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Partilha de Reflexões sobre as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores


da Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas

Edição, Porto, 2017.


i2ADS | Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
AQCC | Associação Quilombola de Conceição das Crioulas

Editor
josé carlos de paiva
i2ADS | Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade

Coordenação Editorial
givânia silva
AQCC | Associação Quilombola de Conceição das Crioulas

Comissão Editorial
fabiana vencezlau, AQCC
felipe calheiros, i2ADS
maria diva rodrigues, AQCC
márcia jucilene do nascimento, AQCC
maria da penha e silva, AQCC
rita raínho, i2ADS

Design
pedro brochado
i2ADS | Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade

Impressão
Empresa Diário do Minho, Lda.

ISBN
978-989-99839-7-7

Depósito Legal
438048/18

2
16 - 2 4 J U L H O 2 0 17
-
ENCONTRO COM AS ARTES,
A LUTA, OS SABERES
E OS SABORES DA COMUNIDADE
QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO
DAS CRIOUL AS
Conceição das Crioulas - Salgueiro, PE - BRASIL

ENTIDADES PARTICIPANTES
BRASIL, ESTADO DE PERNAMBUCO EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA
• AQCC
Associação Quilombola de Conceição das Crioulas
• Escola Municipal José Neu de Carvalho
• Escola Municipal Bevenuto Simão de Oliveira OFICINAS
• Escola Municipal Professor José Mendes
• Escola Quilombola Rosa Doralina Mendes
• Comissões da AQCC, Comunidade Interessada,
DESENHO
Artesãs e Crioulas Vídeo
• UFPE
CERÂMICA
Universidade Federal de Pernambuco
Departamento e Teoria da Arte e Expressão Artística
VÍDEO
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
• UFRPE TÉCNICAS DE IMPRESSÃO
Universidade Federal Rural de Pernambuco
• FACHUSC TECNOLOGIAS AFRICANAS
WEBDESIGN
Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central
• IF
Instituto Federal de Salgueiro
• Escola Municipal Quilombola Águas do Velho Chico (Orocó) COMUNICAÇÃO E EDIÇÃO
BRASIL, ESTADO DO CEARÁ
• URCA
MÚSICA E DANÇA
Universidade Regional do Cariri - Centro de Artes
• UECE
Universidade Estadual do Ceará
CED - Centro de Educação FORMAÇÃO DE PROFESSORES
• UNILAB
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira - Grupo de Pesquisa Educação, Cultura
e Subjetividades APRESENTAÇÃO DE TRABALHOSACADÉMICOS:
BRASIL, ESTADO DA PARAÍBA
• UFPB
TESES E DISSERTAÇÕES
Universidade Federal da Paraíba Programa Associado
de Pós Graduação em Artes Visuais UFPB/UFPE

BRASIL, DISTRITO FEDERAL


ANIVERSÁRIO DA AQCC
• UnB
Universidade de Brasília (DIA 22)
Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos
e Terras Tradicionais - MESPT

BRASIL, ESTADO DA BAHIA BANDA DE PÍFANO E O TRANCELIM


• UFRB
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

CABO VERDE, MINDELO


• M_EIA
APRESENTAÇÃO DE ATIVIDADES
Instituto Universitário de Artes
e Tecnologia, Cabo Verde
DESENVOLVIDAS PELA COMISSÃO DA AQCC
PORTUGAL, PORTO
• FBAUP
Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Portugal TROCA DE SABORES
COMIDA TÍPICA DA COMUNIDADE
i2ADS, Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade;
movimento intercultural IDENTIDADES

PREFEITURA
ORGANIZAÇÃO: APOIO: SALGUEIRO

3
4
ÍNDICE

07 eduardo fernandes de araújo 75 valderci maria da silva oliveira


Apresentação O Encontro, foi bom, mas quero
mais...
11 givânia maria da silva
Em busca de outras formas de 79 denilson rosa
construir conhecimentos Quilombo tecendo o amanhã

19 madalena zaccara 85 georgina helena lima nunes


Mulheres & Lutas & Olhares Conceição de Crioulas: fascínio,
Relacionais encontro, saber e potência para
(re) existir!
31 josé carlos de paiva
Esforço de aprendizagem com 91 edite colares, jeannette
as experiências vivenciadas com filomeno pouchain ramos,
a Comunidade Quilombola de ana carolina lima sales
Conceição das Crioulas, Brasil-PE Encontro com o corpo, a dança
e a Comunidade Quilombola de
53 felipe peres calheiros Conceição das Crioulas
Saber da resistência, sabor da
resistência 105 juliana polippo
Vereda
61 márcia nascimento, diva
rodrigues 115 leandro garcia, maria helena
O encontro, a parceria, as alegrias, os magalhães, márcio soares dos
saberes e os fazeres santos, robson xavier da costa
Vivências cartografadas em Conceição
67 álisson pereira flori, carlene das Crioulas
batista cavalcante, fábio josé
rodrigues da costa, francisco 121 milenna gomes
charles lessa araújo filho, Angu - comida de casa e identidade
fernanda jayne, jaqueline alimentar quilombola
barbosa rodrigues, maria
claudineide alves macêdo, 127 lizandra santos
suyane oliveira santos, suzana Memórias de dentro de casa:
carneiro, wandeállyson lembranças sob o teto de Conceição
dourado landim santos das Crioulas
Encontro com as artes, a luta, os
saberes e os sabores da Comunidade 135 luana andrade
Quilombola de Conceição das A experiência do encontro e outros
Crioulas dispositivos de emergência

73 maria penha da silva


Compartilhando conhecimentos

5
ÍNDICE

149 luciana borre, luana andrade, 219 cristiane de assis portela,


maria betânia e silva mônica celeida rabelo
Bordando - muitos - nós e pontos nogueira
isolados: investimentos afetivos para/ Sobre afetos, aprendizagem mútua
na escuta do outro e fagulhas contra-hegemônicas:
interlocuções entre a Universidade de
169 maria betânia e silva Brasília e Conceição das Crioulas-PE
Memórias cartográficas na
Comunidade Quilombola de 227 isabeli santiago, luísa
Conceição das Crioulas magalhães, mariana delgado
Tankalé
179 jocicleide valdeci de oliveira
Compartilhando oportunidades 231 celcia marcelina de oliveira
O que a Comunidade Quilombola de
181 artenaldo miguel de barros Conceição das Crioulas viu e ouviu
silva, cristiany lopes durante o “Encontro com as Artes, a
fernandes, tainara oliveira Luta, os Saberes e os Sabores”
aguiar
Aprendendo e Ensinando na Oficina 233 priscila ferreira agostinho
de Vídeo Trocas poéticas / educativas no
Encontro com as Artes, a Luta, os
185 rita raínho Saberes e os Sabores da Comunidade
O fim do começo. Aprender com Quilombola de Conceição das
o Crioulas Vídeo na discussão Crioulas
do audiovisual comprometido,
o feminismo e a Comunidade 243 stefany lopes de lima
Quilombola Das periferias urbanas ao sertão
pernambucano: (re)significando
197 luísa magalhães olhares na Comunidade Quilombola
Sobre a partilha, as trocas e os de Conceição das Crioulas
deslocamentos no Encontro em
Conceição das Crioulas 247 robson xavier da costa
Experiência estética em Conceição das
207 maria das vitórias negreiros Crioulas, PE
do amaral, fábio josé
rodrigues da costa 257 maria portela
Arte, gênero e sexualidade na Escola O Livro
Estadual Quilombola Professora Rosa
Doralina Mendes 259 leão lopes
Vim aqui para abraçar amigos /
Deambulações

6
Apresentação
EDUARDO FERNANDES DE ARAÚJO1

“(...) propor a descolonização material e epistemológica, é importante, na nossa perspectiva,


trazer para o centro do debate a descolonização da subjetividade e da afetividade,
historicamente reprimida, ignorada, considerada de menor importância ou mesmo ausente,
tendo contribuído de forma determinante para negar ao afrodescendente a condição de ser
humano e, consequentemente, os seus direitos humanos e civis”. (Luciana Falcão Lessa,
Construção, subjetividade e inclusão social em contextos de marginalidade: a Irmandade da
Boa Morte de São Gonçalo do Campo. In: Encontro e desencontros de lá e de cá do Atlântico.
Mulheres Africanas e Afro-brasileiras em perspectiva de gênero. Godinho, Furtado (Org.),
Salvador: EDUFBA, 2017.)

Gostaria de ser poeta, ainda não sou, fui estudante, ainda sou, de tanto caminhar,
virei advogado popular, tento ser um pouco pesquisador, daqueles que pensa meio
“penso” que cansa de tanto pensar. Dizem, que sou educador ou professor, um dia
fui chamado de “Fera”, no outro dia, a mesma pessoa me chamou de “Doutor”, em
Conceição das Crioulas, já fui “Doutor de chinelas!”.
Um dia (ou noite), terei sido um pouco de cada momento que me marcou, já sou,
pois, sou um daqueles que nasce depois de vivo, sendo aquele que já foi, aquele que é e
ainda tornando-me o que serei.
Poucas certezas se tem sobre essas questões todas de ser, de “soul” e do que foi ou
será, mas o pouco, desse muito pouco que sei, do que sou, é que “(...) vou sendo como
posso, jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos, e pela lei natural dos
encontros, eu deixo e recebo um tanto, e passo aos olhos nus ou vestidos de lunetas, passado,
presente, participo sendo...(Mistério do Planeta, Novos Baianos, 1972)”, atravessado, (re)
nascido ou (re)encontrado por aquelas bandas de Conceição das Crioulas, talvez
assim, devidamente apresentado sem as formalidades de notinhas de rodapé, eu
possa apresentar a Partilha sobre as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da Comunidade

1 Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), prestou assessoria jurídica
popular à Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (2004 – 2008), fundador e último diretor da Dignitatis –
Assessoria Técnica Popular (2002 – 2015). Defendeu a dissertação: “Agostinha- Por três léguas em quadra. A temática
quilombola em uma perspectiva global-local.” Atualmente está doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra, tentando construir uma tese a partir/com da mobilização de direitos em Conceição das Crioulas.

7
EDUARDO FERNANDES DE ARAÚJO

Quilombola de Conceição das Crioulas.


Ah (...), Conceição das Crioulas, são Conceições das Crioulas, aqui, neste livro, se
tem um pouco do muito, o que será lido nos textos, artigos e imagens são territórios
imaginários, palpáveis, degustáveis e incansáveis da Partilha sobre as Artes, a Luta, os
Saberes e os Sabores da Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas.
Há Conceição das Crioulas, comunidade quilombola, sertão central do Estado de
Pernambuco, nordeste, Brasil, América do Sul, América Latina, Afro-ameríndia,
Vilas, Sítios, Roças e (re)fazendas, seus tempos-territórios Em busca de outras
formas de construir conhecimentos (Givânia Maria), em um Esforço de aprendizagem
com as experiências vivenciadas com a Comunidade de Conceição das Crioulas, Brasil, PE
(José Carlos Paiva), não esqueça de Saber da Resistência, Sabor da Resistência (Felipe
Calheiros), e tenha um Encontro com Artes, a Luta, os Saberes, e os Sabores da Comunidade
de Conceição das Crioulas (Flori, et al.), a partir destes textos, começa o caminho para
começar a ser/entender e perceber Conceição das Crioulas.
Na Conceição das Crioulas, Vila União ou Centro, as escolas, a igreja, as praças, a
casa da comunidade, a Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC), o
mercado, a lavandeira coletiva, o açude, a Fazenda Paus brancos, as aulas, a Fazenda
Velha, o Boqueirão e o Sítio Mulungu em seus espaços-territórios, estão Compartilhando
Conhecimentos (Maria da Penha), enquanto Quilombo tecendo o amanhã (Denilson
Rosa), de lá o Encontro com o corpo, a dança e a comunidade de Conceição das Crioulas
(Colares, et al.) se torna A Vereda: da metrópole ao quilombo (Juliana Polippo), enquanto
as Vivências cartografadas em Conceição das Crioulas (Garcia, et. al.) se constituem em
Memórias dentro de Casa (Lizandra Santos) ou Memórias cartográficas na comunidade
quilombola de Conceição das Crioulas (Maria Betânia e Silva).
Lá em Conceição das Crioulas, Marias, Joãos, Penha, Antônios, Agostinhas,
Barnabé, Franciscas, Moisés, Ritas, Vicentes, Givas, Márcios, Zélias, “Cem”,
Márcias, Ticos, Lourdinhas, Tutas, Célcias, Adalmir, Fabianas, Edimilsons, Cidas
“Lia”, Andrelinos, Aninhas, todxs Malunguinhxs, Dandaras, Zumbis, Iandaras,
em trancelins históricos-territoriais dispostxs a entender O fim do começo, aprender
com Crioulas Vídeo na discussão audiovisual comprometido, o feminismo e a comunidade
quilombola (Rita Raínho), conversar sobre a Arte, Gênero e Sexualidade na Escola Estadual
Quilombola Professora Rosa Doralinda Mendes (Maria das Vitórias Negreiros do Amaral
e Fábio José Rodrigues Costa), passeando Sobre afetos, aprendizagem mútua e fagulhas

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APRESENTAÇÃO

contra hegemônicas: interlocuções entre a Universidade de Brasília e Conceição das Crioulas


(Cristiane de Assis Portela e Mônica Celeida Rabelo Nogueira), já perto do final, deixar
que as Trocas poéticas/ educativas no encontro com artes, a luta, os saberes e os sabores da
comunidade quilombola de Conceição das Crioulas (Priscila Ferreira Agostinho), assim
como que as Mulheres & Lutas & Olhares Relacionais (Madalena Zaccara), se apresentem
enquanto Experiências estéticas em Conceição das Crioulas (Robson Xavier da Costa).
Vá à Conceição das Crioulas, “abre a porta e a janela, e vem ver o sol nascer ... aí, aí ,
aí saudade, não venha me matar, eu ia lhe chamar ...” (Preta pretinha, Novos Baianos,
1972), através das reflexões multidisciplinares ou indisciplinares para sentir o
patrimônio material e imaterial, brincar na educação quilombola e “crioula”, dançar
com as mulheres e os homens, trabalhar nos artesanatos e na agricultura orgânica,
depois, uma imbuzada para refrescar, um manguzá para fortalece e Angu - Comida de
casa e identidade alimentar quilombola (Milenna Gomes) para sair sabendo e Bordando
muitos nós e pontos isolados: Investimentos afetivos para/na escuta do outro (Borre, et. al),
constituindo lá em Conceição de Crioulas: fascínio, encontro, saber e potência para (re)
existir! (Georgina Nunes).
Dá de muito em Conceição das Crioulas sábias, mestras, doutoras, educadoras,
professoras, agricultoras, artesãs, associadas, benzedeiras, parteiras, guerreiras,
cozinheiras, diretoras, pedagogas, futebolistas, coordenadoras que em seus saberes/
fazeres/sabores soam enquanto “pífanos-territoriais” que digital/virtual(mente)
surgem na crioulas vídeo, perto de TANKALÉ: Contar para todo mundo (Mariana
Delgado, Luísa Magalhães e Isabeli Santiago), realizando, Aprendendo e Ensinando na
Oficina de Vídeo (Tainara Oliveira Aguiar), sem esquecer a Juventude conectada: abraços,
beijos, olhares, produção, despedidas e reencontros verdadeiros (Jocicleide “Keka” Valdeci
de Oliveira).

“(...) para transmutar trago meus tambores, histórias e amores, com os ancestrais girando
no ar, semente que brota cresce, vigora e fortifica, e recomeça sua trajetória, o presente mais
à frente é nossa memória (...) dança, nessa ciranda de dimensões interconectadas, presente,
passado, futuro, é, costumo achar o que procuro, futuro, presente, passado, acredite, tem
sempre um guia do seu lado , passado, futuro, presente, xi...passado, futuro, presente, mizifi,
acredite no que vê e mais ainda no que sente.” (No ar (Convocação), BNegão & Seletores de
Frequência,2015).

9
EDUARDO FERNANDES DE ARAÚJO

Conceição das Crioulas, Ó Pá! Boas leituras, aventuras e gostosuras que expandem
as mentes-territórios e as Identidades, conquistam os corpos-territórios, fazem lutas e
lutos, alegrias, desafios e tristezas, assim como essa apresentação “fora de ordem”, é
a vida que segue entre os passados, os presentes e os futuros que são A experiência do
encontro e outros dispositivos de emergência (Luana Andrade Borre), permitindo a união
Das periferias urbanas ao sertão pernambucano: (re)significando olhares na Comunidade
Quilombola de Conceição das Crioulas (Stefany Lopes de Lima), alimentando-se Sobre
a partilha, as trocas e os deslocamentos no Encontro em Conceição das Crioulas (Luísa
Magalhães), para que no final se tenha O Livro (Maria Portela), para que afinal de
contas, seja um contínuo por vir para abraçar xs amigxs, entre eles o Paiva, cozinhando
lá em Conceição das Crioulas (Leão Lopes).

Recife, 08 de fevereiro de 2018 , o dia da vitória quilombola no STF.

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ensino superior, a AQCC e suas comis-
Em busca de sões internas, o Crioulas Vídeo, escolas
outras formas públicas da educação básica e centenas
de estudantes das escolas quilombolas
de construir do território de Conceição das Crioulas
- Salgueiro (PE) e do território Águas do
conhecimentos Velho Chico - Orocó (PE) durante uma
semana3. Nesse período o encontro, não
GIVÂNIA MARIA DA SILVA1
apenas promoveu o encontro de mundos
diferentes, mas, sobretudo, fortaleceu
Este artigo, busca de forma resumida
parcerias, construiu estratégias de luta
registrar, refletir e compartilhar a ex-
em defesa dos direitos quilombolas, da
periência do primeiro encontro com as
artes, a luta, os saberes e os sabores da educação e buscou construir outras me-
comunidade quilombola de Conceição todologias, além de desconstruir parte
das Crioulas, Salgueiro/PE, realizado desses mundos (comunidade acadêmica
no período de 16 a 24 de julho de 2017. e comunidade quilombola) que se encon-
A iniciativa nasce do diálogo do quilom- traram naquele período e apontou para
bo de Conceição das Crioulas por meio outros caminhos e formas de construir,
da Associação Quilombola de Conceição (des) construir e (re) construir conheci-
das Crioulas - AQCC e do Movimento mentos, muitas vezes naturalizados de
Intercultural Identidades (Portugal), da forma hegemônica. Tentarei de forma
Faculdade de Belas Artes da Universida- resumida tratar desse encontro na espe-
de do Porto. Com o objetivo de reunir rança de que a experiência ali vivenciada
comunidades quilombolas, instituições
públicas e privadas de ensino da educa- Universidade Federal da Paraíba, Universidade de Brasília-
MESPT, Instituto Universitário de Artes e Tecnologia-
ção básica e superior, para trocar saberes. Cabo Verde, Faculdade de Ciências Humanas do Sertão
O encontro reuniu 102 instituições de Central(PE), Instituto Federal-Salgueiro.
3 Escola Municipal Quilombola José Néu de Carvalho –
Estudantes professores e professoras; Escola Municipal
1 Mestre em políticas públicas e gestão da educação pela Quilombola Bevenuto Simão de Oliveira – Estudantes,
Universidade de Brasília (2010-2012) e doutoranda em professores e professoras; Escola Municipal Quilombola
Sociologia na mesma Universidade (2017-2020). Professor José Mendes – Estudantes, professores e
2 Universidade Federal de Pernambuco e Universidade professoras; Escola Estadual Quilombola Rosa Doralina
Federal Rural de Pernambuco, Universidade Regional do Mendes – Estudantes, professores e professoras; Comissões
Cariri/CE, Universidade Estadual do Ceará, Universidade da AQCC; Comunidade Interessada; Artesãs e Crioulas
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasiliera, Vídeo.

11
GIVÂNIA MARIA DA SILVA

possa contagiar e fomentar outros mo- própria pedagogia.


mentos que nem precisam ser iguais a Para Milton Santos (2009, p.112), “os
esse, mas, precisam, sobretudo, existir e lugares são, pois, o mundo, que eles re-
produzir suas próprias metodologias. produzem de modos específicos, indivi-
duais, diversos. Eles são singulares, mas
Introdução são também globais, manifestações da
A dicotomia entre os saberes acadêmi- totalidade-mundo, da qual são formas
cos e os tradicionais oriundos de outras particulares”4. E foi nesse terreno diverso
origens tem produzido e reproduzido e específico, individual e singular, local e
distanciamentos que muitas vezes tem global que o primeiro encontro com as ar-
fomentado silêncios e invisibilidades aos tes, a luta, os saberes e os sabores plantou
grupos já historicamente marginalizados, as primeiras sementes com a possibilida-
ao invés de promover anúncios e aprendi- de de bons frutos, me refiro como uma
zagens coletivas. possibilidade. Os frutos efetivos serão
O encontro com as artes, a luta, os sa- as práticas nas comunidades quilombolas
beres e os sabores, abriu caminhos e nos com todas as complexidades em volta, e
mostrou que é possível existirem e coe- da academia que guarda também suas
xistirem diálogos mais horizontais dos dinâmicas e enfrentamentos próprios do
saberes acadêmicos com os saberes pro- ambiente constituído.
duzidos em outros ambientes, a partir de As sementes foram lançadas e agora ca-
outras visões de mundo, onde as hierar- be-nos alimentar o espaço desse encontro
quias produzidas historicamente possam com discussões qualificadas, avaliações
ser minimizadas. permanentes e planejamento como um
A tentativa de juntar os saberes aca- exercício de nossas práxis, sempre na bus-
dêmicos e não acadêmicos produziu um ca de fortalecê-lo enquanto experiência
ambiente de aprendizagens mútuas e, multi-interdisciplinar e como um espaço
óbvio, em alguns momentos, tensões e de diálogos entre a academia e as comuni-
desconfortos ocorreram dos dois lados dades quilombolas na busca de caminhos
(comunidade acadêmica e comunidade menos desconexos e menos hierarquiza-
quilombola). Porém, apenas a possibili- dos entre as teorias e as práticas.
dade do encontro, onde o protagonismo
não se revela pela estrutura, e sim pelos 4único:
SANTOS, Milton. Por uma globalização do pensamento
à consciência universal. 18ª Ed. – Rio de Janeiro:
conhecimentos em si, já produziu sua Record, 2009.

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EM BUSCA DE OUTRAS FORMAS DE CONSTRUIR CONHECIMENTOS

1. Primeiro encontro com as artes, a quistas, as lutas seguem por direito à


luta, os saberes e os sabores de Concei- educação, saúde, ao território e, princi-
ção das Crioulas palmente, o direito de existir enquanto
Quando ainda na década de 90, to- sujeitos de suas próprias histórias. Sem-
mamos consciência na nossa negritude e pre desafiados/as pela exclusão e pelo
do quanto ela tinha sido usada para nos racismo, a nossa negritude se tornou a
enfraquecer, dividir e invisiblizar, decidi- nossa principal bandeira de afirmação de
mos que essa mesma negritude seria uma direitos. O que era pra nos diminuir nos
ferramenta de luta, afirmação de direitos tornou grande. E essa grandeza nos levou
identitários e assim o fizemos. a sonhar cada dia com passos mais altos
Essa tomada de consciência nos levou e, assim, fomos capazes de influenciar a
a vários momentos. Uns de muitas ale- construção das diretrizes curriculares na-
grias, vitórias e conquistas e outros de cionais para a educação escolar quilom-
dores e até mesmo de medo. Mas, quem bola, para ficar apenas nesse exemplo.
disse que tudo isso não faz parte da luta? Quando começamos a sonhar com esse
Certamente, grande parte de nossas vitó- momento e construir as possibilidades de
rias nos ajudaram a querer ir mais longe, realizar esse encontro em Conceição das
assim como nossos medos e dores nos Crioulas, não se tinha a dimensão exata
levaram a caminhar talvez até mais rápi- do como seria e nem qual a adesão das
do. Se pensarmos que em 1995, se conta- instituições conseguiríamos atrair. Aos
va nos dedos as pessoas da comunidade poucos o encontro foi tomando corpo e
que possuíam o ensino médio e poucos começamos a lidar com outros desafios.
vislumbravam a possibilidade de possuir Um deles era saber qual formato dar a
uma graduação, e, hoje, talvez estejamos um encontro como esse em que se espe-
diante de uma das comunidades quilom- rava com ele superar várias questões, en-
bolas com maior nível de escolarização tre estes, destacam-se: a dicotomia entre
em nível médio e superior. Arrisco-me a os saberes acadêmicos e os saberes não
dizer que estamos diante de uma revolu- acadêmicos; a infraestrutura; como or-
ção, respeitando seus aspectos político-i- ganizar um evento tão diverso e manter
deológicos, onde a educação tem sido o o protagonismo da comunidade como um
fio condutor. valor importante; como não realizarmos
Assim tem sido a dinâmica de Concei- apenas um momento de vivências e ex-
ção das Crioulas, entre tensões e con- posições de ambos os lados, já que havia

13
GIVÂNIA MARIA DA SILVA

uma expectativa de aprender com a aca- beres e os sabores, se constitui como algo
demia, mas, talvez fosse maior ainda o específico e ocorreu da seguinte forma:
desejo de ensinar, compartilhar... Como aqueles e aquelas que trilharam caminhos
conciliar e dosar as duas dimensões do acadêmicos mais intensos (mestrados,
conhecimento? doutorados e pós-doutorados), forman-
Apostou-se na capacidade de mobiliza- do-se com os/as que possuem também
ção da comunidade e no seu protagonis- formação superior em menor grau, mas
mo que ocorre por meios de seus instru- detém outros saberes oriundo do ato de
mentos dentro de uma pedagogia crioula, pertencer que podem contribuir ou com-
apoiada pelas escolas do território, a As- plementar. O caminho inverso também
sociação Quilombola de Conceição das fluiu com muita intensidade. Além desses
Crioulas - AQCC, comissão estadual de (nossas mestras e mestres dos saberes
quilombos, redes sociais e redes de par- do quilombo), buscaram fazer com que a
ceiros para viabilizar a realização do en- formação desses profissionais, cujas fun-
contro, como um momento de formação ções nas suas respectivas instituições se
continuada para as instituições de ensino relacionam com formação inicial seja ela
superior e básica, e para a comunidade em qual área for, tivessem sentidos mais
anfitriã de Conceição das Crioulas. Ou- práticos. Na minha compreensão ficam
tra grande aposta foi sua coordenação. duas grandes perguntas: como transpôr
Um grupo de mulheres assumiu na sua as experiências do primeiro encontro
íntegra o pensar e fazer acontecer no/do com as artes, a luta, os saberes e os sa-
encontro em diálogo com o movimento bores para as nossas práticas cotidianas,
IDENTIDADES / PORTUGAL. Foi por sejam elas na educação básica, superior,
meio desse encontro que se promoveu du- gestão escolar ou em qualquer outro lo-
rante o referido período, a formação con- cal de atuação? Como fazer com que as
tinuada. A formação continuada nessa experiências desse encontro possam se
perspectiva procurou alcançar parte dos repetir em outras comunidades e contex-
limites e lacunas deixadas na formação tos, respeitando as dinâmicas locais, sem
inicial, justamente pelo distanciamento perder um olhar global sob um dos pro-
entre os saberes acadêmicos e não acadê- blemas que precisamos enfrentar que é a
micos não cabendo hierarquias entre um dicotomia entre os saberes acadêmicos e
e outro. os não acadêmicos? As tensões existem e
O encontro com as artes, a luta, os sa- apareceram no decorrer do encontro em

14
EM BUSCA DE OUTRAS FORMAS DE CONSTRUIR CONHECIMENTOS

Conceição das Crioulas. Como sabemos, de pensar de ver o mundo. Não creio nas
a academia foi pensada para um mode- certezas absolutas e nem nas repostas
lo de construção de conhecimento, que prontas e rápidas, mas, no ato de se lan-
tem como princípio a hierarquização dos çar para encontrar pistas e caminhos para
saberes, onde um saber se sobrepõe ao um novo diálogo (academia e comunida-
outro. O exercício de encontrar as artes, des quilombolas). Esse deverá ser nosso
a luta, os saberes e os sabores, caminhou horizonte rumo ao segundo encontro
na direção contrária. Os saberes que ali com as artes, a luta, os saberes e os sabo-
circularam não estavam colocados na res e rumo à construção de outros espaços
perspectiva da hierarquização e sim da de formação que levem em conta outras
complementaridade, onde os lugares e abordagens metodológicas e outras epis-
valores de cada um/uma não precisavam temologias. Portanto, esse encontro en-
competir e, sim, foram durante esse mo- tra na lista das possibilidades e espaços
mento se complementando. de formação continuada para todos os ní-
É natural e compreensível a estranheza, veis: educação infantil, básica e superior e
pois não são muitos exemplos de exercí- para lideranças quilombolas.
cios como esse na formação acadêmica.
Mas, a superação desse desafio nos levou 2. O sabor das oficinas e trocas do/no
a sair mais fortalecidos/as e certos/as de primeiro encontro com as artes, a luta,
que queremos continuar apostando na os saberes e os sabores.
construção de espaços multidisciplinares Ao finalizarmos a programação final,
sejam do ponto de vista metodológico ou confesso: tive medo do tamanho do en-
epistemológico, pois é com/neles que es- contro. Um conjunto de oficinas foi pre-
peramos romper alguns obstáculos que o parado e que deveriam acontecer simulta-
pensamento único e hegemônico forjou neamente, além de outras que surgiram
ao longo dos tempos. e/ou se reordenaram no decorrer do en-
É a partir de momentos como esses contro. Ao mesmo tempo, não havia um
que se percebe a necessidade de se fazer formato único. Creio que nesse momento
um movimento de cunho estrutural em plantamos as primeiras sementes da in-
nossas instituições de ensino para abri- ter-multidisciplinaridade. Porém, sem
garem espaços como esses, não apenas referências de algo similar, as perguntas
como projeto pontual, mas como uma eram inevitáveis. Como os participantes,
contribuição à formação de outros jeitos que em muitos casos tinham o primeiro

15
GIVÂNIA MARIA DA SILVA

contato com um território quilombola, tras. O destaque aqui vai para o papel do
mas, detinham conhecimentos acadêmi- professor/a, que pela visão de Paulo Frei-
cos em níveis elevados? Como organizar re pode ser substituída por educador/a e
e dinamizar esses conhecimentos (aca- que o seu papel durante o encontro foi es-
dêmicos e não acadêmicos) sem que um tabelecido pelos conhecimentos e não pe-
se sobrepusesse ao outro? O encontro los seus títulos acadêmicos. Portanto, os
começou e todas as atividades construí- educadores/a tanto os que foram forma-
ram suas próprias pedagogias. As tensões dos pela academia, quanto os formados
vieram. Os diálogos foram estabelecidos pelos livros da vida, da experiência e dos
e o resultado foi, sem dúvida acima do saberes na comunidade com seus limites
esperado, pelo menos do nosso lado, do institucionais visíveis puderam conviver
lado do quilombo. O saldo de tudo isso num mesmo espaço sem a necessidade
foi uma riqueza indescritível, inimagi- de silenciar um para o outro existir. E as-
nável e incapaz de expressar de qualquer sim foi o primeiro encontro com as artes,
forma. Entre os sabores produzidos, ao lutas, saberes e sabores, que esperamos
barro que molda parte de nossa história, continuar dando frutos e produzindo
ao caroá5 que forja e tece parte significada novas sementes e novos sabores/saberes
de nossas vidas, as danças que alegram, que tornem mais próximas a comunidade
movimentam e contam histórias, aos de- acadêmica e as comunidades quilombolas
senhos e bordados que constroem rostos no Brasil.
e pontuam entrelaçando história, vida e
lutas, as mais variadas formas de comuni- 3. Caminhar para o segundo encontro
car e expressar o pensamento. Outro sa- com as artes, a luta, os saberes e os sa-
bor/saber foi o diálogo entre professores/ bores de Conceição das Crioulas
as, alunos/as e a construção de muitas Se a construção do conhecimento em
pontes e (des) construção de tantas ou- si, já se constitui como um grande desafio
na história da humanidade em todos os
5 O caroá (nome cientifico: Neoglasioviavariegata), também contextos e tempos, esse desafio aumenta
conhecido como gravatá, gravá, caruá, croatá, caraguatá
e coroatá, é um tipo de bromélia de poucas folhas, com quando nos lançamos a imaginar o que
flores vermelhas ou rosadas. Seu nome vem da palavra em isso significa quando queremos que esses
tupi karawã, que significa talo com espinho. É uma planta
resistente e típica das áreas de Caatinga. As folhas do caroá conhecimentos construídos percebam a
fornecem fibra para a confecção de barbantes, linhas de
pesca, tecidos, cestos, esteiras e chapéus, além de outras
presença, ouçam as vozes e visualizem os
peças artesanais e decorativas. corpos de sujeitos que historicamente fo-

16
EM BUSCA DE OUTRAS FORMAS DE CONSTRUIR CONHECIMENTOS

ram ignorados e subalternizados, como é


o caso dos negros, índios e mulheres no
Brasil. O encontro se tornou um espaço
possível de produzir e mediar, não apenas
as trocas de saberes, aprendizagens cole-
tivas, experimentos, convivências, mas,
sobretudo, ampliar parcerias, pensar as
novas formas de formular e comparti-
lhar conhecimentos. O desvelar do que
realmente acontece em uma comunidade
quilombola, suas tensões, fez do primeiro
encontro com as artes, as lutas, os saberes
e os sabores um espaço promissor e capaz
de continuar como um investimento in-
telectual de acadêmicos e não acadêmicos
na busca de um diálogo que reconheça a
existência das duas perspectivas de se ela-
borar conhecimento de forma mais hori-
zontal. Essa é a forma que vi e convivi com
o encontro e, portanto, nos lancemos ao
segundo encontro com as artes, as lutas,
os saberes e os sabores. Que venham mais
adesões, que venham mais desafios! Se
tudo isso for transformado em ferramen-
tas para vencer as dicotomias existentes
entre as formas de construção dos conhe-
cimentos e aproxime visões de mundos
diferentes, aqui estamos para saborear e
guardar as aprendizagens e aprender com
os erros e tensões.

17
18
de Conceição das Crioulas. A comunidade
Mulheres & quilombola, sua história oral e sua práxis
Lutas & Olhares de lutas são a base de minhas reflexões em
mais uma visita. Mulheres que direcionam
Relacionais uma vida comunitária desde a sua funda-
ção, passando pela resistência à expropria-
MADALENA ZACCARA1 ção da terra e à transmissão de sua cultura
e que investem na educação como instru-
palavras-chave mento de resistência e conquista. Através
Arte Relacional, Gênero, Educação, Conceição delas que encontro meu espaço de observa-
das Crioulas, Movimento Intercultural ção, reflexão e, ainda, de pouca ação na co-
IDENTIDADES. munidade. O presente texto visa analisar
meu processo de pesquisa e de tentativa de
Resumo (inter) ação com o universo das crioulas de
A estrada é longa espacialmente e con- Conceição.
ceitualmente. Trata-se de um deslocamen-
to que envolve corpo e certezas entre a Pé na estrada: da academia para o
partida de Recife, a chegada e a despedida mundo real
É muito chão e muito sol até chegar-
1 Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Univer- mos à Conceição das Crioulas. Na rota,
sidade Federal de Pernambuco (UFPE), bacharelado em Di-
reito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
no micro ônibus cedido pela Universida-
mestrado (DEA) em História e Civilizações - Université Tou- de Federal de Pernambuco, entre alunas
louse II, Toulouse, França e doutorado em História da Arte
- Université Toulouse II, também em Toulouse, França, como entusiasmadas, colegas decididas e baga-
bolsista Capes. Tem pós-doutorado pela Escola de Belas Artes gens enfim acomodadas não dá para não
da Universidade de Porto, Portugal, também como bolsista
Capes. Atualmente é professor Associado da Universidade pensar na história oral daquela comuni-
Federal de Pernambuco. Ensina no Programa Associado de dade que eu iria (re) encontrar fora dos
Pós Graduação em Artes Visuais UFPE-UFPB. Lidera o grupo
de pesquisa intitulado “Arte, Cultura e Memória” que se textos acadêmicos. A estrada traz me-
volta para a pesquisa da História e Teoria das Artes Visuais mórias e me desperta para o fato de que,
no Brasil com ênfase para o Nordeste. Atua principalmente
nos seguintes temas: História da Arte e Crítica de Arte. É para mim, naquele caminho, nunca deu
membro da Associação Nacional dos Pesquisadores de Artes para esquecer como deve ter sido difícil
Plásticas (ANPAP), da FAEB (Federação dos Arte Educadores
Brasileiros) e do Instituto de Investigação em Arte, Design chegar (e se estabelecer) naquele espaço
e Sociedade I2ADS (Porto, Portugal). Tem vários livros,
capítulos de livros e artigos publicados. Endereço eletrônico:
geográfico; no quanto deve ter sido duro
madazaccara@gmail.com para as fundadoras: as seis negras livres

19
MADALENA ZACCARA

que desbravaram a região, trabalharam doras da comunidade.


intensamente no cultivo, fiação e venda Não fomos tão bem sucedidas como
do algodão e conseguiram enfim comprar eu gostaria nessa nova troca de conheci-
as três léguas de terra que inicialmente mentos. Aprendemos mas pouco conse-
arrendaram e que geraram a comunidade guimos dizer. Não tem lugar ainda para
quilombola de Conceição das Crioulas. a história da arte ocidental oficial para
As mulheres fizeram e fazem a diferen- quem está tentando transformar tudo,
ça na comunidade e isso impacta minhas inclusive a própria história. Não ainda.
vivências bem mais teóricas que as delas Quem sabe um dia as outras lutas de
nas lutas feministas. Afinal, foi com o mulheres, das artistas, de outras compa-
propósito de discutir apagamentos femi- nheiras, ganhe espaço para discussões?
ninos na história da arte que iniciei essa Quem sabe quando o sobreviver cultural
nova viagem, a ideia que embasaria, pos- e existencial não for tão urgente? A ideia
teriormente, a reunião das professoras da de uma especialização em artes para os
UFPE com as de Conceição das Crioulas: professores (levantada na ocasião) ainda
o público alvo estimado para essa tentati- permanece em mim como alternativa viá-
va de trocar saberes. vel. Espero que o tempo a viabilize.
Eu já conhecia de outro contato pre- A partir dessas reflexões sobre o aqui e
sencial e de muita pesquisa o quanto
agora das nossas relações com a comuni-
são politizadas essas descendentes das
dade minhas observações passam a ser
crioulas ancestrais que apostaram, e ain-
feitas através da historiadora em mim. É
da apostam, na identidade e na educação
ela que vai falar das lutas pelo futuro no
como passaporte para um futuro melhor
cotidiano dessas mulheres, dos conflitos
e de como durante muito tempo “estudar
pela posse da terra conjugados no passa-
era apenas um sonho que na maioria das
do e no presente que marcaram, e mar-
vezes ficava no meio do caminho, não se
tornava realidade pela falta de condições cam a comunidade. É através de uma me-
necessárias”, e também como esses “so- mória captada em livros, depoimentos e
nhos foram interrompidos por gerações vivências pessoais que tento descrever,
seguidas”2. As professoras são as media- mais uma vez, essas mulheres: mergu-
lhando em sua história. Essa memória
2 SILVA, Givânia Maria. Meus primeiros passos em busca (memórias) também recebeu inspiração
de pertencer a Conceição das Crioulas in CARRION, Dirce
(org.) Olhares Cruzados, Brasil Etiópia. Kembata, Conceição das
da geografia, do clima, da urbanização,
Crioulas. São Paulo: Editora Reflexo, 2013 p.45 do andar a esmo em suas ruas sem calça-

20
MULHERES & LUTAS & OLHARES RELACIONAIS

mento, das interações no bar-mercearia lher, e ser escrava dentro de uma sociedade
da esquina, da ida à rezadeira da comuni- opressora e sexista, significava ser vulnerá-
dade indígena Atikum que divide o terri- vel à exploração econômica, sexual e alvo
tório com os quilombolas, das reuniões de injustiças e humilhações por parte das
nas escolas com alunos e professores e, demais camadas sociais.
principalmente, das conversas ao acaso A escrava sofria o assédio, o estupro e a
no ir e vir sem destino descobrindo novas opressão generalizada por parte do senhor
pessoas. Enfim: o que não fazemos na ve- e não escapava dos ciúmes da sinhá que
locidade de nossos dias de metrópole. Ela se vingava como podia e sempre na mu-
(a memória) vai falar de como, mais uma lher. Por outro lado, as mulheres escravas
vez, me deixei levar pela energia do lugar constituíam a maioria dos libertos e, em-
e pelas lembranças e fatos já registrados bora reste sempre a ideia de que, genero-
por mim através de olhares acadêmicos samente, o senhor de escravos libertasse a
que resultaram em textos e livro que abor- escrava como uma espécie de recompensa
daram principalmente a relação do Movi- pela submissão sexual, alguns historia-
mento Intercultural IDENTIDADES com dores se posicionam no sentido de que
a comunidade. foram elas que conquistaram essa alforria
(CARVALHO, 2010, p.222). Uma liber-
O papel da mulher na sociedade dade que era mais facilmente aceita pelos
patriarcal e escravocrata brasileira donos do poder por questões de gênero
Dentro da pirâmide social estruturada uma vez que o fato de ser mulher tornava o
na sociedade escravocrata brasileira os caminho para a verdadeira liberdade bem
brancos ficavam no topo, distribuídos em mais difícil e então a alforria fornecia uma
posições melhores em relação ao alto desta liberdade “de direito”, mas não “de fato”.
por meio do seu poder aquisitivo. Em um Essa liberdade concedida não assegurava
degrau abaixo estavam as mulheres, bran- possibilidades econômicas de mantê-la,
cas que eram, apesar de brancas, cidadãs de nem a incluía em um grupo de pertenci-
segunda categoria. Em baixo desta cons- mento. As mulheres, portanto, tinham
trução social ficavam os negros e os indíge- um caminho bem mais árduo em direção
nas considerados inferiores. Em um nível à liberdade, mesmo quando alforriadas.
mais inferior ainda estavam as mulheres E era um caminhar extremamente difícil
negras escravas tanto por serem mulheres, não só para as mulheres negras, embo-
como por serem negras e escravas. Ser mu- ra a estas coubesse o ônus maior. Afinal,

21
MADALENA ZACCARA

brancas, negras ou mulatas estamos tra- oportunidades e alternativas para se ga-


tando aqui de corpos – marionetes. Um nhar a vida, principalmente para as mais
decididas, tendo ou não filhos.
corpo sobre o qual: “as relações de poder
têm alcance imediato sobre ele; elas o in-
Os núcleos urbanos existentes ofere-
vestem, o marcam, o dirigem, o supliciam,
ciam oportunidades de emprego para
sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a
mulheres livres no serviço doméstico tra-
cerimônias, exigem-lhe sinais” (FOU-
dicionalmente destinado às mais pobres
CAULT, 1989, p. 28). Esse poder afir-
mou-se no Brasil patriarcal e escravocrata onde se incluía a negra liberta. A alterna-
tanto sobre a mulher branca quanto sobre tiva para as alfabetizadas e brancas era a
a negra. Sobre a situação da sinhá branca função de professora das primeiras letras,
da casa grande assim se manifesta Gilber- piano ou línguas estrangeiras às crianças
to Freyre (apud QUINTAS, 2008, p. 52): de famílias mais abastadas. Cabia, porém
ao negro, mulher ou homem, o ônus de
Da mulher-esposa, quando vivo ou ativo provar, em um espaço social onde a re-
o marido, não se queria ouvir a voz na captura era tolerada e pouco investigada
sala, entre conversas de homem, a não ser pelas autoridades; onde era necessário
pedindo vestido novo, cantando modi- defender todo o tempo a liberdade con-
nha, rezando pelos homens; quase nunca
aconselhando ou sugerindo o que quer
quistada, que ele era legalmente e real-
que fosse de menos doméstico, de menos mente livre. A cor da pele era, em si, um
gracioso, de menos gentil; quase nunca entrave à liberdade “de fato”. Presumia-
metendo-se em assuntos de homem. -se a condição de escravo para uma pes-
soa de cor e a circulação urbana tornava-
Na esteira das dificuldades rumo à li- -se perigosa. Em tal situação, a conquista
berdade, coube a ambas, branca e negra, de um espaço econômico social para viver
o ônus de sua liberdade gradativa. Meca- tornava-se uma questão de sobrevivência
nismos de sobrevivência pressionaram a e não é de se estranhar que esse espaço
busca de alternativas. Depois da abertura devesse ser o mais isolado possível da co-
dos portos em 1808, de acordo com Mar- munidade branca.
cos J. M. de Carvalho (2010, p. 77): Um exemplo coletivo dessa busca por
um espaço é a comunidade quilombo-
Muitas mulheres que tentavam fazer va-
ler suas vontades, enfrentando as duras la Conceição das Crioulas abrigada no
regras não escritas do patriarcado pre- sertão de Pernambuco. Sua história, ba-
feriram morar na cidade. Lá havia mais seada em uma narrativa oral, remete às

22
MULHERES & LUTAS & OLHARES RELACIONAIS

suas mulheres fundadoras. Trata-se de ção oral de cunho quase mitológico esta-
um quilombo fundado por mulheres e belece a forma de ocupação da terra pela
onde, até hoje, são elas as protagonistas comunidade no início do século XIX.
das lutas e conquistas do grupo de per- No ano 2000 foi fundada a Associação
tencimento por elas criado. Os padrões Quilombola de Conceição das Crioulas
discriminatórios em relação às mulheres (AQCC). Seu objetivo maior é a luta por
nas tantas sociedades, cronologicamente seus direitos, manutenção da sua iden-
e espacialmente diversificadas, parecem tidade, educação acessível para todos e
nesse espaço social ali construído terem pela reintegração na posse da terra in-
se erradicado ou pelo menos amenizado. vadida por fazendeiros. A reintegração
Naquele espaço, as mulheres se organi- aconteceu no dia vinte e dois de setem-
zaram na construção de uma nova so- bro de 2014, um dia histórico para a co-
ciedade utilizando-se dos instrumentos munidade. Nesta data foram entregues
possíveis para a desconstrução de ideias e pelo Instituto Nacional de Colonização
atitudes que viessem a negar seus direitos e Reforma Agrária (INCRA) três títulos
dentro do quadro maior dos próprios di- de domínio de cinco imóveis rurais que
reitos humanos. estavam dentro do território quilombola
assegurando assim direitos históricos e
garantindo segurança jurídica quanto à
Sobre a comunidade quilombola Con-
situação fundiária. A partir de uma reali-
ceição das Crioulas: um conceito de na-
dade onde, há poucas décadas, não havia
ção conjugado no feminino.
qualquer política de apoio ou acessibili-
Localizada no município de Salgueiro,
dade à educação, transformar o contexto
Pernambuco, Conceição das Crioulas
significou resistência e libertação. Com a
tem uma história oral que remete à luta
educação a memória poderia (e pode) ser
de seis negras livres que chegaram à re-
preservada, levando-se em conta a fatali-
gião, arrendaram uma área e, graças ao dade do apagamento de uma história oral
cultivo, fiação e venda do algodão (que no universo comunicacional contempo-
era comercializado na cidade de Flores), râneo em transformação e expansão.
conseguiram arrendar três léguas de ter- A maioria dos habitantes habita os “sí-
ra. Gleba esta que depois compraram e tios” que se espalham no território co-
escrituraram em um cartório da referida mum3. Esta comunidade quilombola faz
cidade Flores, em 1802, por um escrivão
de nome Pedro José Delgado. Essa tradi- 3 Fonte: Relatório da Fundação Cultural Palmares, publicado

23
MADALENA ZACCARA

parte das muitas já reconhecidas pelo Es- do e só em 2014 a posse da terra foi le-
tado Brasileiro por meio de “certificação gitimada pelo governo federal e os fazen-
feita pela Fundação Cultural Palmares deiros invasores intimados a abandonar
(FCP) (certificação do autorreconheci- a terra5. O dia vinte e dois de setembro
mento) e da abertura de processo de re- daquele ano passou a ser um dia históri-
gularização dos territórios quilombolas co para a comunidade. Naquela data, fo-
pelo Instituto Nacional de Colonização ram entregues pelo INCRA três títulos de
e Reforma Agrária (INCRA)”4. Conceição domínio de cinco imóveis rurais que es-
das Crioulas, juntamente com outras co- tavam dentro do Território Quilombola.
munidades semelhantes espalhadas pelo Dessa maneira, aproximadamente 898
território brasileiro formam grupos de hectares passaram a compor efetivamen-
resistência negra à escravidão inicial e à te o patrimônio coletivo da comunidade,
exploração de mão de obra posterior. beneficiando 750 famílias. A titulação
No início do século XX, as terras adqui- ocorreu mediante a outorga de título co-
ridas diminuíram de extensão em virtude letivo e pró-indiviso à comunidade, em
de invasões e aquisições ilícitas por parte nome da Associação Quilombola de Con-
de fazendeiros. O território foi encolhen- ceição das Crioulas (AQCC).6
As mulheres e suas ações têm forte sig-
no Diário Oficial da União, em 11/09/1998. Apud LEITE,
Maria Jorge dos Santos. Conceição das Crioulas: Terra, nificação dentro desta comunidade desde
Mulher e Política in Sankofa. Revista de História da a sua fundação, passando pela resistência
África e de Estudos da Diáspora Africana, Ano III, Nº 6,
Dezembro/2010. Disponível em file:///C:/Users/mada/ à expropriação da terra, à transmissão de
Pictures/88789-126256-1-SM.pdf acesso em 23 de agosto de sua cultura. Essa resistência está intima-
2015.
4 Entende-se por comunidades quilombolas certificadas mente ligada à formação das lideranças
todas aquelas que manifestaram a afirmação da sua que compõem a estrutura política em
identidade étnica como comunidades remanescentes de
quilombos e tiveram seus dados incluídos no cadastro geral
junto a FCP conforme o Art. 3º do Decreto 4.887/2003: 5 A terra foi desapropriada e os fazendeiros receberam
“§ 4o a autodefinição de que trata o § 1o do art. 2o deste indenização do governo.
Decreto será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação 6 A Associação luta pelo direito da comunidade quilombola
Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma de Conceição das Crioulas ao seu território e pela
do regulamento ”apud SILVA, Givânia Maria da. Educação sustentabilidade dessas famílias. Nesse sentido, produzem,
como processo de luta politica. A experiência de ‘Educação de forma sustentável, artesanatos da fibra do caroá, que
diferenciada’ do território quilombola de Conceição das contam a história e reafirmam a identidade étnica e cultural
Crioulas. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- do povo quilombola, fortalecendo, ainda, a organização
Graduação em Educação da Faculdade de Educação da política local. Fonte: site da AQCC disponível em http://
Universidade de Brasília (UnB), como parte dos requisitos www.caatingacerrado.com.br/aqcc-associacao-quilombola-
para a obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas e de-conceicao-das-crioulas-pe/ acesso em 20 de agosto de
Gestão da Educação. 2012.p. 29 2015

24
MULHERES & LUTAS & OLHARES RELACIONAIS

Conceição das Crioulas, lideranças que se As escolas ensinavam para a gente, de


conjugam no feminino tanto no que diz forma bem sutil, que era feio ser negro,
que nosso cabelo por ser pixaim era feio.
respeito às referências históricas quanto
Então era pra se dizer que era moreno,
às do dia a dia comunitário. Apesar do moreno escuro, moreno claro. Negar que
empenho atual de alguns homens no sen- era de Conceição porque ser de Concei-
tido de participação nas lutas pelos direi- ção era ruim, porque era um lugar atrasa-
tos quilombolas ainda predomina maci- do onde só tinha negro e negro não era
uma coisa boa. (Maria Diva da Silva Ro-
çamente a presença da mulher, guerreira
drigues, In CARRION, 2013, p. 54)
e educadora, nas decisões comunitárias:

O papel da mulher é assegurado na des-


Elas interromperam com esse discurso.
cendência. É “nelas que tudo começa”: E propuseram para as escolas um currí-
a fundação da comunidade (incluindo a culo alternativo no qual os valores ances-
compra da terra), a origem do nome, a trais fossem contemplados e que contri-
defesa do território frente às “invasões”
buísse para semear o orgulho no lugar da
das quais resultaram expropriações; elas
também estão presentes na execução e vergonha das suas origens. Hoje, Givânia,
perpetuação de determinadas práticas Aparecida Mendes, Márcia Jucilene, Ma-
ou atividades culturais como os ofícios ria Diva e Valdeci entre tantas outras são
de benzedeira e parteira e na produção mulheres que sabem os caminhos que de-
de trabalhos artesanais. As mulheres que
vem ser percorridos. São os pilares atuais
se dedicam a essas atividades dizem ter
aprendido com suas mães ou avós. (LEI- da comunidade. Abrem caminhos, Rotas
TE, 2010) diversas das de suas antepassadas funda-
doras, mas não menos importantes. Elas
A batalha prossegue. As mulheres de objetivam novas formas de liberdade e a
Conceição das Crioulas se transforma- identidade como princípios norteadores.
ram, romperam com a tradição secular de A liberdade física, meta das antigas escra-
subserviência. Suas conquistas as afasta- vas, transformou-se na luta política pela
ram da condição de mero celeiro de mão cidadania em toda a sua plenitude.
de obra das cidades vizinhas. A negritude A experiência educacional de Concei-
hoje não é mais motivo de vergonha, mas ção das Crioulas é considerada referência
de orgulho e a educação é o instrumento para o movimento quilombola e outras
de conquista na luta pelos seus direitos. organizações que trabalham com educa-
Nas palavras de Maria Diva da Silva Ro- ção. Seu projeto é diferenciado e trabalha
drigues: com uma concepção e práxis na qual os

25
MADALENA ZACCARA

valores, a cultura, os costumes, as tradi- palavras de sua principal líder política Gi-
ções, a sabedoria das pessoas mais velhas vânia Maria Silva quando fala sobre sua
e a história dos antepassados fazem parte comunidade:
do processo educativo.
A presença e a consciência do papel da Mergulhada numa busca constante de
ações direcionadas à educação, à saúde
mulher nas conquistas da comunidade e ao reconhecimento da sua cultura, do
são marcos a serem observados em um processo da reconstrução da identidade e
espaço social que poderia englobar um de seu território. Mesmo diante do cená-
conceito de nação. Uma nação, em seu rio de dúvidas, a educação era entendida
pelos seus moradores (as) como atividade
sentido político moderno: uma comuni-
importante. (SILVA, 2013, p. 47)
dade de indivíduos vinculados social e
economicamente geralmente de um mes-
É nessa conjuntura, a partir dessa pro-
mo grupo étnico, que compartilham certo
posta, que prioriza a educação como veí-
território, que reconhecem a existência de culo de emancipação, que a arte relacional
um passado comum, que têm uma visão ou contextual praticada pelo Movimento
de futuro em comum e que acreditam que Intercultural IDENTIDADES, no qual o
esse futuro será melhor se se mantiverem artista, participante da história imedia-
unidos do que separados. A partir dessa ta, encontra seu espaço na comunidade.
premissa, Conceição das Crioulas é uma Esse engajamento, essa forma de criar
nação. Uma nação onde os padrões so- artístico, não visa o sublime ou o trans-
ciais e culturais discriminatórios com re- cendente; sua proposta se volta para a
lação às mulheres presentes em maior ou possibilidade de transformação do so-
menor grau em todas as regiões do pla- cial e nele encontra seus instrumentos. A
neta parecem não mais existir. Nela, as arte, devemos lembrar, pode ser o último
mulheres que se destacaram na luta pela reservatório do imaginário a escapar de
aquisição, construção e recuperação das ser incorporado/apropriado pelo sistema
terras que ocupam e que hoje lutam pela que hoje serve ao capitalismo neoliberal e
construção de uma identidade étnica es- o seu consumir ideológico. As práticas ar-
tão no comando. tísticas que envolvem a política relacional
A abertura dessas mulheres para novos podem abrigar um sonho para além das
horizontes passa por uma emancipação servidões e ser uma promessa de recon-
pela educação. A consciência sobre este ciliação com o humano em sua expressão
instrumento libertador está presente nas maior. A colaboração com a comunidade

26
MULHERES & LUTAS & OLHARES RELACIONAIS

através da arte-educação é o objetivo do anos de 1993 a 1996, dezenas de even-


movimento. tos culturais em Portugal no Nordeste
do Brasil (PAIVA, 2009, p.134). Para
Pequeno histórico sobre as ações do Paiva, o tempo que transcorreu entre es-
Movimento Intercultural IDENTIDA- tes primeiros contatos nordestinos, que
DES em Conceição das Crioulas precederam o que aconteceu com Con-
De acordo com José Carlos de Pai- ceição das Crioulas foi o necessário para
va (2007, p.18), na arena relacional em proporcionar amadurecimento e, então,
que ele próprio se move e onde também através do Centro de Cultura Luiz Freire,
transita o movimento IDENTIDADES, em 2003, estabelecer relações com a co-
“a marca da vida escolar nunca deixa de munidade.
dominar”. O envolvimento do movimen- Em 2003, contato estabelecido, foi
to na comunidade quilombola Conceição criada uma oficina de artes plásticas mi-
das Crioulas segue essa proposta e “assu- nistrada por Iva Correia e Mónica Farias
me a ação como intervenção política em (de Porto) e uma de teatro que foi dada
contextos onde a população se envolve pelo ator moçambicano Rogério Manjate.
em seu próprio desenvolvimento” (2011, Montou-se uma exposição em uma das
p.31). Em Conceição das Crioulas, a po- dependências de uma escola local inti-
lítica se faz através da arte-educação. O tulada “Pano para Mangas” onde o mo-
envolvimento do movimento com a co- vimento foi apresentado para a comuni-
munidade iniciou-se em 2003. Sua his- dade. Deste momento fala Mónica Faria,
tória, entretanto, remete aos primeiros integrante do IDENTIDADES:
contatos de José Carlos de Paiva, líder do No ano seguinte, 2004, o IDENTIDA-
IDENTIDADES, com a capital do Estado DES voltou à Conceição das Crioulas para
de Pernambuco, Recife, representando a sentir as respostas da comunidade à ação
GESTO Cooperativa Cultural. O conta- inicial e ao interesse pela construção de
to se deu através da Fundação Joaquim uma base na comunidade de caráter mais
Nabuco via o seu presidente, Fernando permanente. A partir de uma troca de
Freire e tinha como objetivo estabelecer ideias com a comunidade e da explicita-
um programa de intercâmbio artístico e ção das intenções do grupo, foi aprovado
cultural. um programa intitulado “Deslocações”
Do encontro inicial resultou o projeto que se centrava em intervenções através
“Cumplicidades”, que promoveu entre os das linguagens do Vídeo, do Webdesign,

27
MADALENA ZACCARA

da Cerâmica, da Educação Visual e da zidos desde sua criação.


Expressão Plástica. A proposta foi aceita O “Crioulas Vídeo” anda sozinho. A
pela comunidade e o grupo retornou em introdução da arte no universo da comu-
2005 e, através da preparação de seis jo- nidade, nas palavras de Márcia Jucilene
vens da comunidade, durante nove dias, do Nascimento8 professora, transforma
possibilitou-se a criação de um coletivo Conceição das Crioulas em uma “comu-
intitulado “Crioulas Vídeo” que passou nidade mais desenvolvida e politizada”
a se constituir em mais uma ferramenta e “ciente dos rumos e passos necessários
na luta pela identidade local através da para se chegar às conquistas importan-
produção de vídeos que divulgam a sua tes”. É interessante recordar que, neste
história e realizações.7 espaço social, o conceito erudito ociden-
Hoje, a ação do IDENTIDADES cen- tal de arte não existe. Seus habitantes se
tra-se principalmente no trabalho desen- expressam através do artesanato e das
volvido com as professoras, para que elas artes populares como a dança, a música
adquiriram competências necessárias e a culinária. A arte só é compreendida
para o ensino da arte na comunidade. a partir de seus reflexos práticos sobre a
O Crioulas Vídeo formou-se junto aos comunidade e de como ela pode servi-la.
jovens da comunidade. Entre os mem- Formar professores na área artística
bros foram escolhidos inicialmente seis: poderia contribuir para uma forma mais
Marta Adelaide, Aldamir José, Martinho ampliada de percepção e fruição da arte.
Mendes, Francisco Mendes, Joséane de Para uma ampliação da sensibilidade dos
Oliveira e Reginaldo Antônio. Posterior- alunos o que poderia gerar outras percep-
mente, a eles se juntaram Jocilene e Josi- ções e competências sempre tendo em
cleide. O objetivo da equipe é o registro vista, porém, que, para uma comunidade
dos acontecimentos da comunidade, ter que se propõe a andar sozinha, como é
autonomia para contar sua própria his- o caso de Conceição das Crioulas, e que
tória até então contada por olhares exter- anseia por uma educação baseada em cur-
nos. Vários documentários foram produ- rículo diferenciado, tendo como compa-
ração o currículo formal que é visto como
7 O Crioulas Vídeo é uma equipe de produção de vídeo for-
mada por jovens da comunidade. Para a criação desse grupo sendo externo e global, o ensino da arte
foi feita uma escolha entre jovens da comunidade efetuada deve acompanhar suas particularidades.
de forma conjunta. Foram selecionados: Marta Adelaide,
Adalmir José, Martinho Mendes, Francisco Mendes, Joseane
de Oliveira e Reginaldo António. Hoje, o acervo das Crioulas 8 Entrevista a Madalena Zaccara. Conceição das Crioulas,
Vídeo tem vários filmes e seis documentários. Março de 2015

28
MULHERES & LUTAS & OLHARES RELACIONAIS

2017: Uma nova interação The Politics of Recognition (1992), afirma


A luta das mulheres de Conceição das que o reconhecimento público completo
Crioulas continua a me motivar a intera- de cidadãos iguais exigiria duas formas
gir e a aprender. Esse ano de 2017 marcou de respeito: primeiro, o respeito pelas
uma nova etapa nessa relação. Foram dias identidades únicas de cada indivíduo, in-
de trocas, de novos olhares e principal- dependente do sexo, raça ou etnia e, se-
mente do (re) encontro de companheiras gundo, respeito pelas atividades práticas
de lutas no caminho da negação dos sécu- e maneiras de ver o mundo. As mulheres
los em que nós mulheres fomos prisionei- de Conceição das Crioulas transcendem
ras do biológico. Não podíamos ocupar os em seu dia a dia nossas certezas acadêmi-
espaços de poder no mundo público por- cas e através da cumplicidade consegui-
que não éramos aptas às tarefas de muita da através do Movimento Intercultural
complexidade. Incapazes, logo inferio- IDENTIDADES e sua prática artística
res. A insignificância de nossas vozes e de ação micro política, nós aprendemos
ações foi a consequência da pouca valia mais uma vez com elas para além das teo-
dos nossos corpos e de nossos cérebros, o rias. Essa nova inter(ação), em 2017, re-
que culturalmente nos foi atribuído, bem força a liberdade conceitual, imaginativa
como a tutela masculina que nos cerceava e perceptiva das práticas artísticas ditas
utópicas que podem abrigar a promessa
as portas da educação, do conhecimento
de reconciliação com o humano em sua
e que resultou numa marcante exclusão
expressão maior. Fica um aprendizado
profissional.
que encontra eco num poema:
As mulheres de Conceição quebram
essa regra em um cenário de exclusão Primeiro o ferro marca
marcante onde o preconceito racial e so- a violência nas costas
cial determina ações e reações, pois, afi- depois o ferro alisa
nal, sabemos que a soberania capitalista a vergonha nos cabelos
Na verdade o que se precisa
desenha a cartografia do poder econômi- é jogar o ferro fora
co e cultural onde as situações se organi- e quebrar todos os elos
zam através de um sistema de redes, uma dessa corrente de desesperos.9
teia multicêntrica que defende (e impõe)
a ideia de que centro e periferia são ideali-
9 CUTI (Luiz Silva). Ferro. In: CAMARGO, Oswaldo de
zações homogêneas. (org). A razão da chama. Antologia de poetas negros brasilei-
Charles Taylor, em Multiculturalism and ros. São Paulo: GRD, 1986, p.90.

29
MADALENA ZACCARA

Elas, as crioulas de Conceição apren- culdade de Belas Artes da Universidade do


deram a jogar o ferro fora. E nos ensinam. Porto sob a orientação do Professor Pintor
Mário Bismarck. Porto. 2009.
Referências Bibliográficas QUINTAS Fatima. Sexo a moda patriarcal. O
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Centro Cultural Luiz Freire. Governo do esta- estética e política. São Paulo: Editora 34,
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BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção. Como a arte SILVA, Givânia Maria. Meus primeiros passos
programa o mundo contemporâneo. São Paulo: na busca de pertencer a Conceição das Criou-
Martins Fontes, 2009. las in CARRION , Dirce(coord.) Olhares Cru-
CARRION, Dirce (coord.) Olhares Cruzados, zados, Brasil Etiópia. Kembata, Conceição das
Brasil Etiópia. Kembata, Conceição das Crioulas. Crioulas. São Paulo: Editora Reflexo, 2013.
São Paulo: Editora Reflexo, 2013. SOUZA LEAO, Débora de; ALBUQUERQUE,
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Recife: Editora da Universidade federal de ção do Tráfico de Escravos para Pernambuco no
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Crioulas Vídeo in ID10: com 10 anos o Iden- org.br/revista/aprovados/Escravos.pdf aces-
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1989.
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das Crioulas: Terra, Mulher e Política in San-
kofa. Revista de História da África e de Estudos
da Diáspora Africana, Ano III, Nº 6, Dezem-
bro/2010.
PAIVA, José Carlos de. ARTE/desenvolvimento.
Tese de doutoramento defendida junto a Fa-

30
cídios e atrocidades cometidas ao longo
Esforço de da longa história pelos da minha cor, o
aprendizagem com usufruto de recursos roubados a outros
povos, o lucro do trabalho escravo sobre
as experiências os povos africanos, …; quem me identi-
fica pela minha linguagem como ociden-
vivenciadas com tal, me confere a partilha do conforto de
habitar do lado do poder hegemónico,
a Comunidade mergulhado num discurso que foi impe-
Quilombola de rial e colonizador e nunca deixou de ser
a tradução do exercício de uma autorida-
Conceição das de prepotente, que o domínio financeiro
mundial lhe confere, …
Crioulas, Brasil-PE Quem me conhece sabe do lado esquer-
do em que vivo, repudiando e tentando
JOSÉ CARLOS DE PAIVA1 suspender o estatuto que o ser homem,
branco, ocidental me permite, reconhe-
Quanto a mim, considero-me parte cendo a insuficiência desse esforço pe-
da matéria investigada. rante a dimensão cultural intrínseca que
NASCIMENTO (1978:41)
me construiu, pela descendência familiar,
pela educação, pela própria cultura here-
Quem me olha, sabe que sou homem, ditária que me integra, …
condição que aprisiona meu estar num
mundo que entendo como discrimina- Eles pensam que a maré vai mas nunca volta
tório e injusto, incapaz de reconhecer as Até agora eles estavam comandando
o meu destino e eu fui, fui, fui recuando,
atrocidades que foram desencadeadas,
recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta
desde sempre, sobre a mulher e os mais e tão forte quanto eles me imaginam fraca.
frágeis, …; sabe também pela cor de mi- Quando eles virem invertida a correnteza,
nha pele que sou branco, pertença que quero saber se eles resistem à surpresa,
me permitiu privilégios perante os geno- quero ver como que eles reagem à ressaca.2

1 Professor e Director da Faculdade de Belas Artes da Univer-


sidade do Porto. Investigador Integrado do i2ADS - Instituto 2 Monólogo VENENO da peça Gota D'Água. BUARQUE,
de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Coordenador Chico e PONTES, Paulo. Gota D’Água. Rio de Janeiro, RJ:
do 'IDENTIDADES . movimento intercultural' Civilização Brasileira Ed., 1982, p.161

31
JOSÉ CARLOS DE PAIVA

Quem me partilha sabe que não ador- O mundo ocidental ao qual pertence-
meço perante a minha própria impotên- mos, no século XXI, desapareceu como
cia, nem face à dificuldade de me deslo- promotor do desenvolvimento e da sua
car para fora das pertenças inevitáveis ilusão, também enquanto referência de
que me construíram, e sabe que a minha um sistema político decente e esperan-
resiliência me inscreve sempre ao lado ça num mundo progressivamente mais
da luta, impulsionada pela inquietação equilibrado, democrático e melhor. A ga-
como sujeito e pela cumplicidade com os nância dos poderosos produziu um siste-
mais fragilizados. ma financeiro globalizado, escondido e
Quem me acompanha de perto sabe do incógnito, que sem escrúpulos impõe as
modo como identifico os tempos de en- suas políticas cegas, de simulacro e insen-
cruzilhada em que vivemos, como sendo síveis às dores sociais.
de fracasso, onde o optimismo propagan- Hoje o que nos domina é o medo pe-
deado desde o século XIX no Ocidente, rante a incerteza do futuro, desaparecen-
de um mundo progressivamente melhor, do todo o optimismo propagandeado de
de 'liberdade, igualdade e fraternidade', um progresso sem fim. O fracasso do
redundaram em Guerras Mundiais, no tempo em que vivemos, mesmo se camu-
horrendo Holocausto, na ampliação das flado pela arte mediática da ilusão, pode
desigualdades sociais, na aceitação da ex- ser medido na dimensão desmesurada
clusão dos desfavorecidos, na desestabili- dos sem-emprego-e-sem-esperança, dos
zação política dos países que alcançaram refugiados sem-espaço-e-sem-água, dos
a sua independência libertando-se do resíduos humanos sem-nome-e-sem-ter-
jugo colonial, da camuflagem do discurso ra, dos novos remediados sem-futuro, do
pós-colonial, … medo e da insegurança.

