uma visão ou contextual praticada pelo Movimento
de futuro em comum e que acreditam que Intercultural IDENTIDADES, no qual o
esse futuro será melhor se se mantiverem artista, participante da história imedia-
unidos do que separados. A partir dessa ta, encontra seu espaço na comunidade.
premissa, Conceição das Crioulas é uma Esse engajamento, essa forma de criar
nação. Uma nação onde os padrões so- artístico, não visa o sublime ou o trans-
ciais e culturais discriminatórios com re- cendente; sua proposta se volta para a
lação às mulheres presentes em maior ou possibilidade de transformação do so-
menor grau em todas as regiões do pla- cial e nele encontra seus instrumentos. A
neta parecem não mais existir. Nela, as arte, devemos lembrar, pode ser o último
mulheres que se destacaram na luta pela reservatório do imaginário a escapar de
aquisição, construção e recuperação das ser incorporado/apropriado pelo sistema
terras que ocupam e que hoje lutam pela que hoje serve ao capitalismo neoliberal e
construção de uma identidade étnica es- o seu consumir ideológico. As práticas ar-
tão no comando. tísticas que envolvem a política relacional
A abertura dessas mulheres para novos podem abrigar um sonho para além das
horizontes passa por uma emancipação servidões e ser uma promessa de recon-
pela educação. A consciência sobre este ciliação com o humano em sua expressão
instrumento libertador está presente nas maior. A colaboração com a comunidade
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MULHERES & LUTAS & OLHARES RELACIONAIS
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MADALENA ZACCARA
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MULHERES & LUTAS & OLHARES RELACIONAIS
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MADALENA ZACCARA
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cídios e atrocidades cometidas ao longo
Esforço de da longa história pelos da minha cor, o
aprendizagem com usufruto de recursos roubados a outros
povos, o lucro do trabalho escravo sobre
as experiências os povos africanos, …; quem me identi-
fica pela minha linguagem como ociden-
vivenciadas com tal, me confere a partilha do conforto de
habitar do lado do poder hegemónico,
a Comunidade mergulhado num discurso que foi impe-
Quilombola de rial e colonizador e nunca deixou de ser
a tradução do exercício de uma autorida-
Conceição das de prepotente, que o domínio financeiro
mundial lhe confere, …
Crioulas, Brasil-PE Quem me conhece sabe do lado esquer-
do em que vivo, repudiando e tentando
JOSÉ CARLOS DE PAIVA1 suspender o estatuto que o ser homem,
branco, ocidental me permite, reconhe-
Quanto a mim, considero-me parte cendo a insuficiência desse esforço pe-
da matéria investigada. rante a dimensão cultural intrínseca que
NASCIMENTO (1978:41)
me construiu, pela descendência familiar,
pela educação, pela própria cultura here-
Quem me olha, sabe que sou homem, ditária que me integra, …
condição que aprisiona meu estar num
mundo que entendo como discrimina- Eles pensam que a maré vai mas nunca volta
tório e injusto, incapaz de reconhecer as Até agora eles estavam comandando
o meu destino e eu fui, fui, fui recuando,
atrocidades que foram desencadeadas,
recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta
desde sempre, sobre a mulher e os mais e tão forte quanto eles me imaginam fraca.
frágeis, …; sabe também pela cor de mi- Quando eles virem invertida a correnteza,
nha pele que sou branco, pertença que quero saber se eles resistem à surpresa,
me permitiu privilégios perante os geno- quero ver como que eles reagem à ressaca.2
31
JOSÉ CARLOS DE PAIVA
Quem me partilha sabe que não ador- O mundo ocidental ao qual pertence-
meço perante a minha própria impotên- mos, no século XXI, desapareceu como
cia, nem face à dificuldade de me deslo- promotor do desenvolvimento e da sua
car para fora das pertenças inevitáveis ilusão, também enquanto referência de
que me construíram, e sabe que a minha um sistema político decente e esperan-
resiliência me inscreve sempre ao lado ça num mundo progressivamente mais
da luta, impulsionada pela inquietação equilibrado, democrático e melhor. A ga-
como sujeito e pela cumplicidade com os nância dos poderosos produziu um siste-
mais fragilizados. ma financeiro globalizado, escondido e
Quem me acompanha de perto sabe do incógnito, que sem escrúpulos impõe as
modo como identifico os tempos de en- suas políticas cegas, de simulacro e insen-
cruzilhada em que vivemos, como sendo síveis às dores sociais.
de fracasso, onde o optimismo propagan- Hoje o que nos domina é o medo pe-
deado desde o século XIX no Ocidente, rante a incerteza do futuro, desaparecen-
de um mundo progressivamente melhor, do todo o optimismo propagandeado de
de 'liberdade, igualdade e fraternidade', um progresso sem fim. O fracasso do
redundaram em Guerras Mundiais, no tempo em que vivemos, mesmo se camu-
horrendo Holocausto, na ampliação das flado pela arte mediática da ilusão, pode
desigualdades sociais, na aceitação da ex- ser medido na dimensão desmesurada
clusão dos desfavorecidos, na desestabili- dos sem-emprego-e-sem-esperança, dos
zação política dos países que alcançaram refugiados sem-espaço-e-sem-água, dos
a sua independência libertando-se do resíduos humanos sem-nome-e-sem-ter-
jugo colonial, da camuflagem do discurso ra, dos novos remediados sem-futuro, do
pós-colonial, … medo e da insegurança.
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ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS
Entendo-me frágil, pelo sentido que re- pensar de outros modos, onde o fazer
tiro da experiência de uma longa e preen- corresponda a demandas comuns dos
chida vida, incomodado com o que me desprotegidos de sempre, corresponda
encerra no lado do hegemônico ociden- a uma luta contra a ganância financeira,
tal, portador de uma linguagem crítica e contra a opressão, que entenda os desejos
agonística que não me isenta do que me que nos vendem e que nos cegam na pro-
compõe, mas apenas esclarece a fragilida- cura de um aparente conforto ou de uma
de do que sou, a incomodidade de minha capacidade de consumo alienante.
inscrição na esquizofrenia contemporâ- Minha consciência histórica e entendi-
nea, a minha incompletude. mento crítico do presente me impede de
Como sujeito e também como profes- acompanhar os que pretendem reprodu-
sor, não posso, pela fragilidade reconhe- zir o existente, limitar o futuro determi-
cida, ter outra relação que não seja a de nando-lhe o mesmo 'sistema político', a
procurar encontrar amparo e cumplici- gestão empreendedora dos saberes con-
dade para as lutas radicais que se tornem sagrados, a manutenção da ordem das
possíveis. Movimentos de tensão inscri- hierarquias sociais estabelecidas. Procuro
tos numa dimensão política de procura força na oposição agonística, que inscre-
de atos significativos que hajam em arti- va suas acções críticas na possibilidade de
culação agonística e constituintes de uma um outro devir, contingente no resultado
outra hegemonia, contingente, que dote da articulação das tensões sociais desen-
os socialmente subjugados de possibili- cadeadas, onde os sujeitos determinem, a
dades de interferência sobre o seu devir/ partir de si, o que melhor considerarem,
comum. no exercício de uma democracia radical.
Recuso, portanto, ser arauto portador Frequentando espaços de poder, em
de um saber/poder que se pretende di- dispositivos hegemónicos, como a esco-
fundir, ser espelho para os outros, esca- la e a universidade, mergulhado numa
moteador de realidades cruéis, de preferir velocidade vertiginosa do que me é exi-
procurar o meu conforto e a comodidade gido que impede a reflexão. Assumo que
ilusória de estar a fazer o certo/possível. aí preciso de suspender as possibilidades
O que sou/sei não me chega, preciso de de agir perante os sujeitos. Suspendendo
desagarrar as febres ocidentais, preciso uma acção limitadora da sua autonomia,
insistentemente de aprender com outras promovendo as suas possibilidades de se
paragens onde ainda seja possível agir/ pensarem-de-outro-modo, de desacredi-
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JOSÉ CARLOS DE PAIVA
tarem nos discursos sacralizados e legiti- dignidade, contra a injustiça, pela recu-
mados pelas instituições e úteis aos po- peração dos direitos roubados, pela res-
deres que nos governam, reconhecendo a tituição das terras, pela educação demo-
sua vulnerabilidade e fechamento. Prefiro crática diferenciada, pela possibilidade
a experiência relacional como libertadora política de futuro.
de sentidos em cada um.
Mesmo que o Quilombo de Conceição
… direi que a crítica é o movimento pelo das Crioulas já tenha construído um ca-
qual o sujeito se outorga o direito de in- minho, por meio da luta que tem levado
terrogar a verdade sobre os seus efeitos de e uma metodologia própria, ainda se fa-
poder e o poder sobre os seus discursos zem presentes e persistem nas sérias mais
de verdade; a crítica seria assim a arte da elevadas as invisibilidades da história dos
insubmissão voluntária, a da indocilida- quilombos em outros espaços educacio-
de refletida. nais.
FOUCAULT (2015:35) SILVA (2016:142)
Por isso procuro a frequência de ter- Neste Sul de utopias mil, durante
renos outros, onde a interculturalidade séculos foram acumulados sofrimen-
é possível, onde exista tempo e silêncio tos desmesurados, sendo esmagados e
para a escuta. Procura de um onde com destruídos os modos de vida ancestrais
futuro, rico de saberes e de memórias que existentes, as culturas milenares e as for-
o Ocidente nunca foi capaz de observar. mas ágeis de luta pela sobrevivência. Os
Preciso de ser/estar onde se queira desen- povos e reinos foram desestruturados,
terrar o que foi escondido e camuflado, desarticularam-se as estruturas políticas
onde se queira ouvir o que nunca foi dito, endógenas, perseguiram-se e destruíram-
o que foi silenciado e negado. Nesse Sul, -se religiosidades intrínsecas à própria
talvez inexistente mas utopia perseguida, cultura, dividiram-se famílias e rompe-
encontram-se muitas comunidades, em- ram-se os laços interpessoais. Os povos
penhadas em entender de uma outra for- africanos desrespeitados pelo racismo
ma a história, ressurgida na própria voz desumano e interesseiro dos colonizado-
orgulhosa das suas identidades, negras, res europeus, escravizados e desrespeita-
índias, femininas, pobres, escuta das ora- dos, cristianizados por uma igreja aliada
lidades ancestrais e dos gestos de todos, dos colonos, dos governos colonizadores
dos saber/fazer perante o infortúnio e a escravocratas, precisam de escrever a sua
sobrevivência, das teimosias da luta pela história, trazer à superfície as suas lutas,
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ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS
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ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS
nios, inicia uma caminhada de saque ge- subjugando ao Império Português a inte-
neralizado para além dos mares, na pro- rioridade territorial, ampliou a penetra-
cura de meios de engrandecer o tesouro ção colonial, avançando com a destruição
e de conquistar novos mercados. Com a de Reinos e regimes políticos existentes,
tomada militar dos portos africanos, as- obrigando a população a uma assimila-
sumindo um racismo desumano, causá- ção da cultura, da religião e da identida-
mos sofrimentos atrozes, desapossando de portuguesa. Em todo este processos
os povos aí residentes de suas terras, de- como diz NASCIMENTO (1978:52) é
sestruturando os seus sistemas políticos notório que o "papel ativo desempenhado
de governo, de cultura e de vida. A partir pelos missionários cristãos na colonização
das fortalezas portuárias construídas se da África não se satisfez com a conversão dos
organiza o comércio escravo que utiliza o 'infiéis', mas prosseguiu, efetivo e entusiásti-
poder do dinheiro, as trocas das 'merca- co, dando apoio até mesmo à crueldade, ao
dorias novas' (que incluem armamento) terror do desumano tráfico negreiro."
manietando rivalidades entre povos e et- Ao longo destes séculos de exploração
nias africanas, usando e ampliando das do comércio de escravos e de delapidação
práticas guerreiras de escravização dos das matérias primas nunca foi tentado
vencidos. entender e valorizar a riqueza das múl-
Nos finais do século XIX, Portugal en-
tiplas culturas africanas, a sua filosofia,
frenta a resistência do Estado de Gaza a religiosidade existente. Nunca se va-
que domina todo o Sul de Moçambique. lorizaram as artes, o saber do corpo, o
A coroa portuguesa, já a braços com o Ul- sentido da vida e da morte, o modo de
timato da Inglaterra, não pode adiar mais
lidar com a natureza. Nunca se ouviram
a ofensiva militar contra Ngungunyane, o
imperador de Gaza. O desafio é claro: ou as vozes e as narrativas orais. Preferiu o
Portugal prova que domina efetivamente poder colonial, cego pelo racismo e pela
os territórios africanos ou perde-os a fa- ganância, silenciar, esconder, desquali-
vor de outras potências coloniais. ficar e desprezar o que se lhe oferecia. A
Mia Couto3 destruição e subjugação das culturas dos
povos africanos dificilmente permitirá
O povoamento colonial realizado ape- agora entender a sua dimensão plena e
nas mais tarde em Angola e Moçambique, recuperar a sua grandeza. Porque não
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Neste tempo, nos quilombos a sua pro- fiança (António Soares), entretanto feito
dução cria mesmo excedentes originando prisioneiro, levam ao seu assassinato (20
o estabelecimento de relações comerciais de novembro de 1695). Sua cabeça é cor-
na vizinhança com camponeses livres. O tada, salgada e enviada para Recife onde
regresso da dominação portuguesa orga- é exibida em praça pública. A morte de
niza de novo investidas militares sobre Zumbi apresentada como uma vitória do
os quilombos e a perseguição a escravos poder apenas patenteia a sua insubmis-
fugidos, gerando tempos de ameaça para são e confere a Zumbi dos Palmares um
a vida quilombola, que entendem ser simbolismo que alimenta até hoje a luta
necessário organizarem a sua defesa ar- quilombola e pela liberdade. E as lutas
mada. Tempos onde a vida quotidiana é continuaram, as lutas de Camoanga, no
perturbada pelas lutas e pelos despiques quilombo do Cumbe, …
entre a sua liderança. Ganga-Zumba vai
passar de 'Maiorais' a aliado dos fazen- Coincidência - ou mera continuidade na
luta libertária? - ao mesmo tempo em que
deiros perante promessas nunca cum-
ocorriam no Brasil as lutas palmarinas li-
pridas e face ao apoio da comunidade à deradas pelos escravos de origem bantu,
liderança, entretanto assumida por Zum- a intrépida rainha africana, Ginga, enca-
bi. Zumbi dando prioridade às exigências beçava a longa batalha, militar e política,
da guerra aberta pelos fazendeiros e pe- contra os invasores portugueses do seu
reino e das terras de Angola.
las autoridades coloniais organiza uma NASCIMENTO (1978:60)
heróica resistência perante estruturas
militares armadas, onde o canhão é já Esclarecer as encruzilhadas do presente
presença, e de grande número, incluindo implica entender a complexidade da vida
mercenários negros, iludidos com pro- de sofrimento dos negros escravizados, a
messas de alforria e terra. resistência silenciosa, o escape, a fuga e a
submissão, bem como a persistente luta
"Apesar de sua resposta heróica, a resis-
tência palmarina é destroçada, as casas travada em condições de profunda desi-
são queimadas e 510 quilombolas são fei- gualdade perante o poder dos fazendeiros
tos prisioneiros." GENNARI (2008: 54). e das autoridades coloniais, até mesmo
perante os conflitos com os pobres co-
Zumbi escapa com vida e reagrupa o lonos que na luta pela sua sobrevivência
que resta, começando nova resistência. se aliam aos fazendeiros comprados por
A traição de um antigo homem de con- suas promessas. É fundamental para es-
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Desde então não mais o "Identidades" Minha deslocação, de mim, para Con-
se afastou da comunidade tornando-se ceição das Crioulas, na possibilidade que
gradualmente cúmplice de suas lutas, a partilha franca e o acolhimento camara-
companheiro de suas caminhadas. Desde da me é oferecido (é correto lembrar aqui
logo se entendeu que o reconhecimento o conceito de dádiva de Marcel Mauss),
pelo governo federal (1998) do território alinha-se com uma necessidade de me-
enquanto "remanescente" de quilombo, lhor me entender com a história que me
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ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS
antecede e que me compõe (branco, ho- Dormir nas suas casas, participar nas
mem, europeu, universitário). Conheço reuniões da comunidade, entrar nas
a história eurocêntrica do progressivo escolas, trabalhar com os artesãos,
'mundo melhor', participo no esforço de chorar as dores partilhadas e sentir o
construção de uma visão política agonís- peso do luto, sentar numa sombra e
tica que reconhece o fracasso do presente respirar as conversas dos mais velhos,
e quer libertar a possibilidade contingen- das crianças, das lideranças, o trance-
te de futuro, mas tenho cada vez mais lim, jogar na quadra com as 'meninas
consciência que não frequentando outras campeãs', festejar os anos de Dandara,
realidades, experienciando movimentos cozinhar junto e comer os sabores da
de luta agonística, não ouvindo as vozes natureza e dos saberes ancestrais, de-
que não foram contaminadas pelo racio- senhar junto ou filmar com o Crioulas
nalismo ocidental, nem estimulando a Vídeo, colaborar na difusão das notí-
leitura dos silêncios enterrados, não en- cias e no relato dos acontecimentos,
contrarei modo de lidar com a inquieta- lutar.
ção constante que me habita. São privilégios de um ocidental, des-
cendente dos colonizadores, a quem é
"Somente em certos casos estas formas
de resistência adquirem um caráter polí- possibilitada uma aprendizagem sem li-
tico e se tornam lutas dirigidas a pôr fim mites, no terreno onde ela é mais essen-
a relações de subordinação como tais." cial na contemporaneidade, no político.
LACLAU & MOUFFE (2015:235). É com este olhar de agradecimento que
reconheço a exemplaridade das vidas
Como reconhece Denilson Rosa em sua guerreiras de Givânia, da Cida, de Andre-
tese de doutoramento sobre a Comunida- lino Mendes e de Adalmir, da Valdeci, de
de de Conceição das Crioulas: Diva, da Lourdinhas, de Penha, de Rozea-
ne e Zélia, de Marinalva, de Fabiana, de
"Nesta comunidade singular a resistên-
cia ocupa o dia-a-dia, reside na tranqui- Keka e Lena, de Maria Alzira e de tantas
lidade como se constrói cada momento, outras mulheres lutadoras, na Vila União,
na serenidade de cada luta, ou seja, no no Sítio Paula, …
exercício pedagógico, ou no convívio dos Transformando Conceição das Criou-
jovens, ou nas reuniões da comissão das
mulheres, ou nas amplas reuniões da po-
las num Território Quilombola, a popu-
pulação." ROSA (2015: 39). lação negra assumiu-se nesse orgulho, lu-
tando pelos direitos específicos do povo
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JOSÉ CARLOS DE PAIVA
negro, num processo de leitura e releitura Fazem parte de conceito também as for-
das memórias que forjam a construção da mas de organização da comunidade, os
processos educativos, as lutas para aces-
identidade étnica do quilombo. Esta luta sar direitos. SILVA (2012:141).
centrada na restituição da posse plena e
inalienável da terra, criou os instrumen- A escola quilombola de Conceição das
tos organizativos e políticos adequados, Crioulas vem ao longo de sua história
coincidentes com o fazer/junto da comu- trabalhando para desconstruir conceitos
nidade, com práticas democráticas de de- e concepções colonizadoras impostas há
anos pelos sistemas de ensino no Brasil.
cisões partilhadas.O entendimento polí- Para nossa comunidade a escola é im-
tico do valor fundamental da Educação e portante para reafirmar nossa historia,
da Educação Escolar foi estabelecendo na nossa cultura, valorizar nossa organiza-
Comunidade uma rede participada por ção e nossa identidade étnica, fortalecer
nossos conhecimentos próprios e o cui-
todos que consagra hoje a rede escolar
dado com o nosso território e com a Na-
do território, onde a população realiza os tureza. Entendemos que a partir dos co-
seus estudos até ao ensino médio. nhecimentos das pessoas mais velhas da
comunidade e da história de luta e resis-
"Educação Escolar Quilombola é um tência do povo de Conceição das Crioulas
instrumento de luta, de identificação, de é possível descolonizar as mentes e as
acolhimento dos conhecimentos locais práticas, reavivando os valores presentes
e universais, de valorização da pessoa, no modo de viver em coletividade.[...] É
da afirmação enquanto sujeitos de di- importante também que a escola ensine
reitos, conforme mencionado." SILVA, a ler, escrever, contar e interpretar bem,
(2016:191). de forma que esse tipo de conhecimentos
possa contribuir para o empoderamento
dos alunos e alunas no enfrentamento
Mas não é apenas a existência de es- de todas as formas de injustiças e que,
colas, é o facto de nelas ocorrer, como sobretudo, fortaleça o projeto de vida
analisa em sua Dissertação de Mestrado, coletiva das pessoas que vivem nesse ter-
Márcia do Nascimento, "um modo de fazer ritório.7
educação escolar aqui no quilombo", con-
ceitualizado como 'Pedagogia Crioula'. O processo educativo que se pode
acompanhar, gerado na gestão inteligen-
"Entende-se como “Nossa Educação te como Ensino Específico e Diferencia-
Quilombola”, o jeito de fazer, contar,
recontar, transmitir a história da comu- 7 PPP das Escolas do Território Quilombola de Conceição das
nidade, seus valores, costumes, crenças. Crioulas, 2014/2015
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ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS
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Permitiu a todos os cerca de 200 partici- nos detalhes, suspender a opinião, sus-
pantes, deslocados das várias universida- pender o juízo, suspender a vontade, sus-
pender o automatismo da acção, cultivar
des (vários Estados do Brasil, Cabo Verde
a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e
e Portugal), e de comunidades vizinhas, os ouvidos, falar sobre o que nos aconte-
estudantes, professores, artistas, arte- ce, aprender a lentidão, escutar os outros,
sãos, e lideranças de outra comunidade cultura a arte do encontro, calar muito,
próxima (Águas do Velho Chico - Oro- ter paciência e dar-se tempo e espaço.
có-PE). Criou possibilidades para se ex- LARROSA (2014:25)
perienciar um tempo, que foi tempo de
silêncio, espaço para cada um poder sair Sou grato na certeza de minha incom-
dos ruídos que o povoam, afastar-se dos pletude, inscrito no que há-de vir.
ódios, como diz AGAMBEN (2009: 20)
"Um homem inteligente pode odiar o seu
tempo, mas sabe em todo o caso que lhe per- Referências bibliográficas
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tence irrevogavelmente, sabe que não pode fu-
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seu estatuto de conforto, de se entrega- BRUNEL, Sylvie (1997). Ceux qui vont mourrir de
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… um gesto de interrupção, um gesto que CORDELLIER, Serge (org) (1999), Le nouvel état
é quase impossível nos tempos que cor- du monde - Les 80 idées-forces pour entrer dans
rem: requer parar para pensar, parar para le 21 siécle. O novo estado do mundo - 80
olhar, parar para escutar, pensar mais de- ideias-força para entrar no sécilo XXI, Porto,
vagar, e escutar mais devagar; parar para Campo das Letras, 2000, tradução de Eduar-
sentir, sentir mais devagar, demorar-se da Castro, Joana Caspurro e Raquel Mouta.
50
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de e Resistência de Conceição das Crioulas – PE
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mento Sustentável junto a Povos e Territórios
Tradicionais – MESPT, UnB)
51
52
percorrendo 560 km (quinhentos e ses-
Saber da senta quilômetros).2
53
FELIPE PERES CALHEIROS
54
SABER DA RESISTÊNCIA, SABOR DA RESISTÊNCIA
culturais aconteceram e acontecem com ainda poucas casas tinham acesso a apa-
a importação dessas novas estruturas de relhos de TV. O hábito de serem filmados
subjetivação e mesmo de dessubjetivação e gravados, sem ter qualquer mecanismo
da população, no sentido mesmo de mo- de controle sobre a narrativa construída
dificação das formas de ser e de pensar e sua exposição midiática para dentro e
das pessoas a respeito de si próprios e do para fora do território, levou os integran-
mundo em que se inserem. tes da Associação a solicitar uma oficina
Traçando um paralelo, é interessante de vídeo ao IDENTIDADES ‘movimento
observar quão crucial foi, ao longo das úl- intercultural’, através do contato com o
timas décadas, a percepção da AQCC e do Centro de Cultura Luiz Freire, em 2005.
movimento quilombola sobre as práticas Aposta que deu certo com a formação
educacionais formais dentro dos territó- do Crioulas Vídeo, equipe formada por
rios. A luta pela educação diferenciada es- jovens de Conceição das Crioulas, que
truturou caminhos inegavelmente impor- passaram a atuar produzindo conteúdo
tantes em Conceição para a formação de audiovisual sobre a própria comunidade
novas lideranças, para a ocupação de car- e sua luta, colaborando interna e exter-
gos em instituições públicas e privadas, namente com a comunicação do quilom-
mas principalmente para o fortalecimen- bo. Nessa perspectiva, se levarmos em
to das questões do extra-escolar e da prá- consideração os aspectos da chegada da
tica política, dentro da rotina de profes- oferta escolar efetiva e dos dispositivos
sores e estudantes. O debate e a atenção tecnológicos de produção de imagens em
ao planejamento político e pedagógico Conceição, podemos observar o quanto o
dos cursos e a integração do aprendiza- fortalecimento e a projeção política local,
do com o cotidiano comunitário tiraram nacional e internacional da AQCC fize-
da educação escolar formal boa parte do ram a diferença para a estruturação da co-
seu caráter originariamente colonizador e munidade no final do século XX e começo
ocidental, nesse quilombo. do século XXI. Exemplos, ao que parece,
Outro caso interessante é o da iniciati- que poderiam ilustrar o entendimento do
va política da comunidade de Conceição, esforço de “profanação” dos dispositivos,
ao deparar-se desde os anos de 1980 com conforme sugerido por Agamben como
a constante chegada de realizadores de estratégia de intervenção sobre proces-
vídeo e de equipes de reportagem de di- sos de subjetivação que seguem sendo
versos veículos de comunicação, quando replicados indefinidamente pelo sistema
55
FELIPE PERES CALHEIROS
56
SABER DA RESISTÊNCIA, SABOR DA RESISTÊNCIA
57
FELIPE PERES CALHEIROS
58
SABER DA RESISTÊNCIA, SABOR DA RESISTÊNCIA
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. (2009) O que é o
contemporâneo? E outros ensaios. Argos.
