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CAPA.

BOCA DO
BOCA
ESTÔMA
ESTÔMAGO
GO
CON
ONVERS
VERSAAS SOBRE CULTUR
CULTURA,
A,
SABERES E HISTÓRIA
HISTÓRIA
A PPA
ARTIR DO ALIMENT
ALIMENTOO
FOLHA DE ROSTO.

CONVIDADA(O)S

ADRIANA S SALA
ALAYY
FABIANA FIGUEIREDO
FELIPE CH
CHAIMO
AIMOVICH
VICH
FERNANDO VIEIR
VIEIRA
A
JOANA
JO ANA PELLER
PELLERANO
ANO
JOÃO L. MÁXIMO
OCUPAÇÃO
OCUP AÇÃO 9 DE JULHO
PAULA OLIVEIR
OLIVEIRAA
SILV
SILVANA MENDES
TAINÁ MA
MARRAJO
AJOAARA
WALLA C CAPEL
APELOBO
OBO
WANESS
ANESSA AAASF
SFOR
ORAA
ZAINNE LIMA
PÁGINA 3.

MINISTÉRIO DO TURISMO, SECRETARIA ESPECIAL DA CULTURA E


INSTITUTO TOMIE OHTAKE APRESENTAM

BOCA DO
ESTÔMAGO
CONVERSAS SOBRE CULTURA,
SABERES E HISTÓRIA
A PARTIR DO ALIMENTO
CLIQUE E OUÇA
PÁGINA 4.

PATROCÍNIO

PARCEIROS INSTITUCIONAIS DO
NÚCLEO DE CULTURA E PARTICIPAÇÃO

APOIO

IDEALIZAÇÃO E COORDENAÇÃO

REALIZAÇÃO

Pronac: 203086
PÁGINA 5.

SUMÁRIO

CLIQUE E OUÇA

08 RESTAURA! ESCOLA E COMIDA


Carol Tonetti
11 CUIDAR E CURAR
PARA HONRAR NOSSA DESCENDÊNCIA, É
PRECISO CURAR A NOSSA ANCESTRALIDADE
Vera Nunes
15 ARTE E SABOR, A GRANDE RECEITA
Renata Araujo
18 SABOR DE MEMÓRIAS…
Geovana Oliveira
22 SUKIYAKI À MODA ARTE E SABOR
Jogê Pinheiro
27 REENCARNAR A EDUCAÇÃO
Julia Cavazzini

DOS SABORES, OS SABERES


37 MAPAS DA TERRA
Silvana Mendes
39 ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO
51 ENTREVISTA COM WALLA CAPELOBO
62 ENTREVISTA COM OCUPAÇÃO 9 DE JULHO
73 ENTREVISTA COM ZAINNE LIMA
84 PEIXE AO CREME DE ABÓBORA
Patrícia Aparecida Lima Silva
85 FAROFA SIMPLES PARA ADULTOS E CRIANÇAS
Rosângela Batista Vieira de Sousa
PÁGINA 6.

QUEBRA-PANELA
87 MAPAS DA TERRA
Silvana Mendes
89 ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY
101 ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA
113 ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA
125 ENTREVISTA COM JOÃO LUIZ MÁXIMO
136 NHOQUE DE BATATA-DOCE COM FRANGO
Ilma da Silva L. Costa
137 FAROFA DE ARROZ PARA CHURRASCO
Antonio Arnaldo Rocha
138 BOLINHO DE FRANGO COM ABÓBORA
Daniela Brito dos Santos

COMER A CULTURA
139 RETRATO BRASILEIRO
Silvana Mendes
141 ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO
153 ENTREVISTA COM PAULA OLIVEIRA
164 ENTREVISTA COM TAINÁ MARAJOARA
174 ENTREVISTA COM FELIPE CHAIMOVICH
185 CARNE DE PANELA COM MILHO VERDE
E ABÓBORA
Maria Aparecida Candido Nunes
187 TORTA DE LEGUMES
188 TORTA DE ABACATE COM BOLACHA
Jane Ribeiro da Silva

190 Biografias das colaboradoras e dos


colaboradores
198 Ficha técnica
PÁGINA 7.

APRESENTAÇÃO

Audiodescrição: Página com fundo azul-marinho.