Mercados financeiros escusos e paraísos O conhecido provérbio africano que diz


bancários e fiscais tornaram-se os vec- que "a Terra não foi o que herdámos dos
tores privilegiados de um sistema global nossos antepassados, mas sim aquilo que
que torna cada vez menos visível os limi- pedimos emprestado aos nossos filhos"
tes entre uma economia criminosa que se não deve ser utilizado contra os que o
infiltra na economia legal e uma econo- inventaram, recusando-lhes o direito ao
mia legal que se criminaliza. desenvolvimento, quer dizer o direito a
Jean de Maillard, in CORDELLIER um domínio sempre crescente, quer do
(1999:136) seu próprio destino, quer do mundo que
os rodeia. BRUNEL (1997:69)

32
ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS

Entendo-me frágil, pelo sentido que re- pensar de outros modos, onde o fazer
tiro da experiência de uma longa e preen- corresponda a demandas comuns dos
chida vida, incomodado com o que me desprotegidos de sempre, corresponda
encerra no lado do hegemônico ociden- a uma luta contra a ganância financeira,
tal, portador de uma linguagem crítica e contra a opressão, que entenda os desejos
agonística que não me isenta do que me que nos vendem e que nos cegam na pro-
compõe, mas apenas esclarece a fragilida- cura de um aparente conforto ou de uma
de do que sou, a incomodidade de minha capacidade de consumo alienante.
inscrição na esquizofrenia contemporâ- Minha consciência histórica e entendi-
nea, a minha incompletude. mento crítico do presente me impede de
Como sujeito e também como profes- acompanhar os que pretendem reprodu-
sor, não posso, pela fragilidade reconhe- zir o existente, limitar o futuro determi-
cida, ter outra relação que não seja a de nando-lhe o mesmo 'sistema político', a
procurar encontrar amparo e cumplici- gestão empreendedora dos saberes con-
dade para as lutas radicais que se tornem sagrados, a manutenção da ordem das
possíveis. Movimentos de tensão inscri- hierarquias sociais estabelecidas. Procuro
tos numa dimensão política de procura força na oposição agonística, que inscre-
de atos significativos que hajam em arti- va suas acções críticas na possibilidade de
culação agonística e constituintes de uma um outro devir, contingente no resultado
outra hegemonia, contingente, que dote da articulação das tensões sociais desen-
os socialmente subjugados de possibili- cadeadas, onde os sujeitos determinem, a
dades de interferência sobre o seu devir/ partir de si, o que melhor considerarem,
comum. no exercício de uma democracia radical.
Recuso, portanto, ser arauto portador Frequentando espaços de poder, em
de um saber/poder que se pretende di- dispositivos hegemónicos, como a esco-
fundir, ser espelho para os outros, esca- la e a universidade, mergulhado numa
moteador de realidades cruéis, de preferir velocidade vertiginosa do que me é exi-
procurar o meu conforto e a comodidade gido que impede a reflexão. Assumo que
ilusória de estar a fazer o certo/possível. aí preciso de suspender as possibilidades
O que sou/sei não me chega, preciso de de agir perante os sujeitos. Suspendendo
desagarrar as febres ocidentais, preciso uma acção limitadora da sua autonomia,
insistentemente de aprender com outras promovendo as suas possibilidades de se
paragens onde ainda seja possível agir/ pensarem-de-outro-modo, de desacredi-

33
JOSÉ CARLOS DE PAIVA

tarem nos discursos sacralizados e legiti- dignidade, contra a injustiça, pela recu-
mados pelas instituições e úteis aos po- peração dos direitos roubados, pela res-
deres que nos governam, reconhecendo a tituição das terras, pela educação demo-
sua vulnerabilidade e fechamento. Prefiro crática diferenciada, pela possibilidade
a experiência relacional como libertadora política de futuro.
de sentidos em cada um.
Mesmo que o Quilombo de Conceição
… direi que a crítica é o movimento pelo das Crioulas já tenha construído um ca-
qual o sujeito se outorga o direito de in- minho, por meio da luta que tem levado
terrogar a verdade sobre os seus efeitos de e uma metodologia própria, ainda se fa-
poder e o poder sobre os seus discursos zem presentes e persistem nas sérias mais
de verdade; a crítica seria assim a arte da elevadas as invisibilidades da história dos
insubmissão voluntária, a da indocilida- quilombos em outros espaços educacio-
de refletida. nais.
FOUCAULT (2015:35) SILVA (2016:142)

Por isso procuro a frequência de ter- Neste Sul de utopias mil, durante
renos outros, onde a interculturalidade séculos foram acumulados sofrimen-
é possível, onde exista tempo e silêncio tos desmesurados, sendo esmagados e
para a escuta. Procura de um onde com destruídos os modos de vida ancestrais
futuro, rico de saberes e de memórias que existentes, as culturas milenares e as for-
o Ocidente nunca foi capaz de observar. mas ágeis de luta pela sobrevivência. Os
Preciso de ser/estar onde se queira desen- povos e reinos foram desestruturados,
terrar o que foi escondido e camuflado, desarticularam-se as estruturas políticas
onde se queira ouvir o que nunca foi dito, endógenas, perseguiram-se e destruíram-
o que foi silenciado e negado. Nesse Sul, -se religiosidades intrínsecas à própria
talvez inexistente mas utopia perseguida, cultura, dividiram-se famílias e rompe-
encontram-se muitas comunidades, em- ram-se os laços interpessoais. Os povos
penhadas em entender de uma outra for- africanos desrespeitados pelo racismo
ma a história, ressurgida na própria voz desumano e interesseiro dos colonizado-
orgulhosa das suas identidades, negras, res europeus, escravizados e desrespeita-
índias, femininas, pobres, escuta das ora- dos, cristianizados por uma igreja aliada
lidades ancestrais e dos gestos de todos, dos colonos, dos governos colonizadores
dos saber/fazer perante o infortúnio e a escravocratas, precisam de escrever a sua
sobrevivência, das teimosias da luta pela história, trazer à superfície as suas lutas,

34
ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS

o modo como perante as adversidades povos, e gerou tanta injustiça, resultado


preservaram muitos dos seus costumes, do exercício da ganância aristocrática,
da sua cultura e lutam ainda hoje pela burguesa e neoliberal dos mais podero-
construção dignificada de sua identidade. sos. Rota que transporta para o presente
A sua voz oculta durante séculos tem de os resultados avassaladores do colonia-
aparecer e ser gritada. Também os povos lismo, da escravidão, do holocausto, das
indígenas das américas, perseguidos, es- guerras, das ditaduras, da interferência
cravizados e desapossados de suas terras, desestruturante de países em 'todo-o-la-
pelo poder das armas e da força militar do', do desrespeito sem pudor pela condi-
ocidental, sem outra possibilidade, refu- ção humana, animal, da natureza.
giados em lugares remotos, têm de escre- E esta deslocação de mim, de procura
ver a sua história, desagarrando o que a do mim, não poderia ser nunca para me
história ocidental falseia. fazer ouvir, para ensinar, para apontar
As suas lutas de sempre e de agora, pre- caminhos. Forçosamente é uma deslo-
cisam de configurar um plano de articula- cação para a escuta, para a possibilidade
ção, com os movimentos sociais, com os de me entender a mim mesmo, para me
movimentos quaisquer que sejam que se soltar das lições demagógicas e falseadas
oponham às políticas hegemónicas neoli- da história que a iludem e escondem, e si-
berais, na construção de uma hegemonia lenciam as vozes dos desfavorecidos, per-
contingente que instale uma verdadeira seguidos e desprezados.
democracia radical que não subjugue os
… é preciso combater o apagamento da
trabalhadores. história da opressão, …
BUTLER (2012:76)
Defendemos que as lutas contra o sexis-
mo, o racismo, a discriminação sexual e
em defesa do meio ambiente, precisam
Nessa procura, entre outras demandas,
ser articuladas às dos trabalhadores num fui parar à Comunidade Quilombola de
novo projeto hegemônico de esquerda. Conceição das Crioulas, no sertão per-
LACLAU & MOUFFE (2015:47) nambucano, procurando conhecer esse
'território identitário' e partilhar a since-
É aqui que me coloco, numa urgência ridade do que sou. Escuta e presença pro-
de me deslocar de mim, de me desviar do longada, ano a pós ano, onde se estabe-
quadro ocidental que promoveu os indi- leceu uma confiança partilhada. Tempo
cadores de fracasso presentes, massacrou que tornou os abraços trocados na forta-

35
JOSÉ CARLOS DE PAIVA

leza de se saber partilhar a cumplicidade, Ali, no sertão, entendi a importância


onde se alimenta meu afã de entender a e urgência de repensar o que nos antece-
força de suas mulheres guerreiras, a cla- de, não como uma tarefa escolarizada ou
reza de sua luta justa, a partilha democrá- procura de erudição, mas como um de-
tica das decisões, o optimismo no olhar sagarrar das leituras do passado que nos
dos jovens, a mobilização de todos para construíram, na procura de outros modos
a escrita da sua história, pelas suas pró- de me entender como sujeito. No mundo
prias vozes. ocidental, em Portugal nunca quisemos
entender o que promovemos ao longo da
Quilombo é um movimento amplo e história como colonizadores, preferindo
permanente que se caracteriza pelas se- a encenação dos feitos heróicos das des-
guintes dimensões: vivência de povos cobertas marítimas e do 'desenvolvimen-
africanos que se recusavam à submissão,
à exploração, à violência do sistema co-
to' do Ultramar.
lonial e do escravismo; formas associati- Não posso, no entanto, ignorar que
vas que se criavam em florestas de difícil mais de metade da história da humani-
acesso, com defesa e organização sócio- dade, corresponde ao que se passou em
-econômico-política própria; sustenta- África antes dos 'feitos' portugueses,
ção da continuidade africana através de
como o que aconteceu nos outros conti-
genuínos grupos de resistência política e
cultural. NASCIMENTO (1980: 32) nentes, como nos lembra Basil Davidson
(1992:80)
Então, Conceição das Crioulas! Qui-
"(...) o tribalismo pré-colonial não era mais
lombo prestigiado na luta geral pelos específico de África do que fora o nacionalis-
direitos dos povos negros, pelo avanço mo do século XIX a Europa."
de sua luta pela devolução da terra, pelo
modo de fazer o seu Plano Político Pe- Havia vida social, política e cultural em
dagógico no exercício da sua Pedagogia África, nas Américas, na Ásia, antes do
Quilombola, Diferenciada, pela sua or- século XV, e perante esse esquecimento ge-
ganização política, pela entrega de um neralizado na Europa, preferimos colocar
amplo grupo de mulheres guerreiras aos os outros continentes 'fora' da história,
interesses da comunidade, pela valoriza- até os 'descobrirmos'.
ção cultural, pelo modo como exercitam A partir de então, o governo de Lisboa,
a democracia participativa, pela presença como a maioria dos reinos da Europa, na
do futuro, pela dignificação identitária, … avidez desmesurada de recursos e domí-

36
ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS

nios, inicia uma caminhada de saque ge- subjugando ao Império Português a inte-
neralizado para além dos mares, na pro- rioridade territorial, ampliou a penetra-
cura de meios de engrandecer o tesouro ção colonial, avançando com a destruição
e de conquistar novos mercados. Com a de Reinos e regimes políticos existentes,
tomada militar dos portos africanos, as- obrigando a população a uma assimila-
sumindo um racismo desumano, causá- ção da cultura, da religião e da identida-
mos sofrimentos atrozes, desapossando de portuguesa. Em todo este processos
os povos aí residentes de suas terras, de- como diz NASCIMENTO (1978:52) é
sestruturando os seus sistemas políticos notório que o "papel ativo desempenhado
de governo, de cultura e de vida. A partir pelos missionários cristãos na colonização
das fortalezas portuárias construídas se da África não se satisfez com a conversão dos
organiza o comércio escravo que utiliza o 'infiéis', mas prosseguiu, efetivo e entusiásti-
poder do dinheiro, as trocas das 'merca- co, dando apoio até mesmo à crueldade, ao
dorias novas' (que incluem armamento) terror do desumano tráfico negreiro."
manietando rivalidades entre povos e et- Ao longo destes séculos de exploração
nias africanas, usando e ampliando das do comércio de escravos e de delapidação
práticas guerreiras de escravização dos das matérias primas nunca foi tentado
vencidos. entender e valorizar a riqueza das múl-
Nos finais do século XIX, Portugal en-
tiplas culturas africanas, a sua filosofia,
frenta a resistência do Estado de Gaza a religiosidade existente. Nunca se va-
que domina todo o Sul de Moçambique. lorizaram as artes, o saber do corpo, o
A coroa portuguesa, já a braços com o Ul- sentido da vida e da morte, o modo de
timato da Inglaterra, não pode adiar mais
lidar com a natureza. Nunca se ouviram
a ofensiva militar contra Ngungunyane, o
imperador de Gaza. O desafio é claro: ou as vozes e as narrativas orais. Preferiu o
Portugal prova que domina efetivamente poder colonial, cego pelo racismo e pela
os territórios africanos ou perde-os a fa- ganância, silenciar, esconder, desquali-
vor de outras potências coloniais. ficar e desprezar o que se lhe oferecia. A
Mia Couto3 destruição e subjugação das culturas dos
povos africanos dificilmente permitirá
O povoamento colonial realizado ape- agora entender a sua dimensão plena e
nas mais tarde em Angola e Moçambique, recuperar a sua grandeza. Porque não

3 Mia Couto, O Bebedor de Horizontes, 2017, Lisboa,


pensar se não haveria nas culturas africa-
Caminho. pp7 nas ensinamentos que poderiam contra-

37
JOSÉ CARLOS DE PAIVA

riar a cegueira racionalista e economicista gião oficial aprovando a ideologia da ser-


do Ocidente, e permitir uma outra episte- vidão, assumir a negritude neste contexto
depois de ensinado que é feio ser preto,
mologia do olhar a Terra e de nela viver. bonito é ser branco, é mais do que cons-
A mesma dor que sinto ao enfrentar as ciência, é rebelar contra o estabelecido
dificuldades de entender o que foi escon- pelo poder hegemônico, é sinônimo de
dido, falsificado e destruído, pelo modo coragem.
ROSA (2015: 55)
como fui educado, pela linguagem euro-
cêntrica em relação a África, escondendo
as Áfricas que lá existiram e existem, com Com a chegada dos portugueses ao
Brasil, e perante a decepção de não se ter
a dimensão multifacetada de suas cultu-
encontrado de imediato o ouro e a prata,
ras e de sua história, pode-se transportar
a exploração colonial fixa-se no delapi-
para o Brasil. O colorido com que sempre
dar do pau-brasil. Entretanto a pressão
foi representado não é mais um jogo do
das outras nações conquistadoras força
esconde-esconde das atrocidades impos-
a coroa portuguesa a colonizar com outra
tas. O que se passa hoje no Brasil, digo-
intensidade o interior do Brasil. Ainda na
-o sem temer, é o prolongamento dos
primeira metade do século XVI se inicia o
mesmos interesses, do mesmo racismo
cultivo da cana, que obriga à despossessão
praticado pelas elites brancas, aliadas dos
das terras indígenas para a organização
interesses dos poderes financeiros neo-
de grandes extensões de plantação e à uti-
liberais. A minha compreensão precisa lização de muita mão-de-obra. A relação
ainda de negritar a atenção pelo que sem- inicial com os povos indígenas se altera
pre foi camuflado, escondido e evitado. para a captação forçada da sua utilidade
Também o Brasil nunca será entendido escrava. "Poucos sabem que, entre 1530 e
se não se aprofundar a ancestralidade que 1600, a exploração escrava dos índios vai
os negros escravizados transportaram ser a força motora da produção da colônia."
para suas terras e que constituem ainda GENNARI (2008:15). Perante as revoltas
fundações das identidades de grande par- iniciadas, através das armas e da ostenta-
te de sua população, negra e miscigenada. ção do poder branco e cristão, força-se a
escravatura ou expulsam-se os moradores
Ser negro em um país que promoveu a
indígenas de suas terras, promovendo de
escravidão negra por mais de trezentos
anos, diante de uma sociedade escravo- modo demasiado generalizado o seu ex-
crata enriquecida com o trabalho não termínio. Ao mesmo tempo o comércio
pago, e que obtinha ainda ajuda da reli- escravo para o Brasil se organiza, ganha

38
ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS

regularidade, aumentando progressiva- neiro e em S. Paulo.


mente o número de africanos transporta- Muito pouco se sabe do que se passou,
dos pela força e de modo desumano para ao longo destes séculos, embora se regis-
responder ao crescente desenvolvimento tem mais de 4 000 000 escravos impor-
do cultivo da cana-de-açúcar nas zonas tados e distribuídos pelo Brasil. Atrocida-
costeiras do nordeste, especialmente nos des escondidas como denuncia a leitura
estados da Bahia e de Pernambuco. da Circular Nº 29 de 13 de Maio de 1891,
assinada pelo Ministro das Finanças, Rui
O papel do negro escravo foi decisivo para
os começos da história econômica de um Barbosa, que ordenava a destruição pelo
país fundado, como era o caso do Brasil, fogo de todos os documentos históricos e ar-
sob o signo do parasitismo imperialista. quivos relacionados com o comércio escravo.
Sem o escravo a estrutura econômica do Nenhum argumento pode afastar a
país jamais teria existido. NASCIMEN-
TO (1978:49)
mancha horrenda no caminho da huma-
nidade que a escravidão representa, nem
Nunca poderemos sentir a dimensão abafado deve ser o grito de dor que os
do sofrimento dos que foram retirados povos negros passaram com a destruição
das suas famílias, das suas comunidades, das culturas e modos de vida existentes
do seu sítio, para embarcarem numa via- pela força colonial e pelo racismo desen-
gem de fome, cansaço e desesperança, e cadeado. A presença do sofrimento e da
serem despejados como escravos marca- injustiça que causámos faz parte do que
dos a ferro para uma vida de silêncio e so- nos constrói e do que somos.
frimento, de solidão, para um desconhe-
cido lugar de outra língua, de outro clima, … o suicídio, desconhecido no continen-
te africano, se torna comum em terras
de uma submissão a uma labuta diária de
brasileiras como forma de escapar a uma
15 horas, num ritmo de vida extenuante religiosidade odiosa e de grandes sofri-
que cedo terminava. mentos. Estimulado pela crença de que
A descoberta de ouro e diamantes no os seus espíritos voltariam para África, …
século XVIII no Estado de Minas Gerais, GENNARI (2008: 30)
originaram a expansão da escravidão para
sul. O mesmo movimento se realiza no Nesses tempos de escravidão, a resis-
século XIX com a queda da produtividade tência foi muita e assumiu formas que a
das minas e com o início do ciclo do café, história hegemónica esconde. Sabe-se
com plantações nos Estados do Rio de Ja- das revoltas, das fugas, da luta, da sub-

39
JOSÉ CARLOS DE PAIVA

missão silenciosa de sobrevivência. Adi- com ataques das autoridades coloniais,


vinham-se as vozes trocadas em surdina que assumem a força de expedições mi-
entre os escravos nos poucos momentos litares a partir de 1602. No entanto o
de isolamento, os discursos ocultos que quilombo resiste através de fugas e rea-
alimentavam a esperança e modos de in- grupamentos, constituindo e fortalecen-
submissão. do o seu sistema político, de eleição de
lideranças e de discussão em assembleia
O que pretendo mostrar é que nem as for- popular. O quilombo de Palmares agrupa
mas quotidianas de resistência, nem as
então mais de mil negros congregados na
insurreições ocasionais podem ser enten-
didas sem ter em conta a influência dos Serra da Barriga.
espaços sociais fechados onde essa resis- A submissão da nacionalidade portu-
tência pode ser fomentada e encontrar o guesa a Espanha (1581-1640), amplia os
seu próprio sentido. conflitos internacionais, originando a
SCOTT (1992:51)
criação da República das Províncias Uni-
das (Holanda e Bélgica). Sua pretensão
Durante todos estes tempos, em que os
expansionista, através das 'invasões ho-
índios que detinham todo o Brasil foram
landesas', resulta na ocupação da Região
sendo desapossados de suas terras, e os
Nordeste do Brasil pela Companhia Ho-
negros africanos obrigados à escravidão,
landesa das Índias Ocidentais, durante
foram muitas as lutas e os protestos à
parte do século XVII. Estes conflitos in-
condição que lhes era violentamente im-
ternacionais ampliados pela declaração
posta, entre as quais se conhece a fuga, a
de guerra pela Inglaterra, enfraquece o
insubmissão e a revolta, o crime, o suicí-
poder colonial, permitindo o desenvol-
dio e o banzo.
vimento de muitas revoltas de escravos
Já em 1597 se identifica a constituição
e de contínuas fugas dos engenhos. O
do quilombo dos Palmares, resultado
quilombo de Palmares cresce tanto que se
do acantonamento de um grupo de ca-
tivos fugidos de um engenho, depois de torna necessário formar novos mocam-
uma revolta violenta. Grupo que se foi bos, constituídos por negros, índios, par-
ampliando com a chegada sucessiva de dos e brancos.
outros revoltosos. O modo de vida comu-
"De acordo com uma crônica de 1678, a
nitário iniciado e as necessidades de sua população de palmares chega a ser esti-
sobrevivência geram reações adversas nos mada em cerca de 20 mil pessoas." GEN-
senhores dos engenhos, que respondem NARI (2008: 42)

40
ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS

Neste tempo, nos quilombos a sua pro- fiança (António Soares), entretanto feito
dução cria mesmo excedentes originando prisioneiro, levam ao seu assassinato (20
o estabelecimento de relações comerciais de novembro de 1695). Sua cabeça é cor-
na vizinhança com camponeses livres. O tada, salgada e enviada para Recife onde
regresso da dominação portuguesa orga- é exibida em praça pública. A morte de
niza de novo investidas militares sobre Zumbi apresentada como uma vitória do
os quilombos e a perseguição a escravos poder apenas patenteia a sua insubmis-
fugidos, gerando tempos de ameaça para são e confere a Zumbi dos Palmares um
a vida quilombola, que entendem ser simbolismo que alimenta até hoje a luta
necessário organizarem a sua defesa ar- quilombola e pela liberdade. E as lutas
mada. Tempos onde a vida quotidiana é continuaram, as lutas de Camoanga, no
perturbada pelas lutas e pelos despiques quilombo do Cumbe, …
entre a sua liderança. Ganga-Zumba vai
passar de 'Maiorais' a aliado dos fazen- Coincidência - ou mera continuidade na
luta libertária? - ao mesmo tempo em que
deiros perante promessas nunca cum-
ocorriam no Brasil as lutas palmarinas li-
pridas e face ao apoio da comunidade à deradas pelos escravos de origem bantu,
liderança, entretanto assumida por Zum- a intrépida rainha africana, Ginga, enca-
bi. Zumbi dando prioridade às exigências beçava a longa batalha, militar e política,
da guerra aberta pelos fazendeiros e pe- contra os invasores portugueses do seu
reino e das terras de Angola.
las autoridades coloniais organiza uma NASCIMENTO (1978:60)
heróica resistência perante estruturas
militares armadas, onde o canhão é já Esclarecer as encruzilhadas do presente
presença, e de grande número, incluindo implica entender a complexidade da vida
mercenários negros, iludidos com pro- de sofrimento dos negros escravizados, a
messas de alforria e terra. resistência silenciosa, o escape, a fuga e a
submissão, bem como a persistente luta
"Apesar de sua resposta heróica, a resis-
tência palmarina é destroçada, as casas travada em condições de profunda desi-
são queimadas e 510 quilombolas são fei- gualdade perante o poder dos fazendeiros
tos prisioneiros." GENNARI (2008: 54). e das autoridades coloniais, até mesmo
perante os conflitos com os pobres co-
Zumbi escapa com vida e reagrupa o lonos que na luta pela sua sobrevivência
que resta, começando nova resistência. se aliam aos fazendeiros comprados por
A traição de um antigo homem de con- suas promessas. É fundamental para es-

41
JOSÉ CARLOS DE PAIVA

clarecer a importância dos quilombos na trimónio de todo o quilombo.


luta pela abolição da escravatura, o des-
mascaramento do racismo ignóbil, a luta "A Conjura dos Alfaiates, esmagada na
Bahia em 1798, onde 4 negros foram os
contra o oculto na História do Brasil e de
únicos condenados à morte, após serem
África, negritar os contributos positivos enforcados em concorrida execução pú-
do Movimento Negro e dos Movimentos blica, seus corpos foram esquartejados,
Sociais pela liberdade em todo o Brasil. pendurados na via pública, e seus des-
No Nordeste do Brasil, onde a escrava- cendentes declarados malditos para sem-
pre." NASCIMENTO (1978:59).
tura se constituiu com a base de trabalho
que permitiu uma grande produção de
Muita bravura perante a malvadez por
riqueza, as fugas isoladas e organizadas
contar das lutas travadas que urge esclare-
formaram quilombos nas matas e zonas
cer.
inóspitas, onde se edificaram comunida-
des, construindo modos sociais de con- A gente foi ensinada que a gente não pres-
vivência, saberes de sobrevivência pelo tava que a gente era feia, que nosso cabelo
trabalho livre de seus moradores, exem- era ruim, que o nosso nariz era chato e era
plos de dignidade e de sociabilidade. Não defeito, e que a nossa cor, se a gente tives-
foi nunca um tempo de vida fácil, pelas se um jeito de mudar a nossa cor, a gen-
te tinha que mudar! A gente foi ensinada
agruras da terra, pelas frequentes secas, pra isso. Então, a gente não nasceu dessa
pela vida precária permanentemente as- forma, a gente foi ensinada a isso, a gente
saltada pelos 'homens do mato', pelos não é obrigado a viver com isso. A gente,
perseguidores enviados pelos senhores achando meios de mudar. A gente aqui
achou meios de mudar, e tá mudando! Já
dos engenhos e pelos exércitos governa-
mudou muito, muito, muito, muito!
mentais, pelas manobras dos fazendeiros Entrevista com Fabiana Ana, em 20 de
e coronéis apropriando-se indevidamen- agosto de 2011, in SILVA (2012:165)
te das terras compradas e povoadas. Por
isso a história de resistência e luta, marca A dimensão de luta permanente, assu-
da fibra guerreira dos quilombolas, quer mida na comunidade quilombola de Con-
tenha ocorrido no Maranhão (os balaios, ceição das Crioulas, de desocultação do
quilombo do Cosme, …), em Minas Ge- passado, de gritar as vozes ensurdecidas
rais (Campo Grande, Quariterê, …), na pelo poder hegemônico trazendo para o
Bahia (Revolta dos Malês,…), ou em presente a memória oral, a pesquisa dos
qualquer lado, tornou-se para sempre pa- documentos desvalorizados e ignorados,

42
ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS

adquiriu uma dimensão exemplar onde chegando ao Brasil procurando o enri-


quecimento fácil e rápido. A continuação
"O saber quilombola não pode ser resumi- do sistema esclavagista e o escândalo de
do, nem aprisionado em palavras, porque
um racismo entranhado, que ainda não
se estende no indizível e mesmo no incom-
preensível, … " ROSA (2015: 67). desapareceu, denuncia todas as tentativas
de atenuar a representação do sucedido
As lutas estabelecidas na comunidade apresentadas sobre a ideia da 'democracia
de Conceição das Crioulas são entendidas racial', que nunca foi real.
como o ato de “pertencer” à comunidade Não fosse suficiente a agressividade das
herdada das crioulas. SILVA (2012:67). condições de sobrevivência no árido do
A constituição do quilombo de Concei- Sertão, e a pobreza das vidas, o crescente
ção das Crioulas é já conhecida, sabendo- interesse dos coronéis e dos fazendeiros
-se da chegada de seis mulheres negras, de expansão de seus terrenos para o negó-
acompanhadas por um homem, em finais cio do gado, dá lugar a uma contínua luta
do século XVIII, que aí se fixam e que com entre estes interesses em desapossarem a
o produto de seu trabalho desde cedo fo- comunidade que se vai constituindo e a
ram comprando as terras (1802), cuja escri- luta desta pela territorialização de seus ter-
tura tinha dezasseis selos, era carimbada com renos. São demasiados os incidentes que
o carimbo da Torre e feita por um tal José Del- perturbam a paz do território de Conceição
gado. No Sertão pernambucano vai sendo das Crioulas, mas são correspondentes as
criada uma pequena comunidade que vai respostas de luta e resistência encontrada.
crescendo e se miscigenando com índios
e brancos habitantes das proximidades, "Já houve de tudo aqui; meu marido foi
preso dento dum quarté véio; pra que? Pra
correspondendo a uma área de 3 léguas em
roubar as iscritura das tia dele, pra intre-
quadra. gar a eles (os “brancos”). Meu marido foi
A independência do Brasil, em 1822 não preso, aqui dentro dessa Conceição num
vai alterar a dominação exercida por bran- quarté véio qui tinha bem ali. Foi ele e um
cos, para os brancos e pelos brancos, res- primo dele e outros qui também já mor-
guardando a estrutura económica, política rero. Eles queriam forçar eles roubar, aí
prendero".4
e militar que congela as relações sociais e
culturais. A supremacia colonial transfe-
re-se para as elites brancas, descendentes 4 Depoimento de dona Maria Antônia, recolhida em janeiro
de colonos ou novos emigrantes que vão de 2000. LEITE (2012:201).

43
JOSÉ CARLOS DE PAIVA

A comunidade já historicizou sobre o reivindicar uma identidade quilombola.


que se foi passando, na demanda de cons- LEITE (2012:274)
trução de sua 'memória permanente', quer,
por exemplo, da resistência aos polícias e Agostinha Cabocla (1901-1990), pela
desertores revoltosos; ou da guerra entre sua dedicação à luta pela terra em defesa
a comunidade e o grupo de fazendeiros: da comunidade destaca-se na década de
os Urias. 1960, na defesa perante os usurpado-
res dos documentos de posse das terras,
"… passividade é um termo que não cabe tornada um exemplo das mulheres guer-
quando se trata da luta do povo negro e reiras da comunidade. Juntamente com
em destaque, nas comunidades quilom- António Andrelino Mendes não esmore-
bolas." NASCIMENTO (2017:49)
ceram nunca nessa luta.
Os anos subsequentes à fundação de
(...) a grilagem cartorial é uma questão,
Conceição das Crioulas foram marcados,
aonde o pessoal diz que eles têm o do-
no âmbito da política fundiária, pela ex-
cumento, que a terra é escriturada, aí tio
tinção da Lei das Sesmarias, em 1822, e
Virgínio chega e diz: ah! essa escritura é
a Lei de Terras, em 1850. Essa legislação,
falsa! Ela não existe. Então, já havia uma
particularmente a Lei de Terras, funcio-
escritura e de repente se criaram novas
nou como estratégia das elites agrárias
escrituras. Isso se denomina grilagem
brasileiras para manter inalterada a es-
cartorial. Alguém pede a alguém prá fazer
trutura agrária vigente, impedindo o livre
um documento sem o consentimento do
acesso da população pobre à terra. Assim,
verdadeiro dono, foi o que eu pude enten-
à tão singular origem de Conceição das
der da leitura que fizemos sobre grilagem
Crioulas, segue-se uma história marca-
cartorial.5
da por dominação, expropriação e con-
flitos, alternando momentos de tensão,
negociação e tréguas entre as crioulas e Perante as lutas desenvolvidas pelo
seus descendentes, de um lado; e gran- Movimento Negro, em 1988, a Consti-
des proprietários rurais do sertão central tuição Federal reconhece o direito dos
pernambucano, de outro. Essa conjun-
tura permaneceu praticamente intocável
quilombos, registrando no Ato das Dis-
até que, a partir da década de 1980, os posições Transitórias, no Artº 68: “Aos
habitantes daquela comunidade, influen- remanescentes das comunidades dos quilom-
ciados pelos ideais no Movimento Negro bos que estejam ocupando suas terras é reco-
Brasileiro e de instituições da sociedade
civil, tomaram consciência de suas con- 5 Depoimento de Maria Aparecida Mendes Silva, recolhida
dições históricas e sociais, e passaram a em 29/01/10, LEITE (2012:90)

44
ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS

nhecida a propriedade definitiva, devendo o O desenvolvimento de uma consciência


Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. política perante os enfrentamentos que
a comunidade foi sofrendo, gerou, com
Nas discussões da Assembleia Nacional maior intensidade no final do século XX,
Constituinte, o movimento negro que uma destreza organizativa e uma capa-
inicia sua organização política no final
dos anos 1970 enfrentou os ruralistas, os
cidade de liderança, exercida em grande
latifundiários, as manchetes e editoriais maioria pelas mulheres, negras e guerrei-
de jornais e revistas. Mobilizados criaram ras de Conceição das Crioulas.
o ambiente político favorável às suas rei-
vindicações: a regularização do território "A gente passou a perceber que uma das
quilombola, e o respeito à cultura negra. ausências que afetava a nossa vida dire-
ROSA (2015: 32) tamente, era a questão da educação, né.
Então, entre as pautas que a partir desse
A pressão internacional do movimento processo de reestruturação, de reconstru-
dos trabalhadores também se faz sentir, e ção da história da comunidade, nós pas-
samos a discutir educação. Mas naquele
a Convenção 169 da Organização Inter- momento nós discutíamos a ausência da
nacional do Trabalho, determina no seu educação. E fomos avançando, e depois
artº 26 que as comunidades quilombolas passamos a perceber que não era só a au-
têm o direito de "criarem suas próprias ins- sência da educação que nos afetava, para
tituições e meios de educação, a fim de res- além da ausência da educação, a educação
que nos era oferecida também não batia
ponder aos valores de todas as demais aspira- com aquilo que a gente tava discutindo
ções sociais, económicas e culturais". no processo de reorganização e de rees-
truturação da comunidade. Até então era
Nesse contexto, entendemos que a escola isso. Foi a partir daí que a gente começou
precisa contar e recontar as histórias, os a fazer dois movimentos: um, era pra ter
mitos, os enredos que, protagonizados a escola, e o outro era pra que essa escola
por nossos antepassados, fizeram com oferecesse uma educação que dialogasse
que resistíssemos a todas as formas de com aquilo que a gente tava discutindo
opressão impostas pelos que invadiram no território sobre a questão da organici-
nosso território. Um projeto político dade do território, a luta pela reconstru-
fortemente enraizado na luta diária por ção do território."6
justiça e por direitos, e que possa garan-
tir um futuro promissor para as próximas Minha aproximação ao território qui-
gerações.
NASCIMENTO (2017:52/53)
6 Depoimento de Givânia Silva, recolhida em agosto de 2017.
NASCIMENTO (2017: 64)

45
JOSÉ CARLOS DE PAIVA

lombola de Conceição das Crioulas se resultava do modo politicamente esclare-


inicia a partir das relações interculturais cido como no quilombo se enfrentavam
realizadas na periferia da cidade do Re- os desafios pela sobrevivência, pela digni-
cife em colaboração com o Centro Luiz ficação da identidade do povo negro, pela
Freire de Olinda. Iniciava (1996) o 'mo- educação, saúde,…
vimento intercultural Identidades' sua Nesse processo de permanente ação, é
presença no Nordeste do Brasil, embora concedido o título de posse à AQCC, As-
minha relação remonte a 1993 (projecto sociação representativa da comunidade
'cumpliCIDADES'). O convite de Delma fundada em 17 de julho de 2000.
Silva para deslocar o 'Identidades' para o
Sertão pernambucano colheu o imediato A afirmação da identidade de ‘remanes-
entusiasmo perante o que já se reconhe- cente de quilombo’ em Conceição das
Crioulas remete à origem das crioulas,
cia ser o caso singular de luta travado no mas nega a condição de escravas e res-
quilombo de Conceição das Crioulas. salta a tênue alteridade entre índios e
negros. Seu Virgínio, na sua fala, afirma
"Em 2003, contacto estabelecido, foi que os negros que chegaram em Concei-
criada uma oficina de artes plásticas mi- ção ‘arranjaram’ a liberdade se aliando
nistrada por Iva Correia e Mónica Faria aos índios. O ideal de liberdade aliado ao
de Porto e uma oficina de teatro que foi estigma de estar à margem de uma socie-
dada pelo ator moçambicano Rogério dade provocaram em muitos momentos
Manjate. (…) No ano seguinte. 2004, no sertão nordestino a cooperação entre
o Identidades voltou à Conceição das negros e índios, que, conforme já foi colo-
Crioulas para sentir as respostas da co- cado anteriormente, deram conformação
munidade à ação inicial e ao interesse por a territórios em que esta aliança repre-
uma construção de uma base na comuni- sentava a existência de uma organização
dade de caráter mais permanente." ZAC- à parte, fora do controle colonial.Laudo
CARA (2016:136) Antropológico, 1998, p.21

Desde então não mais o "Identidades" Minha deslocação, de mim, para Con-
se afastou da comunidade tornando-se ceição das Crioulas, na possibilidade que
gradualmente cúmplice de suas lutas, a partilha franca e o acolhimento camara-
companheiro de suas caminhadas. Desde da me é oferecido (é correto lembrar aqui
logo se entendeu que o reconhecimento o conceito de dádiva de Marcel Mauss),
pelo governo federal (1998) do território alinha-se com uma necessidade de me-
enquanto "remanescente" de quilombo, lhor me entender com a história que me

46
ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS

antecede e que me compõe (branco, ho- Dormir nas suas casas, participar nas
mem, europeu, universitário). Conheço reuniões da comunidade, entrar nas
a história eurocêntrica do progressivo escolas, trabalhar com os artesãos,
'mundo melhor', participo no esforço de chorar as dores partilhadas e sentir o
construção de uma visão política agonís- peso do luto, sentar numa sombra e
tica que reconhece o fracasso do presente respirar as conversas dos mais velhos,
e quer libertar a possibilidade contingen- das crianças, das lideranças, o trance-
te de futuro, mas tenho cada vez mais lim, jogar na quadra com as 'meninas
consciência que não frequentando outras campeãs', festejar os anos de Dandara,
realidades, experienciando movimentos cozinhar junto e comer os sabores da
de luta agonística, não ouvindo as vozes natureza e dos saberes ancestrais, de-
que não foram contaminadas pelo racio- senhar junto ou filmar com o Crioulas
nalismo ocidental, nem estimulando a Vídeo, colaborar na difusão das notí-
leitura dos silêncios enterrados, não en- cias e no relato dos acontecimentos,
contrarei modo de lidar com a inquieta- lutar.
ção constante que me habita. São privilégios de um ocidental, des-
cendente dos colonizadores, a quem é
"Somente em certos casos estas formas
de resistência adquirem um caráter polí- possibilitada uma aprendizagem sem li-
tico e se tornam lutas dirigidas a pôr fim mites, no terreno onde ela é mais essen-
a relações de subordinação como tais." cial na contemporaneidade, no político.
LACLAU & MOUFFE (2015:235). É com este olhar de agradecimento que
reconheço a exemplaridade das vidas
Como reconhece Denilson Rosa em sua guerreiras de Givânia, da Cida, de Andre-
tese de doutoramento sobre a Comunida- lino Mendes e de Adalmir, da Valdeci, de
de de Conceição das Crioulas: Diva, da Lourdinhas, de Penha, de Rozea-
ne e Zélia, de Marinalva, de Fabiana, de
"Nesta comunidade singular a resistên-
cia ocupa o dia-a-dia, reside na tranqui- Keka e Lena, de Maria Alzira e de tantas
lidade como se constrói cada momento, outras mulheres lutadoras, na Vila União,
na serenidade de cada luta, ou seja, no no Sítio Paula, …
exercício pedagógico, ou no convívio dos Transformando Conceição das Criou-
jovens, ou nas reuniões da comissão das
mulheres, ou nas amplas reuniões da po-
las num Território Quilombola, a popu-
pulação." ROSA (2015: 39). lação negra assumiu-se nesse orgulho, lu-
tando pelos direitos específicos do povo

47
JOSÉ CARLOS DE PAIVA

negro, num processo de leitura e releitura Fazem parte de conceito também as for-
das memórias que forjam a construção da mas de organização da comunidade, os
processos educativos, as lutas para aces-
identidade étnica do quilombo. Esta luta sar direitos. SILVA (2012:141).
centrada na restituição da posse plena e
inalienável da terra, criou os instrumen- A escola quilombola de Conceição das
tos organizativos e políticos adequados, Crioulas vem ao longo de sua história
coincidentes com o fazer/junto da comu- trabalhando para desconstruir conceitos
nidade, com práticas democráticas de de- e concepções colonizadoras impostas há
anos pelos sistemas de ensino no Brasil.
cisões partilhadas.O entendimento polí- Para nossa comunidade a escola é im-
tico do valor fundamental da Educação e portante para reafirmar nossa historia,
da Educação Escolar foi estabelecendo na nossa cultura, valorizar nossa organiza-
Comunidade uma rede participada por ção e nossa identidade étnica, fortalecer
nossos conhecimentos próprios e o cui-
todos que consagra hoje a rede escolar
dado com o nosso território e com a Na-
do território, onde a população realiza os tureza. Entendemos que a partir dos co-
seus estudos até ao ensino médio. nhecimentos das pessoas mais velhas da
comunidade e da história de luta e resis-
"Educação Escolar Quilombola é um tência do povo de Conceição das Crioulas
instrumento de luta, de identificação, de é possível descolonizar as mentes e as
acolhimento dos conhecimentos locais práticas, reavivando os valores presentes
e universais, de valorização da pessoa, no modo de viver em coletividade.[...] É
da afirmação enquanto sujeitos de di- importante também que a escola ensine
reitos, conforme mencionado." SILVA, a ler, escrever, contar e interpretar bem,
(2016:191). de forma que esse tipo de conhecimentos
possa contribuir para o empoderamento
dos alunos e alunas no enfrentamento
Mas não é apenas a existência de es- de todas as formas de injustiças e que,
colas, é o facto de nelas ocorrer, como sobretudo, fortaleça o projeto de vida
analisa em sua Dissertação de Mestrado, coletiva das pessoas que vivem nesse ter-
Márcia do Nascimento, "um modo de fazer ritório.7
educação escolar aqui no quilombo", con-
ceitualizado como 'Pedagogia Crioula'. O processo educativo que se pode
acompanhar, gerado na gestão inteligen-
"Entende-se como “Nossa Educação te como Ensino Específico e Diferencia-
Quilombola”, o jeito de fazer, contar,
recontar, transmitir a história da comu- 7 PPP das Escolas do Território Quilombola de Conceição das
nidade, seus valores, costumes, crenças. Crioulas, 2014/2015

48
ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS

do, entregue a professoras e professores intromissão dos meios de comunicação e


da comunidade, dá corpo a um projecto as redes-sociais, controlados pelos pode-
Político Pedagógico realizado em colec- res hegemónicos, que promovem desejos
tivo com a população, que deu sentido de modernidade e desvios de atenção pe-
local à necessidade de transformação do rante as prioridades estabelecidas. Desa-
"currículo em vida e não em uma letra mor- fios que são colocados nas Universidades
ta".8 Nas escolas e na comunidade se for- onde as professoras/estudantes e os pro-
mam as lideranças na aprendizagem dos fessores/estudantes realizam suas gra-
direitos e de sua história, se intensificam duações e estudos pós-graduados e são
as relações sociais com os moradores do sujeitos a exercícios de linguagem acadé-
território quilombola, se encaram as re- mica e uso de metodologias inócuas, que
lações com os organismos oficiais, se en- apenas dificultam o estudo e as pesquisas
tendem os conflitos com os fazendeiros e que gerem melhores práticas educativas
o percurso de luta pela restituição da ter- na comunidade. Conflitos transportados
ra. Na escola se sonha e se vive. pelos visitantes, que nas suas boas inten-
ções transportam seus problemas e sua
… uma educação escolar protagonizada visão do mundo para a comunidade, con-
pelas pessoas da própria comunidade frontando-a com discussões que não são
onde estão inseridas, é uma ferramenta
consideradas fundamentais.
capaz de reafirmar a identidade do povo e
rumar por caminhos que fortaleçam a sua
história, através de processos inerentes Em termos simples, a tarefa de produzir
ao cotidiano da comunidade, nos diver- localidade (como uma estrutura de sen-
sos espaços educativos onde ela acontece. timento, uma propriedade da vida social
NASCIMENTO (2017: 18) e uma ideologia de comunidade situada)
é cada vez mais uma luta. APPADURAI
(1966:251)
Há um deslumbramento confessado
nesta escrita, mas não se ignoram os con- O Encontro9 que deu substância para
flitos existentes numa comunidade dinâ- este livro, permitiu vivenciar a força da
mica e aberta ao exterior, que enfrenta os comunidade, o seu discernimento peran-
desafios que a sua história criou, as pro- te os desafios que sabe ter de enfrentar.
blemáticas da contemporaneidade onde a
9 Encontro com as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da
8 Depoimento de Maria Diva, recolhido em 13 denovembro Comunidade Quilombola de Conceçião das Crioulas, 16 a 24
de 2011. SILVA (2012:141) de julho de 2017.

49
JOSÉ CARLOS DE PAIVA

Permitiu a todos os cerca de 200 partici- nos detalhes, suspender a opinião, sus-
pantes, deslocados das várias universida- pender o juízo, suspender a vontade, sus-
pender o automatismo da acção, cultivar
des (vários Estados do Brasil, Cabo Verde
a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e
e Portugal), e de comunidades vizinhas, os ouvidos, falar sobre o que nos aconte-
estudantes, professores, artistas, arte- ce, aprender a lentidão, escutar os outros,
sãos, e lideranças de outra comunidade cultura a arte do encontro, calar muito,
próxima (Águas do Velho Chico - Oro- ter paciência e dar-se tempo e espaço.
có-PE). Criou possibilidades para se ex- LARROSA (2014:25)
perienciar um tempo, que foi tempo de
silêncio, espaço para cada um poder sair Sou grato na certeza de minha incom-
dos ruídos que o povoam, afastar-se dos pletude, inscrito no que há-de vir.
ódios, como diz AGAMBEN (2009: 20)
"Um homem inteligente pode odiar o seu
tempo, mas sabe em todo o caso que lhe per- Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Nidità (2009). Nudez,
tence irrevogavelmente, sabe que não pode fu-
Relógio D'Água (2010), tradução de Miguel
gir ao seu tempo.", e escutar através do que Serras Pereira
não tem perto de si, a sua alterada voz. APPADURAI, Arjum. Modernity at Large -
O Encontro também evidenciou a difi- Culture Dimensions of Globalization (1966).
culdade de todos nós que para lá se des- Dimensões Culturais da Globalização, Edi-
locaram, herdeiros da cultura ocidental e torial Teorema (2004), tradução de Telma
universitária, transportando cada um o Costa
seu estatuto de conforto, de se entrega- BRUNEL, Sylvie (1997). Ceux qui vont mourrir de
faim, Os que vão morrer de fome (1998), Campo
rem plenamente à escuta e à aprendiza- das Letras, tradução de Elsa Andriga
gem oferecida, de suspenderem a tenta-
BUTLER, Judith (2012). Parting Ways. Jewishness
ção de querer, ainda que por boas causas, and the Critique of Zionism. Caminhos Diver-
transferir para os outros, os seus modos gentes: Judaicidade e crítica do sionismo (2017).
de ver e de saber. São paulo, Bomtempo. Tradução de Rogério
Betoni.
… um gesto de interrupção, um gesto que CORDELLIER, Serge (org) (1999), Le nouvel état
é quase impossível nos tempos que cor- du monde - Les 80 idées-forces pour entrer dans
rem: requer parar para pensar, parar para le 21 siécle. O novo estado do mundo - 80
olhar, parar para escutar, pensar mais de- ideias-força para entrar no sécilo XXI, Porto,
vagar, e escutar mais devagar; parar para Campo das Letras, 2000, tradução de Eduar-
sentir, sentir mais devagar, demorar-se da Castro, Joana Caspurro e Raquel Mouta.

50
ESFORÇO DE APRENDIZAGEM COM AS EXPERIÊNCIAS VIVENCIADAS

DAVIDSON, Basil (1992), The Black Man's ROSA, Denilson Pereira (2015). Interações
Burden, O Fardo do Homem Negro, Campo das culturais nas artes visuais: intervenção artísti-
Letras - Editores (2000), tradução de Jorge ca no quilombo Conceição das Crioulas. Tese
Almeida e Pinho de Doutoramento em Educação Artística na
FOUCAULT, Michel (2015). Qu'est-ce que la Universidade do Porto. Repositório Público
critique? suivre de La culture de soi. O que é a crí- da U. Porto
tica? seguido de A cultura de si. Edições Texto & SCOTT, James C. (1992). Domination and the
Grafia, Lisboa, 2017. Tradução de pedro Elói Arts of Resistence: Hidden Transcripts . A Domi-
Duarte. nação e a Arte da resistência: Discursos Ocultos,
GENNARI, Emilio (2008). Em busca da Terra Livre (2013), tradução de Pedro Serras
Liberdade: traços e lutas escravas no Brasil. São Pereira
paulo, Editora Expressão Popular. SILVA, Givânia Maria da (2016). Educação e luta
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Socialista: Por uma política democrática radi- processo de luta política: a experiência de "Edu-
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ção, Universidade de Brasília.
LARROSA, Jorge (2014). Tremores: escritos sobre
experiência. Grupo Autêntica, Belo Horizonte SOUZA, Edileuza Penha de & NUNES, Georgina
Helena & MELO, Willivano Ferriera de
LEITE, Maria Jorge dos Santos (2012),
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Movimentos Sociais e processos educativos: A
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constituição do sujeito coletivo na luta por direi-
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Tese de Doutoramento em Educação Brasilei- ZACCARA, Madalena (2016). A viagem de volta:
ra, Universidade Federal do Ceará. Ações do Movimento Intercultural Identida-
des em Comunidades de Colonização Lusa.
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Petropólis: Vozes.
NASCIMENTO, Abdias (1978). O Genocídio do
Povo Brasileiro: Processo de um Racismo Masca-
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NASCIMENTO, Márcia Jucilene do (2017),
Por uma Pedagogia Crioula: Memória, Identida-
de e Resistência de Conceição das Crioulas – PE
(Dissertação de Mestrado em Desenvolvi-
mento Sustentável junto a Povos e Territórios
Tradicionais – MESPT, UnB)

51
52
percorrendo 560 km (quinhentos e ses-
Saber da senta quilômetros).2

resistência, sabor Nos últimos doze anos, pude visitar


da resistência mais de trinta vezes o território de Con-
ceição das Crioulas e ser visitado algu-
FELIPE PERES CALHEIROS1 mas vezes pelos amigos crioulos e amigas
crioulas em Recife, percorrendo longos e
Mulher negra descendente das crioulas profundos quilômetros de amizade e ad-
que, na metade do século XX, tornou-se miração. Pessoas, gestos, falas e perspec-
a principal referência pela sua coragem tivas que me fizeram repensar meu lugar
e resistência na defesa do território de
e minha presença no mundo, em diversos
Conceição das Crioulas. Fez oposição
aos ocupantes que, ao chegarem no ter- aspectos.
ritório, estabeleceram o sistema de com- O motivo da primeira visita em 2006,
pra das terras das crioulas. Agostinha para além de conhecer de perto a comu-
Cabocla era a guardiã do documento nidade da qual já ouvia tanto falar, foi es-
herdado das crioulas. O referido do- tabelecer uma parceria, para a realização
cumento estaria registrado do Livro do
Tombo em Portugal e possuía 15 selos. de oficinas de audiovisual em quilombos
Segundo os relatos dos mais antigos, a pernambucanos, junto com o Crioulas
defesa de Agostinha Cabocla era de que Vídeo - primeira produtora audiovi-
só poderia ser vendido parte do terri- sual quilombola brasileira, formada em
tório se todos(as) os(as) descendentes 2005 a partir da iniciativa da Associação
das crioulas estivessem de acordo e assi-
nassem. Diante dos descontentamentos Quilombola de Conceição das Crioulas
com os ocupantes não descendentes das (AQCC) e do IDENTIDADES ‘movimen-
crioulas, Agostinha Cabocla chegou a se to intercultural’. O nome então dado ao
deslocar até a cidade de Recife para par- projeto de formação para o autoregis-
ticipar de audiência na busca de manter tro audiovisual quilombola foi Tankalé,
o território de Conceição das Crioulas
em nome de seus herdeiros(as). Esse
uma palavra da língua iorubá que signi-
deslocamento feito por Agostinha Ca- fica “contar para todo o mundo”. Em dez
bocla, segundo os relatos, deu-se a pé, anos de atividades o projeto percorreu
mais de 10 comunidades e encontrou
1 Estudante do programa doutoral em Educação Artística, cerca de cem jovens que participaram das
Universidade do Porto e Universidade de Lisboa; Investigador
do ID_CAI / i2ADS - Instituto de Investigação em Arte,
Design e Sociedade. 2 SILVA, 2012, p. 66.

53
FELIPE PERES CALHEIROS

oficinas e experimentaram processos co- Dos dispositivos e da resistência


letivos e democráticos de produção au- O diálogo contínuo com a AQCC, na
diovisual. preparação do evento, apontou que o foco
Inicialmente atuando como educado- da oficina de produção audiovisual seria,
res e educadoras, a equipe do Crioulas como em outras atividades, o das temá-
Vídeo assumiu, em quatro anos, a dian- ticas que se relacionam com a afirmação
teira do projeto, ocupando a coordena- identitária e política da comunidade, bem
ção e a produção das atividades. Tive a como a luta pelos direitos do povo qui-
chance valiosa, durante esse tempo, de lombola. E, do ponto de vista prático, o
viver de perto e junto com os amigos e interesse presentado foi o de realizarmos
amigas de Conceição a experiência de todas as gravações utilizando as câmeras
conhecer outras comunidades por den- dos celulares dos próprios participantes,
tro, debater o horizonte e as questões como forma de estimular uma nova pers-
da luta quilombola e principalmente de- pectiva em relação a esses dispositivos,
bruçar-me sobre as lições de autonomia cada vez mais presentes também na vida
e afirmação política que me foram ofere- do povo de Conceição.
cidas por muita gente. A chegada desses dispositivos tecnoló-
Tendo em vista que as oficinas de au- gicos de informação e comunicação, as-
diovisual do Tankalé eram facilitadas sim como outros - a exemplo da TV, do
pelos próprios documentaristas qui- rádio, da telefonia, dos equipamentos de
lombolas de Conceição para jovens de foto/vídeo, e até mesmo dos livros, bi-
outros quilombos, sempre coube a mim bliotecas e escolas - sempre costumaram
e aos demais colaboradores não-quilom- causar grande impacto nos ambientes
bolas atuar mais no planejamento e no em que aportam. Mas em relação aos
suporte das atividades pedagógicas do quilombos, quase sempre estruturados
que com as oficinas diretamente. De em estratégias de resistência através do
forma que, no “Encontro com as artes, distanciamento físico e geográfico, bem
a luta, os saberes e os sabores da Comu- como de articulação coletiva em defesa do
nidade Quilombola de Conceição das território, do grupo e seus laços de união,
Crioulas”, depois de tantos anos, voltei parentesco e história comum - como tam-
a experienciar como educador uma ofi- bém é o caso de outros povos tradicionais
cina para quilombolas, dessa vez vindos - é preciso levar em consideração o quan-
de variados sítios de Conceição. to que novos genocídios e avalanches

54
SABER DA RESISTÊNCIA, SABOR DA RESISTÊNCIA

culturais aconteceram e acontecem com ainda poucas casas tinham acesso a apa-
a importação dessas novas estruturas de relhos de TV. O hábito de serem filmados
subjetivação e mesmo de dessubjetivação e gravados, sem ter qualquer mecanismo
da população, no sentido mesmo de mo- de controle sobre a narrativa construída
dificação das formas de ser e de pensar e sua exposição midiática para dentro e
das pessoas a respeito de si próprios e do para fora do território, levou os integran-
mundo em que se inserem. tes da Associação a solicitar uma oficina
Traçando um paralelo, é interessante de vídeo ao IDENTIDADES ‘movimento
observar quão crucial foi, ao longo das úl- intercultural’, através do contato com o
timas décadas, a percepção da AQCC e do Centro de Cultura Luiz Freire, em 2005.
movimento quilombola sobre as práticas Aposta que deu certo com a formação
educacionais formais dentro dos territó- do Crioulas Vídeo, equipe formada por
rios. A luta pela educação diferenciada es- jovens de Conceição das Crioulas, que
truturou caminhos inegavelmente impor- passaram a atuar produzindo conteúdo
tantes em Conceição para a formação de audiovisual sobre a própria comunidade
novas lideranças, para a ocupação de car- e sua luta, colaborando interna e exter-
gos em instituições públicas e privadas, namente com a comunicação do quilom-
mas principalmente para o fortalecimen- bo. Nessa perspectiva, se levarmos em
to das questões do extra-escolar e da prá- consideração os aspectos da chegada da
tica política, dentro da rotina de profes- oferta escolar efetiva e dos dispositivos
sores e estudantes. O debate e a atenção tecnológicos de produção de imagens em
ao planejamento político e pedagógico Conceição, podemos observar o quanto o
dos cursos e a integração do aprendiza- fortalecimento e a projeção política local,
do com o cotidiano comunitário tiraram nacional e internacional da AQCC fize-
da educação escolar formal boa parte do ram a diferença para a estruturação da co-
seu caráter originariamente colonizador e munidade no final do século XX e começo
ocidental, nesse quilombo. do século XXI. Exemplos, ao que parece,
Outro caso interessante é o da iniciati- que poderiam ilustrar o entendimento do
va política da comunidade de Conceição, esforço de “profanação” dos dispositivos,
ao deparar-se desde os anos de 1980 com conforme sugerido por Agamben como
a constante chegada de realizadores de estratégia de intervenção sobre proces-
vídeo e de equipes de reportagem de di- sos de subjetivação que seguem sendo
versos veículos de comunicação, quando replicados indefinidamente pelo sistema

55
FELIPE PERES CALHEIROS

capitalista ao redor do mundo, tendo em marginalização de setores historicamente


vista o seu fundamental caráter de con- invisibilizados, como a população negra e
centração de poder político e econômico rural, que em pleno século XX, tal qual ain-
nas mãos de alguns. da ocorre em parte substancial do mundo,
ainda padeciam de condições desumanas
Amar sem temer ou breve retrospecto de vida e principalmente de fome, pelas
político periferias e interiores do Brasil.
Há vinte anos participando e colabo- No começo do século XXI, a crescente
rando com movimentos sociais e políticos insatisfação da população com a catás-
diversos - estudantil, indígena, pelos direi- trofe da desigualdade sócio-econômica
tos humanos, pelo direito à terra, pela de- brasileira, a organização dos movimentos
mocratização da comunicação - e há quin- sociais em torno de uma candidatura à
ze anos efetivamente dedicado ao apoio da esquerda, e a articulação entre as lideran-
causa quilombola, foi-me possível conhe- ças partidárias dos trabalhadores e o em-
cer histórias, pessoas e iniciativas, assim presariado levaram ao poder o Luís Inácio
como testemunhar no cotidiano de algu- LULA da Silva. Por mais que a liderança
mas comunidades a repercussão de lutas, de LULA e do PT tenham-se construído
conquistas e revezes, ao longo desse tem- historicamente em torno da luta sindical
po. Desde a época do governo neoliberal e dos movimentos sociais, a composição
de Fernando Henrique Cardoso, de inten- heterogênea com setores conservadores
sa criminalização dos movimentos sociais da sociedade brasileira em prol da dita
e da desestruturação das escassas políti- governabilidade e da aprovação de pau-
cas públicas de reforma agrária, educação tas perante o poder legislativo, limitaram
e saúde, percebia-se o quão difícil seria drasticamente muitas das ações espera-
construir um governo verdadeiramente de das por décadas pelos movimentos qui-
esquerda no Brasil, após a ditadura militar lombola, indígena e dos sem-terras. Os
iniciada em 1964, tendo em vista a extrema latifundiários, os banqueiros e os donos
concentração de poder no controle das ter- da mídia - somados à crescente força das
ras, da mídia e do sistema financeiro, jun- igrejas neopentecostais - impediram a
tamente com o histórico financiamento implementação de projetos sociais im-
privado de campanhas eleitorais. A recente portantes, através de estratégias de fisio-
e lenta redemocratização brasileira reper- logismo já conhecidas há muito tempo
cutiu para os anos 1990 na manutenção da pelo povo brasileiro. A repercussão para

56
SABER DA RESISTÊNCIA, SABOR DA RESISTÊNCIA

a realidade dos quilombos foi justamen- judiciário brasileiro. Em poucos meses,


te a experiência ambivalente de testemu- conseguiu-se destruir políticas e expe-
nhar grandes conquistas acontecerem - a riências democráticas em diversos cam-
exemplo da criação da SEPPIR (Secreta- pos estratégicos da atuação estatal brasi-
ria de Promoção da Igualdade Racial) e leira. Seja na saúde, educação, economia,
a aprovação do Decreto 4.887/03, que comunicação, agricultura, assistimos a
define o processo de regularização dos sérios retrocessos que colocaram em ris-
territórios quilombolas - e, ao mesmo co inclusive a situação dos quilombos do
tempo, assistir à multiplicação de sérios Brasil, em relação à educação diferencia-
entraves às políticas públicas criadas para da, à devolução dos territórios, ao atendi-
os quilombos. A despriorização do Insti- mento médico específico e outras políti-
tuto Nacional de Colonização e Reforma cas compensatórias fundamentais à vida
Agrária (INCRA) e o grande investimen- de milhões de quilombolas brasileiros.
to no agronegócio prejudicaram sobre-
maneira a devolução de fato das terras Olhar para a caminhada ou do desafio
quilombola às comunidades, conforme do uso dos dispositivos em tempos de
deveria ser feito segundo determinação golpe
da Constituição Federal de 1988. Ape- Diante desse contexto, integramo-nos
sar de previsível e já anunciada há alguns e entregamo-nos juntos - oficineiros do
anos, a implosão desse modelo de parce- Crioulas Vídeo e outros visitantes - à ex-
ria políticopartidária entre trabalhado- periência da produção de vídeos utilizan-
res e empresários somente ocorreu em do os nossos celulares e os dos partici-
2016, colocando em risco a democracia pantes, em pleno julho de 2017, em meio
brasileira, tendo em vista o golpe jurídi- a uma série de sucessivos e velozes golpes
co-parlamentar até hoje em curso e que políticos em curso contra direitos con-
determinou a saída de Dilma Roussef quistados em décadas de luta pela popu-
da presidência da República. O governo lação brasileira menos abastada. Mesmo
Michel Temer, bem como o golpe que lhe sabendo que diversos aspectos poderiam
deu vida, foram tramados por anos pelos ser salientados a partir da vivência, per-
setores conservador e neoliberal de den- cebo hoje que basicamente duas questões
tro e de fora do governo Dilma, e contou emergiram com mais força, após aqueles
com o apoio massivo do oligopólio da mí- intensos dias de julho no sertão central: a
dia e de atores extremamente parciais do tentativa de “profanar” ou experimentar

57
FELIPE PERES CALHEIROS

outras possibilidades menos colonizado- e alimentos na oportunidade do encon-


ras de uso dos celulares na comunidade, tro. Atentos aos riscos da reprodução dos
em consonância e coerência com o trajeto mecanismos de colonização e exclusão
de desconstrução de dispositivos ociden- que nos influenciam, ao que parece, con-
tais (em sentido amplo) que o povo de seguimos aglutinar forças para o enfren-
Conceição tem perseguido ao longo da tamento dos tempos sombrios que insis-
sua história; a busca pelo fortalecimento tem em pairar sobre o Brasil e sua história
mútuo do movimento quilombola e das de absurdos, aos quais se somam a tragé-
parcerias para a continuidade do enfren- dia maior dos quase quatrocentos anos de
tamento e da resistência ao ataque das escravidão africana e genocídio indígena.
elites brasileiras e internacionais, como Assim, circulando por entre a percep-
não se via há algum tempo nesse país. ção da conjuntura política e a compreen-
Nesse sentido, as equipes em que se divi- são das possibilidades de libertação dos
diram os participantes e oficineiros ten- usos aprisionadores dos dispositivos,
taram, naqueles poucos dias, debruçar-se envolvo-me ainda mais com caminhada
sobre modos de operar os celulares, ob- de Conceição das Crioulas como trajeto
jetivando a construção de uma narrativa de inspiração e lugar de aprendizados.
em grupo, e, seja como animação, docu- E tocando tranversalmente nesses dois
mentário, projeção fotográfica ou ficção, assuntos, recordo um capítulo muito es-
o que se viu foi o esforço de produção pecial da luta crioula, o da resistência qui-
de novas mensagens através do uso dos lombola liderada por Agostinha Cabocla
equipamentos. No entanto, mesmo com em princípios do século XX.
a estratégia de divisão do grupo maior em Em tempos de machismo totalitário,
conjuntos de participantes de mesma fai- de ausência de instituições e garantias de
xa etária e maior sintonia para a ação, o proteção aos direitos humanos, de um co-
tempo curto e o grande número de pes- ronelismo em pleno vigor por todo o Nor-
soas impossibilitou um maior aprofunda- deste, há menos de cinquenta anos da
mento da discussão sobre a colonização dita abolição formal da escravidão e con-
sutil e o poder de (des)sujetivação pro- tra um sistema jurídico branco e racista
movida pelo uso dos aparelhos. - talvez, o dispositivo maior de execução
Por outro lado, foram extremamente da histórica exclusão da maioria da po-
marcantes a presença, o afeto, a troca de pulação brasileira -, uma mulher quilom-
experiências, olhares, sensações, criações bola, Agostinha Cabocla foi, pelos seus

58
SABER DA RESISTÊNCIA, SABOR DA RESISTÊNCIA

próprios pés, caminhando até Recife, a


capital do Estado, para participar de uma
audiência em defesa da propriedade do
território pelos descendentes das Criou-
las de Conceição. Olhar para esse percur-
so nos impede de esmorecer, mesmo em
tempos duros de luta como hoje. Cami-
nhadas como a de Agostinha ainda serão
percorridas na luta contra os dispositivos
de exclusão e genocídio do povo quilom-
bola, e nos cabe nesse momento alimen-
tarmo-nos da história dos seus passos
para de fato seguir pisando o mundo com
o sabor e o saber da resistência.

Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. (2009) O que é o
contemporâneo? E outros ensaios. Argos.
PAIVA, José Carlos. (2009) ARTE
desENVOLVIMENTO, tese de doutoramen-
to, Faculdade de Belas Artes, Universidade do
Porto, Porto.
SILVA, Givânia Maria da. (2012). Educação
como processo de luta política: a experiência
de “educação diferenciada” do território qui-
lombola de Conceição das Crioulas. Disser-
tação de Mestrado, Departamento de Educa-
ção, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.

59
60
vez seriam pessoas de várias Universida-
O Encontro, des do Brasil e de fora (Portugal e Cabo
a parceria, as Verde), quilombolas de dentro e quilom-
bolas vizinhos, e a ansiedade crescia.
alegrias, os saberes Agenda de pessoas que acolheriam os
participantes, proposta de cardápio. O
e os fazeres que servir de nós para eles e elas? Qual
o sabor que teriam de nós, os que viriam
MÁRCIA NASCIMENTO pela primeira vez? E os que já nos conhe-
DIVA RODRIGUES1 ciam, quais outros sabores levariam? Es-
sas e outras indagações faziam com que
A arte de se encontrar, de reviver, de movimentássemos nosso pensamento
aprender, faz parte do nosso dia-a-dia. sempre em busca de agradar as gentes que
Encontramo-nos muitas vezes com mui- aqui chegariam.
tas gentes, e quando gostamos do en- Preocupadas em acariciar também atra-
contro desejamos que aquele encontro vés do paladar, aqueles e aquelas que a
se repita por muitas vezes. Foi com esse nós vinham, pensamos o que e quem iria
pensamento que planejamos nos encon- cozinhar, já que segundo Rubem Alves
trarmos, nós crioulenses e o Movimento em sua crônica: Escritores e Cozinhei-
Intercultural Identidades, novamente. ros, “o cozinheiro cozinha pensando no
Mas, aproximadamente pela 13ª vez que prazer que sua arte irá causar naquele que
nos encontraríamos, este encontro não se come”. Por isso, pensar em quem iria co-
resumiria a nós de Conceição das Criou- zinhar, era também pensar no prazer que
las e o Identidades de Portugal, mas a ou- a nossa comida iria causar naqueles que
tras gentes mais de perto e mais de longe. iriam comê-la. Dessa forma, fomos cons-
Cuidamos desse encontro com muita truindo o nosso encontro com as daqui
dedicação e afeto. Pois, receber pessoas e os que viriam, sempre em contato com
em nossa comunidade é sempre um pra- o nosso amigo Paiva. E juntando as nos-
zer. Preparamos a chegada dos que nos sas sábias ideias pensamos em ligar Ar-
visitariam com peculiar atenção. E dessa tes, Lutas, Saberes e Sabores, estes dois
últimos indissociáveis. Pois, “O sábio é
aquele que conhece não só com os olhos,
1 Mestre Márcia do Nascimento e Mestre Diva
Rodrigues, professoras nas escolas da Comunidade mas especialmente com a boca. Quem co-
Quilombola.

61
MÁRCIA NASCIMENTO / DIVA RODRIGUES

nhece só com os olhos, conhece de lon- A partir daí, inicia-se a convivência por
ge, pois a visão exige distância; Muito de uma semana. Reviver as lembranças que
perto a gente não vê nada. Quem conhece marcaram e construir novas marcas que
com a boca conhece de perto, pois só se lembraremos. O encontro, as oficinas, a
pode sentir gosto daquilo que já está den- parceria. Parceria de está longe, mas que
tro da gente”. (Rubem Alves) de repente está perto, convivendo, con-
Chegado o dia 15, dia de recepcionar- tribuindo, compartilhando os saberes e
mos parte dos que vinham, estávamos lá as amizades sinceras. A paixão de mo-
na Casa da Comunidade, nós e a Banda ver caminhos distantes e diversos para
de Pífanos, marca tradicional do nosso estarmos sempre juntos ensinando e
povo, e logo após gentes de vários luga- aprendendo. A gratidão é um sentimen-
res, daqui e de lá. Sorrisos, abraços, lem- to constante nessa parceria pela qual re-
branças, surpresas. Quem diria que você conhecemos a importância dela para as
viria sem dizer que vinha. Chegaste... Que aprendizagens e os avanços que já con-
bom que você veio!!!! seguimos ao longo do tempo. O trecho
do cordel que foi apresentado no final do
Chegaste encontro expressa um pouco da nossa es-
Roberto Carlos e Jennifer Lopes tima pelo Identidades.
Tanto tempo já vai caminhando
E ainda me pego recordando Entre tantas que tivemos
Lágrimas rolaram dos meus sonhos, en- Umas deu certo, outras não,
xuguei mais de uma vez Tudo isso faz com que
Tenho algumas marcas que ficaram em Prestemos mais atenção,
meu sorriso nesses anos Quais parcerias que de fato
E também lembranças tão bonitas que o Contribuem com Conceição.
tempo não desfez
Quem diria que você viria sem dizer que É com esse olhar atento
vinha Nesta ocasião especial,
Porque nunca é tarde De fortalecimento das lutas
Para apaixonar-se Nesse acontecimento real,
Chegaste Nossos agradecimentos
Senti na minha boca um te quero Ao povo de Portugal.
Como um doce com caramelo
Necessitava um amor sincero… E ao nosso querido Paiva
Que é um grande parceiro,
Que vem lá das Belas Artes

62
O ENCONTRO, A PARCERIA, AS ALEGRIAS, OS SABERES E OS FAZERES

É um grande mensageiro, tando. Trata-se de uma situação muito


É mais um que traduz nossa história difícil e importante para os quilombos
Por esse mundão inteiro.
do Brasil. Estava prestes a ser julgado a
Nosso parceiro de anos constitucionalidade do decreto 4887/03
Através do Identidades que regulamenta, delimita e regulariza
Tem construído conosco os territórios quilombolas brasileiros. E
Diversas possibilidades na luta compartilhada com o Identidades
Que servem ao fortalecimento
Da nossa comunidade.
elaboramos um vídeo em que expressa o
que representa a “derrubada” do decreto
Em nome desse parceiro pelo STF. Um material que divulga nos-
Demonstramos gratidão, sos sentimentos em relação, ao território,
A quem conosco caminha à educação quilombola, à história, as tra-
E se opõem à dominação,
Na luta por um mundo mais justo
dições, à identidade, à vida, que estariam
Livre de discriminação. ameaçados, caso fosse julgado incons-
titucional o referido decreto. Mais uma
O que vivenciemos agora vez a parceria se torna essencial para o
Não se trata do primeiro, fortalecimento das nossas lutas. Além do
É também uma tradição
Desse povo tão guerreiro,
vídeo, o público do encontro “gritaram”
E fazer educação assim na carta do encontro, Fora Temer!!!
Somos de fato pioneiros.
Carta do Encontro
Dar continuidade à luta Nós, do Encontro com as Artes, a Luta,
É a nossa intenção,
Portanto esse momento
os Saberes e os Sabores da Comunidade
É pra nós renovação, Quilombola de Conceição das Crioulas,
Certeza que boas sementes realizado no Quilombo de Conceição
Serão plantadas nesse chão das Crioulas, localizado no município de
Salgueiro, Sertão Central pernambuca-
Vislumbrar caminhos juntos é uma ta- no, com representação das comunidades
refa presente nos nossos pensamentos e quilombolas de Conceição das Crioulas
planejamentos futuros. E assim nos faze- (Salgueiro), Águas do Velho Chico (Oro-
mos mais resistentes e mais encorajados có) e Jatobá (Cabrobó), todas localizadas
para seguir na comunidade e na luta que no estado de Pernambuco. Professoras
naquele momento estávamos enfren- e professores, lideranças, artesãs e arte-

63
MÁRCIA NASCIMENTO / DIVA RODRIGUES

sãos, jovens, e estudantes das escolas do dos territórios quilombolas. Ressaltamos


território quilombola e as representações que o referido decreto foi construído com
das instituições de ensino: Universidade participação dos quilombolas de todos es-
Federal de Pernambuco (UFPE), Univer- tados do Brasil, com base na Convenção
sidade Regional do Cariri-URCA, Univer- 169 da Organização do Trabalho-OIT.
sidade Estadual do Ceará (UECE), Uni- Caso o Superior Tribunal Federal (STF)
versidade de Brasília (UnB), Faculdade julgue pela inconstitucionalidade do de-
de Ciências Humanas do Sertão Central creto, nossos territórios serão afetados
(FACHUSC), Universidade da Integra- diretamente, mesmo aqueles que já foram
ção Internacional da Lusofonia Afro-Bra- regularizados, aumentando ainda mais
sileira (UNILAB), Universidade Federal a violência e a insegurança alimentar, se
da Paraíba (UFPB), Universidade Federal tornando um dos atos de maior agressão
do Recôncavo Baiano (UFRB), Instituto ao povo quilombola, exterminando o so-
Federal de Tecnologia do Sertão, todos nho de nossa gente pertencer e permane-
localizados no Brasil. Já o Instituto Uni- cer em seus territórios.
versitário de Artes e Tecnologia M_EIA Diante das reais ameaças aos nossos
(Cabo Verde) e a Faculdade de Belas Ar- direitos, nós, do Encontro com as Artes,
tes da Universidade do Porto –FBAUP, a Luta, os Saberes e os Sabores da Co-
vêm por meio desta, se manifestar pu- munidade Quilombola de Conceição das
blicamente contra os ataques do governo Crioulas, condenamos e repudiamos:
ilegítimo de Michel Temer, fruto de um • Os ataques do PFL hoje Democratas
golpe que vem afetando os direitos das (DEM), com o objetivo de anular o de-
trabalhadoras e dos trabalhadores bra- creto 4887/2003;
sileiros, e em especial das comunidades • Os ataques e desmontes do governo
quilombolas, dos povos indígenas e de golpista às políticas de promoção de
matriz africana, das mulheres e da popu- igualdade racial, caracterizados de for-
lação LGBT. ma explícita como atos de racismo;
Nesse cenário de retrocessos, as co- • O genocídio da juventude negra;
munidades quilombolas do Brasil pas- • O rompimento com os princípios
sam por um momento de grave ameaça constitucionais e democráticos;
a um dos seus marcos legais, o decreto • A violência e a impunidade no cam-
n 4887/2003 que estabelece os proce- po que vem assassinando trabalhado-
dimentos para a regularização fundiária res(as) rurais(as) e os(as) trabalhado-

64
O ENCONTRO, A PARCERIA, AS ALEGRIAS, OS SABERES E OS FAZERES

res(as) quilombolas; Por tudo isso, FORA TEMER E “NE-


• Todos e quaisquer tipos de violências NHUM DIREITO A MENOS”
de gênero, como o machismo, o racis-
mo, a homofobia e a lesbofobia; As ideias expostas na carta representa
• A criminalização do governo federal o pensamento dxs presentes no encon-
golpista com as lideranças, organiza- tro, conscientes de que o Encontro com
ções e movimentos de trabalhadores; as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores
• As atitudes do parlamento brasileiro da Comunidade Quilombola de Concei-
que, nos últimos tempos, tem se en- ção das Crioulas tinha também o papel de
carregado de, com os nossos impostos, fazer ecoar a voz dos quilombolas que se
atuarem e participarem de ações de utiliza da arte de resistir às atrocidades do
atentado aos direitos dos(as) trabalha- governo ilegítimo que atualmente desgo-
dores(as); verna o nosso país.
• Todos e quaisquer atos de corrupção; Com essa perspectiva, a comunidade
de Conceição das Crioulas está sempre
Na resistência por nenhum direito a à procura de outros saberes que possam
menos, afirmamos que; servir de estratégias de fortalecimento
• Continuaremos na defesa intransi- das suas lutas, segue na alegria de ver as
gente dos direitos quilombolas e pela trocas acontecerem. Tal sentimento, ao
manutenção de nossas conquistas, lu- longo dos tempos é expresso através das
tando pela garantia da regularização partilhas, das experiências, das apren-
dos territórios quilombolas; dizagens mútuas, da reciprocidade. O
• Lutaremos pela implementação da sucesso desse encontro nos fez acreditar
educação escolar quilombola; que não ficará no número 1, terá mais ou-
• Defenderemos as políticas de desen- tro, depois outro, mais outros... e, como
volvimento e sustentabilidade dos qui- diz o professor e amigo Paiva buscar o que
lombos do Brasil. estar por vir.
• Defenderemos a liberdade de expres- Promover encontros que têm como
são e de organização; princípios fortalecer a nossa luta pela
• Apoiaremos a luta da juventude e das garantia e efetivação dos nossos direitos,
mulheres quilombolas; fazer ecoar as nossas vozes fazendo com
• Permaneceremos na defesa de um es- que a memória, a história e a resistência
tado democrático e de direito. dos nossos ancestrais, sejam reconheci-

65
MÁRCIA NASCIMENTO / DIVA RODRIGUES

das e recebam o respeito merecido é um


buscar de todos os nossos dias.

Referências
Chegaste. Roberto Carlos, Jennifer Lopez.
Álbum: Roberto Carlos, 1973.
Escritores e Cozinheiros: Rubem Alves. Acessado
no dia 04 de março de 2018 http://cozinhaelite-
ratura.blogspot.com/2010/07/escritores-e-cozi-
nheiros-rubem-alves.html.

66
ÁLISSON PEREIRA FLOR
Encontro com CARLENE BATISTA CAVALCANTE
as Artes, a Luta, FRANCISCO CHARLES LESSA
ARAÚJO FILHO
os Saberes e JAQUELINE BARBOSA RODRIGUES
MARIA CLAUDINEIDE ALVES
os Sabores da MACÊDO
Comunidade SUYANE OLIVEIRA SANTOS
WANDEÁLLYSON DOURADO
Quilombola de LANDIM SANTOS1

Conceição das FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA2

Crioulas FERNANDA JAYNE3


SUZANA CARNEIRO4

1 Estudantes do Curso de Licenciatura em Artes Visuais


e membros do Grupo de Pesquisa Ensino da Arte em
Contextos Contemporâneos – GPEACC do Centro de
Artes da Universidade Regional do Cariri – URCA/Ceará –
Brasil.
2 Professor Doutor do Departamento de Artes Visuais e
Líder do Grupo de Pesquisa Ensino da Arte em Contextos
Contemporâneos – GPEACC/CNPq do Centro de Artes
da Universidade Regional do Cariri – URCA/Ceará –
Brasil
3 Estudante do Curso de Filosofia da Universidade Federal
do Cariri – UFCA e membro do Grupo de Pesquisa Ensino da
Arte em Contextos Contemporâneos – GPEACC/CNPq do
Centro de Artes da Universidade Regional do Cariri – URCA/
Ceará-Brasil;
4 Licenciada em Teatro pelo Centro de Artes e pesquisadora
do Grupo de Pesquisa Ensino da Arte em Contextos
Contemporâneos – GPEACC/CNPq do Centro de Artes
da Universidade Regional do Cariri – URCA/Ceará –
Brasil;

67
VÁRIOS AUTORES . URCA

é que as imagens visuais – sejam


desenhos, pinturas, mapas,
gráficos, fotografias, objetos,
esculturas, construções, etc. -, são
conhecimento humano (Roldán, Joaquín;
Viadel, Ricardo Marín, 2012, p. 238)

68
ENCONTRO COM AS ARTES, A LUTA, OS SABERES E OS SABORES

o que sabemos ou o que cremos afeta


o modo como vemos as coisas.
(Berger, John, 2000, p. 13)

69
VÁRIOS AUTORES . URCA

ver, ao contrário de olhar, é uma


conquista e não simplesmente um
dever (Eisner, Elliot W., 1998, p. XV).

70
ENCONTRO COM AS ARTES, A LUTA, OS SABERES E OS SABORES

a arte é a prova viva e concreta de


que o homem é capaz de restabelecer,
conscientemente e, portanto,
no plano do significado, a união
entre sentido, necessidade, impulso e
ação que é característica do ser
vivo. (Dewey, John, 2010, p. 93)

71
VÁRIOS AUTORES . URCA

os educadores necessitam
também ser educados.
(Salort, Ramón Cabrera, 2010, p. 16)

Referências Bibliográficas
ROLDÁN, Joaquín; VIADEL, Ricardo
Marín. Metodologías Artísticas de
Investigación en Educación. Málaga:
Ediciones Aljibe, 2012.
SALORT, Ramón Cabrera.
Indagaciones sobre Arte y Educación.
Cuba: Ediciones Adagio, 2010.
DEWEY, John. Arte como experiência.
São Paulo: Martins Martins Fontes,
2010.
EISNER, Elliot W. Educar la visión
artística. Barcelona: Ediciones Paidós
Ibérica, 1998.
BERGER, John. Modos de Ver. Barcelona:
Editorial Gustavo Gili, 2000.

72
- Pernambuco. Nós conseguimos fazer o
Compartilhando que nenhuma comunidade quilombola
conhecimentos do Brasil já tinha feito, juntar 10 Univer-
sidades de ensino superior de Pernambu-
MARIA PENHA DA SILVA1 co, Bahia, Ceará, Paraíba, Brasília, Cabo
Verde e Portugal, no território quilombo-
la durante uma semana desenvolvendo
Esse relato é um pouco das muitas ex-
diversas atividades.
periências e partilhas vivenciadas no en-
Durante essa semana, vários laços fo-
tão intitulado: Encontro com as artes, a
ram fortalecidos. Parcerias formadas,
luta, os saberes e os sabores, realizado
encaminhamentos tirados para futuros
no período de 15 à 24 de julho de 2017,
encontros. Fazer parte dessa organiza-
na comunidade quilombola de Concei-
ção para mim e para minha comunidade
ção das Crioulas, localizada na cidade
foi uma importante oportunidade para
de Salgueiro, no Sertão Pernambucano.
abrir novos espaços com novos horizon-
Para a realização do referido encontro,
tes, em que possamos trilhar caminhos
as discussões tiveram início em janeiro
de partilha de conhecimentos. Esse mo-
do corrente ano, e o que não imagináva-
mento será lembrados com o pensamen-
mos, era que esse momento iria tomar
to de que é possível transformar ideias e
uma dimensão grandiosa. Após a reunião
ações a partir do que na nossa luta fomos
de planejamento continuámos a troca de
conquistando, deixando para trás o que
informações para que fosse realizado na
por muito tempo nos queria fazer sentir
comunidade um encontro onde pudés-
inferiores. Questões como esta que his-
semos juntar as escolas do Território de
toricamente foram impostas a nós e que
Conceição das Crioulas e um número
durante o Encontro fomos conseguindo
grande de estudantes dessas escolas. Daí
desconstruí-las e reconstruí-las com ou-
as portas foram se abrindo para que ou-
tra visão. Nesse sentido, os debates e as
tras comunidades quilombolas também informações trazidos nesse evento nos
participassem desse momento de trocas. deu domínio para levar para o espaço de
E, juntou-se a nós a comunidade qui- discussão nossa experiência de luta, onde
lombola Águas do Velho Chico de Orocó as pessoas se sentiram à vontade para ex-
1 Liderança da comunidade: integrante da comissão de
pôr as suas opiniões.
educação da AQCC e Professora. O encontro possibilitou a realização de

73
MARIA PENHA DA SILVA

várias atividades envolvendo diversas pes- tradas em suas memórias e, com certeza,
soas com trocas de saberes de várias locali- serão postas em prática.
dades e os conhecimentos se uniram...
Várias plantas desabrocharam nesse
período de uma semana, e mostraram
para si e para outras pessoas o poder da
construção. Em suas oficinas, cada ofi-
cineiro e oficineira se doaram, incansa-
velmente, para que tudo acontecesse da
melhor forma possível.
Isso mostra o quanto temos consciên-
cia política de que podemos vencer as bar-
reiras encontradas no caminho, que não
devemos enfraquecer, pois sabemos que
a educação é uma ferramenta poderosa
que nos faz querer sempre ir mais além.
Mostra também que temos condições de
realizar outros encontros com a certeza
da nossa existência e resistência e com
melhores condições para o nosso povo.
O encontro com as artes foi mais uma
ponte para reafirmar a nossa história.
Os laços gerados nesse período nos faz
seguir em frente, firmes com a AQCC,
juntamente com as parceiras. Medir a di-
mensão desse encontro é impossível, mas
no final pudemos perceber o quanto ele
construiu nas pessoas que deles partici-
param e organizaram. As aprendizagens
adquiridas nesse momento ímpar servi-
rão de exemplos para nós e para as outras
comunidades. Quem passou por aqui,
deixou e levou marcas que ficarão regis-

74
que a gente faz, marcou. Esse Encontro
O Encontro, foi muito forte, porque a gente começou
foi bom, mas a trazer coisas que não eram só dos de-
zassete anos, e quisemos mostrar tudo
quero mais… aquilo que a gente tem, tudo aquilo que a
gente sabe. E sobre isso, fazer uma troca
VALDERCI MARIA DA SILVA dos conhecimentos, da luta, dos sabores,
OLIVEIRA (VAL)1 dos saberes, do jeito de fazer, do jeito de
falar, do jeito de viver.
Vou falar um pouco do Encontro de Então, foi muito importante o Encon-
Saberes e Sabores que aconteceu agora tro, porque a gente pode viver o Brasil,
em 2017, o ano que também completava Portugal, Cabo Verde, e outras e outras
dezassete anos a Associação Quilombola organizações aqui no Brasil, podémos
de Conceição das Crioulas. E aí, nós da ver isso dentro de uma semana na Co-
comunidade junto com as parcerias, pen- munidade Quilombola de Conceição das
samos fazer uma atividade que não vimos Crioulas. Gente de tão distante, e conhe-
fazendo como uma atividade do dia a dia, cer os seus jeitos de cozinhar, de fazer,
que fosse só daquele momento; era uma então isso foi assim uma coisa que me
atividade de comemoração de dezasse- chamou muito, muito mesmo, a atenção,
te anos de construção e de conquista da que me fez cada vez mais gostar principal-
AQCC. Apesar das dificuldades, a gente mente da parte dos sabores. É uma coisa
queria fazer esse encontro, e então, ele foi que eu gosto muito, é uma coisa que eu
muito importante para a comunidade. me identifico bastante, é uma coisa que
Primeiro com a parceria muito forte do eu não quero que se acabe na nossa co-
grupo Identidades de Portugal, que foi munidade, que a gente passe esse conhe-
quem chegou primeiro para a gente co- cimento dos sabores, do jeito que a gen-
meçar a pensar, se preparar para o encon- te cuidava dos nossos alimentos, o jeito
tro, e daí, a gente foi buscar outros par- que a gente era mais sadio com os nossos
ceiros. O Encontro foi muito importante, alimentos. Mesmo que às vezes a gente
ele marcou demais a nossa comunidade, achasse que se cuidar de um alimento,
como sempre com as muitas atividades no caso do milho, dava trabalho, mas era
1 Artesã e membro da Comissão de Geração de Renda e de
também uma parte muito importante,
Mulher da AQCC. que você além de estar cuidando, você es-

75
VALDERCI MARIA DA SILVA OLIVEIRA

tava fazendo os exercícios, você tinha que las meninas, é coisa que vivem na comu-
preparar os seus alimentos. Não é como nidade, então, ao mostrar isso, elas vão
hoje que você chega e compra ele pronto. se fortalecendo. Isso vai ajudar cada vez
Então, a parte dos sabores foi muito mais a brigar pelos seus direitos, por mais
importante, tudo com o que as outras que tenham dificuldades, seja no espaço
universidades, as outras comunidades, os aonde a pessoa esteja, você tem que lutar.
outros países trouxeram para fazer essa E o importante também das nossas
troca, esse conhecimento, muitas coisas parcerias, como eu estava conversando
a gente pode dizer assim - que não gosta com Luísa, que a gente ficava pensando
-, mas a gente não tem costume. Costu- assim, a gente não conseguia identificar
mo dizer, não posso dizer que não gosto tantas pessoas, de onde eram no momen-
de certos alimentos, eu não tenho é esse to, porque era todo o mundo tão junto
costume, porque é o costume de outro lu- que a gente imaginava “Ó xenti, você tam-
gar. E para a gente crescer precisa trocar, bém não são desse povo?”, porque estava
precisa ter esse costume com os sabores todo o mundo muito junto; as pessoas
das outras pessoas, seus gostos. Porque estarem passando os seus sotaques, o seu
é muito importante para a gente também jeito de falar, as suas trocas, tanto nas ofi-
as pessoas gostarem dos nossos pratos. cinas como nos momentos de convívio na
Eu sempre admiro demais os saberes, de comunidade. Daí que não foram pessoas
cuidar dos alimentos, e principalmente que ficaram 'cada-quem', eu sou de tal
os sabores. grupo, eu fico para lá isolada, não, todo o
Essa foi uma parte muito importante, mundo foi muito junto mesmo.
a parte da alimentação, dos saberes das Na questão de passar, passou o encon-
outras pessoas, dos conhecimentos, nas tro, todo o mundo ansioso, nós todas
técnicas de trabalho que foram apresen- ansiosas - o encontro, “Será que a gente
tadas nas oficinas. E o nosso povo poder vai conseguir?” ,“Será que vai dar certo?”,
também estar passando o jeito de eles vi- “Ah, mas a gente já fez tanto e deu certo”,
verem. e aí, quando se passa o encontro, o que
O “cartão vermelho”2 que foi feito pe- fica: foi tanta coisa boa, que a gente agora
2 Referência ao vídeo coletivo “Cartão Vermelho para o
ainda não sabe o que vai fazer.
machismo”, 2017, realizado na Oficina de Vídeo no âmbito
do Encontro com as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da
Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas, Julho
As oficinas de cerâmica - eu fui lá para
de 2017. participar -, a gente organizou, p'rás pes-

76
O ENCONTRO, FOI BOM, MAS QUERO MAIS...

soas participarem de uma parte do dia e coisa com Andrelino, que está aqui den-
participaram o dia todo. Outra que estava tro da comunidade, a Agostinha estava ali
num canto que queria participar de um fazendo troca mais Andrelino, do manejo
e de outro e os alunos que visitaram as do barro, da argila, de todo esse cuidado
oficinas que tiveram nas escolas. O meu e a gente se descobrindo em coisas assim,
neto chegava contando dos trabalhos, da “não sabia como mexia nisso! Agora vou
xilogravura, a gente trabalhou desenhos, fazer a extracção, extrair o barro da terra,
trabalhou isso, todo mundo ansioso e da água”. Então foi muita coisa que a gen-
aí isso foi muito importante porque deu te ficou se perguntando “Menina, como é
uma mexida na cabeça das pessoas. Não importante essas oficinas”.
só não, mexeu na cabeça daqueles que
não estão directamente envolvidos com A gente tem que aproveitar p'rás ou-
os trabalhos, com as lutas; mexeu com as tras pessoas no futuro, p'rá conhecer o
crianças, do jeito que é um prazer muito que foi o resultado desse trabalho que a
positivo. gente fez dessas oficinas, porque não foi
Ele pode não aplicar tudo hoje mas uma coisa em vão, não foi só uma festa.
uma coisa ficou gravado, mais fácil a gen- Foi também uma festa, mas foi comemo-
te lembrar de tudo enquanto é criança do ração, foi aprendizagem, foi conhecimen-
que quando a pessoa já está mais adulto. to, pr'agora e para o futuro. Não é só o
Na cabeça da juventude, das crianças, que a gente vai entender, ou aprender, ou
ficou muita coisa gravada e a gente tem ter um resultado só hoje, ele vai continuar
certeza que em algum momento ele con- e eu espero que a gente continue, que a
tinua aparecendo mais o resultado do en- gente tenha novos encontros, naquele ta-
contro. manho, naquele porte, ou maior. Vamos
Eu trabalhei na oficina de cerâmica e pensar o que a gente possa estar fazendo,
eu queria assim, “Gente, descobri tanta vamos tirar o que foi que não deu certo,
coisa!”. Eu não trabalhava com cerâmi- fazer a avaliação do Encontro, é impor-
ca, comecei a trabalhar um pouco depois tante que aconteça.
de ter sofrido um acidente, comecei me A gente pode entender que não é sozi-
adaptando com outras coisas e a cerâmica nho que a gente vai andar, não é sozinho
foi uma que me trouxe alguns benefícios e que a gente vai crescer, eu cresço no mo-
comecei a trabalhar e assim, na oficina, eu mento que eu faço o outro crescer tam-
descobri coisa com o povo meu! Descobri bém.

77
VALDERCI MARIA DA SILVA OLIVEIRA

E o Encontro teve isso, eu sinto esse re- cerias, no nosso trabalho que a gente vem
sultado da questão das parcerias para que desenvolvendo dentro da comunidade:
a gente possa crescer, mas a gente ainda da educação, da saúde, da geração de ren-
tem bastante coisa para trabalhar na nos- da, dos conhecimentos das tecnologias,
sa comunidade. que hoje a gente não pode viver separado,
Com as universidades, que vieram bas- e acho que esse é um meio da gente estar
tantes, acho que isso vai ficar mais perto se comunicando e se fortalecendo quan-
p'rá gente também, essas parcerias. Tan- do a gente 'tá junto.
to dá continuidade os trabalhos colec- Ele deixou muito isso, p'rá gente dizer
tivos juntos, como a gente também está “Não, não pára que tem muito ainda que
se fortalecendo, em algum momento a fazer”. Viemos até aí mas não terminá-
gente possa estar aqui, mas precisa ir lá mos. A gente cada vez mais dando conti-
também, fazer alguma conversa, alguma nuidade a tudo o que a gente vem fazen-
fala. Eu acho que isso vai-nos ajudando do e vem vivendo. Então eu acho isso do
também. Encontro.
Eu acho. E aí, tem coisa que depende
de nós, da comunidade. A gestão do ter-
ritório vai depender da AQCC, somos
nós que temos que fazer a gestão, como
vamos trabalhar, como vamos gerir. Mas
tem outras coisas que dentro da gestão
não está no nosso alcance, nós depen-
demos de parceria, nós dependemos de
apoio p'rá um melhor desenvolvimento.
Com o Encontro, a gente sente que não
está só. Posso brigar porque eu não estou
só, porque eu vou encontrar parceiro, vou
encontrar apoio p'rá gente cada vez mais
desenvolver, por conta que a gente não
está fraco, se eu estou junto com outros e
outras. Eu acho que ele deu uma mexida e
de tudo o que a gente viveu, a gente pre-
cisa de dar continuidade nas nossas par-

78
da comunidade quilombola de Conceição
Quilombo das Crioulas.
tecendo De um lado, a questão discutida neste
poema de João Cabral de Melo Neto é a
o amanhã união e a integração do coletivo para tecer
e emaranhar os fios da manhã. De outro,
DENILSON ROSA1 o texto enfatiza o dinamismo esclarecido
dos quilombolas e o enfrentamento polí-
TECENDO A AMANHÃ tico em defesa de sua dignidade étnica e
Um galo sozinho não tece uma manhã. cultural, que ressaltam a extraordinária
ele precisará sempre de outros galos. energia humana existente nas crianças,
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
adolescentes e adultos da comunidade
que apanhe o grito que um galo antes quilombola, sugerindo outra visão da es-
e o lance a outro; e de outros galos cola e do conhecimento a partir da arte,
que com muitos outros galos se cruzem da luta, do saber e da culinária tradicio-
os fios de sol de seus gritos de galo, nal, o que configuram os pontos referen-
Para que a manhã, desde uma teia tênue,
ciais da vivência na comunidade.
se vá tecendo, entre todos os galos.
(MELO NETO, 1994, p. 345) Tecer a manhã significa centelhas de es-
perança, a procura da lucidez sagrada do
O texto evoca do poema tecendo a ama- dia, o trabalho coletivo e participativo, a
nhã, de João Cabral de Melo Neto, a in- união, a interação. Seu significado é, so-
tegração do cantar dos galos, e também bretudo, pintar, com as cores do arco-íris
procura imagens, metáforas, questões, e com a riqueza da diversidade cultural
ideias, luzes, reflexões e significados para existente em Conceição das Crioulas, um
imaginar o movimento quilombola, se- saber artístico e cultural vivenciado no qui-
melhante ao esplendor que dissipa a noi- lombo, que não foi ainda monopolizado
te, e faz a manhã nascer radiante com os por uma intelectualidade elitista reprodu-
raios do sol. Tem-se ainda como objetivo tora do discurso hegemônico Há todavia,
recuperar a memória, as experiências e as nesse saber a valorização da arte e da luta
emoções ainda acesas do encontro com quilombola como reorientação radical da
as artes, a luta, os saberes e os sabores escola formal e da criação artística.
Para discutir o saber de raiz da comu-
1 Prof. Dr. Denilson Rosa nidade e sua possibilidade de reorientar

79
DENILSON ROSA

outra visão da educação e da arte, foram contra os ataques e ameaças da atual polí-
extraídas intuições do poema tecendo a tica nacional orientada contra os direitos
manhã, com a intenção de pensar e refletir dos trabalhadores, das minorias e das co-
sobre a investigação e a criação das artes munidades tradicionais.
visuais em contexto de comunidade tra- Um dos ataques que ameaça o povo
dicional, imaginando novos horizontes negro quilombola é a tentativa do par-
para a luta quilombola como a conquista tido dos empresários e latifundiários
definitiva de seus respectivos territórios, ‘Democratas’ (DEM) de anular, no STF
os quais estão sempre ameaçados por gri- (Supremo Tribunal Federal), o Decre-
leiros, especialistas do direito e políticos to 4887\2003, o qual simboliza um dos
da frente parlamentar dos latifundiários. marcos legais normatizadores da regu-
O poeta metaforiza o homem como larização fundiária dos quilombos. Por
galo, que cria o vir a ser em união com os outro lado, a mobilização nacional do
outros, a renovação de cada horizonte de- movimento quilombola exemplifica o
pende da colaboração de todos, condição significado dos conceitos união, integra-
essencial de integração de toda a diversi- ção e envolvimento de todos para tecer
dade de pessoas no trabalho coletivo, foi o amanhã, continuar na resistência por
precisamente com este princípio de união nenhum quilombo a menos e lutar contra
e integração que os negros escravizados os conflitos violentos no campo, os quais
rebelaram contra a crueldade da servidão, são acompanhados de assassinatos dos
criando como um grito de liberdade co- trabalhares do campo e das lideranças
munidades quilombolas em todo imenso negras.
Brasil. Com o olhar no desconhecido, ema-
O quilombo é a partida para pensar os ranhei novamente na particularidade da
conceitos de união, integração, conexão e comunidade quilombola de Conceição
relação com a diversidade, por conseguin- das Crioulas, com um desejo utópico:
te o poema tecendo a amanhã, combinado encontrar, criar ou, se razoável, inven-
e entrelaçado com as emoções percebidas tar novas possibilidades em união com
no encontro com a arte e com a cultura pessoas peritas, populares, conhecidas e
da comunidade quilombola de Conceição desconhecidas abrindo novos horizontes
das Crioulas em Pernambuco – Brasil, para entender a investigação, o ensino e a
que me levou a juntar com outras pessoas poética artística a partir da conexão afe-
e instituições o meu grito de indignação tuosa e política com os participantes do

80
QUILOMBO TECENDO O AMANHÃ

encontro realizado no sertão nordestino. é também a partilha dos ‘problemas’ da


Com a sensibilidade e polissemia da comunidade e o reconhecido limite da
poesia de João Cabral de Melo Neto e nossa intervenção” (PAIVA, 2007, p.24),
os conceitos, a saber, auxílio, intercâm- diante da orientação política do governo
bio, integração e colaboração no corpo e usurpador e temerário de Brasília, com
no espírito, aprendiam todos envolvidos os retrocessos sociais, culturais e educa-
com as artes e a luta quilombola, estudan- cionais, que atinge os trabalhadores, as
tes, professores, investigadores e visitan- comunidades indígenas e quilombolas, a
tes quando em permuta com a comunida- população LGBT, o que me leva a consi-
de participamos de diferentes atividades, derar ampliar as fronteiras das interven-
como: oficinas, lanches, refeições, festas, ções interculturais.
conversas, visitas e discussões até no mo- A essência da harmonia dos cantos dos
mento de repouso, os saberes e sabores galos está centrada na impossibilidade
da comunidade faziam presente. de tecer a manhã individualmente, po-
Nesta conexão com outras pessoas, rém na unidade e na luta ambicionando
examinava a minha percepção da reali- “incorporar a comunidade de Conceição
dade profunda e esclarecida dos saberes das Crioulas, sugar-lhe a experiência,
e dos sabores do povo negro, que vivia na absorver o apego há vida, aprender o op-
altura do encontro a incerteza dos ins- timismo, correspondente à intensidade
trumentos legais que garantem a certifi- das suas lutas, hoje transformadas em
cação, demarcação e titulação das terras nossas” (PAIVA, 2007, p.23-24), desa-
quilombolas. Em seguida, questiona- fios reais perante aos artifícios jurídicos e
va como ações interculturais poderiam políticos, que sofrem os povos do campo
contribuir com a luta quilombista para perseguidos e expulsos de suas respecti-
regularizar nos termos da lei brasileira vas terras.
seus territórios, que são constantemen- Integração é a palavra que exprime as
te contestados e em permanente disputa atividades realizadas nas oficinas, quan-
com grileiros, madeireiros, mineradores e do foram partilhadas as artes, a luta, os
políticos da frente parlamentar ruralista, saberes e os sabores da comunidade com
defensores dos latifundiários. o conhecimento escolarizado da acade-
Aqui reside também minha tristeza si- mia que habita os intervenientes do ‘mo-
milar a de José Carlos Paiva, em reconhe- vimento intercultural IDENTIDADES’.
cer a dificuldade ou “o descontentamento Na historiografia oficial, a sabedoria he-

81
DENILSON ROSA

gemônica que domina o mundo das artes trelacem com outros cantos, com diferen-
e das letras foram ao longo da história tes vozes.
inimiga da diversidade. Logo, em con- O elo de cooperação presente na na-
sonância, nas palavras do filósofo Vitor tureza tanto nos galos quanto nas an-
Martins, “o seu papel histórico foi sem- dorinhas são qualidades valorizadas e
pre o de se sobrepor, de dominar, se pos- indispensáveis para os colaboradores do
sível destruir as culturas tratadas como ‘movimento intercultural IDENTIDA-
inferiores” (MARTINS, 2007, p.90). DES’, que tem a fantasia de potenciali-
A conexão de diferentes pessoas, a sa- zar a cumplicidade das diferentes pes-
ber, ministradores das oficinas, estudan- soas que fazem o verão e tecem manhãs
tes inscritos nas atividades e a comuni- e amanhãs, que busca o compartilhar, o
dade, foi o momento em que imaginei os respeito, a co-autoria, a solidariedade,
galos tecendo a manhã. A união de ofici- isto é, como intui a cultura popular, um
neiros com os participantes e com os mo- trabalho em conjunto é mais eficiente e
radores do quilombo foi o contexto para que uma pessoa sozinha não faz grandes
eu perceber a relação afetiva das ações coisas.
propostas de superação da criação artís- Arte contemporânea se revitaliza em
tica solitária e individualizada para uma contato com outras realidades, as cultu-
produção com participação coletiva real, ras pós-coloniais questionam, criticam,
revelando a universidade e a comunidade denunciam e enfrentam as tentativas de
tradicional quilombola a desenhar novos controle e exclusão dos povos emudeci-
olhares para a arte e para a vida. dos, excluídos, discriminados e inferio-
O poema sugere que um galo sozinho rizados pela força do dinheiro e poder
em seu cântico não tece uma manhã, se- dos especialistas da classe dominante.
melhantemente ao ditado popular que Portanto, concordo com a formulação
diz “uma andorinha sozinha não faz ve- do filósofo Vitor Martins colaborador do
rão” De todo modo penso que é possível ‘movimento IDENTIDADES’, quando
a andorinha anunciar a chegada desta es- sugere que esse coletivo de artista promo-
tação, no entanto a idéia defendida é que ve “o encontro directo, imediato e genuí-
a arte e a cultura se revitalizam em con- no, de igual para igual as experiências e
tato com outras realidades, ou seja, para vivencias de outras culturas” (MARTINS,
o novo dia nascer radiante no horizonte, 2007, p.91).
é necessário que o cantar dos galos se en- Neste mesmo sentido de partilha, cum-

82
QUILOMBO TECENDO O AMANHÃ

plicidade e experiência partilhada entre di- imperativo da integração para a pesquisa


ferentes instituições, culturas, sociedades poética e criação artística.
e pessoas, um dos idealizadores e entusias- O poeta sugeriu “um galo sozinho não
ta deste movimento intercultural escreve: tece uma manhã: ele precisará sempre
“reserva-se apenas ao IDENTIDADES um de outros galos”, logo imagino a escrita
espaço vivencial fragmentário, insatisfeito e o cantar do próprio poeta. Neste texto,
por não perturbar o todo, sem força para torna-se a minha contribuição como co-
suprir carências que lhe são exteriores” laborador do ‘movimentos intercultural
(PAIVA, 2007, p.20). Partindo desse pres- IDENTIDADES’, que cria, no esforço
suposto, é importante lutar ao lado da co- individual a integração com outros co-
munidade fazendo de suas reivindicações -autores, não o confronto, mas a junção
as nossas e pensar a arte e a investigação do trabalho individual com o coletivo,
poética e acadêmica como ferramenta de quando desenvolvem trabalhos artísticos
emancipação política. e de investigação poética e acadêmica nos
O que estou a defender através do poe- países falantes da língua portuguesa.
ma tecendo a manhã é que a relação com as Tecer o futuro, não apenas manhãs,
outras pessoas, ideologias, instituições e fortalecer o presente e o porvir do mo-
culturas revitaliza os saberes acadêmicos vimento quilombista, para isso torna-se
e tradicionais. Por conseguinte, ambos se imprescindível garantir e manter os ins-
complementam, uma vez que um habita trumentos normativos que dão concretu-
o outro, o que me permite supor que nas de ao direito da legalização dos quilom-
artes, nas letras e na ciência raramente bos, entre eles a manutenção do Decreto
se começa algo do zero, todo criador se 4887\2003, fazendo justiça, a luta, a his-
apóia e se identifica em algumas referên- tória e a memória dos negros, que foram
cias ou em muitas experiências e autores. sequestrados do continente africano e es-
Somente os vaidosos ignoram a in- cravizados por quase quatrocentos anos
fluência e a contribuição de outros em no país.
seu trabalho. O exemplo que o poema A luta quilombista motivadora do en-
nos ensina é a eficácia dos papéis indivi- contro em Conceição das Crioulas foi
duais num processo de criação coletiva, uma teia tênue tecida entre todos e anun-
colaborativa e integrada. Neste escrito de ciam dias melhores, desenhado com uto-
memória dos abraços e afetos recebidos pia e dedicação de todas as mãos amigas,
em Conceição das Crioulas, ressalta o com todos os gestos, afetos e ações de

83
DENILSON ROSA

cumplicidade e mobilização política, em periência como efetiva e incomensurável


um levantamento unido, como um cruza- produção intercultural.
mento de gritos de galos. Neste sentido, A poesia e o saber popular intuem que
o texto discute a efetivação de trabalhos ninguém consegue fazer tudo sozinho e
coletivos e colaborativos como demons- que, para tecer a manhã ou fazer o verão,
tração de respeito pelas pessoas em suas devemos ser solidários uns com os ou-
diferentes formas de ver e sentir a reali- tros. Para isso, é preciso ter encontros
dade, a arte e a existência. por acerto, por acaso ou programado para
Imagino todos os participantes do festejar, celebrar, embriagar ou procurar
encontro com a arte, a culinária e a luta uma saída ainda que fosse longa a bus-
quilombola na figura dos galos tecendo ca. Partimos de encontro ao outro e não
manhãs, pressionando a sociedade, a fechamos em nós mesmos, mas tecendo
educação e a arte a florescer em um porvir amanhãs, e não reproduzindo um mun-
iniciado quando darmos as mãos. Na uni- do artificial que assassina, nega, reprime
versidade e na comunidade tradicional, e exclui os aguerridos quilombolas dos
expandindo o universo acadêmico das ar- instrumentos normativos que dão con-
tes e do ensino das artes em um encontro cretude ao direito de legalização dos seus
de natureza políticomilitante, que ambi- territórios.
ciona abolir as fronteiras entre o estético Referência bibliográfica
e o político, desmontando hierarquias MARTINS Vitor. 25 Teses sobre a Arte em
culturais entre o popular e o erudito. Regime Intercultural, seguidas de 10 Teses
Nós ‘o movimento intercultural IDEN- sobre o ‘IDENTIDADES’. In: ID 10 com 10
TIDADES’ somos os galos, as ando- anos o Identidades esclarece-se e dá-se a conhe-
cer. 3 ed. Porto, PT: Greca – Artes Gráficas,
rinhas. Somos o mundo. Somos a so-
2007.
ciedade. Somos o intercâmbio com a
MELO NETO, João Cabral de. Obra completa:
comunidade quilombola. Nós viramos volume único. Org. Marly de Oliveira, Rio de
o dia brilhante do poeta. Perseguimos Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
a suspensão do artístico para o engaja- PAIVA, José Carlos. Entrada de leão, saída de
mento político que cria, em espaços pú- cordeiro... In: ID 10 com 10 anos o Identidades
blicos, afetos, observações, diálogos e esclarece-se e dá-se a conhecer. 3 ed. Porto, PT:
Greca – Artes Gráficas, 2007.
crescimento interpessoal que à luz da arte
contemporânea hegemônica é invisível,
enquanto nós compreendemos essa ex-

84
nicípio mais negro da região que se chama
Conceição de Pelotas, outrora, espaço da produção do
Crioulas: fascínio, charque - carne seca salgada - alimenta-
ção da escravaria no Brasil e em outros
encontro, saber e países. Observei que, apesar da distância
geográfica que separa o pampa gaúcho do
potência para (re) sertão semiárido nordestino, as histórias

existir! se cruzam no que tange à vida dos/as an-


tepassados/as africanos/as e a sêde que tal
período tinha de expropriá-los/as na sua
GEORGINA HELENA LIMA NUNES1 totalidade, junto às economias da época,
principalmente, no criação de gado. Me
Existem lugares de fascínio sem que os dirigir à Conceição das Crioulas tinha por
tenhamos habitado, desconhecidos, por- objetivo, estabelecer mais uma parada em
tanto. Assim era o meu sentimento em uma investigação que percorre diferentes
relação ao território quilombola de Con- regiões brasileiras para compreender a for-
ceição de Crioulas. Como mulher, negra e ma como mulheres negras, educadoras e
não quilombola, absorvi esta experiência lideranças políticas constroem, a partir de
- do fascínio - que, se me fora, material- suas histórias e lutas em defesa do territó-
mente estranha, parecia-me muito familiar rio, processos educativos em uma socieda-
porque ao longo do tempo, nós, negros/as, de marcada pela co-presença de opressões
temos nos reconhecido em todos os luga- de gênero, raça/etnia e classe social. A
res pela presença diaspórica de África em maior parte dos quilombos brasileiros car-
nossas vidas, bem como, pelos lugares de rega na figura feminina as possibilidades
anunciação, de liberdade e resistência, de gestão da vida na sua radicalidade ou
que os quilombos se constituíram no pas- plenitude. As mulheres constroem redes
sado e ainda reivindicam no presente. O de ligação transfronteiriças em uma so-
Sul do país é o estado onde nasci e vivo ciedade cujas relações sociais, geralmente,
até os dias de hoje, mais especificamente são concebidas como antagonismo: vida e
no estado do Rio Grande do Sul, no mu- morte, sagrado e profano, seres humanos
e natureza, infância e adultez, manual e in-
1 Professora Associada do Departamento de Ensino da
Faculdade de Educação/Universidade Federal de Pelotas,
telectual, homens e mulheres. Certamen-
Pelotas/Rio Grande do Sul, Brasil. te que os quilombos também vivem estas

85
GEORGINA HELENA LIMA NUNES

dualidades, no entanto, parece que a pers- tante e potência à inquietante necessidade


pectiva da complementaridade se sobrepõe - quase crença - de que precisamos com-
ao dualismo quando se vive em um espaço preender os pluralismos do ser mulher,
de uso comum cujas necessidades do viver de ser negra, destas energias da diferença
possuem uma relação de interdependência de nós mesmas que se constituem como
que recruta, para tanto, as solidariedades um sopro vital a tantos desafios que ainda
possíveis como condição. Em meados de necessitam ser enfrentados. O território
julho do ano 2017, chego em Conceição quilombola de Conceição de Crioulas ao
de Crioulas, quando já passava um pou- hospedar os de fora, me pareceu inabala-
co do horário do meio dia. Eram fortes as do na sua paisagem... nós, os/as outros/as,
movimentações de um almoço ampliado com nossos ruídos e corpos da diversidade
porque junto à comunidade, num espaço brasileira, europeia (Portugal) e africana
extensivo à sede da comunidade, estava (Cabo Verde), às vezes dispersos e outras
posta uma mesa farta de uma culinária lo- vezes tão concentrados em espaços co-
cal e de estudantes e docentes de diversas muns, fomos capturados naquele tempo
universidades do país e do exterior. Entre que parecia ter estancado o tempo crono-
o meu desejo de saciar a fome ou, então, o lógico, particularmente, fiz um boicote ao
contrário, a fome que se exacerbou porque relógio. A paisagem do lugar ao mesmo
eu fora seduzida pelo cheiro, pela cor, pelo tempo que se diferenciava de nós, era con-
convite para sentar à mesa feito pelas mu- vidativa para que nela nos incorporásse-
lheres de Conceição que frente a tantas di- mos e, por isso, tantas rupturas no ritmo
ferentes gentes, transpareciam sempre no normativo imposto às funções que sempre
controle da ideia de comunidade, se esta- nos são relegadas à condição de ser profes-
belecia o meu primeiro encontro de tantas sor, de ser estudante, de ser pesquisador,
aprendizagens. Desde aquele momento, ou éramos tudo isso seduzidos/as a de vez
já existia uma convergência decorrente da enquanto, ir buscar saber em outras fontes
troca dos saberes que é mediada pelo pa- que também perpassavam a proposta de
ladar, pelo gosto, pela maneira como o quê oficinas diversas que tinha como centra-
e como cozinhar traz a marca do/s lugar/ lidade a história e a vida da comunidade.
es presentes. Os cinco dias que permane- Sentar à frente das casas, por exemplo, e
ci em Conceição, foram de ensinamento debulhar o feijão cuja falta de habilidade
à condição de pesquisadora que me levou no manejo dos dedos fora compensado
até lá; foram substância à uma alma mili- pela forma como naquele momento, o es-

86
CONCEIÇÃO DE CRIOULAS: FASCÍNIO, ENCONTRO, SABER E POTÊNCIA PARA (RE) EXISTIR!

tar junto era significativo para melhorar ria, mas como transmissores de história;
tanto a capacidade motora quanto a cogni- é impressa na digital das mãos que alisam
ção para melhor compreender duas frases o barro extraído do chão, observando as
escritas em uma das mesas que se situava, regras do ritual que impõe respeito e sen-
também, lugar de paradouro, no centro da so de preservação às terras sagradas do
comunidade, frente ao Mercado que dizia território que, na atualidade, derrubou as
o seguinte: “Você não é a história que eu cercas que outrora haviam sido colocadas
vou contar. Você é a história que eu vou pelos/as fazendeiros/as.
viver” e “A verdadeira liberdade de um A argila, matéria prima das cerâmicas
povo é poder contar a sua própria histó- que se transforma através do segredo an-
ria”. Contar a própria história é um exer- cestral repassado pelos mais velhos com a
cício cotidiano em Conceição de Crioulas, capacidade de produzir artefatos esbran-
por isso, o território fundado por mulheres quiçados, ou seja, um diferencial no ma-
é, a todo momento, um território político nuseio do barro.
cujas transformações e conquistas se dão A história é presença nas vozes das
meio a todas as contradições que afetam infâncias que em ritmo e tom diferente
positivamente ou negativamente não ape- dos/as adultos/as e dos/as anciãos/ãs, a
nas o quilombo, mas o mundo inteiro. renovam porque têm a possibilidade de
Estes conflitos giram em torno das identi- educarem-se e escolarizarem-se sob ou-
dades étnico/raciais, de gênero e sexuais; tros moldes, num rearranjo de pedago-
do usufruto e da terra e consequentemente gias da não formalidade com as pedago-
das relações de trabalho; das necessidades gias da formalidade.
básicas de políticas públicas de saúde, sa- A Educação Escolar Quilombola, como
neamento básico, moradia e educação que nova modalidade de ensino do sistema
necessitam dialogar com a dinâmica cultu- educacional brasileiro desde o ano de
ral onde estas políticas devem ser incorpo- 2012, tem como perspectiva um mode-
radas sem que violem práticas culturais, lo de educação diferenciada e as escolas
enfim, que estas possam proporcionar um presentes em Conceição de Crioulas, fo-
bem viver cujo desenvolvimento não seja ram conquistas locais que impulsionaram
sinônimo de desenraizamento. a reivindicação de que em todo o Brasil
A história de Conceição é bordada nos a escola dialogasse com a educação pre-
panos que se transformam em produtos sente no quilombo. A educação escolar
que não se caracterizam como mercado- em Conceição, se constitui de práticas de

87
GEORGINA HELENA LIMA NUNES

fazer e saber que comportam ciências, fi- fontes quando essas são escritas pelas
losofias, tecnologias, enfim, instrumen- mãos das crioulas de Conceição que ensi-
tais éticos e estéticos fundamentais para nam à sociedade que a relação de autoria
a vida e prosperidade não apenas dos qui- necessita ser protagonizada pelos/as pró-
lombos mas de uma sociedade cujo para- prios/as sujeitos/as que dos seus lugares
digma educacional inspirada em moldes de fala, politizam as universidades e suas
ocidentais revela e já revelou, sinais reco- pretensas hegemonias.
nhecidos de insuficiência ou, talvez, de Mas finalizaria a partir de um dos tan-
sua falência. tos momentos de emoção! Foi emocio-
Seria impossível em poucas páginas nante viver a comunidade no espaço onde
descrever a profundeza que foi estar em se concentravam as atividades diárias; foi
Conceição e durante cinco dias, aban- inesquecível a convivência diária e notur-
donar, parcialmente, as ferramentas ofi- na, o dormir e o amanhecer nos lugares
ciais de pesquisadora e se permitir viver de vida e de luta das mulheres e homens
a construção de conhecimento de forma de Conceição de Crioulas. Foi funda-
mais fluída. Por isso, gostaria de encerrar mental o momento de tão apenas olhar,
a escrita me remetendo à instituição que de forma descompromissada, ou melhor,
é tão cara para a população negra e qui- aprendi outros jeitos de estar e olhar, de
lombola e, ao mesmo tempo, ainda tão compromisso que é aquele que permite
importante de ser acessada e constante- olhar o universo da vida sem encarcerá-lo
mente renovada para que ao invés de ser nas limitações que os manuais de inves-
lugar de emancipação não seja lugar de tigação impõem.
opressão: a escola! Por esse jeito de olhar, acompanhei
A escolarização em Conceição de Criou- como lição, o deslocamento de uma se-
las, é reconhecida por ser àquela que pro- nhora, mãe de lideranças e professoras lo-
picia que escola e comunidade não sejam cais, com um lindo vestido rosa, com cai-
territórios estanques. Existe, em certa mento perfeito em um corpo ágil, esguio,
medida, alguns estudos e divulgação dos cabelos quase que totalmente brancos e
processos de educação e escolarização pele lisamente escura... com a memória a
da comunidade divulgados através de di- ir e vir, por vezes se embaraçar, talvez, não
ferentes canais, entre eles trabalhos de como sinal de tempo, da idade, ou como
natureza acadêmica, vídeos, reportagens sintoma de diagnostico médico. Me vi,
e outros. Mais preciosas tornam-se as propus a reconhecer, aquele momento de

88
CONCEIÇÃO DE CRIOULAS: FASCÍNIO, ENCONTRO, SABER E POTÊNCIA PARA (RE) EXISTIR!

escuta como somatória de uma quantida- intermináveis. Talvez, a melhor forma de


de tão grande de vivencias e experiências finalizar seria dizer que a experiência nos
que, com o passar do tempo se autorizam tornou um pouco mais resistentes, tais
a não obedecer mais linearidades, porque como as mulheres de Conceição, feito fi-
elas transbordam. Me senti abraçada por bra, feito fibra do caruá, que se transfor-
esse universo plural, feminino, feminista, ma mas não se extingue, nos torna, (re)
mulherista, ou melhor, inominável! existentes.
Também, movida por um jeito de estar,
fui guiada pelo pequeno Julio, 7 anos, que
me acolheu em sua casa, que me levou a
passear, que me permitiu que o levasse
em um primeiro momento à escola e que
posteriormente a ser a pessoa que não
pesquisaria a escola, que é quilombola,
que é repleta pela imagem das mulheres
que dão visibilidade à história de Concei-
ção nas suas paredes, nos seus uniformes,
nos seus Projetos Pedagógicos. Eu quis ir
para a sala de aula! Para uma sala de aula,
como se diria no Sul, com guris e gurias
(meninos e meninas), na sua grande
maioria negros/as, esteticamente lindos
e corporalmente vibrantes. Não sucumbi
ao desejo de voltar a ser a professora da
educação básica, por alguns momentos,
e vivenciar a educação que se dá no/pelo
movimento, através do jogo, das ludici-
dades que no espaço exterior às salas de
aula, é sempre uma descoberta porque é
imprevisível, diria, quase impossível car-
tografar as trajetórias que os movimentos
da cultura infantil produzem.
A percepção dos dias em Conceição, são

89
90
tistas. A oficina de dança, objeto deste
Encontro com o estudo, teve como objetivo sistematizar e
corpo, a dança socializar a vivência realizada no encon-
tro supracitado e os diálogos intercultu-
e a comunidade rais, a partir do corpo em movimento,
bem como analisar as possibilidades de
Quilombola de integração e as diferenças e as semelhan-
Conceição das ças das manifestações culturais dos cole-
tivos que ali se entre-cruzaram. Quanto
Crioulas aos aspectos metodológicos, realizamos
pesquisa qualitativa e participante, que
EDITE COLARES1 dispôs como procedimento de coleta de
JEANNETTE F. POUCHAIN RAMOS2 dados a observação participante. Funda-
ANA CAROLINA LIMA SALES3 mentamos as idéias expostas neste arti-
go em autores, como: Paulo Freire, Jean
Resumo Piaget, Ligiéro, Rancière, dentre outros.
Este artigo é fruto da imersão viven- À guisa de conclusão, ressaltamos que
ciada no Quilombo de Conceição das houve uma disposição coletiva para sair
Crioulas – Pernambuco, organizado pelo de seu lugar, desviar-se do seu cotidiano
Movimento Intercultural Identidades, profissional e imergir numa experiência
que desenvolve laboratório de pesquisas, colaborativa cujo objetivo era compar-
onde se cruzam docentes, discentes e ar- tilhar artes, saberes e sabores. É funda-
mental reafirmar a adesão de todos, pos-
1 Edite Colares Oliveira Marques possui graduação em Peda-
gogia pela Universidade Federal do Ceará (1990), mestrado
sibilitando a integração intergeracional e
em Educação pela UFCE (1997), doutorada em Educação pela intercultural. Enquanto pesquisadoras,
UFCE (2008) e pós-doutorada na Faculdade de Belas Artes
da Universidade do Porto/PT (2014). Professora da Universi- nos colocamos diante do processo como
dade Estadual do Ceará. educadoras que estão em constante pro-
E-mail: edite.marques@uece.br
2 Profa. da Universidade da Integração Internacional da
cesso de reinvenção. Deste modo, con-
Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). sideramos que, mediados pelo corpo em
E-mail: ramosjeannette@unilab.edu.br
3 Discente do curso de licenciatura em Pedagogia da Univer-
movimento, motivados pelas danças,
sidade Estadual do Ceará, bolsista do PIBID e participa do vivenciamos o sair de si e ir ao encontro
grupo de pesquisa Cultura Brasileira, Educação e Práticas
Pedagógicas (UECE).
do outro, enfim, o perceber-se, o trans-
E-mail: negracaroleducadora@gmail.com mutar-se.

91
EDITE COLARES / JEANNETTE F. POUCHAIN RAMOS / ANA CAROLINA LIMA SALES

palavras-chave Sales e José Honorato Neto. A oficina


Dança; Interculturalidade; Educação. teve como objetivo sistematizar e sociali-
zar a vivência da oficina de dança realiza-
1. Introdução da no encontro supracitado e os diálogos
Este artigo é fruto da imersão viven- interculturais a partir do corpo em movi-
ciada entre os dias 16 e 20 de julho de mento, bem como analisar as possibili-
2017, no Quilombo de Conceição das dades de integração e as diferenças e as
Crioulas, localizado no Nordeste brasi- semelhanças das manifestações culturais
leiro. Tal imersão foi motivada pelo Mo- dos coletivos que ali se entrecruzaram.
vimento Intercultural Identidades, no Em janeiro de 2017, quando estivemos
diálogo interinstitucional entre a Asso- no Quilombo de Conceição das Crioulas,
ciação Quilombola Conceição das Criou- com o professor José Carlos de Paiva, lí-
las (AQCC), a Universidade do Porto der do Identidades, sondamos o interes-
(UP), a Universidade Estadual do Ceará se dos professores e líderes comunitários
(UECE), a Universidade da Integração pela realização de uma oficina de dança
Internacional da Lusofonia Afro-brasilei- no Encontro que planejávamos para ju-
ra (UNILAB), dentre outras, que culmi- lho. Naquela ocasião, houve a adesão de
nou com a realização do 1ª Encontro com todos, o que nos entusiasmou bastante.
as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores À época, já pensávamos em realizar, na-
da Comunidade Quilombola de Concei- quele local, uma experiência multicultu-
ção das Crioulas, cito na região do Sertão ral4 integradora, de danças dos diferen-
Pernambucano. tes lugares. Imaginávamos, ainda, trazer
O Movimento Intercultural Identida- ritmos cearenses, como o coco e o ma-
des desenvolve um laboratório de pes- racatu, e os demais trariam as danças de
quisas sobre interculturalidade, onde se suas comunidades, seja do Quilombo, de
cruzam docentes, discentes e artistas de Portugal ou da África. A intenção desde o
Moçambique, Cabo Verde, Brasil e Portu-
gal. Imbuídos do espírito de integração, 4 Catherine Walsh (2014, p. 4-5) compreende que, na per-
spectiva multicultural, “[...] el reconocimiento y el respeto a la
este artigo constitui-se numa produção diversidad cultural se convierten en una nueva estrategia de
colaborativa entre docentes e discentes dominación, que apunta no a La creación de sociedades más
equitativas e igualitarias, sino al control del conflicto étnico y
da UECE e UNILAB, coordenada por La conservación de la estabilidad social con el fin de impulsar
los imperativos económicos del modelo (neoliberalizado)
Edite Colares, Jeannette Ramos, Fran- de acumulación capitalista, ahora ‘incluyendo’ a los grupos
cisco Sousa da Costa, Ana Carolina Lima históricamente excluídos en su interior”.