PAIVA, José Carlos. (2009) ARTE
desENVOLVIMENTO, tese de doutoramen-
to, Faculdade de Belas Artes, Universidade do
Porto, Porto.
SILVA, Givânia Maria da. (2012). Educação
como processo de luta política: a experiência
de “educação diferenciada” do território qui-
lombola de Conceição das Crioulas. Disser-
tação de Mestrado, Departamento de Educa-
ção, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.
59
60
vez seriam pessoas de várias Universida-
O Encontro, des do Brasil e de fora (Portugal e Cabo
a parceria, as Verde), quilombolas de dentro e quilom-
bolas vizinhos, e a ansiedade crescia.
alegrias, os saberes Agenda de pessoas que acolheriam os
participantes, proposta de cardápio. O
e os fazeres que servir de nós para eles e elas? Qual
o sabor que teriam de nós, os que viriam
MÁRCIA NASCIMENTO pela primeira vez? E os que já nos conhe-
DIVA RODRIGUES1 ciam, quais outros sabores levariam? Es-
sas e outras indagações faziam com que
A arte de se encontrar, de reviver, de movimentássemos nosso pensamento
aprender, faz parte do nosso dia-a-dia. sempre em busca de agradar as gentes que
Encontramo-nos muitas vezes com mui- aqui chegariam.
tas gentes, e quando gostamos do en- Preocupadas em acariciar também atra-
contro desejamos que aquele encontro vés do paladar, aqueles e aquelas que a
se repita por muitas vezes. Foi com esse nós vinham, pensamos o que e quem iria
pensamento que planejamos nos encon- cozinhar, já que segundo Rubem Alves
trarmos, nós crioulenses e o Movimento em sua crônica: Escritores e Cozinhei-
Intercultural Identidades, novamente. ros, “o cozinheiro cozinha pensando no
Mas, aproximadamente pela 13ª vez que prazer que sua arte irá causar naquele que
nos encontraríamos, este encontro não se come”. Por isso, pensar em quem iria co-
resumiria a nós de Conceição das Criou- zinhar, era também pensar no prazer que
las e o Identidades de Portugal, mas a ou- a nossa comida iria causar naqueles que
tras gentes mais de perto e mais de longe. iriam comê-la. Dessa forma, fomos cons-
Cuidamos desse encontro com muita truindo o nosso encontro com as daqui
dedicação e afeto. Pois, receber pessoas e os que viriam, sempre em contato com
em nossa comunidade é sempre um pra- o nosso amigo Paiva. E juntando as nos-
zer. Preparamos a chegada dos que nos sas sábias ideias pensamos em ligar Ar-
visitariam com peculiar atenção. E dessa tes, Lutas, Saberes e Sabores, estes dois
últimos indissociáveis. Pois, “O sábio é
aquele que conhece não só com os olhos,
1 Mestre Márcia do Nascimento e Mestre Diva
Rodrigues, professoras nas escolas da Comunidade mas especialmente com a boca. Quem co-
Quilombola.
61
MÁRCIA NASCIMENTO / DIVA RODRIGUES
nhece só com os olhos, conhece de lon- A partir daí, inicia-se a convivência por
ge, pois a visão exige distância; Muito de uma semana. Reviver as lembranças que
perto a gente não vê nada. Quem conhece marcaram e construir novas marcas que
com a boca conhece de perto, pois só se lembraremos. O encontro, as oficinas, a
pode sentir gosto daquilo que já está den- parceria. Parceria de está longe, mas que
tro da gente”. (Rubem Alves) de repente está perto, convivendo, con-
Chegado o dia 15, dia de recepcionar- tribuindo, compartilhando os saberes e
mos parte dos que vinham, estávamos lá as amizades sinceras. A paixão de mo-
na Casa da Comunidade, nós e a Banda ver caminhos distantes e diversos para
de Pífanos, marca tradicional do nosso estarmos sempre juntos ensinando e
povo, e logo após gentes de vários luga- aprendendo. A gratidão é um sentimen-
res, daqui e de lá. Sorrisos, abraços, lem- to constante nessa parceria pela qual re-
branças, surpresas. Quem diria que você conhecemos a importância dela para as
viria sem dizer que vinha. Chegaste... Que aprendizagens e os avanços que já con-
bom que você veio!!!! seguimos ao longo do tempo. O trecho
do cordel que foi apresentado no final do
Chegaste encontro expressa um pouco da nossa es-
Roberto Carlos e Jennifer Lopes tima pelo Identidades.
Tanto tempo já vai caminhando
E ainda me pego recordando Entre tantas que tivemos
Lágrimas rolaram dos meus sonhos, en- Umas deu certo, outras não,
xuguei mais de uma vez Tudo isso faz com que
Tenho algumas marcas que ficaram em Prestemos mais atenção,
meu sorriso nesses anos Quais parcerias que de fato
E também lembranças tão bonitas que o Contribuem com Conceição.
tempo não desfez
Quem diria que você viria sem dizer que É com esse olhar atento
vinha Nesta ocasião especial,
Porque nunca é tarde De fortalecimento das lutas
Para apaixonar-se Nesse acontecimento real,
Chegaste Nossos agradecimentos
Senti na minha boca um te quero Ao povo de Portugal.
Como um doce com caramelo
Necessitava um amor sincero… E ao nosso querido Paiva
Que é um grande parceiro,
Que vem lá das Belas Artes
62
O ENCONTRO, A PARCERIA, AS ALEGRIAS, OS SABERES E OS FAZERES
63
MÁRCIA NASCIMENTO / DIVA RODRIGUES
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O ENCONTRO, A PARCERIA, AS ALEGRIAS, OS SABERES E OS FAZERES
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MÁRCIA NASCIMENTO / DIVA RODRIGUES
Referências
Chegaste. Roberto Carlos, Jennifer Lopez.
Álbum: Roberto Carlos, 1973.
Escritores e Cozinheiros: Rubem Alves. Acessado
no dia 04 de março de 2018 http://cozinhaelite-
ratura.blogspot.com/2010/07/escritores-e-cozi-
nheiros-rubem-alves.html.
66
ÁLISSON PEREIRA FLOR
Encontro com CARLENE BATISTA CAVALCANTE
as Artes, a Luta, FRANCISCO CHARLES LESSA
ARAÚJO FILHO
os Saberes e JAQUELINE BARBOSA RODRIGUES
MARIA CLAUDINEIDE ALVES
os Sabores da MACÊDO
Comunidade SUYANE OLIVEIRA SANTOS
WANDEÁLLYSON DOURADO
Quilombola de LANDIM SANTOS1
67
VÁRIOS AUTORES . URCA
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ENCONTRO COM AS ARTES, A LUTA, OS SABERES E OS SABORES
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VÁRIOS AUTORES . URCA
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ENCONTRO COM AS ARTES, A LUTA, OS SABERES E OS SABORES
71
VÁRIOS AUTORES . URCA
os educadores necessitam
também ser educados.
(Salort, Ramón Cabrera, 2010, p. 16)
Referências Bibliográficas
ROLDÁN, Joaquín; VIADEL, Ricardo
Marín. Metodologías Artísticas de
Investigación en Educación. Málaga:
Ediciones Aljibe, 2012.
SALORT, Ramón Cabrera.
Indagaciones sobre Arte y Educación.
Cuba: Ediciones Adagio, 2010.
DEWEY, John. Arte como experiência.
São Paulo: Martins Martins Fontes,
2010.
EISNER, Elliot W. Educar la visión
artística. Barcelona: Ediciones Paidós
Ibérica, 1998.
BERGER, John. Modos de Ver. Barcelona:
Editorial Gustavo Gili, 2000.
72
- Pernambuco. Nós conseguimos fazer o
Compartilhando que nenhuma comunidade quilombola
conhecimentos do Brasil já tinha feito, juntar 10 Univer-
sidades de ensino superior de Pernambu-
MARIA PENHA DA SILVA1 co, Bahia, Ceará, Paraíba, Brasília, Cabo
Verde e Portugal, no território quilombo-
la durante uma semana desenvolvendo
Esse relato é um pouco das muitas ex-
diversas atividades.
periências e partilhas vivenciadas no en-
Durante essa semana, vários laços fo-
tão intitulado: Encontro com as artes, a
ram fortalecidos. Parcerias formadas,
luta, os saberes e os sabores, realizado
encaminhamentos tirados para futuros
no período de 15 à 24 de julho de 2017,
encontros. Fazer parte dessa organiza-
na comunidade quilombola de Concei-
ção para mim e para minha comunidade
ção das Crioulas, localizada na cidade
foi uma importante oportunidade para
de Salgueiro, no Sertão Pernambucano.
abrir novos espaços com novos horizon-
Para a realização do referido encontro,
tes, em que possamos trilhar caminhos
as discussões tiveram início em janeiro
de partilha de conhecimentos. Esse mo-
do corrente ano, e o que não imagináva-
mento será lembrados com o pensamen-
mos, era que esse momento iria tomar
to de que é possível transformar ideias e
uma dimensão grandiosa. Após a reunião
ações a partir do que na nossa luta fomos
de planejamento continuámos a troca de
conquistando, deixando para trás o que
informações para que fosse realizado na
por muito tempo nos queria fazer sentir
comunidade um encontro onde pudés-
inferiores. Questões como esta que his-
semos juntar as escolas do Território de
toricamente foram impostas a nós e que
Conceição das Crioulas e um número
durante o Encontro fomos conseguindo
grande de estudantes dessas escolas. Daí
desconstruí-las e reconstruí-las com ou-
as portas foram se abrindo para que ou-
tra visão. Nesse sentido, os debates e as
tras comunidades quilombolas também informações trazidos nesse evento nos
participassem desse momento de trocas. deu domínio para levar para o espaço de
E, juntou-se a nós a comunidade qui- discussão nossa experiência de luta, onde
lombola Águas do Velho Chico de Orocó as pessoas se sentiram à vontade para ex-
1 Liderança da comunidade: integrante da comissão de
pôr as suas opiniões.
educação da AQCC e Professora. O encontro possibilitou a realização de
73
MARIA PENHA DA SILVA
várias atividades envolvendo diversas pes- tradas em suas memórias e, com certeza,
soas com trocas de saberes de várias locali- serão postas em prática.
dades e os conhecimentos se uniram...
Várias plantas desabrocharam nesse
período de uma semana, e mostraram
para si e para outras pessoas o poder da
construção. Em suas oficinas, cada ofi-
cineiro e oficineira se doaram, incansa-
velmente, para que tudo acontecesse da
melhor forma possível.
Isso mostra o quanto temos consciên-
cia política de que podemos vencer as bar-
reiras encontradas no caminho, que não
devemos enfraquecer, pois sabemos que
a educação é uma ferramenta poderosa
que nos faz querer sempre ir mais além.
Mostra também que temos condições de
realizar outros encontros com a certeza
da nossa existência e resistência e com
melhores condições para o nosso povo.
O encontro com as artes foi mais uma
ponte para reafirmar a nossa história.
Os laços gerados nesse período nos faz
seguir em frente, firmes com a AQCC,
juntamente com as parceiras. Medir a di-
mensão desse encontro é impossível, mas
no final pudemos perceber o quanto ele
construiu nas pessoas que deles partici-
param e organizaram. As aprendizagens
adquiridas nesse momento ímpar servi-
rão de exemplos para nós e para as outras
comunidades. Quem passou por aqui,
deixou e levou marcas que ficarão regis-
74
que a gente faz, marcou. Esse Encontro
O Encontro, foi muito forte, porque a gente começou
foi bom, mas a trazer coisas que não eram só dos de-
zassete anos, e quisemos mostrar tudo
quero mais… aquilo que a gente tem, tudo aquilo que a
gente sabe. E sobre isso, fazer uma troca
VALDERCI MARIA DA SILVA dos conhecimentos, da luta, dos sabores,
OLIVEIRA (VAL)1 dos saberes, do jeito de fazer, do jeito de
falar, do jeito de viver.
Vou falar um pouco do Encontro de Então, foi muito importante o Encon-
Saberes e Sabores que aconteceu agora tro, porque a gente pode viver o Brasil,
em 2017, o ano que também completava Portugal, Cabo Verde, e outras e outras
dezassete anos a Associação Quilombola organizações aqui no Brasil, podémos
de Conceição das Crioulas. E aí, nós da ver isso dentro de uma semana na Co-
comunidade junto com as parcerias, pen- munidade Quilombola de Conceição das
samos fazer uma atividade que não vimos Crioulas. Gente de tão distante, e conhe-
fazendo como uma atividade do dia a dia, cer os seus jeitos de cozinhar, de fazer,
que fosse só daquele momento; era uma então isso foi assim uma coisa que me
atividade de comemoração de dezasse- chamou muito, muito mesmo, a atenção,
te anos de construção e de conquista da que me fez cada vez mais gostar principal-
AQCC. Apesar das dificuldades, a gente mente da parte dos sabores. É uma coisa
queria fazer esse encontro, e então, ele foi que eu gosto muito, é uma coisa que eu
muito importante para a comunidade. me identifico bastante, é uma coisa que
Primeiro com a parceria muito forte do eu não quero que se acabe na nossa co-
grupo Identidades de Portugal, que foi munidade, que a gente passe esse conhe-
quem chegou primeiro para a gente co- cimento dos sabores, do jeito que a gen-
meçar a pensar, se preparar para o encon- te cuidava dos nossos alimentos, o jeito
tro, e daí, a gente foi buscar outros par- que a gente era mais sadio com os nossos
ceiros. O Encontro foi muito importante, alimentos. Mesmo que às vezes a gente
ele marcou demais a nossa comunidade, achasse que se cuidar de um alimento,
como sempre com as muitas atividades no caso do milho, dava trabalho, mas era
1 Artesã e membro da Comissão de Geração de Renda e de
também uma parte muito importante,
Mulher da AQCC. que você além de estar cuidando, você es-
75
VALDERCI MARIA DA SILVA OLIVEIRA
tava fazendo os exercícios, você tinha que las meninas, é coisa que vivem na comu-
preparar os seus alimentos. Não é como nidade, então, ao mostrar isso, elas vão
hoje que você chega e compra ele pronto. se fortalecendo. Isso vai ajudar cada vez
Então, a parte dos sabores foi muito mais a brigar pelos seus direitos, por mais
importante, tudo com o que as outras que tenham dificuldades, seja no espaço
universidades, as outras comunidades, os aonde a pessoa esteja, você tem que lutar.
outros países trouxeram para fazer essa E o importante também das nossas
troca, esse conhecimento, muitas coisas parcerias, como eu estava conversando
a gente pode dizer assim - que não gosta com Luísa, que a gente ficava pensando
-, mas a gente não tem costume. Costu- assim, a gente não conseguia identificar
mo dizer, não posso dizer que não gosto tantas pessoas, de onde eram no momen-
de certos alimentos, eu não tenho é esse to, porque era todo o mundo tão junto
costume, porque é o costume de outro lu- que a gente imaginava “Ó xenti, você tam-
gar. E para a gente crescer precisa trocar, bém não são desse povo?”, porque estava
precisa ter esse costume com os sabores todo o mundo muito junto; as pessoas
das outras pessoas, seus gostos. Porque estarem passando os seus sotaques, o seu
é muito importante para a gente também jeito de falar, as suas trocas, tanto nas ofi-
as pessoas gostarem dos nossos pratos. cinas como nos momentos de convívio na
Eu sempre admiro demais os saberes, de comunidade. Daí que não foram pessoas
cuidar dos alimentos, e principalmente que ficaram 'cada-quem', eu sou de tal
os sabores. grupo, eu fico para lá isolada, não, todo o
Essa foi uma parte muito importante, mundo foi muito junto mesmo.
a parte da alimentação, dos saberes das Na questão de passar, passou o encon-
outras pessoas, dos conhecimentos, nas tro, todo o mundo ansioso, nós todas
técnicas de trabalho que foram apresen- ansiosas - o encontro, “Será que a gente
tadas nas oficinas. E o nosso povo poder vai conseguir?” ,“Será que vai dar certo?”,
também estar passando o jeito de eles vi- “Ah, mas a gente já fez tanto e deu certo”,
verem. e aí, quando se passa o encontro, o que
O “cartão vermelho”2 que foi feito pe- fica: foi tanta coisa boa, que a gente agora
2 Referência ao vídeo coletivo “Cartão Vermelho para o
ainda não sabe o que vai fazer.
machismo”, 2017, realizado na Oficina de Vídeo no âmbito
do Encontro com as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da
Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas, Julho
As oficinas de cerâmica - eu fui lá para
de 2017. participar -, a gente organizou, p'rás pes-
76
O ENCONTRO, FOI BOM, MAS QUERO MAIS...
soas participarem de uma parte do dia e coisa com Andrelino, que está aqui den-
participaram o dia todo. Outra que estava tro da comunidade, a Agostinha estava ali
num canto que queria participar de um fazendo troca mais Andrelino, do manejo
e de outro e os alunos que visitaram as do barro, da argila, de todo esse cuidado
oficinas que tiveram nas escolas. O meu e a gente se descobrindo em coisas assim,
neto chegava contando dos trabalhos, da “não sabia como mexia nisso! Agora vou
xilogravura, a gente trabalhou desenhos, fazer a extracção, extrair o barro da terra,
trabalhou isso, todo mundo ansioso e da água”. Então foi muita coisa que a gen-
aí isso foi muito importante porque deu te ficou se perguntando “Menina, como é
uma mexida na cabeça das pessoas. Não importante essas oficinas”.
só não, mexeu na cabeça daqueles que
não estão directamente envolvidos com A gente tem que aproveitar p'rás ou-
os trabalhos, com as lutas; mexeu com as tras pessoas no futuro, p'rá conhecer o
crianças, do jeito que é um prazer muito que foi o resultado desse trabalho que a
positivo. gente fez dessas oficinas, porque não foi
Ele pode não aplicar tudo hoje mas uma coisa em vão, não foi só uma festa.
uma coisa ficou gravado, mais fácil a gen- Foi também uma festa, mas foi comemo-
te lembrar de tudo enquanto é criança do ração, foi aprendizagem, foi conhecimen-
que quando a pessoa já está mais adulto. to, pr'agora e para o futuro. Não é só o
Na cabeça da juventude, das crianças, que a gente vai entender, ou aprender, ou
ficou muita coisa gravada e a gente tem ter um resultado só hoje, ele vai continuar
certeza que em algum momento ele con- e eu espero que a gente continue, que a
tinua aparecendo mais o resultado do en- gente tenha novos encontros, naquele ta-
contro. manho, naquele porte, ou maior. Vamos
Eu trabalhei na oficina de cerâmica e pensar o que a gente possa estar fazendo,
eu queria assim, “Gente, descobri tanta vamos tirar o que foi que não deu certo,
coisa!”. Eu não trabalhava com cerâmi- fazer a avaliação do Encontro, é impor-
ca, comecei a trabalhar um pouco depois tante que aconteça.
de ter sofrido um acidente, comecei me A gente pode entender que não é sozi-
adaptando com outras coisas e a cerâmica nho que a gente vai andar, não é sozinho
foi uma que me trouxe alguns benefícios e que a gente vai crescer, eu cresço no mo-
comecei a trabalhar e assim, na oficina, eu mento que eu faço o outro crescer tam-
descobri coisa com o povo meu! Descobri bém.
77
VALDERCI MARIA DA SILVA OLIVEIRA
E o Encontro teve isso, eu sinto esse re- cerias, no nosso trabalho que a gente vem
sultado da questão das parcerias para que desenvolvendo dentro da comunidade:
a gente possa crescer, mas a gente ainda da educação, da saúde, da geração de ren-
tem bastante coisa para trabalhar na nos- da, dos conhecimentos das tecnologias,
sa comunidade. que hoje a gente não pode viver separado,
Com as universidades, que vieram bas- e acho que esse é um meio da gente estar
tantes, acho que isso vai ficar mais perto se comunicando e se fortalecendo quan-
p'rá gente também, essas parcerias. Tan- do a gente 'tá junto.
to dá continuidade os trabalhos colec- Ele deixou muito isso, p'rá gente dizer
tivos juntos, como a gente também está “Não, não pára que tem muito ainda que
se fortalecendo, em algum momento a fazer”. Viemos até aí mas não terminá-
gente possa estar aqui, mas precisa ir lá mos. A gente cada vez mais dando conti-
também, fazer alguma conversa, alguma nuidade a tudo o que a gente vem fazen-
fala. Eu acho que isso vai-nos ajudando do e vem vivendo. Então eu acho isso do
também. Encontro.
Eu acho. E aí, tem coisa que depende
de nós, da comunidade. A gestão do ter-
ritório vai depender da AQCC, somos
nós que temos que fazer a gestão, como
vamos trabalhar, como vamos gerir. Mas
tem outras coisas que dentro da gestão
não está no nosso alcance, nós depen-
demos de parceria, nós dependemos de
apoio p'rá um melhor desenvolvimento.
Com o Encontro, a gente sente que não
está só. Posso brigar porque eu não estou
só, porque eu vou encontrar parceiro, vou
encontrar apoio p'rá gente cada vez mais
desenvolver, por conta que a gente não
está fraco, se eu estou junto com outros e
outras. Eu acho que ele deu uma mexida e
de tudo o que a gente viveu, a gente pre-
cisa de dar continuidade nas nossas par-
78
da comunidade quilombola de Conceição
Quilombo das Crioulas.
tecendo De um lado, a questão discutida neste
poema de João Cabral de Melo Neto é a
o amanhã união e a integração do coletivo para tecer
e emaranhar os fios da manhã. De outro,
DENILSON ROSA1 o texto enfatiza o dinamismo esclarecido
dos quilombolas e o enfrentamento polí-
TECENDO A AMANHÃ tico em defesa de sua dignidade étnica e
Um galo sozinho não tece uma manhã. cultural, que ressaltam a extraordinária
ele precisará sempre de outros galos. energia humana existente nas crianças,
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
adolescentes e adultos da comunidade
que apanhe o grito que um galo antes quilombola, sugerindo outra visão da es-
e o lance a outro; e de outros galos cola e do conhecimento a partir da arte,
que com muitos outros galos se cruzem da luta, do saber e da culinária tradicio-
os fios de sol de seus gritos de galo, nal, o que configuram os pontos referen-
Para que a manhã, desde uma teia tênue,
ciais da vivência na comunidade.
se vá tecendo, entre todos os galos.
(MELO NETO, 1994, p. 345) Tecer a manhã significa centelhas de es-
perança, a procura da lucidez sagrada do
O texto evoca do poema tecendo a ama- dia, o trabalho coletivo e participativo, a
nhã, de João Cabral de Melo Neto, a in- união, a interação. Seu significado é, so-
tegração do cantar dos galos, e também bretudo, pintar, com as cores do arco-íris
procura imagens, metáforas, questões, e com a riqueza da diversidade cultural
ideias, luzes, reflexões e significados para existente em Conceição das Crioulas, um
imaginar o movimento quilombola, se- saber artístico e cultural vivenciado no qui-
melhante ao esplendor que dissipa a noi- lombo, que não foi ainda monopolizado
te, e faz a manhã nascer radiante com os por uma intelectualidade elitista reprodu-
raios do sol. Tem-se ainda como objetivo tora do discurso hegemônico Há todavia,
recuperar a memória, as experiências e as nesse saber a valorização da arte e da luta
emoções ainda acesas do encontro com quilombola como reorientação radical da
as artes, a luta, os saberes e os sabores escola formal e da criação artística.