PÁGINA 8.

RESTAURA! ESCOLA E COMIDA

CLIQUE E OUÇA

Restaurar espaços democráticos nos campos da arte


e da cultura, após o difícil período de distanciamento
social decorrente da crise sanitária que vivemos
por causa da pandemia da covid-19, tem sido uma
prioridade e um compromisso do Núcleo de Cultura e
Participação do Instituto Tomie Ohtake.
O retorno às atividades presenciais, com a
realização da 6ª edição do Projeto Arte e Sabor,
nos enche de esperança e nos coloca inúmeras
responsabilidades. Dedicado aos nutricionistas e às
cozinheiras e cozinheiros que diariamente preparam
e servem refeições para milhares de crianças e
jovens da rede municipal de ensino de São Paulo,
este projeto ressalta a importância da merenda
escolar diante de um contexto em que a insegurança
RESTAURA! ESCOLA E COMIDA

alimentar volta a atingir as famílias brasileiras.


Em abril de 2022, recebemos 125 profissionais
da área da alimentação da rede municipal de
ensino para encontros nos quais buscamos
contribuir com sua formação e refletir sobre suas
práticas e conhecimentos, em um processo de
aprendizagem e de troca de experiências que
convoca nossa atenção e nos implica na ação
pedagógica em curso nessas cozinhas e refeitórios.
Trata-se de uma ação cotidiana na qual a
experiência alimentar é um meio de reconexão
de nossas crianças e jovens com seus corpos,
8 com a terra, com o meio ambiente, com a
PÁGINA 9.

política do cuidado, com a memória afetiva


e suas relações de ancestralidade. Trata-se
de uma pedagogia dos sentidos, repleta de
potencialidades éticas e estéticas.
Não é à toa que os textos aqui reunidos
apresentam a perspectiva de artistas, educadores,
pensadores da cultura, ativistas, nutricionistas
e cozinheiros que, com suas receitas e
conhecimento, articulam práticas emancipadoras
e transformadoras por meio da comida.
Esta publicação é o resultado de um trabalho
dedicado e coletivo, cujo alcance não seria possível
sem a valiosa parceria com a Coordenadoria
de Alimentação Escolar (CODAE) da Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo. Agradecemos
a todos que contribuíram para sua realização.
Da mesma maneira que o alimento, esta
publicação é meio para a troca e a experimentação,
interseccionando arte e educação. É um chamado
para a arte, o alimento e a escola se
RESTAURA! ESCOLA E COMIDA

reestabelecerem como articuladores sociais em um


mundo em que a fome cresce e as escolas ainda
sofrem os reflexos pós-pandemia.
O projeto foi uma ação necessária
para a qual requisitamos o envolvimento
de todos. Restaura! Escola e comida.

Carol Tonetti
Diretora do Núcleo de Cultura e Participação

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PÁGINA 10.

Visita à exposição
Anna Maria Maiolino
– PSSSIIIUUU... no
Instituto Tomie
Ohtake. Eixo:
O Calor da Escola.
Foto: Mônica Silva.

Cozinheiras no
Instituto Tomie
Ohtake durante
palestra sobre
Carolina Maria de
Jesus, ministrada
por Zainne Lima.
Eixo: O Calor da
Escola.
Foto: Mônica Silva.
PÁGINA 11.

CUIDAR E CURAR
PARA HONRAR NOSSA DESCENDÊNCIA, É
PRECISO CURAR A NOSSA ANCESTRALIDADE

CLIQUE E OUÇA

Não podemos seguir vivendo como se nossos atos


não tivessem consequências. Não podemos seguir
sonhando sem intenção de transformação social,
que não resolva efetivamente nossos problemas
como povo. A única intenção responsável neste
momento é uma revolução educacional ligada ao
poder do cuidado. Cuidado exercido por quem
alimenta diariamente tanta gente!
Esse ano, entre tantos desafios, fui convidada
a gerir, junto a uma equipe altamente competente,
uma edição de um dos projetos que, em minha
visão, refletem o melhor que temos. Participei do
preparo de um trabalho muito importante, que
depois de tantas dores provocadas por um momento
de incertezas e perdas, promoveu o encontro.
Encontro de saberes, sabores, histórias,
narrativas, paisagens, territórios e processos
CUIDAR E CURAR