92
ENCONTRO COM O CORPO, A DANÇA E A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

planejamento era a troca de saberes e sa- onde criou um grupo de pífano.


bores, nos modos de dançar das culturas Por iniciativa da organização comuni-
que ali se entrecruzaram. tária e a partir do que foi acordado em
O Quilombo de Conceição das Criou- reunião de planejamento, garantiu-se a
las fica no sertão pernambucano, no mu- existência de um espaço público, amplo,
nicípio de Salgueiro, fazendo fronteira que permitiu a realização da oficina de
com Pena Forte, no Ceará. É uma comu- dança, na qual contamos com equipa-
nidade marcada pela falta de água, pelas mentos como: caixa de som, microfone,
longas distâncias, pela história de fixação instrumentos de percussão. Participa-
à terra por seis mulheres negras que ali ram deste momento alguns jovens que há
aportaram para fugir da perseguição, da poucos anos tinham criado um grupo de
escravidão e da injustiça. Fizeram mora- dança como atividade escolar e que acei-
dia, fincaram-se à terra e, a partir disso, taram participar trocando experiências,
nasceu uma comunidade de negros entre- bem como o professor Adalmir, que levou
cruzada de índios e sertanejos originários ao grupo seus conhecimentos de percus-
do lugar. Mas se dizemos, com Euclides são e dança. Havíamos trazido para cá,
da Cunha, que o sertanejo é antes de tudo também, os instrumentos característicos
um forte, podemos estender esta ideia do maracatu, a saber: o tradicional ferro,
para aquelas quilombolas, que são sem- a caixa e o bumbo. Aliamos à dança rit-
pre valentes, aguerridas e corajosas. mos característicos do Nordeste como o
A história de luta e liderança feminina coco, o maracatu, o afoxé, o trancelim, o
na Comunidade Quilombola de Concei- baião, o forró e o xote.
ção das Crioulas continua ainda hoje, Quanto aos aspectos metodológicos,
pois encontramos à frente da Associa- este artigo é fruto de pesquisa qualitativa
ção — levando a bandeira da Educação, e participante, que dispôs como procedi-
da Cultura e da Arte — algumas mulhe- mento de coleta de dados a observação
res, tais como Penha, Valdeci, Gilvânia, participante no decorrer da realização
dentre tantas outras. Entre os homens de uma oficina de dança. Propusemos a
que se envolveram com o Encontro na aprendizagem dos passos básicos dos rit-
comunidade, podemos destacar o profes- mos característicos da região do Nordeste
sor Adalmir, que treina o time de futebol brasileiro, mas que guardam suas peculia-
feminino da comunidade e estabelece sua ridades de um estado para o outro, inves-
marca também na vida cultural desta, tigando com o próprio grupo de partici-

93
EDITE COLARES / JEANNETTE F. POUCHAIN RAMOS / ANA CAROLINA LIMA SALES

pantes estas características marcantes na mas também para realizar a troca de um


dança de cada lugar. Assim, tanto o mara- repertório próprio, forjado nos múltiplos
catu quanto o coco — e até mesmo o forró caminhos trilhados até ali. Isso demons-
— têm modos próprios de se executar em tra que estávamos abertos ao diálogo,
função do local. Durante todo o processo com o propósito de construir saberes co-
metodológico da oficina, bem como na letivos sobre a Arte, a Luta e os Sabores
redação deste artigo, buscou-se fazer um em Conceição das Crioulas.
trabalho coletivo de compartilhamento Destarte, a concepção de conhecimen-
de saberes sobre a arte da dança e na sis- to aqui apresentada se faz a partir da des-
tematização da vivência e de suas reper- coberta de si, na interação com o outro,
cussões na comunidade e nas pessoas. com o ancestral e com o contemporâneo,
numa postura dialética, num jogo de afir-
2. Princípios pedagógicos para o ensino
mação, negação e de negação da negação
de Dança
Diante dos desafios da educação na para, então, chegar a uma nova afirmação,
realidade atual, em que questões socioe- a qual compreende os contrários em seus
conômicas e culturais e de gênero afloram antagonismos e complementaridades,
cotidianamente, destacamos aqui alguns respeitando a corrente histórica e contri-
princípios pedagógicos determinantes no buindo na construção de uma sociedade e
ato de planejar, de relacionar-se, de inte- uma educação mais felizes e satisfatórias
ragir e de sistematizar a oficina de danças para todos.
tradicionais. Dois pensadores da educação funda-
Em consonância com a proposta do mentam nossa concepção epistemológi-
Encontro, os grupos de pesquisa Cultura ca e dão suporte teórico à nossa prática
Brasileira, Educação e Práticas Pedagógi- educativa: Paulo Freire, com sua defesa
cas (UECE) e Educação, Cultura e Sub- da educação como prática de liberdade,
jetividade (UNILAB) — neste momento para quem devemos num processo edu-
pesquisando as danças tradicionais e sua cativo partir da cultura dos envolvidos
inserção na educação — agarraram-se no no processo educativo, e Jean Piaget, com
desenrolar de suas ações durante a ofi- quem entendemos que é na interação com
cina. Todos que lá estávamos, havíamos o outro e agindo sobre o meio que o ho-
nos deslocado de nosso lugar para pôr mem modifica-se, transformando o real
em jogo as experiências vivenciadas não e apreendendo-o. Partindo destes prin-
só em nossos campos de conhecimento, cípios, visamos, na oficina, realizar uma

94
ENCONTRO COM O CORPO, A DANÇA E A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

prática interativa e libertadora, na qual adultos e idosos.


tratamos de forma horizontal com todos Muitos são os aspectos formativos que
os participantes, não nos furtando, no a dança desenvolve junto às pessoas, mas
entanto, como educadores, ao papel de parece que a alegria e o sentimento de
conduzir o encontro com os saberes da partilha fizeram-se presentes na oficina
dança, seus ritmos e movimentos. de dança, de maneira especial, e merecem
É especialmente significativo destacar a destaque. Para nós, uma vivência como a
integração entre docentes e discentes das que tivemos corrobora com a convicção de
universidades e da escola básica e pessoas Umberto Eco, para quem “Uma experiên-
da comunidade quilombola, todos fazen- cia estética é justificada pelo prazer que
do danças e ritmos que foram vivencia- acompanha e não pode desqualificar ou
dos e aprendidos por todos os presentes. excluir as outras experiências estéticas”
Destacamos, ainda, o envolvimento de (2013, p. 57). Diante da vivência artística
sujeitos cuja faixa etária variava dos seis, em questão, almejávamos, essencialmen-
sete anos até as senhoras de cinquenta e te, uma interpretação, uma compreensão
poucos anos, oriundos da comunidade. crítica, um processo metodológico que
oferecesse concretude e se materializasse
na expressão corporal dos significados
simbolizados numa marca do modo de
dançar das comunidades e sujeitos en-
volvidos, muito demonstrativo de uma
identidade cultural valorizada e vivificada
por todos.
A arte presente no Quilombo tem sido
também uma forma de resistência cultu-
ral, pois é através dela que a comunidade
Integração intergeracional na Oficina de Dança.
Fonte: Acervo do grupo de pesquisa (UECE-UNILAB).
se manifesta, relembrando os seus an-
cestrais, o seu povo e a sua história. Po-
Tomamos a posição de convidar a to- demos encontrar a história do quilombo
dos, o que oportunizou uma troca muito no artesanato, na confecção de bonecas,
intensa. Ficou explicitado que a dança co- no bordado, na arte do barro e na dança.
munitária não tem limite de idade, pois Esta última faz o corpo movimentar-se,
estavam presentes crianças, adolescentes, dentro de uma matriz rítmica, em unida-

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EDITE COLARES / JEANNETTE F. POUCHAIN RAMOS / ANA CAROLINA LIMA SALES

de com o canto e a dança de origem afri- mundo. Portanto, é através dos gestos do
cana e que recebe matizes deste povo que corpo que podemos fazer uma reconsti-
tuição da história de vida deste ou daque-
canta, dança e encanta.
le grupo, como também da pessoa. [...]. O
O povo do quilombo é alegre, gosta seu corpo é ativo em todas as situações e
de música, do ritmo marcado pelo batu- em todos os momentos (ARAÚJO; MEN-
que e de sua dança, pois é a partir disso DONÇA; SOUSA, 2011, p. 155).
que expressam seus costumes e sua cul-
tura. A dança está sempre presente em O corpo em movimento promove a
seu cotidiano e nas suas festas e pode ser educação dos sentidos e possibilita a per-
considerada como elemento fortalecedor cepção de si e do universo, assim como
da identidade local, bem como apoio na aprendizagens significativas. Portanto,
construção do protagonismo de jovens a dança é um movimento espontâneo/
da comunidade. Para ilustrar o que afir- sistematizado de liberdade de criação,
mamos, o grupo de dança iniciado no recriação e espelhamento de movimentos
quilombo foi organizado por jovens que vivenciados no cotidiano da vida comuni-
cantam, dançam e enaltecem sua cultura, tária.
fazendo com que cada vez mais ela seja O ensino de dança, enquanto prática
difundida, respeitada e valorizada por sociocultural e atividade corporal, inicia
todos. com a percepção a partir dos movimen-
No entanto, como pesquisadores, tam- tos, estimulando a consciência corporal,
bém indagamos: houve descolamentos de ancorando-se no jogo especular o autoco-
si? Encontros com o outro? Partilha de nhecimento (NANNI, 2005) e o conhe-
saberes, de corpos em movimento? cimento do outro, a partir da troca entre
manifestações artísticas de diferentes
2.1 O corpo em movimento: A dança lugares e tradições. Em síntese, “[...] a
como princípio educativo dança como linguagem corporal, cultu-
Partindo também do princípio pedagó- ral humana, produzida por um corpo que
gico de que não é só físico, mas um corpo que é bio-
cultural, capaz de perceber e transformar
O corpo é a porta de entrada e saída de in-
as coisas do mundo” (LIMA; PORPINO,
formações e/ou conhecimento. Informa/
aponta o que incomoda, satisfaz, entris- 2011, p.117).
tece, alegra... Enfim, sinaliza/ constrói Ao relacionar a dança às práticas cul-
canais de comunicação entre o ‘eu’ e o turais, percebemos este encontro como

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ENCONTRO COM O CORPO, A DANÇA E A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

fonte inesgotável de conhecimento. É visão africana e afrodiaspórica, quando


possível compreender as potencialidades Ligiéro (2011, p.131) ressalta a unidade
presentes nas experiências realizadas, as entre cantar-dançar-batucar. A dança,
quais, a partir da corporeidade que está pois,
em unidade à musicalidade e ao batuque,
apresentam-se como importante estraté- Caracteriza-se pelo seu movimento ex-
plosivo e concentrado, o envolvimento
gia pedagógica, possibilitando a produ- total do corpo e a sintonia com a percus-
ção de infinitas maneiras de explorar as são, gerando um contexto cujo sentido é
sensações e os limites presentes nesse fortemente espiritual e atinge, no êxtase,
corpo. o seu apogeu, momento em que o transe,
o encontro máximo com o divino, pode
Dentre as possibilidades, destacamos
ocorrer ou não.
o ensino de dança no reconhecimento e
valorização das tradições e conhecimen- A influência africana e afro-diaspóri-
tos ancestrais da áfrica/diaspórica e da ca na oficina de dança foi percebida em
matriz indígena, respectivamente dis- todas as manifestações partilhadas, cito
posto nas Leis Federais no. 10.639/03 e coco, maracatu, afoxé etc. O corpo em
11.645/08. movimento, a partir desta influência,
destacasse por sua cadência integrada ao
É importante enfatizar que a partir da
batuque e ao canto.
dança podemos compreender o passado,
o presente, os limites do nosso corpo,
2.2 A interculturalidade em cena
saberes e tradições e outras infinidades
de conhecimentos que podem ser adqui- Ao revisitarmos a literatura acerca do
conceito de interculturalidade, destaca-
ridos, através da imitação, improvisação
e pelos movimentos, ao som dos ritmos mos o movimento histórico da huma-
e das melodias. Nessa perspectiva com-
nidade de povos em movimento, por-
preendemos que as contribuições da
tanto migrantes, e as contribuições da
dança estão para além dos fatores relacio-
nados aos aspectos físicos, mas também epistemologia do sul na lida com diferen-
inclui os emocionais e mentais (SOUSA tes culturas. Exige-nos sair de si não só
JR.; RAMOS, 2017, p. 3). no tocante aos referenciais teóricos, como
também no entendimento das manifesta-
A unidade entre passado/presente/ ções culturais. Sair de si e ir ao encontro
futuro, ontem, hoje e amanhã, também do outro, perceber-se, transmutar-se: eis
pode ser sistematizada a partir da cosmo- nosso desafio.

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EDITE COLARES / JEANNETTE F. POUCHAIN RAMOS / ANA CAROLINA LIMA SALES

Portela (2014), ao analisar o percurso social existente. O relacional, por sua vez,
da educação intercultural na Europa na pressupõe o contato entre as diferentes
transição entre os séculos XX e XXI, me- culturas sem, entretanto, problematizar
diante cenário crescente de migração e os conflitos e as desigualdades existentes.
unificação econômica, conclui sinalizan- Por fim, a interculturalidade crítica reco-
do que é preciso ter clareza semântica e nhece a diversidade cultural e propõe mu-
epistemológica diante da pluralidade de dança nas estruturas de poder, questiona
acepções. Para ele, “There is a game, an as relações, apontando novos modos de
‘interaction’, between people with different viver, pensar, conviver e ser. Indagamos,
ethnic, linguistic and cultural backgrounds in então: qual tipo de interculturalidade vi-
which the aim is not assimilation or fusion, venciámos na oficina de dança?
but encounter, communication, dialogue,
contact, in which roles and limits are clear, 3. As trocas e o diálogo intercultural na
but the end is open”(p. 8). oficina de dança
Na América do Sul, Walsh entende in- Desde o início, pensamos em promo-
terculturalidade como projeto e processo ver diálogos entre danças de todos os
na construção de outros modos de ser, lugares ali representados, ou seja, Brasil,
pensar, viver e se relacionar. Portugal e África, com ênfase na vivência
Noes agumenta a partir da relação entre de representações de danças do Nordes-
grupos, práticas e pensamentos culturais, te brasileiro, notadamente do Ceará e
pela incorporação dos tradicionalmente de Pernambuco. Destacamos, também,
excluídos dentro das estruturas (edu- a produção colaborativa da oficina entre
cativas, disciplinares e de pensamento) docentes e discente da UECE, UNILAB,
existentes, ou somente a partir da criação das escolas quilombolas e da comunidade
de programas ‘especiais’ que permitam a em geral.
educação ‘normal’ e ‘universal’ siga per- A concepção de conhecimento que se
petuando práticas e pensamentos radi- faz a partir de si e na interação com o
cais e excludentes (WALSH, 2014). outro — a partir dos fundamentos da
Esta complexidade se revela também dança como princípio pedagógico e da in-
em três tipos de interculturalidade. São terculturalidade como pontes que unem
eles: funcional, relacional e crítica. O os diferentes na afirmação do que lhes é
primeiro reconhece a diversidade e a di- singular, ao mesmo tempo em que reco-
ferença e propõe a inclusão na estrutura nhece e valoriza o outro — nos fez sentir

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ENCONTRO COM O CORPO, A DANÇA E A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

na pele, durante a oficina, a vivacidade de e indígena das danças e ritmos.


tal concepção. Fomos, a cada dia, trabalhando dois
No que diz respeito à indagação supra- destes ritmos. Apresentamos um pouco
citada de qual tipo de interculturalidade da história e da tradição destas danças e
vivenciamos na oficina, adotamos como passamos à parte prática, demonstrando
princípio a interculturalidade crítica, ou os passos básicos de cada uma das dan-
seja, aquela que questiona as estruturas ças e compartilhando passos de pares,
de poder ao produzir de modo colabora- em roda e em desafio. A introdução dos
tivo com a comunidade e demais parti- passos básicos permitiu-nos um enrique-
cipantes, ao se colocar como aprendizes cimento com variadas composições pelo
das manifestações culturais que os gru- grupo, alternando os elementos básicos
pos representados partilharam, entre ou- com as improvisações que foram surgin-
tras percepções mais sutis. Destacamos, do. Para Rancière, “Improvisar é, como
por exemplo, que o frevo, ritmo tradicio- se sabe, um dos exercícios canônicos do
nal pernambucano, não estava previsto Ensino Universal. Mas é, antes ainda,
logo nos primeiros encontros da oficina o exercício da virtude primeira de nossa
e, ao contar com a adesão de discentes da inteligência: a virtude poética” (2015, p.
Universidade de Pernambuco e do Ca- 96).
riri, inserimos na programação e todos Dançando afoxé a partir da iniciativa
dançaram o referido ritmo, partilhando dos jovens da comunidade quilombola,
movimentos, sensações, expressões e co- percebemos a unidade e representação
nhecimentos. Sendo assim, reafirmamos dos movimentos daqueles que lidam com
que a dança ultrapassa aspectos físicos, a terra, como quem movimenta a enxa-
corporais e inclui o cognitivo, o relacional da no momento de preparar a terra para
e o político. o plantio, seguidos de movimentos com
Dentre as inúmeras possibilidades, as mãos que simbolizam o plantio e a co-
as pessoas da comunidade puseram em lheita.
jogo suas danças, em especial o afoxé, o A tríade corpo-dança-batuque do afoxé
trancelim, o coco e o maracatu junto aos nos remete imediatamente à ancestrali-
nossos contributos, com o xote e o baião, dade africana. Tais representações rea-
bem como o nosso maracatu solene e a firmam, também, a percepção do corpo
dança da família de Angola. Estas reafir- biocultural e da unidade entre o humano
mam a presença marcante da origem afro e a natureza e a arte como expressão da

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EDITE COLARES / JEANNETTE F. POUCHAIN RAMOS / ANA CAROLINA LIMA SALES

percepção de si e da relação entre estes, para o sertão. Na praia ele é dançado,


num movimento singular retratado por inicialmente, pelos pescadores, em roda
esta comunidade dançante. e em desafios marcados por uma dança
O trancelim, entendido como manifes- de final de jornada de trabalho, funcio-
tação particular desta comunidade, nos nando como uma brincadeira coletiva.
remeteu imediatamente ao tradicional Diz-se, também, que em grupos comuni-
rito cristão luso-afro-brasileiro da Festa tários se pisava o chão das casas, que ti-
de São João, com ênfase para sua expres- nham o piso batido, dançando-se o coco,
são no Nordeste brasileiro. Esta dança mais uma vez articulando-o aos cantos e
faz parte da memória coletiva de cearen- danças de trabalho, sendo, preferencial-
ses, então identificamos aproximações e mente, no litoral, uma dança masculina.
diferenças mútuas. Já no sertão, o ritmo foi tomando novo
A aproximação é possível no compas- formato, criando-se o coco dançado aos
so do trancelim, entretanto, no Nordes- pares. Em Folclore, Getúlio César, conta-
te, esta manifestação é parte de um rito -nos que “O Coco absorveu esta modali-
maior da celebração do nascimento de dade, criando o Coco de visita, também
João, posteriormente São João. Neste dançado aos pares” (p.44).
rito, celebra-se a cultura cristã, imersa
num sincretismo religioso — por exem-
plo, na culinária que tem como base o
milho, expressão da cultura africana e in-
dígena, e na dança, como no tradicional
forró pé de serra. A simbologia da foguei-
ra, das comidas à base do milho (fruto
da colheita) e as danças compõem um
repertório singular e único. O fogo hu-
mano expresso no movimento corporal,
Dança do coco.
divino e transformador espelha o fogo da Fonte: Acervo do grupo de pesquisa (UECE-UNILAB).
fogueira.
O coco, por sua vez, acredita-se que Faz-se necessário destacar que no in-
nasceu na praia, mas expandiu-se para o terstício de outra Oficina, qual seja, “Pro-
interior, e no Ceará já guarda distinções dução de Brinquedos e Brincadeiras”, que
entre os seus modos de execução da praia ocorreu na Escola José Neo de Carvalho,

100
ENCONTRO COM O CORPO, A DANÇA E A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

uma professora da escola realizou, duran- da música no Nordeste do Brasil, tenha


te o recreio, uma vivência de dança com afirmado que “tudo é coco”.
as crianças – a dança do coco. A dança, Dentre as inúmeras possibilidades de
paralelamente à dimensão da percepção danças africanas, trouxemos para a par-
corporal e cultural, é muito importante tilha a Dança da Família, também conhe-
para o desenvolvimento psicomotor das cida como Esquema. A origem desta ma-
crianças e para o resgate e a valorização nifestação esta imersa num mistério. Para
da identidade afro-indígena brasileira alguns é tradição angolana; para outros,
e da resistência dos povos, integradas à de Guiné Bissau.
arte.

Vivência de Dança - Coco - na escola..


Fonte: Acervo do grupo de pesquisa (UECE-UNILAB).

O baião, também trazido para a Oficina


Dança da Família - Africana.
de Danças Tradicionais, segundo Câmara Fonte: Acervo do grupo de pesquisa (UECE-UNILAB).
Cascudo,“[...] conserva células rítmicas
e melódicas visíveis dos Cocos, a rítmica A síntese possível é que é uma tradição
(de percussão) com a unidade de com- africana onde se dança em família ou em
passo exclusivamente par”. Percebemos grupo. Pessoas de diferentes gerações se
que o termo forró é, de modo geral, usa- reúnem num compasso singular, com
do para designar um conjunto de estilos movimentos sincronizados, coreografa-
musicais que guardam as características dos, exercitando o mesmo passo várias
desta mesma célula rítmica do coco, tal- vezes, produzindo uma cruz humana.
vez por isso Jackson do Pandeiro, ícone Neste jogo, corpo, canto e batuque se fun-

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EDITE COLARES / JEANNETTE F. POUCHAIN RAMOS / ANA CAROLINA LIMA SALES

dem e fazem reverência à ancestralidade. assim creem, mas o processo educativo


É dançada normalmente em festas, na ce- deveria ser posto como um jogo no qual
lebração da independência dos países ou cada participante aceita o desafio e, se-
em festas populares. guindo regras, objetiva o sucesso. Então,
As especificidades dos modos de dan- movidos pela curiosidade e pelo desafio
çar e de expressar de cada lugar podem ser proposto, perseguem a vitória. Assim,
observadas no maracatu, ritmo de ances- propusemos conhecer as danças uns dos
tralidade africana, mas interpretado de outros.
modos distintos entre os pernambucanos À guisa de conclusão, ressaltamos a ini-
e os cearenses. É perceptível a diferença ciativa do movimento IDENTIDADES,
na cadência, pois no maracatu cearense iniciado por portugueses e que aglutina
ela é mais lenta, um maracatu solene, en- colaboradores do Brasil e África interes-
quanto em Pernambuco é mais acelerada. sados em partilhar saberes no campo das
Os timbres dos instrumentos também di- artes, das culturas e da educação, assim
ferem. No Ceará, é caracterizado pelo fer- como em apreender do outro o modo de
ro, que, ao imitar o som do sino de igreja, pensar, ser, sentir e se expressar por meio
demonstra peremptoriamente a presença de práticas colaborativas em Arte na co-
deste diálogo étnico-cultural, num sin- munidade.
cretismo declarado. É impossível não abordar o esforço de
Em cada lugar a dança tem sua bele- deslocamento de todos os que não sendo
za, sua marca, sua tradição ou evolução. da comunidade fizeram também para es-
É certo que o modo de dançar de nosso tar no Encontro. Houve uma disposição
tempo se interpenetra pelos meios de para sair de seu lugar, galgar caminhos,
comunicação de massa, como televisão e desviar-se do seu cotidiano profissional
internet, mas ainda assim guarda pecu- e imergir numa experiência colaborativa
liaridades nos seus modos de dançar as entre pessoas distintas, as quais estavam
tradições. unidas no objetivo de compartilhar ar-
São estas distinções, estes modos de tes, saberes e sabores em Conceição das
ser que nos interessam. Conhecer o ho- Crioulas.
mem no que o difere e o identifica. Talvez Este deslocar-se é um esforço indivi-
este objetivo educativo de perceber o edu- dual e coletivo de olhar por outro ponto
cando na sua individualidade seja utópi- de vista que não o seu, tanto geográfico
co, irreal. E, certamente, têm razão os que quanto epistêmico. A vivência do trans-

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ENCONTRO COM O CORPO, A DANÇA E A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

lado, da viagem, é muito significativa na des, pessoas da comunidade, treinador de


aprendizagem e na troca de saberes. É futebol, além de jovens em geral. A cada
uma educação dos sentidos, uma percep- encontro novas pessoas eram agregadas
ção sutil que se sente fisicamente quando à oficina.
da mudança de perspectiva, de modo a Enquanto pesquisadoras, nos coloca-
viver e de estar no mundo, voltado para mos diante do processo como educadoras
compor com o outro, em uma prática pe- que estão em constante processo de rein-
dagógica intensa e de imersão. venção, a partir das percepções propicia-
das no encontro com o outro, e na convi-
vência partilhada entre saberes e fazeres.
Realizamos uma prática colaborativa na
qual o outro é entendido como parte de
todas as vivências desenvolvidas, inclusi-
ve na proposição de danças, na realização
da oficina e na partilha das percepções.
Deste modo, consideramos que, media-
dos pelo corpo em movimento, motiva-
dos pelas danças, vivenciamos o sair de si
Oficina de Dança – Maracatu. e ir ao encontro do outro, enfim, o perce-
Fonte: Acervo do grupo de pesquisa (UECE-UNILAB).
ber-se, o transmutar-se.
É fundamental, também, reafirmar a
adesão dos quilombolas, dos pernambu- Referências bibliográficas
canos e cearenses, que aceitaram o desa- ARAÚJO, Keila Barreto de Mendonça;
UILIETE Marcia Silva de; SOUZA, Veroni-
fio e, no último dia de oficina, apresenta- ca Costa de. Brincando com as Sensações
ram o resultado, mais uma vez dançando do Corpo. In: JALLES, Antônia Fernanda;
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SANTOS, Isabel Cristina Correia dos. Forró
& tango: duas expressões populares que
conquistaram povos muito além de suas
fronteiras. 2016. Monografia (Curso de Es-

104
barquei no Brasil um mês antes de viajar
VEREDA a Pernambuco, e aproveitei o tempo para
rever alguns amigos, visitar familiares,
JULIANA POLIPPO1 saborear meus pratos favoritos e contem-
plar um inverno mais bondoso. Me ins-
Os caminhos que me levaram a Con-
talei em São Paulo - no apartamento de
ceição das Crioulas foram sinuosos,
uma amiga - onde meditei entre grades à
longínquos e instintivos. Quando digo
espera da minha companheira de viagem
“instintivos”, fica parecendo que sabia
– Maria Portela (pesquisadora multimé-
exatamente o rumo que deveria tomar
dia, FEUP) que chegaria no Aeroporto de
pra chegar lá, mas isto não é verdade.
Guarulhos (GRU), no dia 08 de Julho às
Nos quase 4.000 km rodados, o único
07:55 vinda de Portugal também para o
guia que mantive ligado foi o desejo de
‘Encontro’. De um domingo a outro, ti-
“conhecer”. E quando digo “conhecer”,
nha a dupla missão: atravessar parte do
também não quero que fique parecendo
mapa do Brasil numa linha quase reta até
que era só curiosidade da minha parte. Eu
Salgueiro, PE, sem deixar de mostrar fa-
uma mera estudante brasileira, na aven-
tos e belezas em exatos 7 dias.
tura transatlântica de carregar infinitas
Apresentei a maior cidade do país em
indagações na mochila. Sob a premissa
de somar sonhos para futuras realidades pouco mais de 24h, e fiz questão que isso
no Encontro com as Artes, a Luta, os Saberes acontecesse mesmo com o tempo conta-
e os Sabores da Comunidade Quilombola de do que tínhamos, porque acreditava que
Conceição das Crioulas, como tantos que ali ela entenderia logo que no Brasil so-
aqui já vos relataram de outras formas. mos feitos de contrastes. Pra isto elaborei
A poucos meses incorporada no grupo um roteiro passando pelo que considera-
‘Movimento Intercultural IDENTIDA- va ‘característico’ e não ‘folclórico’. Caí-
DES’, ajudando nas questões ‘multimé- mos na estrada no dia seguinte a chegada
dia’ que podia, fui convidada a visitar a dela sentido a Minas Gerais, e contáva-
comunidade pela primeira vez. Passei mos apenas com dois Guias Quatro Rodas
dias a comtemplar sensações... Noites a impressos em 2004 e um GPS desatuali-
ansiar. Embora tivesse no fundo no fun- zado, que logo foi descartado por falta de
do, calma no que haveria de ser. Desem- credibilidade.
A primeira parada era Ouro Preto,
1 Investigadora Multimédia, ID_CAI, i2ADS. uma das principais localizações do ciclo

105
JULIANA POLIPPO

do ouro, também conhecida por sua ar- queca de peixe’ bem servida que ouvira
quitetura colonial. A mim fazia sentindo dizer, enquanto nos perdíamos para che-
atravessar caminhos comuns ao da colo- gar no vilarejo de Palmeiras. Localizado
nização, afim de entender as suas demar- no centro do estado, no município com-
cações no tempo. Então lá fomos nós, a preende ‘O Parque Nacional da Chapada
dupla luso-brasileira numa investigação Diamantina’, nos instalamos por pouco
experimental que buscava decifrar mapas, mais de 48h pra explorar um reduto de
direções, moedas, costumes, dialetos, beleza natural no país.
gostos musicais e tudo mais que passasse As estradas ficavam cada vez menos
pela janela do carro. sinalizadas, os postos de gasolina cada
Continuamos. Era chegada a hora de vez mais espaçados, o mapa confuso e as
conhecer o ‘Instituto Inhotim’, um dos informações mais incongruentes. Já tí-
mais importantes acervos de arte contem- nhamos algum cansaço dos longos dias
porânea do Brasil, considerado o maior na estrada e a curiosidade a esta altura
centro de arte ao ar livre da América La- nos intrigava mais. Passamos o domingo
tina. A área de visitação beira os 100 ha e a especular de tempos em tempos como
compreende jardins, galerias, edificações haveria de ser aquilo que nos dispúnha-
e fragmentos de mata, lagos ornamentais, mos habitar. E confesso que por alguns
e um jardim botânico com 4.300 espécies momentos, condenei a minha própria es-
em cultivo. Outra vez o tempo estava con- colha de fazer esta rota, ao me ver diante
tra nós e precisamos ser certeiras no que das inúmeras questões que este percurso
gostaríamos de ver. Fomos escolhendo suscitaram em Maria. E que acabavam
a dedo no guia de bolso, os artistas que sendo minhas também, a medida que
nos vinham a cabeça e assim fomos per- eram irrespondíveis. Pra não deixá-la a
seguindo obras por entre os bosques do mercê de um silêncio profundo, passei a
parque. Tivemos surpresas, decepções e resumir a grande maioria das respostas à:
alguns tipos mais de inquietações para a Isto é o Brasil! E o pouco que funcionava bem
nossa coleção. por aqui agora corre riscos. Descontente
A esta altura o diário de viagem já an- com esta explicação rasa, voltava a pesar:
dava recheado, mas nosso destino final “Se tivesse ido pela costa, ao menos ela
ainda passava longe. Chegava o dia de teria achado tudo bonito e pronto”. Mas
acelerar mais fundo pra abarcar na Bahia. lamentos não adiantavam, o traço já esta-
Maria tratava de me cobrar uma tal ‘mo- va feito e precisávamos segui-lo.

106
VEREDA

Cruzamos a fronteira de mais um esta- que ali estavam. As apresentações iniciais


do e finalmente chegamos em Pernambu- se seguiam, enquanto as equipes colabo-
co por volta de 5h da tarde. Salgueiro era rativas da troca dos Sabores terminavam
o ponto que almejávamos no mapa des- seus feitos. Jantámos cedo com fartura e
de São Paulo. Ao avistar a tal civilização, prontamente apresentadas a nossa an-
paramos num posto como de costume e fitriã 'Isinha' (secretária e professora da
perguntamos ao frentista sobre como Escola da Comunidade de 'Conceição
chegar a ‘Conceição das Crioulas’. Ele das Crioulas'), que tratou de nos acom-
desconhecia, mas uma senhora de meia- panhar à porta de sua casa, para que Eu
-idade acompanhada da filha no carro ao e Maria pudéssemos ali estar por uma se-
lado ouviu nossa conversa, e ofereceu nos mana sem determinar regras, nem pedir
guiar até o entroncamento mais próximo nada em troca. Nós não fazíamos ideia
de lá. Não nos restava outra alternativa a das instalações oferecidas, mas isto não
não ser confiar nela. Após alguns metros importava de todo. Pra quem pensava que
dali, entramos numa estrada de cascalhos dormiria no carro ou numa barraca ao re-
em direção à comunidade. Olhava ao re- lento, toda aquela infraestrutura de cama,
dor e aquilo não parecia o sertão que ha- ventilador e energia elétrica parecia lu-
via suposto. Era mais ameno do que na xuosa demais pra proposta. Agradecemos
minha imaginação e não muito diferente imediatamente a acolhida e nos retiramos
do que tinha visto pra trás. Talvez algo pra preparar os últimos detalhes da aula
mudasse drasticamente até lá. Mas não que ministraríamos no dia seguinte.
foi bem assim... A primeira noite não foi de todo mal,
Alcançamos o território Quilombola salvo pelo rosto cheio de picadas de mos-
com o entardecer no horizonte, mas ain- quitos e pernilongos que se demarcaram
da precisávamos achar todos do ‘Encon- na minha pele na manhã seguinte. Tratei
tro’, pois sabíamos que as programações de não me importar com estas questões
já haviam começado há poucas horas. Vi- estéticas, até porque não havia muito o
ramos em duas ruas mal traçadas, passa- que fazer. As razões que me levaram ali
mos um quebra-molas alto feito de terra, eram outras e a ânsia por conhecer os
vimos algumas casas de cimento batido e curiosos por Web da Comunidade, era
fizemos uma aterrissagem cabal na porta um pouco maior pra mim do que isso.
da casa da AQCC. Sabíamos apenas que parte da comissão
Fomos recebidas aos abraços por todos da AQCC participaria, até porque a pre-

107
JULIANA POLIPPO

missa sempre fora a de transmitirmos o poderia imaginar é que teria modificações


pouco do que tínhamos descobertos so- perceptivas tão prontamente. Tudo co-
bre programação em HTML, CSS e JS nos meçou a parecer imagético demais, como
últimos tempos. se conhecesse aquele cenário exatamente
Havíamos passado os meses antecesso- como virá na televisão há anos atrás.
res ao ‘Encontro’ a preparar uma platafor- As buscas por explicações para os Pro-
ma digital para que a Associação Quilombola cessos mentais da imagem no corpo-outro,
Conceição das Crioulas alcançasse voz num ficaram aguçadas e frenéticas. Meus ins-
dos maiores veículos de comunicação da tintos cobravam presença, mas só gostava
atualidade, de um modo autónomo e cons- de saber permanecer ali sem qualquer tipo
ciente. A missão parecia justa. Se hoje há de juízo. Lembro de ter a preocupação de
a nosso favor inúmeras ferramentas tec- neutralizar-me, por isto tentei interferir
nológicas, capazes de alavancar causas, o mínimo possível no espaço. Sem deixar
projetos e ideias ao redor do mundo, por- de investigar as medidas deste “Corpo-
que não combiná-las de modo inteligente, -Eu” no “Corpo-Outro”, que se via entre
pra que pudesse atender as necessidades porcos, galinhas, burros e pessoas apenas
específicas dessa comunidade. A cada re- como um “caminho”.
união semanal do grupo IDENTIDADES, Na caminhada até a sala que nos des-
parecia que uma peça deste quebra-cabeça tinara, tentava entender o que propria-
se ligava na outra, ao passo que nos apro- mente ‘Eu’, dotada somente de mim,
fundávamos nas questões de usabilidade poderia fazer nos próximos dias para que
digital, segundo uma ótica que se preocu- algo daquilo tudo transmutasse de algu-
pava em manter o carácter político e social ma maneira nos alunos. Não parecia ter a
do local. fórmula perfeita em mãos, e estava longe
Em meios aos atropelos acadêmicos e de saber exatamente se era assim que ha-
pessoais, me empenhei ao máximo para bitualmente se fazia. Enquanto todos es-
estudar todos os autores que pudessem tes melindres passavam por mim, Maria e
dizer coisas a calçar toda esta malha de Eu, cruzámos a manhã de segunda-feira
questionamentos que havia se criado em à buscas de chaves, salas, computadores,
torno de mim e que precisavam ser con- alunos e já passada as 10h nos alojamos
vertidos em soluções práticas até chegar na ‘Associação Casa da Juventude’, gra-
lá. Claro, sabia que muito disso aconte- ças a ajuda de Amando, nosso primeiro
ceria de modo orgânico, mas o que não adepto e também coordenador do local.

108
VEREDA

109
JULIANA POLIPPO

Entre um trajeto e outro, nos contou que las no período da tarde, e nossa turma
atuava como designer gráfico de vários tinha mesmo aumentado. Tínhamos
projetos ligados a AQCC, o que me ani- agora 5 alunos, chegando a ter um pico
mou, pois isto garantia que sabia usar mi- de 6, não fosse por mais outra desistên-
nimamente algum software de edição de cia pelo mesmo motivo das anteriores. A
imagem. E este fato ajudaria e muito na faixa etária média se firmou entre 16 à 21
compreensão do conteúdo que pensáva- anos, em sua maioria do sexo masculino.
mos em transmitir. Todas as desistentes tinham em comum
Vale ressaltar que não detínhamos no- o perfil de serem mulheres com mais de
ção alguma sobre o nível de conhecimen- 35 anos. O que ficou visto pra mim, ao
to dos alunos nas áreas afins a Web e/ou menos nesta ocasião, que os jovens tive-
em qualquer outro meio digital até este ram mais facilidade, curiosidade e tempo
momento. As outras duas participantes para aprender a desempenhar este tipo de
confirmadas tiveram desistência, por tarefa. Então por que não incentivá-los?
conta de estarem envolvidas na organi- Pronto a sala estava cheia! Que alegria.
zação do evento, o que as impossibilita- Era hora de começar outra vez... Enchi
va de frequentar o turno de 4h/dia. Com o peito e lembro bem de tentar usar um
apenas um participante, iniciamos ofi- tom de voz que fosse de entusiasmo e não
cialmente a ‘oficina de Web’. No final da de ‘fórmula’, porque qualquer maneira
aula, perguntamos se não conhecia mais equivocada de se colocar poderia criar um
ninguém na comunidade que tivesse in- tipo de desinteresse instantâneo, que nos
teresse em aprender esta linguagem. Ele faria ficar sem alunos outra vez no dia se-
disse-nos que tentaria convidar alguns guinte. Toda aquela matéria era técnica
amigos. Não demorou muito e ainda no demais e sabíamos bem disso.
intervalo da nossa refeição no salão da O que criaria neles algum comprometi-
‘Casa da Comunidade’, animado e pres- mento neste tipo de conteúdo? Recordo bem
tativo nos abortou questionando sobre de pensar todo tempo nisso. Enquanto
como seria feito com o conteúdo já dado, o desafio da língua também pairava sob
se entrassem agora mais pessoas na ofi- nossas cabeças como uma realidade. Tí-
cina. Dissemos que repassaríamos e fica- nhamos ali a linguagem HTML, CSS e JS
mos felizes de saber que possivelmente em formatos de sintaxes (códigos escritos
teríamos mais partidários. em inglês), o português de Maria, o meu
Retornamos ao local destinado às au- português brasileiro e os dialetos locais a

110
VEREDA

serviço. E acredito que isto só não chegou nhos que seguiríamos na próxima etapa.
a ser propriamente um problema, por- Mudamos o rumo das coisas por uma ou
que todos pareciam gostar de brincar de duas vezes, e acrescentamos outros ele-
sinónimos, o que acabou dinamizando a mentos não previstos em nosso conteúdo
sala. Me sentia mais próxima aos alunos programático, pra que eles conseguissem
à medida que tentávamos quebrar estas apresentar ao menos uma versão bási-
barreiras pessoais para encontrar um ca e funcional da proposta. Formando
‘termo-em-comum’, que todos fossem uma única equipe, distribuíram tarefas
capazes de entender. Assim ao longo dos e etapas entre si para que na data-limite
dias, um laço foi se construindo paralelo tivessem criado as páginas dos assuntos
ao conteúdo, que por sua vez, se tornava ‘História da Comunidade’, ‘Pontos Tu-
mais denso e detalhado. O equilíbrio en- rísticos’, ‘Festas’ e ‘Contatos’ – sessões
tre este dois eixos centrais precisavam ser estas escolhidas por eles próprios – e que
encontrados minuto à minuto para que os conteúdos destas fossem preenchi-
a atenção do grupo não se perdesse. Pra dos e dispostos visualmente. Enquanto
isto, utilizamos uma abordagem que fo- um selecionava imagens, outro recortava
cava em acompanhar o desempenho um à na medida exata. Um coletava textos e o
um. Os tempos destinados aos exercícios outro reunia o todo material necessário.
ajudavam a sanar dúvidas e fixar deta- Utilizando a ferramenta de compartilha-
lhes importantes que poderiam vir a ser mento em nuvem (Google Drive), também
esquecidos com facilidade certamente, se aprendida, produziram em simultâneo a
assim não fosse feito. programação da página, de forma a em-
Era nítido que os alunos tinham “vãos” pregar todo conhecimento que acabavam
que precisavam ser preenchido antes do de adquirir sobre linguagem Web.
desfecho que pretendíamos: conceber Aquele dia a aula acabou por volta de
uma segunda versão do layout do website 19h40, passando o horário por conta da
da comunidade, feita apenas por eles em extensão do exercício que tomara mais
sua totalidade. O prazo era curto, o que tempo do que previsto. Nos dirigimos ao
nos fazia priorizar novamente. A cada fim jantar todos juntos numa conversa que já
de dia, Maria e Eu conversávamos sobre o suscitava um tom de saudosismo. A ‘ofici-
desempenho de cada um deles, a atuação na de Web’ estava oficialmente concluída.
como um todo, as nossas sensações pes- O dia que se seguiria era o último, e isto
soais diante do quadro geral e os cami- representava que ainda deveríamos reu-

111
JULIANA POLIPPO

nir todo material pra exibir os resultados tas-metragens, exposição de esculturas


numa apresentação que aconteceria na de cerâmica, desenhos, apresentação de
próxima manhã, onde todos os envolvi- teatro, choros, palmas e o lançamento do
dos do ‘Encontro’ fariam o mesmo. Além website da AQCC, entre outras atividades
disso, contávamos com a lição extra de combinadas e correu muito bem.
subir as ‘Notícias’ produzidas e revisa- Ufa! Recebemos alguns elogios pelo
das na ‘oficina de Escrita’ na platafor- trabalho feito e isto me deixou satisfeita.
ma digital que preparamos meses antes. Nada parecia mais compensador do que
Nesta noite o jornal e todo o material de esta vivência em sua inteireza. Embo-
comunicação do evento também deveria ra não considerasse ter qualquer tipo de
ser fechado, pois isto marcaria o encerra- certeza ou resposta, sabia que a hora de
mento oficial desta expedição. Com esta partir estava próxima, e que talvez nunca
tripla missão, seguimos para a ‘Escola da chegasse a concluir algo sobre isso tudo
Comunidade’ para encontrar a outra par- que vira e vivera ali nestes dias. Antes de
te da equipe responsável por esta tarefa. deixá-los, era preciso repassar os aces-
Trabalhamos todos arduamente madru- sos ao ‘painel de controle’ do website ao
gada a dentro pra acabar tudo a tempo. Amando e o layout do jornal para Márcia.
Lembro de ter me afastado do computa- O carro já estava carregado, ‘Isinha’ com
dor por volta de duas e meia da manhã, sua chave de casa em mãos e todos avi-
deixando Maria sozinha no que restava sados sobre nossa partida. Entramos no
pra fazer. Meus olhos estavam pregados carro por volta de 16h e o sentido agora
ao ponto de se fecharem sozinhos. era Juazeiro do Norte, CE, - 120 km dali -
O despertador tocou poucas horas onde deveria deixar a minha companhei-
depois, e precisei de um chamado mais ra de viagem no aeroporto mais próximo
forte da minha companheira de quarto para que voltasse pra casa.
pra conseguir realmente me levantar. O Ao nos afastar poucos metros da ‘Casa
cansaço tomava conta de todas as par- da Comunidade’, de onde saíamos, uma
tes de mim, e confesso que fui arrastada de nossas alunas apareceu nos seguindo
pra tal apresentação. Era inegável que de moto com uma pessoa na garupa. Ao
reconhecia o valor positivo de toda esta avistá-las, diminui a aceleração do carro,
carga, mas o que eu precisava mesmo era abaixei o vidro e ela foi logo me pedindo
de um banho. A manhã acolheu agradeci- que levasse sua amiga a Salgueiro se pos-
mentos, relatos breves, exibições de cur- sível. Respondi que sim! Ela pediu que

112
VEREDA

voltássemos então pra que pegasse suas Retruquei prontamente apenas querendo
coisas. Dei meia volta e parei em frente a saber quem eram os destruidores e ela me
praça até que retornasse com sua mochi- disse que era as próprias pessoas da re-
la. Imediatamente ‘Isinha’ reapareceu, e gião, que tentavam desviar água por não
disse que era sua prima a moça que pedia terem recebido o mesmo beneficio que os
a carona. Eu então levando as ressalvas outros. Questionei quanto tempo fazia
de Maria ao cabo, perguntei se não havia isto, mas ela não soube me dizer, o que
mesmo problema levá-la. Ela garantiu ficou parecendo que fazia muito. Depois
que não. “Ótimo! Vamos então?” disse. disso fiquei em silêncio pelo resto do
Aproveitamos para tirar algumas foto- caminho. Nem sabia o que pensar e não
grafias, dar mais alguns abraços, antes de queria ser hipócrita em qualquer coisa
partirmos novamente. que dissesse. Definitivamente aquela não
Agora tinha uma nova companhei- era minha realidade e precisava pensar
ra, o que acabara por provocar em mim muito antes de vir a entender tudo que
uma curiosidade de entrevistadora. Ti- tinham vividos eles por toda vida e eu nos
nha muitas questões a perguntar a jovem dias anteriores.
de 17 anos sentada no banco de trás do A deixamos no endereço indicado e
carro, mas deixei que ela abordasse qual- seguimos. Nos perdemos e muito neste
quer assunto primeiro. E aos poucos foi trecho e chegamos 3 h depois do supos-
nos contando sua trajetória na comuni- to completamente exaustas. Dormimos
dade, seus motivos para mudar-se para a e no outro dia separei-me de Maria no
cidade e alguns fatos sobre a região. Um aeroporto de Juazeiro do Norte, por volta
ponto da conversa em específico se crave- de 9h40 e rapidamente tratei de me colo-
jou em mim, por não conseguir dizer que car a descer todo aquele Brasil que havia
consigo realojá-lo num canto da minha subido. O meu destino final ainda era
consciência que o entenda. O instante desconhecido até pra mim, e só sabia que
aconteceu quando perguntei sobre ‘água haveria de chegar a Feira de Santana ain-
encanada’ e ela respondeu-me: uma tal de da naquele dia. Durante todo percurso da
água já passou aqui uma vez, mas acabou rá- viagem, fiz pequenos recortes imagéticos,
pido porque quebraram todos os canos. Esta os quais deram origem a série ‘VEREDA’
fatídica fala se demarcou e se debate em – que intitula também este texto – afim
mim até hoje. Como assim uma tal de água de refletir e deglutinar por meios delas,
já passou aqui um dia?, repetia em silêncio. visões que palavras como estas não pu-

113
JULIANA POLIPPO

deram alcançar. E se assim vos faço este


relato com tantos detalhes do percurso, é
por supor que toda esta marcha de “Luta”
só faz sentido se considerarmos os “cami-
nhos”.

A Casa da Juventude

Oficina de web

Oficina de web

114
Este trabalho aborda uma vivência
Vivências em Conceição das Crioulas, em julho
Cartografadas de 2017. Conceição das Crioulas é uma
Comunidade Quilombola localizada no
em Conceição município de Salgueiro, no Sertão de Per-
nambuco, Brasil.
das Crioulas Desenvolvemos esse ensaio visual nar-
rativo a partir das nossas impressões in-
LEANDRO ALVES GARCIA terceptadas por cheiros, cores, sensações,
MARIA HELENA MAGALHÃES sabores e afetividades que se constituí-
MÁRCIO SOARES DOS SANTOS ram ao longo do percurso em Conceição
ROBSON XAVIER DA COSTA1 das Crioulas.

20 e 22 de Julho de 2018

Saímos às 8h do centro da cidade de


Salgueiro, PE, em direção ao espaço de vi-
vência da comunidade de Conceição das
Crioulas.

1 Universidade Federal da Paraíba.

115
VÁRIOS AUTORES

No caminho observávamos os contras- organizavam o evento. A seguir fomos


tes intensos entre aridez do solo resseca- conduzidos para o auditório para assistir
do e as formas orgânicas arredondadas as apresentações dos resultados das ofici-
dos cactos que representam grande parte nas realizadas durante o encontro.
da vegetação característica da região.

A presença, a força e a posição de lide-


Eu sou a terra, eu sou a vida. rança das mulheres na comunidade nos
Do meu barro primeiro veio o homem. chamou a atenção.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte. Eu sou a grande Mãe Universal. Tua filha,
Vem o fruto e vem a flor. tua noiva e desposada. A mulher e o ventre
Cora Coralina que fecundas. Sou a gleba, a gestação, eu sou
o amor.
Cora Coralina

Ao chegarmos na comunidade fomos


recebidos por um grupo de pessoas que

116
VIVÊNCIAS CARTOGRAFADAS EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

Ao sairmos do auditório, iniciamos


nossa caminhada pela comunidade nas
imediações do mercado e da igrejinha...

Nas imediações da igrejinha, tivemos


nosso primeiro encontro...

117
VÁRIOS AUTORES

D. Marina sentada na porta de sua Logo no primeiro cômodo da casa, nos


casa, observava o movimento... deparamos com um altar com santos ca-
decidimos nos aproximar... tólicos com um enorme pôster de Nossa
Senhora Aparecida.

Nossas impressões foram surgindo à


medida que adentramos na casa e fomos Do cafezinho servido por Dona Mari-
recebidos com demasiado afeto. na, às conversas à beira do fogão, as mais
saborosas sensações brotaram desse en-
contro. Parecia que compartilhávamos de
um pedacinho do cotidiano de D. Mari-
na.

118
VIVÊNCIAS CARTOGRAFADAS EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

Deixamos a casa de D. Marina e volta-


mos a caminhar...

Dos bate papos e descobertas, a largas


risadas, o brilho de seu olhar era intenso. Visitamos também a casa de Dona
D. Marina reviveu conosco as festivida- Dina, com apenas 47 anos, rodeada de
des de tempos passados, apontando para filhos, netos e bisnetos. A ocasião a fez
o local das barracas nas imediações da relembrar as festividades que marcaram
Igrejinha. "Tinha dança, muita comida e profundamente aquela comunidade no
reza!" passado.

119
VÁRIOS AUTORES

120
Comunidade Quilombola de Conceição das
Angu - comida de Crioulas, espaço frequentado com assi-
casa e identidade duidade, curiosidade e gosto. Uma bri-
gada composta por oito mulheres pre-
alimentar parou, durante seis dias, café da manhã,
almoço e jantar para as 200 pessoas que
quilombola circularam em Conceição durante o even-
to. Centenas de visitantes e quilombolas
MILENNA GOMES1 se organizaram em torno desse local, na
Casa da Comunidade, para se nutrir e so-
Resumo cializar.
Este artigo, sob uma perspectiva ali- Foi à mesa que a multiplicidade de
mentar e histórica, traz observações acer- personalidade, orientação sexual, idade,
ca de patrimônio e identidade gastronô- nacionalidade, religião, grau de instru-
mica quilombola a partir de observações ção, classe e origem sociais, pulverizada
feitas durante os seis dias de Encontro com por Conceição ao longo de seis dias, teve
as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da a chance de convergir. Na troca de sabo-
Comunidade Quilombola de Conceição das res no dia da despedida, e reforçando que
Crioulas, em julho de 2017. comensalidade só existe coletivamente,
houve um revezamento de cozinheiras
palavras-chave
quilombolas diante do tacho onde foi
Alimentação, identidade, cultura, quilombola.
cozido o angu, um dos pratos protago-
nistas da partilha de comida naquela
Muitas coisas saltam aos olhos durante
tarde. Uma a uma, as mulheres trocavam
uma semana de imersão em um quilom-
bo, sobretudo quando se tem o tempo de de mãos a comprida colher de pau usada
manhãs e tardes livres para caminhar e para aguentar o vigor e o empenho com
observar. Por inclinação natural ao uni- que mexiam e encorpavam o milho moído
verso do comer e beber, voltei muita de e cozido. Uma cena bonita e simbólica de
minha atenção à cozinha onde foram assistir.
preparadas as refeições do Encontro com Do lado de fora, enquanto o público
as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da aguardava com ansiedade os sabores qui-
lombolas que estavam por vir, uma jovem
1 Universidade de Coimbra moradora da comunidade parecia insa-

121
MILENNA GOMES

tisfeita com a ementa. “Angu é comida damental da reconstrução de uma identi-


de casa. Não gosto”, confessou a mim. A dade alimentar destroçada.
assertiva me fez lembrar Brillant Savarin. Comida é pertencimento. O que, como,
“Dize-me o que comes que te direi quem onde, quando, de que maneira e com
és”, imortalizou o escritor em seu Fisiolo- quem comemos caracterizam sociedades,
gia do Gosto, resumindo que as escolhas particularizam grupos. Rituais e hábitos
alimentares, as práticas na cozinha e a alimentares estão vinculados à memória,
forma de comer revelam informações cul- às tradições e ao imaginário dos indiví-
turais e identitárias de um indivíduo, de duos. Ao serem arrancados do continente
um povo. Angu é comida de casa, do todo africano, os negros não foram privados
dia, comida negra arraigada à trajetória apenas de sua liberdade, mas obrigados
de sobrevivência dos africanos escravi- a se afastar da terra e dos produtos que
zados no Brasil e que diz muito sobre a conheciam, tendo de enfrentar, também,
história da gente quilombola. o esfacelamento de sua herança gastro-
Antes de colonizadores e negros se- nômica. As etnias se misturaram em cos-
questrados chegarem à Pindorama, como tumes e línguas diversas nas senzalas e
os tupi-guaranis chamavam o País, o mi- precisaram passar por uma remodelação
lho já era consumido pelos moradores social, somar saberes, fazer escolhas ali-
nativos. Era um diverte-boca, comido as- mentares inteligentes com o que havia à
sado, como pipoca e em forma de bebida mão e se reinventar. O negro escravizado
fermentada (o vinho dos índios). Junto construiu do zero no Brasil uma identi-
à farinha de mandioca, foi alimento de dade relacionada à comida. No litoral,
resistência de homens e mulheres negros populações ribeirinhas se adaptaram a
forçados a trabalhar para o colono por- novas espécies de peixes, quituteiras se
tuguês. Eram preparados adicionados mantiveram financeiramente depois de
à água fervente, para render, e viravam alforriadas graças à lida com o açúcar.
papas. Pirão e angu. Comida seca não dá No interior, desde os tempos de colônia,
energia, acreditavam os antepassados, é o carne seca de bode, raízes, farinhas de
caldo quente que satisfaz o oco do estô- milho e mandioca, abóbora, feijão, pou-
mago. Mas, mais do que comida de subs- cas hortaliças e temperos discretos fazem
tância - que preenche o osso, engorda o parte da realidade do negro – geralmente
tutano e impede o corpo de desfalecer na melhor alimentado (não em quantidade,
labuta desumana -, o milho foi parte fun- mas em qualidade) que o senhor euro-

122
ANGU - COMIDA DE CASA E IDENTIDADE ALIMENTAR QUILOMBOLA

peu cuja dieta era trigo e carne. Gilberto da atenção dispensada a ele.
Freire dizia que o colonizador era pálido, O curioso é que numa passada breve
magro, enfraquecido pela alimentação. E ao mercadinho de Conceição é possível
o viajante alemão Carl Seidler, durante o perceber nas gôndolas um sem número
século XIX, observou que era o bom regi- de alimentos destituídos de significados,
me que fazia o negro viver muito, saudá- regidos pela indústria e comércio, e que
vel e robusto. são preferência na rotina do quilombola.
Os homens e mulheres escravizados ti- O salgadinho de queijo apreciado pelas
veram a chance de se relacionar de maneira crianças e a cerveja gelada dos adultos,
mais íntima com a terra, com os animais, por exemplo, são artigos feitos a partir e
do que seu senhor. Conheceram, no cam- quase que inteiramente de milho trangê-
po, plantas e testaram suas aplicações; en- nico, produto máximo do agronegócio no
contraram em ingredientes ignorados pe- Brasil junto à soja e à criação de gado –
los brancos, como o maxixe, complemento inimigo esse tão debatido durante o En-
nutricional para a dieta escassa; reaprovei- contro graças a então iminência de alte-
taram entranhas de bichos (a exemplo do rações ao decreto 4887/2003 que garante
bucho do bode), limpas com limão, para ao povo quilombola autonomia sobre o
conseguir proteína. Nesse processo de próprio território. São o resultado emba-
descobertas longo, lento e empírico, um lado, publicizado e maquiado do esforço
cardápio legitimamente afro-brasileiro foi bem-sucedido da indústria de distanciar
sendo construído. os consumidores, não só os quilombolas,
Não há nada de errado em não gostar das origens do alimento e dos sentidos
de angu, como a jovem quilombola. Cada exercidos pela comida na construção de
paladar é único e os receptores de sabor uma identidade alimentar, ficando, des-
da língua de uma pessoa nunca vão sen- sa maneira, mais fácil padronizar, viciar e
tir o mesmo gosto que o de outra. Uma controlar os indivíduos e grupos.
colherada de angu não produz o mes- O domínio e a valorização da roça e do
mo efeito nas minhas papilas gustativas que ela dá foi trunfo nas mãos do escra-
como na sua. Não apreciar o preparo por vizado. A desconexão do quilombola com
ele ser “de casa”, no entanto, revela uma seu terroir, ou torrão em bom português
atribuição negativa de valor ao prato por – palavra que sintetiza as características
ele pertencer ao cotidiano da comunida- de solo, clima e altitude que dão singu-
de, logo, ser algo vulgar e não merecedor laridade a um produto gastronômico –,

123
MILENNA GOMES

permite que uma brecha se abra para as do, cuidado, não pode viver em chiqueiro.
sedutoras facilidades que a indústria ofe- Esses são saberes para cuidar desse pra-
rece, afastando os indivíduos do modo de to”. Ela encerrou falando da luta, desde
produção do alimento e, por consequên- 2000, que travavam pela terra, para plan-
cia, da sua história e significado. É um tar, para usar, pelo direito de não ter que
grupo restrito e privilegiado de homens ir buscar comida na cidade se ela já cres-
brancos, representado pelas grandes cor- cia ali, por terem domínio e autonomia
porações da comida – tanto de produção sobre o caminho que a comida percorre,
quanto de distribuição –, que ainda de- do campo à mesa, e assim reforçar os cos-
cide o que o povo negro vai comer, numa tumes alimentares ancestrais.
permanência (discreta e silenciosa, mas A comida e as técnicas tradicionais do
não menos violenta) da subjugação ini- seu preparo são aliadas, junto à educação
ciada na colônia. e às artes, da resistência de Conceição das
Valdeci Silva, representante maior da Crioulas. Umbuzada, munguzá salgado,
gastronomia quilombola de Conceição buchada de bode são tão necessários para
das Crioulas, numa fala muito sincera a afirmação identitária da comunidade
sobre os caminhos alimentares da comu- quanto a cerâmica, as bonecas feitas do
nidade, lamentou que na rotina precise caroá, o trancelim. Escolhas alimentares
recorrer ao milho de supermercado. Mas que valorizem o passado de Conceição,
que, naquele dia, o cereal usado no angu como as feitas durante o evento, além de
havia sido moído em moinho na comu- iniciativas como a do encontro, de consi-
nidade, para honrar o modo tradicional derar os sabores relevantes a ponto de es-
com que o prato vem sendo feito ao longo tarem no nome e na programação oficial
dos séculos. A panela de barro, produzida semana, só contribui para o fortalecimen-
pelas artesãs do quilombo, em fogo mon- to da luta do povo quilombola. Bem como
tado no chão, foi o utensílio usado para ensinar aos mais novos, mostrar aos fo-
cozer a galinha de capoeira que “viveu seu rasteiros que angu é bom e que faz parte
tempo”, sem remédio, e morreu no dia da resistência do povo negro em território
para servir de alimento aos visitantes. É brasileiro. Angu é comida de casa, sim. E,
assim que ela fica com o “nosso sabor”, se por isso mesmo, deve ser feita, refeita, re-
orgulhou a cozinheira. O bode, nascido gistrada. Já que ao povo negro foi negado
e morto no quilombo, “pra gente comer o direito à alfabetização por tantos sécu-
tem que ser um bode castrado, demora- los, inviabilizando o registro escrito de

124
ANGU - COMIDA DE CASA E IDENTIDADE ALIMENTAR QUILOMBOLA

saberes tradicionais alimentares, tantos


deles perdidos ao longo dos séculos.

Referências bibliográficas
CASCUDO, Luis da Câmara. História da
Alimentação no Brasil. Editora Global, 4 ª edi-
ção, São Paulo, 2008.
DÓRIA, Carlos Alberto. Formação da Culinária
Brasileira – Escritos sobre a cozinha inzoneira.
Editora Três Estrelas, São Paulo, 2014.
KEDOUK, Marcia. Prato Sujo – Como a
indústria manipula os alimentos para viciar
você. Editora Abril, São Paulo.
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura.
Editora Senac, 2ª edição, 2013.
SANTOS, Alexandra. O sabor da história:
práticas alimentares e identidade quilombola. In-
tratextos. Rio de Janeiro, v. 3 , n. 1 , p. 54 - 71.

125
126
Recife – de manhã bem cedo (nem tão
Memórias de bem cedo assim)
dentro de casa: Saímos rumo a Salgueiro. O trajeto era
grande, quase enorme – um trajeto de
lembranças sob o avião.
A van de seu Luiz vinha patinando pela
teto de Conceição BR 232, às vezes no passinho do romano

das Crioulas pra driblar os outros carros - que os ven-


tos tapem seus ouvidos - indevidamente,
mungangando2 pras curvas e pras faixas
LIZANDRA SANTOS1 contínuas. Eu que sou medrosa, dava
logo uma secura na goela. Me lembrou
Resumo
os carrinhos de bate-bate e as filas pros
Este é um relato de experiência pessoal,
brinquedos nas festas de padroeiro no in-
resultado da vivência na comunidade de
terior onde eu vivi a minha infância.
Conceição das Crioulas durante o “En-
Vez em quando era medo, vez em quan-
contro com as Artes, a Luta, os Saberes e
do eu imaginava meu espírito sem o meu
os Sabores da Comunidade Quilombola
corpo. Deve ser incrível... Essas horas são
de Conceição das Crioulas”. Um registro
horas de não ter o que fazer. Fora isso,
sobre a interação com lugares e pessoas
era o sono - aquele sono de estrada en-
que ativaram minha memória e me leva-
tre o medo e a ansiedade. A minha cabeça
ram a uma reflexão do que sou e sobre o
era uma lata de querosene, dessas que as
que herdei.
“veínha”3 do sítio compravam pra acen-
der candeeiro e depois de vazia, vira pote
palavras-chave
de carregar água. A minha cabeça era esse
Memórias; Autobiografia; Vivência Poética.
pote latejando de água dentro, que era o
sacolejo do carro e as conversas de futuro
acadêmico. Eu me lembrei de Clarice Lis-
pector quando disse que “se eu fosse eu,

2 Vem de munganga, dialeto popular do nordeste do Brasil,


que quer dizer fazer palhaçada, gestos exagerados ou muito
1 Lizandra Santos da Silva é artista visual e estudante do expressivos
curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade 3 “Véinha”, maneira informal de se referir a uma senhora
Federal de pernambuco (UFPE). idosa: “velhinha”

127
LIZANDRA SANTOS

daria tudo que é meu e confiaria o futuro reiro, na frente das portas de duas meta-
ao futuro”. Que frase linda! Depois dessa des e uma paisagem cor de barro que se
lembrança fingi conforto e dormi. É en- esfarelava na vista.
graçado olhar pra estrada e ver as paisa- Paramos o carro meio de nervoso, meio
gens na cadência de alguma música alea- por informação, e os pés de barro batido
tória. Vez em quando rolava um grand dos meninos, do outro lado da estrada,
canyon e mandacarus que pareciam can- insistiam e pareciam que assopravam no
delabros verdes acesos pelo sol, quase pe- meu ouvido um poema de Fernando Pes-
gando fogo, mesmo; e o mais incrível: as soa:
multidões de pássaros que mais pareciam
sementes pretas sendo semeadas no solo Passava eu na estrada pensando impreciso,
fértil do céu. Parecia que Deus tinha um Triste à minha moda.
saco de farinha vazio e usou pra encher Cruzou um garoto, olhou-me, e um sorriso
Agradou-lhe a cara toda.
de sementes e jogar, vez em quando, um
Bem sei, bem sei, sorrirá assim
punhado no céu escaldante. A um outro qualquer.
Seguimos a patinação na pista ardente Mas então sorriu assim para mim...
quase sertaneja. Que mais posso eu querer?
Não sou nesta vida nem eu nem ninguém,
Pausa Vou sem ser nem prazo...
Que ao menos na estrada me sorria alguém
Essa pausa é a da chegada em Salgueiro
Ainda que por acaso.
e do trajeto até Conceição.
Essa pausa é natural.
Não sei o que vejo de mim no que passo
Eu não sentia nada de diferente. À par-
e no que observo. Meus olhos são duas ja-
te isso, uma vontade de tirar foto de tudo,
nelas sem cortina. Tantas coisas, às vezes,
sem intenção alguma a não ser tirar foto.
Tem algo muito mecânico nisso. É como são difíceis de serem processadas, mas
um câmbio automático. Enquanto isso estão lá e se misturam num emaranhado
eu via a marca das casinhas de taipa4 na sem fim e se perdem numa incompreen-
sombra, muito mato, alguns bem secos, são sem fim, depois fogem de alguma for-
os pés dos meninos se agrupando no ter- ma que sempre desconheço.
Chegamos em Conceição das Crioulas.
4 Casa de taipa ou pau a pique são construções de baixo Abrimos a porta da van e um tipo alto de
custo, feitas com materiais encontrados na natureza como
argila, lenha ou bambu, muito comuns em zonas rurais no
cabelo liso que voa, como uma aparição,
nordeste do Brasil. encostou e fez uma cara de “ok, chega-

128
MEMÓRIAS DE DENTRO DE CASA: LEMBRANÇAS SOB O TETO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

ram”, ao que respondia positivamente a al- gada repentina debaixo daquela luz aver-
guém que perguntou: “você que é Paiva? ” melhada da rua, a vista meio curta, quase
Reconhecemos o lugar, demos uns 5 uma carranca de: “não!”, depois quebra-
passos em falso para desentravar as per- da - graças a Deus! - pela voz meio mansa
nas e fomos pra nossa recepção calorosa. e aquele cheirinho de lavado frio. Aliás,
Bem calorosa ao som de uma banda de esse cheirinho de lavado frio acompa-
pífano. Todo mundo exausto, demos dois nhou meu juízo durante a semana toda.
beijos cansados no rosto do pessoal que Muita coisa aconteceu naquela semana,
nos recebeu: Penha, membro da associa- era um encontro de gentes. Era um lugar
ção Quilombola e algumas moças portu- cheio de história e eu estava ciente. Cien-
guesas. te da história central, mas eu fiquei meio
Eu não estava sentindo nada além de periférica e toda (ou quase toda a história
uma vontade de descansar minhas pernas que eu aprendi) tinha cheiro de lavado
e dormir. Estava armazenando meu âni- frio.
mo pra reconhecer a energia daquele lu- A casa de tia Mariana era um portal.
gar, daquele pessoal, daquelas mulheres. Sempre que eu atravessava o corredor ge-
Foi então que conhecemos a casa que lado pra ir da cozinha pra sala, eu experi-
nos abrigaria, e sua dona. mentava outros cheiros também.
O primeiro foi o cheiro de alecrim da
Pausa
minha tia Inácia. Outras memórias iam
Esta pausa marca o começo da minha
se misturando na minha cabeça, era bem
estadia em Conceição, de fato, e eu a ba-
involuntário. Peguei o caderninho e co-
tizei de Marina, e não sem razão. Dona
mecei a anotar, mas as palavras sumiram,
Marina é uma senhora incrível. Com as
prenderam-se em algum poço submerso
duas mãos como em gesto de oração, ba-
nas minhas outras lembranças. Eu gosto
tendo pequenas palminhas bem ansio-
sas, ela demonstra que finalmente nos disso, não vou mentir o contrário, mas eu
recebeu e que já podemos dormir. Mas tinha outros propósitos naquela semana.
não foi assim no exato instante em que Então eu tentei que essas lembran-
chegamos... ças se apagassem para que todo o resto
Tia Marina nos recebeu com olho de viesse. Mas tudo continuou a vir e a vir
codorna5, meio desconfiada com a che- e a vir, então parei de resistir. Se alguma
coisa continuava a ser enviada pra mim,
5 Expressão que significa “fazer um olhar de desconfiança” é porque tinha de ser enviada. É o que os

129
LIZANDRA SANTOS

havaianos do Ho’o ponopono6 chamam Somente a tua graça me basta e mais


de inspiração, e eu deixei que ela viesse. nada...”
Ra... ra.. ra... ra... ra... ra...
Quem sabe de uma outra forma, já que eu
não tava limpando as minhas memórias
Terminou e eu estava meio fora de mim,
pra deixar que a inspiração divina viesse,
meio parada, sem saber. Eu não sei. Qua-
eu estava substituindo ou juntando. Eu
se nunca sei. Como Manoel de Barros7,
acho que juntando era a palavra certa,
“meu fado é de não saber quase tudo”.
uma justaposição de memórias. As que
Tudo que sei é que essas palavras, em
eu tenho e as que criei naquele lugar. Eu
determinadas bocas, são poderosas. É
gosto dessa confusão. Às vezes.
o que sei. São provas de uma crença em
Quando eu era criança e subia a ladei-
Deus, ou da possível existência dele. Ma-
ra de Genival com os meus pés molhados
noel de Barros ainda disse “Para mim po-
cheios de chuva e lama, eu sentia o cheiro
deroso é aquele que descobre as insignifi-
de mato e a voz da minha avó me alertan- câncias (as do mundo e as nossas)”8. Essa
do para não cair e sair embolando, e eu mulher descobriu as minhas.
sabia que estava em casa. Esse foi outro Tia marina tem a voz de ouro, como di-
cheiro que lembrei, o cheiro de estar em zia minha avó. Minha avó também tinha
casa. a voz de ouro. Se eu soubesse como expli-
Todas essas imagens, o altar da mãe- car como é a voz de ouro... É uma que sai
-rainha no terraço de tia Marina, as tradi- pela goela meio pigarreada e no final tem
ções, todas as semelhanças, isso levanta como um vibrato bem triste. Tia Marina
perguntas sobre o que posso chamar de chama isso de “penosa”, foi o que desco-
minha história. bri. Mas penosa, neste contexto, não im-
Todo dia tomávamos um banho gelado, plica em tristeza, não semeia a angústia.
de manhã ou à noite. Num desses dias a Essa senhora magra, da mão gelada, com
voz de tia Marina me encantou: um marcapasso que “não me deixa pegar
em peso, fia, eu só faço coisa leve”, tem o
“O povo de Deus era rico de nada
dom (eu não gosto muito dessa palavra),
Só tinha a esperança e o pó da estrada
Também sou teu povo, senhor mas... ela tem o dom de despertar em
Estou nesta estrada, senhor mim o que quiser. Eu descrevo: quando

6 Técnica de cura havaiana baseada no amor e na limpeza de 7 Poeta brasileiro (1916- 2014)
memórias antigas, a fim de permitir que o divino aja em nós, 8 Do poema “Tratado geral das grandezas do ínfimo” de
através da inspiração Manoel de Barros

130
MEMÓRIAS DE DENTRO DE CASA: LEMBRANÇAS SOB O TETO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

ela abre a boca, soa como uma história


que os cantadores tocavam em festa de
pé-de-pau9. Meu tio Lourenço era can-
tador - massageava o povo com menti-
ras engraçadas. A lembrança do meu tio
também me acompanhou naqueles dias.
Todas as minhas lembranças parece que
estiveram presentes naqueles dias. Era
como um filme, aquele filme que dizem
que passa pela sua cabeça quando você
está prestes a morrer.
Os pés daquela mulher eram iguais os
de Guida, o cheiro de lavado frio, a roupa
de bordado, as barras de lençol que a mi-
nha vó bordava. Talvez eu estivesse muito Tia Marina sob a chuva do sertão, que cai dos papos
dos pássaros. Lizandra Santos, 2017. Linha bordada
nostálgica ou impressionada. Não. Duvi- sobre tecido de cambraia lisa.
do muito que eu estivesse impressionada.
Talvez tia Marina seja como um espírito real por dentro - que eu era o sonhador
aborígene contando a mais antiga histó- de Dostoievski, que em Noites brancas10,
ria do mundo. anda pelas ruas falando com as casas e as
Eu tive outras descobertas naqueles construções de São Petersburgo, e conhe-
dias, muito simples e periféricas, mas ce uma a uma. Eu tive uma conversa breve
ainda assim descobertas. Andei pelas com a casinha de taipa que era uma répli-
estradas ao redor do centro de Concei- ca da primeira casa da minha mãe, tive
ção com minhas colegas. Significou, pra saudade, chorei por dentro. Algumas coi-
mim, - como coisa real por fora - que sas começaram a surgir na minha cabeça,
era um passeio de reconhecimento, de galhos de beneditas11 desciam ao redor
registro do lugar. A gente tirou fotos de das paredes, como tramelas atravessando
passeio, retrato de perfil de Facebook. as janelas na calada da noite. Como a vida
Mas significou pra mim – como coisa delas me influenciaram...