Para discutir o saber de raiz da comu-
1 Prof. Dr. Denilson Rosa nidade e sua possibilidade de reorientar
79
DENILSON ROSA
outra visão da educação e da arte, foram contra os ataques e ameaças da atual polí-
extraídas intuições do poema tecendo a tica nacional orientada contra os direitos
manhã, com a intenção de pensar e refletir dos trabalhadores, das minorias e das co-
sobre a investigação e a criação das artes munidades tradicionais.
visuais em contexto de comunidade tra- Um dos ataques que ameaça o povo
dicional, imaginando novos horizontes negro quilombola é a tentativa do par-
para a luta quilombola como a conquista tido dos empresários e latifundiários
definitiva de seus respectivos territórios, ‘Democratas’ (DEM) de anular, no STF
os quais estão sempre ameaçados por gri- (Supremo Tribunal Federal), o Decre-
leiros, especialistas do direito e políticos to 4887\2003, o qual simboliza um dos
da frente parlamentar dos latifundiários. marcos legais normatizadores da regu-
O poeta metaforiza o homem como larização fundiária dos quilombos. Por
galo, que cria o vir a ser em união com os outro lado, a mobilização nacional do
outros, a renovação de cada horizonte de- movimento quilombola exemplifica o
pende da colaboração de todos, condição significado dos conceitos união, integra-
essencial de integração de toda a diversi- ção e envolvimento de todos para tecer
dade de pessoas no trabalho coletivo, foi o amanhã, continuar na resistência por
precisamente com este princípio de união nenhum quilombo a menos e lutar contra
e integração que os negros escravizados os conflitos violentos no campo, os quais
rebelaram contra a crueldade da servidão, são acompanhados de assassinatos dos
criando como um grito de liberdade co- trabalhares do campo e das lideranças
munidades quilombolas em todo imenso negras.
Brasil. Com o olhar no desconhecido, ema-
O quilombo é a partida para pensar os ranhei novamente na particularidade da
conceitos de união, integração, conexão e comunidade quilombola de Conceição
relação com a diversidade, por conseguin- das Crioulas, com um desejo utópico:
te o poema tecendo a amanhã, combinado encontrar, criar ou, se razoável, inven-
e entrelaçado com as emoções percebidas tar novas possibilidades em união com
no encontro com a arte e com a cultura pessoas peritas, populares, conhecidas e
da comunidade quilombola de Conceição desconhecidas abrindo novos horizontes
das Crioulas em Pernambuco – Brasil, para entender a investigação, o ensino e a
que me levou a juntar com outras pessoas poética artística a partir da conexão afe-
e instituições o meu grito de indignação tuosa e política com os participantes do
80
QUILOMBO TECENDO O AMANHÃ
81
DENILSON ROSA
gemônica que domina o mundo das artes trelacem com outros cantos, com diferen-
e das letras foram ao longo da história tes vozes.
inimiga da diversidade. Logo, em con- O elo de cooperação presente na na-
sonância, nas palavras do filósofo Vitor tureza tanto nos galos quanto nas an-
Martins, “o seu papel histórico foi sem- dorinhas são qualidades valorizadas e
pre o de se sobrepor, de dominar, se pos- indispensáveis para os colaboradores do
sível destruir as culturas tratadas como ‘movimento intercultural IDENTIDA-
inferiores” (MARTINS, 2007, p.90). DES’, que tem a fantasia de potenciali-
A conexão de diferentes pessoas, a sa- zar a cumplicidade das diferentes pes-
ber, ministradores das oficinas, estudan- soas que fazem o verão e tecem manhãs
tes inscritos nas atividades e a comuni- e amanhãs, que busca o compartilhar, o
dade, foi o momento em que imaginei os respeito, a co-autoria, a solidariedade,
galos tecendo a manhã. A união de ofici- isto é, como intui a cultura popular, um
neiros com os participantes e com os mo- trabalho em conjunto é mais eficiente e
radores do quilombo foi o contexto para que uma pessoa sozinha não faz grandes
eu perceber a relação afetiva das ações coisas.
propostas de superação da criação artís- Arte contemporânea se revitaliza em
tica solitária e individualizada para uma contato com outras realidades, as cultu-
produção com participação coletiva real, ras pós-coloniais questionam, criticam,
revelando a universidade e a comunidade denunciam e enfrentam as tentativas de
tradicional quilombola a desenhar novos controle e exclusão dos povos emudeci-
olhares para a arte e para a vida. dos, excluídos, discriminados e inferio-
O poema sugere que um galo sozinho rizados pela força do dinheiro e poder
em seu cântico não tece uma manhã, se- dos especialistas da classe dominante.
melhantemente ao ditado popular que Portanto, concordo com a formulação
diz “uma andorinha sozinha não faz ve- do filósofo Vitor Martins colaborador do
rão” De todo modo penso que é possível ‘movimento IDENTIDADES’, quando
a andorinha anunciar a chegada desta es- sugere que esse coletivo de artista promo-
tação, no entanto a idéia defendida é que ve “o encontro directo, imediato e genuí-
a arte e a cultura se revitalizam em con- no, de igual para igual as experiências e
tato com outras realidades, ou seja, para vivencias de outras culturas” (MARTINS,
o novo dia nascer radiante no horizonte, 2007, p.91).
é necessário que o cantar dos galos se en- Neste mesmo sentido de partilha, cum-
82
QUILOMBO TECENDO O AMANHÃ
83
DENILSON ROSA
84
nicípio mais negro da região que se chama
Conceição de Pelotas, outrora, espaço da produção do
Crioulas: fascínio, charque - carne seca salgada - alimenta-
ção da escravaria no Brasil e em outros
encontro, saber e países. Observei que, apesar da distância
geográfica que separa o pampa gaúcho do
potência para (re) sertão semiárido nordestino, as histórias
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CONCEIÇÃO DE CRIOULAS: FASCÍNIO, ENCONTRO, SABER E POTÊNCIA PARA (RE) EXISTIR!
tar junto era significativo para melhorar ria, mas como transmissores de história;
tanto a capacidade motora quanto a cogni- é impressa na digital das mãos que alisam
ção para melhor compreender duas frases o barro extraído do chão, observando as
escritas em uma das mesas que se situava, regras do ritual que impõe respeito e sen-
também, lugar de paradouro, no centro da so de preservação às terras sagradas do
comunidade, frente ao Mercado que dizia território que, na atualidade, derrubou as
o seguinte: “Você não é a história que eu cercas que outrora haviam sido colocadas
vou contar. Você é a história que eu vou pelos/as fazendeiros/as.
viver” e “A verdadeira liberdade de um A argila, matéria prima das cerâmicas
povo é poder contar a sua própria histó- que se transforma através do segredo an-
ria”. Contar a própria história é um exer- cestral repassado pelos mais velhos com a
cício cotidiano em Conceição de Crioulas, capacidade de produzir artefatos esbran-
por isso, o território fundado por mulheres quiçados, ou seja, um diferencial no ma-
é, a todo momento, um território político nuseio do barro.
cujas transformações e conquistas se dão A história é presença nas vozes das
meio a todas as contradições que afetam infâncias que em ritmo e tom diferente
positivamente ou negativamente não ape- dos/as adultos/as e dos/as anciãos/ãs, a
nas o quilombo, mas o mundo inteiro. renovam porque têm a possibilidade de
Estes conflitos giram em torno das identi- educarem-se e escolarizarem-se sob ou-
dades étnico/raciais, de gênero e sexuais; tros moldes, num rearranjo de pedago-
do usufruto e da terra e consequentemente gias da não formalidade com as pedago-
das relações de trabalho; das necessidades gias da formalidade.
básicas de políticas públicas de saúde, sa- A Educação Escolar Quilombola, como
neamento básico, moradia e educação que nova modalidade de ensino do sistema
necessitam dialogar com a dinâmica cultu- educacional brasileiro desde o ano de
ral onde estas políticas devem ser incorpo- 2012, tem como perspectiva um mode-
radas sem que violem práticas culturais, lo de educação diferenciada e as escolas
enfim, que estas possam proporcionar um presentes em Conceição de Crioulas, fo-
bem viver cujo desenvolvimento não seja ram conquistas locais que impulsionaram
sinônimo de desenraizamento. a reivindicação de que em todo o Brasil
A história de Conceição é bordada nos a escola dialogasse com a educação pre-
panos que se transformam em produtos sente no quilombo. A educação escolar
que não se caracterizam como mercado- em Conceição, se constitui de práticas de
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GEORGINA HELENA LIMA NUNES
fazer e saber que comportam ciências, fi- fontes quando essas são escritas pelas
losofias, tecnologias, enfim, instrumen- mãos das crioulas de Conceição que ensi-
tais éticos e estéticos fundamentais para nam à sociedade que a relação de autoria
a vida e prosperidade não apenas dos qui- necessita ser protagonizada pelos/as pró-
lombos mas de uma sociedade cujo para- prios/as sujeitos/as que dos seus lugares
digma educacional inspirada em moldes de fala, politizam as universidades e suas
ocidentais revela e já revelou, sinais reco- pretensas hegemonias.
nhecidos de insuficiência ou, talvez, de Mas finalizaria a partir de um dos tan-
sua falência. tos momentos de emoção! Foi emocio-
Seria impossível em poucas páginas nante viver a comunidade no espaço onde
descrever a profundeza que foi estar em se concentravam as atividades diárias; foi
Conceição e durante cinco dias, aban- inesquecível a convivência diária e notur-
donar, parcialmente, as ferramentas ofi- na, o dormir e o amanhecer nos lugares
ciais de pesquisadora e se permitir viver de vida e de luta das mulheres e homens
a construção de conhecimento de forma de Conceição de Crioulas. Foi funda-
mais fluída. Por isso, gostaria de encerrar mental o momento de tão apenas olhar,
a escrita me remetendo à instituição que de forma descompromissada, ou melhor,
é tão cara para a população negra e qui- aprendi outros jeitos de estar e olhar, de
lombola e, ao mesmo tempo, ainda tão compromisso que é aquele que permite
importante de ser acessada e constante- olhar o universo da vida sem encarcerá-lo
mente renovada para que ao invés de ser nas limitações que os manuais de inves-
lugar de emancipação não seja lugar de tigação impõem.
opressão: a escola! Por esse jeito de olhar, acompanhei
A escolarização em Conceição de Criou- como lição, o deslocamento de uma se-
las, é reconhecida por ser àquela que pro- nhora, mãe de lideranças e professoras lo-
picia que escola e comunidade não sejam cais, com um lindo vestido rosa, com cai-
territórios estanques. Existe, em certa mento perfeito em um corpo ágil, esguio,
medida, alguns estudos e divulgação dos cabelos quase que totalmente brancos e
processos de educação e escolarização pele lisamente escura... com a memória a
da comunidade divulgados através de di- ir e vir, por vezes se embaraçar, talvez, não
ferentes canais, entre eles trabalhos de como sinal de tempo, da idade, ou como
natureza acadêmica, vídeos, reportagens sintoma de diagnostico médico. Me vi,
e outros. Mais preciosas tornam-se as propus a reconhecer, aquele momento de
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CONCEIÇÃO DE CRIOULAS: FASCÍNIO, ENCONTRO, SABER E POTÊNCIA PARA (RE) EXISTIR!
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tistas. A oficina de dança, objeto deste
Encontro com o estudo, teve como objetivo sistematizar e
corpo, a dança socializar a vivência realizada no encon-
tro supracitado e os diálogos intercultu-
e a comunidade rais, a partir do corpo em movimento,
bem como analisar as possibilidades de
Quilombola de integração e as diferenças e as semelhan-
Conceição das ças das manifestações culturais dos cole-
tivos que ali se entre-cruzaram. Quanto
Crioulas aos aspectos metodológicos, realizamos
pesquisa qualitativa e participante, que
EDITE COLARES1 dispôs como procedimento de coleta de
JEANNETTE F. POUCHAIN RAMOS2 dados a observação participante. Funda-
ANA CAROLINA LIMA SALES3 mentamos as idéias expostas neste arti-
go em autores, como: Paulo Freire, Jean
Resumo Piaget, Ligiéro, Rancière, dentre outros.
Este artigo é fruto da imersão viven- À guisa de conclusão, ressaltamos que
ciada no Quilombo de Conceição das houve uma disposição coletiva para sair
Crioulas – Pernambuco, organizado pelo de seu lugar, desviar-se do seu cotidiano
Movimento Intercultural Identidades, profissional e imergir numa experiência
que desenvolve laboratório de pesquisas, colaborativa cujo objetivo era compar-
onde se cruzam docentes, discentes e ar- tilhar artes, saberes e sabores. É funda-
mental reafirmar a adesão de todos, pos-
1 Edite Colares Oliveira Marques possui graduação em Peda-
gogia pela Universidade Federal do Ceará (1990), mestrado
sibilitando a integração intergeracional e
em Educação pela UFCE (1997), doutorada em Educação pela intercultural. Enquanto pesquisadoras,
UFCE (2008) e pós-doutorada na Faculdade de Belas Artes
da Universidade do Porto/PT (2014). Professora da Universi- nos colocamos diante do processo como
dade Estadual do Ceará. educadoras que estão em constante pro-
E-mail: edite.marques@uece.br
2 Profa. da Universidade da Integração Internacional da
cesso de reinvenção. Deste modo, con-
Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). sideramos que, mediados pelo corpo em
E-mail: ramosjeannette@unilab.edu.br
3 Discente do curso de licenciatura em Pedagogia da Univer-
movimento, motivados pelas danças,
sidade Estadual do Ceará, bolsista do PIBID e participa do vivenciamos o sair de si e ir ao encontro
grupo de pesquisa Cultura Brasileira, Educação e Práticas
Pedagógicas (UECE).
do outro, enfim, o perceber-se, o trans-
E-mail: negracaroleducadora@gmail.com mutar-se.
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de com o canto e a dança de origem afri- mundo. Portanto, é através dos gestos do
cana e que recebe matizes deste povo que corpo que podemos fazer uma reconsti-
tuição da história de vida deste ou daque-
canta, dança e encanta.
le grupo, como também da pessoa. [...]. O
O povo do quilombo é alegre, gosta seu corpo é ativo em todas as situações e
de música, do ritmo marcado pelo batu- em todos os momentos (ARAÚJO; MEN-
que e de sua dança, pois é a partir disso DONÇA; SOUSA, 2011, p. 155).
que expressam seus costumes e sua cul-
tura. A dança está sempre presente em O corpo em movimento promove a
seu cotidiano e nas suas festas e pode ser educação dos sentidos e possibilita a per-
considerada como elemento fortalecedor cepção de si e do universo, assim como
da identidade local, bem como apoio na aprendizagens significativas. Portanto,
construção do protagonismo de jovens a dança é um movimento espontâneo/
da comunidade. Para ilustrar o que afir- sistematizado de liberdade de criação,
mamos, o grupo de dança iniciado no recriação e espelhamento de movimentos
quilombo foi organizado por jovens que vivenciados no cotidiano da vida comuni-
cantam, dançam e enaltecem sua cultura, tária.
fazendo com que cada vez mais ela seja O ensino de dança, enquanto prática
difundida, respeitada e valorizada por sociocultural e atividade corporal, inicia
todos. com a percepção a partir dos movimen-
No entanto, como pesquisadores, tam- tos, estimulando a consciência corporal,
bém indagamos: houve descolamentos de ancorando-se no jogo especular o autoco-
si? Encontros com o outro? Partilha de nhecimento (NANNI, 2005) e o conhe-
saberes, de corpos em movimento? cimento do outro, a partir da troca entre
manifestações artísticas de diferentes
2.1 O corpo em movimento: A dança lugares e tradições. Em síntese, “[...] a
como princípio educativo dança como linguagem corporal, cultu-
Partindo também do princípio pedagó- ral humana, produzida por um corpo que
gico de que não é só físico, mas um corpo que é bio-
cultural, capaz de perceber e transformar
O corpo é a porta de entrada e saída de in-
as coisas do mundo” (LIMA; PORPINO,
formações e/ou conhecimento. Informa/
aponta o que incomoda, satisfaz, entris- 2011, p.117).
tece, alegra... Enfim, sinaliza/ constrói Ao relacionar a dança às práticas cul-
canais de comunicação entre o ‘eu’ e o turais, percebemos este encontro como
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Portela (2014), ao analisar o percurso social existente. O relacional, por sua vez,
da educação intercultural na Europa na pressupõe o contato entre as diferentes
transição entre os séculos XX e XXI, me- culturas sem, entretanto, problematizar
diante cenário crescente de migração e os conflitos e as desigualdades existentes.
unificação econômica, conclui sinalizan- Por fim, a interculturalidade crítica reco-
do que é preciso ter clareza semântica e nhece a diversidade cultural e propõe mu-
epistemológica diante da pluralidade de dança nas estruturas de poder, questiona
acepções. Para ele, “There is a game, an as relações, apontando novos modos de
‘interaction’, between people with different viver, pensar, conviver e ser. Indagamos,
ethnic, linguistic and cultural backgrounds in então: qual tipo de interculturalidade vi-
which the aim is not assimilation or fusion, venciámos na oficina de dança?
but encounter, communication, dialogue,
contact, in which roles and limits are clear, 3. As trocas e o diálogo intercultural na
but the end is open”(p. 8). oficina de dança
Na América do Sul, Walsh entende in- Desde o início, pensamos em promo-
terculturalidade como projeto e processo ver diálogos entre danças de todos os
na construção de outros modos de ser, lugares ali representados, ou seja, Brasil,
pensar, viver e se relacionar. Portugal e África, com ênfase na vivência
Noes agumenta a partir da relação entre de representações de danças do Nordes-
grupos, práticas e pensamentos culturais, te brasileiro, notadamente do Ceará e
pela incorporação dos tradicionalmente de Pernambuco. Destacamos, também,
excluídos dentro das estruturas (edu- a produção colaborativa da oficina entre
cativas, disciplinares e de pensamento) docentes e discente da UECE, UNILAB,
existentes, ou somente a partir da criação das escolas quilombolas e da comunidade
de programas ‘especiais’ que permitam a em geral.
educação ‘normal’ e ‘universal’ siga per- A concepção de conhecimento que se
petuando práticas e pensamentos radi- faz a partir de si e na interação com o
cais e excludentes (WALSH, 2014). outro — a partir dos fundamentos da
Esta complexidade se revela também dança como princípio pedagógico e da in-
em três tipos de interculturalidade. São terculturalidade como pontes que unem
eles: funcional, relacional e crítica. O os diferentes na afirmação do que lhes é
primeiro reconhece a diversidade e a di- singular, ao mesmo tempo em que reco-
ferença e propõe a inclusão na estrutura nhece e valoriza o outro — nos fez sentir
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barquei no Brasil um mês antes de viajar
VEREDA a Pernambuco, e aproveitei o tempo para
rever alguns amigos, visitar familiares,
JULIANA POLIPPO1 saborear meus pratos favoritos e contem-
plar um inverno mais bondoso. Me ins-
Os caminhos que me levaram a Con-
talei em São Paulo - no apartamento de
ceição das Crioulas foram sinuosos,
uma amiga - onde meditei entre grades à
longínquos e instintivos. Quando digo
espera da minha companheira de viagem
“instintivos”, fica parecendo que sabia
– Maria Portela (pesquisadora multimé-
exatamente o rumo que deveria tomar
dia, FEUP) que chegaria no Aeroporto de
pra chegar lá, mas isto não é verdade.
Guarulhos (GRU), no dia 08 de Julho às
Nos quase 4.000 km rodados, o único
07:55 vinda de Portugal também para o
guia que mantive ligado foi o desejo de
‘Encontro’. De um domingo a outro, ti-
“conhecer”. E quando digo “conhecer”,
nha a dupla missão: atravessar parte do
também não quero que fique parecendo
mapa do Brasil numa linha quase reta até
que era só curiosidade da minha parte. Eu
Salgueiro, PE, sem deixar de mostrar fa-
uma mera estudante brasileira, na aven-
tos e belezas em exatos 7 dias.
tura transatlântica de carregar infinitas
Apresentei a maior cidade do país em
indagações na mochila. Sob a premissa
de somar sonhos para futuras realidades pouco mais de 24h, e fiz questão que isso
no Encontro com as Artes, a Luta, os Saberes acontecesse mesmo com o tempo conta-
e os Sabores da Comunidade Quilombola de do que tínhamos, porque acreditava que
Conceição das Crioulas, como tantos que ali ela entenderia logo que no Brasil so-
aqui já vos relataram de outras formas. mos feitos de contrastes. Pra isto elaborei
A poucos meses incorporada no grupo um roteiro passando pelo que considera-
‘Movimento Intercultural IDENTIDA- va ‘característico’ e não ‘folclórico’. Caí-
DES’, ajudando nas questões ‘multimé- mos na estrada no dia seguinte a chegada
dia’ que podia, fui convidada a visitar a dela sentido a Minas Gerais, e contáva-
comunidade pela primeira vez. Passei mos apenas com dois Guias Quatro Rodas
dias a comtemplar sensações... Noites a impressos em 2004 e um GPS desatuali-
ansiar. Embora tivesse no fundo no fun- zado, que logo foi descartado por falta de
do, calma no que haveria de ser. Desem- credibilidade.
A primeira parada era Ouro Preto,
1 Investigadora Multimédia, ID_CAI, i2ADS. uma das principais localizações do ciclo
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JULIANA POLIPPO
do ouro, também conhecida por sua ar- queca de peixe’ bem servida que ouvira
quitetura colonial. A mim fazia sentindo dizer, enquanto nos perdíamos para che-
atravessar caminhos comuns ao da colo- gar no vilarejo de Palmeiras. Localizado
nização, afim de entender as suas demar- no centro do estado, no município com-
cações no tempo. Então lá fomos nós, a preende ‘O Parque Nacional da Chapada
dupla luso-brasileira numa investigação Diamantina’, nos instalamos por pouco
experimental que buscava decifrar mapas, mais de 48h pra explorar um reduto de
direções, moedas, costumes, dialetos, beleza natural no país.
gostos musicais e tudo mais que passasse As estradas ficavam cada vez menos
pela janela do carro. sinalizadas, os postos de gasolina cada
Continuamos. Era chegada a hora de vez mais espaçados, o mapa confuso e as
conhecer o ‘Instituto Inhotim’, um dos informações mais incongruentes. Já tí-
mais importantes acervos de arte contem- nhamos algum cansaço dos longos dias
porânea do Brasil, considerado o maior na estrada e a curiosidade a esta altura
centro de arte ao ar livre da América La- nos intrigava mais. Passamos o domingo
tina. A área de visitação beira os 100 ha e a especular de tempos em tempos como
compreende jardins, galerias, edificações haveria de ser aquilo que nos dispúnha-
e fragmentos de mata, lagos ornamentais, mos habitar. E confesso que por alguns
e um jardim botânico com 4.300 espécies momentos, condenei a minha própria es-
em cultivo. Outra vez o tempo estava con- colha de fazer esta rota, ao me ver diante
tra nós e precisamos ser certeiras no que das inúmeras questões que este percurso
gostaríamos de ver. Fomos escolhendo suscitaram em Maria. E que acabavam
a dedo no guia de bolso, os artistas que sendo minhas também, a medida que
nos vinham a cabeça e assim fomos per- eram irrespondíveis. Pra não deixá-la a
seguindo obras por entre os bosques do mercê de um silêncio profundo, passei a
parque. Tivemos surpresas, decepções e resumir a grande maioria das respostas à:
alguns tipos mais de inquietações para a Isto é o Brasil! E o pouco que funcionava bem
nossa coleção. por aqui agora corre riscos. Descontente
A esta altura o diário de viagem já an- com esta explicação rasa, voltava a pesar:
dava recheado, mas nosso destino final “Se tivesse ido pela costa, ao menos ela
ainda passava longe. Chegava o dia de teria achado tudo bonito e pronto”. Mas
acelerar mais fundo pra abarcar na Bahia. lamentos não adiantavam, o traço já esta-
Maria tratava de me cobrar uma tal ‘mo- va feito e precisávamos segui-lo.