de tantas pessoas, cujos benefícios não


consigo quantificar de maneira simplista.
Eles ainda percorrem minha pele, desenham
meu sorriso e invadem o meu peito com a
nutrição que alimenta a esperança.
Esse processo de formação envolveu-nos
em um universo afetivo, de amor concreto e
do alimentar pessoas, transportando-nos às
11 paredes da cozinha, aos panelões de alumínio
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e aos pratinhos de cor azul, que figuram um


lugar bastante amoroso na minha memória da
infância como estudante de escola pública. O
cheiro do tempero de horta saindo do refeitório,
as mãos ainda sujas de massinha de modelar, o
barulho da criançada correndo para o melhor
momento do dia, de se sentar junto e apreciar
diferentes sabores, a arte impressa em afeto
que vem das mãos das merendeiras.
Mas para além desse lugar romântico que
guardo no peito, presenciei aqui o encontro
de pessoas que nos ensinaram com olhares,
sorrisos e por meio de seus corpos transitando
nesse espaço tão diverso. Todas as pessoas
convidadas a este projeto tão complexo que
envolveu profissionais das mais variadas
áreas, de características diversas, tinham
uma aptidão em comum: o bem-querer.
Para esta edição do Projeto Arte e Sabor,
nos debruçamos com afinco para promover
encontros em ambientes virtuais e presencias.
O projeto trouxe de volta a presença de pessoas
ao Instituto Tomie Ohtake, abrigou uma cozinha
nos ateliês, encheu de alegria nossos corredores
CUIDAR E CURAR

e ambientes de trabalho que por tanto tempo


ficaram vazios. Trabalhamos com a intenção
de ampliar esse sentimento rede afora e, para
isso, transbordamos vídeos produzidos na Casa
Preta Hub para acompanhar o domingo de tanta
gente pela internet e promover a possibilidade de
reprodução das receitas na casa de cada um.
À toda a equipe de produção, à curadoria,
12 às chefs e convidadas especiais, aos
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patrocinadores, aos parceiros do CODAE,


e ao público em geral: muito obrigada!
Mas, principalmente para as cozinheiras/
merendeiras, muito, muito obrigada pelo cuidado
diário que promovem! Esta publicação tem
textos importantes de pessoas admiráveis, mas
sem dúvida, quem tem mais a ensinar sobre
os ingredientes básicos do afeto e do cuidado
que irão permear e nutrir o século XXI são
as merendeiras e as cozinheiras, que trazem
estampado no peito o talento, o respeito,
a força, a empatia e o dom do cuidado!
Cuidado: ingrediente fundamental para
honrar os descendentes e curar todas as
dores dos nossos ancestrais. Rogo que
possamos aprender com vocês.

Vera Nunes de Santana Ramos


Coordenadora do Núcleo de Projetos Socioculturais
CUIDAR E CURAR

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PÁGINA 14.

Participantes na Oficina
de Horta Urbana com
Grupo Pé de Feijão.
Eixo: O Calor da Escola.
Foto: Mônica Durães.
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ARTE E SABOR, A GRANDE RECEITA

CLIQUE E OUÇA

A experiência proporcionada pelo Projeto Arte e


Sabor tem gosto, cheiro, textura, e a transformação
foi inevitável: mudanças de entendimento sobre
o que é cultura alimentar, de percepções sobre a
comida que faz parte de nossa rotina e de formas
de pensar sobre o processo de educação partindo
da cozinha da escola.
Senti-me como ingrediente de uma
grande receita, repleta de necessidades,
espaços, utensílios, fogo, mãos, afeto e muito
tempero que, juntos, produziram esse farto
cardápio, próprio para ver, sentir, ouvir e ler,
ou seja, um bocado de coisas deliciosas.
ARTE E SABOR, A GRANDE RECEITA