9 Também chamadas de “festas de padroeiro”, são tradição 10 Noites Brancas refere-se a obra do escritor russo
em muitas cidades do interior do nordeste brasileiro para Dostoiévski, de 1848.
celebrar dias de santos católicos 11 Espécie de flor.

131
LIZANDRA SANTOS

Eu não vivi metade das lembranças que das histórias de Gídio, que morreu cedo.
tenho. Eu ouvi como literatura de boca, Não chorei porque não tive tempo. Nem
saindo das goelas secas de fome da minha lembro se essa memória é minha ou da
família, que não convém os nomes todos infância do meu pai, da minha vó maria.
agora. A minha vó Maria é uma lembrança de
Isto é um poema sobre as memórias he- desconforto quase, com o caroço que ela
reditárias. O epicentro absoluto das mi- tinha na goela, que simboliza um entrave,
nhas memórias. pra mim, e que nem tudo é o que parece.

Vista do centro de Conceição das Crioulas à noite, 2017.

No caminho de volta pra casa de tia


Marina, vim repensando minhas histó-
rias. São elas que me permitem ser. Exis-
to porque primeiro elas. É o que recai
sobre os meus olhos, como um feixe de
luz do sol quando ele se põe e revela in-
finitas outras formas de lembranças, no
berço de onde saíram as primeiras. Mi-
nha cabeça foge e eu encontro paz. Uma
Auto-retrato na garganta de vó Maria. Lizandra Santos,
paz quase agonizante. Sempre que tenho 2017. Bordado, acrílica e pedra sobre brim.
essas lembranças, eu nasço de novo. Não
Nem tudo é o que parece
um único nascimento, mas vários. Eu não O que esperar, quando se espera?
sei exatamente do que se trata, e em al- Mesmo de dia a vida anoitece
gum momento dessa confusão, lembrei Como quem sopra um barco à vela

132
MEMÓRIAS DE DENTRO DE CASA: LEMBRANÇAS SOB O TETO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

Nem tudo é o que parece


Nem aqui, nem no Japão
Tenho um travo na goela, do tamanho do
meu coração.

Minha santinha morena, minha santi-


nha morena...
Alegremente te louvo, alegremente te lou-
vo...
Proteja a minha helena, proteja a minha
helena..
Padroeira do meu povo.. padroeira do
meu povo ai ai ai…12

Eu sou uma lembrança. Tudo está guar-


dado dentro da minha memória, que traz
consigo, muito bem cuidado, o peso a o
alívio de ser o que sou e o que ainda tenho
por me tornar.

12 Trecho da música “Padroeira do Brasil”, de Luiz Gonzaga e


Raimundo Granjeiro.

133
134
Pernambuco. Reflito: Quais as situações
A experiência do da nossa contemporaneidade cultural e
encontro e outros política me fazem identificar a emergên-
cia desse encontro? Quais percepções a
dispositivos de partir da imersão nos modos de vida de
Conceição das Crioulas me fazem atentar
emergência para a minha realidade cotidiana e para a
minha formação como artista, professora
LUANA ANDRADE1 e pesquisadora?

Resumo palavras-chave
Encontrar com a arte, a luta, os saberes Pesquisa Narrativa Artográfica; Intercultu-
e os sabores de Conceição das Crioulas foi ralidade; Memória; Dispositivo de Emergên-
uma experiência reveladora de afetos, de- cia.
sejos, emergências e aprendizagens. Es-
crevo e reflito sobre aspectos do meu tra- 1. PARTIR
jeto, desenhando caminhos entre partida,
chegada e retorno, e identificando nestes O que nos leva à errância quando bem
os deslocamentos, a construção de uma podíamos ficar quietos?
compreensão sobre interculturalidade e (Mia Couto, em O incendiador de cami-
nhos)
os saberes tramados coletivamente. No
registro de memórias dessa visita, busco
O que escrevo agora deseja ser um re-
também resgatar a experiência pessoal de
investigação artística dos dispositivos de torno, viagem de volta. Desde que voltei
emergência a produzir sentidos e impos- de Conceição das Crioulas, tenho retor-
sibilidades, identificando seus trânsitos e nado até lá frequentemente. Explico. Por
diálogos com o lugar. Este texto é recor- vezes eu olho para minha cidade Recife
te de pesquisa narrativa artográfica que – de natureza urbanizada – com olhos
está sendo desenvolvida pelo curso de de Conceição, e tomo maior consciência
Artes Visuais da Universidade Federal de do caos, das emergências e das poéticas
dessa configuração de vida. Entro em sa-
1 Luana Andrade é artista visual, graduanda no curso de las de aula com ouvidos de Conceição, e
Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de
Pernambuco e bolsista do Programa Institucional de Bolsa de
ouço muito mais do que falo, e sinto, na
Iniciação à Docência (Pibid). prática, que aprender é a condição sem a

135
LUANA ANDRADE

qual não se pode ensinar. Retorno para os do bem podíamos ficar quietos" é o que
meus processos artísticos, para minhas me provoca a criar impossibilidades. É
aulas, operando com novos sentidos, es- dessa intencionalidade de deslocamento
tes produzidos a partir do encontro, da que pretendo me constituir como artista-
viagem. Sinto ter voltado desta visita2 um -visitadora e que penso ser possível existir
tanto mais apta a compreender a minha mesmo em tempos inférteis de existência.
experiência de estar no mundo, transi- Registro memórias dessa visita, das
tando em micro realidades. Volto mais trocas, do meu processo de compreender
questionadora do meu espaço e do meu a ação do Encontro e o trabalho intercul-
papel, estado de quem se fortalece. tural, do que compartilhei, resgatei e res-
Enquanto artista, professora, pesqui- signifiquei.
sadora e interessada no encurtamento
das distâncias entre a arte e a vida, ter 1.1 "Ficar é a exceção. Partir é a regra."
tido a experiência afetiva do encontro em Recentemente comecei a ter um contato
Conceição das Crioulas foi como lavar as breve com a história de algumas comuni-
vistas de manhã bem cedo, "lavar as vista dades quilombolas. Inicialmente por via
pro mundo"3. A decisão primeira de partir do componente curricular Arte e Diver-
de um lugar para outro torna-se, mais do sidade Étnico-cultural da graduação em
que uma eventual escolha, uma intenção Artes Visuais na Universidade Federal de
transformadora. Desloco-me, como faz o Pernambuco. Essa disciplina teve, entre
homem visitador, para estabelecer víncu- outros objetivos, o de estimular um pen-
lo com outras pessoas e lugares, poden- samento crítico e reflexivo a respeito de
do, a partir de então, ser eu mesma essa questões etnocêntricas na arte e dos hi-
pessoa, eu mesma esse lugar. Esse desejo bridismos culturais, bem como conhecer
de partida "que nos leva à errância quan- expressões artísticas de grupos étnicos
2 Em O incendiador de caminhos, Mia Couto descreve o
distintos. Respeito e valorizo discussões
"homem visitador" de Moçambique, atividade de alguns como estas dentro da universidade, so-
camponeses que viajam longas distâncias a prestarem
visitas como "forma de prevenir conflitos e construir laços
bretudo no curso de Artes Visuais, que
de harmonia que são vitais numa sociedade dispersa e sem é um lugar ainda de pouca representati-
mecanismos estatais que garantam estabilidade".
3 Marcelo Coutinho (2016), no texto 28 notas da invasão:
vidade étnica-cultural frente a um país
Arte como Aletheia e Política como Dóxa. "28. Arte é 'lavar as como o Brasil.
vista pro mundo'.", fazendo referência a expressão do ato de
banhar o rosto pela manhã, criada pelo Sr. Bugo, agricultor
No contexto deste componente curri-
da área rural de São Lourenço da Mata (PE). cular, tive um contato ainda distante e

136
A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO E OUTROS DISPOSITIVOS DE EMERGÊNCIA

pequeno, de via teórica, com o Quilom- aquela visita constituía uma parte muito
bo Onze Negras, localizado no Cabo de importante da minha formação enquanto
Santo Agostinho. Foi quando comecei a cidadã, pesquisadora, artista e professo-
entender, com um pouco mais de dados, ra. Desejei que todos tivessem a disponi-
sobre a origem desses grupos e seus des- bilidade de se desfazer dos seus precon-
dobramentos na contemporaneidade. ceitos e se entregar ao aprendizado que é
Tomei algum conhecimento sobre o his- partir de um lugar ao outro; de uma ideia
tórico de lutas por amparo na lei4, sobre o à outra; de si mesmo a outras reinvenções
que há hoje de políticas públicas voltadas de si – assim como escreve Mia Couto,
para estes povos e de como essas poucas no texto que permeia todo este trecho do
políticas vêm sendo ameaçadas de des- meu relato, que a sobrevivência do homo
monte. sapiens decorre da nossa deambulação
O segundo contato, dessa vez com incessante: "Mesmo quando ficava, ele esta-
maior proximidade, foi uma visita ao ter- va partindo para lugares que descobria den-
reiro de Xambá em Olinda, no Quilombo tro de si mesmo".
do Portão de Gelo, o terceiro quilombo Comecei a despertar para essa busca;
urbano reconhecido territorialmente no o impulso da partida que provoca o des-
Brasil. Lá tivemos uma rica conversa, com locamento e que, por sua vez, instiga os
o filho de santo que nos recebeu, sobre processos de aprendizagem. Lembro um
o candomblé e seus rituais, a história do samba-de-roda, de domínio público,
quilombo e a história do terreiro. Con- “vou aprender a ler pra ensinar meus cama-
versamos também sobre intolerância, radas...” Eu diante do salão principal do
resistência, ecologia, religião, sociedade terreiro, olhando para as imagens e sím-
e poder. Além disso, uma boa porção de bolos diversos, ouvindo sobre os rituais
outras coisas me fizeram perceber que eu dos dias de toque, era como se estivesse
precisava estar ali para aprender e que aprendendo a ler.

4 "Em 2003, foi assinado o Decreto n. 4.887, que “Regulam- 1.2 "Não existe geografia que nos seja
enta o procedimento para a identificação, reconhecimento, exterior."
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata
o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Tran- "(...) Os lugares — por mais que nos
sitórias”, que determina ser o INCRA (Instituto Nacional de
sejam desconhecidos — já nos chegam
Colonização e Reforma Agrária), do Ministério do Desen-
volvimento Agrário, o órgão competente para emitir títulos de vestidos com as nossas projecções imagi-
propriedade" (MOURA, 2013, p. 160). nárias. O mundo já não vive fora de um

137
LUANA ANDRADE

mapa, não vive fora da nossa cartografia também de um convite a criar algumas
interior.” brechas de convívio, propor encontros, e
se voltava, até então, como crítica ao am-
Cheguei a Conceição das Crioulas
biente específico da universidade, suas
pelo convite de uma professora e o tomei
ansiedades acadêmicas e o estímulo a um
como oportunidade de deslocamento,
comportamento pós-industrial. Esse dis-
de sair do meu lugar, da minha zona de
positivo (uma grande almofada verme-
conforto – onde quase nada é confortá-
lha) era, naquele momento – e também
vel, mas acabo por me habituar pela força
no agora –, uma presença significante no
da expressão. Principalmente por ter tido
meu modo de pensar e interpretar o mun-
um entendimento de que a visita (muito
do, nas minhas falas e na minha vida, de
breve) ao terreiro do Xambá foi grande-
um modo geral. Dessa forma, após a deci-
mente importante para minha formação
são de partir, veio a decisão de levá-lo co-
enquanto gente, eu vislumbrei nesse con-
migo, num movimento de continuidade
vite uma chance de ter uma outra expe-
e de curiosidade. Mais adiante descrevo
riência dessa natureza. Depois, por estar,
essa experiência.
aos poucos, percebendo que a academia
Comecei então, a partir dos primeiros
acaba fechando-se nela mesma, e que há
direcionamentos da viagem, a idealizar
uma imensidão de aprendizagens possí-
Conceição. Criando imagens, narrativas,
veis que não são registradas nos currícu-
situações; através dos mapas – distâncias
los, nas listas de chamadas, nos sistemas
catalogadas –, dos vídeos, fotos, textos
de gerenciamento da educação. Por parte
de portais de notícias poucas e rasas. Me
do nosso grupo de pesquisa, reconhecía-
muni de informações que de quase nada
mos também que, Conceição das Criou-
me serviriam naqueles sete dias de encon-
las, como comunidade dita matriarcal,
tro. Fiz planejamentos que, mais a frente,
podia nos oferecer uma vivência prática,
não se concretizariam, ações poéticas que
real, daquilo que os livros, os autores, as
não aconteceriam, roteiros que não se tri-
aulas não davam conta, não abarcavam,
lhariam. Tudo que planejei antes da via-
nem quantificavam em seus dados.
gem estava vinculado à minha projeção
Estava imersa em um processo criati-
sobre as formas de vida daquele espaço
vo quando aceitei a proposta de partir de
que ainda não era, para mim, um lugar5.
Recife a Conceição das Crioulas. A mi-
nha investigação em torno da criação de 5 Trago para este contexto o pensamento da Katia Canton
um dispositivo de emergência se constituía (2010) sobre caracterizações da arte pública contemporânea,

138
A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO E OUTROS DISPOSITIVOS DE EMERGÊNCIA

Quando finalmente pisei nas terras aquele lugar para nós e como se revelam
de Conceição, percebi que muitas coisas as pessoas. Uma arqueologia das coisas
de lá (geografia, vegetação, vestes – seja vivas, do lugar vivo. Para onde aponto a
das pessoas ou das casas – hábitos, ima- câmera do meu celular, a quem escolho
gens…) remetiam a outros lugares que me fazer perguntas, quais são as perguntas,
constituem. Lugares da minha infância, para quem eu olho e de que forma, para
família e origem no interior do agreste onde eu caminho e com quais pessoas eu
de Pernambuco. De certa forma revisitei passo a me relacionar. Tudo revela. Essa
esses lugares, subjetivamente. Acessei a chegança é muito mais reveladora de nós
minha cartografia interior e fui me dando mesmos. As nossas perguntas falam de
conta de que seria também uma viagem nós mais do que as respostas falariam da-
para dentro das minhas memórias. Não queles com quem dialogamos. O encon-
como comparação entre lugares e me- tro com o outro é revelador e me descobri
mórias – dadas as suas singularidades – tão colonizadora quanto as práticas que
mas a saber que, o Encontro com as artes, combato. São ações sutis que passariam
a luta, os saberes e os sabores de Conceição despercebidas caso eu não estivesse tão
das Crioulas me impulsionaria a outros atenta aos meus próprios sinais – por
encontros, outras visitas. exemplo, o registro, por vezes excessivo,
de imagem e escrita do lugar, posição de
2. Chegar quem está "analisando tudo" no lugar
de estar vivendo tudo. É estranho pois
Estou chegando de mansinho/ cabreiro e começo a me vigiar de possíveis etnocen-
analisando tudo
trismos. Então eu penso como somos, no
mas sinto que um novo mundo/ novo
horizonte está pra chegar. geral, educados a colonizar, e o quão peri-
(Dominguinhos, em Chegando de Mansi- gosa pode ser essa educação acrítica.
nho, na voz de Nara Leão) É preciso aprender a chegar e isso leva
tempo. Leva um tempo até nos aquie-
Chegar pressupõe uma série extensa tarmos das nossas expectativas e proje-
de ações reveladoras. Ocorre quase sem- ções. Levei um tempo, por exemplo, até
pre a busca por entender como se revela começar a entender a interculturalida-
de proposta nas ações do encontro, que
onde ela diz que "o espaço se apresenta de forma genérica,
enquanto que o lugar é o espaço personalizado e preenchido
se constituía como o objetivo de estar
de memórias". em Conceição das Crioulas: promover a

139
LUANA ANDRADE

aproximação entre grupos e, sobretudo, da programação do evento, na organiza-


aprender com a comunidade, reconhe- ção das oficinas, das refeições, da estadia
cendo o seu histórico de lutas e conquis- dos grupos em diferentes casas, entre ou-
tas pela terra, pela educação específica e tros. Tudo isso acaba por nos convidar
diferenciada – uma pedagogia crioula6 – a ter um pensamento e comportamento
e pela identidade. Para tanto, era preciso democrático na comunidade, nas casas
suspender "o exercício de autoridade que os que nos hospedaram – no caso do meu
'saberes acadêmicos', os 'saberes artísticos' e grupo, a Casa de Tia Marina –, lidando
os de 'especialismo' comportam, para uma com questões específicas da realidade de
relação colaborativa de afectividade, de des- Conceição – a respeito do uso da água,
coberta entre iguais, de 'encontro'."7 por exemplo – e também levando essas
Encontrar com Conceição era encontrar reflexões para nossas micro realidades
com suas formas de vida, sua democracia distintas, mas não tão distantes, como
cotidiana – formato escasso e desgasta- mencionei no início do texto.
do na nossa contemporaneidade política, A reunião de pessoas parece ser um
que precisa ser resgatado, reaprendido ou evento de grande frequência, tanto na
reinventado. Esses processos democráti- tomada de decisões, na mobilização em
cos me parecem acontecer em diferentes prol de uma causa9, na celebração e no
escalas na comunidade, seja na fundação festejo com dança e música, ou na partida
de uma associação que represente e ge- de sinuca no mercado público. Sinto que
cheguei em Conceição quando comecei a
rencie as questões de interesse comum8,
buscar emaranhar-me nessas redes, a ser
seja na definição de estratégias para a
mais participante do que propositora, a
realização do encontro e, mesmo dentro
envolver-me em algumas oficinas e com-
6 Relativo à dissertação de mestrado Por uma pedagogia partilhar, trocar, interagir.
crioula: memória, identidade e resistência quilombola em A minha escrita não abarca nem de lon-
Conceição das Crioulas – PE, de Márcia Nascimento,
professora do ensino fundamental e médio, membra da ge todos os aspectos ou todas as minhas
comissão de educação na Associação Quilombola Conceição
das Crioulas e coordenadora do Encontro. Em seu texto, 9 Refiro-me a um bingo realizado na frente da capela para
Márcia narra processos históricos no jeito de fazer educação arrecadação de fundos para o tratamento médico de um dos
na região valorizando uma pedagogia a partir da vivência das moradores da comunidade e outras ações de captação de re-
mulheres da comunidade. cursos para a ida de um grupo de representantes até Brasília,
7 Trecho retirado do folder de apresentação do ocasião onde seria julgada a Ação Direta de Inconstituciona-
encontro. lidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal, questionando o
8 Informações sobre a Associação Quilombola de Conceição decreto 4887/2003 que regulamenta a titulação das terras dos
das Crioulas disponíveis em http://ccrioulas.org/ quilombos.

140
A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO E OUTROS DISPOSITIVOS DE EMERGÊNCIA

percepções do encontro, de tão grande e são aqueles que também me transformam.


rico em experiência que ele foi. Também Processos vivos que mudam no clima, na
entendo que nem tudo é absolutamente geografia, na presença do outro, que se
explicável em palavra escrita e que devía- reinventam e sugerem reinvenções de
mos estar mais atentos à "impossibilidade si, que geram histórias. Junto às minhas
de se dizer, no nosso idioma, aquilo que per- bagagens, mala de roupa, colchão de ar e
tence a uma outra racionalidade"10. Talvez uma tela de serigrafia, levei também para
a arte sirva também a esse propósito, ex- a viagem uma grande almofada vermelha,
pressar o que não é dizível. Dos recortes "Emergência". “Quebre o vidro”, “acione
que venho fazendo aqui, registro prin- o alarme”, “desça as escadas”, “empurre a
cipalmente algumas vivências minhas porta”. Num dia explosivo, reparei nesses
com a comunidade e outras observações objetos com olhos de investigação e bus-
a respeito das aprendizagens coletivas. quei subjetividades na estética do cotidia-
Tento, a partir de agora, traçar um breve no: portas gritam em vermelho "salve-se"
contorno sobre a experiência pessoal de sinalizando saída de emergência. Quisera
ter levado comigo, para uso comum, um usar o extintor de incêndio para apagar as
dispositivo de emergência. ansiedades acadêmicas e pós-industriais.
O processo de Emergência é o parafraseio
2.1 Os dispositivos de emergência desses dispositivos, dados à livre tra-
dução, tão presentes na rotina visual do
Quem faz um poema abre uma janela. cotidiano. É como se perguntar: o que é
Respira, tu que estás numa cela
uma emergência para ti? E injetar nestes
abafada,
esse ar que entra por ela. dispositivos uma energia de reinvenção,
Por isso é que os poemas têm ritmo "descondicionando-os, isto é, retirando-os de
- para que possas profundamente respi- uma ordem preestabelecida e sugerindo am-
rar. pliadas possibilidades de viver e se organizar
Quem faz um poema salva um afogado.
no mundo" (CANTON, 2011, p. 12). Ao
(Mário Quintana, Emergência)
pensar em emergências, imagino corpos
individuais, com necessidades muito es-
Os caminhos de investigação artística e pecíficas, cada um carregando uma cabe-
educativa que me movimentam a produzir ça e um coração – não necessariamente

10 Mia Couto, em Escrever e Saber, no caderno Narrativa e


nessa ordem. Sobretudo em tempos de
Incerteza da Bienal de São Paulo, 2016. transições, liquidez (BAUMAN, 2003),

141
LUANA ANDRADE

transversalidades – ou o que pode ser ta- A possibilidade de transportar esse dis-


xado de crise – é válido evidenciar as pe- positivo para outros lugares me parecia
culiaridades do ser. Aquilo que nos torna oferecer novas possibilidades de ressig-
único, no direito de ser e, principalmente, nificação. Partiu daí o desejo de colocá-lo
de estar no mundo. em trânsito por outros cenários, outras
A investigação em torno da produção ecologias (GUATTARI, 1990), e obser-
desses dispositivos surgiu dentro da uni- var os diferentes usos e traduções para
versidade, onde atualmente vivo boa par- este artefato, bem como seu refazimen-
te do meu tempo. Esse contexto, dentro to a partir dessas experiências. Destaco
do ambiente acadêmico, gerava signifi- que o deslocamento do dispositivo parte
cados ao dispositivo, pois desencadeava do meu próprio deslocamento, num pro-
discussões sobre mecanismos de poder cesso que me acompanha não somente
e disciplinamento dos corpos entre a co- dentro da instituição de ensino que é a
munidade acadêmica. A almofada é um Universidade, mas na vida, de um modo
convite à pausa, ao descanso, ao compar- geral.
tilhamento do espaço e às trocas afetivas:
um lugar de novas provocações e dese- 2.2 Emergência em Conceição
jos. Produzi alguns sentidos, entre eles Para chegar até Conceição das Crioulas,
a criação de estratégias de ocupação de fizemos uma viagem de quase sete horas.
um espaço que também era meu e que me A almofada, no caminho (por conveniên-
fazia perceber certas demandas de convi- cia ou falta de espaço no carro) acabou
vência pacífica, num ambiente muitas ve- servindo de apoio para descansos e cochi-
zes competitivo e estéril de afetividades, los. Chegando lá, coloquei-a no salão da
buscando uma transformação daquela AQCC, lugar que, durante os dias do en-
micro-realidade cotidiana da qual todos contro, era espaço de reuniões e oficinas.
funcionários, professores e estudantes
participam.

Dispositivo de emergência em uso no Centro de Artes e Dispositivo de emergência em uso no salão da AQCC/
Comunicação (UFPE) Foto: Lizandra Santos

142
A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO E OUTROS DISPOSITIVOS DE EMERGÊNCIA

No dia seguinte, ao chegarmos na Em outro momento, levei a almofada


AQCC para a abertura do Encontro, para a rua. Coloquei-a próxima de uma
presenciamos Eduardo deitado sobre a esquina onde fazia sombra. Algumas pes-
almofada. Ele foi o primeiro a se sentir soas passavam e olhavam, liam e comen-
completamente à vontade para fazer uso tavam umas com as outras. Uma das nos-
daquele dispositivo. Perguntei para ele sas colegas do grupo sentou na almofada
se havia algum lugar de sombra onde ele e ficou a trabalhar numa peça de crochê.
gostaria de levá-la. Logo dois outros me- Um outro menino se aproximou junto
ninos apareceram para comprar a ideia. com um grupo de pessoas, foi ficando por
Ficou combinado então de levarmos ao perto até se sentir à vontade para sentar.
mercado (que é também um lugar de en- Deitou, esticou as pernas na parede… Fa-
contro na comunidade). Levamos. Os lava para os amigos que estava doente e
meninos brincaram, sacudiram, se joga- que era uma emergência. E dava risada.
ram por cima, posaram para fotos. O dis- Antes de sair, fingiu que levaria a almo-
positivo de emergência se transformou fada pra casa.
em brinquedo. Me distanciei enquanto
Eduardo, Erick e Dário brincavam. Mais
tarde voltei ao mercado a almofada não
estava mais lá. Procurei superficialmente
e não encontrei. Perguntei a Penha, uma
das mulheres que estão à frente da asso-
ciação, e descobri que a almofada estava Dispositivo de emergência para doentes de mentira
sendo usada para uma outra criança me-
nor dormir enquanto sua mãe, Ciça, ter- O dispositivo transitou por diversos lu-
minava o trabalho na cozinha. gares dentro da comunidade. Na maioria
do tempo eu não sabia ao certo do seu pa-
radeiro. Pude, brevemente, observar algu-
mas constantes no registro dessas emer-
gências. Talvez essas interações falem
algo da relação dos moradores de Concei-
ção entre si, com o espaço em que vivem
Dispositivo/cama para o filho de Ciça dormir na
e também alguns aspectos da construção
cozinha das infâncias. A almofada foi destinada,

143
LUANA ANDRADE

na maior parte do tempo, às crianças da seus modos de usar aquela almofada,


comunidade, tanto através da esponta- eram inteiramente novos. Essa constru-
neidade da brincadeira, quanto como um ção relacionada ao artefato, surgiu do
amparo às mães que trabalhavam na as- nosso encontro, da casualidade de es-
sociação e as queriam por perto. Encon- tarmos juntos naquela semana. Também
traram um espaço na cozinha e adotaram ocorreu de me aproximar mais dos peque-
a almofada vermelha como um artefato de nos, pois eles passaram a determinar os
auxílio no cotidiano. As crianças brincan- roteiros da emergência, em performan-
do, dormindo e se alimentando ali, eram ces, happenings, interações, ou qualquer
possibilidades que eu não tinha ainda outra palavra que se queira nomear – ou,
imaginado para aquele objeto – eram im- como diz Manoel de Barros, "melhor que
possibilidades até então. nomear é aludir"11 já que "assim foram fei-
tas (todas as coisas) – sem nome"12 . Então
por hora eu chamarei de brincadeira. Co-
meço a pensar no brincar como mais um
item na lista das imprescindibilidades.
Emergência de brincar. Penso também
no protagonismo daquelas crianças den-
tro da comunidade, a valorização da sua
fala, da sua brincadeira, da sua existência.

2.3 A emergência do Encontro


"O mundo como está, está às avessas".
José Paiva13, em momentos de conversa
e reunião, falava sobre as motivações do
encontro, pois também estávamos lá para
olhar para aquela comunidade enquanto
forte propositora de micropolíticas em
seu contexto. Éramos grupos de regiões

11 O livro sobre o nada, Manoel de Barros.


12 Prefácio, idem
O lúdico, da forma como me mostra- 13 Representante do movimento intercultural
ram as crianças, as suas brincadeiras e IDENTIDADES, em Portugal.

144
A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO E OUTROS DISPOSITIVOS DE EMERGÊNCIA

e instituições distintas, carregando pro- um coletivo –, outra perspectiva se faz


blemáticas diversas que refletem esse ce- sobre os encontros dentro do encontro.
nário de mundo às avessas – ondas ultra- Participei, durante a semana, das oficinas
conservadoras que avançam sobre nossas de dança que aconteciam sempre às 17h,
praias; governos ilegítimos e elitistas que propostas por grupos do Ceará (UECE e
vêm ameaçando os direitos humanos; a Unilab) e pelo grupo de dança de Con-
cada vez mais crescente capitalização do ceição das Crioulas. A oficina objetivava
tempo, para citar alguns aspectos. uma troca constante de saberes em dança,
Ampliando as minhas noções sobre a cada dia um ritmo tradicional do Ceará
emergências – e venho buscado ao má- e outro de Conceição eram trabalhados
ximo esmiuçar essa palavra – penso em numa total integração das gentes de di-
um caráter emergencial do Encontro com versos lugares, de todas as idades, gêne-
Conceição das Crioulas. Ou seja, o quan- ros e corpos, reunidas em consonância e
to é urgente, no nosso contexto nacional, movimento. Uma das horas mais lindas e
por exemplo, encontrar o Outro, conhe- potentes, o final dessas oficinas, que qua-
cer as suas causas e lutas, as suas agendas, se sempre terminavam em côco de roda,
alimentar a empatia entre as diferenças. ciranda e maracatu. Um clima de fim de
São ações que dizem respeito a uma dí- expediente onde juntavam-se tanto os
vida histórica para com os nossos povos assíduos da oficina como toda a gente
tradicionais. A mim tocou sincera e pro- que estava naquele horário disponível a
fundamente a atual luta da comunidade se chegar e aprender um passo. Acrescen-
(uma das), a respeito da ameaça de des- tava-se também a banda de pífano e seu
monte das políticas públicas que versam repertório infindável, com música feita
sobre o direito dos povos quilombolas ao na hora, como tudo: espontâneo, instan-
reconhecimento e titulação das terras; a tâneo, verdadeiro. É indescritível a força
articulação com outras comunidades para daquela reunião de pessoas e sons, do pé
se fazerem presentes nas decisões de in- plantado no chão e do bater das palmas.
teresse comum. Me fez pensar como, na Ritualístico. Catártico. E emergencial.
democracia que ainda vivemos, os nossos
posicionamentos individuais reverberam 3. Voltar
no coletivo. E como é emergencial que to- O que escrevo agora deseja ser um re-
memos essa consciência. torno, viagem de volta. O regresso de
Sobre isso – a energia que emana de Conceição das Crioulas até Recife foi

145
LUANA ANDRADE

repleto de assimilações. Algo em torno esse retorno. Há algo presente no partir,


de 500 km em quase 8h de viagem e im- no chegar e no voltar que é sobre saber-se
ponderáveis reflexões sobre a experiência incompleto. Sinto o quanto aprendi com
vivida, ainda quente e nítida. Experiência a vivência em Conceição das Crioulas,
que quer dizer fluxo (DEWEY, 2010), mas preciso estar atenta para não estan-
distingue-se do que vem antes e do que car um processo que é de natureza con-
vem depois, relaciona-se com passado e tínua.
futuro e, o que é de sua essência, trans-
Se há razão para temer as incertezas, ha-
formadora. Você já conseguiu voltar o/a
verá outras tantas razões para temer a
mesmo/a que partiu? certeza. Porque, afinal, a certeza pode ex-
É difícil lidar com a volta. Uma porção cluir, pode afastar-nos da complexidade
de coisas fervilhando por dentro, reme- e diversidade do mundo, pode criar uma
xendo as certezas, desestabilizando a falsa ideia de segurança e de superiorida-
de racional e moral. (Mia Couto, 2016,
minha zona de conforto. Queria contar p. 6)
às pessoas que amo como eu vivi e tudo que
aconteceu comigo, mas acabei ficando mais Sobretudo para aqueles que vivem a
calada, quieta, observando o ritmo das educação e a arte, é preciso saber conciliar
coisas ao redor e me reacostumando aos ética e estética, o que envolve a percepção
ritmos. Fui contando aos poucos. Levou de que "ensinar exige a consciência do inaca-
dias, semanas. Na verdade ainda hoje, bamento", já citando Freire (2011, p. 29),
diversas vezes, eu retomo o assunto, re- "e uma das condições necessárias a pensar
memoro algum fato, relaciono ao agora. certo é não estarmos demasiado certos de
Conceição está presente nas minhas falas nossas certezas". Dessa forma, sinto após
e práticas. E, assim como eu, as coisas que o encontro o surgir de novas inquieta-
levei voltaram diferentes, cobertas de me- ções a alimentar essa incompletude. Uma
mória. O dispositivo de emergência que visita que impulsiona outras, num movi-
surgiu lá na universidade, passou pela mento de contínua formação de vínculos
casa de amigos, pela minha própria casa, afetivos e de construções de aprendiza-
viajou comigo e agora retorna já outro. gens coletivas. O que aprendi em Con-
Lavada as vistas pro mundo, eu renovo as ceição das Crioulas estando lá, ouvindo
lentes pelas quais leio o meu lugar. Voltar das suas mulheres, crianças e de todos os
é também um aprendizado. colegas reunidos – sobre sua história vi-
É principalmente sobre aprendizagens venciada dia após dia, suas configurações

146
A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO E OUTROS DISPOSITIVOS DE EMERGÊNCIA

democráticas, sua identidade cultural,


sua pedagogia crioula e entre tantos ou-
tros – transforma-se numa intenção de
movimento para além do sertão de Per-
nambuco. Por isso: é uma aprendizagem
sem muros, aprendizagem-mundo. Em
novos encontros, em outros contextos,
os dispositivos de emergência produzirão
novas impossibilidades e sentidos, assim
como serão outros os meus processos in-
vestigativos.

Referências Bibliográficas
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003.
CANTON, Katia. Espaço e Lugar. Coleção Temas
da Arte Contemporânea. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
COUTINHO, M. F. 28 Notas da Invasão: Arte
como Aletheia e Política como Dóxa, Revista
Outros Críticos (ed. 12), 2016, p. 37.
COUTO, Mia. O incendiador de caminhos,
in E Se Obama Fosse Africano? São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, pp. 69-76.
COUTO, Mia. Escrever e Saber, in Narrativas da
incerteza. Catálogo da Bienal Internacional
de Arte de São Paulo, 2016, pp. 3-7.
DEWEY, John. Arte como experiência. Martins
Fontes: São Paulo, 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São
Paulo: Paz e Terra, 2011.
MOURA, Gloria. Quilombo: conceito, in
Africanidades Brasileiras e Educação. Rio de
Janeiro: ACERP;

147
148
encontrar pessoas, sonhos, realidades,
Bordando - desejos etc. Cada vez mais sentimos a
muitos - nós e necessidade de extrapolar o espaço da
universidade, de quebrar as paredes que
pontos isolados: cerceiam e formatam o pensamento aca-
dêmico, de reinventar o “ponto contor-
investimentos no” e de criar vínculos e mais pontes.
Esses vínculos entre lugares, pessoas e
afetivos para / na realidades, rompem com a lógica padrão
escuta do outro de uma aprendizagem linear, possibili-
tando o aprender através de rede, cons-
tituída por diversas tramas, comparti-
LUCIANA BORRE1 lhando e produzindo cultura. O texto
LUANA ANDRADE2 enfatiza a vivência na comunidade e com
MARIA BETÂNIA E SILVA3 um grupo de mulheres onde alinhavamos
nossos caminhos investigativos: quais os
Resumo possíveis saberes relacionados a gênero e
O nosso movimento na Comunidade sexualidades de um grupo de mulheres
Quilombola de Conceição das Crioulas de Conceição das Crioulas? Como esta-
buscou transitar, deslocar, contactar, belecer/vivenciar uma relação de troca
afetiva ao discutir feminilidades? Como
1 Professora e coordenadora da Licenciatura em Artes Visuais
da Universidade Federal de Pernambuco. Professora e vice-
a escuta atenta e aberta ao outro pode se
coordenadora no Programa Associado de Pós-Graduação constituir como estratégia de formação
em Artes Visuais UFPE/UFPB. É doutora pelo Programa de
Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual pela Universidade
docente? Provocadas e acreditando nos
Federal de Goiás. Mestre em Educação pela PUCRS (2008); “pontos mais simples do bordado”, a
especialista em Gestão e Planejamento Escolar pela PUCRS
(2006) e graduada em Pedagogia pela UFRGS (2004). troca de relatos e vivências poéticas com
2 Artista visual, graduanda no curso de Licenciatura em linhas, agulhas e tecidos proporcionou
Artes Visuais da Univ. Federal de Pernambuco e bolsista
do Programa Inst. de Bolsa de Iniciação à Docência
contato/conexão/envolvimento.
(Pibid).
3 Professora do Curso de Licenciatura em Artes Visuais e palavras-chave
do Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais
UFPE/UFPB da Universidade Federal de Pernambuco. É Pesquisa Narrativa; Gênero e Sexualidades;
Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Educação
Bordados; Memórias.
pela UFPE. Graduada em Artes Plásticas pela UFPE.

149
LUCIANA BORRE / LUANA ANDRADE / MARIA BETÂNIA E SILVA

1. Ponto Contorno O nosso movimento foi esse: transitar,


deslocar, contactar, encontrar pessoas,
É considerado o ponto básico do borda- sonhos, realidades, desejos etc. Cada vez
do, no qual a linha contorna uma imagem
mais sentimos a necessidade de extrapo-
previamente traçada no tecido.
lar o espaço da universidade, de quebrar
as paredes que cerceiam e formatam o
A possibilidade de conviver e aprender
pensamento acadêmico, de reinventar o
com um grupo quilombola no sertão nor-
“ponto contorno” e de criar vínculos e
destino soou como uma oportunidade de
mais pontes. Esses vínculos entre lugares,
fuga e reinvenção. Fuga da rotina acadê-
pessoas e realidades, rompem com a lógi-
mica, das convivências normatizadas,
do relógio que controla o nosso fôlego e ca padrão de uma aprendizagem linear –
da falta de tempo para pegar nossas cai- que se dá pela hierarquia dos títulos, dos
xas de linhas e agulhas. Reinvenção do conteúdos, das práticas – possibilitando
que legitimamos como arte, do cômodo o aprender através de rede, constituída
e privilegiado lugar de fala e da inexpli- por diversas tramas, compartilhando e
cável sensação de desvelar/desbravar o produzindo cultura. "Há mil redes que
dito “exótico”. O convite desafiou nos- devem se desenvolver para que a menor
sos sentidos e proporcionou a possibili- estabilização de um nexo determinado e
dade de transbordar-se com o outro e de mais ou menos coerente de ideias, habili-
trilhar caminhos de autoconhecimento. dades, rituais, expectativas e instituições
Também nos preencheu de medos, ex- se produza" (LADDAGA, 2012, p. 30).
pectativas, sonhos, intenções íntimas de
auto ressignificação e imaginários de que 2. Ponto Alinhavo
não contornaríamos imagens previamen-
É um dos pontos mais simples do bor-
te traçadas em nossa formação docente.
dado. Ele pode ter muitas funções, tais
Mas, de uma coisa estávamos certas: o como alinhavar barras, servir de base
ponto parte de um ponto e chega a outro para outros pontos ou complementar ou-
ponto! Logo, o movimento de desloca- tras técnicas de trabalhos manuais.
mento de partir ou de chegar contém em
si um pedacinho de linha que, para nós, Encontramos um grupo de mulheres.
simboliza uma ponte. A ponte tem o pa- De diferentes faixas-etárias, de diferentes
pel primordial de possibilitar o trânsito, famílias, mas um elemento comum havia
o deslocamento, o contato, o encontro. entre nós: o desejo de estar junto, de criar

150
BORDANDO - MUITOS - NÓS E PONTOS ISOLADOS

pontes através das linhas e também além tência, que ativam as memórias. O céu, a
delas. Reconhecendo a possibilidade de terra, o ar são testemunhas oculares da
mudanças nos rumos da investigação complexa tessitura da vida, fio a fio, pon-
através do contato com este grupo de mu- to a ponto na passagem do tempo que vai
lheres, alinhavamos nossas intenções de revelando a imagem bordada. Conceição
pesquisa: quais os possíveis saberes rela- das Crioulas permite um contato com o
cionados a questões de gênero e sexuali- silêncio que o mundo adulto apresenta,
dades de um grupo de mulheres de Con- mas também revela os múltiplos sons que
ceição das Crioulas? Quais suas práticas o mundo jovem experimenta. Ali se ouve
cotidianas com linhas, agulhas e tecidos? o som dos grilos, dos bodes, do caminhar
Quais suas produções de sentidos a par- na terra. Ali se sente o sol que aquece a
tir destas práticas? Como estabelecer/ pele e o vento que a esfria. Ali se vê o céu
vivenciar uma relação de troca afetiva ao até o horizonte alcançar. Ali se vê múlti-
discutir feminilidades? Como aprimorar plos tons de cores doados generosamente
nossos saberes sobre as relações de ensi- pela natureza. Mas, ali também se ouve
no/aprendizagem? Como a escuta atenta um silêncio interior do ser humano que
e aberta ao outro pode se constituir estra- grita por um mundo mais equilibrado,
tégia de formação docente? Provocadas e menos egoísta, mais justo. Ali se sente o
acreditando nos “pontos mais simples do desejo pulsante de fazer ver e (re)conhe-
bordado”, decidimos que a troca de rela- cer a potência cultural e identitária do
tos e vivências poéticas com linhas, agu- povo. Ali se vê um grupo de mulheres, e
lhas e tecidos proporcionaria contato/ de homens, que tecem caminhos e possi-
conexão/envolvimento. bilidades de outras construções para além
daquelas que a história lhes apresentou.
3. Ponto a ponto Dia após dia, na semana em que ali es-
tivemos, observamos a tessitura desses
Bordados podem ser feitos em pratica- pontos que ora se apresentavam colori-
mente qualquer tecido, a escolha depende dos, ora monocromáticos.
da técnica empregada.

4. Muitos "nós" e pontos isolados


Uma semana de (con)vivência, de des-
cobertas, de (re)visões, de proximidades Pontos de bordado com nós nem sempre
e distanciamentos, de afetos e desafetos são simples de fazer, mas com um pou-
bordados que marcam o território da exis- co de prática você consegue bordar com

151
LUCIANA BORRE / LUANA ANDRADE / MARIA BETÂNIA E SILVA

facilidade. Não esqueça de investir nos brotar dele a poesia. Às vezes, construin-
pontos isolados. do apenas um suave desenho de amor”
(SISTO, 2011, s/p). O processo contínuo
Somos professoras e pesquisadoras de abrir-se ao outro no exercício de (re)
em processo - constante - de formação e conhecer os múltiplos tecidos, as múlti-
protagonizamos poéticas de vida através plas cores que eles apresentam e experi-
de linhas, agulhas, tecidos e outros ins- mentar coletivamente a (re)construção
trumentos. Entendemos que a troca de dos pontos, nos possibilita abertura ao
pontos e os possíveis “nós” e desalinhos novo, ao inusitado, ao inesperado, pois
em nossa caminhada pessoal e profis- a imagem que vai se revelando no trajeto
sional possibilitam (re)encontros neces- não tem como ser definida previamente.
sários nas relações educativas. Sabemos Freire (2005) já dizia que ensinar exige
que “pontos de bordado com nós nem compreender que a educação é uma forma
sempre são simples de fazer” e defende- de intervenção no mundo. A boniteza da
mos que o compartilhamento de relatos prática docente se compõe do anseio vivo
de vida - sempre afetivo - pode transfor- de competência do docente e dos discen-
mar as relações de gênero e sexualidades. tes e de seu sonho ético. Não há nessa bo-
Nosso grupo, formado por Ingrid Borba, niteza lugar para a negação da decência.
Jacilene Borba, Lizandra Santos, Luana
Andrade, Luciana Borre, Maria Betânia e 5. Ponto cruz
Priscila Ferreira, levou em suas malas as
inúmeras histórias sobre como viver as Um dos pontos fortes do ponto cruz é
feminilidades. Não podemos negar que que, olhando de frente, não dá para saber
a promessa do encontro com uma socie- onde começa e nem onde termina a linha.
dade dita “matriarcal” (possibilidade de
vida inimaginável para nós) encheu nos- Acreditamos que o processo de forma-
sos imaginários de expectativas. Acredi- ção de professoras/es para questões de
tamos que “há uma enorme semelhança gênero e sexualidades é favorecido e en-
entre agulha, lápis, bico de pena e varinha riquecido quando trocas acontecem. Há,
de condão. Com todos esses objetos se nesta estratégia, a oportunidade de co-
pode produzir mágica. Bordar com linha locar-se no lugar do outro e de ver-se re-
ou com letras, no tecido, no papel ou na fletido nas experiências de vida do outro.
vida é trabalho para quem sabe pegar o O ponto cruz apresenta este movimento:
fio, seja ele da palavra ou da linha, e fazer parte de um lugar e vai para outro, cru-

152
BORDANDO - MUITOS - NÓS E PONTOS ISOLADOS

za caminhos de modo que quem olha narrativas sobre ser mulher a partir de
não sabe qual foi o ponto de partida e o intervenções de linhas e agulhas nos exa-
ponto de chegada porque ele revela os en- mes em diálogo com outros sujeitos para
contros e, no final, a beleza desse trajeto.
a construção de novos sentidos. A inves-
O compartilhamento é uma provocação tigação artística para trabalhar Desali-
para pensarmos como nos posicionamos nhos se iniciou da observação de paisa-
enquanto educadoras/es. De fato, deci- gens, memórias e vivências pessoais e da
dimos exercer a escuta, encorajamo-nos narrativa pessoal como mulher e também
a mostrar algumas de nossas poéticas e do compartilhamento de vivências de ou-
propusemos a feitura de bordados e cro- tras histórias de mulheres. Ao longo da
chê como dispositivos de fala reflexiva e construção da identidade feminina e da
vivência poética. Objetivamos: Conhecer transformação do seu corpo, Ingrid Bor-
como alguns membros da comunidade ba apresentou um problema fisiológico
quilombola Conceição das Crioulas pen- nos seios que a obrigou a estar em cons-
sam as relações de gênero e sexualidades. tante acompanhamento médico. Essas vi-
Compreender como acontece as relações sitas médicas trouxeram convivência com
educativas e artísticas neste campo. Veri-outras mulheres que detinham outros
ficar as possíveis consonâncias entre nos-tipos de doenças que acometem a anato-
sas experiências profissionais, pessoais emia do sexo feminino. Cada ida ao médi-
artísticas. Provocar a vivência com o ou- co gerava novas histórias construídas e
tro, entendendo como esse contato con-
observadas coletivamente. Por muitas ve-
tribui ou não para nossa formação docen-
zes veladas, seja por vergonha ou por an-
te. Instigar reflexões sobre feminilidades
gústia, ela percebe que as narrativas das
através da produção de imagens poesias
transformações que ocorrem no corpo
em tecidos.
feminino após a descoberta de patologias
são escondidas, subjugadas, estereotipa-
6. Desalinhos
das, estigmatizadas e não aceitas. Partin-
São assanhamentos de linhas em contato do desta vivência surgiu a seguinte inda-
com o não tecido. gação: é possível repensar e (re)construir
histórias sobre o corpo feminino? Como
Desalinhos é uma série de seis imagens ressignificar este corpo historicamente
construídas a partir do bordado sobre estigmatizado por relações de poder e
exames de ultrassonografia. Apresenta preconceitos? Como “narrar-se” e, neste

153
LUCIANA BORRE / LUANA ANDRADE / MARIA BETÂNIA E SILVA

ato, repensar a si mesma e possibilitar ta e choramingos de corações partidos.


processos de cura? Os pontos investidos em seu vestido de
crochê convidaram para os versos curtos
um universo feminino que acaba por so-
bressair de modo claro, direto e brilhante.
Para que pudéssemos notar o inesperado
da poesia em sua caixa, pegamos um pu-
nhado de imagens lapidadas: os quilos de
beleza, os litros de lágrimas perdidas, as
dores e o espinho que ficou fincado no
vestido.
“Você continua virgem?” Série Desalinhos, Ingrid
Borba, 2017. Bordado sobre fotografia impressa em
papel.

7. Caixa de Retalhos

Os aromas de uma caixa de retalho des-


pertam lembranças e sentidos sonolen-
tos. Alegram-nos, sacodem desejos e,
misturados a linhas, tesouras e retalhos
de tecido, previnem-nos dos perigos do
esquecimento.
“Sem nome”, Jaci Borba, 2017. Vestido de crochê em
construção.
Despejando poesia na indefinição dos
processos de feitura, Jaci Borba dividiu
sua caixa de retalhos e presenteou-nos
com as histórias de seu vestido de linha
cru. A transparência de sua alma podia
ser sentida nos aromas que invadiam li-
nhas, tesouras, agulhas e pedaços de teci-
do. Uma transparência que convidava
ao voo do poema. Lá, no fundo da caixa
e pertinho do lenço bordado, ouvimos “Sem nome”, Jaci Borba, 2017. Caixa de retalhos,
canções de amor como as de uma serena- tecidos, agulhas, linhas e aromas.

154
BORDANDO - MUITOS - NÓS E PONTOS ISOLADOS

8. Pontos que sustentam pedras

Há de se duvidar da fragilidade dessas li-


nhas que suportam pesos inimagináveis

Lizandra Santos compartilhou suas


memórias cruzadas com as histórias das
mulheres de sua família. A série Autorre-
trato apresenta um legado familiar conta-
do através de linhas, tecidos e outros ele-
mentos, principalmente pedras. Para ela “Autorretrato como tia “Autorretrato na garganta
Santa Cazé”, Lizandra de vó Maria”, Lizandra
“as lembranças são mais do que uma cons- Santos, 2017. Bordado Santos, 2017. Bordado,
trução a partir do que vivenciamos de fato, e pedra sobre popeline acrílica e pedra sobre brim.
estampado.
elas são um legado. Há memórias que nunca
foram tocadas, presenciadas, mas que circu- 9. Pontos de amarrar pequenas dores
lam em nosso imaginário, tal como o sangue
circula em nossas veias”. É incrível como as Sobre linhas desordenadas, são peque-
linhas, nem sempre alinhadas, sustentam nos pontos profundos que de tão aperta-
pedras em uma “simbologia referente ao en- dos tendem a desaparecer.
gasgo e o peso de diferentes histórias que são
carregadas, e muitas delas, mantidas em se- Pequenas Agressões é o nome de uma sé-
gredo”. Linhares (2003, p. 230) nos aju- rie de produções (desenhos em nanquim,
da a entender que buscar o humano, esse pinturas em acrílica, instalação e perfor-
paradigma que se pergunta, nas ciências mance) realizadas entre 2014 a 2016.
é não reduzir o que se toma por razão à Toda a poética se volta para as questões
sua dimensão instrumental. A arte tem de violência de gênero, percebidas em
essa função de dar sentido humano ao conversas com mulheres conhecidas e
mundo, na imaginação, ao expressá-lo e desconhecidas. Simbólicas, "pequenas",
reorganizá-lo numa obra feita. Conhe- quase invisíveis diante de discursos e prá-
cer envolve criação e nas formas da arte ticas já tão bem estabelecidos socialmen-
as pessoas experimentam os sentidos da te, as agressões presentes nesta cons-
vida. trução artística pretendem abandonar o
estado de silêncio. A fala de uma dessas
mulheres retratava que "a dor é mais moral

155
LUCIANA BORRE / LUANA ANDRADE / MARIA BETÂNIA E SILVA

que física", sobre não conseguir amamen- de mulheres artesãs e do nosso compar-
tar tranquilamente em público. A imagem tilhamento de narrativas de vida. Esse
que se construiu a partir deste relato foi movimento permite pensar com Sabino
distribuída em panfletos na rua, impressa (2012, p.229) o quão importante é viajar
em cartazes e camisas como identidade de si para si, pôr o pé no chão do próprio
visual da exposição coletiva Tramações: coração para humanizar-se. E uma vez
cultura visual, gênero e sexualidade (2016), humanizado, poder humanizar o outro,
e também circulou em outras plataformas num ato dialético do fazer-fazendo-se.
digitais. Impressa em camisa, sobretudo,
essa imagem frequentou salas de aula e
gerou assuntos sobre a experiência do
feminino, as representações desse corpo
e os lugares ocupados por ele. Essa mes-
ma imagem também viajou e chegou até
Conceição das Crioulas, onde se ressigni-
ficou a partir do encontro com um grupo

Intervenção sobre a imagem na oficina de bordados em


Conceição das Crioulas, 2017.

“Pequenas Agressões”, Luana Andrade, 2015. Nanquim Detalhe Intervenção sobre a imagem na oficina de
sobre papel. bordados em Conceição das Crioulas, 2017.

156
BORDANDO - MUITOS - NÓS E PONTOS ISOLADOS

10. Ponto tramado nos vestidos bordados nas fotografias de casamento


tornaram-se instrumento da dúvida, re-
O ponto tramado possibilita a junção de velando subjetividades, narrando parte
diferentes tipos de linhas e tecidos. O da vida, entrando nas aulas e instigan-
tecido ideal para este tipo de ponto deve
apresentar maleabilidade e certa resistên-
do novas poéticas. São lembranças que
cia. apontam para “versões de realidade” e
para a maneira como se negocia subjeti-
Luciana Borre percebeu a presença vidades femininas para pertencer a deter-
constante do vestido branco em seus ál- minados grupos e lugares.
buns de fotografias e relembrou quando
foi daminha de casamento, sua cerimô-
nia de primeira comunhão, seu ritual de
crisma e no vestido de noiva. O vestido
branco e sua relação com ele – pureza,
fidelidade, religiosidade e docilidade –
demonstravam uma trajetória real e sim-
bólica na constituição de subjetividades.
Foram momentos de reflexão inesperados
e pontos de contato inéditos que instiga- “Tramações”, Luciana Borre, 2016. Bordado sobre
ram o bordado da palavra “tramar” e suas fotografia impressa em papel.
conjugações sobre vinte e duas fotogra-
fias. As agulhas, algumas vezes, feriram 11. Ponto matiz
os dedos e a legitimidade da instituição
O ponto matiz é o mais usado em áreas
casamento. O bordado ganhou o tempo de preenchimento, consiste, basicamen-
da saudade e a vontade de continuar con- te, em linhas retas bem próximas umas
tando histórias cresceu. Precisou ganhar das outras.
o mundo, provocar novos relatos e gerar
questionamentos. Uma vez uma história foi contada que
“O bordado responderá sempre a uma durante a infância Maria Betânia ouvia
provocação interna, responderá sempre à sempre com muita atenção e os olhos
história que a bordadeira ou o bordador fixados em quem falava. Essa história se
viveu – infantil, alegre, triste, revolucio- repetiu ao longo do tempo, quase como
nária” (EVANGELISTA, 2015, s/p). Os uma exigência. Ouvir o outro pressupõe

157
LUCIANA BORRE / LUANA ANDRADE / MARIA BETÂNIA E SILVA

que um escute. Escutar pressupõe esva- ras de entender as relações de gênero


ziamento. Esvaziar pressupõe esquecer- e sexualidades. Neste viés de pesquisa
-se. Esquecer-se significa anular-se. Anu- produzimos novas relações com o mun-
lar-se nem sempre é preciso! No entanto, do e criamos possibilidades de vida, in-
muitas vezes, o papel social atribuído à filtrando-nos em processos reflexivos e
mulher ainda ressalta esse verbo. Mas, subversivos. As “Cartas” (2016) de Pris-
os pontos traçados individual e no cole- cila Ferreira foram criadas a partir deste
tivo permitem descobertas de novas ro- processo crítico reflexivo que sempre en-
tas, traçados, encontros em linhas retas volveu a busca pelo autoconhecimento
bem próximas umas das outras e vivên- que transborda para o outro. Em suas
cias em diferentes espaços e lugares com práticas pedagógicas Priscila percebeu a
diferentes grupos sociais no cotidiano resistência de professores/as, gestores/as
(re)criado, (re)inventado. A experiência e familiares nas comunidades escolares
vivida em Conceição das Crioulas reati- para abordar as condições das mulheres
vou reflexões tecidas há algum tempo por na sociedade e a diversidade de sexuali-
Silva; Carvalho; Costa (2014). Por que dades. Também presenciou piadas, agres-
determinadas experiências permanecem sões verbais, violência física e atos de dis-
vivas em nossas memórias? O que nos criminação contra familiares e alunas/os
leva a produzir uma história de nossa não heteronormativos. A escrita de cartas
própria existência? Será que revivemos e sua recente ligação com bordados foi
ou reinventamos experiências a partir do apresentada e compartilhada em Concei-
registro que fazemos delas? Por que tan- ção das Crioulas. Segundo a estudante,
tas imagens parecem marcar para sempre escrever “foi a maneira mais próxima e
nossas memórias? significativa que encontrei para compor
e narrar histórias sobre gênero e sexuali-
12. Ponto avesso perfeito em cartas dades. São histórias diferentes, por vezes
interligadas, que perpassaram o ambien-
Embora o ponto avesso perfeito consiga
uma aparência de fragilidade, o bordado
te escolar e meus relatos pessoais. Foi as-
permanece forte e durável. sim, que consegui chegar mais próximo
de minha família, principalmente do meu
Ao investirmos na realidade cotidiana irmão que enfrentava inúmeros desafios
produzimos e (re)conduzimos circuitos por não se apresentar heteronormativo.
de conhecimento e modificamos manei- Acredito na produção de conhecimen-

158
BORDANDO - MUITOS - NÓS E PONTOS ISOLADOS

tos que se instauram nas experiências de


vida”.

Imagem produzida na oficina de bordados em


Conceição das Crioulas, Priscila Ferreira, 2017.

13. Pontos transbordados

Realmente, os pontos não são o mais im-


portante no trabalho, mas sim o desenho
aberto formado no tecido pelo agrupa-
mento repuxado de seus fios. Os pontos
transbordados são trabalhados sobre nú-
mero regular de fios do tecido e a linha
com que se trabalha é puxada firmemente
em cada movimento da agulha, para que
um efeito de ponto aberto seja obtido.

Oficina de bordados em Conceição das Crioulas, 2017.