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VEREDA
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VEREDA
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JULIANA POLIPPO
Entre um trajeto e outro, nos contou que las no período da tarde, e nossa turma
atuava como designer gráfico de vários tinha mesmo aumentado. Tínhamos
projetos ligados a AQCC, o que me ani- agora 5 alunos, chegando a ter um pico
mou, pois isto garantia que sabia usar mi- de 6, não fosse por mais outra desistên-
nimamente algum software de edição de cia pelo mesmo motivo das anteriores. A
imagem. E este fato ajudaria e muito na faixa etária média se firmou entre 16 à 21
compreensão do conteúdo que pensáva- anos, em sua maioria do sexo masculino.
mos em transmitir. Todas as desistentes tinham em comum
Vale ressaltar que não detínhamos no- o perfil de serem mulheres com mais de
ção alguma sobre o nível de conhecimen- 35 anos. O que ficou visto pra mim, ao
to dos alunos nas áreas afins a Web e/ou menos nesta ocasião, que os jovens tive-
em qualquer outro meio digital até este ram mais facilidade, curiosidade e tempo
momento. As outras duas participantes para aprender a desempenhar este tipo de
confirmadas tiveram desistência, por tarefa. Então por que não incentivá-los?
conta de estarem envolvidas na organi- Pronto a sala estava cheia! Que alegria.
zação do evento, o que as impossibilita- Era hora de começar outra vez... Enchi
va de frequentar o turno de 4h/dia. Com o peito e lembro bem de tentar usar um
apenas um participante, iniciamos ofi- tom de voz que fosse de entusiasmo e não
cialmente a ‘oficina de Web’. No final da de ‘fórmula’, porque qualquer maneira
aula, perguntamos se não conhecia mais equivocada de se colocar poderia criar um
ninguém na comunidade que tivesse in- tipo de desinteresse instantâneo, que nos
teresse em aprender esta linguagem. Ele faria ficar sem alunos outra vez no dia se-
disse-nos que tentaria convidar alguns guinte. Toda aquela matéria era técnica
amigos. Não demorou muito e ainda no demais e sabíamos bem disso.
intervalo da nossa refeição no salão da O que criaria neles algum comprometi-
‘Casa da Comunidade’, animado e pres- mento neste tipo de conteúdo? Recordo bem
tativo nos abortou questionando sobre de pensar todo tempo nisso. Enquanto
como seria feito com o conteúdo já dado, o desafio da língua também pairava sob
se entrassem agora mais pessoas na ofi- nossas cabeças como uma realidade. Tí-
cina. Dissemos que repassaríamos e fica- nhamos ali a linguagem HTML, CSS e JS
mos felizes de saber que possivelmente em formatos de sintaxes (códigos escritos
teríamos mais partidários. em inglês), o português de Maria, o meu
Retornamos ao local destinado às au- português brasileiro e os dialetos locais a
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VEREDA
serviço. E acredito que isto só não chegou nhos que seguiríamos na próxima etapa.
a ser propriamente um problema, por- Mudamos o rumo das coisas por uma ou
que todos pareciam gostar de brincar de duas vezes, e acrescentamos outros ele-
sinónimos, o que acabou dinamizando a mentos não previstos em nosso conteúdo
sala. Me sentia mais próxima aos alunos programático, pra que eles conseguissem
à medida que tentávamos quebrar estas apresentar ao menos uma versão bási-
barreiras pessoais para encontrar um ca e funcional da proposta. Formando
‘termo-em-comum’, que todos fossem uma única equipe, distribuíram tarefas
capazes de entender. Assim ao longo dos e etapas entre si para que na data-limite
dias, um laço foi se construindo paralelo tivessem criado as páginas dos assuntos
ao conteúdo, que por sua vez, se tornava ‘História da Comunidade’, ‘Pontos Tu-
mais denso e detalhado. O equilíbrio en- rísticos’, ‘Festas’ e ‘Contatos’ – sessões
tre este dois eixos centrais precisavam ser estas escolhidas por eles próprios – e que
encontrados minuto à minuto para que os conteúdos destas fossem preenchi-
a atenção do grupo não se perdesse. Pra dos e dispostos visualmente. Enquanto
isto, utilizamos uma abordagem que fo- um selecionava imagens, outro recortava
cava em acompanhar o desempenho um à na medida exata. Um coletava textos e o
um. Os tempos destinados aos exercícios outro reunia o todo material necessário.
ajudavam a sanar dúvidas e fixar deta- Utilizando a ferramenta de compartilha-
lhes importantes que poderiam vir a ser mento em nuvem (Google Drive), também
esquecidos com facilidade certamente, se aprendida, produziram em simultâneo a
assim não fosse feito. programação da página, de forma a em-
Era nítido que os alunos tinham “vãos” pregar todo conhecimento que acabavam
que precisavam ser preenchido antes do de adquirir sobre linguagem Web.
desfecho que pretendíamos: conceber Aquele dia a aula acabou por volta de
uma segunda versão do layout do website 19h40, passando o horário por conta da
da comunidade, feita apenas por eles em extensão do exercício que tomara mais
sua totalidade. O prazo era curto, o que tempo do que previsto. Nos dirigimos ao
nos fazia priorizar novamente. A cada fim jantar todos juntos numa conversa que já
de dia, Maria e Eu conversávamos sobre o suscitava um tom de saudosismo. A ‘ofici-
desempenho de cada um deles, a atuação na de Web’ estava oficialmente concluída.
como um todo, as nossas sensações pes- O dia que se seguiria era o último, e isto
soais diante do quadro geral e os cami- representava que ainda deveríamos reu-
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JULIANA POLIPPO
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VEREDA
voltássemos então pra que pegasse suas Retruquei prontamente apenas querendo
coisas. Dei meia volta e parei em frente a saber quem eram os destruidores e ela me
praça até que retornasse com sua mochi- disse que era as próprias pessoas da re-
la. Imediatamente ‘Isinha’ reapareceu, e gião, que tentavam desviar água por não
disse que era sua prima a moça que pedia terem recebido o mesmo beneficio que os
a carona. Eu então levando as ressalvas outros. Questionei quanto tempo fazia
de Maria ao cabo, perguntei se não havia isto, mas ela não soube me dizer, o que
mesmo problema levá-la. Ela garantiu ficou parecendo que fazia muito. Depois
que não. “Ótimo! Vamos então?” disse. disso fiquei em silêncio pelo resto do
Aproveitamos para tirar algumas foto- caminho. Nem sabia o que pensar e não
grafias, dar mais alguns abraços, antes de queria ser hipócrita em qualquer coisa
partirmos novamente. que dissesse. Definitivamente aquela não
Agora tinha uma nova companhei- era minha realidade e precisava pensar
ra, o que acabara por provocar em mim muito antes de vir a entender tudo que
uma curiosidade de entrevistadora. Ti- tinham vividos eles por toda vida e eu nos
nha muitas questões a perguntar a jovem dias anteriores.
de 17 anos sentada no banco de trás do A deixamos no endereço indicado e
carro, mas deixei que ela abordasse qual- seguimos. Nos perdemos e muito neste
quer assunto primeiro. E aos poucos foi trecho e chegamos 3 h depois do supos-
nos contando sua trajetória na comuni- to completamente exaustas. Dormimos
dade, seus motivos para mudar-se para a e no outro dia separei-me de Maria no
cidade e alguns fatos sobre a região. Um aeroporto de Juazeiro do Norte, por volta
ponto da conversa em específico se crave- de 9h40 e rapidamente tratei de me colo-
jou em mim, por não conseguir dizer que car a descer todo aquele Brasil que havia
consigo realojá-lo num canto da minha subido. O meu destino final ainda era
consciência que o entenda. O instante desconhecido até pra mim, e só sabia que
aconteceu quando perguntei sobre ‘água haveria de chegar a Feira de Santana ain-
encanada’ e ela respondeu-me: uma tal de da naquele dia. Durante todo percurso da
água já passou aqui uma vez, mas acabou rá- viagem, fiz pequenos recortes imagéticos,
pido porque quebraram todos os canos. Esta os quais deram origem a série ‘VEREDA’
fatídica fala se demarcou e se debate em – que intitula também este texto – afim
mim até hoje. Como assim uma tal de água de refletir e deglutinar por meios delas,
já passou aqui um dia?, repetia em silêncio. visões que palavras como estas não pu-
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JULIANA POLIPPO
A Casa da Juventude
Oficina de web
Oficina de web
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Este trabalho aborda uma vivência
Vivências em Conceição das Crioulas, em julho
Cartografadas de 2017. Conceição das Crioulas é uma
Comunidade Quilombola localizada no
em Conceição município de Salgueiro, no Sertão de Per-
nambuco, Brasil.
das Crioulas Desenvolvemos esse ensaio visual nar-
rativo a partir das nossas impressões in-
LEANDRO ALVES GARCIA terceptadas por cheiros, cores, sensações,
MARIA HELENA MAGALHÃES sabores e afetividades que se constituí-
MÁRCIO SOARES DOS SANTOS ram ao longo do percurso em Conceição
ROBSON XAVIER DA COSTA1 das Crioulas.
20 e 22 de Julho de 2018
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VÁRIOS AUTORES
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VIVÊNCIAS CARTOGRAFADAS EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS
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VÁRIOS AUTORES
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VIVÊNCIAS CARTOGRAFADAS EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS
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VÁRIOS AUTORES
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Comunidade Quilombola de Conceição das
Angu - comida de Crioulas, espaço frequentado com assi-
casa e identidade duidade, curiosidade e gosto. Uma bri-
gada composta por oito mulheres pre-
alimentar parou, durante seis dias, café da manhã,
almoço e jantar para as 200 pessoas que
quilombola circularam em Conceição durante o even-
to. Centenas de visitantes e quilombolas
MILENNA GOMES1 se organizaram em torno desse local, na
Casa da Comunidade, para se nutrir e so-
Resumo cializar.
Este artigo, sob uma perspectiva ali- Foi à mesa que a multiplicidade de
mentar e histórica, traz observações acer- personalidade, orientação sexual, idade,
ca de patrimônio e identidade gastronô- nacionalidade, religião, grau de instru-
mica quilombola a partir de observações ção, classe e origem sociais, pulverizada
feitas durante os seis dias de Encontro com por Conceição ao longo de seis dias, teve
as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da a chance de convergir. Na troca de sabo-
Comunidade Quilombola de Conceição das res no dia da despedida, e reforçando que
Crioulas, em julho de 2017. comensalidade só existe coletivamente,
houve um revezamento de cozinheiras
palavras-chave
quilombolas diante do tacho onde foi
Alimentação, identidade, cultura, quilombola.
cozido o angu, um dos pratos protago-
nistas da partilha de comida naquela
Muitas coisas saltam aos olhos durante
tarde. Uma a uma, as mulheres trocavam
uma semana de imersão em um quilom-
bo, sobretudo quando se tem o tempo de de mãos a comprida colher de pau usada
manhãs e tardes livres para caminhar e para aguentar o vigor e o empenho com
observar. Por inclinação natural ao uni- que mexiam e encorpavam o milho moído
verso do comer e beber, voltei muita de e cozido. Uma cena bonita e simbólica de
minha atenção à cozinha onde foram assistir.
preparadas as refeições do Encontro com Do lado de fora, enquanto o público
as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da aguardava com ansiedade os sabores qui-
lombolas que estavam por vir, uma jovem
1 Universidade de Coimbra moradora da comunidade parecia insa-
121
MILENNA GOMES
122
ANGU - COMIDA DE CASA E IDENTIDADE ALIMENTAR QUILOMBOLA
peu cuja dieta era trigo e carne. Gilberto da atenção dispensada a ele.
Freire dizia que o colonizador era pálido, O curioso é que numa passada breve
magro, enfraquecido pela alimentação. E ao mercadinho de Conceição é possível
o viajante alemão Carl Seidler, durante o perceber nas gôndolas um sem número
século XIX, observou que era o bom regi- de alimentos destituídos de significados,
me que fazia o negro viver muito, saudá- regidos pela indústria e comércio, e que
vel e robusto. são preferência na rotina do quilombola.
Os homens e mulheres escravizados ti- O salgadinho de queijo apreciado pelas
veram a chance de se relacionar de maneira crianças e a cerveja gelada dos adultos,
mais íntima com a terra, com os animais, por exemplo, são artigos feitos a partir e
do que seu senhor. Conheceram, no cam- quase que inteiramente de milho trangê-
po, plantas e testaram suas aplicações; en- nico, produto máximo do agronegócio no
contraram em ingredientes ignorados pe- Brasil junto à soja e à criação de gado –
los brancos, como o maxixe, complemento inimigo esse tão debatido durante o En-
nutricional para a dieta escassa; reaprovei- contro graças a então iminência de alte-
taram entranhas de bichos (a exemplo do rações ao decreto 4887/2003 que garante
bucho do bode), limpas com limão, para ao povo quilombola autonomia sobre o
conseguir proteína. Nesse processo de próprio território. São o resultado emba-
descobertas longo, lento e empírico, um lado, publicizado e maquiado do esforço
cardápio legitimamente afro-brasileiro foi bem-sucedido da indústria de distanciar
sendo construído. os consumidores, não só os quilombolas,
Não há nada de errado em não gostar das origens do alimento e dos sentidos
de angu, como a jovem quilombola. Cada exercidos pela comida na construção de
paladar é único e os receptores de sabor uma identidade alimentar, ficando, des-
da língua de uma pessoa nunca vão sen- sa maneira, mais fácil padronizar, viciar e
tir o mesmo gosto que o de outra. Uma controlar os indivíduos e grupos.
colherada de angu não produz o mes- O domínio e a valorização da roça e do
mo efeito nas minhas papilas gustativas que ela dá foi trunfo nas mãos do escra-
como na sua. Não apreciar o preparo por vizado. A desconexão do quilombola com
ele ser “de casa”, no entanto, revela uma seu terroir, ou torrão em bom português
atribuição negativa de valor ao prato por – palavra que sintetiza as características
ele pertencer ao cotidiano da comunida- de solo, clima e altitude que dão singu-
de, logo, ser algo vulgar e não merecedor laridade a um produto gastronômico –,
123
MILENNA GOMES
permite que uma brecha se abra para as do, cuidado, não pode viver em chiqueiro.
sedutoras facilidades que a indústria ofe- Esses são saberes para cuidar desse pra-
rece, afastando os indivíduos do modo de to”. Ela encerrou falando da luta, desde
produção do alimento e, por consequên- 2000, que travavam pela terra, para plan-
cia, da sua história e significado. É um tar, para usar, pelo direito de não ter que
grupo restrito e privilegiado de homens ir buscar comida na cidade se ela já cres-
brancos, representado pelas grandes cor- cia ali, por terem domínio e autonomia
porações da comida – tanto de produção sobre o caminho que a comida percorre,
quanto de distribuição –, que ainda de- do campo à mesa, e assim reforçar os cos-
cide o que o povo negro vai comer, numa tumes alimentares ancestrais.
permanência (discreta e silenciosa, mas A comida e as técnicas tradicionais do
não menos violenta) da subjugação ini- seu preparo são aliadas, junto à educação
ciada na colônia. e às artes, da resistência de Conceição das
Valdeci Silva, representante maior da Crioulas. Umbuzada, munguzá salgado,
gastronomia quilombola de Conceição buchada de bode são tão necessários para
das Crioulas, numa fala muito sincera a afirmação identitária da comunidade
sobre os caminhos alimentares da comu- quanto a cerâmica, as bonecas feitas do
nidade, lamentou que na rotina precise caroá, o trancelim. Escolhas alimentares
recorrer ao milho de supermercado. Mas que valorizem o passado de Conceição,
que, naquele dia, o cereal usado no angu como as feitas durante o evento, além de
havia sido moído em moinho na comu- iniciativas como a do encontro, de consi-
nidade, para honrar o modo tradicional derar os sabores relevantes a ponto de es-
com que o prato vem sendo feito ao longo tarem no nome e na programação oficial
dos séculos. A panela de barro, produzida semana, só contribui para o fortalecimen-
pelas artesãs do quilombo, em fogo mon- to da luta do povo quilombola. Bem como
tado no chão, foi o utensílio usado para ensinar aos mais novos, mostrar aos fo-
cozer a galinha de capoeira que “viveu seu rasteiros que angu é bom e que faz parte
tempo”, sem remédio, e morreu no dia da resistência do povo negro em território
para servir de alimento aos visitantes. É brasileiro. Angu é comida de casa, sim. E,
assim que ela fica com o “nosso sabor”, se por isso mesmo, deve ser feita, refeita, re-
orgulhou a cozinheira. O bode, nascido gistrada. Já que ao povo negro foi negado
e morto no quilombo, “pra gente comer o direito à alfabetização por tantos sécu-
tem que ser um bode castrado, demora- los, inviabilizando o registro escrito de
124
ANGU - COMIDA DE CASA E IDENTIDADE ALIMENTAR QUILOMBOLA
Referências bibliográficas
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Alimentação no Brasil. Editora Global, 4 ª edi-
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práticas alimentares e identidade quilombola. In-
tratextos. Rio de Janeiro, v. 3 , n. 1 , p. 54 - 71.
125
126
Recife – de manhã bem cedo (nem tão
Memórias de bem cedo assim)
dentro de casa: Saímos rumo a Salgueiro. O trajeto era
grande, quase enorme – um trajeto de
lembranças sob o avião.
A van de seu Luiz vinha patinando pela
teto de Conceição BR 232, às vezes no passinho do romano
127
LIZANDRA SANTOS
daria tudo que é meu e confiaria o futuro reiro, na frente das portas de duas meta-
ao futuro”. Que frase linda! Depois dessa des e uma paisagem cor de barro que se
lembrança fingi conforto e dormi. É en- esfarelava na vista.
graçado olhar pra estrada e ver as paisa- Paramos o carro meio de nervoso, meio
gens na cadência de alguma música alea- por informação, e os pés de barro batido
tória. Vez em quando rolava um grand dos meninos, do outro lado da estrada,
canyon e mandacarus que pareciam can- insistiam e pareciam que assopravam no
delabros verdes acesos pelo sol, quase pe- meu ouvido um poema de Fernando Pes-
gando fogo, mesmo; e o mais incrível: as soa:
multidões de pássaros que mais pareciam
sementes pretas sendo semeadas no solo Passava eu na estrada pensando impreciso,
fértil do céu. Parecia que Deus tinha um Triste à minha moda.
saco de farinha vazio e usou pra encher Cruzou um garoto, olhou-me, e um sorriso
Agradou-lhe a cara toda.
de sementes e jogar, vez em quando, um
Bem sei, bem sei, sorrirá assim
punhado no céu escaldante. A um outro qualquer.
Seguimos a patinação na pista ardente Mas então sorriu assim para mim...
quase sertaneja. Que mais posso eu querer?
Não sou nesta vida nem eu nem ninguém,
Pausa Vou sem ser nem prazo...
Que ao menos na estrada me sorria alguém
Essa pausa é a da chegada em Salgueiro
Ainda que por acaso.
e do trajeto até Conceição.
Essa pausa é natural.
Não sei o que vejo de mim no que passo
Eu não sentia nada de diferente. À par-
e no que observo. Meus olhos são duas ja-
te isso, uma vontade de tirar foto de tudo,
nelas sem cortina. Tantas coisas, às vezes,
sem intenção alguma a não ser tirar foto.
Tem algo muito mecânico nisso. É como são difíceis de serem processadas, mas
um câmbio automático. Enquanto isso estão lá e se misturam num emaranhado
eu via a marca das casinhas de taipa4 na sem fim e se perdem numa incompreen-
sombra, muito mato, alguns bem secos, são sem fim, depois fogem de alguma for-
os pés dos meninos se agrupando no ter- ma que sempre desconheço.
Chegamos em Conceição das Crioulas.
4 Casa de taipa ou pau a pique são construções de baixo Abrimos a porta da van e um tipo alto de
custo, feitas com materiais encontrados na natureza como
argila, lenha ou bambu, muito comuns em zonas rurais no
cabelo liso que voa, como uma aparição,
nordeste do Brasil. encostou e fez uma cara de “ok, chega-
128
MEMÓRIAS DE DENTRO DE CASA: LEMBRANÇAS SOB O TETO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS
ram”, ao que respondia positivamente a al- gada repentina debaixo daquela luz aver-
guém que perguntou: “você que é Paiva? ” melhada da rua, a vista meio curta, quase
Reconhecemos o lugar, demos uns 5 uma carranca de: “não!”, depois quebra-
passos em falso para desentravar as per- da - graças a Deus! - pela voz meio mansa
nas e fomos pra nossa recepção calorosa. e aquele cheirinho de lavado frio. Aliás,
Bem calorosa ao som de uma banda de esse cheirinho de lavado frio acompa-
pífano. Todo mundo exausto, demos dois nhou meu juízo durante a semana toda.
beijos cansados no rosto do pessoal que Muita coisa aconteceu naquela semana,
nos recebeu: Penha, membro da associa- era um encontro de gentes. Era um lugar
ção Quilombola e algumas moças portu- cheio de história e eu estava ciente. Cien-
guesas. te da história central, mas eu fiquei meio
Eu não estava sentindo nada além de periférica e toda (ou quase toda a história
uma vontade de descansar minhas pernas que eu aprendi) tinha cheiro de lavado
e dormir. Estava armazenando meu âni- frio.
mo pra reconhecer a energia daquele lu- A casa de tia Mariana era um portal.
gar, daquele pessoal, daquelas mulheres. Sempre que eu atravessava o corredor ge-
Foi então que conhecemos a casa que lado pra ir da cozinha pra sala, eu experi-
nos abrigaria, e sua dona. mentava outros cheiros também.
O primeiro foi o cheiro de alecrim da
Pausa
minha tia Inácia. Outras memórias iam
Esta pausa marca o começo da minha
se misturando na minha cabeça, era bem
estadia em Conceição, de fato, e eu a ba-
involuntário. Peguei o caderninho e co-
tizei de Marina, e não sem razão. Dona
mecei a anotar, mas as palavras sumiram,
Marina é uma senhora incrível. Com as
prenderam-se em algum poço submerso
duas mãos como em gesto de oração, ba-
nas minhas outras lembranças. Eu gosto
tendo pequenas palminhas bem ansio-
sas, ela demonstra que finalmente nos disso, não vou mentir o contrário, mas eu
recebeu e que já podemos dormir. Mas tinha outros propósitos naquela semana.
não foi assim no exato instante em que Então eu tentei que essas lembran-
chegamos... ças se apagassem para que todo o resto
Tia Marina nos recebeu com olho de viesse. Mas tudo continuou a vir e a vir
codorna5, meio desconfiada com a che- e a vir, então parei de resistir. Se alguma
coisa continuava a ser enviada pra mim,
5 Expressão que significa “fazer um olhar de desconfiança” é porque tinha de ser enviada. É o que os
129
LIZANDRA SANTOS
6 Técnica de cura havaiana baseada no amor e na limpeza de 7 Poeta brasileiro (1916- 2014)
memórias antigas, a fim de permitir que o divino aja em nós, 8 Do poema “Tratado geral das grandezas do ínfimo” de
através da inspiração Manoel de Barros
130
MEMÓRIAS DE DENTRO DE CASA: LEMBRANÇAS SOB O TETO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS
9 Também chamadas de “festas de padroeiro”, são tradição 10 Noites Brancas refere-se a obra do escritor russo
em muitas cidades do interior do nordeste brasileiro para Dostoiévski, de 1848.
celebrar dias de santos católicos 11 Espécie de flor.
131
LIZANDRA SANTOS
Eu não vivi metade das lembranças que das histórias de Gídio, que morreu cedo.
tenho. Eu ouvi como literatura de boca, Não chorei porque não tive tempo. Nem
saindo das goelas secas de fome da minha lembro se essa memória é minha ou da
família, que não convém os nomes todos infância do meu pai, da minha vó maria.
agora. A minha vó Maria é uma lembrança de
Isto é um poema sobre as memórias he- desconforto quase, com o caroço que ela
reditárias. O epicentro absoluto das mi- tinha na goela, que simboliza um entrave,
nhas memórias. pra mim, e que nem tudo é o que parece.
132
MEMÓRIAS DE DENTRO DE CASA: LEMBRANÇAS SOB O TETO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS
133
134
Pernambuco. Reflito: Quais as situações
A experiência do da nossa contemporaneidade cultural e
encontro e outros política me fazem identificar a emergên-
cia desse encontro? Quais percepções a
dispositivos de partir da imersão nos modos de vida de
Conceição das Crioulas me fazem atentar
emergência para a minha realidade cotidiana e para a
minha formação como artista, professora
LUANA ANDRADE1 e pesquisadora?
Resumo palavras-chave
Encontrar com a arte, a luta, os saberes Pesquisa Narrativa Artográfica; Intercultu-
e os sabores de Conceição das Crioulas foi ralidade; Memória; Dispositivo de Emergên-
uma experiência reveladora de afetos, de- cia.
sejos, emergências e aprendizagens. Es-
crevo e reflito sobre aspectos do meu tra- 1. PARTIR
jeto, desenhando caminhos entre partida,
chegada e retorno, e identificando nestes O que nos leva à errância quando bem
os deslocamentos, a construção de uma podíamos ficar quietos?
compreensão sobre interculturalidade e (Mia Couto, em O incendiador de cami-
nhos)
os saberes tramados coletivamente. No
registro de memórias dessa visita, busco
O que escrevo agora deseja ser um re-
também resgatar a experiência pessoal de
investigação artística dos dispositivos de torno, viagem de volta. Desde que voltei
emergência a produzir sentidos e impos- de Conceição das Crioulas, tenho retor-
sibilidades, identificando seus trânsitos e nado até lá frequentemente. Explico. Por
diálogos com o lugar. Este texto é recor- vezes eu olho para minha cidade Recife
te de pesquisa narrativa artográfica que – de natureza urbanizada – com olhos
está sendo desenvolvida pelo curso de de Conceição, e tomo maior consciência
Artes Visuais da Universidade Federal de do caos, das emergências e das poéticas
dessa configuração de vida. Entro em sa-
1 Luana Andrade é artista visual, graduanda no curso de las de aula com ouvidos de Conceição, e
Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de
Pernambuco e bolsista do Programa Institucional de Bolsa de
ouço muito mais do que falo, e sinto, na
Iniciação à Docência (Pibid). prática, que aprender é a condição sem a
135
LUANA ANDRADE
qual não se pode ensinar. Retorno para os do bem podíamos ficar quietos" é o que
meus processos artísticos, para minhas me provoca a criar impossibilidades. É
aulas, operando com novos sentidos, es- dessa intencionalidade de deslocamento
tes produzidos a partir do encontro, da que pretendo me constituir como artista-
viagem. Sinto ter voltado desta visita2 um -visitadora e que penso ser possível existir
tanto mais apta a compreender a minha mesmo em tempos inférteis de existência.
experiência de estar no mundo, transi- Registro memórias dessa visita, das
tando em micro realidades. Volto mais trocas, do meu processo de compreender
questionadora do meu espaço e do meu a ação do Encontro e o trabalho intercul-
papel, estado de quem se fortalece. tural, do que compartilhei, resgatei e res-
Enquanto artista, professora, pesqui- signifiquei.
sadora e interessada no encurtamento
das distâncias entre a arte e a vida, ter 1.1 "Ficar é a exceção. Partir é a regra."
tido a experiência afetiva do encontro em Recentemente comecei a ter um contato
Conceição das Crioulas foi como lavar as breve com a história de algumas comuni-
vistas de manhã bem cedo, "lavar as vista dades quilombolas. Inicialmente por via
pro mundo"3. A decisão primeira de partir do componente curricular Arte e Diver-
de um lugar para outro torna-se, mais do sidade Étnico-cultural da graduação em
que uma eventual escolha, uma intenção Artes Visuais na Universidade Federal de
transformadora. Desloco-me, como faz o Pernambuco. Essa disciplina teve, entre
homem visitador, para estabelecer víncu- outros objetivos, o de estimular um pen-
lo com outras pessoas e lugares, poden- samento crítico e reflexivo a respeito de
do, a partir de então, ser eu mesma essa questões etnocêntricas na arte e dos hi-
pessoa, eu mesma esse lugar. Esse desejo bridismos culturais, bem como conhecer
de partida "que nos leva à errância quan- expressões artísticas de grupos étnicos
2 Em O incendiador de caminhos, Mia Couto descreve o
distintos. Respeito e valorizo discussões
"homem visitador" de Moçambique, atividade de alguns como estas dentro da universidade, so-
camponeses que viajam longas distâncias a prestarem
visitas como "forma de prevenir conflitos e construir laços
bretudo no curso de Artes Visuais, que
de harmonia que são vitais numa sociedade dispersa e sem é um lugar ainda de pouca representati-
mecanismos estatais que garantam estabilidade".