Arte e Sabor, em sua sexta edição, trouxe


para dentro do Instituto Tomie Ohtake e do
coração de toda a equipe aquela sensação quase
unânime na vida de muitas pessoas quando estão
envolvidas com família, comida e cultura.
Isso porque o ato de comer é cultural e
representa sua terra, seus costumes, cria laços
e memórias. A alimentação é o primeiro grande
ato cultural, que começa no lar. E a escola é
como um lar que integra a vida do indivíduo.
Desde o início do projeto, o objetivo central
era a transformação e a valorização do trabalho
de cozinheiras e cozinheiros da rede pública
municipal. Dessa maneira, cada ato, cada
15 contratação, cada detalhe do Arte e Sabor foi
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pensado sem ser desassociado desse objetivo,


razão pela qual ele se tornou tão transformador
na vida de todos os envolvidos, reverberando
por dias cada atividade cumprida.
Sigo aguardando a próxima edição para
saborear a arte de aprender com esses
profissionais que alimentam corpo e alma
das crianças em São Paulo com afeto,
responsabilidade e profissionalismo, porque essa
receita tem um sabor incrível, sabor de vida.

Renata Araujo
Coordenadora do Projeto Arte e Sabor
ARTE E SABOR, A GRANDE RECEITA

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PÁGINA 17.

Preparativos
para o almoço
oferecido pela
chef Aline
Chermoula.
Foto: Mônica Silva.
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SABOR DE MEMÓRIAS…

CLIQUE E OUÇA

O Arte e Sabor começou para mim em março de


2022, quando iniciei meus trabalhos na produção
do projeto. Entretanto, essa data é meramente
um marco temporal pragmático. Foi ao longo dos
meses, já imersa nos processos de pré-produção
dos conteúdos, que descobri estar revisitando
memórias de bastidores, lembranças olfativas da
infância entre outros temas relacionados à cultura
e à alimentação.
Geralmente, o trabalho de produção é aquele
dos bastidores da cena, que o público não
vê exposto à mesa, e tampouco se percebe
quando se entra em contato durante um
evento artístico ou uma apresentação cultural.
É um “quase invisível” que faz falta, pois é a
partir da força propulsora e da potência da
produção que tudo começa a acontecer.
SABOR DE MEMÓRIAS…

Estar nos bastidores de um projeto que


propõe uma reflexão sobre alimentação, cultura
e educação, me proporcionou um encontro
com muitos lugares do meu passado, espaços
adormecidos de minhas memórias quase
esquecidas. Esse projeto não me fez apenas
produzir conteúdos para falar de alimentação
com merendeiras e cozinheiras, mas também
embarcar na memória do olfato e de mulheres
que fizeram parte de uma “produção” e ficaram
18 muitas vezes apenas nos bastidores da cena.
PÁGINA 19.

Por exemplo, a lembrança dos tempos em que eu


era aluna e, antes do intervalo da escola, salivava
ao sentir aquele cheiro de comida que atravessava
todos os corredores e saía pelas janelas. Mas
uma lembrança sem rosto: quem era a mulher que
estava envolvida naquele preparo? A cozinheira
que não saía da cozinha. Apesar de não ter um
rosto, habita minha memória por meio do olfato.
Atualmente, há um esforço cada vez maior
de conhecer as pessoas por trás dos bastidores
dos trabalhos que realizam para, dessa forma,
reconhecer e trazer para o centro do debate os
feitos invisíveis. O Projeto Arte e Sabor busca,
assim, apresentar esse protagonismo das
mulheres, cozinheiras e merendeiras, profissionais
de extrema importância e fundamentais
para a educação dentro da sala de aula.
Essas mulheres com sabor de memórias
foram reverenciadas neste trabalho que tive a
oportunidade de produzir. E foi com carinho que
planejei detalhadamente o evento presencial
em que tivemos contato físico, trocas de
SABOR DE MEMÓRIAS…

experiências e, depois, seguimos para a produção


dos vídeos, podcasts e esta publicação.
No campo sensorial e imagético, essa foi uma
maneira de retribuir o alimento do corpo e da
alma, a matéria e o amor servidos em forma de
prato de comida que eu recebi durante a vida
escolar daquelas mulheres que fazem parte
da minha história e de tudo o que sou hoje.
Sou grata pela oportunidade de fazer parte
da produção do Projeto Arte e Sabor, que
19 integra os Projetos Socioculturais do Núcleo de
PÁGINA 20.

Cultura e Participação do Instituto Tomie Ohtake.