159
LUCIANA BORRE / LUANA ANDRADE / MARIA BETÂNIA E SILVA

sua discussão nos âmbitos formais e não


formais de educação. Nossas experiên-
cias profissionais, leituras (BORRILLO,
2009; JUNQUEIRA, 2009; LOURO,
2005 e 2007) e compartilhamento de
relatos com outros profissionais da edu-
cação provocam-nos a pensar sobre os
“nós” e ocultamentos de assuntos corri-
queiros, tais como homofobia, preconcei-
tos, machismo, violência contra a mulher
e diversidade sexual. Louro (2011, p. 67)
destaca que a “homofobia circula pelos
corredores e salas de aula, se insinua nos
livros didáticos e aparece escancarada
nos recreios e nos banheiros”, e ainda,
“temos de aguçar nosso olhar e tentar fi-
car atentos para os processos que tecem
as subordinações e hierarquias entre su-
jeitos e práticas sexuais, que admitem e
excluem indivíduos e grupos sociais”.
Também são constantes no cenário
brasileiro os ataques de cunho religioso
Oficina de bordados em Conceição das Crioulas, 2017. as políticas públicas de educação para a
diversidade e o sucateamento de projetos
e iniciativas para a formação de professo-
14. "Nós" ao se falar de género ras/es.
Os “nós” geralmente permanecem ocul- No entanto, durante o “Encontro com
tos nas peças bordadas. as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores
da Comunidade Quilombola de Conceição
Enquanto professoras de artes visuais das Crioulas” surpreendeu-nos o quanto
problematizamos o quanto questões de professoras/es e demais integrantes da
gênero e sexualidades têm atravessado comunidade têm buscado formação espe-
dificuldades e fortes impedimentos para cífica para debater as formas de poder e

160
BORDANDO - MUITOS - NÓS E PONTOS ISOLADOS

movimentos sociais minoritários (produ- não foram suficientes para compreender


ções de mulheres, feministas e LGBTT); como acontece, de fato, o trabalho peda-
os marcadores sociais da diferença: se- gógico baseados nestes pilares, mas saí-
xualidades, corpo, raça, etnia e classe so- mos fortalecidas enquanto profissionais
cial; e as representações de gênero e se- da educação diante do não ocultamento
xualidades na contemporaneidade. desses “nós” na comunidade.
Durante um dos encontros de forma- Discussões sobre questões de gênero
ção pedagógica as/os educadoras/es da também foram evidenciadas nos traba-
educação básica foram claros ao dizer lhos de pós-graduação realizados por
“queremos discutir gênero e sexualida- algumas mulheres da liderança comu-
des”. Neste momento, nossas experiên- nitária, no protagonismo das meninas
cias profissionais encontraram pontos nos treinos e competições de futebol e na
de consonância, pois o grupo relatava produção audiovisual “Cartão Vermelho
intensas problemáticas de bullying, dis- para o Machismo”, produzido por crian-
criminação, violência contra a mulher e o ças, adolescentes e professoras/es. Logo,
aparecimento de vivências de sexualidade saímos da comunidade fortalecidas com
até então ocultadas ou invisibilizadas na as possibilidades reais de trabalhos edu-
comunidade. Notamos que as histórias cativos para a diversidade.
contidas nas cartas de Priscila eram seme-
lhantes - recorrentes - ao relato destas/es 15. "Nós", linhas e barro para falar so-
bre arte
educadoras/es e que inúmeros estudantes
sentiam-se angustiados ao não encontra- Outros elementos podem ser explorados
rem espaço de acolhimento na escola. En- e incorporados às peças de bordado.
tendemos a importância de trabalho con-
tínuo de formação de professoras/es para Investimos no “implacável desloca-
tais temáticas, bem como a necessidade mento do estético do âmbito das artes
contemporânea de incluir tais discussões para todos os cantos da vida cotidiana”
no currículo das instituições escolares. (AGUIRRE, 2011, p. 69). Com este pro-
Neste mesmo dia, conhecemos o Plano pósito valorizamos as narrativas de gru-
Político Pedagógico das escolas da comu- pos/comunidades/sujeitos subjugados
nidade e seus pilares: “gênero, território, nas relações de poder e apontamos a
história, organização, identidade, meio feitura manual de utensílios com linhas,
ambiente e interculturalidade”. Sete dias agulhas e barro como um processo de

161
LUCIANA BORRE / LUANA ANDRADE / MARIA BETÂNIA E SILVA

rompimento ao regime estético próprio da autonomia e aura das artes trazendo-


da modernidade. Entendemos o “regi- -a (arrastando-a) para a vida cotidiana,
me estético da modernidade” como um deslocando o conhecimento estético e
grupo de sentidos e crenças – fortemen- artístico de alguns grupos e lugares pri-
te presentes no curso de Artes Visuais de vilegiados. Ou seja, como os desalinhos
nossa universidade – produzidas sob a de Ingrid Borda, as pedras de Lizanda
aura da capacidade artística como dom Cazé, a caixa de retalhos de Jaci Borba, as
e privilégio de poucos, apontando a rup- bonecas de caroá e os utensílios de barro
tura da ideia de que a arte promoveria das artesãs de Conceição das Crioulas se
transformações ao capacitar os sujeitos inserem em determinadas práticas e rela-
para uma relação crítico reflexiva sobre os ções de visibilidades e modos de inteligi-
acontecimentos sociais. Como o mito da bilidade? Quem ocupa lugares privilegia-
“capacidade/dom artístico” se mantém dos de produção poética? Quem e onde
presente em nossa formação? Como a se produz conhecimentos legitimados
estética da vida cotidiana foi separada do sobre arte? Quais possíveis invisibilida-
âmbito da pesquisa e da formação da/o des? Quem pode falar sobre determinado
arte/educadora/r? Como perceber e vali- assunto? Quem narra o outro? O que se
dar marcas pessoais, memórias, situações vê, o que se pode dizer, o que não se vê e
do dia a dia e contradições nas pesquisas? quem tem legitimidade para ver e dizer?
Como a modelagem com barro e utiliza- As “três viradas” e os “outros elemen-
ção do bordado em Conceição das Criou- tos que podem ser explorados e incor-
las nos ajuda a entender os processos de porados às peças de bordado” possibili-
legitimação da “estética do cotidiano”? taram a ampliação da interpretação das
A emergência dessas discussões surgiu produções artesanais para o entendimen-
para nós ao tomarmos conhecimento das to das redes de poder e dos mecanismos
três viradas epistemológicas ocorridas no de dominação que estão em jogo diante
final do século XX: Virada Imagética, Vi- de nossas relações com as artes, descons-
rada Linguística e Virada Cultural. Ema- truindo imaginários e referências cultu-
ranhadas entre si, as três viradas rompe- rais, políticos e estéticos historicamente
ram com metanarrativas no campo das acomodados em zonas hegemônicas de
artes e da educação (AGUIRRE, 2011). conhecimento.
As vivências em Conceição das Criou- Neste contexto, tomamos a experiência
las e nossas poéticas sugerem a diluição vivida como objeto de estudo e fonte de

162
BORDANDO - MUITOS - NÓS E PONTOS ISOLADOS

problematizações, com especial interesse fortalecem as relações interpessoais e mo-


pelas questões da narratividade, trazendo bilizam rupturas de processos segregacio-
para discussão os acontecimentos do co- nistas e excludentes.
tidiano de sujeitos e grupos socialmente
marginalizados. Aguirre (2011) entende 16. "Nós" no exercício da escuta
o trabalho da arte/educação como campo
Brincadeiras verbais provocam poesia e
privilegiado para promover a “divisão/
bordado, seja com agulha ou lápis, exi-
partilha do sensível” como experiência de gem um toque de delicadeza e de alegria.
distribuição dos espaços e daqueles que
são chamados a ocupá-los, consideran- “Ser professor é ter a capacidade de
do a necessidade de sujeitos conscientes aprender. Saber escutar mais do que falar.
e donos de suas vozes e ações. Comple- É encontrar formas de mudar o mundo
mentando este pensamento, entendemos com o outro, ter a capacidade de ouvir”.
que a natureza dessa investigação utiliza As palavras de José Paiva durante mo-
"uma concepção em que as categorias de mentos de avaliação do evento provoca-
sujeitos são entendidas como espaço de ram-nos a pensar: como exercitamos a
enunciação, em que os elementos per- escuta em nossas propostas pedagógicas?
tinentes vão se desenhando na medida Como construímos aprendizagens signi-
da relação das narrativas com seus con- ficativas durantes as interações em Con-
textos" (ABRAHÃO, 2003, p. 82). Ao ceição das Crioulas?
investirmos na realidade cotidiana em Compartilhamos nossas poéticas e vi-
Conceição das Crioulas produzimos e re- vências pessoais com este grupo de mu-
conduzimos circuitos de conhecimento e lheres, brincamos com histórias de vida e
modificamos maneiras de entender as re- rememoramos situações sobre como viver
lações de gênero e sexualidades. as feminilidades, também, como estraté-
Também entendemos que a utilização gia de escuta.
do barro para construção de utensílios, as Inicialmente, pensamos direcionar as
feituras artesanais com bordados e as bo- relações de ensino e aprendizagem para
necas de caroá não representam somen- descoberta e aprimoramento de novos
te uma fonte de renda para este grupo pontos, bem como ampliação do repertó-
de mulheres. São práticas que contam a rio visual do grupo. Era um objetivo in-
história da comunidade, instauram suas teressante, pois percebemos que a feitura
relações contemporâneas com o entorno, e a comercialização de peças artesanais

163
LUCIANA BORRE / LUANA ANDRADE / MARIA BETÂNIA E SILVA

representa em uma das principais fontes com a intensidade de muitas lágrimas,


de renda na comunidade. permeou as ações durante a oficina. Foi
No entanto, bordar com este grupo como se o momento de partilha apresen-
de mulheres, estar ali, presente, tecendo tasse uma delicada inteligibilidade e uma
imagens, constituindo novas formas com óbvia compreensão sobre o que até então
tecidos, linhas e agulhas foram apenas se tornava difícil explicar com palavras. A
pontos focais de um aqui e agora que se vivência poética com linhas, agulhas e te-
estendeu para intensas (re)configurações cidos apresentou-nos com uma certa cla-
pessoais. Cada integrante desse grupo reza as experiências de um todo indefini-
tem vivenciado (re)posicionamentos cog- do que permeia a experiência “normal” e
nitivos e afetivos a partir da ação poética cotidiana, pois fomos “levados para além
proporcionada pela experiência com o de nós mesmos, a fim de encontrarmos a
outro. Nos encontros em Conceição das nós mesmos” (DEWEY, p. 351).
Crioulas cada troca de olhares crescia a Ainda sobre este processo de escuta,
sensação de que algo acontecia para além também percebemos que diversas crian-
das palavras e dos registros fotográficos. ças participaram das oficinas e atividades
Uma vivência poética que instaurou do evento com suas mães, pais, amigos e
(des)caminhos. Nossos corpos estavam vizinhos, inclusive curiosos nas aprendi-
em expansão ao conectar relatos de vida zagens com linhas e agulhas. O investi-
aos pontos no tecido, pois “a qualidade mento na formação das crianças é uma
penetrante e indefinida de uma experiên- preocupação da comunidade, tanto que a
cia é aquilo que vincula todos os elemen- maneira de entender as infâncias provoca
tos definidos, os objetos dos quais temos a constante presença delas nos mais va-
consciência focal, transformando-os em riados lugares e situações. O espaço para
um todo” (DEWEY, p. 350). O que ain- a escuta delas foi garantido e ressignifi-
da não acessamos? Sendo as relações de cado em nosso retorno à capital. Afinal,
gênero um assunto tão aflorado, provoca- quais são os espaços ocupados pelas in-
tivo e inquietante para este grupo, quais fâncias nos grandes centros urbanos?
experiências pessoais ainda não foram Como contemplamos as especificidades
refletidas, mas significativamente pre- das infâncias em nossas práticas pedagó-
sentes em nossas relações interpessoais? gicas e de pesquisa? Como valorizamos a
Parece que a sensação de esclarecimen- escuta de suas histórias e relatos?
to e certo equilíbrio das emoções, mesmo

164
BORDANDO - MUITOS - NÓS E PONTOS ISOLADOS

17. "Nós" em zonas de lutas / privilégios a clareza do Projeto Político Pedagógi-


co que a comunidade utiliza, a natureza
Tantos diferentes pontos e “nós” acabam singular do modo de 'fazer educação' e o
por denunciar a fragilidade do amor, a sentido político que a Educação Quilom-
doçura do beijo, a leveza dos tecidos e o
perfume da memória.
bola assume no contexto preciso das lu-
tas da comunidade e face à complexidade
A luta do povo quilombola requer orga- política do Brasil.
A obra “Luta Política no Quilombo
nização, planejamento estratégico e forta-
de Conceição das Crioulas”, oriunda da
lecimento do grupo através da educação.
pesquisa de mestrado de Givânia Maria
Nós, professoras e estudantes da UFPE,
da Silva evidenciou a importância dada
estamos em um lugar/zona privilegiada
à pesquisa sobre as experiências em cur-
que esconde/vela/subjuga/desconhece
so na Educação Escolar Quilombola, em
os conhecimentos dos povos tradicionais
particular sobre o modo singular e dife-
em nossa formação. Ao mesmo tempo,
renciado de fazer educação e os resulta-
passamos por situações semelhantes no
dos que se registram.
que se refere a construção de gênero e se-
xualidades.
18. Arremates
São pontos de acercamento e distan-
ciamento que mobilizaram um olhar Para aprimorar a técnica do bordado, crie
crítico sobre nossas formações pedagó- novos pontos, nós e silêncios.
gicas. Acercamo-nos dos conhecimentos
quilombolas ao conhecer as dissertações
“Por uma pedagogia crioula: memória,
identidade e resistência quilombola em
Conceição das Crioulas/PE”, de Márcia
Jucilene do Nascimento e “Política de
nucleação de escolas: uma violação de
direitos e a negação da cultura e da edu-
cação escolar quilombola”, de Maria Diva “Nome? Minha fia, eu chamo chorrim e ele vem”, Jaci
Borba, Fotografia, 2017
da Silva Rodrigues, ambas defendidas na
Universidade de Brasília. Por fim, nossos bordados, com tantos
Essas pesquisas permitiram entender diferentes pontos – de contorno, de ali-
com certa profundidade a vivacidade e nhavo, isolados, de cruz, de desalinhos,

165
LUCIANA BORRE / LUANA ANDRADE / MARIA BETÂNIA E SILVA

de amarrar, de tramar, de matiz, de aves- veio como seria difícil fotografar aquele
so, de avesso perfeito, transbordados, etc. silêncio (Barros, 2000). Fotografei. Tal-
vez não exatamente o silêncio, mas certas
– e muitos nós acabam por denunciar a linhas que saíam dele e que continuam
fragilidade da despedida e a gostosura da costurando os indícios daquele instante.
rememoração. Jaci Borba traduz nossos Tudo o que ouvi, falei, comi, bebi, abra-
arremates ao mostrar e dizer: cei, chorei, ri e dancei, o vestido de crochê
inacabado e a caixa de aromas e retalhos
Acho que tudo o que vivemos nessa ex- que levei para o encontro com a comuni-
periência só cabe no silêncio, na arte ou dade, estão dispostos a passar naquele
um poema num quintal. Já morei em casa pequeno poema de quintal.
com quintal e sei bem o poder que um
quintal pode ter na vida da gente, mas 19. Referências
acho que fui me deixando levar pela vida
numa pequena tristeza de não viver mais Aprenda novos pontos dialogando com
com um quintal à minha espera. quem já vivenciou muitas técnicas de bor-
Vou contando...
dar.
Já estávamos alguns dias hospedadas na
casa da simpática tia Marina. Eu, atare-
fada entre o banho, a comida e as saídas ABRAHÃO, M. H. M. B. Memórias, Narrativas
para as atividades na comunidade nem e Pesquisa Autobiográfica. História da Edu-
me dei o prazer da curiosidade em des- cação (UFPel), Pelotas, v. 14, n.1, p. 79-95,
velar o que teria por trás daquela porta lá 2003.
no fundo do corredor, que cortava toda a AGUIRRE, Imanol. Cultura Visual,política da
casa. Até que em um momento de porta estética e educação emancipadora. MAR-
aberta tia Marina me fez ver o tal quin- TINS, Raimundo; TOURINHO, Irene
tal. Minhas companheiras e eu resolve- (Orgs). Educação da Cultura Visual: conceitos
mos dar uma volta por lá. Sem grandes e contextos. Santa Maria: Editora UFSM,
expectativas, pensei: “que bom ter um 2011, p. 69- 111.
cantinho pra plantar”. Tinha pé de algo- BARROS, Manuel de. Ensaios Fotográficos. Rio de
dão plantado. Fiquei lá olhando o chão, Janeiro: Record, 2000.
o cordão do varal vazio e o que ia além
BORRILLO, Daniel. A homofobia. In: LIONCO,
do muro. Fizemos algumas fotos e volta-
T.; DINIZ, D. (Orgs.). Homofobia e educação:
mos para dentro. Depois fui sozinha ao
um desafio ao silêncio. Brasília: Letras Livres,
corredor, olhei pro quintal. Um cachor-
EdUnB, 2009.
ro se equilibrava em cima do muro e tia
Marina cobria o varal de roupas lavadas. DEWEY, John. El arte como experiência. Barcelona:
Corri, precisava pegar a câmera! Precisa- Paidós, 2008.
va fotografar aquilo. No passo que dava EVANGELISTA, Olinda. A vida em Bordados. 37ª
ao encontro da imagem, num lapso me reunião da Anped, 2015. Acesso em:

166
BORDANDO - MUITOS - NÓS E PONTOS ISOLADOS

25/01/2016, endereço: http://37reuniao. UFPE, 2014.


anped.org.br/bordados-olinda-evangelista/ SISTO, Celso. Poesia na ponta da agulha. Revista
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Biografia (online), 2011. Acesso em:
Paulo: Paz e Terra, 2005. 10/09/2017. Endereço: http://sociedade-
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Diversidade Sexual dospoetasamigos.blogspot.com.br/2013/08/
na Educação: problematizações sobre a homofo- poesia-na-ponta-da-agulha-celso-sisto.html.
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ção, Secretaria de Educação Continuada, Al-
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LADDAGA, Reinaldo. Estética da Emergência. São
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LINHARES, Ângela Maria Bessa. O tortuoso e doce
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e Educação. Ijuí: Ed. Unijuí, 2003.
LOURO, Guacira Lopes. Educação e docência:
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te. Doc., Belo Horizonte,v. 03, n. 04, p. 62-
70, jan./jul. 2011.
—. Currículo, gênero e sexualidade: o “normal”,
o “diferente” e o “excêntrico”. In: LOURO,
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LNER, Silvana Vilodre (Orgs.). Corpo, gênero
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O currículo nos limiares do contemporâneo. Rio
de Janeiro: DP&A, 2005 – 4. Edição, p. 85-
92.
ORTHOF, Sylvia. Ponto de tecer poesia. Ilustrações
de Tatiana Paiva. São Paulo: FTD, 2010.
SABINO, Simone. O afeto na prática pedagógica e
na formação docente: uma presença silenciosa.
São paulo: Paulinas, 2012.
SILVA, Maria Betânia e (Org.). Encontros com a
Arte. Recife: PROEXT-UFPE & Editora da

167
168
palavras-chave
Memórias Memórias, cartografia, quilombo, experiências.

Cartográficas 1. Partindo
na Comunidade Um céu de azul intenso. Cúmulos, nim-
bos, estirros que me transportam para as
Quilombola de memórias de minha infância quando dei-

Conceição das tava no chão e ficava olhando o céu ima-


ginando e identificando enormes figuras
Crioulas nas nuvens. Coisas que ainda tenho um
grande prazer estético: olhar o céu grande!
MARIA BETÂNIA E SILVA1 Na estrada, seguimos quatro professo-
ras e sete estudantes de Artes Visuais da
Resumo UFPE, para Salgueiro, município do ser-
Esse texto apresenta uma narrativa tão pernambucano. Mas, o nosso destino
fundada na memória cartográfica da ex- é a comunidade quilombola de Conceição
periência vivenciada durante sete dias no das Crioulas.
Encontro com as Artes, a Luta, os Saberes e A vegetação está completamente verde
os Sabores da Comunidade Quilombola de partindo do litoral até o sertão. Fato que
Conceição das Crioulas, Salgueiro/Pernam- há muito tempo aconteceu, pois a mu-
buco. No Encontro, além da comunidade, dança climática provocou uma redução
estavam presentes membros de doze ins- drástica na quantidade de chuvas. Aos
tituições de ensino entre universidades poucos, bandos de pássaros desenham
federais e estaduais, institutos, facul- e dançam no ar. Sigo seus movimentos
dades e escola municipal. Na pesquisa e levo o cérebro a também dançar com a
narrativa utilizei o diário de bordo, de- leveza deles que, embora, quisesse fosse
poimentos de membros da comunidade e o corpo junto.
registros imagéticos produzidos durante Após algumas horas chegamos a Sal-
a semana do evento. gueiro. Ao caminhar pelo território, a es-
tética provoca os sentidos na arquitetura
local, na feira, nos modos de estar e ser,
na relação com o tempo. Lembro-me da
1 Professora na Universidade Federal de Pernambuco/Brasil reflexão de Richter (2002) ao apontar

169
MARIA BETÂNIA E SILVA

a importância de compreender como se em seu silêncio. Plena de montanhas e


compõe étnica e socialmente a comunida- vales, siriemas, bodes, cavalos, vacas. É
de, quanto ela é heterogênea, quais seus um convite à reflexão sobre a preservação
pontos de encontro e desencontro. e o equilíbrio da natureza, aspectos que
Em nosso trajeto, vivenciamos momen- pouco vemos na capital com o excesso de
tos de diálogo e socialização de experiên- concreto e múltiplos meios de transporte.
cias pessoais nas trajetórias de formação
do ser mulher e conversamos sobre como
a sociedade influencia na formação de
nossa identidade cultural. Ao dialogar
com Hall (2011, p.13) ele me faz pensar
em sua afirmativa que a identidade ple-
namente unificada, completa, segura e
Silêncio. Julho de 2017. (Acervo pessoal).
coerente é uma fantasia. À medida que os
sistemas de significação e representação
cultural se multiplicam, somos confron-
tados por uma multiplicidade desconcer-
tante e cambiante de identidades possí-
veis, com cada uma das quais poderíamos
nos identificar, ao menos temporaria-
mente.
Fonte. Julho de 2017. (Acervo pessoal).

O contato direto com a natureza me


leva a sentir a pequenez de minha exis-
tência e, ao mesmo tempo, compreender
que faço parte, por algum motivo, do ciclo
da vida.

Luz, ar e terra. Julho de 2017. (Acervo pessoal).

Percorremos mais quase 50 km, sen-


do metade deles em estrada de terra, até
Conceição das Crioulas. A paisagem grita Recolhimento. Julho de 2017. (Acervo pessoal).

170
MEMÓRIAS CARTOGRÁFICAS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

A recepção calorosa, afetiva e, extrema-


mente, política da comunidade marca um
lugar que transborda a afirmação identi-
tária. Estava formada por um grupo das
líderes da comunidade que apresentou
um pouco das funções e ações que cada
uma desenvolve. Fala-se da educação, da Transformação. Julho de 2017. (Acervo pessoal).
associação, do artesanato que busca na
potência do próprio lugar desenvolver Saímos a traçar mapas territoriais e a
seus objetos a partir da matéria-prima que conhecer mais de perto o cotidiano das
possui doada pela natureza. O algodão, o pessoas que ali habitam. Chego à casa de
caroá e a argila são fontes primeiras que uma das mais anciãs do povo. Nasceu na
modeladas pelas mãos das mulheres to- comunidade e hoje com seus 83 anos de
mam forma e cor nas roupas confecciona- idade é carinhosamente chamada de tia.
das, nas bonecas que representam as mu- A sua grandeza e riqueza se explicitam no
lheres homenageadas pela comunidade e largo sorriso e na mais alta generosidade
nas peças utilitárias de cerâmica. Além de e desprendimento ao abrir as portas de
servir como fonte de renda, o artesanato sua casa, receber pessoas estranhas e ser-
traz a conexão direta com os elementos vir o pouco que possui. Ao redor da mesa,
do local em diálogo com a resistência e a o convite para um cafezinho e um dedo de
construção da identidade quilombola. As prosa. O afeto salta nos seus olhos e em
bonecas representam mulheres da comu- suas ações! As ausências de bens e pro-
nidade e simbolizam a categoria em que vimentos revelam que o mais importante
ela está inserida. Por exemplo, a boneca está centrado na fé em Deus que se mate-
Lourdinha simboliza todas as professo- rializa e se impregna de uma humanida-
ras. A comunidade decide coletivamente de que reconhece no outro o valor maior.
a quem vai homenagear por meio de uma Característica particular de quem atingiu
comissão formada que contará histórias o mais alto grau de sabedoria e despren-
daquela personagem e, no coletivo, ela dimento do mundo materialista. Mas, ao
será eleita e fará parte da coleção de bo- mesmo tempo, esse estar e ser no mundo
necas confeccionadas e comercializadas denuncia também o quanto o Estado está
pela comunidade. distante de atingir maior e melhor distri-
buição de renda neste país continental

171
MARIA BETÂNIA E SILVA

que arrasta problemas intensos instala- tal para a dilatação dos sentidos. Duarte
dos pelos Jr. (2010, p.12) reforça esse entendimen-
processos colonizadores há mais de cin- to quando leio sua afirmativa de que há
co séculos. O poder que, muitas vezes um saber sensível, inelutável, primitivo,
cega e expande a cegueira daqueles que fundador de todos os demais conheci-
poderiam fazer muito para o povo e com mentos, por mais abstratos que estes se-
o povo, induz, condiciona ao pensar-se jam; um saber direto corporal, anterior às
melhor e mais importante que seu igual: representações simbólicas que permitem
o outro. os nossos processos de raciocínio e refle-
A noite se aproxima e a generosidade xão. E continua (p.13), o mundo antes de
da natureza continua a se fazer presente ser tomado como matéria inteligível sur-
e a beleza resplandecente de um pôr do ge a nós como objeto sensível, o sensível é
sol revela cores intensas que fascinam o aquilo que pode ser percebido pelos sen-
olhar. tidos.
É, realmente, extraordinário ver o céu
estrelado! Ao mesmo tempo me pergunto
como há mais de um século algumas pes-
soas vieram parar neste lugar tão distante
de tudo e de todos.
O mito de fundação remete ao pon-
to histórico dos finais do século XVIII e
início do XIX. A colonização nas terras
Movimento. Julho de 2017. (Acervo pessoal).
brasileiras trouxe consigo o processo de
Milhares de estrelas brilham na imensa escravidão que fundou raízes profundas
escuridão do céu. Beleza de tamanho po- de exclusão social, econômica, política
tencial jamais visto com as luzes artificiais etc. Pergunto ainda hoje será mesmo que
dos centros urbanos. Ponho-me a pensar a escravidão acabou? Será mesmo que os
no povo asteca que estudava as constela- processos colonizadores se encerraram?
ções com os espelhos d’água e fico ima- Ou eles continuam com outras roupa-
ginando como isto também os fascinava. gens?
Quantas gerações passaram pelo planeta Poder, novamente, o poder atravessa
e apreciaram tamanha beleza? a história da humanidade. A história da
A experiência do sensível é fundamen- fundação se conta, reconta, está impressa

172
MEMÓRIAS CARTOGRÁFICAS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

e bordada em produtos confeccionados e A Igreja é um marco da comunidade


comercializados por mulheres da comu- que foi construída para Nossa Senhora da
nidade. A manutenção de uma tradição Conceição em agradecimento à conquista
que contribui para o fortalecimento das das terras pelas seis crioulas fundadoras.
identidades demarca lugares, tempos,
modos de estar e ser que são, continua-
mente, reinventados pelas gerações que
dela fazem parte e atribuem significados
a sua existência.
Hobsbawn (2012, p.8) diz ser uma tra-
dição inventada um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácita
Infinito. Julho de 2017. (Acervo pessoal).
ou abertamente aceitas; tais práticas, de
natureza ritual ou simbólica, visam incul- 2. Encontros na escola...
car certos valores e normas de comporta- Na escola também se procura trabalhar
mento através da repetição, o que implica a manutenção da tradição das histórias e
automaticamente, uma continuidade em características da comunidade, suas lutas
relação ao passado. e resistência. Práticas que marcam luga-
res, valores e normas de comportamento
que atravessam as gerações. Lutas e resis-
tência também se materializam em con-
quistas ali presentes. Duas escolas, uma
Cartografia da Existência. Julho de 2017.
(Acervo pessoal).
municipal e outra estadual, uma creche
em construção, um posto de saúde, cons-
trução da estrada de acesso à comunida-
de são alguns dos exemplos que revelam
ações de pessoas que acreditam em seu
papel e lugar na história como sujeitos e
não apenas como objeto, como enfatizou
Freire (2005).
Fico a me perguntar de que forma nós
professoras/es contribuímos para legiti-
Caminhos. Julho de 2017. (Acervo pessoal). mar as vozes das/os nossas/os estudan-

173
MARIA BETÂNIA E SILVA

tes e não silenciar suas histórias? De que ção, como nos alertou Paulo Freire.
forma, em nossas práticas pedagógicas, Como romper com as formatações invi-
contribuímos para o desenvolvimento do síveis que nos constituem e nos inserem
senso crítico em relação ao mundo, mas na cultura em que nascemos e crescemos?
também em relação aos silenciamentos De que forma também nós professoras/
existentes em nossas próprias comuni- es rompemos com os silenciamentos que
dades? foram naturalizados ao longo de nossas
histórias individuais e coletivas?
Questões que me fazem refletir sobre
o meu ser mulher, filha, professora, pes-
quisadora, mas, sobretudo, gente. Repito
as palavras de Paulo Freire (2005, p.53)
gosto de ser gente porque, inacabado, sei
que sou um ser condicionado, mas, cons-
ciente do inacabamento, sei que posso ir
Atitude. Julho de 2017. (Acervo pessoal).
mais além dele.
Deparo-me com professores que têm
estampadas em suas camisas as palavras
“coragem/resistência/ancestralidade/
cultura/história/identidade”. Muito mais
que palavras, representam o estar no
mundo, seu posicionamento, sua atitude
frente às adversidades da vida. Palavras
que questionam conhecimentos ociden-
Encontro. Julho de 2017. (Acervo pessoal).
talizados que nos foram impostos nos
processos colonizadores e que marcam O clima do sertão é curioso. Durante o
ainda as formas de pensamento e ação de dia o sol vem com toda a sua potência. O
muitos que aqui chegaram e aqui estão. ar é seco. Pouco venta. Ao entardecer, o
Questionamentos diversos que proble- vento que parecia escondido toca a pele
matizam os conceitos colonizadores, a com sua delicadeza. Mas, à medida que a
história única, hegemônica, que determi- noite avança a temperatura cai e é preciso
na a verdade única a ser engolida e trans- estar protegido do frio.
mitida num modelo bancário de educa- A necessidade da água não se faz ape-

174
MEMÓRIAS CARTOGRÁFICAS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

nas presente na vida da comunidade, da


natureza e todo o seu entorno.

Refúgio. Julho de 2017. (Acervo pessoal).

A água também é fundamental para to-


das/os nós professoras/es hidratarmos
a vontade, o desejo, o impulso de querer
continuar a contribuir para a formação e
transformação dos sujeitos. Em suas vo-
zes ressalta a necessidade de compreen- Particular. Julho de 2017. (Acervo pessoal).

der as próprias raízes, valorizá-las, torna-


-las visíveis, em um mundo que as excluiu Sinto fome, sinto sede. Uma colega de
durante muitos séculos de existência e trabalho me oferece uma maçã. Aceito! E
insiste em resistir nessas ações. Pensar-se a saliva já sente o sabor doce e suculento
como sujeitos no mundo e na história é daquela fruta! No entanto, ao meu lado,
imprescindível! encontro alguns adultos e uma criança.
Ofereço a maçã. Os adultos dizem não
3. Tecendo diálogos querer e agradecem. Entretanto, a criança
Os dias renascem e com eles a potência com os olhos brilhantes afirma seu dese-
da vida. Caminho pelo terreno pedregoso jo. Sua mãe o repreende com doçura, num
e que, aparentemente, parece dificultar a ato educativo. Eu, num ato pequeno de
existência. Mas, entre pedras e chão seco desprendimento dou a maçã aquele me-
a força da vida é evidente em sua mais nino que sai correndo com uma expres-
tenra delicadeza. são intensa de alegria como se tivesse re-
cebido um prêmio valioso. Penso comigo,
as crianças têm essa grandeza! Não pre-

175
MARIA BETÂNIA E SILVA

cisam de muito para se sentirem felizes! gem, diminuem o potencial e as vozes de


A chuva chegou! A paisagem muda mulheres que precisam também ser ouvi-
completamente. Do intenso azul do céu, das e fazer-se ouvir. (R)existir em espaços
vemos um cinza que encobre as monta- e lugares onde a mais absoluta solidão
nhas e que alivia a vegetação com as pe- parece insistir em permanecer no interior
quenas gotículas que suavemente a to- de si e, muitas vezes, quando se está em
cam. contato com o outro. (R)existir coletiva-
mente para que a força e a coragem trans-
4. Trançando fios borde para além dos muros, paredes,
Vivenciamos experiências diversas em cercas, estradas, relações, posições. (R)
atividades com grupos da comunidade existir para que dias melhores se aproxi-
que possibilitaram tecer histórias e afe- mem da realidade cotidiana e as futuras
tos. Respeito, liberdade, família, resistência, gerações possam encontrar horizontes
experiência foram palavras representadas mais promissores de respeito, dignidade,
e registradas como marcas da comunida- ética, solidariedade, equilíbrio.
de e dos desejos e sonhos que as mulhe-
res almejam. O ato do bordar, para além
de uma atividade manual, se configurou
como um lugar de encontro, de fortale-
cimento, de desabafo, de confiança. Ao
externar, “as ações da comunidade me man-
tém de pé”, uma das mulheres ressalta o
valor da coletividade, nutre a esperança
da vida e de dias melhores.

Gritos. Julho de 2017. (Acervo pessoal).

Mergulhar no universo do outro, com-


preender as marcas sociais que incrustam
no corpo relações de poder que em sua
maioria sufocam, aprisionam, constran- Resistência. Julho de 2017. (Acervo pessoal).

176
MEMÓRIAS CARTOGRÁFICAS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

(R)existir para acreditar que a passa- Referências bibliográficas


gem pelo mundo não é predeterminada, DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil
Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol.1
preestabelecida. Que o "destino" não é
São Paulo: Editora 34, 2011.
um dado, mas algo que precisa ser feito
DUARTE JR., João Francisco. O sentido dos
e de cuja responsabilidade não posso me sentidos: a educação (do) sensível. Curitiba:
eximir. Que a História em que me faço Criar Edições Ltda, 2010.
com os outros e de cuja feitura tomo par- FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São
te é um tempo de possibilidades e não de Paulo: Paz e Terra, 2005.
determinismo, como dizia Freire (2005, HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições.
p.53). São Paulo: Paz e Terra, 2012.
O rizoma (DELEUZE; GUATARRI, HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-
2014) se expande no olhar, no ouvir, no modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
sentir, nas trocas de saberes e sabores, RICHTER, Ivone Mendes. Multiculturalidade e
Interdisciplinaridade. In: BARBOSA, Ana
nos diálogos, no caminhar, a traçar ma- Mae (Org.). Inquietações e mudanças no en-
pas territoriais e a conhecer mais de perto sino da arte. São Paulo: Cortez, 2002.
o cotidiano de alguns membros da comu-
nidade.
Mas, o rizoma também me ajuda a
entender que somos responsáveis pelo
mundo que construímos para as futuras
gerações!

Esperança. Julho de 2017. (Acervo pessoal).

177
178
como pessoas que nunca tiveram acesso
Compartilhando a essa técnica, pode compreender que ao
oportunidades mesmo tempo em que pode ser fantástico
fazer vídeo, também é algo difícil, mas que
a satisfação e sensação de dever cumprido
JOCICLEIDE VALDECI DE OLIVEIRA1
ao final, superam todas as dificuldades.
É algo que me encanta ver a nossa his-
São tantas coisas a falar, momentos que
tória sendo contada por nós mesmo. Sa-
ficarão eternizados em nossas mentes. Fo-
ber que a cada dia mais pessoas sentem
ram trocas de saberes e sabores, encontros
orgulho de pertencer a esse povo e que
e reencontros, amizades que se fortalece-
necessidades de como contar a nossa his-
ram e novas que durarão sempre. Assim
tória pode ser superadas, ver como hoje
foi o Encontro das Artes, Saberes e Sabo-
as ferramentas para contar e fortalecer a
res no quilombo de Conceição das Criou-
nossa identidade pode ser muitas. Hoje
las. Para mim trabalhar com vídeo é algo
nos damos a oportunidade de se conhe-
maravilhoso, pois compreendo o quanto é
cer melhor, de saber que os nossos so-
importante que a nossa história seja guar-
nhos pode se tornar real e que podemos
dada, sei o quanto é importante que nos-
se superar sempre. É sempre bom saber
sos sentimentos sejam expressados e que
que temos parceiros, no Brasil e fora dele,
possa ser compartilhados dando oportuni-
que mesmo em meio as dificuldades, não
dade de que mais pessoas conheçam. Foi
deixam de se fazer presentes, que sonham
algo incrível, produzir vídeos tão bons em
junto, e concretizam esses sonhos juntos.
pouco tempo, mas tudo isso só foi possível
Por isso sei que cada abraço, cada bei-
pela competência e compromisso que tive-
jo, cada olhar, são verdadeiros e que as
mos uns pelos outros.
despedidas sempre tornarão a acontecer,
A produção desses vídeos com o dispo- pois sei que os reencontros fará parte des-
sitivo móvel, serviu para mostrar que com se grupo.
o que temos podemos fazer muitas coi-
sas, foi possível ver também, como nossa
juventude está conectada e que é possível
produzir informação de qualidade. Ver

1 Integrante do Crioulas Vídeo, Quilombo de Conceição das


Crioulas - Salgueiro/PE

179
180
gem, e pude conhecer pessoas de outros
Aprendendo e países. Passei quatro dias de oficina na
Ensinando na qual tive o prazer de desfrutar de paisa-
gens que não conhecia.
Oficina de Vídeo Nessa oficina eu aprendi muitas coisas,
como: filmar, fazer slide, editar vídeos...
ARTENALDO MIGUEL BARROS SILVA Outra coisa bastante importante que
CRISTIANY LOPES FERNANDES aprendi foi passar imagens e músicas ao
TAINARA OLIVEIRA AGUIAR 1 mesmo tempo no vídeo.
Gostei de todos os professores e pro-
Após vários dias de oficina chegou a fessoras. Espero um dia poder reencon-
hora de a gente colocar os conhecimen- trá-los, principalmente Felipe Peres.
tos adquiridos em prática. Inicialmente,
saímos para fazer uma pesquisa na co- Artenaldo Miguel de Barros Silva, estudante da turma
munidade na pedra do Matame (ponto do Projeto Avançar Ano II da Escola Municipal Qui-
lombola Professor José Mendes.
histórico da comunidade). O objetivo
da pesquisa era saber o porquê de ali ter
um pé da giganta, como dizem as pessoas A experiência de representar minha es-
mais velhas da comunidade. cola no I Encontro com As Artes, a Luta,
Na ida para o matame encontramos o os Saberes e os Sabores da Comunidade
senhor Andrelino Mendes, mais conheci- Quilombola de Conceição das Crioulas.
do como André Negão, e ele nos deu as Eu sou Cristiany Lopes Fernandes, estu-
dicas. Seguimos passo a passo por onde dante do 7º ano “A” da Escola Municipal
desce até chegar lá. Ao chegar no espa- Quilombola Professor José Mendes, locali-
ço nós fomos escalar a pedra para ver se zada no 2º Distrito de Salgueiro –PE.
achava o pé da preta, conhecido como pé Com muito carinho fui selecionada
da giganta, e na oportunidade fomos de- para participar, representar minha esco-
bater para saber se era realmente um pé. la no Encontro que tinha como tema: As
Bom, o que achei bastante significante Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da
foi que eu pude aprender um pouco sobre Comunidade Quilombola de Conceição
vídeo. Tive mais um pouco de aprendiza- das Crioulas, no período de 17 a 21 de ju-

1 Estudantes da Escola Municipal Quilombola Professor José


lho do ano de 2017.
Mendes. Tive a oportunidade de participar da

181
ARTENALDO / CRISTIANY / TAINARA

oficina de Técnica de Impressão e Dese- cerâmica.


nhos. A oficina aconteceu no espaço do Nós, enquanto estudantes, queremos
PETI, um ambiente aconchegante e pra- agradecer aos facilitadores e facilitadoras
zeroso. Nesta oficina aprendi técnicas de que tiveram a paciência e nos ajudaram
impressão e desenhos. O professor José no sentido de cada vez mais a gente cui-
Paiva que veio da Cidade do Porto em dar e preservar nossa cultura. Participar
Portugal e suas colaboradoras: Edite e Ja- dessa atividade foi bastante significativo
queline vieram da Capital Cearense. para nós, pois tivemos a oportunidade
Criou-se entre a gente um grande círcu- de conhecer também os benefícios que se
lo de amizade, sem contar com o apren- tem ao trabalhar com argila.
dizado que tive em tão pouco tempo de Outra coisa importante durante esse
convivência, posso dizer que foi muito trabalho foi viver experiências inovadoras
proveitoso. e enriquecedoras, pois no momento em
Eu, enquanto estudante participante que conhecemos e passamos a conviver
da oficina gostaria de deixar um recado com outras pessoas de diferentes lugares
para os próximos encontros. Gostaria sentimos o quanto é importante respeitar
que tivesse mais vagas para as escolas as mais diversas culturas diferentes das
para que outros estudantes tivessem a nossas.
oportunidade de participar também. Va- Gostamos muito !!!
leu, valeu muito pelas amizades e pelo co-
nhecimento adquirido, fatores que hoje
em dia na sociedade não tem preço. Tudo Participar da oficina de cerâmica foi
que aprendi naqueles dias ficou marcado muito legal. Aprendi muito. Aprendi
em mim para sempre. como é que faz bonecas de silicone. Nos-
A oficina de cerâmica foi muito impor- sa!! Aprendi coisas que eu não sabia.
tante, não só para a gente aprender fazer Fizemos bonecas de diversos tipos tais
as peças, mas também para que nós jo- como: barro, silicone e gesso. A oficina
vens não esqueçamos a cultura dos nos- de cerâmica me deu a oportunidade de
sos antepassados. aprender bastante. Conheci outras pes-
Esse trabalho veio para reafirmar nossa soas de vários lugares do nosso Brasil, e
cultura e nossa história de luta e resistên- de outros países, a exemplo de Portugal
cia, e ainda nos proporcionou o prazer de e Moçambique, destaco a participação de
aprender e a fazer diversos objetos com a Carol e José que vieram do Ceará e Agos-

182
APRENDENDO E ENSINANDO NA OFICINA DE VÍDEO

tinha, professora de cerâmica que veio de


Portugal.
Foi muito bom conviver com pessoas de
culturas e hábitos diferentes dos nossos.
Senti que houve uma troca de aprendiza-
gem que guardaremos por muito e muito
tempo.
Precisamos de mais momentos como
este que só tem a enriquecer nossos co-
nhecimentos e fortalecer a história de
luta da nossa comunidade.

Tainara Oliveira Aguiar, estudante do 8º “A” da


Escola Municipal Quilombola Professor José Mendes.

183
184
O peso do movimento
O fim do começo. Chego ao fim do começo - precisamen-
Aprender com o te dez anos depois da primeira vez que
respirei a comunidade quilombola de
Crioulas Vídeo Conceição das Crioulas.
Do continente africano para o sertão
na discussão pernambucano, viajei em Julho de 2017,
do audiovisual partindo de Dakar (onde acabava de
apresentar a comunicação “The Unachie-
comprometido, ved place of art education in the South”2)
para Conceição das Crioulas, com escala
o feminismo e de um dia em São Vicente, Cabo Verde,
onde moro. O motivo do meu movimento
a Comunidade unia dois encontros, aquele que empa-
Quilombola tiza o abraço do meu reencontro com a
comunidade em si, e o Encontro com as
Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da
RITA RAINHO1
Comunidade Quilombola de Conceição
das Crioulas.
As crioulas são fruto de uma deslocação
forçada que determinou a prepotência
colonial de exploração massiva de es-
cravos negros exportados de África para
a América ao longo de vários séculos. A
sua comunidade nasce da resistência a
toda a condição de que dessa história re-
sulta consequente. Por essa razão, o meu
Rita Rainho, Fotografia documental, 2017. movimento fica, por um lado, implicado
Viagem de Fortaleza a Conceição das Crioulas com gru-
po participante no Encontro com as Artes, a Luta, os
Saberes e os Sabores da Comunidade Quilombola de 2 Comunicação apresentada conjuntamente com Ana Reis
Conceição das Crioulas, Julho de 2017. na 3rd Internacional Conference of Dakar Institute of African
Studies – Institut d’Etudes Africaines de Dakar (DIAS –
IEAD), Valorizing African Cultural Heritage and Thought
III:Colonial Fantasies/Decolonial Futures - July 7th and 8th,
1 ID_CAI, i2ADS, Cabo Verde. 2017 | Dakar, Senegal.

185
RITA RAINHO

contra a história que negligencia e silen- Um contínuo chegar, desocultar


cia a dor e a destruição das suas culturas, A tal primeira vez em Conceição foi
e, por outro lado, fica associado, inevita- em 2007, no âmbito do envolvimento
velmente, a um corpo privilegiado pela do ‘movimento intercultural Identida-
minha condição de branca, académica e des’3. Viajei com o desconhecido na mi-
ocidental. nha frente, a comunidade, o território, o
Minha presença é, em si, um movimen- Crioulas Vídeo e a estranheza da própria
to intercultural, num gesto de incorpo- tecnologia do vídeo com que iríamos tra-
ração do desconhecido, da dúvida, num balhar.
tempo outro de relacionalidade agonística, Esse desconhecido e desconhecimento,
procurando a suspensão do exercício de embora desconfortante para quem está
poder do meu lugar. Nesta suspensão re- habituado a dominar as ferramentas e
side a potencialidade de deslocar do meu o contexto em que atua, acabou por me
pensamento o que nele já estava enrije- conduzir a um tempo de abertura. É esse
cido, desocultar a ação desgastada pela tempo de deriva de mim em Conceição
repetição, e provocar uma abertura de que me permite insistir num espaço de
reconhecimento do sentido do comum. ação comum, em que se confronta com a
Trata-se de um movimento de desocul- força da consciência política desta comu-
tar as minhas incertezas, incompletudes nidade quilombola face à a brutalidade
e o conhecimento da falta, da falha e do dos discursos hegemónicos ocidentais
fracasso que transporto do ocidente do- que terminam denunciando-se tanto pela
minante. prepotência económica e política como
pela sua falência social e ideológica.
O entendimento e compromisso com
a luta quilombola está sempre negritado
na comunidade, e necessariamente inun-
dou os vários momentos interculturais de
que fiz parte na comunidade com o Iden-
tidades, quer em 2007, 2008, quer este

3 O ID é um grupo orgânico criado em 1996 por artistas,


professores e estudantes ligados à Faculdade de Belas Artes
Rita Rainho, Fotografia documental, 2017. Ave num da Universidade do Porto e motivados pelas ações de inter-
açude do território de Conceição das Crioulas, Julho câmbio artístico com Brasil, Moçambique e Cabo Verde. O
de 2017. seu primeiro encontro com a comunidade foi em 2005.

186
O FIM DO COMEÇO

ano, 2017. Estas relações interculturais acarinhado em Conceição das Crioulas.


assumem o conhecimento e a partilha Estamos juntos na construção de histó-
não só de quem vai (quando o Identida- rias apagadas, no incentivo à escuta das
des se desloca à comunidade), como de vozes oprimidas, sejam elas os pobres, as
quem vem (quando as crioulas e crioulos mulheres, negros, índios, os LGBTQIA
de Conceição vêm a Cabo Verde, ou vão (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
a Portugal). O tecer destas relações, o fa- queer, intersex e assexual) num movi-
zer junto assume não um carácter dócil de mento só. O movimento é pela liberdade,
ajuda e solidariedade, mas de participa- pela justiça e pelas lutas de afirmação da
ção agonística por uma luta comum. As- posse de terra, pela educação diferencia-
sume o desvelar dos discursos ocidentais da baseada na afirmação identitária dos
que pela sua história detonaram esperan- povos, e pela democracia agonística radi-
ças e revoluções de liberdade, igualdade cal no desenho endógeno do seu por vir.
e fraternidade, forjando poderes mais e
mais invisíveis, diluídos na prepotência
do capital económico-financeiro que o
neo-liberalismo estratificou. Os encon-
tros são, por isso, de abraços, são de tra-
balho, são de ação estratégica para operar
as várias frentes de luta contra o consumo
desenfreado que alimenta o desejo do ter
Frame de vídeo documental da apresentação final dos
e do enriquecer, ocultando as diferentes vídeos produzidos no Encontro com as Artes, a Luta,
formas de opressão, e exterminando as os Saberes e os Sabores da Comunidade Quilombola de
Conceição das Crioulas, Julho de 2017.
formas de vida comunitária herdadas pe-
los antepassados. Laços e desafios da relacionalidade
O exercício de um contínuo chegar é O fato do meu envolvimento com Con-
facilitado pela confiança mútua, é moti- ceição das Crioulas ter sido, nos vários
vado pela atenção à necessidade de de- momentos de encontro, ligado ao audio-
socultação dos discursos de fracasso que visual, poderia conduzir-me a um discur-
nos conformam, e motorizado pela ação so em torno do empoderamento de uma
utópica no sul. Mas é também um exer- comunidade quilombola através do uso
cício de relação intercultural e agonística, desta tecnologia. Porém, através dele não
onde a discussão e a opinião têm lugar estaria apenas reproduzindo uma fala

187
RITA RAINHO

global de condescendência para com a acresce aos desafios, a responsabilidade,


comunidade infoexcluída? Atenta a esse mas também dota o grupo de uma alian-
risco, procuro entender alguns aspetos ça entre os princípios da luta quilombola
da penetração do audiovisual em Con- e a ferramenta audiovisual. É com esse
ceição das Crioulas, e da minha interação cunho que a prática do Crioulas Vídeo
com ambos, pretendendo contribuir para tem vindo a atuar. Inicialmente o grupo
o entendimento desta tecnologia no de- experimentou alguns formatos de nar-
senvolvimento da consciência e imagem rativa e linguagem mais experimentais,
complexa e plural comunitária. como foi o caso da curta Serra das prince-
É interessante considerar que esta sas, e posteriormente o grupo tem vindo
nossa penetração surgiu quando a co- a assumir registos de eventos comunitá-
munidade quilombola identificou a ne- rios, encontros estaduais e nacionais, as-
cessidade de formar um grupo jovem na sim como pedidos específicos da AQCC
área audiovisual. A AQCC – Associação onde a linguagem mais institucional/ jor-
Quilombola de Conceição das Crioulas nalístico-televisiva.
convida o Identidades para uma promo- Esta longa tradição do grupo veio atrair
ver uma oficina de produção audiovisual ainda projetos como o Tankalé, cuja parti-
que decorreu em 2005 por intermedia- cipação do Crioulas Vídeo, inicialmente,
ção do Centro Cultura Luiz Freire. Para e coordenação, posteriormente, foi de-
o Identidades foi marcante a experiência, terminante nos cinco anos de oficinas de
não só do ponto de vista humano, políti- vídeo em quilombos dos Garanhuns, Sal-
co, como se reconheceu imediatamente a gueiro, Triunfo e Orocó, em Pernambuco.
forte marca democrática da comunidade Nestas ações, parece-me determinante o
logo na escolha dos elementos dos jovens fenómeno de aprender a partir de si, onde
participantes. Dessa primeira oficina o evento pedagógico tem um sentido
nasceu o Crioulas Vídeo, um grupo qui- político muito vinculado à própria luta
lombola a partir de então com competên- da comunidade. Este evento ficou ainda
cias para a produção audiovisual na sua marcado por relações mais horizontais
comunidade. onde muitos jovens quilombolas experi-
Nascido da formação associativa da mentaram o vídeo, aprendendo com os
AQCC, o Crioulas Vídeo, assume desde seus oficineiros também eles quilombolas
então os princípios da luta quilombola - pressupondo aprender a partir dos seus
na sua produção audiovisual. Esse cunho valores comunitários, suas lutas numa

188
O FIM DO COMEÇO

relação de partilha inter-comunidades ressaltar que o grupo, herdando os valo-


quilombola. res de liderança feminina na comunida-
Ao nível interno, o Crioulas Vídeo de, se debate também com a dificuldade
tem vindo a sustentar as ações de resis- de envolver jovens mulheres que se assu-
tência da AQCC, onde esta se destaca já mam Crioulas Vídeo, juntamente com as
ao nível nacional e internacional pelas atuais integrantes. Esta dificuldade po-
diferentes frentes coletivas de trabalho, derá estar relacionada com o fato da área
mobilização política assentes nos valores do pensar/fazer audiovisual ser historica-
de participação e democracia praticados mente muito associada ao homem, fican-
ao nível local, de modo a atingi-los ao do reservado para as mulheres o papel de
nível das políticas públicas que atingem locução, entrevista, ou atuação (no caso
os quilombos. Como já referi, num mo- das ficções), não obstante a sobreposição
mento inicial a assembleia comunitária da vinculação permanente do papel das
teve um papel determinante na escolha mulheres à esfera doméstica, educativa e
dos elementos do grupo Crioulas Vídeo. reprodutiva.
A sua história como grupo, tem revelado
oportunidades importantes também na
geração de renda, nomeadamente pelas
características dos projetos de formação e
/ou reportagem, o grupo tem conseguido
geração de renda. No entanto, isso não
lhes permite dedicação exclusiva, sendo
que a maioria dos integrantes tem outras
atividades profissionais, como profes-
sor(a) nas escolas da comunidade, assu- Rita Rainho, Fotografia documental, 2017.
Oficina de Vídeo, visionamento de Serra das Princesas,
mindo todos eles responsabilidades nos curta de Crioulas Vídeo. Encontro com as Artes, a Luta,
os Saberes e os Sabores da Comunidade Quilombola de
diferentes núcleos de frentes de luta da Conceição das Crioulas, Julho de 2017.
AQCC. Este dado apenas acentua o fato
de o audiovisual ser mais uma ferramenta Também as dinâmicas colaborativas, de
para a luta e exigir a mobilização de mais autor coletivo, e participação efetiva nas
jovens quilombolas capacitados e mobili- decisões e realização de tarefas no Criou-
zados para o pensar/fazer que tanto ocu- las Vídeo, assim como nas oficinas de ví-
pa o Crioulas Vídeo. É importante ainda deo, são objeto de discussão permanente

189
RITA RAINHO

e de contínua preocupação. Esta atenção com este sentido político releva oportu-
deve-se à tradição democrática da comu- nidades únicas de aprendizagem mútua.
nidade no modo de organização demo- Refiro-me a três aspetos, ao modo de tra-
crática da mobilização coletiva, e também balhar, à afirmação do sentido político e à
à sensibilidade relativa às questões das abertura para a aprendizagem a partir de
relações de poder entre homens e mulhe- si. Sobre o modo de trabalhar é interes-
res, jovens e mais velhos, bem como pro- sante partilhar a experiência de 2008 em
fissionais e amadores no audiovisual. que o próprio objeto audiovisual reflete
o debate e a experimentação sobre como
Crioulas Vídeo, uma fonte de escuta e se faz, ou pode fazer, vídeo. Nesse ano,
olhar por dentro quando o Identidades chegou a Concei-
Nem seria preciso rever os vídeos que ção, o Crioulas Vídeo tinha uma pergunta
produzimos juntos, Crioulas Vídeo e bem objetiva para nos colocar. Como se
Identidades, porque há frases que nos faz um roteiro? Os primeiros dias foram
marcam e são por todos lembradas. Mas de debate intenso, trabalhando todos
para que fique mais perto, cito algumas (independentemente se costumam ser
falas ao longo deste texto. câmara, direção, ou outra função) no
Após dois anos da primeira oficina, mapeamento de possibilidades de rotei-
em 2005, Joseane (um dos elementos do ro. Por fim, chegamos ao acordo de con-
Crioulas Vídeo) já afirmava perante a câ- tinuar discutindo, mas no fazer. E é por
mara “Tivemos a oportunidade de contar isso que começa a curta metragem com
a nossa história através do audiovisual um grupo de caminhantes (incluindo eu)
(…) desenvolvemos a técnica em prol da que ao chegar a um cruzamento debate:
causa quilombola. Hoje temos autonomia
para planejar, capturar, editar e partir daí, - Vamos por este caminho, aqui que é
melhor, é mais aberto e tem mais espaço,
divulgar os nossos trabalhos, e passar corre menos perigo…
com segurança os conhecimentos adqui-
ridos.” Esta fala reforça a afirmatividade - Bom, eu acho que é melhor discutirmos
da ação de negritar os objetivos e a mis- para decidir o melhor caminho.
são do Crioulas Vídeo e evidencia o modo
- Por aqui não, por esse caminho vai ser
como está presente a luta e o compromis- bem melhor.
so da pessoa e do coletivo em Conceição
das Crioulas. Trabalhar com um grupo - Não, vamos por aqui.

190
O FIM DO COMEÇO

A discussão neste formato, sobre as perspetiva sobre a fragilidade do estrutu-


possibilidades de caminhos que se avis- rado, da ordem estabelecida, do modo de
tavam, ficou por ali. Porém o desenvolvi- fazer audiovisual, de discursar sobre a co-
mento da narrativa retrata a continuação munidade. Essa dúvida, essa suspensão
da procura de caminhos, de possibilida- do autoritarismo da linguagem ocidental
des em torno dos modos de fazer audio- que eu represento, fica em evidente debi-
visual, contando as histórias e os anseios lidade, e passa a ser sintomática de uma
da comunidade. As jovens meninas fil- atitude coletiva que quisemos trabalhar.
maram, fizeram som, trocando-se os ha-
bituais papéis no grupo. Dos painéis de
mapeamento das possibilidades iniciais
de roteiro, foram surgindo interesses e
motivações de linguagens e estratégias
que pudessem contar a história da co-
munidade estar, ela própria, procurando
o seu roteiro. E assim, fizeram-se cenas
Frame do Vídeo coletivo “Cartão Vermelho para
de entrevista relâmpago, montou-se um o machismo”, 2017. Oficina de Vídeo no âmbito
teatro de bonecas de caruá para recuar no do Encontro com as Artes, a Luta, os Saberes e os
Sabores da Comunidade Quilombola de Conceição das
tempo das histórias, e foi na edição que Crioulas, Julho de 2017.
se coseu toda a procura numa curta me-
tragem. Joseane termina o vídeo dizendo Embora tenha sido sempre um fator
que “(...) a comunidade já percebeu que transversal à experiência, a afirmação do
precisa se ligar com outras comunidades e sentido político (o segundo aspeto que
com outros saberes” e segue-lhe a fala de quero focar) teve uma incorporação dis-
Jocicleide dizendo que “foi procurando o tinta numa das produções audiovisuais
roteiro que fizemos este documentário.” da oficina deste ano. Refiro-me à curta
A força destas falas é que estão ancoradas “Cartão vermelho para o machismo” pro-
na suas experiências, no fazer conjunto duzida através dos dispositivos móveis
e é por isso que a curta ficou intitulada dos estudantes participantes da oficina.
“Procurando um roteiro, a identidade A comunidade tem orgulho nas mulhe-
quilombola de Conceição das Crioulas.” res, pela luta e coragem que ao longo das
Este vídeo, com dois momentos ficcionais várias gerações têm revelado ser causa
que interrompem o documental, dão uma maior na mobilização comunitária para

191
RITA RAINHO

as conquistas de melhoria de vida e di- Uma das “atrizes” no making off da


reitos quilombolas. Pese embora esse le- curta desabafa:
gado, bem como o discurso que a ele está
associado, no seio da comunidade vivem- “Mesmo sendo fingimento, eu chingan-
do, criticando uma mãe… Meu filho,
-se situações de machismo e preconcei-
eu apoio que ele brinque com coisa que
to. Assim, um dos subgrupos da oficina dizem ser de menina. Foi muito difícil,
de vídeo no Encontro de 2017, levantou constrangedor, porque eu acho muito
esse problema e quis tratá-lo com atenção bonito a iniciativa do futebol feminino
particular no que diz respeito aos cons- (…). Porquê foi como se eu tivesse dizen-
do uma coisa que atingisse as meninas,
trangimentos da prática do futebol fe-
e foi dando um frio na barriga, porquê a
minino. E assim nasceu o impulso para a gente leva muito tempo para conquistar,
produção deste grupo na oficina. Alguns contrair uma opinião, tirar o machismo,
impasses levaram o grupo a um processo o preconceito, e depois a gente vai fala
desviado da sua zona de conforto do pró- assim? (…) e aí eu fiquei pensando nos
meus alunos, se eles assistissem o que
prio Crioulas Vídeo (também envolvido eles iriam pensar, nem combina comigo,
na orientação do grupo de estudantes). deu um gelo no peito.”
Segundo os elementos do grupo, as pes-
soas da comunidade não dariam a cara e A tradição de reportagem e entrevista
a fala sincera relativamente ao que pen- levou o sujeito da fala que responde a uma
sam e fazem para com o futebol feminino. pergunta ou faz seu depoimento para a
Assim, tendo em conta essa intimidade câmara, a se habituar a um modo de ante-
do machismo na comunidade, bem como visão do conteúdo audiovisual de que fará
a delicadeza do tema, o grupo optou por parte. Incorporar uma narrativa ficcio-
aventurar-se pela mistura da ficção com nal, cuja linguagem pressupõe a criação
o documental. Partindo da vivência de de novos sujeitos, provoca o surgimento
uma das integrantes do grupo, jogadora de novas falas, derivadas do “real”, mas
de futebol, e recorrendo a colegas, mães e não necessariamente a este presas. Em
vizinhas defensoras do futebol feminino todo o processo de produção o grupo se
e da liberdade de escolha das ocupações revelou, revelando a própria comunidade,
não só dos meninos e homens, como das num movimento de abertura determi-
meninas e mulheres, o grupo construiu a nante na luta e na adoção de estratégias
narrativa e mobilizou, essas mesmas pes- múltiplas para a mobilização coletiva. Pa-
soas para atuarem nas várias cenas. rece, portanto, determinante que a afir-

192
O FIM DO COMEÇO

mação do sentido político seja de carac- de relacionalidade agonística. O valor des-


ter transversal à luta quilombola. A meu se tempo é uma das grandes aprendiza-
ver, este sentido político ganha enorme gens que iniciei com a comunidade. É um
relevância e singularidade com a abertura tempo de reforço do comunitário, mas de
da comunidade ao terceiro aspeto, o da reconhecimento e valor pela diversidade
aprendizagem a partir de si. A curta que que o compõe. A tendência e a tentação
acabo de referir, sublinha, a meu ver, a que nos ocupam no dia a dia, são de al-
importância da representação da luta que gum modo interrompidas quando nos
vai para além da luta quilombola na sua sujeitamos a esse tempo de relacionalida-
relação com o exterior, nomeadamente de agnonística, que me parece tão patente
com as instâncias governamentais. Esta nestes encontros de trabalho e relação in-
luta, que se trabalha com “Cartão verme- tercultural. Também a prática do audio-
lho para o machismo”, contribui inevita- visual, na sua essência de escuta e olhar,
velmente a discussão sobre o feminismo, fomenta e responsabiliza as imagens e
na sua relação com a herança de lideran- ideias que, por um lado transportamos, e
ça feminina, mas de um ambiente social que, por outro lado, produzimos.
no geral machista no seio da comunida-
de. Portanto, contribui para o reforço de
um sentido comunitário que dignifique a
sua especificidade quilombola, mas que
construa uma consciência de pluralidade,
desenvolvendo a sua cultura de liberdade
e justiça para com os mais fracos/opri-
midos, sejam eles as próprias mulheres,
Rita Rainho, Fotografia documental, 2017.
os negros, índios, LGBTQIA ou outros. Oficina de Vídeo no âmbito do Encontro.
Entender-se a si, como uma comunidade
complexa, múltiple e plural, exige do en- À procura de processos de relacionali-
tendimento de cada um, da comunidade e dade e audiovisual comprometidos
da própria a ação política, o crescimento Atendendo a estes aspetos temos sem-
dessa consciência de um comum que não pre em conta que o território de Concei-
é homogéneo nem hegemónico. Desse ção das Crioulas é representativo de si
desafio, faz parte aquilo a que anterior- próprio, e tem já um legado de práticas
mente me referi como um tempo outro participativas e democráticas no que toca

193
RITA RAINHO

às tomadas de decisão comunitárias. Esse Audiovisual, um espaço de simultânea


valor é constitutivo na relação ID – CC visibilidade e apagamento
e define a necessidade de suspensão de Desde a impulsão dos media no Bra-
nosso poder, discurso e vícios ocidentais sil que estes têm assumido um papel de
anteriormente referida. Deste princí- silenciamento do problema da raça e do
pio de suspensão política, tem emergido pensar colonialista. Essa tendência tendo
uma possibilidade de escuta por parte do colocado hoje um desafio ao sector audio-
Identidades, manifestada ao longo destes visual que abrange não só na consciencia-
vários anos, compondo uma relação com lização do seu papel na representação das
a comunidade de confiança, entusiasmo e várias minorias, como no modo como são
entrega à luta quilombola. representadas, por quem são represen-
Por isso, nas oficinas de vídeo deste tadas e para quem são representadas. A
ano no Encontro com as Artes, a Luta, indústria audiovisual tem demonstrado
os Saberes e os Sabores da Comunidade o seu gigantismo, nas suas várias facetas
Quilombola de Conceição das Crioulas, de permeação da população, desde o ci-
a relação que se estabeleceu, foi interme- nema, a televisão, a internet, os telemó-
diada pelo Crioulas Vídeo e teve como veis, revelando um espaço determinante
base a escuta. Esta escuta não é um pro- no que toca às várias indústrias contem-
cesso passivo, entendo-a aqui como pro- porâneas. O Brasil herdou importantes
cesso audiovisual comprometido. Com políticas públicas negras nos vários sec-
isso quero dizer que, a interculturalidade, tores, como educação e cultura, mas vive
a diferença geracional, de género, classe, atualmente um momento que fragiliza
estão presentes e precisam fazer-se escu- essas conquistas, o que acentua a neces-
tar para que no processo audiovisual haja sidade do sentido coletivo de iniciativas
um comprometimento com os princípios de resistência. Se a demanda da popula-
democráticos na luta quilombola. A di- ção negra, das mulheres, dos LGBTQIA,
ferença, a heterogeneidade, as próprias dos pobres haviam para cada grupo con-
minorias tendem a ficar na sombra da quistado alguns passos no que toca a um
forte aliança do racismo, do sexismo e do poder representativo, ao emprego, a fazer
capitalismo, atingindo o sentido comum parte das decisões, hoje tornou-se insufi-
da comunidade quilombola, a principal ciente. Portanto, no audiovisual, não se
força da sua luta. trata da disputa de imagem, narrativa e
poder, mas de desvelar todo a maquina-

194
O FIM DO COMEÇO

ria alienante que quer velar o racismo e o


elitismo na consumo de uma sociedade
individualista, consumista e ..
Parece premente a união das várias mi-
norias para uma atenção e ação sobre as
estratégias históricas de desmobilização
da construção coletiva das diferentes co-
munidades, como o apagamento pelo ra-
cismo, pelo patriarcado de classe média e
de privilégio branco.

Vivo o que sou. Sou o que vivo. Bem


haja a todos os que somos parte da luta,
por este fim do começo.

195
196
que criaram connosco a Oficina de Dese-
Sobre a partilha, nho, a todos o que lá estiveram e participa-
as trocas e os ram; o que aprendi e o porquê estão ainda
em fase de maturação, trago uma certeza,
deslocamentos a de pertencer a um movimento maior do
que uma identidade pessoal e na constru-
no Encontro em ção de um compromisso crítico e de acções
Conceição das partilhadas, ainda sem querer delimitar
pela força da própria experiência vivida e
Crioulas ainda por viver:

“Escrever é pois «mostrar-se» , dar-se a


LUÍSA MAGALHÃES1 ver, fazer aparecer o rosto próprio junto
ao outro. E deve-se entender por tal que
Escrevo segundo um Encontro, uma (...) é simultaneamente um olhar que se
deslocação, não só geográfica e temporal, volve para o destinatário (por meio da
mas sobretudo de uma identidade, e to- missiva que recebe, ele sente -se olhado)
e uma maneira de o remetente se oferecer
dos os medos que isso acarreta, escrevo
ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz.
na partilha de reflexões do que possa ter De certo modo, (...)proporciona um face-a
aprendido, levado e colhido; sobre um sal- -face.” (Foucault, 2006, 149-150)
to rumo ao desconhecido, assumindo as
fragilidades de ainda não pertencer, ainda Esta viagem começa no que já se passou,
que valorizando a experiência na forma de sobre o Encontro com as artes ,a luta,os
colectivo; segundo uma herança do Iden- saberes e os sabores da Comunidade Qui-
tidades, das partilhas anteriores, que leva- lombola de Conceição das Crioulas, em
ram ao desejo da exploração e das vivên- Julho de 2017. E do que desse encontro
cias, dos intercâmbios e destes momentos surge como uma reflexão, na consequência
de Encontro em Conceição das Crioulas. de um deslocamento que recria a minha
O que recolhi desta experiência agrade- identidade, aqui e lá.
ço a quem nos acolheu na comunidade, às A minha ida para lá é em si um primeiro
mulheres da AQCC, às crianças e jovens momento que implicou um afastamento
de mim própria, rumo a uma entrega da
1 Investigadora do ID_CAI, i2ADS. Estudante do Programa
Doutoral em Educação Artística da Universidade do Porto/
minha fragilidade em relação a mim e aos
Universidade de Lisboa. outros.

197
LUÍSA MAGALHÃES

Estando lá pela primeira vez, no con- do Identidades, foi crescendo um medo


texto de um encontro grande de pessoas, bem distinto. Por um lado, que, ao ten-
grupos e entidades académicas externas à tar não levar uma agenda própria sobre
comunidade, a experiência foi complexa o que é o desenho, ou como se desenha
e profunda, ao integrar um conjunto de e ensina, e ao mesmo tempo, do fracasso
acções e improvisos numa criação mo- de não conseguir lidar com essa amplitu-
mentânea do grupo da e na comunidade e de do desconhecido. Por outro, que nes-
o meu posicionamento, face ao vivido em sa falha não se justificasse a minha ida,
colectivo, à experiência ainda forasteira querendo colaborar dentro do projeto. E
mas partilhada, à descoberta do que é a no fundo, este medo que se relaciona com
comunidade quando falamos de Concei- assumir a construção de uma identidade
ção das Crioulas: que não me é confortável ou conhecida,
como uma presença estrangeira, não pela
“Do ponto de vista da experiência, o via turística, mas pela implicação num
importante não é nem a posição (nossa
maneira de pormos), nem a “o-posição”
território que não me pertence. Foi nesta
(nossa maneira de opormos), nem a “im- fragilidade que assumi um compromisso,
posição” (nossa maneira de impormos), um esforço de me deslocar das minhas
nem a “proposição” (nossa maneira de próprias imposições, uma abertura do
propormos), mas a “exposição”, nossa
gesto e dos sentidos.
maneira de “ex pormos”, com tudo o que
isso tem de vulnerabilidade e de risco.” Ao participar e colaborar na organi-
(Larrosa, 2002: 25) zação da Oficina de Desenho, a viagem
começou ainda na preparação, ao tentar
Estando mais presente na Oficina de levar apenas matérias e materiais e deixar
Desenho, com um pé na de Cerâmica, em Portugal currículos e metas, no fundo,
as lembranças giram mais em volta da o papel de professora e de artista, no qual
Associação Quilombola de Conceição me relaciono com o desenho. E abrir es-
das Crioulas (AQCC), da sua sede, das paço para o que fosse acontecer, o núme-
mulheres que a criaram e ainda dos par- ro de pessoas a participar, os exercícios,
ticipantes da oficina e de todo o trabalho, as preparações, os resultados. Assumir
conversas, desenhos e momentos que lá uma oficina intercultural na sua intenção
se passaram pela força da presença. primária, a da partilha, entre nós, do que
Ainda antes da viagem, durante as reu- é o desenho e como se pode fazer, com
niões de preparação com o resto do grupo quem esteja e onde for.