3 Marcelo Coutinho (2016), no texto 28 notas da invasão:
vidade étnica-cultural frente a um país
Arte como Aletheia e Política como Dóxa. "28. Arte é 'lavar as como o Brasil.
vista pro mundo'.", fazendo referência a expressão do ato de
banhar o rosto pela manhã, criada pelo Sr. Bugo, agricultor
No contexto deste componente curri-
da área rural de São Lourenço da Mata (PE). cular, tive um contato ainda distante e
136
A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO E OUTROS DISPOSITIVOS DE EMERGÊNCIA
pequeno, de via teórica, com o Quilom- aquela visita constituía uma parte muito
bo Onze Negras, localizado no Cabo de importante da minha formação enquanto
Santo Agostinho. Foi quando comecei a cidadã, pesquisadora, artista e professo-
entender, com um pouco mais de dados, ra. Desejei que todos tivessem a disponi-
sobre a origem desses grupos e seus des- bilidade de se desfazer dos seus precon-
dobramentos na contemporaneidade. ceitos e se entregar ao aprendizado que é
Tomei algum conhecimento sobre o his- partir de um lugar ao outro; de uma ideia
tórico de lutas por amparo na lei4, sobre o à outra; de si mesmo a outras reinvenções
que há hoje de políticas públicas voltadas de si – assim como escreve Mia Couto,
para estes povos e de como essas poucas no texto que permeia todo este trecho do
políticas vêm sendo ameaçadas de des- meu relato, que a sobrevivência do homo
monte. sapiens decorre da nossa deambulação
O segundo contato, dessa vez com incessante: "Mesmo quando ficava, ele esta-
maior proximidade, foi uma visita ao ter- va partindo para lugares que descobria den-
reiro de Xambá em Olinda, no Quilombo tro de si mesmo".
do Portão de Gelo, o terceiro quilombo Comecei a despertar para essa busca;
urbano reconhecido territorialmente no o impulso da partida que provoca o des-
Brasil. Lá tivemos uma rica conversa, com locamento e que, por sua vez, instiga os
o filho de santo que nos recebeu, sobre processos de aprendizagem. Lembro um
o candomblé e seus rituais, a história do samba-de-roda, de domínio público,
quilombo e a história do terreiro. Con- “vou aprender a ler pra ensinar meus cama-
versamos também sobre intolerância, radas...” Eu diante do salão principal do
resistência, ecologia, religião, sociedade terreiro, olhando para as imagens e sím-
e poder. Além disso, uma boa porção de bolos diversos, ouvindo sobre os rituais
outras coisas me fizeram perceber que eu dos dias de toque, era como se estivesse
precisava estar ali para aprender e que aprendendo a ler.
4 "Em 2003, foi assinado o Decreto n. 4.887, que “Regulam- 1.2 "Não existe geografia que nos seja
enta o procedimento para a identificação, reconhecimento, exterior."
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata
o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Tran- "(...) Os lugares — por mais que nos
sitórias”, que determina ser o INCRA (Instituto Nacional de
sejam desconhecidos — já nos chegam
Colonização e Reforma Agrária), do Ministério do Desen-
volvimento Agrário, o órgão competente para emitir títulos de vestidos com as nossas projecções imagi-
propriedade" (MOURA, 2013, p. 160). nárias. O mundo já não vive fora de um
137
LUANA ANDRADE
mapa, não vive fora da nossa cartografia também de um convite a criar algumas
interior.” brechas de convívio, propor encontros, e
se voltava, até então, como crítica ao am-
Cheguei a Conceição das Crioulas
biente específico da universidade, suas
pelo convite de uma professora e o tomei
ansiedades acadêmicas e o estímulo a um
como oportunidade de deslocamento,
comportamento pós-industrial. Esse dis-
de sair do meu lugar, da minha zona de
positivo (uma grande almofada verme-
conforto – onde quase nada é confortá-
lha) era, naquele momento – e também
vel, mas acabo por me habituar pela força
no agora –, uma presença significante no
da expressão. Principalmente por ter tido
meu modo de pensar e interpretar o mun-
um entendimento de que a visita (muito
do, nas minhas falas e na minha vida, de
breve) ao terreiro do Xambá foi grande-
um modo geral. Dessa forma, após a deci-
mente importante para minha formação
são de partir, veio a decisão de levá-lo co-
enquanto gente, eu vislumbrei nesse con-
migo, num movimento de continuidade
vite uma chance de ter uma outra expe-
e de curiosidade. Mais adiante descrevo
riência dessa natureza. Depois, por estar,
essa experiência.
aos poucos, percebendo que a academia
Comecei então, a partir dos primeiros
acaba fechando-se nela mesma, e que há
direcionamentos da viagem, a idealizar
uma imensidão de aprendizagens possí-
Conceição. Criando imagens, narrativas,
veis que não são registradas nos currícu-
situações; através dos mapas – distâncias
los, nas listas de chamadas, nos sistemas
catalogadas –, dos vídeos, fotos, textos
de gerenciamento da educação. Por parte
de portais de notícias poucas e rasas. Me
do nosso grupo de pesquisa, reconhecía-
muni de informações que de quase nada
mos também que, Conceição das Criou-
me serviriam naqueles sete dias de encon-
las, como comunidade dita matriarcal,
tro. Fiz planejamentos que, mais a frente,
podia nos oferecer uma vivência prática,
não se concretizariam, ações poéticas que
real, daquilo que os livros, os autores, as
não aconteceriam, roteiros que não se tri-
aulas não davam conta, não abarcavam,
lhariam. Tudo que planejei antes da via-
nem quantificavam em seus dados.
gem estava vinculado à minha projeção
Estava imersa em um processo criati-
sobre as formas de vida daquele espaço
vo quando aceitei a proposta de partir de
que ainda não era, para mim, um lugar5.
Recife a Conceição das Crioulas. A mi-
nha investigação em torno da criação de 5 Trago para este contexto o pensamento da Katia Canton
um dispositivo de emergência se constituía (2010) sobre caracterizações da arte pública contemporânea,
138
A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO E OUTROS DISPOSITIVOS DE EMERGÊNCIA
Quando finalmente pisei nas terras aquele lugar para nós e como se revelam
de Conceição, percebi que muitas coisas as pessoas. Uma arqueologia das coisas
de lá (geografia, vegetação, vestes – seja vivas, do lugar vivo. Para onde aponto a
das pessoas ou das casas – hábitos, ima- câmera do meu celular, a quem escolho
gens…) remetiam a outros lugares que me fazer perguntas, quais são as perguntas,
constituem. Lugares da minha infância, para quem eu olho e de que forma, para
família e origem no interior do agreste onde eu caminho e com quais pessoas eu
de Pernambuco. De certa forma revisitei passo a me relacionar. Tudo revela. Essa
esses lugares, subjetivamente. Acessei a chegança é muito mais reveladora de nós
minha cartografia interior e fui me dando mesmos. As nossas perguntas falam de
conta de que seria também uma viagem nós mais do que as respostas falariam da-
para dentro das minhas memórias. Não queles com quem dialogamos. O encon-
como comparação entre lugares e me- tro com o outro é revelador e me descobri
mórias – dadas as suas singularidades – tão colonizadora quanto as práticas que
mas a saber que, o Encontro com as artes, combato. São ações sutis que passariam
a luta, os saberes e os sabores de Conceição despercebidas caso eu não estivesse tão
das Crioulas me impulsionaria a outros atenta aos meus próprios sinais – por
encontros, outras visitas. exemplo, o registro, por vezes excessivo,
de imagem e escrita do lugar, posição de
2. Chegar quem está "analisando tudo" no lugar
de estar vivendo tudo. É estranho pois
Estou chegando de mansinho/ cabreiro e começo a me vigiar de possíveis etnocen-
analisando tudo
trismos. Então eu penso como somos, no
mas sinto que um novo mundo/ novo
horizonte está pra chegar. geral, educados a colonizar, e o quão peri-
(Dominguinhos, em Chegando de Mansi- gosa pode ser essa educação acrítica.
nho, na voz de Nara Leão) É preciso aprender a chegar e isso leva
tempo. Leva um tempo até nos aquie-
Chegar pressupõe uma série extensa tarmos das nossas expectativas e proje-
de ações reveladoras. Ocorre quase sem- ções. Levei um tempo, por exemplo, até
pre a busca por entender como se revela começar a entender a interculturalida-
de proposta nas ações do encontro, que
onde ela diz que "o espaço se apresenta de forma genérica,
enquanto que o lugar é o espaço personalizado e preenchido
se constituía como o objetivo de estar
de memórias". em Conceição das Crioulas: promover a
139
LUANA ANDRADE
140
A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO E OUTROS DISPOSITIVOS DE EMERGÊNCIA
141
LUANA ANDRADE
Dispositivo de emergência em uso no Centro de Artes e Dispositivo de emergência em uso no salão da AQCC/
Comunicação (UFPE) Foto: Lizandra Santos
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A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO E OUTROS DISPOSITIVOS DE EMERGÊNCIA
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LUANA ANDRADE
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A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO E OUTROS DISPOSITIVOS DE EMERGÊNCIA
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LUANA ANDRADE
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A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO E OUTROS DISPOSITIVOS DE EMERGÊNCIA
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MOURA, Gloria. Quilombo: conceito, in
Africanidades Brasileiras e Educação. Rio de
Janeiro: ACERP;
147
148
encontrar pessoas, sonhos, realidades,
Bordando - desejos etc. Cada vez mais sentimos a
muitos - nós e necessidade de extrapolar o espaço da
universidade, de quebrar as paredes que
pontos isolados: cerceiam e formatam o pensamento aca-
dêmico, de reinventar o “ponto contor-
investimentos no” e de criar vínculos e mais pontes.
Esses vínculos entre lugares, pessoas e
afetivos para / na realidades, rompem com a lógica padrão
escuta do outro de uma aprendizagem linear, possibili-
tando o aprender através de rede, cons-
tituída por diversas tramas, comparti-
LUCIANA BORRE1 lhando e produzindo cultura. O texto
LUANA ANDRADE2 enfatiza a vivência na comunidade e com
MARIA BETÂNIA E SILVA3 um grupo de mulheres onde alinhavamos
nossos caminhos investigativos: quais os
Resumo possíveis saberes relacionados a gênero e
O nosso movimento na Comunidade sexualidades de um grupo de mulheres
Quilombola de Conceição das Crioulas de Conceição das Crioulas? Como esta-
buscou transitar, deslocar, contactar, belecer/vivenciar uma relação de troca
afetiva ao discutir feminilidades? Como
1 Professora e coordenadora da Licenciatura em Artes Visuais
da Universidade Federal de Pernambuco. Professora e vice-
a escuta atenta e aberta ao outro pode se
coordenadora no Programa Associado de Pós-Graduação constituir como estratégia de formação
em Artes Visuais UFPE/UFPB. É doutora pelo Programa de
Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual pela Universidade
docente? Provocadas e acreditando nos
Federal de Goiás. Mestre em Educação pela PUCRS (2008); “pontos mais simples do bordado”, a
especialista em Gestão e Planejamento Escolar pela PUCRS
(2006) e graduada em Pedagogia pela UFRGS (2004). troca de relatos e vivências poéticas com
2 Artista visual, graduanda no curso de Licenciatura em linhas, agulhas e tecidos proporcionou
Artes Visuais da Univ. Federal de Pernambuco e bolsista
do Programa Inst. de Bolsa de Iniciação à Docência
contato/conexão/envolvimento.
(Pibid).
3 Professora do Curso de Licenciatura em Artes Visuais e palavras-chave
do Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais
UFPE/UFPB da Universidade Federal de Pernambuco. É Pesquisa Narrativa; Gênero e Sexualidades;
Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Educação
Bordados; Memórias.
pela UFPE. Graduada em Artes Plásticas pela UFPE.
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BORDANDO - MUITOS - NÓS E PONTOS ISOLADOS
pontes através das linhas e também além tência, que ativam as memórias. O céu, a
delas. Reconhecendo a possibilidade de terra, o ar são testemunhas oculares da
mudanças nos rumos da investigação complexa tessitura da vida, fio a fio, pon-
através do contato com este grupo de mu- to a ponto na passagem do tempo que vai
lheres, alinhavamos nossas intenções de revelando a imagem bordada. Conceição
pesquisa: quais os possíveis saberes rela- das Crioulas permite um contato com o
cionados a questões de gênero e sexuali- silêncio que o mundo adulto apresenta,
dades de um grupo de mulheres de Con- mas também revela os múltiplos sons que
ceição das Crioulas? Quais suas práticas o mundo jovem experimenta. Ali se ouve
cotidianas com linhas, agulhas e tecidos? o som dos grilos, dos bodes, do caminhar
Quais suas produções de sentidos a par- na terra. Ali se sente o sol que aquece a
tir destas práticas? Como estabelecer/ pele e o vento que a esfria. Ali se vê o céu
vivenciar uma relação de troca afetiva ao até o horizonte alcançar. Ali se vê múlti-
discutir feminilidades? Como aprimorar plos tons de cores doados generosamente
nossos saberes sobre as relações de ensi- pela natureza. Mas, ali também se ouve
no/aprendizagem? Como a escuta atenta um silêncio interior do ser humano que
e aberta ao outro pode se constituir estra- grita por um mundo mais equilibrado,
tégia de formação docente? Provocadas e menos egoísta, mais justo. Ali se sente o
acreditando nos “pontos mais simples do desejo pulsante de fazer ver e (re)conhe-
bordado”, decidimos que a troca de rela- cer a potência cultural e identitária do
tos e vivências poéticas com linhas, agu- povo. Ali se vê um grupo de mulheres, e
lhas e tecidos proporcionaria contato/ de homens, que tecem caminhos e possi-
conexão/envolvimento. bilidades de outras construções para além
daquelas que a história lhes apresentou.
3. Ponto a ponto Dia após dia, na semana em que ali es-
tivemos, observamos a tessitura desses
Bordados podem ser feitos em pratica- pontos que ora se apresentavam colori-
mente qualquer tecido, a escolha depende dos, ora monocromáticos.
da técnica empregada.
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facilidade. Não esqueça de investir nos brotar dele a poesia. Às vezes, construin-
pontos isolados. do apenas um suave desenho de amor”
(SISTO, 2011, s/p). O processo contínuo
Somos professoras e pesquisadoras de abrir-se ao outro no exercício de (re)
em processo - constante - de formação e conhecer os múltiplos tecidos, as múlti-
protagonizamos poéticas de vida através plas cores que eles apresentam e experi-
de linhas, agulhas, tecidos e outros ins- mentar coletivamente a (re)construção
trumentos. Entendemos que a troca de dos pontos, nos possibilita abertura ao
pontos e os possíveis “nós” e desalinhos novo, ao inusitado, ao inesperado, pois
em nossa caminhada pessoal e profis- a imagem que vai se revelando no trajeto
sional possibilitam (re)encontros neces- não tem como ser definida previamente.
sários nas relações educativas. Sabemos Freire (2005) já dizia que ensinar exige
que “pontos de bordado com nós nem compreender que a educação é uma forma
sempre são simples de fazer” e defende- de intervenção no mundo. A boniteza da
mos que o compartilhamento de relatos prática docente se compõe do anseio vivo
de vida - sempre afetivo - pode transfor- de competência do docente e dos discen-
mar as relações de gênero e sexualidades. tes e de seu sonho ético. Não há nessa bo-
Nosso grupo, formado por Ingrid Borba, niteza lugar para a negação da decência.
Jacilene Borba, Lizandra Santos, Luana
Andrade, Luciana Borre, Maria Betânia e 5. Ponto cruz
Priscila Ferreira, levou em suas malas as
inúmeras histórias sobre como viver as Um dos pontos fortes do ponto cruz é
feminilidades. Não podemos negar que que, olhando de frente, não dá para saber
a promessa do encontro com uma socie- onde começa e nem onde termina a linha.
dade dita “matriarcal” (possibilidade de
vida inimaginável para nós) encheu nos- Acreditamos que o processo de forma-
sos imaginários de expectativas. Acredi- ção de professoras/es para questões de
tamos que “há uma enorme semelhança gênero e sexualidades é favorecido e en-
entre agulha, lápis, bico de pena e varinha riquecido quando trocas acontecem. Há,
de condão. Com todos esses objetos se nesta estratégia, a oportunidade de co-
pode produzir mágica. Bordar com linha locar-se no lugar do outro e de ver-se re-
ou com letras, no tecido, no papel ou na fletido nas experiências de vida do outro.
vida é trabalho para quem sabe pegar o O ponto cruz apresenta este movimento:
fio, seja ele da palavra ou da linha, e fazer parte de um lugar e vai para outro, cru-
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za caminhos de modo que quem olha narrativas sobre ser mulher a partir de
não sabe qual foi o ponto de partida e o intervenções de linhas e agulhas nos exa-
ponto de chegada porque ele revela os en- mes em diálogo com outros sujeitos para
contros e, no final, a beleza desse trajeto.
a construção de novos sentidos. A inves-
O compartilhamento é uma provocação tigação artística para trabalhar Desali-
para pensarmos como nos posicionamos nhos se iniciou da observação de paisa-
enquanto educadoras/es. De fato, deci- gens, memórias e vivências pessoais e da
dimos exercer a escuta, encorajamo-nos narrativa pessoal como mulher e também
a mostrar algumas de nossas poéticas e do compartilhamento de vivências de ou-
propusemos a feitura de bordados e cro- tras histórias de mulheres. Ao longo da
chê como dispositivos de fala reflexiva e construção da identidade feminina e da
vivência poética. Objetivamos: Conhecer transformação do seu corpo, Ingrid Bor-
como alguns membros da comunidade ba apresentou um problema fisiológico
quilombola Conceição das Crioulas pen- nos seios que a obrigou a estar em cons-
sam as relações de gênero e sexualidades. tante acompanhamento médico. Essas vi-
Compreender como acontece as relações sitas médicas trouxeram convivência com
educativas e artísticas neste campo. Veri-outras mulheres que detinham outros
ficar as possíveis consonâncias entre nos-tipos de doenças que acometem a anato-
sas experiências profissionais, pessoais emia do sexo feminino. Cada ida ao médi-
artísticas. Provocar a vivência com o ou- co gerava novas histórias construídas e
tro, entendendo como esse contato con-
observadas coletivamente. Por muitas ve-
tribui ou não para nossa formação docen-
zes veladas, seja por vergonha ou por an-
te. Instigar reflexões sobre feminilidades
gústia, ela percebe que as narrativas das
através da produção de imagens poesias
transformações que ocorrem no corpo
em tecidos.
feminino após a descoberta de patologias
são escondidas, subjugadas, estereotipa-
6. Desalinhos
das, estigmatizadas e não aceitas. Partin-
São assanhamentos de linhas em contato do desta vivência surgiu a seguinte inda-
com o não tecido. gação: é possível repensar e (re)construir
histórias sobre o corpo feminino? Como
Desalinhos é uma série de seis imagens ressignificar este corpo historicamente
construídas a partir do bordado sobre estigmatizado por relações de poder e
exames de ultrassonografia. Apresenta preconceitos? Como “narrar-se” e, neste
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7. Caixa de Retalhos
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que física", sobre não conseguir amamen- de mulheres artesãs e do nosso compar-
tar tranquilamente em público. A imagem tilhamento de narrativas de vida. Esse
que se construiu a partir deste relato foi movimento permite pensar com Sabino
distribuída em panfletos na rua, impressa (2012, p.229) o quão importante é viajar
em cartazes e camisas como identidade de si para si, pôr o pé no chão do próprio
visual da exposição coletiva Tramações: coração para humanizar-se. E uma vez
cultura visual, gênero e sexualidade (2016), humanizado, poder humanizar o outro,
e também circulou em outras plataformas num ato dialético do fazer-fazendo-se.
digitais. Impressa em camisa, sobretudo,
essa imagem frequentou salas de aula e
gerou assuntos sobre a experiência do
feminino, as representações desse corpo
e os lugares ocupados por ele. Essa mes-
ma imagem também viajou e chegou até
Conceição das Crioulas, onde se ressigni-
ficou a partir do encontro com um grupo
“Pequenas Agressões”, Luana Andrade, 2015. Nanquim Detalhe Intervenção sobre a imagem na oficina de
sobre papel. bordados em Conceição das Crioulas, 2017.
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de amarrar, de tramar, de matiz, de aves- veio como seria difícil fotografar aquele
so, de avesso perfeito, transbordados, etc. silêncio (Barros, 2000). Fotografei. Tal-
vez não exatamente o silêncio, mas certas
– e muitos nós acabam por denunciar a linhas que saíam dele e que continuam
fragilidade da despedida e a gostosura da costurando os indícios daquele instante.
rememoração. Jaci Borba traduz nossos Tudo o que ouvi, falei, comi, bebi, abra-
arremates ao mostrar e dizer: cei, chorei, ri e dancei, o vestido de crochê
inacabado e a caixa de aromas e retalhos
Acho que tudo o que vivemos nessa ex- que levei para o encontro com a comuni-
periência só cabe no silêncio, na arte ou dade, estão dispostos a passar naquele
um poema num quintal. Já morei em casa pequeno poema de quintal.
com quintal e sei bem o poder que um
quintal pode ter na vida da gente, mas 19. Referências
acho que fui me deixando levar pela vida
numa pequena tristeza de não viver mais Aprenda novos pontos dialogando com
com um quintal à minha espera. quem já vivenciou muitas técnicas de bor-
Vou contando...
dar.
Já estávamos alguns dias hospedadas na
casa da simpática tia Marina. Eu, atare-
fada entre o banho, a comida e as saídas ABRAHÃO, M. H. M. B. Memórias, Narrativas
para as atividades na comunidade nem e Pesquisa Autobiográfica. História da Edu-
me dei o prazer da curiosidade em des- cação (UFPel), Pelotas, v. 14, n.1, p. 79-95,
velar o que teria por trás daquela porta lá 2003.
no fundo do corredor, que cortava toda a AGUIRRE, Imanol. Cultura Visual,política da
casa. Até que em um momento de porta estética e educação emancipadora. MAR-
aberta tia Marina me fez ver o tal quin- TINS, Raimundo; TOURINHO, Irene
tal. Minhas companheiras e eu resolve- (Orgs). Educação da Cultura Visual: conceitos
mos dar uma volta por lá. Sem grandes e contextos. Santa Maria: Editora UFSM,
expectativas, pensei: “que bom ter um 2011, p. 69- 111.
cantinho pra plantar”. Tinha pé de algo- BARROS, Manuel de. Ensaios Fotográficos. Rio de
dão plantado. Fiquei lá olhando o chão, Janeiro: Record, 2000.
o cordão do varal vazio e o que ia além
BORRILLO, Daniel. A homofobia. In: LIONCO,
do muro. Fizemos algumas fotos e volta-
T.; DINIZ, D. (Orgs.). Homofobia e educação:
mos para dentro. Depois fui sozinha ao
um desafio ao silêncio. Brasília: Letras Livres,
corredor, olhei pro quintal. Um cachor-
EdUnB, 2009.
ro se equilibrava em cima do muro e tia
Marina cobria o varal de roupas lavadas. DEWEY, John. El arte como experiência. Barcelona:
Corri, precisava pegar a câmera! Precisa- Paidós, 2008.
va fotografar aquilo. No passo que dava EVANGELISTA, Olinda. A vida em Bordados. 37ª
ao encontro da imagem, num lapso me reunião da Anped, 2015. Acesso em:
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palavras-chave
Memórias Memórias, cartografia, quilombo, experiências.