Este e os demais projetos do núcleo engrandecem
e apontam horizontes com novas possibilidades
de produzir e difundir a arte e a cultura neste país.
Eu acredito na cultura, na arte e na educação
como potências transformadoras em direção
a uma sociedade mais justa; sem elas seríamos
apenas sobreviventes. Infelizmente, estamos
provando há alguns anos uma receita amarga
de insucessos e desmontes dentro do setor
cultural. E, para além do papel transformador, fica
sempre uma reflexão: teria a arte uma resposta
para o que vivemos? Pode ser que não, mas ela
tem o hábito de investigar, questionar e resistir.

Geovana Oliveira
Produtora Executiva do Projeto Arte e Sabor
SABOR DE MEMÓRIAS…

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PÁGINA 21.

Oficina de Horta Urbana com


Grupo Pé de Feijão.
Eixo: O Calor da Escola.
Foto: Mônica Durães.
PÁGINA 22.

SUKIYAKI À MODA ARTE E SABOR

CLIQUE E OUÇA

Que ninguém se engane, só se consegue a


simplicidade através de muito trabalho.
Clarice Lispector, A hora da estrela

Era um 23 de maio como tantos outros que já


haviam passado. Porém, este do ano de 2022,
foi marco do início de uma fase de encantamento
em minha vida. A decisão naquela manhã foi: era
necessário viver e inventar o meu dia de maneira
feliz. Simplesmente feliz. Desconhecer a arrogância
e exalar pura energia.
Era uma manhã friamente discreta, em um
ambiente desconhecido e, de certa forma,
intimidador. Ainda que em formato de obra de
SUKIYAKI À MODA ARTE E SABOR

arte gigantesca, de um rosa esplendoroso e


podendo ser avistado de pontos variados desta
cidade de arranha-céus, aquele prédio era frio.
Pontualmente às cinco da manhã aportei em frente
ao prédio da rua Coropés, número oitenta e oito,
sem imaginar que a minha existência e insistência
em continuar vivendo faria a diferença na vida de
algumas pessoas, até então, desconhecidas.
Eis que os primeiros rostos com olhos curiosos
começaram a surgir no topo da escadaria de
acesso ao hall do Instituto Tomie Ohtake. Por
um momento, e por produto ou capricho da
minha imaginação, ou talvez inspirada pela
22 criadora de tudo aquilo, comecei a ouvir uma
PÁGINA 23.

melodia distante. A melodia da música Sukiyaki.


Embebida por ela, percebi aquelas mulheres
tentando se proteger do frio que insistia em
penetrar a alma. Sem qualquer proteção, eu
admirava aquela constelação de obras, pois
ali, naquele hall, absolutamente tudo era uma
grande obra de arte. Estava eu ali, naquele
imenso hall, impávida, intrépida, carregando
uma travessa de vidro recheada de uma iguaria
peculiar e preparada à base de inhame e
chocolate. Logo mais ela seria servida àquelas
mulheres ávidas por conhecer e experimentar.
A maneira que escolhi viver e inventar aquele
dia pedia para me despir de toda a arrogância e
enfeitar o coração com as mais variadas cores,
me abrindo para conquistar amigos ou, neste
caso específico, amigas em sua maioria. Vesti
os olhos de lealdade, o coração de sorrisos e
abandonei a travessa de vidro, que ficou por
SUKIYAKI À MODA ARTE E SABOR

um tempo esquecida ali no assento reservado,


e parti para recepcionar aquelas mulheres
cozinheiras de alma e merendeiras de saber,
dispostas a transformar dor em alegria. Sem
deixar de lembrar que o sorriso é o idioma
universal do bem-querer e bem receber, parti
em busca de entender as coisas, se é que existe
algo para ser entendido entre aquelas pessoas,
pois tudo é explícito. Enchi-me da inspiração que
emanava delas e fui redescobrir as coisas belas
da vida através de seus olhos e de seu sentir.
Olhei nos olhos, ouvi histórias, em alguns
momentos me emocionei, confesso... Chorei.
23 Fui buscar o que nos faz bem e aos outros
PÁGINA 24.