198
SOBRE A PARTILHA, AS TROCAS E OS DESLOCAMENTOS NO ENCONTRO

É difícil explicar esta intenção sem ficar nha finitude em relação a realidades des-
por um sentido ingénuo de que tudo pode conhecidas, num deslocamento de mim
acontecer. em relação à minha condição de onde
A ideia é que no esforço dessa abertu- nasci, onde vivo, o que aprendi.
ra, possa haver partilha acima de tudo e E nessa identidade europeia, branca e
desenho como forma da sua expressão. onde sou mulher em mundo de homens,
Fazer das experiências conjuntas através torna-se difícil o desvio, ante o mito da
do desenho um conjunto de processos do salvação enquanto missão ocidental,
que cada um deseja: quanto mais não seja, a minha própria.
Daí que este encontro tenha sido tão im-
“O organismo atua sobre as coisas que o portante, ao pôr em causa quem sou em
rodeiam, valendo-se de sua própria estru-
tura, simples ou complexa. Em sua con-
relação aos outros, ao despir uma inten-
sequência, as mudanças que produzem ção de medir os acontecimentos, contro-
nesse meio circundante reagem a sua vez lar as acções, impôr poderes.
sobre o organismo e sobre suas ativida- Fui também na procura das sombras,
des. O ser vivente sofre as consequências das entrelinhas da História, das realida-
de seu próprio agir. Esta íntima conexão
entre agir e sofrer ou padecer é o que cha- des que não cabem na luz branca da nossa
mamos experiência. O agir ou o sofrer, civilização. Com a consciência da minha
desconectados um do outro, não consti- condição, onde questionara já esse lega-
tuem nenhum dos dois a experiência. [...] do, o nosso legado ocidental, essa procu-
Uma coisa vem a sugerir e a significar a
ra está intrinsecamente ligada ao que não
outra. Temos, pois, uma experiência em
um sentido vital e significativo.” (Dewey, consta numa sociedade globalizante.
1958:110-1). E a globalização, que abarca tão pouco
de nós. Como fenómenos que hegemoni-
Em relação ao contexto geral do Encon- za um determinado tipo de conhecimen-
tro, fui disposta a ouvir. to válido, de valores e práticas políticas,
Tendo entrado para o Identidades uns económicas e sociais ocidentais, a globa-
meses antes, com o intuito de integrar lização como conceito, mais não faz do
um conjunto de acções interculturais que que nos afastar da nossa própria Histó-
permitam uma reflexão posterior sobre o ria. Porque dizer nos manuais escolares
fenómenos em vários contextos e comu- que Portugal foi dos primeiros países e
nidades, este primeiro encontro foi acima abolir a escravatura e que hoje em dia os
de tudo uma experiência de pensar a mi- países europeus não “têm” colónias é um

199
LUÍSA MAGALHÃES

afagar da consciência do nosso passado. pansiones del mercado y los fracasos de


Não se refere às comunidades oprimidas, lapolítica,está in corporando las pregun-
tas por la interculturalida da disciplinas
aos grupos minoritários perseguidos, fala
que no usaban la expresión y reclaman
de uma classe opressora que decidiu ser nuevos horizontes teóricos.” (Canclini,
melhor dentro dos seus próprios quere- 2004:20)
res. Que escolhe dominar de uma outra
forma. E o que fica de fora é o mais im- A globalização implica-nos numa con-
portante, é o que nos une num legado tínua colonização do mundo, já não pelo
que partilha raízes culturais, poderes e ataque directo a comunidades e grupos,
responsabilidades apagadas. Há um con- mas pelo espectro alargado de imposição
senso generalizado de progresso das civi- de um sistema neo-liberal, onde o capi-
lizações, na perspectiva de uma democra- tal comanda o ensino e saberes, um ideal
cia que tem tanto de globalizadora, numa suposto de indivíduos empreendedores,
afirmação tida como universal, ao ponto numa acção contínua de competição con-
de acolher tudo e todos, não havendo tra o outro. E sobre o tempo que abarca a
comparação, porque não há espaço para distinção entre o eu e o outro, nesta re-
o Outro, falando de identidades culturais lação inimiga, não é possível a contrução
diversificadas, grupos minoritários, civi- de uma identidade cultural distinta, nas
lizações inteiras que são só erradas. Esta suas possíveis ramificações e diferenças,
uniformização simplifica e reduz a reali- na partilha de experiências e saberes.
dade a uma só escala, uma só cultura, um Mouffe (2007) assume a impossibili-
só tipo de conhecimento. Acolhe em si a dade de uma democracia sem controvér-
hipocrisia de não lidar com os insucessos, sia, mantida numa relação de inimigos,
os fracassos, as opressões. Impõe uma que postula uma exclusão da identidade
solução de consenso pacífico, onde se do outro. Defende um modelo de demo-
escolhe não entender os conflitos e ten- cracia pluralista, cujos agentes deixam
sões existentes “à nossa volta”, porque de
de ser inimigos, sendo adversários, “Di-
facto, desta perspectiva, nos são alheios,
ferente dos cidadãos que procuram re-
não nos pertencem, estão fora dessa di-
solver problemas individuais dentro das
mensão global:
relações hegemónicas existentes, os ad-
“El crecimiento de tensiones en todas
versários políticos procuram estabelecer
las áreas de la vida social, en interaccio- diferentes relações hegemónicas em con-
nes masivas entre sociedades,en las ex- junto.” (Mouffe, 2000:9), por uma hege-

200
SOBRE A PARTILHA, AS TROCAS E OS DESLOCAMENTOS NO ENCONTRO

monia socialista que se crê ser enfim uma ma.”(ibidem:23)


democracia, ciente dessa sua hegemonia A afirmação de uma identidade que se
e na capacidade de se recriar enfim, im- reconhece na sua fragilidade de não ser
pondo nesta acção um questionamento única e exclusiva, onde os campos se alar-
acima de tudo. gam para além de conceitos bipolariza-
Esta alteração de sentido em relação dos, questiona uma forma de apropriação
ao outro permite um diálogo e abertura e reprodução cultural própria da socieda-
sobre a argumentação em si, o que dife- des hegemónicas ocidentais.
re em valor e não sobre uma identidade Cria-se um espaço de experimentação,
pessoal, expandindo o campo identitá- onde as partilhas de experiências, a pro-
rio à complexidade social e divergente de dução em volta dos produtos passados
uma sociedade democrática, “A aceitação e possibilidades presentes, onde é pos-
do Outro não consiste meramente em sível desconstruir um conceito social de
tolerar as diferenças, mas em celebrá-las multiculturalimo e pluralismo (Canclini,
positivamente, uma vez que se reconhece 2004), que disfarçam uma visão genera-
que, sem alteridade, não é possível afir- lista e etnocêntrica sobre a presença do
mar identidade alguma.” (idem:23) outro, a partir de um ponto de vista onde
Como perspectiva crítica de um sistema só há uma cultura (nas suas várias nuan-
político que pretende problematizar em ces, mas sobretudo nacionalista, ociden-
vez de solucionar, a autora propõe uma tal, branca, masculina), segregando as
outra perspectiva sobre um padrão que, minorias para um segundo plano sem
de tão existente, é considerado sem al- pertenças, validação, ou identidades.
ternativa e que parte sempre dos agentes, Transportando uma realidade onde
através da sua participação. Deste ponto se confronta uma democracia falida por-
de vista, a relação entre indivíduos não que ao abrigo dos moldes capitalistas, a
carece de poder, mas transforma-a na sua comunidade de Conceiçao das Crioulas
génese, na inclusão de um outro sentido, assenta a sua práxis na apropriação da
de uma outra finitude, que começa pela: sua identidade, no convite à partilha e
“(...) aceitação do Outro [que] não con- reflexão, na crítica e na luta constantes
siste meramente em tolerar as diferenças, para fora do anonimato cultural que se
mas em celebrá-las positivamente, uma impõe na sociedade hegemónica, rumo a
vez que se reconhece que, sem alteridade, uma aprendizagem relacional intercutu-
não é possível afirmar identidade algu- ral, onde

201
LUÍSA MAGALHÃES

“La cultura se presenta como procesos do compromisso na luta, no diálogo, nas


sociales,y parte de la dificultad de hablar acções.
de ella deriva de que se produce ,circula
y se consume en la historia social.(…)
Nessa produção e validação da sua
Muestran cómo un mismo objeto puede identidade cultural, a educação tem um
transformar se através de los usos y rea- espaço e métodos únicos, construídas
propiaciones sociales. Y también cómo, al numa metodologia de acção-reflexão,
relacionarnos unos com otros,aprende- numa abertura ao diálogo e à participa-
mos a ser interculturales.” (idem, 2004
:34) ção, que vai muito além dos indivíduos
que mais participam quotidianamente na
Na procura do entendimento do Qui- Escola – a participação é em si comunitá-
lombo de Conceição das Crioulas, pela ria, o que implica todos os interessados.
luta da comunidade pelas suas terras, Sobre a reflexão do que se deve ensinar
pelas suas raízes, pela sua identidade. na escola, o que são espaços de apren-
A narrativa desta comunidade sente-se dizagem, muito mais além do escolares,
em tempo e espaço presentes, porque da como inserir no contexto escolar a Histó-
partilha em comunidade do legado se ria do(s) Quilombo(s) e mais do que isso,
praticam acções contínuas de reflexão, de como produzir a sua continuidade com os
consciência e de luta. alunos, assumindo a figura de professo-
É parte integrante das raízes desta co- res/professoras e dos estudantes através
munidade, desde a sua fundação até aos da sua participação na comunidade e por
dias de hoje, uma prática de luta que isso, na aquisição, escolha, reflexão e prá-
molda e constrói a sua identidade, como tica do conhecimento.
exemplo de força que desconstrói o mito Na curta-metragem “A arte das Escolas
da globalização como algo natural e evi- da Comunidade” (Crioulas Vídeo, 2014),
dente porque se opõe. Nas suas suas ac- um grupo de professoras debate o percur-
ções enquanto comunidade, o exercício so feito e a fazer sobre a Educação Dife-
da resiliência e a falta de conformação renciada e a importância que tem para a
com o maioritário e opressor faz com que comunidade, tendo em conta que o currí-
da tradição se parta para uma acção-re- culo nacional não contempla a realidade
flexão não só num domínio da intercul- dos quilombos e onde há um distancia-
turalidade, como num assumir de valores mento das realidades que não se revêm
próprios, independentes, contra o capi- na sociedade maioritária:
talismo e a hegemonia vigentes, a favor

202
SOBRE A PARTILHA, AS TROCAS E OS DESLOCAMENTOS NO ENCONTRO

“A gente sabe que a escola nunca foi pen- tenções de fechar o conhecimento sendo
sada nem voltada para a gente. Pobre, apenas sobre Conceição das Crioulas.
negro, negra da zona rural, a escola foi
pensada com um objectivo e aí eu não
Perguntam-lhe:
vejo muita diferença do que é hoje não. Se
a gente fosse a pegar a educação formal, “Vocês vão só estudar a História de Con-
porque hoje eu vejo a educação formal ceição? Estão criando guetto. Não é isso,
como alienadora.” (AAVV, 2014:’00:59) a gente quer também estudar Conceição,
mas a gente quer e muito ter outros co-
nhecimentos (…) não achando que aqui
O longo caminho já percorrido para é inferior . A gente precisa de conhecer
integrar uma educação diferenciada, a nossa realidade, o nosso local, a nos-
que integre a História de Conceição das sa história, porque ela é tão importante
Crioulas, um calendário alternativo que quanto as outras e para nós ela é mais
importante” (idem, ’14:59)
contemple os dias de relevo para a comu-
nidade, a capacidade de construir par-
ticipativamente as narrativas, mostra a A consciência de uma identidade que
capacidade de resiliência e de resistência ao ser construída e estar presente na Es-
da comunidade. Ainda há muito para per- cola, como está na comunidade, assume
correr, muitos objectivos e desejos de mu- um papel importante na relação com o
dança, como realidade assente de que o ensino formal, pela exigência que seja ac-
seu desenvolvimento é o que forma a par- tualizado em termos dos conhecimentos
ticipação e assim, que a luta é contínua. das directrizes nacionais, em constante
Ainda hoje é uma luta, as professoras de- diálogo e consciencialização das culturas
batem em roda e relatam ocasiões onde onde se insere. Implica uma mediação do
foi considerado uma ofensa, um conflito, que é dado como imposto e da crítica que
como uma rejeição à sociedade brasileira, se constrói sobre isso mesmo:
não as directrizes nacionais.
“É bem verdade que certas coisas, a
Um dos desafios que entretanto é colo- saber, as ideias, exercem uma função me-
cado expõe um fundamento importante diadora. Mas só uma lógica distorcida e
de clarificar, o facto de que a educação falha é capaz de afirmar que, pelo fato de
diferenciada não se pretende exclusiva uma coisa ser mediada, ela não pode ser
e fechada em si; será a chave, a reflexão imediatamente vivenciada, o que ocor-
re é o inverso. Não podemos apreender
dinâmica, para que seja intercultural. uma ideia, nenhum órgão de mediação,
Uma professora relata uma das vezes em não podemos possuí-la em sua plena for-
que foi questionada relativamente às in- ça, enquanto não a sentimos em termos

203
LUÍSA MAGALHÃES

afectivos e sensoriais, tanto quanto se um carácter estético sobre esta acção.


ela fosse um odor ou uma cor.” (Dewey, A Educação Artística implica desta
1958:235)
forma uma experiência estética interna
onde, na sua apropriação pessoal, é inca-
E desta apreensão sobre a certeza de
paz de ser individualizada. Não a apren-
que a única inclusão identitária nos espa-
dizagem em si, mas o sublime, o desafio
ços de aprendizagem passa pela Educação
Diferenciada, participativa, colaborativa, de aceitar algo alheio, que nos revolve e
em constante movimento e produção, transforma a nós, em relação ao que nos
que se abre não só a dimensão das rela- rodeia. É mediador do ser, do ego e das
ções interculturais, como à estética, à suas interacções:
educação artística:
“When the arts genuinely move us, we
“(...) a gente fala muito sobre a questão discover what it is that we are capable of
da gestão diferenciada e Mónica disse – experiencing. In this sense, the arts help
Mas o encontro é sobre arte – aí eu dis- us discover the contours of our emotio-
se, ó Mónica é o seguinte, a gente só está nal selves. They provide resources for ex-
podendo vivenciar essas actividades dife- periencing the range and varieties of our
renciada em artes porque a nossa gestão responsive capacities.” (Eisner, 2002:11)
é diferenciada, porque se não fosse não
existia essa brecha, por conta de toda essa Sobre a Educação Diferenciada que a
luta nossa, que a gente é quem define o
que é importante para a comunidade, en-
curta-metragem apresenta, integrando as
tão independentemente de ser arte a, b artes da e nas Escolas, importa perceber
ou c, que para nós tudo isso é arte, só é o envolvimento das professoras que ao
possível porque a gente já conseguiu do debater estão a agir na continuação desse
nosso jeito quebrar um montão de cor-
rente que antes era impossível” (ibidem,
movimento, em roda, a ouvir as outras.
’22:08) Houve uma situação durante a Ofici-
na de Desenho, ainda antes de ver este
Assim sendo, a Educação Diferenciada vídeo, que me fez questionar o olhar so-
encadeia um conjunto de possibilida- bre o processo, a memória apropriada do
des e acções, propõe, acima de tudo, um conjunto e as relações que se criam nas
diálogo e participação intrínsecos sobre interações de formação.
os próprios processos de aprendizagem. Destaco um excerto do relatório escri-
Arrisco-me a dizer que, não sendo uma to sobre este Encontro (2017), texto este
aprendizagem sobre as artes, há sempre realizado por três pessoas, eu, a Mariana

204
SOBRE A PARTILHA, AS TROCAS E OS DESLOCAMENTOS NO ENCONTRO

e a Isabelli, sobre esse momento que nos Contaram-nos que antes, ali, tudo estava co-
marcou a todas: berto de água. Então o que viam era não só o
que estava ali, por vezes nem sequer a memó-
A partilha de histórias foi o que mais ria de lá, mas também o que ouviam contar.
marcaram as folhas, sempre que nos debru-
çávamos sobre os desenhos, eram linhas e E sobre as memórias partilhadas neste
palavras que geravam uma imagem visual. Encontrocom as artes, a luta,os saberes
Sobre as propostas trazidas e os exercícios, e os sabores da Comunidade Quilombola
uma vontade de experimentar, um diálo- de Conceição das Crioulas,
go constante. A Vila Centro é ladeada pelas a força de persistir e continuar.
serras. (...) Fomos ao açude mais acessível
várias vezes, com os grupos da manhã e de Referências bibliográficas
tarde. Sentávamo-nos nas pedras enormes CANCLINI, Nestor Garcia (2004) Diferentes,
desiguales y desconectados: mapas de la Inter-
que se debruçavam umas sobre as outras, à culturalidade. Barcelona: Gedisa.
sombra das árvores, entre arbustos e outra CANCLINI, Nestor Garcia (2006) Culturas
vegetação rasteira. Descobrimos este sítio já Híbridas. São Paulo: Editora da Universidade
no primeiro dia, quando dois jovens nos leva- de São Paulo.
ram a conhecer o seu sítio preferido, perto de BONDÍA, Jorge Larrosa (2002) Notas sobre a
onde mora o artista local (o “nosso artista”) experiência e o saber de experiência Revista
e ao virar de uma árvore, lá estava o lugar Brasileira de Educação. N. 19, p.20-28, Jan/
Fev/Mar/Abril;
que queriam desenhar. Mais do que isso,
DEWEY, John. (1958) Experience and nature.
partilhá-lo com o resto do grupo na oficina e New York: Dover Publications, Inc..
depois mais tarde, com os seus, nos desenhos DEWEY, John. (1987). Art as Experience. The
trazidos de lá. Nesse local, em particular, Later Works of John Dewey, 1925-1953. Volume
existe um fosso extenso e profundo. O olhar 10: 1934, Edited by Jo Ann Boydston Carbon-
perdia-se no horizonte desafogado… Nos diá- dale and Edwardsville: Southern Illinois Uni-
versity Press;
rios gráficos notávamos que, não raras vezes,
os participantes desenhavam a paisagem do DEWEY, John. (2010) Arte como experiência.
[tradução de Vera Ribeiro]. - São Paulo:
açude com um elemento que parecia forastei- Martins Fontes.
ro ou absurdo àquilo que podíamos observar: EISNER, Elliot W.(2002) The arts and the
a água. A perplexidade, contaminada pela creation of mind. New Haven: Yale University
racionalidade da ‘observação’ per se, leváva- Press.
mo-nos a questionar – “Onde está a água?” FOUCAULT, Michel (2006) A escrita de si. In:.

205
LUÍSA MAGALHÃES

FOUCAULT, Michel O que é um autor. Lisboa:


Nova Vega. p.129-160.
MOUFFE, Chantal. (1996) O regresso do político.
Lisboa: Gradiva.
MOUFFE, Chantal. (2000) The democratic
paradox. Londres: Verso.
MOUFFE, Chantal. (2007) Prácticas artísticas y
democracia agonística. Universidade Autóno-
ma de Barcelona.

Filmografia
A arte das Escolas na Comunidade, 2014, AAVV,
PE, Brasil: Crioulas vídeo.

206
Conceição das Crioulas... o que dizer
Arte, Gênero e dessa comunidade quilombola situada
Sexualidade no município de Salgueiro, sertão per-
nambucano, em uma distância de 42 km
na Escola Estadual entre a comunidade e o centro da cidade
de Salgueiro, dos quais 27 km são de ter-
Quilombola ra batida? A vivência de sete dias nessa
Professora Rosa comunidade foi incrível. Mas, não é só
isso. Aprendemos muito sobre nós e so-
Doralina Mendes bre os grupos de estudantes, de professo-
res, das universidades envolvidas, dos/as
MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS moradores/as, as mulheres, os homens...
DO AMARAL1 Como aprendemos... Aprendemos que
FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA2 essa comunidade quilombola convive
em harmonia com os indígenas Atikum,
em um território de 1.686,815 km, sendo
6,75 km em perímetro urbano, com uma
população estimada, pelo censo de 2014,
em 60.453 habitantes. Baseados na nossa
vivência na comunidade, vamos “tentar”
contar a nossa narrativa, apenas “tentar”
porque as narrativas vivem em movimen-
to, mudam, se transformam com o passar
do tempo. As narrativas não são estáti-
cas. A vivência que tivemos não é mais a
Entre Salgueiro e Conceição das Crioulas, por Vitória
Amaral, julho de 2017
que guardamos na memória. As imagens
dessa memória que nos saltam aos olhos
1 Professora Doutora em Artes Visuais da Universidade
já são reelaborações de imagens vividas.
Federal de Pernambuco – UFPE. Vice-Líder do Núcleo Para Gaston Bachelard, as imagens que
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre o Imaginário –
CNPq.
temos hoje “Não é eco de um passado”
2 Professor Doutor em Artes Visuais do Centro de Artes da (BACHELARD, 2008, p. 02), isto é, as
Universidade Regional do Cariri – URCA. Líder do Grupo de
Pesquisa Ensino da Arte em Contextos Contemporâneos –
imagens de nossa memória são recons-
GPEACC/CNPq. truções de imagens vividas até os dias de

207
MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS DO AMARAL / FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA

hoje, portanto é uma narrativa recontada, sete estudantes da Universidade Federal


não é mais a vivenciada. de Pernambuco, e um professor e nove
Das narrativas contadas e recontadas estudantes do Grupo de Pesquisa En-
na/pela comunidade tornou-se o mito sino da Arte em Contextos Contempo-
de origem desse povo: “Conceição das râneos – GPEACC/CNPq do Centro de
Crioulas é uma entre tantos exemplos de Artes da Universidade Regional do Ca-
comunidades quilombolas onde as nar- riri – URCA, todos, em sete dias, tenta-
rativas da origem remetem às histórias mos conhecer. Chegamos assim como as
de mulheres fundadoras. Seis mulheres fundadoras do quilombo. E vivemos in-
negras chegam a um grande território tensamente esses dias. Experiências que
no sertão pernambucano: assim se ini- não apenas passam em nós mas que nos
cia a história de Conceição das Crioulas” marcam e nos transformam, referencian-
(Olhares Cruzados, coordenado por Dir- do Jorge Larrosa. E com essa experiência
ce Carrion, 2015, p.77). Região ocupada vivenciamos uma comunidade que tem a
onde viviam índios Atikum, com quem as liderança e a força feminina coordenando
mulheres fundadoras e seus descenden- as ações, principalmente as educacionais
tes passaram a conviver em harmonia. A e culturais.
princípio, em meados do século XVIII, se- Como fomos parar em Conceição das
gundo a história oral, as seis mulheres ar- Crioulas? Recebemos um convite do pro-
rendaram uma área de terra, que aos pou- fessor Paiva,da Faculdade de Belas Ar-
cos foram comprando graças ao trabalho tes da Universidade do Porto, para nos
de produção e fiação do algodão. Parte juntarmos a um grupo de professores/
da área adquirida foi doada para a cons- as e estudantes portugueses/as e outros
trução de uma capela, onde colocaram a brasileiros, que só nos demos contas da
imagem de Nossa Senhora da Conceição quantidade de universitários envolvidos
que Francisco José de Sá havia trazido na ao chegarmos à comunidade. Lá estavam,
viagem. Em homenagem à santa, a comu- além da representatividade das nossas
nidade passou a se chamar Conceição das universidades e a do Porto, professores/
Crioulas” (narrativas das mulheres e ho- as e estudantes da Universidade de Per-
mens da comunidade). nambuco (UPE), Universidade Federal
Essas foram algumas das histórias e Rural de Pernambuco (UFRPE), a Uni-
narrativas míticas de origem da comu- versidade Regional do Cariri (URCA), a
nidade que nós, quatro professoras e Universidade Federal do Ceará (UFCE),

208
ARTE, GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA ESTADUAL QUILOMBOLA

Universidade de Brasilia (UnB), Univer- todos como estrangeiros, mais estran-


sidade do Ceará (UFCE), entre outras geiros que os próprios estrangeiros por-
universidades. Todas/os ali professores/ tugueses, que há treze anos já visitam e
as e estudantes foram trocar conheci- fazem trabalhos nas áreas da educação e
mentos, aprendendo muito. Como diz da cultura na comunidade. Sentimo-nos
Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém, como Hospers, do conto O Hóspede, de
ninguém educa a si mesmo, os homens se Andrea Fernandes, um dinamarquês que
educam entre si, mediatizados pelo mun- chega a Guiné-Bissau, conhece Quinta
do” (FREIRE, 2005, p.78). Vivemos Frei- Milgostos, que:
re na pele, o mundo que foi Conceição
das Crioulas. Foi assim que chegamos to- Após muitas horas de dança e muitas ho-
ras de tambor, Hospers e Quinta acabam
dos nós, mediatizados pelo mundo e pelo sentados lado a lado na mesa dos comes
professor Paiva... e bebes, a conversar e a rir. Já entrada a
noite, quando viu que a sala começava a
esvaziar-se, subitamente Hospers pôs-se
sério e olhou para Quinta directo nos
olhos.
- Muher, io te quiero.
Quinta Milgostos achou-lhe graça e lan-
çou uma gargalhada para o céu enquanto
no íntimo calculava os danos e perdas.
Depois levantou-se e disse:
- Vamos.” (Andrea Fernandes, 2010,
Comunidade de Conceição das Crioulas, por Carlene p.84).
Batista Cavalcante, Maria Claudineide Alves Macêdo,
Wandeállyson Dourado Landim Santos e Álisson
Pereira Flor, julho de 2017 E assim como Quinta levou Hospers
para a sua casa e lhe deu acolhida, a co-
Chegamos com o olhar formado nas munidade de Conceição das Crioulas nos
imagens dos centros urbanos, mirando acolheu e levou nossos/as estudantes
para o desconhecido ou para um acon- para as suas casas. Em seus aconchegos
tecimento que estava prestes a nos sur- familiares as/os estudantes compar-
preender. Com projetos de oficinas, trilharam de momentos inesquecíveis,
palestras e falas debaixo do braço, sem como as canções de tia Marina; as histó-
sabermos muito bem quem seriam as pes- rias de Andrelino, os encontros e desen-
soas que iríamos encontrar. Chegamos contros com parentes e vizinhos, além de

209
MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS DO AMARAL / FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA

receberem de presente um bem precioso improvisado e conturbado, em uma das


que a comunidade toda carece: a água. E noites de encontro com professores/as,
as/os estudantes se fartaram de conheci- na qual deveria se discutir sobre decisões
mentos, saberes e aprendizagens; a lidar que tomaríamos para dar continuidade a
com realidades tão distantes por elas/eles essa parceria.
vivenciadas. E aprenderam a viver como
as pessoas daquele lugar vivem com pou-
ca água.
Como riacho que corre sem nunca
parar, levamos para Conceição nossas
ideias, nossos projetos, que eram: uma
mesa redonda e duas oficinas sobre Arte,
Gênero e Sexualidade. A mesa redonda
Encontro com professoras e professores das escolas
foi criada para falarmos das histórias de da Comunidade de Conceição das Crioulas, por Maria
mulheres nas artes visuais; duas oficinas Claudineide Alves Macêdo e Wandeállyson Dourado
Landim Santos.
uma de/sobre bordado e outra sobre arte,
gênero e sexualidade, focando no gênero A oficina de bordado que deveria acon-
feminino, uma proposta para formação tecer com professoras das escolas da co-
de professores/as nessa temática. Mas, a munidade, tornou-se uma oficina para
mesa foi ficando sem sentido no passar trocas de experiências das mulheres da
do tempo, pois os slides que preparamos comunidade, tendo o bordado como o
foi ficando distante do que esperavam de fio condutor das trocas e narrativas das
nós e o que aprendíamos com a comu- mulheres; e a nossa que era comigo e
nidade. E levamos o trabalho da mesa com Lizandra Santos, estudante do curso
adiante, a professora Madalena deu uma de Artes Visuais “Arte, Gênero e Sexua-
aula sobre a História da Mulher Ociden- lidade”, com foco no feminino, depois
tal e eu levei uma discussão sobre ima- de uma conversa com Andrelino Vicente
gens produzidas pela artista paulistana Dionízio, o diretor da Escola Estadual
Rosana Paulino, sobre suas inquietações Quilombola Rosa Doralina Mendes, que
em relação às mulheres negras escravi- nos relatou com entusiasmo a necessi-
zadas, como uma busca de si e de suas dade de discutir essas questões com os
próprias origens como mulher negra. jovens do Ensino Médio, resolvemos di-
Essa mesa ocorreu em um momento meio recionar nossa ação para esse público e

210
ARTE, GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA ESTADUAL QUILOMBOLA

adaptamos a nossa oficina. Trabalhamos mos ficando cada vez mais enredados em
com três turmas de 1º, 2º e 3º anos do En- uma teia para suscitar que nunca estamos
sino Médio, em três dias consecutivos. sós, que um puxa a teia do outro e vive-
As discussões versaram sobre a mulher, mos em uma organização em rede e que
a mulher negra e as suas relações de gê- todos/as são responsáveis por todos/as.
nero, sexualidade, sexismo e violência;
depois somamos a participação vibrante e
enriquecedora do Prof. Fábio Rodrigues,
do Centro de Artes da URCA à oficina que
tratou de diversidade sexual e DST/AIDS
a partir de uma abordagem metodológica
desenvolvida com a pesquisa Ensino de
Artes Visuais e Escola sem Homofobia,
vinculada ao Grupo de Pesquisa Ensino Dinâmica entre os mediadores da ofina com os/as
estudantes do Ensino Médio, por Vitória Amaral, julho
da Arte em Contextos Contemporâneos 2017
– GPEACC/CNPq.
Para as discussões de gênero e sexuali-
dade nas Artes Visuais, trouxemos algu-
mas/alguns artistas contemporâneos que
abordam essas temáticas. Iniciamos as
nossas falas (ou nossos silêncios?!?!) com
a apresentação dos trabalhos de Rosana
Paulino3, como a artista vem se destacan-
do por sua produção ligada a questões
sociais, étnicas e de gênero. Seus traba-
lhos têm como foco principal a posição
Escola Estadual Quilombola Rosa Doralina Mendes, da mulher negra na sociedade brasileira
por Vitória Amaral, julho 2017
3 Doutora em Artes Visuais em Artes Visuais pela Escola de
Enredadas, iniciamos as nossas apre- Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/
sentações na escola: Quem somos? O que USP, é especialista em gravura pelo London Print Studio, de
Londres e bacharel em gravura pela ECA/USP . Foi bolsista
gostamos de fazer? O que não gostamos? do Programa bolsa da Fundação Ford nos anos de 2006 a
2008 e Capes de 2008 a 2011. Em 2014 foi agraciada com
Essas foram as perguntas para iniciarmos a bolsa para residência no Bellagio Center, da Fundação
as nossas trocas. Enquanto falamos va- Rockefeller em Bellagio, Itália.

211
MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS DO AMARAL / FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA

e os diversos tipos de violência sofridos mentos femininos do bastidor de bordar?


por esta população, decorrente do racis- Isso é considerado arte? Porquê?
mo e das marcas deixadas pela escravidão
(ROSANA PAULINO).

Imagem transferida sobre tecido, bastidor e linha de


costura. 30.0 cm diâmetro – 1997. Rosana Paulino, Kali, Desenho da série tecelãs. Aquarela e grafite sobre
http://www.rosanapaulino.com.br/ papel - 32,5 x 25,0 cm – 2003. Rosana Paulino, http://
www.rosanapaulino.com.br/
Objetos, adquiridos em sua pesquisa
sobre seus antepassados, e a arte conside- É com o bastidor que se prende o bor-
rada especificamente “de mulher” é ques- dado, assim também ficam presas as mu-
tionada por Rosana Paulino. O desenho, lheres dentro dos bastidores da vida, dis-
a pintura e as linhas da tecelagem se en- se uma das meninas. Por que bordado é
tranham na vida da artista e na sua pró- coisa de mulher? Existe o que é de mulher
pria história. A afetividade perdida entre e o que é o do homem? Um é mais impor-
os entes queridos, entre os povos escravi- tante que o outro? Ações vivenciadas pe-
zados também é trazido à tona na obra de las meninas e pelos meninos foram sen-
Rosana. E isso também foi discutido nas do citadas, os estudantes foram bastante
turmas de ensino médio da escola visita- participativo.
da. Os fios das mulheres tecelãs saem do
seu corpo como a necessidade de expulsar
suas tristezas, seu sofrimento, sua dor...
As discussões sobre gênero, nas turmas
do Ensino Médio, foram efervescentes
em torno do que a mulher negra pode ou
não fazer. O que todas as mulheres po-
Professora Vitória Amaral mediando a discussão sobre
dem ou não podem fazer? Podem falar? gênero e sexualidade a partir das Artes Visuais, por
Podem ver? Qual o significado que os ele- Fábio Rodrigues, julho 2017

212
ARTE, GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA ESTADUAL QUILOMBOLA

Sobre as questões sexistas, muito cita- senta situação semelhante, as mulheres


das pelos jovens, trouxemos Bell Hooks, que ali chegaram, chegaram livres, mas
para refletirmos sobre essas questões. como tratarmos de um grupo se não o si-
tuamos historicamente, politicamente e
Num exame retrospetivo sobre a expe- socialmente no contexto geral? É visível
riência das mulheres negras escravas, o
o empoderamento das mulheres de Con-
sexismo assomava-se maior que o racismo
como uma força opressiva nas vidas das ceição das Crioulas, porém contamos cin-
mulheres negras. O sexismo instituciona- co jovens adolescentes mulheres com os
lizado – ou seja, o patriarcado – formou bebês nas aulas, sem contar com algumas
a base da estrutura social americana bem jovens grávidas de 14 aos 16 anos. Onde
como o imperialismo racial. O sexismo
era uma parte integral da ordem social estão os pais desses bebês? Uma jovem
e política que os colonizadores brancos deu um depoimento que o namorado a
trouxeram das suas terras da Europa e teve pressionava para ter relações sexuais,
um impacto grave no destino das mulhe- já que “eles se amavam”, mas não era o
res negras escravizadas. Nos seus estados
que ela queria, por que ela teria que fazer?
iniciais, o negócio da escravatura focou-se
primeiramente na importância dos traba- É uma prova de desamor? Muito séria a
lhadores; a ênfase nesse tempo era sobre o temática da sexualidade para os seres hu-
homem negro. Nesse tempo a mulher ne- manos e por que não se falar sobre isso
gra escrava não era valiosa como o homem na escola? É difícil porque não iniciamos
negro. Em média, custava mais dinheiro
comprar um homem escravo que uma
essas conversas em casa, com os nossos
mulher escrava. A escassez de casais traba- pais e parentes, então a escola não pode
lhadores e a relativa pouca quantidade de se omitir. E a arte pode ser um bom me-
mulheres negras nas colónias americanas diador dessa conversa. A arte é um canal
fez com que alguns agricultores brancos
capaz de tratar e fazer as pessoas refleti-
encorajassem, persuadissem e coagissem
as mulheres brancas imigrantes a terem rem sobre o nosso cotidiano e o respeito
relações sexuais com os homens negros que todos devem que ter um pelos outros,
escravos como um meio de produzir no- pela sexualidade do outro, pelo gênero do
vos trabalhadores. Em Maryland, no ano outro, pelas vontades do outro. Que não
de 1664, a primeira lei anti fusão passou;
visou restringir as relações sexuais entre
devemos criar padrões e nem seguir pa-
as mulheres brancas e os homens negros drões para fazer julgamentos dos outros.
escravizados (HOOKS, 2014, p.14). Os padrões criam estereótipos, que mui-
tas vezes não é o que parece ser. No ini-
Em Conceição das Crioulas não apre- cio do trabalho no terceiro ano, um dos

213
MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS DO AMARAL / FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA

meninos, ao se apresentar disse: “sofro entre gêneros e sexualidades. Falar sobre


buling porque tenho esse jeito, assim... sexo e sexualidades parece que ainda é
mas isso não quer dizer que eu seja gay um tabu na comunidade, os preservati-
e que goste de homens, pode ser até que vos e métodos anticonceptivos também
um dia isso venha acontecer, mas hoje não costumam ser usados entre os jovens
não”, os colegas escutaram com bastante namorados, pela quantidade de meni-
atenção e respeito; e tenho certeza que a nas mães e grávidas nas salas de aula. É
partir desse dia vão olhá-lo com outros muito bom ter bebê, ser mãe, percebe-
olhos. Esses padrões não devem ser leva- mos que as meninas estão muito felizes,
dos para a sala de aula. Devemos nos des- mas elas são muito jovens e com certeza
pir desses modelos e olhar nos olhos dos não foi uma opção delas ficarem grávi-
outros. Essa padronização e tipificação das em pleno Ensino Médio. Ao mesmo
estereotipada de comportamento gera tempo, em outros centros urbanos e ru-
relações preconceituosas e, de boca em rais, é bem comum que as meninas ao
boca, vai reforçando as relações de poder, engravidarem saiam da escola. Mas, em
de maneira que, até mesmo professores, Conceição a resistência é percebida com
muitas vezes, acreditam nessas superpo- a permanência dessas meninas-mães na
sições categóricas culturais de superiori- escola. Outra observação interessante em
dade. Nós, professores e professoras não relação à maternidade na comunidade, é
podemos categorizar os comportamentos extremamente prazeroso perceber como
e julgar uns superiores a outros. Temos as crianças vivenciam do cotidiano das
que ter esse cuidado. E não podemos fa- mães, onde elas estão ficam rodeadas de
zer uso desse tipo de relação para omitir crianças, sempre circulando sua mãe ou
o conhecimento, se fazer do poder hierar- tia, que acaba fazendo o papel da cuida-
quizado, seja ele qual for, para detenção dora, no momento, de todas que estão
do conhecimento no campo científico, a sua volta. No entanto, com o advento
muito menos reforçar as diferenças so- da epidêmia de HIV/AIDS a sexualidade
ciais, culturais e de gênero. Devemos ter passou a ser uma das territorialidades dos
o compromisso de formar cidadãos críti- sistemas públicos e privados de escolari-
cos para uma sociedade justa e igualitária. zação e educação não formal no Brasil. A
Mesmo empoderadas quanto às políticas questão principal é a educação sexual de
públicas e às didáticas educacionais, há crianças e adolescentes e um dos instru-
muito o que se discutir sobre as relações mentos utilizados no final dos anos 90

214
ARTE, GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA ESTADUAL QUILOMBOLA

foi os Parâmetros Curriculares Nacionais zales-Torres5. Fizemos opção por selecio-


– PCN’s (1997) que no volume 10.5 – nar artistas situados na produção artísti-
Temas Transversais – Orientação Sexual ca contemporânea, pois esta permite uma
destaca na apresentação: abertura de criações que agregam plura-
lismo cultural. Transitar por territórios
Ao tratar do tema Orientação Sexual, variados, abstração extrema, incorpora-
busca-se considerar a sexualidade como ção e mescla de elementos do presente e
algo inerente à vida e à saúde, que se ex-
pressa no ser humano, do nascimento até do passado, bem como o trabalho coleti-
a morte. Relaciona-se com o direito ao vo ou em duplas de artistas, são algumas
prazer e ao exercício da sexualidade com das características dessa arte. “Pares e
responsabilidade. Engloba as relações de grupos de artistas, como Gilbert & Geor-
gênero, o respeito a si mesmo e ao outro e ge, trabalham juntos para desafiar o mito
à diversidade de crenças, valores e expres-
sões culturais existentes numa sociedade
heroico do gênio individual, dando ênfa-
democrática e pluralista. Inclui a impor- se, às vezes, nos defeitos mais correntes.”
tância da prevenção das doenças sexual- (EFLAND, FREEDMAN, STUHR, 2003,
mente transmissíveis/Aids e da gravidez p. 67).
indesejada na adolescência, entre outras
questões polêmicas. Pretende contribuir
para a superação de tabus e preconceitos
5 Felix Gonzalez-Torres (November 26, 1957 – January 9,
ainda arraigados no contexto sociocultu- 1996) was a Cuban-born American gay visual artist. Gon-
ral brasileiro. (PCN-MEC ORIENTAÇÃO zalez-Torres was known for his minimal installations and
SEXUAL, 1997, p. 287)4 sculptures in which he used materials such as strings of light-
bulbs, clocks, stacks of paper, or packaged hard candies. In
1987, he joined Group Material, a New York-based group of
Partindo das meninas-mães para os artists whose intention was to work collaboratively, adhering
to principles of cultural activism and community education.
cuidados e procedimentos para preven- Gonzalez-Torres's 1992 piece "Untitled" (Portrait of Marcel
ção das DST’s/AIDS, principalmente a Brient) sold for $4.6 million at Phillips de Pury & Company
in 2010, a record for the artist at auction. https://www.
AIDS que mata, foram temas abordados moma.org/artists/2233 (Trad.: Felix Gonzalez-Torres (26
e debatidos pelas turmas com a mediação de novembro de 1957 - 9 de janeiro de 1996) foi um artista
visual gay americano cubano. Gonzalez-Torres era conhecida
do professor Fábio Rodrigues. Para in- por suas instalações mínimas e esculturas nas quais ele
troduzir o tema de forma mais didática e usava materiais como cordas de lâmpadas, relógios, pilhas de
papel ou doces embalados. Em 1987, ele se juntou ao Group
educativa, o professor partiu de imagens Material, um grupo de artistas de Nova York cuja intenção
de trabalhos do artista visual Felix Gon- era trabalhar em colaboração, aderindo aos princípios do
ativismo cultural e da educação comunitária. A peça de 1992
de Gonzalez-Torres "Untitled" (Retrato de Marcel Brient)
4 http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/orientacao. vendeu por US $ 4,6 milhões na Phillips de Pury & Company
pdf em 2010, um recorde para o artista em leilão.)

215
MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS DO AMARAL / FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA

A arte nos converte em sujeitos de nos- (Portrait of Ross in L.A), 1991, Félix Gon-
sa experiência, nos eleva, às vezes, da zález-Torres6. Durante a dinâmica não exi-
imanência e do cotidiano, nos separa de
nossa “situação” e nos faz defini-la, rede-
bimos as imagens do trabalho. Optamos
fini-la, atacá-la, expulsá-la ou assumi-la na verdade por deixar que todos/as pegas-
desde outro ponto de vista. (...) como a sem seus pirulitos e começassem a chupar.
arte, em relação a sua capacidade desa-
bituadora, nos permite nos ver de novo,
definimos desde nosso ponto de vista e
permite, nos casos mais extremos dos ca-
sos, tratar a Alteridade desde a alteridade.
(F. Cao, 2010, p.98).

As questões sobre gênero e sexualidade


são fortemente ligadas à políticas públi-
cas, de cuidado com o outro, principal-
mente em relação às mulheres (violência
doméstica, feminicídio, lesbianismo, tran- Adolescentes vivenciando a dinâmica e pegando seus
pirulitos, por Vitória Amaral, julho 2017
sexualidade, entre outras) e aos LGBTT’s
(violência, AIDS, preconceito, homofo- Logo após todos/as estarem com seus
bia, lesbofobia, transfobia) sem distinção pirulitos apresentamos a primeira ima-
de grupos, classe social, gênero, situação gem do trabalho do Félix González-Torres
econômica, escolaridade e, também, se a ("Untitled", 1991). Com a imagem desse
pessoa é hetero ou homossexual (LOURO, trabalho procuramos primeiro tratar das
2001). possibilidades sugeridas pela fotografia
Aplicamos como dinâmica montar sobre de “uma cama vazia que mostra a marca
a mesa escolar uma pilha de pirulitos em
formato de coração e em cores variadas. O 6 Uma de suas instalações mais conhecidas e pungentes é
um retrato de Ross, trata-se de uma pilha de balas que se
objetivo desse primeiro momento foi criar amontoa na esquina da sala expositiva, tal pilha tem como
um ambiente de descontração e ao mesmo peso designado o peso que tinha Ross quando estava são,
seu peso ideal. Esta seria a primeira parte de uma obra que
tempo retirar os/as adolescentes de sua funciona de maneira narrativa, temos um Ross são a nossa
zona de conforto traduzida pela perma- frente, depois somos convidados a pegar balas da pilha, cada
visitante recebe o mesmo convite e dessa maneira a presença
nência em suas carteiras escolares. Entre- de Ross começa a diminuir, é uma recordação clara do
devastador que é o HIV. Félix Gonzáles-Torres: tudo o que foi
tanto, esta dinâmica foi construída a partir e nunca voltará a ser. Sara Mejía, 19 de julho de 2016. http://
de uma interpretação da obra “Untitled” elpulpo.com.br/felix/

216
ARTE, GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA ESTADUAL QUILOMBOLA

de dois corpos, aparecem imprimidas duas Com essa estratégia didática e nos
cabeças sobre os travesseiros, o rastro aqui apoiando nas artes visuais contemporâ-
é uma ausência” (MEJÍA, 2016, BLOG EL- neas fomos introduzindo o tema da di-
PULPO) e levantamos alguns questiona- versidade sexual, do direito a viver e amar
mentos como: quem dormiu nessa cama? das pessoas, do amor e da dor de perder a
O que estavam fazendo? Era um homem e pessoa amada. Com o tema da perda da
uma mulher ou dois homens, duas mulhe- pessoa amada, apresentamos mais uma
res? imagem do trabalho do artista.

Felix Gonzalez-Torres "Untitled" 1991. https://www.


moma.org/collection/works/79063?locale=pt

Seguimos com as ideias, sugestões, de- "Untitled” (Portrait of Ross in L.A), 1991, Félix
González-Torres. http://elpulpo.com.br/felix/
vagações suscitadas pela imagem e pouco
a pouco fomos apresentando as intenções Com essa imagem procuramos descons-
do artista ao produzir a imagem em desta- truir imaginários sobre o uso da camisinha
que. Segundo Mejía (2016): (preservativo masculino) principalmente
quando se repeti a frase: “Usar camisinha
Trata-se de um tributo a Ross Laycock, é o mesmo que chupar um bombom com
companheiro sentimental do artista, que
embalagem”. Essa frase é muito comum
morreu no ano da realização da obra, e é
o retrato intimo da despedida de um ser entre os heterossexuais masculinos e em
amado. A fotografia habita o espaço públi- geral empregada para não usar o preser-
co, entra na rotina dos habitantes da cida- vativo. Exploramos muito a relação entre
de, muitos a verão e não estarão conscien- a instalação do artista Félix González-
tes dela, outros a verão como uma imagem
-Torres com os pirulitos que chupávamos
flutuante entre tantas outras, talvez alguns
a lerão detalhadamente, o importante é e como era chupar o pirulito sem tirar a
que será vista, que será parte da rotina de embalagem que o envolve? Assim procu-
milhares de pessoas. ramos demonstrar que a propagação do

217
MARIA DAS VITÓRIAS NEGREIROS DO AMARAL / FÁBIO JOSÉ RODRIGUES DA COSTA

HIV/AIDS ocorre principalmente pela au- Sexualidade.


sência da camisinha nas relações sexuais
entre as pessoas e, lamentavelmente, entre Referências Bibliográficas
os jovens. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e
o saber de experiência. Revista Brasileira de
Educação, Nº 19, Jan/Fev/Mar/Abr, 2002.
CARRION, Dirce (coord.). Olhares Cruzados na
Diversidade. São Paulo: ReflexoTexto e Foto,
2015.
EFLAND, Arthur; FREEDMAN, Kerry; STUHR,
Patricia. La educación en el arte posmoderno.
Barcelona: Paidós, 2003.
FERNANDES-CAO, Marian. Mulier me Fecit:
Hacia un analisis feminista del arte y su educa-
Professor Fábio Rodrigues demonstrando a partir dos ción. Madrid: horas y Horas, 2010.
pirulitos a relação entre o uso da camisinha e a prevenção
contra o HIV/AIDS, por Vitória Amaral, julho de 2017 FERNANDES, Andrea. O Hóspede in Contos do
Mar sem Fim: antología afro-brasileira (org.
Félix González-Torres ao criar a insta- Pallas Ed.). Rio de Janeiro: Pallas; Guné Bis-
lação “Untitled” (Portrait of Ross in L.A, sau: Ku Si Mon: Angola: Chea de Caxinde,
2010.
1991), o fez procurando demonstrar os
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes
efeitos desvastadores da AIDS quando as
necessários à prática educativa. Rio de Janeiro:
pessoas são contaminadas pelo HIV. Paz e Terra, 2010.
Procuramos com essa aboragem didá- HOOKS, Bell. Não sou eu uma mulher: mulheres
tica e pedagógica aproximar os/as jovens negras e feminismo. 1ª edição 1981. Tradução
estudantes do Ensino Médio da Escola livre para a Plataforma Gueto, janeiro de 2014.
Estadual Quilombola Rosa Doralina Men- LOURO, Guacira Lopes. Teoria Queer: uma
des de temáticas do nosso tempo e que são política pós-identitária para a educação. Revis-
ta Estudos Feministas, Florianópolis, UFSC, v.9,
também de responsabilidade nossa, porém nº.2, p. 541-553, 2001.
o fizemos buscando criar um ambiente em
que a brincadeira e as leituras/inteprete- Sites consultados
ções de imagens da arte possibilitassem a http://www.rosanapaulino.com.br/ • http://
desconstrução de imaginários de gênero, elpulpo.com.br/felix/ • https://www.moma.org/
collection/works/79063?locale=pt • https://www.
sexo e sexualidade entre os jovens. Fomos moma.org/artists/2233 • http://portal.mec.gov.br/
fazendo o nosso papel, Fábio e eu, de edu- seb/arquivos/pdf/orientacao.pdf
cadores nessa oficina sobre Arte, Gênero e

218
julho de 2017, foi o compartilhamento
Sobre afetos, dos trabalhos das mestras quilombolas
aprendizagem Márcia Jucilene do Nascimento3 e Maria
Diva da Silva Rodrigues4. Suas pesquisas
mútua e foram resultantes de trajetórias que pude-
mos acompanhar entre 2015 e 2017 junto
fagulhas contra- ao Mestrado em Sustentabilidade junto a
hegemônicas: Povos e Terras Tradicionais (MESPT), na
Universidade de Brasília. Este curso, em
interlocuções entre que atuamos como docentes, é pioneiro
em seu formato, visando à formação de
a Universidade profissionais para o desenvolvimento
de pesquisas e intervenções sociais, com
de Brasília e base no diálogo de saberes (científicos
Conceição das e tradicionais), em prol do exercício de
direitos, do fortalecimento de processos
Crioulas-PE autogestionários da vida, do território e
do meio ambiente, da valorização da so-
CRISTIANE DE ASSIS PORTELA1 ciobiodiversidade e salvaguarda do patri-
MÔNICA CELEIDA RABELO mônio cultural (material e imaterial) de
NOGUEIRA 2 povos indígenas, quilombolas e outras
comunidades tradicionais.
Um dos momentos felizes ocorridos no A construção das pesquisas de Márcia
Encontro com as Artes, a Luta, os Saberes Jucilene e Maria Diva revela mais que
e os Sabores da Comunidade Quilombola compromisso com o tema, sendo repre-
de Conceição das Crioulas, ocorrido em
3 NASCIMENTO, Márcia Jucilene. Por uma pedagogia crioula:
memória, identidade e resistência no quilombo de Conceição
1 Doutora em História e Docente do Mestrado em das Crioulas - PE. [Dissertação de Mestrado- Mestrado
Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais].
(MESPT), da Universidade de Brasília (UnB), Brasil. E-mail: Brasília: MESPT CDS-UnB, 2017.
cportela.historia@gmail.com 4 RODRIGUES, Maria Diva da Silva. Política de nucleação
2 Doutora em Antropologia Social e Coordenadora do de escolas: uma violação de direitos e a negação da cultura e
Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras da educação escolar. [Dissertação de Mestrado- Mestrado
Tradicionais (MESPT), da Universidade de Brasília (UnB), em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais].
Brasil. E-mail: monicacrnogueira@gmail.com Brasília: MESPT CDS-UnB, 2017.

219
CRISTIANE DE ASSIS PORTELA / MÔNICA CELEIDA RABELO NOGUEIRA

sentativas da implicação com o contexto teórico, a sustentabilidade no território;


de pesquisa e a consequente responsa- no plano metodológico, a interdisciplina-
bilidade com seus efeitos práticos, visto ridade; e, em plano transversal, o diálogo
que elas mesmas são parte da realidade de saberes (acadêmicos e tradicionais). As
de estudo e ação. Os recortes de pesquisa três perspectivas estão apresentadas de
são bem delimitados sob três pontos de forma instigante nos trabalhos de Márcia
vista: a) espacialmente estão restritos à e Maria Diva, com aspectos comuns que
comunidade de Conceição das Crioulas e aproximam suas produções. As concep-
no caso de Diva a dois sítios específicos ções de sustentabilidade apresentadas
localizados no território e seus arredores; nas duas dissertações não se restringem
b) quanto às interlocuções no processo de aos aspectos ambientais, envolvendo ele-
pesquisa, já que se privilegia a voz coleti- mentos socioculturais, com ênfase em
va das comunidades escolares e de Con- uma compreensão do território como lugar
ceição das Crioulas: no caso de Márcia, educativo em que os sentidos de pertenci-
os entrevistados são professores, mas é mento se elaboram amplamente e podem
a experiência e trajetória de mulheres da ser fortalecidos pela escola, quando essa é
comunidade que orientam as narrativas; devidamente apropriada pela comunida-
no caso de Diva, os ouvidos pela pesquisa de. Indicam, assim, formas de bem-viver
são sujeitos das comunidades escolares, em Conceição das Crioulas, seja por meio
envolvendo não só professores mas tam- de uma pedagogia formulada a partir de
bém pais e estudantes e c) quanto às es- elementos próprios e historicamente vi-
calas de análise, visto que são articuladas venciados - a Pedagogia Crioula apresen-
em ambas as pesquisas as perspectivas tada por Márcia Jucilene; seja através da
local, estadual e nacional, com destaque resistência à desarticulação comunitária
para a pesquisa de Diva, que está voltada provocada pela imposição da política de
à sinalização de uma tragédia anuncia- nucleação às escolas da comunidade e
da no âmbito das políticas públicas de combatida de forma contundente por
educação, a nucleação escolar, ferindo as Maria Diva.
comunidades rurais como um todo, mas Do ponto de vista metodológico, desta-
especialmente as quilombolas. ca-se a compreensão dessas pesquisado-
A fim de destacar as contribuições des- ras – como representantes de Conceição,
ses trabalhos, devemos dizer que três são agora presentes e atuantes também na
os eixos que orientam o MESPT: no plano universidade -, do quanto suas agendas

220
SOBRE AFETOS, APRENDIZAGEM MÚTUA E FAGULHAS CONTRA-HEGEMÔNICAS

de pesquisa constituem-se de demandas trazem uma especificidade, se comparado


definidas coletivamente nos espaços de ao movimento negro como um todo ou ao
decisão da comunidade. Por isso destaca- movimento de mulheres negras urbanas.
mos que não são somente elas que estão Há uma “lógica de inclusividade” que ca-
presentes na Universidade de Brasília, é racteriza o movimento de mulheres qui-
Conceição das Crioulas que ocupa esse lombolas e isso nos parece muito potente
lugar por meio de seus títulos de mes- como forma de articular conhecimentos.
trado. Desse modo, seus problemas de Essa perspectiva converge com a de Gi-
pesquisa necessariamente conduzem a vânia Silva, liderança e intelectual de
reflexões que dizem respeito a mais de um Conceição das Crioulas que, em suas fa-
campo disciplinar, na busca por equacio- las, também sinaliza para a existência de
nar problemas que afetam diretamente um tipo de feminismo com características
à comunidade e que não se subsumem a particulares entre quilombolas, fenôme-
uma reflexão teórica ou academicista. no social associado a categorias formu-
Em relação ao terceiro eixo, o diálogo ladas pelas próprias comunidades. Nesse
de saberes, mais do que meramente rei- sentido, insistimos no protagonismo das
vindicarem o reconhecimento dos pro- mulheres quilombolas como um aspecto
cessos de produção de conhecimento em que nos salta aos olhos em Conceição
diferentes loci, seus trabalhos anunciam das Crioulas, entretanto, conforme nos
caminhos possíveis para construirmos ensinam as lideranças do movimento
outras epistemologias e formas de conce- quilombola, não é nossa intenção afirmar
ber os territórios. Naquilo que envolve as sectarismos que possam desfavorecer o
possibilidades de construir relações simé- movimento mais amplo, que historica-
tricas e efetivarmos esse diálogo de sabe- mente unifica homens e mulheres em
res, são muitas as lições oriundas de seus torno de identidades étnico-raciais e na
textos, mas também da convivência com defesa de seus territórios.
estas pesquisadoras e consequentemen- Em relação ao reconhecimento dessas
te com a comunidade a qual pertencem. comunidades por suas atuações políticas,
Destacamos abaixo algumas dessas. compreendemos que o engajamento qui-
Aprendemos que o engajamento po- lombola tampouco nasce em 1988 com
lítico das mulheres quilombolas é um o Estado e suas políticas públicas, mas
movimento profundamente inclusivo e vem de muito antes e tem referentes pró-
nesse sentido demonstra contornos que prios - que no caso de Conceição, são as

221
CRISTIANE DE ASSIS PORTELA / MÔNICA CELEIDA RABELO NOGUEIRA

seis crioulas, fundadoras da comunidade. suas vidas como somatório algorítmico


A inspiração dessas mulheres e daqueles de opressões e, sim, que foram transfor-
que se seguem a elas, não produz uma madas em algo emancipatório, na medida
história de subalternização e sim, de re- em que os membros dessa comunidade
sistência: em Conceição das Crioulas ve- tomam consciência de sua condição e
mos o que Paul Gilroy chama de “cultura longe de se deixarem aviltar pela corre-
viajante de resistência”5. São memórias lação de forças desfavoráveis, reagem e
que vêm de muito antes, desde a África, rejeitam vigorosamente a submissão. Eis
como marcas de ancestralidade. que aprendemos mais uma lição com a
Sugerindo uma perspectiva que vai ain- comunidade de Conceição das Crioulas:
da além da resistência, nos arriscamos sobre a força criativa da insubmissão.
a dizer que vemos em Conceição, uma Formas de se fazer conhecer e repre-
interseccionalidade emancipatória ou in- sentar o mundo segundo concepções
submissa6, ou seja, uma consciência das quilombolas devem ser incorporadas com
opressões sobrepostas - às quais especial- urgência nos debates acadêmicos sobre
mente as mulheres estão expostas – que gênero e estudo das mulheres, por seu
conduz a uma postura ao mesmo tempo potencial de contribuição para o cam-
altiva e ativa, em que esses sujeitos assu- po das interseccionalidades no Brasil, a
mem o protagonismo efetivo em seus co- exemplo das categorias atrevimento entre
tidianos e, em grande medida, a direção as mulheres do Quilombo Carrapatos7 e
de seus destinos. Ao ouvirmos as falas de desapocamento entre as mulheres do Qui-
mulheres e homens nos debates e ofici- lombo Puris8, ambos de Minas Gerais,
nas realizados em Conceição das Criou- que nos informam sobre essa atitude de
las, no âmbito do Encontro ocorrido na insubmissão esperada aos membros da
comunidade, temos a impressão de que comunidade. Em Conceição, expressões
as interseccionalidades não operam em
7 FERNANDES, Ana Carolina Araújo. Do Fogo e da
5 GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla Justiça: Sandra Maria da Silva Andrade, movimentos de uma
consciência. São Paulo: Editora 34/ Universidade Cândido filha de Xangô na luta quilombola. [Dissertação de Mestrado-
Mendes, 2001. Departamento de Antropologia]. Brasília: PPGAS-UnB,
6 PORTELA, Cristiane de Assis. “Gênero, etnicidade 2017.
e suas interseccionalidades: narrativas Kura-Bakairi 8 PASSOLD, Sirlene Barbosa Correa. Desapocadas: Concepções
na Universidade de Brasília” in STEVENS,Cristina; de beleza e conhecimentos tradicionais de mulheres quilombolas
OLIVEIRA,Susane; ZANELLO,Valeska; SILVA,Edlene; do Puris-MG. [Dissertação de Mestrado- Mestrado em
PORTELA, Cristiane (Orgs). Mulheres e Violências: Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais].
Interseccionalidades. Brasília: Technopolitik, 2017. Brasília: MESPT CDS-UnB, 2017.

222
SOBRE AFETOS, APRENDIZAGEM MÚTUA E FAGULHAS CONTRA-HEGEMÔNICAS

correspondentes designam esse mesmo As pesquisas de mestrado de Márcia


tipo de atitude, o que se mostrou presen- e Maria Diva, contribuem significativa-
te em todos os momentos do Encontro mente para o exercício que nos propo-
de Saberes e Sabores. Só uma história mos realizar no âmbito do Mestrado em
insubmissa permite que, desde a criança Sustentabilidade junto a Povos e Terras
mais pequena até as pessoas mais velhas Tradicionais, fortalecendo nossos pres-
da comunidade, todos/as tenham sempre supostos quanto à força transformado-
a convicção anunciada de que sua histó- ra das novas epistemologias que podem
ria comum é uma história de liberdade emergir a partir do diálogo de saberes.
e não de escravidão, como nos ensinam Nossa compreensão é de que para além
as seis crioulas que orgulhosamente são das estratégias políticas que envolvem a
apresentadas como mulheres que chegam formação de alianças com grupos igual-
livres à região, e das quais todas/os, ho- mente subalternizados - por exemplo o
mens e mulheres, são continuadoras/es. engajamento em pautas do movimento
Ao destacarmos que o território como quilombola, negro e de mulheres - e a ne-
lugar educativo é uma concepção que per- gociação de diferentes espaços de articu-
passa os trabalhos de Márcia e Maria lação, parte importante do enfrentamen-
Diva, aprendemos que estes são também to aos desafios contemporâneos de povos
espaços em disputa, interna e externa- e comunidades tradicionais (PCTs) vem
mente, investidos que estão em processos da formação de sujeitos oriundos desses
históricos de enfrentamento, resistência, contextos para o exercício teórico-intelec-
luta e ressignificação. Alguns desses, as- tual no âmbito dos debates sobre temas
pectos em que Conceição das Crioulas de seu interesse como sustentabilidade,
abriu frentes pioneiras, caracterizando- educação, território etc.
-se por uma historicidade moldada pela A formação de uma intelectualidade
prática, pelas descobertas por exemplo oriunda de povos e comunidades tradi-
de como construir uma proposta de edu- cionais, configura um processo de agen-
cação diferenciada que faça sentido para ciamento demandado por essas mesmas
comunidades quilombolas, ou de como coletividades. Tal inserção tem resultado
reconhecer aspectos de opressão de for- em reflexões muito significativas do ponto
ma insubmissa, construindo uma narra- de vista das experiências vivenciadas em
tiva pautada na liberdade, resistência e contextos comunitários, incitando debates
emancipação. caracterizados por uma pluralidade de vi-

223
CRISTIANE DE ASSIS PORTELA / MÔNICA CELEIDA RABELO NOGUEIRA

sões de mundo, concepções cosmológicas, impulsionar no MESPT. Entre elas des-


posicionamentos políticos, compreensões tacamos: a reelaboração de perspectivas
narrativas e situações históricas distintas. teóricas interdisciplinares submetidas a
A própria presença e especificidade das lógicas culturais internas que extrapolam
produções desses sujeitos provoca questio- os saberes acadêmicos já reconhecidos; o
namentos às concepções epistemológicas reconhecimento de proposições metodo-
e procedimentos metodológicos que nor- lógicas que contemplem a atuação pro-
teiam a universidade, especialmente nas fissional de pesquisadores que desempe-
pesquisas sob o campo interdisciplinar – e nham o papel de tradutores culturais
os trabalhos de Maria Diva e Márcia dão entre os saberes da ciência e os saberes da
mostras disso. tradição, sobretudo por meio de práticas
Muito se tem debatido academicamen- colaborativas e de autoria compartilhada;
te sobre o potencial de estímulo a produ- e a possibilidade de fazer reverberar as
ções que possam fazer frente à colonização produções acadêmicas em seus contextos
do conhecimento, dado o reconhecido es- sociais de aplicação, investindo em estra-
gotamento dessa perspectiva, conforme tégias narrativas que possibilitem ampliar
demonstrado especialmente pelas refle- a capacidade das pesquisas de se fazerem
xões do campo das ciências humanas e comunicar a um público mais amplo.
sociais, alinhadas com teorias críticas, A sessão devolutiva que integrou a
leituras pós-coloniais, os estudos da de- programação do Encontro de Saberes e
colonialidade e as perspectivas afrocen- Sabores em Conceição das Crioulas foi
tradas, entre outras. Associam-se nessas dedicada à apresentação das pesquisas
críticas três elementos: a preocupação em realizadas por Márcia e Maria Diva, mas
pensar de forma articulada o conteúdo também da pesquisa de mestrado reali-
das pesquisas, a elaboração de metodolo- zada em 2012 por Givânia Maria da Sil-
gias inovadoras para o desenvolvimento va9 (publicada em livro no ano de 2016)
destas e a consideração do lugar de fala e as suas proposições para o doutorado,
dos novos sujeitos que articulam um des- iniciado em 2017, no Departamento de
locamento em relação às trajetórias clás- Sociologia da UnB. Esse compromis-
sicas de formação intelectual no Brasil. 9 SILVA, Givânia Maria da. Educação como proceso de luta
Temos como consequências desses política: a experiencia de “educação diferenciada” do territo-
rio quilombola de Conceição das Crioulas. [Dissertação de
deslocamentos, algumas possibilidades Mestrado- Faculdade de Educação]. Brasília: PPGE-UnB,
de pesquisa, que buscamos acolher e 2012.