Cartográficas 1. Partindo
na Comunidade Um céu de azul intenso. Cúmulos, nim-
bos, estirros que me transportam para as
Quilombola de memórias de minha infância quando dei-
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que arrasta problemas intensos instala- tal para a dilatação dos sentidos. Duarte
dos pelos Jr. (2010, p.12) reforça esse entendimen-
processos colonizadores há mais de cin- to quando leio sua afirmativa de que há
co séculos. O poder que, muitas vezes um saber sensível, inelutável, primitivo,
cega e expande a cegueira daqueles que fundador de todos os demais conheci-
poderiam fazer muito para o povo e com mentos, por mais abstratos que estes se-
o povo, induz, condiciona ao pensar-se jam; um saber direto corporal, anterior às
melhor e mais importante que seu igual: representações simbólicas que permitem
o outro. os nossos processos de raciocínio e refle-
A noite se aproxima e a generosidade xão. E continua (p.13), o mundo antes de
da natureza continua a se fazer presente ser tomado como matéria inteligível sur-
e a beleza resplandecente de um pôr do ge a nós como objeto sensível, o sensível é
sol revela cores intensas que fascinam o aquilo que pode ser percebido pelos sen-
olhar. tidos.
É, realmente, extraordinário ver o céu
estrelado! Ao mesmo tempo me pergunto
como há mais de um século algumas pes-
soas vieram parar neste lugar tão distante
de tudo e de todos.
O mito de fundação remete ao pon-
to histórico dos finais do século XVIII e
início do XIX. A colonização nas terras
Movimento. Julho de 2017. (Acervo pessoal).
brasileiras trouxe consigo o processo de
Milhares de estrelas brilham na imensa escravidão que fundou raízes profundas
escuridão do céu. Beleza de tamanho po- de exclusão social, econômica, política
tencial jamais visto com as luzes artificiais etc. Pergunto ainda hoje será mesmo que
dos centros urbanos. Ponho-me a pensar a escravidão acabou? Será mesmo que os
no povo asteca que estudava as constela- processos colonizadores se encerraram?
ções com os espelhos d’água e fico ima- Ou eles continuam com outras roupa-
ginando como isto também os fascinava. gens?
Quantas gerações passaram pelo planeta Poder, novamente, o poder atravessa
e apreciaram tamanha beleza? a história da humanidade. A história da
A experiência do sensível é fundamen- fundação se conta, reconta, está impressa
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tes e não silenciar suas histórias? De que ção, como nos alertou Paulo Freire.
forma, em nossas práticas pedagógicas, Como romper com as formatações invi-
contribuímos para o desenvolvimento do síveis que nos constituem e nos inserem
senso crítico em relação ao mundo, mas na cultura em que nascemos e crescemos?
também em relação aos silenciamentos De que forma também nós professoras/
existentes em nossas próprias comuni- es rompemos com os silenciamentos que
dades? foram naturalizados ao longo de nossas
histórias individuais e coletivas?
Questões que me fazem refletir sobre
o meu ser mulher, filha, professora, pes-
quisadora, mas, sobretudo, gente. Repito
as palavras de Paulo Freire (2005, p.53)
gosto de ser gente porque, inacabado, sei
que sou um ser condicionado, mas, cons-
ciente do inacabamento, sei que posso ir
Atitude. Julho de 2017. (Acervo pessoal).
mais além dele.
Deparo-me com professores que têm
estampadas em suas camisas as palavras
“coragem/resistência/ancestralidade/
cultura/história/identidade”. Muito mais
que palavras, representam o estar no
mundo, seu posicionamento, sua atitude
frente às adversidades da vida. Palavras
que questionam conhecimentos ociden-
Encontro. Julho de 2017. (Acervo pessoal).
talizados que nos foram impostos nos
processos colonizadores e que marcam O clima do sertão é curioso. Durante o
ainda as formas de pensamento e ação de dia o sol vem com toda a sua potência. O
muitos que aqui chegaram e aqui estão. ar é seco. Pouco venta. Ao entardecer, o
Questionamentos diversos que proble- vento que parecia escondido toca a pele
matizam os conceitos colonizadores, a com sua delicadeza. Mas, à medida que a
história única, hegemônica, que determi- noite avança a temperatura cai e é preciso
na a verdade única a ser engolida e trans- estar protegido do frio.
mitida num modelo bancário de educa- A necessidade da água não se faz ape-
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como pessoas que nunca tiveram acesso
Compartilhando a essa técnica, pode compreender que ao
oportunidades mesmo tempo em que pode ser fantástico
fazer vídeo, também é algo difícil, mas que
a satisfação e sensação de dever cumprido
JOCICLEIDE VALDECI DE OLIVEIRA1
ao final, superam todas as dificuldades.
É algo que me encanta ver a nossa his-
São tantas coisas a falar, momentos que
tória sendo contada por nós mesmo. Sa-
ficarão eternizados em nossas mentes. Fo-
ber que a cada dia mais pessoas sentem
ram trocas de saberes e sabores, encontros
orgulho de pertencer a esse povo e que
e reencontros, amizades que se fortalece-
necessidades de como contar a nossa his-
ram e novas que durarão sempre. Assim
tória pode ser superadas, ver como hoje
foi o Encontro das Artes, Saberes e Sabo-
as ferramentas para contar e fortalecer a
res no quilombo de Conceição das Criou-
nossa identidade pode ser muitas. Hoje
las. Para mim trabalhar com vídeo é algo
nos damos a oportunidade de se conhe-
maravilhoso, pois compreendo o quanto é
cer melhor, de saber que os nossos so-
importante que a nossa história seja guar-
nhos pode se tornar real e que podemos
dada, sei o quanto é importante que nos-
se superar sempre. É sempre bom saber
sos sentimentos sejam expressados e que
que temos parceiros, no Brasil e fora dele,
possa ser compartilhados dando oportuni-
que mesmo em meio as dificuldades, não
dade de que mais pessoas conheçam. Foi
deixam de se fazer presentes, que sonham
algo incrível, produzir vídeos tão bons em
junto, e concretizam esses sonhos juntos.
pouco tempo, mas tudo isso só foi possível
Por isso sei que cada abraço, cada bei-
pela competência e compromisso que tive-
jo, cada olhar, são verdadeiros e que as
mos uns pelos outros.
despedidas sempre tornarão a acontecer,
A produção desses vídeos com o dispo- pois sei que os reencontros fará parte des-
sitivo móvel, serviu para mostrar que com se grupo.
o que temos podemos fazer muitas coi-
sas, foi possível ver também, como nossa
juventude está conectada e que é possível
produzir informação de qualidade. Ver
179
180
gem, e pude conhecer pessoas de outros
Aprendendo e países. Passei quatro dias de oficina na
Ensinando na qual tive o prazer de desfrutar de paisa-
gens que não conhecia.
Oficina de Vídeo Nessa oficina eu aprendi muitas coisas,
como: filmar, fazer slide, editar vídeos...
ARTENALDO MIGUEL BARROS SILVA Outra coisa bastante importante que
CRISTIANY LOPES FERNANDES aprendi foi passar imagens e músicas ao
TAINARA OLIVEIRA AGUIAR 1 mesmo tempo no vídeo.
Gostei de todos os professores e pro-
Após vários dias de oficina chegou a fessoras. Espero um dia poder reencon-
hora de a gente colocar os conhecimen- trá-los, principalmente Felipe Peres.
tos adquiridos em prática. Inicialmente,
saímos para fazer uma pesquisa na co- Artenaldo Miguel de Barros Silva, estudante da turma
munidade na pedra do Matame (ponto do Projeto Avançar Ano II da Escola Municipal Qui-
lombola Professor José Mendes.
histórico da comunidade). O objetivo
da pesquisa era saber o porquê de ali ter
um pé da giganta, como dizem as pessoas A experiência de representar minha es-
mais velhas da comunidade. cola no I Encontro com As Artes, a Luta,
Na ida para o matame encontramos o os Saberes e os Sabores da Comunidade
senhor Andrelino Mendes, mais conheci- Quilombola de Conceição das Crioulas.
do como André Negão, e ele nos deu as Eu sou Cristiany Lopes Fernandes, estu-
dicas. Seguimos passo a passo por onde dante do 7º ano “A” da Escola Municipal
desce até chegar lá. Ao chegar no espa- Quilombola Professor José Mendes, locali-
ço nós fomos escalar a pedra para ver se zada no 2º Distrito de Salgueiro –PE.
achava o pé da preta, conhecido como pé Com muito carinho fui selecionada
da giganta, e na oportunidade fomos de- para participar, representar minha esco-
bater para saber se era realmente um pé. la no Encontro que tinha como tema: As
Bom, o que achei bastante significante Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da
foi que eu pude aprender um pouco sobre Comunidade Quilombola de Conceição
vídeo. Tive mais um pouco de aprendiza- das Crioulas, no período de 17 a 21 de ju-
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ARTENALDO / CRISTIANY / TAINARA
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APRENDENDO E ENSINANDO NA OFICINA DE VÍDEO
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O peso do movimento
O fim do começo. Chego ao fim do começo - precisamen-
Aprender com o te dez anos depois da primeira vez que
respirei a comunidade quilombola de
Crioulas Vídeo Conceição das Crioulas.
Do continente africano para o sertão
na discussão pernambucano, viajei em Julho de 2017,
do audiovisual partindo de Dakar (onde acabava de
apresentar a comunicação “The Unachie-
comprometido, ved place of art education in the South”2)
para Conceição das Crioulas, com escala
o feminismo e de um dia em São Vicente, Cabo Verde,
onde moro. O motivo do meu movimento
a Comunidade unia dois encontros, aquele que empa-
Quilombola tiza o abraço do meu reencontro com a
comunidade em si, e o Encontro com as
Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da
RITA RAINHO1
Comunidade Quilombola de Conceição
das Crioulas.
As crioulas são fruto de uma deslocação
forçada que determinou a prepotência
colonial de exploração massiva de es-
cravos negros exportados de África para
a América ao longo de vários séculos. A
sua comunidade nasce da resistência a
toda a condição de que dessa história re-
sulta consequente. Por essa razão, o meu
Rita Rainho, Fotografia documental, 2017. movimento fica, por um lado, implicado
Viagem de Fortaleza a Conceição das Crioulas com gru-
po participante no Encontro com as Artes, a Luta, os
Saberes e os Sabores da Comunidade Quilombola de 2 Comunicação apresentada conjuntamente com Ana Reis
Conceição das Crioulas, Julho de 2017. na 3rd Internacional Conference of Dakar Institute of African
Studies – Institut d’Etudes Africaines de Dakar (DIAS –
IEAD), Valorizing African Cultural Heritage and Thought
III:Colonial Fantasies/Decolonial Futures - July 7th and 8th,
1 ID_CAI, i2ADS, Cabo Verde. 2017 | Dakar, Senegal.
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RITA RAINHO
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RITA RAINHO
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RITA RAINHO
e de contínua preocupação. Esta atenção com este sentido político releva oportu-
deve-se à tradição democrática da comu- nidades únicas de aprendizagem mútua.
nidade no modo de organização demo- Refiro-me a três aspetos, ao modo de tra-
crática da mobilização coletiva, e também balhar, à afirmação do sentido político e à
à sensibilidade relativa às questões das abertura para a aprendizagem a partir de
relações de poder entre homens e mulhe- si. Sobre o modo de trabalhar é interes-
res, jovens e mais velhos, bem como pro- sante partilhar a experiência de 2008 em
fissionais e amadores no audiovisual. que o próprio objeto audiovisual reflete
o debate e a experimentação sobre como
Crioulas Vídeo, uma fonte de escuta e se faz, ou pode fazer, vídeo. Nesse ano,
olhar por dentro quando o Identidades chegou a Concei-
Nem seria preciso rever os vídeos que ção, o Crioulas Vídeo tinha uma pergunta
produzimos juntos, Crioulas Vídeo e bem objetiva para nos colocar. Como se
Identidades, porque há frases que nos faz um roteiro? Os primeiros dias foram
marcam e são por todos lembradas. Mas de debate intenso, trabalhando todos
para que fique mais perto, cito algumas (independentemente se costumam ser
falas ao longo deste texto. câmara, direção, ou outra função) no
Após dois anos da primeira oficina, mapeamento de possibilidades de rotei-
em 2005, Joseane (um dos elementos do ro. Por fim, chegamos ao acordo de con-
Crioulas Vídeo) já afirmava perante a câ- tinuar discutindo, mas no fazer. E é por
mara “Tivemos a oportunidade de contar isso que começa a curta metragem com
a nossa história através do audiovisual um grupo de caminhantes (incluindo eu)
(…) desenvolvemos a técnica em prol da que ao chegar a um cruzamento debate:
causa quilombola. Hoje temos autonomia
para planejar, capturar, editar e partir daí, - Vamos por este caminho, aqui que é
melhor, é mais aberto e tem mais espaço,
divulgar os nossos trabalhos, e passar corre menos perigo…
com segurança os conhecimentos adqui-
ridos.” Esta fala reforça a afirmatividade - Bom, eu acho que é melhor discutirmos
da ação de negritar os objetivos e a mis- para decidir o melhor caminho.
são do Crioulas Vídeo e evidencia o modo
- Por aqui não, por esse caminho vai ser
como está presente a luta e o compromis- bem melhor.
so da pessoa e do coletivo em Conceição
das Crioulas. Trabalhar com um grupo - Não, vamos por aqui.
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RITA RAINHO
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RITA RAINHO
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que criaram connosco a Oficina de Dese-
Sobre a partilha, nho, a todos o que lá estiveram e participa-
as trocas e os ram; o que aprendi e o porquê estão ainda
em fase de maturação, trago uma certeza,
deslocamentos a de pertencer a um movimento maior do
que uma identidade pessoal e na constru-
no Encontro em ção de um compromisso crítico e de acções
Conceição das partilhadas, ainda sem querer delimitar
pela força da própria experiência vivida e
Crioulas ainda por viver:
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SOBRE A PARTILHA, AS TROCAS E OS DESLOCAMENTOS NO ENCONTRO
É difícil explicar esta intenção sem ficar nha finitude em relação a realidades des-
por um sentido ingénuo de que tudo pode conhecidas, num deslocamento de mim
acontecer. em relação à minha condição de onde
A ideia é que no esforço dessa abertu- nasci, onde vivo, o que aprendi.
ra, possa haver partilha acima de tudo e E nessa identidade europeia, branca e
desenho como forma da sua expressão. onde sou mulher em mundo de homens,
Fazer das experiências conjuntas através torna-se difícil o desvio, ante o mito da
do desenho um conjunto de processos do salvação enquanto missão ocidental,
que cada um deseja: quanto mais não seja, a minha própria.
Daí que este encontro tenha sido tão im-
“O organismo atua sobre as coisas que o portante, ao pôr em causa quem sou em
rodeiam, valendo-se de sua própria estru-
tura, simples ou complexa. Em sua con-
relação aos outros, ao despir uma inten-
sequência, as mudanças que produzem ção de medir os acontecimentos, contro-
nesse meio circundante reagem a sua vez lar as acções, impôr poderes.
sobre o organismo e sobre suas ativida- Fui também na procura das sombras,
des. O ser vivente sofre as consequências das entrelinhas da História, das realida-
de seu próprio agir. Esta íntima conexão
entre agir e sofrer ou padecer é o que cha- des que não cabem na luz branca da nossa
mamos experiência. O agir ou o sofrer, civilização. Com a consciência da minha
desconectados um do outro, não consti- condição, onde questionara já esse lega-
tuem nenhum dos dois a experiência. [...] do, o nosso legado ocidental, essa procu-
Uma coisa vem a sugerir e a significar a
ra está intrinsecamente ligada ao que não
outra. Temos, pois, uma experiência em
um sentido vital e significativo.” (Dewey, consta numa sociedade globalizante.
1958:110-1). E a globalização, que abarca tão pouco
de nós. Como fenómenos que hegemoni-
Em relação ao contexto geral do Encon- za um determinado tipo de conhecimen-
tro, fui disposta a ouvir. to válido, de valores e práticas políticas,
Tendo entrado para o Identidades uns económicas e sociais ocidentais, a globa-
meses antes, com o intuito de integrar lização como conceito, mais não faz do
um conjunto de acções interculturais que que nos afastar da nossa própria Histó-
permitam uma reflexão posterior sobre o ria. Porque dizer nos manuais escolares
fenómenos em vários contextos e comu- que Portugal foi dos primeiros países e
nidades, este primeiro encontro foi acima abolir a escravatura e que hoje em dia os
de tudo uma experiência de pensar a mi- países europeus não “têm” colónias é um
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LUÍSA MAGALHÃES
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SOBRE A PARTILHA, AS TROCAS E OS DESLOCAMENTOS NO ENCONTRO
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LUÍSA MAGALHÃES
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SOBRE A PARTILHA, AS TROCAS E OS DESLOCAMENTOS NO ENCONTRO
“A gente sabe que a escola nunca foi pen- tenções de fechar o conhecimento sendo
sada nem voltada para a gente. Pobre, apenas sobre Conceição das Crioulas.
negro, negra da zona rural, a escola foi
pensada com um objectivo e aí eu não
Perguntam-lhe:
vejo muita diferença do que é hoje não. Se
a gente fosse a pegar a educação formal, “Vocês vão só estudar a História de Con-
porque hoje eu vejo a educação formal ceição? Estão criando guetto. Não é isso,
como alienadora.” (AAVV, 2014:’00:59) a gente quer também estudar Conceição,
mas a gente quer e muito ter outros co-
nhecimentos (…) não achando que aqui
O longo caminho já percorrido para é inferior . A gente precisa de conhecer
integrar uma educação diferenciada, a nossa realidade, o nosso local, a nos-
que integre a História de Conceição das sa história, porque ela é tão importante
Crioulas, um calendário alternativo que quanto as outras e para nós ela é mais
importante” (idem, ’14:59)
contemple os dias de relevo para a comu-
nidade, a capacidade de construir par-
ticipativamente as narrativas, mostra a A consciência de uma identidade que
capacidade de resiliência e de resistência ao ser construída e estar presente na Es-
da comunidade. Ainda há muito para per- cola, como está na comunidade, assume
correr, muitos objectivos e desejos de mu- um papel importante na relação com o
dança, como realidade assente de que o ensino formal, pela exigência que seja ac-
seu desenvolvimento é o que forma a par- tualizado em termos dos conhecimentos
ticipação e assim, que a luta é contínua. das directrizes nacionais, em constante
Ainda hoje é uma luta, as professoras de- diálogo e consciencialização das culturas
batem em roda e relatam ocasiões onde onde se insere. Implica uma mediação do
foi considerado uma ofensa, um conflito, que é dado como imposto e da crítica que
como uma rejeição à sociedade brasileira, se constrói sobre isso mesmo:
não as directrizes nacionais.
“É bem verdade que certas coisas, a
Um dos desafios que entretanto é colo- saber, as ideias, exercem uma função me-
cado expõe um fundamento importante diadora. Mas só uma lógica distorcida e
de clarificar, o facto de que a educação falha é capaz de afirmar que, pelo fato de
diferenciada não se pretende exclusiva uma coisa ser mediada, ela não pode ser
e fechada em si; será a chave, a reflexão imediatamente vivenciada, o que ocor-
re é o inverso. Não podemos apreender
dinâmica, para que seja intercultural. uma ideia, nenhum órgão de mediação,
Uma professora relata uma das vezes em não podemos possuí-la em sua plena for-
que foi questionada relativamente às in- ça, enquanto não a sentimos em termos
203
LUÍSA MAGALHÃES
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SOBRE A PARTILHA, AS TROCAS E OS DESLOCAMENTOS NO ENCONTRO
e a Isabelli, sobre esse momento que nos Contaram-nos que antes, ali, tudo estava co-
marcou a todas: berto de água. Então o que viam era não só o
que estava ali, por vezes nem sequer a memó-
A partilha de histórias foi o que mais ria de lá, mas também o que ouviam contar.
marcaram as folhas, sempre que nos debru-
çávamos sobre os desenhos, eram linhas e E sobre as memórias partilhadas neste
palavras que geravam uma imagem visual. Encontrocom as artes, a luta,os saberes
Sobre as propostas trazidas e os exercícios, e os sabores da Comunidade Quilombola
uma vontade de experimentar, um diálo- de Conceição das Crioulas,
go constante. A Vila Centro é ladeada pelas a força de persistir e continuar.
serras. (...) Fomos ao açude mais acessível
várias vezes, com os grupos da manhã e de Referências bibliográficas
tarde. Sentávamo-nos nas pedras enormes CANCLINI, Nestor Garcia (2004) Diferentes,
desiguales y desconectados: mapas de la Inter-
que se debruçavam umas sobre as outras, à culturalidade. Barcelona: Gedisa.
sombra das árvores, entre arbustos e outra CANCLINI, Nestor Garcia (2006) Culturas
vegetação rasteira. Descobrimos este sítio já Híbridas. São Paulo: Editora da Universidade
no primeiro dia, quando dois jovens nos leva- de São Paulo.
ram a conhecer o seu sítio preferido, perto de BONDÍA, Jorge Larrosa (2002) Notas sobre a
onde mora o artista local (o “nosso artista”) experiência e o saber de experiência Revista
e ao virar de uma árvore, lá estava o lugar Brasileira de Educação. N. 19, p.20-28, Jan/
Fev/Mar/Abril;
que queriam desenhar. Mais do que isso,
DEWEY, John. (1958) Experience and nature.
partilhá-lo com o resto do grupo na oficina e New York: Dover Publications, Inc..
depois mais tarde, com os seus, nos desenhos DEWEY, John. (1987). Art as Experience. The
trazidos de lá. Nesse local, em particular, Later Works of John Dewey, 1925-1953. Volume
existe um fosso extenso e profundo. O olhar 10: 1934, Edited by Jo Ann Boydston Carbon-
perdia-se no horizonte desafogado… Nos diá- dale and Edwardsville: Southern Illinois Uni-
versity Press;
rios gráficos notávamos que, não raras vezes,
os participantes desenhavam a paisagem do DEWEY, John. (2010) Arte como experiência.
[tradução de Vera Ribeiro]. - São Paulo:
açude com um elemento que parecia forastei- Martins Fontes.
ro ou absurdo àquilo que podíamos observar: EISNER, Elliot W.(2002) The arts and the
a água. A perplexidade, contaminada pela creation of mind. New Haven: Yale University
racionalidade da ‘observação’ per se, leváva- Press.
mo-nos a questionar – “Onde está a água?” FOUCAULT, Michel (2006) A escrita de si. In:.
205
LUÍSA MAGALHÃES
Filmografia
A arte das Escolas na Comunidade, 2014, AAVV,
PE, Brasil: Crioulas vídeo.
206
Conceição das Crioulas... o que dizer
Arte, Gênero e dessa comunidade quilombola situada
Sexualidade no município de Salgueiro, sertão per-
nambucano, em uma distância de 42 km
na Escola Estadual entre a comunidade e o centro da cidade
de Salgueiro, dos quais 27 km são de ter-
Quilombola ra batida? A vivência de sete dias nessa
Professora Rosa comunidade foi incrível. Mas, não é só
isso. Aprendemos muito sobre nós e so-
Doralina Mendes bre os grupos de estudantes, de professo-
res, das universidades envolvidas, dos/as
MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS moradores/as, as mulheres, os homens...
DO AMARAL1 Como aprendemos... Aprendemos que
FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA2 essa comunidade quilombola convive
em harmonia com os indígenas Atikum,
em um território de 1.686,815 km, sendo
6,75 km em perímetro urbano, com uma
população estimada, pelo censo de 2014,
em 60.453 habitantes. Baseados na nossa
vivência na comunidade, vamos “tentar”
contar a nossa narrativa, apenas “tentar”
porque as narrativas vivem em movimen-
to, mudam, se transformam com o passar
do tempo. As narrativas não são estáti-
cas. A vivência que tivemos não é mais a
Entre Salgueiro e Conceição das Crioulas, por Vitória
Amaral, julho de 2017
que guardamos na memória. As imagens
dessa memória que nos saltam aos olhos
1 Professora Doutora em Artes Visuais da Universidade
já são reelaborações de imagens vividas.
Federal de Pernambuco – UFPE. Vice-Líder do Núcleo Para Gaston Bachelard, as imagens que
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre o Imaginário –
CNPq.
temos hoje “Não é eco de um passado”
2 Professor Doutor em Artes Visuais do Centro de Artes da (BACHELARD, 2008, p. 02), isto é, as
Universidade Regional do Cariri – URCA. Líder do Grupo de
Pesquisa Ensino da Arte em Contextos Contemporâneos –
imagens de nossa memória são recons-
GPEACC/CNPq. truções de imagens vividas até os dias de
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MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS DO AMARAL / FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA
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ARTE, GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA ESTADUAL QUILOMBOLA
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MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS DO AMARAL / FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA
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ARTE, GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA ESTADUAL QUILOMBOLA
adaptamos a nossa oficina. Trabalhamos mos ficando cada vez mais enredados em
com três turmas de 1º, 2º e 3º anos do En- uma teia para suscitar que nunca estamos
sino Médio, em três dias consecutivos. sós, que um puxa a teia do outro e vive-
As discussões versaram sobre a mulher, mos em uma organização em rede e que
a mulher negra e as suas relações de gê- todos/as são responsáveis por todos/as.
nero, sexualidade, sexismo e violência;
depois somamos a participação vibrante e
enriquecedora do Prof. Fábio Rodrigues,
do Centro de Artes da URCA à oficina que
tratou de diversidade sexual e DST/AIDS
a partir de uma abordagem metodológica
desenvolvida com a pesquisa Ensino de
Artes Visuais e Escola sem Homofobia,
vinculada ao Grupo de Pesquisa Ensino Dinâmica entre os mediadores da ofina com os/as
estudantes do Ensino Médio, por Vitória Amaral, julho
da Arte em Contextos Contemporâneos 2017
– GPEACC/CNPq.