também. Percebi nitidamente que o mundo


havia começado a mudar, ao menos ali dentro
daquele enorme prédio rosa da rua Coropés,
número oitenta e oito. E mesmo tendo sido
convencida por alguns poucos do contrário,
insisto que viver vale a pena. Valeu a pena.
Cada dia daquela semana de um encontro
presencial, em que não havia a certeza se com
ou sem a maldita e necessária máscara, foi um
redescobrir de coisas belas que a vida nos traz.
A cada manhã me despia da arrogância
e do ódio, desacelerava e aproveitava cada
minuto de tantas horas dedicadas ao descobrir
do nosso eu mais íntimo ao expor ali naquele
grande hall para um número de pessoas
inferior apenas ao número da rua Coropés.
Começava o dia sorrindo. Sorrindo cada
vez mais cedo a cada dia. Valorizava cada
pessoa ali presente, tentava espalhar alegria
SUKIYAKI À MODA ARTE E SABOR

e, mesmo percebendo que nem todos ou


todas ali presentes têm ou tiveram as mesmas
oportunidades, naquele momento, todos éramos
privilegiados pelo simples fato de estarmos
ali, cúmplices um da felicidade do outro.
A certeza que insiste em mim até hoje é de
que a simplicidade não dá trabalho. A humildade
pode ser gigante, mas cabe em qualquer pequeno
espaço... E que ninguém se engane: só se consegue
a simplicidade por meio de muito trabalho.
Por fim, devo enaltecer curadores,
pensadores, realizadores e patrocinadores de
projeto tão singular, que estabelece uma ponte
24 imaginária, onde as coisas mais importantes
PÁGINA 25.

são aquelas que não podem ser vistas a olhos


nus, mas somente com o coração e a alma.
E que venham outros tantos Arte e Sabor.

Jogê Pinheiro
Assistente de Produção do Projeto Arte e Sabor
SUKIYAKI À MODA ARTE E SABOR

25
PÁGINA 26.

Oficina de Escrita Criativa


com Patty Durães.
Eixo: O Calor da Escola.
Foto Mônica Durães.

26
PÁGINA 27.

REENCARNAR A EDUCAÇÃO

CLIQUE E OUÇA

Quão tolo é o escuro da noite da primavera –


que pode ocultar o charme e a cor das flores de
ameixa mas não pode esconder o perfume.
Poema japonês citado por Alice Sant’anna.¹

Durante boa parte da vida escolar, os ensinos básico


e formal priorizam os sentidos da visão e da audição
sobre os outros. A educação mais tradicional se
estrutura em formar pessoas que vivam a realidade
com distanciamento, interpretando a própria
existência por meio de imagens ou harmonias que
não necessitam proximidade, o contato do corpo em
si. A comunicação, por exemplo, se constrói quase
exclusivamente de forma visual e ouvinte. Dessa
maneira, se excluem as possibilidades de sentir o
mundo por outros sentidos igualmente importantes.
REENCARNAR A EDUCAÇÃO

O paladar, o olfato e o tato, quase que profanos


nesses contextos, passam, muitas vezes, uma
vida inteira despercebidos ou, de alguma forma,
adormecidos.
Partindo do pressuposto de que o ser humano
não tem um corpo, mas é um corpo, o sensível e
o inteligível são indissociáveis. O tato é a relação
direta do que se tem de material com o mundo. Em um
corpo que é condutor de calor, transpira e pode ser

27 1 SANT’ANNA, Alice. Pé do ouvido. São Paulo: Companhia das


Letras, 2016.
PÁGINA 28.

até moldado, o tato é por vezes de uma sensibilidade


inominável, que constantemente nos ensina que é tão
matéria quanto a terra ou tantos outros elementos
naturais. O olfato, em voga em acontecimentos
recentes, nos fez aprender, na sua ausência, a
importância de viver na presença de cheiros. A
olfação nos obriga a estar presentes, reconhecendo
o perigo por meio de um odor ou a arquitetura de uma
casa por meio do perfume de um café. Por último e
não menos importante, o paladar que, assim como os
outros sentidos, proporciona prazer enquanto repara
a força vital e incorpora o mundo que ingere. Em uma
refeição balanceada, por exemplo, na qual parte é
transformada e expelida pelo corpo, ainda preserva
em si nutrientes que podem levar dias para deixarem
de ser parte desse organismo. Para além de serem
instintos fundamentais, cada um desses sentidos se
justifica como meios de desenvolver subjetividade.A
Para o filósofo italiano Nicola Perullo, o paladarA
é um entrelaçamento do corpo com a mente em
constante interação com o meio ambiente.² Portanto,
REENCARNAR A EDUCAÇÃO