224
SOBRE AFETOS, APRENDIZAGEM MÚTUA E FAGULHAS CONTRA-HEGEMÔNICAS

so ético com a devolutiva de pesquisas, meira que nos apresenta o caráter pro-
tantas vezes esquecido na universida- fissional do curso, o que exige a aplica-
de, tem significado especial quando as bilidade dos conhecimentos no âmbito
pesquisadoras são membros da própria de atuação de estudantes que se forjam
comunidade de interlocução. Seus efei- como intelectuais, ao mesmo tempo que
tos extrapolam a mera comunicação de se fortalecem como profissionais de suas
resultados de pesquisa, pois alargam os áreas de conhecimento. Para que essa
horizontes da comunidade pela força do intelectualidade insurgente no Brasil
exemplo. Pela sua representatividade, possa efetivamente incidir na transfor-
fortalecem o sentido coletivo na cons- mação da realidade das comunidades, é
trução de um pensamento crítico e pro- imprescindível reconhecer que não há
positivo sobre sua realidade, estimulam dissociação entre formação intelectual,
o debate, e acionam novos elementos atuação profissional e os modos de vida
gerados pela pesquisa, mas em termos que nos constituem como sujeitos, seja
próprios e com vistas à autodetermina- individual ou coletivamente, a partir de
ção. Rompe-se, assim, com as oposições marcadores de etnicidade e cultura, ou
sujeito/objeto, teoria/prática, ainda tão pelas inscrições profissionais que igual-
presentes nas pesquisas acadêmicas – mente nos atribuem identidades e nos
e por que não dizer também à oposição envolvem em engajamentos específicos.
centro/periferia. Afinal, as defesas de Partimos, portanto, de uma concepção
dissertações realizadas nas universida- que lê o intelectual como aquele que se
des, alienadas de seus contextos de ori- apresenta como um sujeito pleno e não-
gem e dos interlocutores que a tornaram -monolítico, combatendo uma visão es-
possível, assinalam um espaço de poder tereotipada que distingue mente, corpo
e centralidade na produção do conhe- e concepções ontológico-afetivas, fazen-
cimento (o meio acadêmico), em detri- do crer que o intelectual opera somente
mento de uma perspectiva policêntrica, como mente, fracionando-se ao assumir
orientada para a produção de autono- esse papel. Em especial, as elaborações
mias locais. teóricas de intelectuais indígenas lati-
Ao vislumbrarmos tais possibilidades no-americanas e do feminismo negro,
em torno das formas de se renovar a pro- têm questionado tais compreensões
dução e a circulação da pesquisa estamos acerca do papel da teoria e atuação da/
também atentas à intencionalidade pri- do intelectual (nesse sentido, podemos

225
CRISTIANE DE ASSIS PORTELA / MÔNICA CELEIDA RABELO NOGUEIRA

citar os trabalhos de Bell Hooks, Glória sibilidades de superação desse quadro,


Anzaldúa, Angela Davis e Djamila Ribei- enquanto mulheres quilombolas engaja-
ro, para citar somente algumas10). das na produção de conhecimento, que
Historicamente, há em nossa tradição tendo conquistado espaço na Academia,
acadêmica diversos processos estruturais não abdicaram, mas ao contrário, segui-
que desestimulam a atividade intelectual ram afirmando sua condição e origem
de sujeitos considerados subalternos e como elementos fundamentais nesse
que durante muito tempo não acessaram exercício. Dito de outro modo, ser mu-
os espaços clássicos de produção do co- lher, negra e quilombola implica em uma
nhecimento. Há de se ressaltar que o es- perspectiva tão particular, quanto poten-
paço intelectual - durante muito tempo te e renovadora das formas de conhecer,
reservado aos sujeitos alinhados com um comunicar e atuar sobre a vida.
padrão que se tornou hegemônico - tor- Oxalá possamos valorizar as potencia-
nou-se ainda mais inacessível às mulheres lidades epistemológicas que trabalhos
que aos homens, na medida em que estas como os de Márcia e Maria Diva apresen-
por vezes não encontraram estímulos à tam para a formação de outros pesqui-
intelectualidade durante o seu processo sadores que virão, reforçando a ideia de
de socialização e escolarização. Tal con- uma nova intelectualidade que se apre-
cepção reforçou um cruzamento perverso senta para nós como fagulhas contra-he-
entre contradições de raça, etnia, classe e gemônicas em um cenário tomado ainda
gênero, conformando a condição de ina- por hegemonias que fragmentam a vida,
cessibilidade do trabalho intelectual aos reduzindo sua expressão e beleza.
sujeitos oriundos de coletivos étnica e
culturalmente diferenciados ou daqueles
atuantes em movimentos sociais.
Márcia e Maria Diva representam pos-

10 HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como


prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013. ANZAL­
DÚA, Glória. “Falando em línguas: uma carta para as mulhe­
res escritoras do Terceiro Mundo”. Trad. Édina de Marco
in Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000b.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo,
2016 [1981]. RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo
Horizonte: Editora Letramento, 2017. [Coleção Feminismos
Plurais]

226
proporcionando, como seria desejável e
Tankalé endógeno, um envolvimento horizontal e
Oficina de Desenho aberto da comunidade.
O desenho foi um pretexto para co-
ISABELI SANTIAGO nhecer: a comunidade, o território, a sua
LUÍSA MAGALHÃES história e a sua luta. A nossa oficina es-
MARIANA DELGADO1 tabeleceu os seus eixos orientadores em
três propostas: o desenho imaginário, o
A oficina de desenho realizou-se duran- desenho de observação e o desenho de
te três dias (de 17 a 20 de julho de 2017) retrato coletivo. A partir destas propostas
com duas sessões diárias, com uma dura- e da implementação do diário gráfico foi
ção de quatro horas de manhã e quatro de possível traçar uma cartografia multis-
tarde. A atividade artística desenvolveu- sensorial – texturas/pintura/decalque/
-se, sobretudo, com grupos de crianças e stencil/desenho – do local, a Vila Centro,
jovens em idade escolar do quilombo mas identificar zonas de interesse ou temáti-
a participação na mesma não estava res- cas comuns, e adentrar na memória ima-
trita à faixa etária. Em média, os grupos terial através das narrativas das histórias
variaram entre 20 a 40 participantes por particulares do Quilombo de Conceição
sessão. das Crioulas.
Os grupos foram aumentando num de-
safio ao espaço da oficina. Eram crianças
a entrar pelas janelas, pessoas que de tan-
to espreitarem se entranharam nos nos-
sos desenhos, crianças que se juntavam
atrás de nós nos caminhos já traçados
antes de nós por tantos pés. Deste modo
abriu-se espaço para uma convivência
menos determinada pelas limitações da
sala de aula, para que professores/as,
mães, pais, familiares, amigos e os de-
mais interessados pudessem participar,

1 ID_CAI, i2ADS.

227
ISABELI SANTIAGO / LUÍSA MAGALHÃES / MARIANA DELGADO

228
OFICINA DE DESENHO | CONTAR PARA TODO O MUNDO

229
ISABELI SANTIAGO / LUÍSA MAGALHÃES / MARIANA DELGADO

230
tro com as Artes, a Luta, os Saberes e os
O que a Sabores da Comunidade quilombola de
Comunidade Conceição das Crioulas. Este encontro foi
realizado através de ações educacionais,
Quilombola de oficinas, formações de professores e pro-
Conceição das fessoras, com o objetivo de comemorar
os 17 anos de aniversário da AQCC. Este
Crioulas viu e encontro foi um dos maiores até mesmo
na história do Município de Salgueiro e
ouviu durante o realizado pela Associação Quilombola de
'Encontro com Conceição das Crioulas, o Grupo Identi-
dades e com a parceria de varias institui-
as Artes, a Luta, ções de Ensino Superior de vários estado
brasileiros e de outros países a exemplo
os Saberes e os de Cabo Verde.
Sabores'? Durante a semana de 16 à 24 de Julho
de 2017 a Comunidade Quilombola de
Conceição das Crioulas vivenciou ativi-
CELCIA MARCELINA DE OLIVEIRA1
dades educativas voltadas para o campo
Conceição das Crioulas, comunidade das Artes. Foi também não só momentos
quilombola localizada no sertão pernam- de estudos, mas também de dança, troca
bucano. Comunidade conhecida inter- de saberes e sabores. Momento de inte-
nacionalmente pela sua história de luta, ração e descontração. Momento de co-
pelo artesanato, pelo processo educacio- nhecer e conviver com pessoas diferentes.
nal que se entrelaça com a vida da comu- Diferentes no jeito de falar, de se vestir
nidade. mas, iguais no pensamento de que a efeti-
No mês de julho a festa em comemora- vação de educação respeite as diferenças,
ção ao aniversário da AQCC - Associação sendo sim compromisso de todos e todas
Quilombola de Conceição das Crioulas nós. E ainda refletindo sobre as palavras
vem se tornando tradicional. Em 2017 de do Mestre Paulo Freire “Se a educação
16 a 24 de Julho foi realizado o 1º Encon- sozinha não transforma a sociedade, sem
ela tampouco a sociedade muda” Falar
1 Professora da Comunidade Quilombola. de mudança de pensamento parece fá-

231
CELCIA MARCELINA DE OLIVEIRA

cil, mas não é, pois as pessoas precisam ações que não deram muito certo e que
romper até mesmo com seus medos e em 2019, o 2º Encontro com as Artes, a
preconceitos. Foi uma semana muito in- Luta , os Saberes e os Sabores, será ainda
tensa pela movimentação de mais de 200 melhor.
pessoas nos diversos espaços de apren- Queremos aqui agradecer em especial
dizagem da Comunidade a exemplo das ao IDENTIDADES que desde de 2003 de
Escolas Professora Rosa Doralina Men- forma sistemática vem contribuindo com
des, Escola Professor José Mendes, Esco- a educação em Conceição das Crioulas e
la José Néu de Carvalho, a Casa da Co- que em 2017 não mediu esforços para
munidade Francisca Ferreira, a casa das que o encontro com as Artes aconteces-
Juventudes - Girlene Rosa e ainda alguns se. Agradecer também pelo empenho da
pontos turísticos como o Caldeirões dos AQCC através da Comissão de Educação.
Ossos, a Pedra Preta … Agradecer também às Universidades que
Vale salientar o empenho e importân- estiveram presentes representadas por
cia das diversas pessoas que contribuí- estudantes, professores e professoras.
ram para que essas atividades pudessem
acontecer da melhor forma. Atividade
realizadas muitas vezes por pessoas que
deixaram o conforto de suas casas, a au-
sência e saudade de suas famílias com o
objetivo de ensinar e aprender. Estudan-
tes, professores, professoras, pessoas que
sonham e trabalham no sentido de cons-
truir uma escola democrática onde todos
e todas possam conviver bem. Estiveram
presente nessa semana de atividades,
crianças, jovens, adultos e idosos da Co-
munidade. Ao final do encontro houve a
socialização dos trabalhos realizados du-
rante as oficinas.
Houve desencontros? Houve sim! Até
porque somos humanas. Mas, estes de-
sencontros nos fazem rever algumas

232
reflexão na formação docente em artes
Trocas poéticas visuais? Como as mulheres de Conceição
/ educativas no das Crioulas articulam-se com questões
de gênero e sexualidades? Quais contri-
Encontro com buições os deslocamentos para dentro de
si trazem para formação docente no exer-
as Artes, a Luta, cício de imersão em outras realidades?
os Saberes e Meus caminhos nestes relatos perpassam
os campos reflexivos das Artes Visuais;
os Sabores da Arte/Educação; Gênero; Sexualidades;
Memória.
Comunidade
Quilombola de Olho a estrada espantada: És estra-
Conceição das da sem fim? Um mistério estranho,
o desconhecido para mim. Nada sei
Crioulas desse lugar. No entanto, veja que es-
tranho, escolhi estar aqui. De coração
PRISCILA FERREIRA AGOSTINHO1 aberto disponho-me a ler o livro da
vida. Isso, o livro que irei ler chama-
Resumo -se vida. Um livro que não está em
O “Encontro com as Artes, a Luta, os Sabe- minhas mãos, não acho em livrarias
res e os Sabores da Comunidade Quilombola ou bibliotecas. Ele fica na boca dessas
de Conceição das Crioulas” aconteceu de pessoas. Estou assustada, a saudade
15 a 22 de julho de 2017 na Comunidade de casa já bate na porta do meu cora-
Quilombola de Conceição das Crioulas ção. No entanto, veja que estranho,
em Salgueiro município do Sertão de Per- eu escolhi estar aqui. Vejo três bois se
nambuco. O texto é um relato pessoal e arrastando pela estrada. O céu, exaus-
evidencia as experiências vivenciadas na to de azul, abriga uma multidão de
comunidade. Quais as possibilidades de pássaros que dançam pra lá e pra cá.
recorrer a memória como dispositivo de Bocejo e espero... Vejo meu reflexo no
1 Artista visual, graduada no curso de Licenciatura em Artes
retrovisor da van, minha imagem mis-
Visuais da Universidade Federal de Pernambuco. turada a paisagem da estrada sem fim.

233
PRISCILA FERREIRA AGOSTINHO

Olho-me com espanto. Sou mesmo aromas, saudades.


um mistério para mim.
15 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas. Desacelerando
O dia ainda está na metade. Parece
Memórias que o tempo aqui demora me desacelera
Na parede a santa negrinha pregada, “acalma a minha pressa”. Aqui o tempo
Aparecida é seu nome. A casa, o relógio, não escorre feito água. Aqui o dia é uma
o tempo. E na porta de casa? Na porta mulher sentada e nua. Sinto o dia passar
de casa uma estranha menina de cabe- lento nesse vento que sopra meus cabelos.
los prateados, olhos cheios de luz. Seus Repare o tempo aqui passa como aquele
olhos brilham como estrelas desse céu homem que passa espiando o nascer dos
imenso. Pele franzida -um susto- parecia seios da menina magra. Enfim, anoite-
não esperar nossa chegada. Após o susto, ceu. Contei: ufa! Menos um dia!
um sorriso discreto, tímido e acolhedor. 16 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas.
Ela de coração aberto. Eu um coração
desconfiado. Ela com olhos de estrela. Eu Ser silêncio sem culpa
com olhos de orvalho. A casa, o altar, o Sinto-me estranha, com saudades de
cheiro, remexendo alguma coisa em mim. casa. Sentada na calçada da Escola Mu-
Memórias eternas, lindas histórias. Ma- nicipal Professor José Mendes, eu e mais
rina, Aparecida remexendo alguma coisa três companheiras de formação. Todas
em mim. São memórias que eu acreditava enviando notícias para casa. Esse é o úni-
não ter, e nem sei se são minhas. co lugar que consigo conectar- me com
15 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas. minha família, único ponto com acesso
a internet da cidade e é restrito a profes-
Aprendi que “na arte e na vida memó- sores (as) e convidados (as). Talvez, essa
ria e história são personagens do mesmo sensação de estranhamento seja por es-
cenário temporal (...) a memória não res- tar longe de casa, com conexão limitada.
peita regras nem metodologias, é afetiva Estou em outro lugar, longe de casa, em
e revive a cada lembrança” (BARBOSA, outras condições vivendo outra realida-
2008, p.1). A arte provoca em mim pen- de. Meu coração está apertado, feito pés
samentos críticos, reflexivos, políticos. 36 calçando um sapato 34. Por um ins-
Mas também desperta sensibilidades, tante, paro e reparo o céu. Um céu pro-
sentidos diversos, afetos, proximidades, fundo. Parada sentada na calçada com

234
TROCAS POÉTICAS / EDUCATIVAS

olhos profundos esqueço-me de respon- curo ser silêncio também. É que, assim
der às inúmeras mensagens recebidas via como Paiva (2012) eu sinto-me obrigada
whatsApp, esqueço-me até de interagir a buscar por outros ares para respirar,
com minhas companheiras de formação. embora sinta medo do por vir, procuro
Meus olhos tão profundos como esse céu abrir-me ao novo, diferente, desconheci-
que vejo. Não digo nada e peço-lhe: não do para confrontar realidades. Aprender
me digas nada também. Ficaremos assim a ser é um exercício diário e requer uma
por um tempo. Eu, ingênua e frágil que escuta atenta.
nada diz. Ele profundo e estrelado, uma
canção linda dessas que se lê dançando. Pausa I
Com ingênua graça continua a não me Sentada num banco de praça vejo ima-
dizer nada. Estou fragilmente pintada de gens. Daqui vejo ao longo do caminho de
céu, de silêncio. Havia desaprendido a ser areia uma menina correndo com um bal-
silêncio sem culpa, mas não para sempre. de. O vento balança-lhe a saia estampada
Talvez, haja despedida, mas essa linda de nada. A menina corre e na areia seca
canção ingênua e frágil que nada me diz não imprime nenhum rastro.
penetra tão fundo em meus olhos. Nada 17 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas.
me digas! Eternizei-te!
16 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas. Alma Perdida
Penha, Fabiana, Rosi, Valdeci, Lour-
Penso na falta que sinto em poder ser des, Márcia todas belas. Olhos serenos
silêncio sem culpa. Geralmente, não falo de resistência. De silêncio não são feitas.
muito e sempre sou questionada por isso. Cheias de uma estranha claridade. Anjos
Como ser professora assim? Sou atenta a que me tocam. Sensíveis, num canto grave
detalhes, com isso, interesso-me em ouvir e profundo se revelam insaciáveis. Insaciá-
o que o outro (a) tem a dizer. E acredito veis buscam ser grandes, e são. De alma
que professores (as) precisam aprender revirada procuro desentender meus sabe-
a ser silêncio também, talvez assim, seja res, assim, procuro entender o que busco
possível “embrenhar-se em diferentes ca- aprender com essas mulheres. Meus olhos
minhos e encharcar-se de possibilidades” embriagados de questionamentos, dúvi-
(BORRE, 2016, p. 175). Ouvidos atentos das, incertezas vão ficando cada vez mais
podem facilitar o processo de imersão em lúcidos. Alma perdida, vagando pela vida.
outras realidades. Por estes motivos, pro- Parece que eu entendo, e depois desenten-

235
PRISCILA FERREIRA AGOSTINHO

dendo. Fico sem saber, entendendo sem- que será ministrada pelo grupo de pes-
pre pouco, quase nada. De alguma manei- quisadoras ao qual pertenço neste mo-
ra elas enchem minha alma de claridade. mento. O grupo é formado por professo-
Mas quanto mais claridade minha alma ras e estudantes do curso de licenciatura
recebe mais ela se perde. em artes visuais da Universidade Federal
17 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas. de Pernambuco. A oficina faz parte da
programação onde buscamos proporcio-
“Trabalhe com a incerteza” (MORIN, nar um espaço de compartilhamento e
2005, p. 205). Li isso dia desses e achei reflexão a cerca de questões de gênero e
complexo. Associar ações pedagógicas às sexualidades. Terei uma participação dis-
aprendizagens que se instauram na dú- creta, imagino eu. Sempre sou discreta
vida e na incerteza é desafiador. Enten- nas colaborações, às vezes, interajo mais
do que a clareza que busco talvez nunca como menina que nada sabe no meio de
aconteça e outras formas de pensar ator- tanta gente sabida. Eu mais escuto que
mentam. Confesso, por vezes sinto-me falo, quase sempre é assim. Talvez, por
confusa e com muitas incertezas. Segun- medo, por não ter o que dizer, ou até por
do Morin para mantermos um diálogo achar que devo ficar calada. Sou um poço
com o mundo precisamos trabalhar com vazio, é assim que me sinto. Vazia! E esse
incertezas. Isso perturba. Mas acredito poço parece estar vazando. Quanto mais
ser necessário, por exemplo, duvidar de me inundam com novos conhecimentos e
ações que moldam nossas subjetividades saberes me sinto ainda mais vazia. Esva-
numa tentativa de homogeneizar e nor- ziando... Encontro-me, desencontro-me.
matizar comportamentos/identidades. Acho-me, perco-me. Entendo, desenten-
Certezas absolutas podem aprisionar su- do. É um vai e vem sem fim. Me visto de
jeitos, limitar a produção de conhecimen- fé, o almoço é um momento para refletir
tos e as aprendizagens. Agora me sinto e me preparar. Em poucas horas lançar-
ainda mais provocada a questionar. Para -me-ei em mais uma aventura nesse pro-
algumas pessoas isso pode representar cesso conflitante de vir a ser...
um tormento, e para outros (as) pode ser 18 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas.
libertador é o que diz Morin (2005).
Rompendo o planejamento
Pausa II Se as palavras me faltam é porque os
Preparo-me para oficina de bordado sentimentos não são claros ainda. Não

236
TROCAS POÉTICAS / EDUCATIVAS

consigo descrever a experiência vivencia- para isso. Na verdade, escrevo para mim
da ontem na oficina de bordado. Entre mesma. Escrevo para não sufocar. Estou
linhas, agulhas, cartas, fotografias o pro- presa em mim, nas minhas cartas, diá-
tagonismo não foi apenas do grupo pro- rios. O que me levou a expor meus relatos
positor da oficina. Conexões foram esta- na oficina de bordados? Essa questão me
belecidas a partir do compartilhamento acompanha no momento. Mas não tenho
de histórias sobre questões de gênero e pressa em achar a resposta.
sexualidades. Compartilhei um relato 19 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas.
pessoal. Um assunto delicado para mim
e difícil de expor. Eu não havia planejado Romper o planejamento parece ser ou-
expor-me. Rompi com meu planejamen- tro saber atribuído a profissão docente.
to, decidi entrar na questão trazida por Rompi para permitir a imersão na questão
uma participante. Ouvi seu relato e me trazida por uma das participantes da ofici-
senti confortável para expor um recorte da na. Não fui a única a sentir necessidade em
minha história. Acredito que romper com valorizar as questões trazidas por ela. Sua
planejamentos deva fazer parte da ação narrativa sobre relacionamentos abusivos
pedagógica de professoras (as). Saí de foi inesperada e nos fez refletir sobre estar-
lá mais forte, consegui falar sem chorar, mos preparados o imprevisível em sala de
sem pensar em desistir no meio da con- aula. Com isso, questiono-me se esse tipo
versa. Não me senti sufocada, o ar entrava de ação se aplica a sala de aula.
por minhas narinas, chegava aos pulmões Logo, após o relato sobre relacionamen-
e eu falando como uma matraca. Algumas tos abusivos outra participante compar-
meninas, ao meu lado, ao ouvirem o meu tilhou o sofrimento da mulher que sofre
relato me olharam com olhos de peixe, abuso sexual e é discriminada por denun-
arregalados! Uma delas me procurou no ciar o crime. Diante disto, me senti confor-
final da oficina, pediu-me um papel e dis- tável para falar sobre violência sexual. Ao
se “vou te escrever uma carta, amanhã te expor meu relato na oficina identificando,
entrego”. No dia seguinte, eu perguntei escolhendo e reconstruindo experiências
sobre a carta, ela me disse “escrevi, mas busquei “uma compreensão de si mesmo e
posso não entregar?” e eu respondi que de experiências vividas que, desafiadoras,
não precisava me entregar a carta. Por ve- sofridas ou decepcionantes/desagradá-
zes, escrevo cartas e as guardo em segredo veis, podem ser transformadas em apren-
e apenas revelo se me sinto confortável dizagens” (MARTINS, 2009, p. 38).

237
PRISCILA FERREIRA AGOSTINHO

Minha trajetória ganhou sentido, pois


ao narrar “os indivíduos reorganizam sua
experiência de modo que elas ganhem
coerência e significado, dando sentidos
a eventos/acontecimentos marcantes nas
suas trajetórias” (MARTINS, 2009, p.
36). E ao compartilhar essas narrativas
demonstramos desejar reconhecimento,
afirmando nossa existência no mundo.
Contando minha própria história e re-
lacionando realidades foi possível ques-
tionar certezas num processo de ver a si
mesmo ao narrar e ver-se no outro ao ou-
vir e compartilhar.
Além de compartilhar histórias sobre
gênero e sexualidades na dimensão oral
reproduzimos essas narrativas de manei-
ra criativa através do bordado. Nas pala-
vras de Martins (2009) as narrativas po-
dem ser orais, escritas, sonoras e visuais.
E as maneiras de expressar-se são diver-
sas, indo além da dimensão textual. Com
isso, quem narra pode expressar-se por
um desenho, escultura, colagem, perfor-
mance, instalação, poema, cartas abrin-
do outras possibilidades. Nesse sentido,
narrar é “contar algo sobre o mundo, so-
bre a existência, sobre o outro ou sobre si
mesmo” (MARTINS, 2009, p.33).

Imagens produzidas na oficina de bordados em


Conceição das Crioulas, Priscila Ferreira, 2017.

238
TROCAS POÉTICAS / EDUCATIVAS

Como explica Torregrossa (2016) a pes-


quisa narrativa favorece a inclusão das
experiências humanas e seus relatos não
apenas no campo científico, mas no mun-
do. E explorando uma dimensão relacional
de pesquisa e produção artística é possível
“colocar em contato o sensível, as pessoas
e a vida” (TORREGROSA, p.255, 2016).
Para além, dos conhecimentos relacionais
a pesquisa narrativa nas palavras de Torre-
grossa (2016) se estende e cresce propor-
cionando uma troca atraente, nos levando
a participar dos relatos dos outros (as) ca-
racterizando uma pesquisa sensível.
Chaves (2014) também faz reflexões
sobre o uso das narrativas na formação
docente como elemento de reflexão sobre
suas práticas de ensino, articulando valo-
res e crenças, assim, a teoria de ensino ga-
nha forma. Com isso, seria possível entre-
laçar pessoas, remexendo seus modos de
ver, refletir, sentir e agir. Segundo Chaves
(2014) ao confidenciar nossas histórias
estamos contando nossa vida a alguém, e
também podemos utilizar esses meios para
modelar nossa identidade. Aprofundando
essa concepção Martins (2009, p.38) diz
que narrativa artográfica é “uma forma de
compreensão da experiência, um processo
performativo de fazer ou de contar uma
história”, ou seja, narrar algo em episódios
através de imagens sejam elas fotografias,
desenhos, pinturas, performance, videoar-

239
PRISCILA FERREIRA AGOSTINHO

te, etc. De acordo com Dias (2013) a a/r/ subjetividades. Com isso, minha traje-
tografia, neste caso, apresenta-se como tória vem ganhando sentidos diversos.
uma metodologia e pedagogia em Artes Desse modo, sinto-me inserida no mun-
tendo como proposta entrelaçar escrita do. E ao compartilhar um recorte da mi-
acadêmica e a produção artística. nha história com outras mulheres na ofi-
Falar sobre questões de gênero e se- cina de bordados no Encontro, eu disse
xualidades dentro de âmbitos ligados a mais uma vez: eu existo! Talvez, ao com-
religiosidade é difícil, desafiador, e neces- partilhar nossas experiências/narrativas
sário. Podemos perpetuar exclusões, mas, poeticamente com outras pessoas seja
também, é possível criarmos cada vez mais também uma forma de dizer: eu existo!
espaços democráticos e inclusivos com po- Estamos demonstrando nosso desejo por
tencial para desconstruções de narrativas reconhecimento. Eu não sabia disso, ago-
consolidadas. Falar de uma forma crítica e ra sei. E sei, pois aprendi essa lição aqui.
reflexiva sobre questões de gênero e sexua- Uma comunidade singular com olhar
lidades em Conceição das Crioulas foi uma atento a invasores. Eles (as) sabem a im-
forma de discutir as separações de gênero, portância de estar junto, lutar junto. Eles
as opressões de sexualidades valorizando (as) sabem algo que não consegui apren-
uma diversidade de sujeitos que pensam der em quatro anos na universidade. Eles
de modo diferente e possuem narrativas (as) sabem que a “verdadeira liberdade
diversas, mas por vezes interligadas. As de um povo é poder contar sua própria
histórias se entrelaçaram estabelecendo história”, como tem pintado no banco da
conexões entre as participantes. A partir praça bem no centro da cidade.
desta experiência meu desejo em me empe- 20 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas.
nhar para que cada vez mais as narrativas
das “minorias” sejam valorizadas, respei-
tadas e legitimadas cresceu e vai durar.

Pausa III

Por que continuo contando minhas


histórias? Agora parece que tenho uma
resposta. Acredito que ao narrar consigo
organizar melhor minha história, minhas

240
TROCAS POÉTICAS / EDUCATIVAS

Pausa IV Pausa VI

Memória Fotográfica, Priscila Ferreira, 2017. Memória Fotográfica, Priscila Ferreira, 2017.

Cultivação
Pausa V Aqui todos (as) parecem reconhecer a
importância do conhecimento sobre suas
origens e do cultivo das mesmas. Cultivar.
Cultivarei essa palavra em mim. Esses dias
na Comunidade Quilombola Conceição
das Crioulas tenho cultivado em meu co-
ração a importância do cultivo. Essa lição
aprendi a um tempo atrás cultivando plan-
tinhas. Ou melhor, aprendi não cultivan-
do. Mas parecia haver esquecido. Imersa
em preocupações secundárias, fiz do meu
coração um relógio. Sempre num tempo
Memórias Fotográficas, Priscila Ferreira, 2017.
apressado, fui ficando sem ar, sufocando.
Deixei de lado a tarefa mais importante
da cultivação. Minha plantinha adoeceu,
adoecemos juntas. Parei, olhei para ela
morrendo, morrendo... assim, como eu.
Reguei-a quase sem esperança, mas com
muita fé. Estávamos juntas cultivando em

241
PRISCILA FERREIRA AGOSTINHO

nós a beleza particular de cada uma em de novos saberes, de novos sabores.


meio ao caos, nosso caos. Regradas, re- 21 de Julho de 2017, Conceição das Crioulas.
gamos nosso interior com muita beleza,
Para Saborear
poesia, delicadeza, saberes, sabores. Como BARBOSA, Ana Mae. In: BARBOSA, Ana Mae
nós nos abandonamos? Uma esqueceu-se (org). Ensino da arte: memória e história. São
da outra? Feito as pazes, regamos nos- Paulo: Perspectiva. 2014.
so interior de esperança. Mesmo frágeis, BORRE, Luciana. Entre fios, linhas e agulhas:
pesquisa narrativa a/r/tográfica e suas possibi-
crescemos. Nós nos regamos de amizade, lidades na formação de professoreas/es. Carte-
silêncio, boa música, cultivação. Cultivos ma - Revista do Programa de Pós-Graduação
internos. Olhar a terra do nosso interior, em Artes Visuais UFPE/UFPB. No 5. Ano 5.
2016. Disponível em: https://issuu.com/ppgavu-
reparar detalhes que com pressa não perce- fpeufpbrevistacartema/docs/cartema_5/50
bemos. Contemplar, regar cada folha, cada CHAVES, Iduina Mont’ Alverne Braun. Histórias
flor que cresce em nós. Contemplar e regar, de vida e formação: cultura, imagens e simbo-
cultivar com carinho e amor de quem com- lismos. 2014. Disponível em: https://periodicos.
ufpel.edu.br/ojs2/index.php/caduc/article/viewFi-
preende a importância do cultivo. Estou le/4757/3540.
bordada de amor para olhar as questões DIAS, Belidson. Pesquisa educacional baseada em
mais perturbadoras da vida. Escolhi estar artes: a/r/tografia. Santa Maria: Ed. da UFSM,
aqui, como uma espécie de fuga. Fuga do 2013. p. 21-35.
caos da cidade? Não. Fuga do meu caos, MARTINS, Raimundo. Narrativas visuais: imagens,
visualidades e experiência educativa. VIS- Re-
mas ele me acompanha aonde quer que eu vista de Pós- Graduação em arte da Unb, Bra-
vá. Está dentro de mim. E aqui precisei en- sília, v.8 n.1, janeiro/junho. 2009. Disponível
cará-lo. Desacelerar foi preciso para abrir em: http://ida.unb.br/revistavis/Book-2010-04-
26%20VIS-%20NOVO.pdf
meu coração a troca de saberes estabeleci-
MARTINS, Raimundo. TOURINHO, Irene.
da nesse encontro. Novas sementes foram SOUZA, Elizeu Clementino de. In: MARTINS,
plantadas no terreno do meu ser. O eco Raimundo. TOURINHO, Irene. SOUZA, Eli-
desse encontro deslocou saberes e sabores. zeu Clementino de (org). Pesquisa Narrativa:
Deslocou a pedra do abismo que me sepa- interfaces entre histórias de vida, arte e educa-
ção. Editora UFSM , 2016.
ra de mim mesma. Os saberes, sabores, PAIVA, José Carlos. Inquietude artística e educativa
bordados deslocaram diferenças, entrela- de um investigador. Cartema- Revista do Progra-
çando-as. Para o bem das almas aqui pre- ma de Pós-Graduação em Artes Visuais UFPE/
UFPB. No 1. Ano 1. Dez. 2012. Disponível em:
sentes, assassinamos os abismos que nos https://issuu.com/ppgavufpeufpbrevistacartema/
separam de nós e do outro (a). Volto para docs/cartema_1
casa cheia de histórias pra contar. Repleta

242
ca contada ao longo de minha formação
Das periferias escolar, passando pela desconstrução do
urbanas ao sertão pensamento na vivência com movimen-
tos culturais nas periferias urbanas e, por
pernambucano: fim, a oportunidade de ressignificar, atra-
vés da escuta e partilha em Conceição das
(re)significando Crioulas, a importância dos territórios e
olhares na reminiscências negras quilombolas no
sertão pernambucano.
Comunidade palavras-chave:
Quilombola de quilombo; ancestralidade; identidade; terri-
tório; histórias e narrativas.
Conceição das
Zumbi, em paz com o passado e cons-
Crioulas ciente da vitamina de cada gesto por jus-
tiça no quilombo de Palmares, sabia que
STEFANY LOPES DE LIMA1 renasceria muitas vezes mais. (Allan
da Rosa - Zumbi assombra quem?)

Resumo
O quilombo dos Palmares, sem sombra
A presente narrativa tem por objetivo
de dúvidas, foi o primeiro e único de que
registrar algumas da principais reflexões
ouvi falar ao longo de toda minha forma-
e olhares acerca da vivência no “Encon-
ção, do ensino fundamental ao médio,
tro com as Artes, a Luta, os Saberes e os
nas escolas públicas da periferia de São
Sabores da Comunidade Quilombola de
Paulo. A resistência quilombola era uma
Conceição das Crioulas”, realizado em
pequena passagem, quase imperceptível,
julho de 2017. Proponho, como fio con-
próximo da ênfase que foi dada nos livros
dutor, aquilo que venho compreendendo
didáticos, tecendo uma única narrativa
e assimilando enquanto quilombo e he-
para a história do povo negro a partir
rança das africanidades brasileiras. Par- da escravidão. “Ainda é, nos dias atuais,
tindo da experiência de uma história úni- um dos materiais pedagógicos mais uti-
1 Licenciatura em Artes Visuais. Universidade Federal de
lizados pelos professores” e “em relação
Pernambuco (UFPE) à população negra, sua presença nesses

243
STEFANY LOPES DE LIMA

livros foi marcada pela estereotipia e cari- recia tão distante, repelida pelo que nos
catura” (SILVA, 2005). Alguns (poucos) foi contado como lugar de “negro escravo
professores me introduziram leituras fugido”. Afinal, ninguém quer ser cativo.
para além das obrigatórias. Uma curva Daí, uma das pontas do tecido perverso
na mão única dos currículos e conteúdos que adentra o imaginário individual e co-
oficiais, visto que, em sua maioria, “os letivo, desafiando a afirmação da identi-
professores, a quem é atribuída a ação de dade negra e, principalmente, negra-qui-
contemplar as diferenças culturais na sua lombola.
prática pedagógica, poderiam ter inter-
nalizado o senso comum da desigual-
dade” (SILVA, 2005).
A tomada de consciência sobre a he-
rança histórico cultural afro-brasileira
e o processo de afirmação da identidade
negra surgiram, por fim, da vivência nos
movimentos culturais e bibliotecas comu-
nitárias, os mocambos da zona sul paulis-
tana. Na efervescência das noites de roda,
na comunicação ancestral do tambu e nos
saraus, onde as poesias versavam que “a
periferia é um quilombo”2 e que “Zumbi
somos nós”3. Ali, ao redor da fogueira que
aquecia corpo e tambor, surgiam as faís- Oficina​ ​d e​ ​d esenho​ ​n a​ ​C asa​ ​F rancisca​ ​F erreira,​ ​
Conceição​ ​d as​ ​C rioulas.​ ​2 017. Arquivo​ ​p essoal.​
cas do pensamento, as inquietações sobre
o que era de fato um quilombo e o que tí-
nhamos a ver com uma realidade que pa-

2 Verso​ ​de​ ​​Periafricania​,​ ​poesia​ ​musicada​ ​de​ ​Gaspar​ ​Z’África​ ​


Brasil.
3 Documentário Z​ umbi Somos Nós​, desdobramento da
linguagem da Frente 3 de Fevereiro. Propõe uma reflexão
sobre questões raciais na sociedade brasileira contemporânea
e a criação de estratégias artísticas para responder a
estas questões, norteado por narradores-personagens-
MC’s, procurando​ ​converter​ ​a​ ​violência​ ​em​ ​resistência​ ​ Visita​ ​à​ ​P edra​ ​d a​ ​M ão​ ​g uiada​ ​p elas​ ​c rianças​ ​d e​ ​
simbólica. Conceição​ ​d as​ ​C rioulas.​ ​2 017. Arquivo​ ​p essoal.​ ​

244
DAS PERIFERIAS URBANAS AO SERTÃO PERNAMBUCANO

Através do escambo periférico na troca É no território onde se desdobram as


de conhecimentos, aos poucos fui com- histórias de Conceição das Crioulas, a
preendendo as quilombagens urbanas, experiência da comunidade evoca e afir-
com sua palavra, pisada, trejeitos, sota- ma as singularidades que a fazem habi-
ques, tradições, modos de ser e viver que tar tantas narrativas: o protagonismo da
vieram de longe, da ancestralidade que mulher negra quilombola, há séculos na
firmou tantos territórios quilombolas pelo linha de frente das estratégias e lutas; o
país, que migraram e reverberam nas veias enfrentamento aos que sangram gente na
da gente, pelos becos, vielas e quintais das ponta da caneta ou nas farpas do arame
metrópoles, entrecruzando harmonias e que cerca punhados de terra; o revide ao
contradições. Fui compreendendo que não racismo institucional na construção do
existe uma única, mas muitas e diversas pensamento, produção e investigação
histórias pretas - no plural - cada uma com científica, tomando como perspectiva as
suas próprias lutas, construções e memó- africanidades e sua descendência; a valo-
rias. O caminho de Palmares me foi con- rização da ciência que não é acadêmica,
dutor para compreender os pés que pisam mas ancestral; a reinvenção da engrena-
nesse chão, renascendo diariamente nas gem da educação escolar, trazendo as es-
lutas e saberes de cada quilombola. pecificidades e demandas da comunidade
como ferramenta política e emancipató-
ria; a promoção de movimentos e mobili-
zações interculturais; a multiculturalida-
de e relações afro-indígena presentes no
território; a aprendizagem viva na orali-
dade, na linguagem dos mais velhos aos
​V isita​ ​à​ ​P edra​ ​d a​ ​M ão​ ​g uiada​ ​p elas​ ​c rianças​ ​d e​ ​ mais novos; a tradição das parteiras com
Conceição​ ​d as​ ​C rioulas.​ ​2 017. Arquivo​ ​p essoal. conhecimento das chegadas ao mundo e
das benzedeiras com os fundamentos da
cura; o exercício de consciência e perten-
cimento; a sustentabilidade, comunica-
ção e autogestão nos modos de se viver e
se colocar no mundo enquanto sujeitos
da própria história.
​T erritório-moradia.​ ​2 017. Arquivo​ ​p essoal.

245
STEFANY LOPES DE LIMA

ROSA, Allan da. Zumbi assombra quem?.


São Paulo: Editora Nós, 2017. 96p.
SILVA, Ana Célia da. A desconstrução da
discriminação no livro didático. In: MUNAN-
GA, Kabengele (org). Superando o racismo na
escola. Brasília: Ministério da Educação, Se-
cretaria de Educação Continuada, Alfabeti-
zação e Diversidade, 2005. 2014p.
Comunidade​ ​Q uilombola​ ​C onceição​ ​d as​ ​C rioulas.​ ​ SILVA, Givânia Maria da. Educação como processo
2017. Arquivo​ ​p essoal.​ ​
de luta política: A experiência de. “Educação
Diferenciada” do Território Quilombola de
Pedir licença e pisar devagar. A escuta Conceição das Crioulas. Dissertação (mes-
e o olhar são princípios para aprender trado) - Universidade Federal de Brasília,
a aprender, compreender a experiência Programa de Pós-Graduação em Educação.
do quilombo que evoca a multiplicidade Brasília: UnB, 2012. 222p.
de nossas histórias negras em diáspora.
Esse entrecruzamento, mesmo em dife-
rentes contextos, propicia o reconheci-
mento no outro, na afirmação das identi-
dades negras, na urgência de existir com
as próprias linguagens e cosmovisões, na
demarcação do chão onde estão firmadas
as raízes mais profundas. Renascer nas li-
das diárias, muitas vezes mais, para ser
quem se é.

Referências bibliográficas
ANTUNES, Marta de Oliveira. A terra que volta:
gerindo territórios, memórias, conflitos e
normas em Conceição das Crioulas. Tese
(doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. Rio de Janeiro: UFRJ,
2016. 518p.
MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala: quilombos,
insurreições, guerrilhas. Porto Alegre: Merca-
do Aberto, 1988. 304p.

246
objetivo é analisar o ato de deslocamento
Experiência como prática estética, por meio do meu
estética em registro visual, da coleta de materiais (or-
gânicos ou impressos) e da produção de
Conceição das fotografias digitais, seguindo o método
de coletar, classificar, ordenar e montar
Crioulas, PE1 “imagens/documentos” de viagem, capa-
zes de garantir a continuidade da minha
ROBSON XAVIER DA COSTA2 memória visual.

Resumo palavras-chave:
Neste ensaio abordo os conceitos de Flâneur. Walkscape. Wayfinding. Estética.
Flâneur (WHITE, 2001), Walkscape (CA- Conceição das Crioulas.
RERI, 2013) e Wayfinding (HUNTER,
2010) como parte da minha experiência Introdução
estética, na construção do meu proces-
so de criação em artes visuais, a partir
de experiências estéticas vivenciadas
como artista/investigador/professor ao
me deslocar entre João Pessoa, Paraíba e
Conceição das Crioulas, Pernambuco, no
período de 20 a 22 de Julho de 2017. Meu
Robson Xavier. Série portas do mundo. Janelas e portas
em Conceição das Crioulas, 2017.
1 Ensaio desenvolvido durante a mobilidade entre João
Pessoa, Paraíba e Conceição das Crioulas, Pernambuco,
entre os dias de 20 a 22 de Julho de 2017, como membro O conceito de orientação espacial re-
da equipe de pesquisadores e estudantes da UFPB. Este
ensaio foi escrito na primeira pessoa quando descreve a
monta aos anos 1960, a partir da teoria
experiência individual do autor e na terceira pessoa quando de Kevin Lynch (1918 – 1984), definida
trata da experiência coletiva partilhada pela equipe técnica da
UFPB.
no livro “a imagem da cidade – 1960”. Pos-
2 Pós Doutorando pelo PGEHA MAC/USP (em curso); teriormente desenvolvida, por Paul Artur
Doutor em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU UFRN); (1924 – 2001) e Romedi Passini (1939
Mestre em História (PPGH UFPB); especialista em Educação
Especial (UFPB), Sociologia (UFPB/CEFET) e Educação - ), nos livros “wayfinding in architecture –
e TICs (UFPB) e Licenciado em Artes Plásticas (UFPB).
Coordenador do PPGAV UFPB. Email: robsonxavierufpb@
1984” e “wayfinding, people, signs and archi-
gmail.com. tecture – 1992”, desde então popularizada

247
ROBSON XAVIER DA COSTA

como área de pesquisa em todo o mundo. o mundo a fim de conhecê-los. Walter


Neste trabalho utilizei três conceitos Benjamim (1892 – 1940) descreveu o ter-
chave: Flâneur (WHITE, 2001), Walkscape mo como uma prerrogativa da Revolução
(CARERI, 2013) e Wayfinding (HUNTER, Industrial, relacionado ao aumento do
2010) objetivando entender a experiên- turismo, do qual ele foi um exemplo, ao
cia vivenciada como artista/investigador/ caminhar por Paris.
professor durante o período de 20 a 22 de Abordei o conceito de Walkscape a
Julho de 2017, a partir do deslocamento partir de Careri (2013) o autor italiano,
entre o Centro de Comunicação, Turismo professor da Faculdade de Arquitetura
e Artes (CCTA), da Universidade Federal da Universidade de Roma e fundador do
da Paraíba (UFPB), em João Pessoa, Pa- Stalker3 – Laboratório Nômade. O autor
raíba e o Encontro com as Artes, a Luta, compreende o Walkscape como a cogni-
os Saberes e os Sabores na Comunidade ção e criação de um pensamento cartográ-
Quilombola de Conceição das Crioulas, fico a partir da caminhada aleatória nos
Pernambuco, Brasil. espaços urbanos ou naturais, construído
Utilizei o conceito de Flâneur baseado a partir da experiência estética vivenciada
na concepção de White (2001), o autor pelo sujeito no deslocamento, em trân-
considera que o termo de origem fran- sito. Compreendendo seu entorno e as
relações estabelecidas entre a pessoa e o
cesa, refere-se ao ato de perambular, ori-
ambiente.
ginalmente, atribuído aos vagabundos,
O conceito de Wayfinding foi formula-
preguiçosos e desocupados de Paris, que
do pelos canadenses Paul Arthur (1924 –
vagavam aleatoriamente pela cidade. No
2001) e Romedi Passini (1939 - ) em 1984,
século XIX Baudelaire (1821 – 1867), as-
a partir da publicação do livro “Wayfin-
sociou o termo ao ato de perambular pela
ding and Architecture”. Em 1992, os dois
cidade, como maneira de conhecê-la me-
autores publicaram “Wayfinding, people,
lhor e torna-la significativa, o termo foi signs and architecture”, trabalhando com a
posteriormente aplicado e desenvolvido relação do público/visitante com o espa-
em pesquisas referentes ao urbanismo e ço construído. O wayfinding refere-se ao
arquitetura das cidades, tornando-se po- planejamento espacial e a comunicação
pular em todo o Ocidente. Contempora- ambiental. O planejamento espacial é
neamente o termo Flâneur está associado uma relação dinâmica entre o espectador
ao turismo, ao ato de caminhar aleato-
riamente nos espaços urbanos em todo 3 www.stalkerlab.org

248
EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

e o desenvolvimento ordenado de um Conceição das Crioulas, Pernambuco,


determinado lugar, articulado a tomadas Brasil, onde participei como membro da
de decisões dispostas pelas informações equipe de pesquisadores da UFPB.
visuais. A comunicação ambiental refere-
-se à percepção visual do entorno, fluxos, 1. Entre João Pessoa PB e Sagueiro PE
referências e marcos referenciais identifi-
cados no espaço.

Robson Xavier. Série Trajetos. Sobreposição de mapas


e imagens. 2017

Robson Xavier. Infoautorretrato a partir Mapa de


Conceição das Crioulas. Fonte: Google Maps. 2017 Saí com a equipe da UFPB do Centro de
Comunicação, Turismo e Artes, da Uni-
Esta experiência estética surgiu com versidade Federal da Paraíba, com desti-
a percepção de que o meu caminhar en- no a Salgueiro, Pernambuco, no dia 20
quanto artista/professor/educador pelos de Julho de 2017, às 8h. Era um dia de
espaços dos centros culturais, museus, sol, com temperatura que beirava os 28 a
cidades e comunidades pode influenciar 32 graus, o carro da UFPB estava cheio,
o meu processo criativo refletindo-se na sentei ao lado do motorista para fotogra-
minha produção visual e acadêmica, as- far e registrar as impressões ao longo do
socio o deambular como parte do meu caminho.
processo de criação e construção do co- Foi uma longa viagem de mais de 7h,
nhecimento. as conversas dentro do carro entre toda a
Este ensaio apresenta a narrativa do equipe da UFPB foram intensas, todos es-
meu processo de vivência como artista/ tavam entusiasmados com a possibilida-
pesquisador/professor durante o Encon- de de finalmente conhecer a Comunidade
tro com as Artes, a Luta, os Saberes e os Quilombola de Conceição das Crioulas.
Sabores da Comunidade Quilombola de O assunto girava em torno dos caminhos

249
ROBSON XAVIER DA COSTA

a serem percorridos e das coisas que vía- região. Os relevos das pedras se asseme-
mos ao largo da estrada. Após uma difícil lham as carcaças, volumes deitados na
semana de trabalho, com muitas ativi- paisagem seca.
dades burocráticas e acadêmicas, deixei Em torno das 16h cheguei com a equipe
meus afazeres cotidianos para participar a Salgueiro, cidade do Sertão pernambu-
dessa partilha de saberes e sabores. cano, com cerca de 59.400 habitantes,
A primeira parada foi na cidade de São com Índice de Desenvolvimento Humano
João do Cariri, Paraíba, para abastecer o (IDH) de 0,669. O perímetro registrado
carro, após uma longa trajetória de pelo entre João Pessoa e Salgueiro foi de 7h e
menos 4h até parar na cidade de Custó- 40m, 559 km. Minha primeira impres-
dia, para almoço. Essa foi a primeira ex- são foi de uma cidade pacata, com algum
periência gastronômica do trajeto, o chei- movimento comercial em torno das ruas
ro de churrasco inundava as margens da centrais, porém com muitos restaurantes,
rodovia, embora os sabores tenham sido lanchonetes, farmácias e muitos bares em
frustrantes, comi rapidamente para se- todos os cantos da cidade, fui informado
guir viagem com a equipe. que a cidade está situada no perímetro do
Ao longo do trajeto fiquei impacta- tráfico de drogas de Pernambuco e apre-
do com os inselbergs4 entre as cidades de senta altos índices de violência.
Sumé e Serra Branca, os lajeiros esparsos Fui com a equipe da UFPB ao hotel
na paisagem da caatinga remetem aos Polo, acomodação simples, bem no cen-
meus tempos de criança no Sertão das tro da cidade. Ao lado do hotel, um bar
Espinharas, no município de Patos, Pa- oferecia churrasquinho e petiscos, onde
raíba. Os lajeiros me fascinam, eles fazem sentamos para revisar com a equipe as
parte do meu imaginário infantil, quando atividades planejadas para serem de-
criança sonhava escalando essas pedras, senvolvidas em Conceição das Crioulas,
aparentemente inacessíveis. Observei sentindo os cheiros e sabores da cidade.
carcaças de animais mortos ao longo da Sede e calor, a temperatura com pouca
estada, rastros da seca prolongada na umidade fez toda equipe buscar constan-
temente água e um lugar fresco, porém foi
4 “Inselberg é o termo utilizado para caracterizar relevos impossível ficar em um quarto de hotel,
residuais que, podendo ser sedimentares, salientam-se em
uma planície (pediplano) em paisagem árida ou semi-árida. quando estamos em uma cidade desco-
São originados de um intenso processo erosivo típico de
ambientes áridos: a erosão paralela”. Fonte: geografianovest.
nhecida a curiosidade é estética fala mais
blogspot.com/2014/03/inselberg_6409.html. alto, sai com a equipe para conhecer o

250
EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

centro da cidade. gado a cuscuz e tapioca, sabores e odores


do Sertão, era hora de sair de Salgueiro
em direção a Comunidade de Conceição
das Crioulas.

2. Entre Salgueiro e Conceição


No dia 22 de julho de 2017, manhã de
intenso sol, parti com a equipe da UFPB
às 7h30m, saímos do centro de Salguei-
ro para a Comunidade de Conceição
Vista aérea do centro de Salgueiro, PE.
das Crioulas, um misto de curiosidade e
Fonte: www.salgueironoticias.net.br tensão, o que encontraria pelo caminho?
Como é a comunidade para além dos
dados virtuais? Como será a recepção?
Cheguei com a equipe da UFPB no últi-
mo dia do Encontro com as Artes, a Luta,
os Saberes e os Sabores da Comunidade
Quilombola de Conceição das Crioulas,
ainda seria possível contribuir para o pro-
cesso de construção da experiência estéti-
ca na comunidade?

A Comunidade Quilombola de Concei-


ção das Crioulas está localizada no 2º
distrito do município de Salgueiro, ser-
Registro do trajeto João Pessoa/Salgueiro e Salgueiro/ tão de Pernambuco, a aproximadamente
Conceição das Crioulas. Fonte: www.google.com.br/maps
550 km de Recife. Moram no quilombo
cerca de 750 famílias divididas em 16
À noite as estrelas brilham intensa- núcleos populacionais, conhecidos como
mente no Sertão nordestino, tenho mui- sítios. Com mais de 200 anos de história,
tas lembranças de imagens de céus estre- Conceição foi fundada por seis “crioulas”
lados no Sertão paraibano. Por algumas que chegaram livres à região entre fins do
século 18 e início do século 19. Elas arren-
horas, revi o céu sertanejo, memórias, daram uma área de três léguas em quadra,
cansaço acumulado, sono... No dia se- paga por meio do trabalho na lavoura e na
guinte, pulei da cama, café da manhã re- fiação de algodão, que era vendido em ci-

251
ROBSON XAVIER DA COSTA

dades vizinhas. Mais tarde, em 1802, as oficinas, que foram realizadas durante
crioulas adquiriram a escritura de suas uma semana, todos e todas giravam em
terras (CARVALHO, 2016, p. 3).
torno da partilha dos resultados.
Poucos minutos após a saída da cidade
o carro entrou em uma estrada de terra,
em obras, materiais de construção se mis-
turavam aos galhos secos, aos cactos, as
cabras, bodes, cabritos, jumentos e as
pedras da região. Conceição das Crioulas
foi a primeira comunidade quilombola a
ser reconhecida no estado de Pernambu-
co, a primeira a receber Escola Pública de
Ensino Fundamental e Médio na comu-
nidade com professores quilombolas, na
região é uma referência.

Em 1998 Conceição das Crioulas foi re-


conhecida como remanescente de qui-
lombo pela Fundação Cultural Palmares
e no ano 2000 a FCP titulou uma área de
16.865 hectares à comunidade, mas não
retirou os ocupantes externos (CARVA- Detalhe da nova cartografia da Comunidade Quilombo-
LHO, 2016, p. 11). la. Cord. de Alfredo Wagner Berno de Almeida. Fonte:
https://pt.slideshare.net/rosangelanascimentozo/cartogra-
fia-de-conceico-das-crioulas
A chegada ao Quilombo foi intensa, a
visão da pequena comunidade, organiza- Após a partilha dos resultados das ofi-
da e com estrutura de uma vila, um lugar cinas, esperei com a equipe da UFPB pela
perdido no meio da caatinga, com muitas refeição coletiva, conversando em peque-
crianças e jovens, movimentação de car- nos grupos, participei do almoço coletivo
ros e pessoas de diversos estados brasilei- preparado pela comunidade, visitei a loji-
ros, de Portugal e Cabo Verde, tornou o nha e o mercado da comunidade. Depois
contato inusitado. Cheguei com a equipe a equipe da UFPB fez uma reunião para
da UFPB no último dia do encontro, as- resolver como prosseguir com a proposta
sisti as apresentações dos resultados das da pesquisa visual na comunidade.

252
EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

Na equipe percebemos que o planeja-


mento inicial preparado para a oficina
de narrativas cartográficas, não seria
possível. Reunidos, resolvemos registrar
visualmente nossa experiência junto à co-
munidade, cartografando o caminhar na
comunidade a partir da experiência esté-
tica. Partimos em equipe para conversar
com os moradores, fotografar e filmar o
que nos chamava atenção. Santuário na casa de Dona Marina. Foto: Robson
A partir da caminhada coletiva surgiram Xavier, 2017.
muitas imagens, outros visitantes nos
acompanharam e indicaram caminhos e Fomos recebidos pelo altar repleto de
pessoas para visitar. Fomos inicialmen- santos católicos, forte referência religio-
te à praça e a igreja que estava fechada, sa da comunidade, a imagem me remeteu
no entorno da igreja Dona Marina esta- ao antigo altar da minha bisavó, no quarto
va sentada na porta da sua casa, ela nos onde dormi a maior parte da minha infân-
convidou a entrar e dividir um café fresco. cia, rodeado de santos e de flores de papel
Inicialmente ficamos receosos de invadir de bombons, feitos carinhosamente por ela
a privacidade dela, no entanto a mora- para homenagear os santos. A casa, muito
dora nos acolheu com o coração aberto, limpa, estava servindo como hospedagem
preparou o café em meio a conversas das de grupos de estudantes portugueses que
histórias de antigas festas, de alegrias, participavam do encontro. Naquele mo-
de caminhos percorridos nos tempos da mento apenas Dona Marina e a equipe da
juventude. Dona Marina é uma das mais UFPB estava na casa, foi possível perce-
antigas moradoras da comunidade. ber e sentir o prazer que ela teve ao nos
receber em sua casa, preparando o café e
dividindo os biscoitos com todos.
Após uma longa conversa, saímos ca-
minhando em grupo até a casa de Dona
Dina, uma das mais ativas e importantes
líderes da comunidade, o símbolo da as-
Dona Marina na porta de casa. Foto: Robson Xavier, 2017. sociação é uma homenagem pela sua con-

253
ROBSON XAVIER DA COSTA

tribuição à comunidade. Dona Dina nos sala pelos seus netos, imagens de man-
recebeu na sala da sua casa, estava adoen- gás, desenhos em perspectiva da igreja
tada, foi uma longa conversa sobre os mo- da comunidade, frases soltas, ao lado
radores mais antigos, sobre as ancestrais, de quadros com imagens de passagens
sobre a sobrevivência na comunidade, as da bíblia e cartazes, um ecletismo visual
conquistas, a escola, a associação, etc. intenso, influências da TV e da internet,
misturadas com as crenças comunitárias.

Desenhos na parede da sala da casa de Dona Dina.


Foto: Robson Xavier, 2017.

Dona Dina. Foto: acervo do INCRA. Fonte: http://www.


incra.gov.br/sites/default/files/conceicao_das_crioulas-
pe_26-10-16_miolo_0.pdf

Desenho na parede da parte de trás do mercado do


Quilombo. Foto: Robson Xavier, 2017.

O hibridismo visual está em todos os


lados da comunidade, nos comerciais po-
Dona Dina e sua Filha em casa.
Foto: Robson Xavier, 2017.
líticos, presentes em todo o percurso desde
Salgueiro, nos cartazes espalhados e nos
Na casa da Dona Dina fiquei fascinado desenhos feitos em paredes de residências
com os desenhos feitos nas paredes da ou por trás do mercado ou do cemitério.

254
EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

Considerações
Ao final do dia, voltamos a Salgueiro,
mais uma noite no hotel, mais uma par-
tilha, roda de conversas, dividimos as
experiências e vivências de um dia tão
intenso, descobertas, sentimentos, sabo-
res, cheiros, texturas, imagens, conver-
sas mil, aprendi muito com a resistência
dessa comunidade, com as suas mulheres
guerreiras, com sua história, suas artes, Trajeto de volta – Conceição das Crioulas/Salgueiro e
Salgueiro/João Pessoa. Fonte: www.google.com.br/maps.
seus saberes, seus sabores e suas lutas.
Ao deambular pela comunidade fui
Flâneur (WHITE, 2001), estabelecendo
conversas e registrando antropologica-
mente as imagens e falas dos moradores
de Conceição das Crioulas durante um
dia, utilizei Walkscape (CARERI, 2013) ao
caminhar em grupo por diversos recantos
da comunidade, estabelecendo relações
estéticas e visuais e o Wayfinding (HUN-
Construção na Comunidade Quilombola.
TER, 2010) ao traçar rotas, estabelecer
Foto: Robson Xavier, 2017. caminhos a seguir e registrar as referên-
cias visuais.
A experiência de ser Flâneur em pleno
Sertão nordestino, caminhar coletiva-
mente entre rotas e pessoas, conhecer
realidades e registrar etnograficamente
os trajetos na comunidade, faz parte do
meu processo de criação visual.
Sempre gostei de caminhar para pensar,
criar e resolver meus problemas, seguir
Porta na Comunidade Quilombola.
uma rota, manter-me como observador,
Série Portas do Mundo. Foto: Robson Xavier, 2017. estar em processo e seguir em frente, são

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ROBSON XAVIER DA COSTA

ações que fazem parte da minha vivência COSTA, Robson Xavier da. Percepção ambiental
introspectiva e estimula o meu potencial em museus paisagens de arte contemporânea: a
legibilidade do Inhotim/Brasil e Serralves/
criativo e permitem ampliar o meu reper-
Portugal avaliada pelo público/visitante. Tese
tório de imagens, histórias e memórias. de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo.
No dia 22 de julho de 2017, às 8h, re- Orientadora Profª. Drª. Gleice Elali. Natal,
tornei com a equipe da UFPB para João RN, Brasil: PPGAU, 2014.
Pessoa, revivendo ao longo do caminho HUNTER, Susan. Architectural Wayfinding. In.:
todas as imagens, sons, cheiros e sensa- Design Resources: Architectural Wayfinding.
ções, com uma nova roupagem, agora le- Búfalo – EUA: Center for Inclusive Design
and Environmental Acess. School of Archi-
vava o respeito aos saberes, sabores, artes
tecture abd Plaining. 2010.
e resistências políticas da Comunidade
WHITE, Edmund. O Flâneur: um passeio pelos
Quilombola de Conceição das Crioulas. paradoxos de Paris. Tradução: Reinaldo Mo-
Às 15h40m ao chegar à cidade de João rais. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
Pessoa vislumbrei possibilidades de ru-
minar essa experiência estética, como
matéria prima para continuar produzin-
do outras imagens.

Referências Bibliográficas
AQCC – Associação Quilombola de Conceição
das Crioulas. Nova cartografia social dos povos
e comunidades tradicionais do Brasil – Qui-
lombolas de Conceição das Crioulas – Sal-
gueiro - Pernambuco. Disponível em: https://
pt.slideshare.net/rosangelanascimentozo/car-
tografia-de-conceico-das-crioulas. Acesso em:
02.10.2017.
CARERI, Francesco. Walkscapes: o Caminhar
Como Prática Estética. Cidade e editora,
2012.
CARVALHO, Maria Letícia de Alvarenga.
Quilombo da Conceição das Crioulas. Belo
Horizonte: FAFICH, 2006. Disponível em:
http://www.incra.gov.br/sites/default/files/con-
ceicao_das_crioulas-pe_26-10-16_mio-
lo_0.pdf. Acesso em: 02.10.2017.

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soas foram alguns dos deslumbramentos
O Livro que o Brasil me deu, que trouxe comigo
para Portugal e guardarei para sempre no
MARIA PORTELA1 coração.
Durante essa viagem o nó na barriga ia
Esta será apenas mais uma reflexão aumentando tanto a mim como a Juliana,
sobre a comunidade de Conceição das arrisco dizer, a cada momento que nos
Crioulas, a qual tive a sorte e privilégio de aproximávamos de Conceição. Uma sen-
visitar como membro integrante do gru- sação de responsabilidade que nasce com
po Identidades, como web designer com a colocação numa posição de educador.
a minha colega e companheira de viagem, Todos estes anseios se acalmaram quan-
Juliana. Por mais que reflita em relação ao do chegámos a Conceição das Crioulas,
que passou durante esta semana em que e vimos a alegria e simplicidade com que
nos encontrámos todos pisando o mes- fomos recebidas.
mo solo de Conceição, termino sempre as O conforto que nos trouxe o abraço de
minhas reflexões com mais perguntas do Isinha quando nos ofereceu a sua casa e
que respostas, e a certeza de ser um ques- bolo pela manhã. A inclusão e a receção
tionamento interminável, esse da busca de braços abertos no espaço de refeição,
pela própria identidade. onde nos reuníamos e fazíamos fila para
Desloquei-me até Conceição das Criou- ser servidos pelas cozinheiras que nos
las para proceder ao desenvolvimento de alimentavam. Todos estes rituais pare-
uma oficina conjunta com membros da ciam fazer muito sentido, ter a sua ordem
comunidade, e partilhar as vivências e ex- própria e seguir uma lógica assente na
periências de uma Comunidade tão que- gratidão e respeito ao próximo. Se há coi-
rida ao grupo Identidades. Partimos de sa que a Comunidade de Conceição das
S. Paulo para uma viagem que durou uma Crioulas nos pode ensinar é sobre este
semana, na qual tive a oportunidade de sentido de gratidão. De pertença e de his-
conhecer um bocadinho do imenso Bra- tória. De consciência. Algumas das coisas
sil, e perceber algumas características que que também tivemos o prazer de aprender
lhe são tão singulares. A fruta, as cores, com os nossos alunos, Amando, Alecie,
o clima, a alegria e simplicidade das pes- Aylan, Denilson e Raysla. Que de uma
1 Investigadora Multimédia, ID_CAI, i2ADS. Mestranda na
forma excecional nos “aturaram” a falar-
Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. -lhes sobre essa linguagem que falamos

257
MARIA PORTELA

com os computadores. E durante esta se-


mana pudemos aprender com eles sobre
paradigmas de entreajuda, perseverança
e partilha.
Amando foi o nosso interlocutor e aju-
dante, que se voluntariou para a respon-
sabilidade de guardião do website, e que
ainda nos arranjou alunos quando nos
deparámos com uma sala vazia no pri-
meiro dia de oficina. À medida que nos
fomos todos conhecendo melhor e per-
cebendo até onde podíamos ir e em que
matérias era expressado interesse, fomos
reajustando os preparativos às necessida-
des, os termos às metáforas, as palavras
aos gestos. E assim se construiu uma di-
nâmica muito própria, que de repente já
parecia ser a nossa, que partilhávamos
subitamente dentro daquela sala com
uma janela cortada por grades que nos
lembrava do seu passado enquanto anti-
ga prisão, e que agora funcionava como
Casa da Juventude, gerida por Amando,
que enchia as suas paredes com os seus
designs.
Foi uma semana de reflexão, aprendi-
zagem, humildade. Uma semana em que a
comunidade se dispôs a receber-nos e da
qual recebemos muito em troca, do local,
das pessoas, da tão portuguesa, saudade.

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É assim que começamos a ser parte dela,
Conceição das com a aurora em crescendo e que depois
Crioulas se abre em sol, cada vez mais dentro de
nós e que depois, lá muito depois, se de-
Vim aqui para clina, preguiçosamente, submergindo,
por detrás do outro lado do horizonte,
abraçar amigos que no desamparinho sertanejo é quase
dor e alimento.
LEÃO LOPES1 Crianças, muitas crianças, não se per-
cebe quem de entre todos são os pais.
Para o Paiva,
Como no Planalto, são de todos, inclusi-
Conceição mulher, quase “sitiada” ve minhas, eu que acabo de chegar... para
quase perdida no imenso sertão brasilei- abraçar amigos.
ro, quase selvagem, quase inocente; que Paulo. Toda a comunidade que se preze
resgata da memória funda e antiga sua tem o seu Paulo. Bem adulto, deambula
força de ser e de existir no meio de um por aí brincando com uma vara. Canta
emara- nhado histórico, doloroso, social em alto e bom som por largos períodos
e culturalmente complexo. do dia. Não se compreende a fala de seu
Conceição templo, sem portas nem canto. Ou aqui o canto não precisa de fala
janelas (não precisa) de evangélicos cân- que se compreenda?
ticos no silêncio do casa-rio adormecido, O carro-som berra em altos decibéis,
embalado pela leve e fresca brisa que per- todo o dia, sem parar. Parece que nin-
passa a catinga. guém se incomoda por isso. Mas incomo-
Conceição um lugar, onde o acordar é da. É a forma do vizinho se achar parte,
como se deveria acordar em todo o lado. perturbando. É assim. Em todas as comu-
Com a alma leve, planando o raiar do sol, nidades há vizinhos assim.
difuso, emergindo, timidamente, detrás
do horizonte, longínquo, desconhecido. Conceição das Crioulas
Que nos entranha corpo adentro e come- Deambulações
ça, serenamente, a alumiar-nos o dia que Planalto Norte, ilha de Santo Antão.
desperta, devagarinho, ao ritmo da gente. Fui visitar cabras e pastores quanto para

1 Reitor do Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e


lá viajei pela primeira vez. Como meu
Cultura (M_EIEA), Mindelo - Cabo Verde. amigo Rui Duarte de Carvalho que “lá”,

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LEÃO LOPES

no Nabime, foi para visitar pastores. Para ... entretanto, cuidemos das crianças,
aqui, Conceição, vim para abraçar ami- façamos a festa, sempre, quando recebe-
gos. E agora dou comigo a perguntar o mos amigos. Falemos de Arte, de Litera-
que trouxemos para tomar parte desta co- tura, de Música, de tudo. Afinal de que
munidade. Conceição das Crioulas. Para saberemos falar? E aqui é o lugar certo
que serve aqui o conhecimento e novas de para tudo isso. Para lhes perscrutar o
outras bandas às urgentes demandas de sentido.
realização desta gente? Como é que que Aqui a vida é um risco. E tem ainda
se articulam as nossas práticas e supos- mais sentido!
tas convicções (tantas) com a vida das
pessoas, com suas inexoráveis reivindica-
ções: terra, água, justiça, educação...?
Conceição das Crioulas. Aqui a vida é
risco, o risco é desenho e futuro aberto. E
é aqui, exactamente aqui, em Conceição
das Crioulas que todos somos interpela-
dos a assumir esse risco. Em pleno sertão
da vida. Aqui não se deveria falar de Arte.
Aqui não se deveria pretender ensinar
nada. Aqui, não há remédio, só dá para
aprender: resiliência e resistência. E, por
fim, pegar em armas e declarar luta de “li-
bertação armada como acto de cultura”...
e libertar a terra. E resgatar de vez Con-
ceição. Para as Crioulas.

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