Para as discussões de gênero e sexuali-
dade nas Artes Visuais, trouxemos algu-
mas/alguns artistas contemporâneos que
abordam essas temáticas. Iniciamos as
nossas falas (ou nossos silêncios?!?!) com
a apresentação dos trabalhos de Rosana
Paulino3, como a artista vem se destacan-
do por sua produção ligada a questões
sociais, étnicas e de gênero. Seus traba-
lhos têm como foco principal a posição
Escola Estadual Quilombola Rosa Doralina Mendes, da mulher negra na sociedade brasileira
por Vitória Amaral, julho 2017
3 Doutora em Artes Visuais em Artes Visuais pela Escola de
Enredadas, iniciamos as nossas apre- Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/
sentações na escola: Quem somos? O que USP, é especialista em gravura pelo London Print Studio, de
Londres e bacharel em gravura pela ECA/USP . Foi bolsista
gostamos de fazer? O que não gostamos? do Programa bolsa da Fundação Ford nos anos de 2006 a
2008 e Capes de 2008 a 2011. Em 2014 foi agraciada com
Essas foram as perguntas para iniciarmos a bolsa para residência no Bellagio Center, da Fundação
as nossas trocas. Enquanto falamos va- Rockefeller em Bellagio, Itália.
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MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS DO AMARAL / FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA
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ARTE, GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA ESTADUAL QUILOMBOLA
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ARTE, GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA ESTADUAL QUILOMBOLA
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MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS DO AMARAL / FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA
A arte nos converte em sujeitos de nos- (Portrait of Ross in L.A), 1991, Félix Gon-
sa experiência, nos eleva, às vezes, da zález-Torres6. Durante a dinâmica não exi-
imanência e do cotidiano, nos separa de
nossa “situação” e nos faz defini-la, rede-
bimos as imagens do trabalho. Optamos
fini-la, atacá-la, expulsá-la ou assumi-la na verdade por deixar que todos/as pegas-
desde outro ponto de vista. (...) como a sem seus pirulitos e começassem a chupar.
arte, em relação a sua capacidade desa-
bituadora, nos permite nos ver de novo,
definimos desde nosso ponto de vista e
permite, nos casos mais extremos dos ca-
sos, tratar a Alteridade desde a alteridade.
(F. Cao, 2010, p.98).
216
ARTE, GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA ESTADUAL QUILOMBOLA
de dois corpos, aparecem imprimidas duas Com essa estratégia didática e nos
cabeças sobre os travesseiros, o rastro aqui apoiando nas artes visuais contemporâ-
é uma ausência” (MEJÍA, 2016, BLOG EL- neas fomos introduzindo o tema da di-
PULPO) e levantamos alguns questiona- versidade sexual, do direito a viver e amar
mentos como: quem dormiu nessa cama? das pessoas, do amor e da dor de perder a
O que estavam fazendo? Era um homem e pessoa amada. Com o tema da perda da
uma mulher ou dois homens, duas mulhe- pessoa amada, apresentamos mais uma
res? imagem do trabalho do artista.
Seguimos com as ideias, sugestões, de- "Untitled” (Portrait of Ross in L.A), 1991, Félix
González-Torres. http://elpulpo.com.br/felix/
vagações suscitadas pela imagem e pouco
a pouco fomos apresentando as intenções Com essa imagem procuramos descons-
do artista ao produzir a imagem em desta- truir imaginários sobre o uso da camisinha
que. Segundo Mejía (2016): (preservativo masculino) principalmente
quando se repeti a frase: “Usar camisinha
Trata-se de um tributo a Ross Laycock, é o mesmo que chupar um bombom com
companheiro sentimental do artista, que
embalagem”. Essa frase é muito comum
morreu no ano da realização da obra, e é
o retrato intimo da despedida de um ser entre os heterossexuais masculinos e em
amado. A fotografia habita o espaço públi- geral empregada para não usar o preser-
co, entra na rotina dos habitantes da cida- vativo. Exploramos muito a relação entre
de, muitos a verão e não estarão conscien- a instalação do artista Félix González-
tes dela, outros a verão como uma imagem
-Torres com os pirulitos que chupávamos
flutuante entre tantas outras, talvez alguns
a lerão detalhadamente, o importante é e como era chupar o pirulito sem tirar a
que será vista, que será parte da rotina de embalagem que o envolve? Assim procu-
milhares de pessoas. ramos demonstrar que a propagação do
217
MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS DO AMARAL / FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA
218
julho de 2017, foi o compartilhamento
Sobre afetos, dos trabalhos das mestras quilombolas
aprendizagem Márcia Jucilene do Nascimento3 e Maria
Diva da Silva Rodrigues4. Suas pesquisas
mútua e foram resultantes de trajetórias que pude-
mos acompanhar entre 2015 e 2017 junto
fagulhas contra- ao Mestrado em Sustentabilidade junto a
hegemônicas: Povos e Terras Tradicionais (MESPT), na
Universidade de Brasília. Este curso, em
interlocuções entre que atuamos como docentes, é pioneiro
em seu formato, visando à formação de
a Universidade profissionais para o desenvolvimento
de pesquisas e intervenções sociais, com
de Brasília e base no diálogo de saberes (científicos
Conceição das e tradicionais), em prol do exercício de
direitos, do fortalecimento de processos
Crioulas-PE autogestionários da vida, do território e
do meio ambiente, da valorização da so-
CRISTIANE DE ASSIS PORTELA1 ciobiodiversidade e salvaguarda do patri-
MÔNICA CELEIDA RABELO mônio cultural (material e imaterial) de
NOGUEIRA 2 povos indígenas, quilombolas e outras
comunidades tradicionais.
Um dos momentos felizes ocorridos no A construção das pesquisas de Márcia
Encontro com as Artes, a Luta, os Saberes Jucilene e Maria Diva revela mais que
e os Sabores da Comunidade Quilombola compromisso com o tema, sendo repre-
de Conceição das Crioulas, ocorrido em
3 NASCIMENTO, Márcia Jucilene. Por uma pedagogia crioula:
memória, identidade e resistência no quilombo de Conceição
1 Doutora em História e Docente do Mestrado em das Crioulas - PE. [Dissertação de Mestrado- Mestrado
Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais].
(MESPT), da Universidade de Brasília (UnB), Brasil. E-mail: Brasília: MESPT CDS-UnB, 2017.
cportela.historia@gmail.com 4 RODRIGUES, Maria Diva da Silva. Política de nucleação
2 Doutora em Antropologia Social e Coordenadora do de escolas: uma violação de direitos e a negação da cultura e
Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras da educação escolar. [Dissertação de Mestrado- Mestrado
Tradicionais (MESPT), da Universidade de Brasília (UnB), em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais].
Brasil. E-mail: monicacrnogueira@gmail.com Brasília: MESPT CDS-UnB, 2017.
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CRISTIANE DE ASSIS PORTELA / MÔNICA CELEIDA RABELO NOGUEIRA
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SOBRE AFETOS, APRENDIZAGEM MÚTUA E FAGULHAS CONTRA-HEGEMÔNICAS
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SOBRE AFETOS, APRENDIZAGEM MÚTUA E FAGULHAS CONTRA-HEGEMÔNICAS
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SOBRE AFETOS, APRENDIZAGEM MÚTUA E FAGULHAS CONTRA-HEGEMÔNICAS
so ético com a devolutiva de pesquisas, meira que nos apresenta o caráter pro-
tantas vezes esquecido na universida- fissional do curso, o que exige a aplica-
de, tem significado especial quando as bilidade dos conhecimentos no âmbito
pesquisadoras são membros da própria de atuação de estudantes que se forjam
comunidade de interlocução. Seus efei- como intelectuais, ao mesmo tempo que
tos extrapolam a mera comunicação de se fortalecem como profissionais de suas
resultados de pesquisa, pois alargam os áreas de conhecimento. Para que essa
horizontes da comunidade pela força do intelectualidade insurgente no Brasil
exemplo. Pela sua representatividade, possa efetivamente incidir na transfor-
fortalecem o sentido coletivo na cons- mação da realidade das comunidades, é
trução de um pensamento crítico e pro- imprescindível reconhecer que não há
positivo sobre sua realidade, estimulam dissociação entre formação intelectual,
o debate, e acionam novos elementos atuação profissional e os modos de vida
gerados pela pesquisa, mas em termos que nos constituem como sujeitos, seja
próprios e com vistas à autodetermina- individual ou coletivamente, a partir de
ção. Rompe-se, assim, com as oposições marcadores de etnicidade e cultura, ou
sujeito/objeto, teoria/prática, ainda tão pelas inscrições profissionais que igual-
presentes nas pesquisas acadêmicas – mente nos atribuem identidades e nos
e por que não dizer também à oposição envolvem em engajamentos específicos.
centro/periferia. Afinal, as defesas de Partimos, portanto, de uma concepção
dissertações realizadas nas universida- que lê o intelectual como aquele que se
des, alienadas de seus contextos de ori- apresenta como um sujeito pleno e não-
gem e dos interlocutores que a tornaram -monolítico, combatendo uma visão es-
possível, assinalam um espaço de poder tereotipada que distingue mente, corpo
e centralidade na produção do conhe- e concepções ontológico-afetivas, fazen-
cimento (o meio acadêmico), em detri- do crer que o intelectual opera somente
mento de uma perspectiva policêntrica, como mente, fracionando-se ao assumir
orientada para a produção de autono- esse papel. Em especial, as elaborações
mias locais. teóricas de intelectuais indígenas lati-
Ao vislumbrarmos tais possibilidades no-americanas e do feminismo negro,
em torno das formas de se renovar a pro- têm questionado tais compreensões
dução e a circulação da pesquisa estamos acerca do papel da teoria e atuação da/
também atentas à intencionalidade pri- do intelectual (nesse sentido, podemos
225
CRISTIANE DE ASSIS PORTELA / MÔNICA CELEIDA RABELO NOGUEIRA
226
proporcionando, como seria desejável e
Tankalé endógeno, um envolvimento horizontal e
Oficina de Desenho aberto da comunidade.
O desenho foi um pretexto para co-
ISABELI SANTIAGO nhecer: a comunidade, o território, a sua
LUÍSA MAGALHÃES história e a sua luta. A nossa oficina es-
MARIANA DELGADO1 tabeleceu os seus eixos orientadores em
três propostas: o desenho imaginário, o
A oficina de desenho realizou-se duran- desenho de observação e o desenho de
te três dias (de 17 a 20 de julho de 2017) retrato coletivo. A partir destas propostas
com duas sessões diárias, com uma dura- e da implementação do diário gráfico foi
ção de quatro horas de manhã e quatro de possível traçar uma cartografia multis-
tarde. A atividade artística desenvolveu- sensorial – texturas/pintura/decalque/
-se, sobretudo, com grupos de crianças e stencil/desenho – do local, a Vila Centro,
jovens em idade escolar do quilombo mas identificar zonas de interesse ou temáti-
a participação na mesma não estava res- cas comuns, e adentrar na memória ima-
trita à faixa etária. Em média, os grupos terial através das narrativas das histórias
variaram entre 20 a 40 participantes por particulares do Quilombo de Conceição
sessão. das Crioulas.
Os grupos foram aumentando num de-
safio ao espaço da oficina. Eram crianças
a entrar pelas janelas, pessoas que de tan-
to espreitarem se entranharam nos nos-
sos desenhos, crianças que se juntavam
atrás de nós nos caminhos já traçados
antes de nós por tantos pés. Deste modo
abriu-se espaço para uma convivência
menos determinada pelas limitações da
sala de aula, para que professores/as,
mães, pais, familiares, amigos e os de-
mais interessados pudessem participar,
1 ID_CAI, i2ADS.
227
ISABELI SANTIAGO / LUÍSA MAGALHÃES / MARIANA DELGADO
228
OFICINA DE DESENHO | CONTAR PARA TODO O MUNDO
229
ISABELI SANTIAGO / LUÍSA MAGALHÃES / MARIANA DELGADO
230
tro com as Artes, a Luta, os Saberes e os
O que a Sabores da Comunidade quilombola de
Comunidade Conceição das Crioulas. Este encontro foi
realizado através de ações educacionais,
Quilombola de oficinas, formações de professores e pro-
Conceição das fessoras, com o objetivo de comemorar
os 17 anos de aniversário da AQCC. Este
Crioulas viu e encontro foi um dos maiores até mesmo
na história do Município de Salgueiro e
ouviu durante o realizado pela Associação Quilombola de
'Encontro com Conceição das Crioulas, o Grupo Identi-
dades e com a parceria de varias institui-
as Artes, a Luta, ções de Ensino Superior de vários estado
brasileiros e de outros países a exemplo
os Saberes e os de Cabo Verde.
Sabores'? Durante a semana de 16 à 24 de Julho
de 2017 a Comunidade Quilombola de
Conceição das Crioulas vivenciou ativi-
CELCIA MARCELINA DE OLIVEIRA1
dades educativas voltadas para o campo
Conceição das Crioulas, comunidade das Artes. Foi também não só momentos
quilombola localizada no sertão pernam- de estudos, mas também de dança, troca
bucano. Comunidade conhecida inter- de saberes e sabores. Momento de inte-
nacionalmente pela sua história de luta, ração e descontração. Momento de co-
pelo artesanato, pelo processo educacio- nhecer e conviver com pessoas diferentes.
nal que se entrelaça com a vida da comu- Diferentes no jeito de falar, de se vestir
nidade. mas, iguais no pensamento de que a efeti-
No mês de julho a festa em comemora- vação de educação respeite as diferenças,
ção ao aniversário da AQCC - Associação sendo sim compromisso de todos e todas
Quilombola de Conceição das Crioulas nós. E ainda refletindo sobre as palavras
vem se tornando tradicional. Em 2017 de do Mestre Paulo Freire “Se a educação
16 a 24 de Julho foi realizado o 1º Encon- sozinha não transforma a sociedade, sem
ela tampouco a sociedade muda” Falar
1 Professora da Comunidade Quilombola. de mudança de pensamento parece fá-
231
CELCIA MARCELINA DE OLIVEIRA
cil, mas não é, pois as pessoas precisam ações que não deram muito certo e que
romper até mesmo com seus medos e em 2019, o 2º Encontro com as Artes, a
preconceitos. Foi uma semana muito in- Luta , os Saberes e os Sabores, será ainda
tensa pela movimentação de mais de 200 melhor.
pessoas nos diversos espaços de apren- Queremos aqui agradecer em especial
dizagem da Comunidade a exemplo das ao IDENTIDADES que desde de 2003 de
Escolas Professora Rosa Doralina Men- forma sistemática vem contribuindo com
des, Escola Professor José Mendes, Esco- a educação em Conceição das Crioulas e
la José Néu de Carvalho, a Casa da Co- que em 2017 não mediu esforços para
munidade Francisca Ferreira, a casa das que o encontro com as Artes aconteces-
Juventudes - Girlene Rosa e ainda alguns se. Agradecer também pelo empenho da
pontos turísticos como o Caldeirões dos AQCC através da Comissão de Educação.
Ossos, a Pedra Preta … Agradecer também às Universidades que
Vale salientar o empenho e importân- estiveram presentes representadas por
cia das diversas pessoas que contribuí- estudantes, professores e professoras.
ram para que essas atividades pudessem
acontecer da melhor forma. Atividade
realizadas muitas vezes por pessoas que
deixaram o conforto de suas casas, a au-
sência e saudade de suas famílias com o
objetivo de ensinar e aprender. Estudan-
tes, professores, professoras, pessoas que
sonham e trabalham no sentido de cons-
truir uma escola democrática onde todos
e todas possam conviver bem. Estiveram
presente nessa semana de atividades,
crianças, jovens, adultos e idosos da Co-
munidade. Ao final do encontro houve a
socialização dos trabalhos realizados du-
rante as oficinas.
Houve desencontros? Houve sim! Até
porque somos humanas. Mas, estes de-
sencontros nos fazem rever algumas
232
reflexão na formação docente em artes
Trocas poéticas visuais? Como as mulheres de Conceição
/ educativas no das Crioulas articulam-se com questões
de gênero e sexualidades? Quais contri-
Encontro com buições os deslocamentos para dentro de
si trazem para formação docente no exer-
as Artes, a Luta, cício de imersão em outras realidades?
os Saberes e Meus caminhos nestes relatos perpassam
os campos reflexivos das Artes Visuais;
os Sabores da Arte/Educação; Gênero; Sexualidades;
Memória.
Comunidade
Quilombola de Olho a estrada espantada: És estra-
Conceição das da sem fim? Um mistério estranho,
o desconhecido para mim. Nada sei
Crioulas desse lugar. No entanto, veja que es-
tranho, escolhi estar aqui. De coração
PRISCILA FERREIRA AGOSTINHO1 aberto disponho-me a ler o livro da
vida. Isso, o livro que irei ler chama-
Resumo -se vida. Um livro que não está em
O “Encontro com as Artes, a Luta, os Sabe- minhas mãos, não acho em livrarias
res e os Sabores da Comunidade Quilombola ou bibliotecas. Ele fica na boca dessas
de Conceição das Crioulas” aconteceu de pessoas. Estou assustada, a saudade
15 a 22 de julho de 2017 na Comunidade de casa já bate na porta do meu cora-
Quilombola de Conceição das Crioulas ção. No entanto, veja que estranho,
em Salgueiro município do Sertão de Per- eu escolhi estar aqui. Vejo três bois se
nambuco. O texto é um relato pessoal e arrastando pela estrada. O céu, exaus-
evidencia as experiências vivenciadas na to de azul, abriga uma multidão de
comunidade. Quais as possibilidades de pássaros que dançam pra lá e pra cá.
recorrer a memória como dispositivo de Bocejo e espero... Vejo meu reflexo no
1 Artista visual, graduada no curso de Licenciatura em Artes
retrovisor da van, minha imagem mis-
Visuais da Universidade Federal de Pernambuco. turada a paisagem da estrada sem fim.
233
PRISCILA FERREIRA AGOSTINHO
234
TROCAS POÉTICAS / EDUCATIVAS
olhos profundos esqueço-me de respon- curo ser silêncio também. É que, assim
der às inúmeras mensagens recebidas via como Paiva (2012) eu sinto-me obrigada
whatsApp, esqueço-me até de interagir a buscar por outros ares para respirar,
com minhas companheiras de formação. embora sinta medo do por vir, procuro
Meus olhos tão profundos como esse céu abrir-me ao novo, diferente, desconheci-
que vejo. Não digo nada e peço-lhe: não do para confrontar realidades. Aprender
me digas nada também. Ficaremos assim a ser é um exercício diário e requer uma
por um tempo. Eu, ingênua e frágil que escuta atenta.
nada diz. Ele profundo e estrelado, uma
canção linda dessas que se lê dançando. Pausa I
Com ingênua graça continua a não me Sentada num banco de praça vejo ima-
dizer nada. Estou fragilmente pintada de gens. Daqui vejo ao longo do caminho de
céu, de silêncio. Havia desaprendido a ser areia uma menina correndo com um bal-
silêncio sem culpa, mas não para sempre. de. O vento balança-lhe a saia estampada
Talvez, haja despedida, mas essa linda de nada. A menina corre e na areia seca
canção ingênua e frágil que nada me diz não imprime nenhum rastro.
penetra tão fundo em meus olhos. Nada 17 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas.
me digas! Eternizei-te!
16 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas. Alma Perdida
Penha, Fabiana, Rosi, Valdeci, Lour-
Penso na falta que sinto em poder ser des, Márcia todas belas. Olhos serenos
silêncio sem culpa. Geralmente, não falo de resistência. De silêncio não são feitas.
muito e sempre sou questionada por isso. Cheias de uma estranha claridade. Anjos
Como ser professora assim? Sou atenta a que me tocam. Sensíveis, num canto grave
detalhes, com isso, interesso-me em ouvir e profundo se revelam insaciáveis. Insaciá-
o que o outro (a) tem a dizer. E acredito veis buscam ser grandes, e são. De alma
que professores (as) precisam aprender revirada procuro desentender meus sabe-
a ser silêncio também, talvez assim, seja res, assim, procuro entender o que busco
possível “embrenhar-se em diferentes ca- aprender com essas mulheres. Meus olhos
minhos e encharcar-se de possibilidades” embriagados de questionamentos, dúvi-
(BORRE, 2016, p. 175). Ouvidos atentos das, incertezas vão ficando cada vez mais
podem facilitar o processo de imersão em lúcidos. Alma perdida, vagando pela vida.
outras realidades. Por estes motivos, pro- Parece que eu entendo, e depois desenten-
235
PRISCILA FERREIRA AGOSTINHO
dendo. Fico sem saber, entendendo sem- que será ministrada pelo grupo de pes-
pre pouco, quase nada. De alguma manei- quisadoras ao qual pertenço neste mo-
ra elas enchem minha alma de claridade. mento. O grupo é formado por professo-
Mas quanto mais claridade minha alma ras e estudantes do curso de licenciatura
recebe mais ela se perde. em artes visuais da Universidade Federal
17 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas. de Pernambuco. A oficina faz parte da
programação onde buscamos proporcio-
“Trabalhe com a incerteza” (MORIN, nar um espaço de compartilhamento e
2005, p. 205). Li isso dia desses e achei reflexão a cerca de questões de gênero e
complexo. Associar ações pedagógicas às sexualidades. Terei uma participação dis-
aprendizagens que se instauram na dú- creta, imagino eu. Sempre sou discreta
vida e na incerteza é desafiador. Enten- nas colaborações, às vezes, interajo mais
do que a clareza que busco talvez nunca como menina que nada sabe no meio de
aconteça e outras formas de pensar ator- tanta gente sabida. Eu mais escuto que
mentam. Confesso, por vezes sinto-me falo, quase sempre é assim. Talvez, por
confusa e com muitas incertezas. Segun- medo, por não ter o que dizer, ou até por
do Morin para mantermos um diálogo achar que devo ficar calada. Sou um poço
com o mundo precisamos trabalhar com vazio, é assim que me sinto. Vazia! E esse
incertezas. Isso perturba. Mas acredito poço parece estar vazando. Quanto mais
ser necessário, por exemplo, duvidar de me inundam com novos conhecimentos e
ações que moldam nossas subjetividades saberes me sinto ainda mais vazia. Esva-
numa tentativa de homogeneizar e nor- ziando... Encontro-me, desencontro-me.
matizar comportamentos/identidades. Acho-me, perco-me. Entendo, desenten-
Certezas absolutas podem aprisionar su- do. É um vai e vem sem fim. Me visto de
jeitos, limitar a produção de conhecimen- fé, o almoço é um momento para refletir
tos e as aprendizagens. Agora me sinto e me preparar. Em poucas horas lançar-
ainda mais provocada a questionar. Para -me-ei em mais uma aventura nesse pro-
algumas pessoas isso pode representar cesso conflitante de vir a ser...
um tormento, e para outros (as) pode ser 18 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas.
libertador é o que diz Morin (2005).
Rompendo o planejamento
Pausa II Se as palavras me faltam é porque os
Preparo-me para oficina de bordado sentimentos não são claros ainda. Não
236
TROCAS POÉTICAS / EDUCATIVAS
consigo descrever a experiência vivencia- para isso. Na verdade, escrevo para mim
da ontem na oficina de bordado. Entre mesma. Escrevo para não sufocar. Estou
linhas, agulhas, cartas, fotografias o pro- presa em mim, nas minhas cartas, diá-
tagonismo não foi apenas do grupo pro- rios. O que me levou a expor meus relatos
positor da oficina. Conexões foram esta- na oficina de bordados? Essa questão me
belecidas a partir do compartilhamento acompanha no momento. Mas não tenho
de histórias sobre questões de gênero e pressa em achar a resposta.
sexualidades. Compartilhei um relato 19 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas.
pessoal. Um assunto delicado para mim
e difícil de expor. Eu não havia planejado Romper o planejamento parece ser ou-
expor-me. Rompi com meu planejamen- tro saber atribuído a profissão docente.
to, decidi entrar na questão trazida por Rompi para permitir a imersão na questão
uma participante. Ouvi seu relato e me trazida por uma das participantes da ofici-
senti confortável para expor um recorte da na. Não fui a única a sentir necessidade em
minha história. Acredito que romper com valorizar as questões trazidas por ela. Sua
planejamentos deva fazer parte da ação narrativa sobre relacionamentos abusivos
pedagógica de professoras (as). Saí de foi inesperada e nos fez refletir sobre estar-
lá mais forte, consegui falar sem chorar, mos preparados o imprevisível em sala de
sem pensar em desistir no meio da con- aula. Com isso, questiono-me se esse tipo
versa. Não me senti sufocada, o ar entrava de ação se aplica a sala de aula.
por minhas narinas, chegava aos pulmões Logo, após o relato sobre relacionamen-
e eu falando como uma matraca. Algumas tos abusivos outra participante compar-
meninas, ao meu lado, ao ouvirem o meu tilhou o sofrimento da mulher que sofre
relato me olharam com olhos de peixe, abuso sexual e é discriminada por denun-
arregalados! Uma delas me procurou no ciar o crime. Diante disto, me senti confor-
final da oficina, pediu-me um papel e dis- tável para falar sobre violência sexual. Ao
se “vou te escrever uma carta, amanhã te expor meu relato na oficina identificando,
entrego”. No dia seguinte, eu perguntei escolhendo e reconstruindo experiências
sobre a carta, ela me disse “escrevi, mas busquei “uma compreensão de si mesmo e
posso não entregar?” e eu respondi que de experiências vividas que, desafiadoras,
não precisava me entregar a carta. Por ve- sofridas ou decepcionantes/desagradá-
zes, escrevo cartas e as guardo em segredo veis, podem ser transformadas em apren-
e apenas revelo se me sinto confortável dizagens” (MARTINS, 2009, p. 38).