comer não é só uma prática de restauração do


físico, mas também uma prática social, uma maneira
de se relacionar com a natureza e, principalmente,
de construção de identidade. Como diria o crítico
francês François Simon, comemos para ter uma
cabeça sempre desperta, uma acuidade permanente,
um corpo feliz, uma alma bem acompanhada.³

2 PERULLO, Nicola. O gosto como experiência. São Paulo: SESI,


2010.
28 3 SIMON, François. Comer é um sentimento. São Paulo: Senac,
2006.
PÁGINA 29.

Para muitas pessoas, por meio de um jantar


pode-se ter a primeira experiência de família; da
mesma maneira, uma receita herdada carrega
tanta biografia quanto um sobrenome. EssesA
sentidos, por assim dizer, sozinhos ou combinados,
impulsionam a construção do ser, por meio de
qualidades humanas invisíveis e silenciosas.
O professor britânico de antropologia Richard
Wrangham estampa no título de seu livro que
cozinhar nos tornou humanos4 e argumenta que
a manipulação do fogo possibilitou aos seres
humanos que houvesse mais energia e tempo
para o desenvolvimento do intelecto. Ou seja, os
alimentos preparados no fogo passam a ficar mais
macios, mais fáceis de rasgar, triturar e preservar,
e as energias que antes eram gastas nos longos
processos de digestão, passam a ser utilizadas em
outras partes, como o cérebro. Mesmo que agora
oculto (escondido nas airfryers, micro-ondas e
deliveries), o fogo ainda se faz presente nessa
importante tarefa diária, e nos leva a reconhecer
REENCARNAR A EDUCAÇÃO

que cozinhar, hoje em dia, é um ato de resistência.


Esse fogo, que constantemente tentam
apagar dos trabalhos essenciais da escola,
representa a combustão deste projeto. O calor,
sendo elemento essencial da cozinha e da
escola, também é representado como o árduo
ofício das cozinheiras, cozinheiros, merendeiras,
merendeiros e nutricionistas nesse ambiente.
Uma atuação que, além de enfrentar de frente o

29 4 WRANGHAM, Richard. Pegando fogo: por que cozinhar nos


tornou humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
PÁGINA 30.

alto índice de insegurança alimentar nacional,


ainda apresenta uma realidade através do
paladar. A prática da cozinha como sala de
aula cria dentro da escola mais um espaço
de carinhosos encontros e de resistência.
Nesse contexto, nasce o projeto Reencarnar a
Educação, um convite para retornar ao corpo e
incorporar à educação. Encorajar não só o que se
vê e escuta, mas o que se cheira, lambe, morde e
até devora. Para quem sabe saciar as fomes ainda
não nomeadas e usar a boca para além do dizer;
para abocanhar o futuro a que se deseja pertencer.
Partindo dessas premissas, o Reencarnar
a Educação se estrutura em quatro diferentes
programas: O Calor da Escola, Sob o Céu da
Boca, Bocado de Arte e Boca do Estômago.
Intitulados com base em expressões que
apresentam a cultura alimentar como imanente
do vocabulário cotidiano, cada um desses eixos
pretende resistir ao olho maior do que a barriga
e despertar o que há de antropologia, culinária,
REENCARNAR A EDUCAÇÃO

cultura, educação, estética, gastronomia,


geografia, história e política em alguns desses
sentidos reprimidos, principalmente o paladar.