237
PRISCILA FERREIRA AGOSTINHO
238
TROCAS POÉTICAS / EDUCATIVAS
239
PRISCILA FERREIRA AGOSTINHO
te, etc. De acordo com Dias (2013) a a/r/ subjetividades. Com isso, minha traje-
tografia, neste caso, apresenta-se como tória vem ganhando sentidos diversos.
uma metodologia e pedagogia em Artes Desse modo, sinto-me inserida no mun-
tendo como proposta entrelaçar escrita do. E ao compartilhar um recorte da mi-
acadêmica e a produção artística. nha história com outras mulheres na ofi-
Falar sobre questões de gênero e se- cina de bordados no Encontro, eu disse
xualidades dentro de âmbitos ligados a mais uma vez: eu existo! Talvez, ao com-
religiosidade é difícil, desafiador, e neces- partilhar nossas experiências/narrativas
sário. Podemos perpetuar exclusões, mas, poeticamente com outras pessoas seja
também, é possível criarmos cada vez mais também uma forma de dizer: eu existo!
espaços democráticos e inclusivos com po- Estamos demonstrando nosso desejo por
tencial para desconstruções de narrativas reconhecimento. Eu não sabia disso, ago-
consolidadas. Falar de uma forma crítica e ra sei. E sei, pois aprendi essa lição aqui.
reflexiva sobre questões de gênero e sexua- Uma comunidade singular com olhar
lidades em Conceição das Crioulas foi uma atento a invasores. Eles (as) sabem a im-
forma de discutir as separações de gênero, portância de estar junto, lutar junto. Eles
as opressões de sexualidades valorizando (as) sabem algo que não consegui apren-
uma diversidade de sujeitos que pensam der em quatro anos na universidade. Eles
de modo diferente e possuem narrativas (as) sabem que a “verdadeira liberdade
diversas, mas por vezes interligadas. As de um povo é poder contar sua própria
histórias se entrelaçaram estabelecendo história”, como tem pintado no banco da
conexões entre as participantes. A partir praça bem no centro da cidade.
desta experiência meu desejo em me empe- 20 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas.
nhar para que cada vez mais as narrativas
das “minorias” sejam valorizadas, respei-
tadas e legitimadas cresceu e vai durar.
Pausa III
240
TROCAS POÉTICAS / EDUCATIVAS
Pausa IV Pausa VI
Memória Fotográfica, Priscila Ferreira, 2017. Memória Fotográfica, Priscila Ferreira, 2017.
Cultivação
Pausa V Aqui todos (as) parecem reconhecer a
importância do conhecimento sobre suas
origens e do cultivo das mesmas. Cultivar.
Cultivarei essa palavra em mim. Esses dias
na Comunidade Quilombola Conceição
das Crioulas tenho cultivado em meu co-
ração a importância do cultivo. Essa lição
aprendi a um tempo atrás cultivando plan-
tinhas. Ou melhor, aprendi não cultivan-
do. Mas parecia haver esquecido. Imersa
em preocupações secundárias, fiz do meu
coração um relógio. Sempre num tempo
Memórias Fotográficas, Priscila Ferreira, 2017.
apressado, fui ficando sem ar, sufocando.
Deixei de lado a tarefa mais importante
da cultivação. Minha plantinha adoeceu,
adoecemos juntas. Parei, olhei para ela
morrendo, morrendo... assim, como eu.
Reguei-a quase sem esperança, mas com
muita fé. Estávamos juntas cultivando em
241
PRISCILA FERREIRA AGOSTINHO
242
ca contada ao longo de minha formação
Das periferias escolar, passando pela desconstrução do
urbanas ao sertão pensamento na vivência com movimen-
tos culturais nas periferias urbanas e, por
pernambucano: fim, a oportunidade de ressignificar, atra-
vés da escuta e partilha em Conceição das
(re)significando Crioulas, a importância dos territórios e
olhares na reminiscências negras quilombolas no
sertão pernambucano.
Comunidade palavras-chave:
Quilombola de quilombo; ancestralidade; identidade; terri-
tório; histórias e narrativas.
Conceição das
Zumbi, em paz com o passado e cons-
Crioulas ciente da vitamina de cada gesto por jus-
tiça no quilombo de Palmares, sabia que
STEFANY LOPES DE LIMA1 renasceria muitas vezes mais. (Allan
da Rosa - Zumbi assombra quem?)
Resumo
O quilombo dos Palmares, sem sombra
A presente narrativa tem por objetivo
de dúvidas, foi o primeiro e único de que
registrar algumas da principais reflexões
ouvi falar ao longo de toda minha forma-
e olhares acerca da vivência no “Encon-
ção, do ensino fundamental ao médio,
tro com as Artes, a Luta, os Saberes e os
nas escolas públicas da periferia de São
Sabores da Comunidade Quilombola de
Paulo. A resistência quilombola era uma
Conceição das Crioulas”, realizado em
pequena passagem, quase imperceptível,
julho de 2017. Proponho, como fio con-
próximo da ênfase que foi dada nos livros
dutor, aquilo que venho compreendendo
didáticos, tecendo uma única narrativa
e assimilando enquanto quilombo e he-
para a história do povo negro a partir
rança das africanidades brasileiras. Par- da escravidão. “Ainda é, nos dias atuais,
tindo da experiência de uma história úni- um dos materiais pedagógicos mais uti-
1 Licenciatura em Artes Visuais. Universidade Federal de
lizados pelos professores” e “em relação
Pernambuco (UFPE) à população negra, sua presença nesses
243
STEFANY LOPES DE LIMA
livros foi marcada pela estereotipia e cari- recia tão distante, repelida pelo que nos
catura” (SILVA, 2005). Alguns (poucos) foi contado como lugar de “negro escravo
professores me introduziram leituras fugido”. Afinal, ninguém quer ser cativo.
para além das obrigatórias. Uma curva Daí, uma das pontas do tecido perverso
na mão única dos currículos e conteúdos que adentra o imaginário individual e co-
oficiais, visto que, em sua maioria, “os letivo, desafiando a afirmação da identi-
professores, a quem é atribuída a ação de dade negra e, principalmente, negra-qui-
contemplar as diferenças culturais na sua lombola.
prática pedagógica, poderiam ter inter-
nalizado o senso comum da desigual-
dade” (SILVA, 2005).
A tomada de consciência sobre a he-
rança histórico cultural afro-brasileira
e o processo de afirmação da identidade
negra surgiram, por fim, da vivência nos
movimentos culturais e bibliotecas comu-
nitárias, os mocambos da zona sul paulis-
tana. Na efervescência das noites de roda,
na comunicação ancestral do tambu e nos
saraus, onde as poesias versavam que “a
periferia é um quilombo”2 e que “Zumbi
somos nós”3. Ali, ao redor da fogueira que
aquecia corpo e tambor, surgiam as faís- Oficina d e d esenho n a C asa F rancisca F erreira,
Conceição d as C rioulas. 2 017. Arquivo p essoal.
cas do pensamento, as inquietações sobre
o que era de fato um quilombo e o que tí-
nhamos a ver com uma realidade que pa-
244
DAS PERIFERIAS URBANAS AO SERTÃO PERNAMBUCANO
245
STEFANY LOPES DE LIMA
Referências bibliográficas
ANTUNES, Marta de Oliveira. A terra que volta:
gerindo territórios, memórias, conflitos e
normas em Conceição das Crioulas. Tese
(doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. Rio de Janeiro: UFRJ,
2016. 518p.
MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala: quilombos,
insurreições, guerrilhas. Porto Alegre: Merca-
do Aberto, 1988. 304p.
246
objetivo é analisar o ato de deslocamento
Experiência como prática estética, por meio do meu
estética em registro visual, da coleta de materiais (or-
gânicos ou impressos) e da produção de
Conceição das fotografias digitais, seguindo o método
de coletar, classificar, ordenar e montar
Crioulas, PE1 “imagens/documentos” de viagem, capa-
zes de garantir a continuidade da minha
ROBSON XAVIER DA COSTA2 memória visual.
Resumo palavras-chave:
Neste ensaio abordo os conceitos de Flâneur. Walkscape. Wayfinding. Estética.
Flâneur (WHITE, 2001), Walkscape (CA- Conceição das Crioulas.
RERI, 2013) e Wayfinding (HUNTER,
2010) como parte da minha experiência Introdução
estética, na construção do meu proces-
so de criação em artes visuais, a partir
de experiências estéticas vivenciadas
como artista/investigador/professor ao
me deslocar entre João Pessoa, Paraíba e
Conceição das Crioulas, Pernambuco, no
período de 20 a 22 de Julho de 2017. Meu
Robson Xavier. Série portas do mundo. Janelas e portas
em Conceição das Crioulas, 2017.
1 Ensaio desenvolvido durante a mobilidade entre João
Pessoa, Paraíba e Conceição das Crioulas, Pernambuco,
entre os dias de 20 a 22 de Julho de 2017, como membro O conceito de orientação espacial re-
da equipe de pesquisadores e estudantes da UFPB. Este
ensaio foi escrito na primeira pessoa quando descreve a
monta aos anos 1960, a partir da teoria
experiência individual do autor e na terceira pessoa quando de Kevin Lynch (1918 – 1984), definida
trata da experiência coletiva partilhada pela equipe técnica da
UFPB.
no livro “a imagem da cidade – 1960”. Pos-
2 Pós Doutorando pelo PGEHA MAC/USP (em curso); teriormente desenvolvida, por Paul Artur
Doutor em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU UFRN); (1924 – 2001) e Romedi Passini (1939
Mestre em História (PPGH UFPB); especialista em Educação
Especial (UFPB), Sociologia (UFPB/CEFET) e Educação - ), nos livros “wayfinding in architecture –
e TICs (UFPB) e Licenciado em Artes Plásticas (UFPB).
Coordenador do PPGAV UFPB. Email: robsonxavierufpb@
1984” e “wayfinding, people, signs and archi-
gmail.com. tecture – 1992”, desde então popularizada
247
ROBSON XAVIER DA COSTA
248
EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS
249
ROBSON XAVIER DA COSTA
a serem percorridos e das coisas que vía- região. Os relevos das pedras se asseme-
mos ao largo da estrada. Após uma difícil lham as carcaças, volumes deitados na
semana de trabalho, com muitas ativi- paisagem seca.
dades burocráticas e acadêmicas, deixei Em torno das 16h cheguei com a equipe
meus afazeres cotidianos para participar a Salgueiro, cidade do Sertão pernambu-
dessa partilha de saberes e sabores. cano, com cerca de 59.400 habitantes,
A primeira parada foi na cidade de São com Índice de Desenvolvimento Humano
João do Cariri, Paraíba, para abastecer o (IDH) de 0,669. O perímetro registrado
carro, após uma longa trajetória de pelo entre João Pessoa e Salgueiro foi de 7h e
menos 4h até parar na cidade de Custó- 40m, 559 km. Minha primeira impres-
dia, para almoço. Essa foi a primeira ex- são foi de uma cidade pacata, com algum
periência gastronômica do trajeto, o chei- movimento comercial em torno das ruas
ro de churrasco inundava as margens da centrais, porém com muitos restaurantes,
rodovia, embora os sabores tenham sido lanchonetes, farmácias e muitos bares em
frustrantes, comi rapidamente para se- todos os cantos da cidade, fui informado
guir viagem com a equipe. que a cidade está situada no perímetro do
Ao longo do trajeto fiquei impacta- tráfico de drogas de Pernambuco e apre-
do com os inselbergs4 entre as cidades de senta altos índices de violência.
Sumé e Serra Branca, os lajeiros esparsos Fui com a equipe da UFPB ao hotel
na paisagem da caatinga remetem aos Polo, acomodação simples, bem no cen-
meus tempos de criança no Sertão das tro da cidade. Ao lado do hotel, um bar
Espinharas, no município de Patos, Pa- oferecia churrasquinho e petiscos, onde
raíba. Os lajeiros me fascinam, eles fazem sentamos para revisar com a equipe as
parte do meu imaginário infantil, quando atividades planejadas para serem de-
criança sonhava escalando essas pedras, senvolvidas em Conceição das Crioulas,
aparentemente inacessíveis. Observei sentindo os cheiros e sabores da cidade.
carcaças de animais mortos ao longo da Sede e calor, a temperatura com pouca
estada, rastros da seca prolongada na umidade fez toda equipe buscar constan-
temente água e um lugar fresco, porém foi
4 “Inselberg é o termo utilizado para caracterizar relevos impossível ficar em um quarto de hotel,
residuais que, podendo ser sedimentares, salientam-se em
uma planície (pediplano) em paisagem árida ou semi-árida. quando estamos em uma cidade desco-
São originados de um intenso processo erosivo típico de
ambientes áridos: a erosão paralela”. Fonte: geografianovest.
nhecida a curiosidade é estética fala mais
blogspot.com/2014/03/inselberg_6409.html. alto, sai com a equipe para conhecer o
250
EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS
251
ROBSON XAVIER DA COSTA
dades vizinhas. Mais tarde, em 1802, as oficinas, que foram realizadas durante
crioulas adquiriram a escritura de suas uma semana, todos e todas giravam em
terras (CARVALHO, 2016, p. 3).
torno da partilha dos resultados.
Poucos minutos após a saída da cidade
o carro entrou em uma estrada de terra,
em obras, materiais de construção se mis-
turavam aos galhos secos, aos cactos, as
cabras, bodes, cabritos, jumentos e as
pedras da região. Conceição das Crioulas
foi a primeira comunidade quilombola a
ser reconhecida no estado de Pernambu-
co, a primeira a receber Escola Pública de
Ensino Fundamental e Médio na comu-
nidade com professores quilombolas, na
região é uma referência.
252
EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS
253
ROBSON XAVIER DA COSTA
tribuição à comunidade. Dona Dina nos sala pelos seus netos, imagens de man-
recebeu na sala da sua casa, estava adoen- gás, desenhos em perspectiva da igreja
tada, foi uma longa conversa sobre os mo- da comunidade, frases soltas, ao lado
radores mais antigos, sobre as ancestrais, de quadros com imagens de passagens
sobre a sobrevivência na comunidade, as da bíblia e cartazes, um ecletismo visual
conquistas, a escola, a associação, etc. intenso, influências da TV e da internet,
misturadas com as crenças comunitárias.
254
EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS
Considerações
Ao final do dia, voltamos a Salgueiro,
mais uma noite no hotel, mais uma par-
tilha, roda de conversas, dividimos as
experiências e vivências de um dia tão
intenso, descobertas, sentimentos, sabo-
res, cheiros, texturas, imagens, conver-
sas mil, aprendi muito com a resistência
dessa comunidade, com as suas mulheres
guerreiras, com sua história, suas artes, Trajeto de volta – Conceição das Crioulas/Salgueiro e
Salgueiro/João Pessoa. Fonte: www.google.com.br/maps.
seus saberes, seus sabores e suas lutas.
Ao deambular pela comunidade fui
Flâneur (WHITE, 2001), estabelecendo
conversas e registrando antropologica-
mente as imagens e falas dos moradores
de Conceição das Crioulas durante um
dia, utilizei Walkscape (CARERI, 2013) ao
caminhar em grupo por diversos recantos
da comunidade, estabelecendo relações
estéticas e visuais e o Wayfinding (HUN-
Construção na Comunidade Quilombola.
TER, 2010) ao traçar rotas, estabelecer
Foto: Robson Xavier, 2017. caminhos a seguir e registrar as referên-
cias visuais.
A experiência de ser Flâneur em pleno
Sertão nordestino, caminhar coletiva-
mente entre rotas e pessoas, conhecer
realidades e registrar etnograficamente
os trajetos na comunidade, faz parte do
meu processo de criação visual.
Sempre gostei de caminhar para pensar,
criar e resolver meus problemas, seguir
Porta na Comunidade Quilombola.
uma rota, manter-me como observador,
Série Portas do Mundo. Foto: Robson Xavier, 2017. estar em processo e seguir em frente, são
255
ROBSON XAVIER DA COSTA
ações que fazem parte da minha vivência COSTA, Robson Xavier da. Percepção ambiental
introspectiva e estimula o meu potencial em museus paisagens de arte contemporânea: a
legibilidade do Inhotim/Brasil e Serralves/
criativo e permitem ampliar o meu reper-
Portugal avaliada pelo público/visitante. Tese
tório de imagens, histórias e memórias. de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo.
No dia 22 de julho de 2017, às 8h, re- Orientadora Profª. Drª. Gleice Elali. Natal,
tornei com a equipe da UFPB para João RN, Brasil: PPGAU, 2014.
Pessoa, revivendo ao longo do caminho HUNTER, Susan. Architectural Wayfinding. In.:
todas as imagens, sons, cheiros e sensa- Design Resources: Architectural Wayfinding.
ções, com uma nova roupagem, agora le- Búfalo – EUA: Center for Inclusive Design
and Environmental Acess. School of Archi-
vava o respeito aos saberes, sabores, artes
tecture abd Plaining. 2010.
e resistências políticas da Comunidade
WHITE, Edmund. O Flâneur: um passeio pelos
Quilombola de Conceição das Crioulas. paradoxos de Paris. Tradução: Reinaldo Mo-
Às 15h40m ao chegar à cidade de João rais. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
Pessoa vislumbrei possibilidades de ru-
minar essa experiência estética, como
matéria prima para continuar produzin-
do outras imagens.
Referências Bibliográficas
AQCC – Associação Quilombola de Conceição
das Crioulas. Nova cartografia social dos povos
e comunidades tradicionais do Brasil – Qui-
lombolas de Conceição das Crioulas – Sal-
gueiro - Pernambuco. Disponível em: https://
pt.slideshare.net/rosangelanascimentozo/car-
tografia-de-conceico-das-crioulas. Acesso em:
02.10.2017.
CARERI, Francesco. Walkscapes: o Caminhar
Como Prática Estética. Cidade e editora,
2012.
CARVALHO, Maria Letícia de Alvarenga.
Quilombo da Conceição das Crioulas. Belo
Horizonte: FAFICH, 2006. Disponível em:
http://www.incra.gov.br/sites/default/files/con-
ceicao_das_crioulas-pe_26-10-16_mio-
lo_0.pdf. Acesso em: 02.10.2017.
256
soas foram alguns dos deslumbramentos
O Livro que o Brasil me deu, que trouxe comigo
para Portugal e guardarei para sempre no
MARIA PORTELA1 coração.
Durante essa viagem o nó na barriga ia
Esta será apenas mais uma reflexão aumentando tanto a mim como a Juliana,
sobre a comunidade de Conceição das arrisco dizer, a cada momento que nos
Crioulas, a qual tive a sorte e privilégio de aproximávamos de Conceição. Uma sen-
visitar como membro integrante do gru- sação de responsabilidade que nasce com
po Identidades, como web designer com a colocação numa posição de educador.
a minha colega e companheira de viagem, Todos estes anseios se acalmaram quan-
Juliana. Por mais que reflita em relação ao do chegámos a Conceição das Crioulas,
que passou durante esta semana em que e vimos a alegria e simplicidade com que
nos encontrámos todos pisando o mes- fomos recebidas.
mo solo de Conceição, termino sempre as O conforto que nos trouxe o abraço de
minhas reflexões com mais perguntas do Isinha quando nos ofereceu a sua casa e
que respostas, e a certeza de ser um ques- bolo pela manhã. A inclusão e a receção
tionamento interminável, esse da busca de braços abertos no espaço de refeição,
pela própria identidade. onde nos reuníamos e fazíamos fila para
Desloquei-me até Conceição das Criou- ser servidos pelas cozinheiras que nos
las para proceder ao desenvolvimento de alimentavam. Todos estes rituais pare-
uma oficina conjunta com membros da ciam fazer muito sentido, ter a sua ordem
comunidade, e partilhar as vivências e ex- própria e seguir uma lógica assente na
periências de uma Comunidade tão que- gratidão e respeito ao próximo. Se há coi-
rida ao grupo Identidades. Partimos de sa que a Comunidade de Conceição das
S. Paulo para uma viagem que durou uma Crioulas nos pode ensinar é sobre este
semana, na qual tive a oportunidade de sentido de gratidão. De pertença e de his-
conhecer um bocadinho do imenso Bra- tória. De consciência. Algumas das coisas
sil, e perceber algumas características que que também tivemos o prazer de aprender
lhe são tão singulares. A fruta, as cores, com os nossos alunos, Amando, Alecie,
o clima, a alegria e simplicidade das pes- Aylan, Denilson e Raysla. Que de uma
1 Investigadora Multimédia, ID_CAI, i2ADS. Mestranda na
forma excecional nos “aturaram” a falar-
Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. -lhes sobre essa linguagem que falamos
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MARIA PORTELA
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É assim que começamos a ser parte dela,
Conceição das com a aurora em crescendo e que depois
Crioulas se abre em sol, cada vez mais dentro de
nós e que depois, lá muito depois, se de-
Vim aqui para clina, preguiçosamente, submergindo,
por detrás do outro lado do horizonte,
abraçar amigos que no desamparinho sertanejo é quase
dor e alimento.
LEÃO LOPES1 Crianças, muitas crianças, não se per-
cebe quem de entre todos são os pais.
Para o Paiva,
Como no Planalto, são de todos, inclusi-
Conceição mulher, quase “sitiada” ve minhas, eu que acabo de chegar... para
quase perdida no imenso sertão brasilei- abraçar amigos.
ro, quase selvagem, quase inocente; que Paulo. Toda a comunidade que se preze
resgata da memória funda e antiga sua tem o seu Paulo. Bem adulto, deambula
força de ser e de existir no meio de um por aí brincando com uma vara. Canta
emara- nhado histórico, doloroso, social em alto e bom som por largos períodos
e culturalmente complexo. do dia. Não se compreende a fala de seu
Conceição templo, sem portas nem canto. Ou aqui o canto não precisa de fala
janelas (não precisa) de evangélicos cân- que se compreenda?
ticos no silêncio do casa-rio adormecido, O carro-som berra em altos decibéis,
embalado pela leve e fresca brisa que per- todo o dia, sem parar. Parece que nin-
passa a catinga. guém se incomoda por isso. Mas incomo-
Conceição um lugar, onde o acordar é da. É a forma do vizinho se achar parte,
como se deveria acordar em todo o lado. perturbando. É assim. Em todas as comu-
Com a alma leve, planando o raiar do sol, nidades há vizinhos assim.
difuso, emergindo, timidamente, detrás
do horizonte, longínquo, desconhecido. Conceição das Crioulas
Que nos entranha corpo adentro e come- Deambulações
ça, serenamente, a alumiar-nos o dia que Planalto Norte, ilha de Santo Antão.
desperta, devagarinho, ao ritmo da gente. Fui visitar cabras e pastores quanto para
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LEÃO LOPES
no Nabime, foi para visitar pastores. Para ... entretanto, cuidemos das crianças,
aqui, Conceição, vim para abraçar ami- façamos a festa, sempre, quando recebe-
gos. E agora dou comigo a perguntar o mos amigos. Falemos de Arte, de Litera-
que trouxemos para tomar parte desta co- tura, de Música, de tudo. Afinal de que
munidade. Conceição das Crioulas. Para saberemos falar? E aqui é o lugar certo
que serve aqui o conhecimento e novas de para tudo isso. Para lhes perscrutar o
outras bandas às urgentes demandas de sentido.
realização desta gente? Como é que que Aqui a vida é um risco. E tem ainda
se articulam as nossas práticas e supos- mais sentido!
tas convicções (tantas) com a vida das
pessoas, com suas inexoráveis reivindica-
ções: terra, água, justiça, educação...?
Conceição das Crioulas. Aqui a vida é
risco, o risco é desenho e futuro aberto. E
é aqui, exactamente aqui, em Conceição
das Crioulas que todos somos interpela-
dos a assumir esse risco. Em pleno sertão
da vida. Aqui não se deveria falar de Arte.
Aqui não se deveria pretender ensinar
nada. Aqui, não há remédio, só dá para
aprender: resiliência e resistência. E, por
fim, pegar em armas e declarar luta de “li-
bertação armada como acto de cultura”...
e libertar a terra. E resgatar de vez Con-
ceição. Para as Crioulas.
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