O CAL
CALOR
OR DA ESCOLA
ESCOLA
O programa O Calor da Escola foi um evento
presencial que reuniu 150 profissionais das cozinhas
das escolas da rede municipal de São Paulo. Ainda
sob a inspiração do fogo como forma de restaurar
a energia diária da escola e da figura de Carolina
Maria de Jesus, que até hoje nos ensina diferentes
30 maneiras de contar sua própria história, o evento
PÁGINA 31.

priorizou uma programação que proporcionasse


ferramentas para as profissionais poderem
encontrar em si mesmas a melhor maneira de
propagar suas experiências de vida, histórias e até
receitas. A programação presencial foi composta
pela intervenção artística As Clarianas; por visita
mediada por educadores e educadoras do Instituto
Tomie Ohtake (Jordana Braz, Luara Carvalho, Kaya
Vallim e Pedro Costa) à exposição Anna Maria
Maiolino - PSSSIIIUUU...; pela aula sobre a escritora
Carolina Maria de Jesus e oficina de escrita com
Zainne Lima; pelo almoço coletivo e apresentação
do vídeo sobre cozinha afrodiaspórica do Projeto
Sob o Céu da Boca, ambos com Aline Chermoula;
por uma palestra sobre como desenvolver
ferramentas para contar, registrar e propagar suas
próprias histórias, com Patty Durães; pela oficina
prática de horta urbana com o grupo Pé de Feijão.

SOB O CÉU DA BOCA


BOCA
Sob o Céu da Boca é uma série de doze vídeos
REENCARNAR A EDUCAÇÃO

desenvolvidos previamente ao Calor da Escola,


com um caráter inclusivo, formativo e plural,
que tem como objetivo apresentar pessoas que
abordam perspectivas variadas da cultura, da
culinária, da gastronomia e da nutrição. Falar
sobre comida parece na sociedade algo inacessível
e retratado majoritariamente por meio de uma
única perspectiva, por vezes muito descolada da
realidade da maioria da população. Sob o Céu
da Boca é um convite para se conversar mais
sobre alimentação como potência cultural e
31 transformadora, reconhecendo a força de diferentes
PÁGINA 32.

lugares de fala. Por meio de uma maior diversidade


de protagonismos e pluralidade de narrativas, os
vídeos pretendem apresentar possíveis horizontes
de uma alimentação acessível, consciente e
integrada. Dessa maneira, os vídeos abrangeram
conteúdos teóricos sobre cozinha brasileira (com
Adriana Salay), cozinha afrodiaspórica (com
Aline Chermoula), cozinha sustentável (com Patty
Durães), comida na perspectiva LGBTQIA+ (com
Igor Trindade e Ísis Gois), comida e comunidade
(com Tia Nice) e comida na perspectiva da infância
(com Diana Tubenchlak). Além desses, também
foram produzidos vídeos de receitas com os temas
de cozinha brasileira (com Rodrigo Oliveira),
cozinha afrodiaspórica (com Aline Chermoula),
cozinha sustentável (com Patty Durães), comida
e comunidade (com Tia Nice) e comida na
perspectiva da infância (com Diana Tubenchlak).

BOCADO
BOCADO DE ARTE
ARTE
Bocado de Arte é uma proposta de podcast que
REENCARNAR A EDUCAÇÃO

convida artistas cujos trabalhos tenham sido


atravessados pela comida de alguma maneira.
Os artistas convidados para o Bocado de Arte
foram Amilcar Packer, Bruno Brito, Laura Lima,
Ayrson Heráclito e Jorgge Menna Barreto. A
arte contemporânea, após os marcos da arte
conceitual, a estética relacional e até a virada
educacional, passou a incorporar a comida e
os hábitos alimentares como suporte, técnica
e linguagem. A partir da premissa de que a arte
contemporânea cabe na boca e serve de banquete
32 para debates para todos os gostos, sejam eles
PÁGINA 33.

estéticos ou do paladar, o Bocado de Arte aborda


variados temas, como comida, alimentos, cultura,
matéria, ferramentas da cozinha, culinária,
gastronomia, história e política.

BOCA DO ESTÔMAGO
A publicação Boca do Estômago é composta por
doze entrevistas com especialistas das áreas de
arte contemporânea, antropologia, comunicação,
cultura, culinária, curadoria, educação, gastronomia
e política e por oito receitas de profissionais que
atuam nas escolas da rede municipal de São Paulo.
Como última etapa da edição do Projeto Arte e
Sabor de 2022, a publicação tem a expectativa
de estender aos leitores e leitoras o convite de
conversar sobre o que se come e com quem se come.
Dessa maneira, quem sabe, reconhecer que a mesma
boca que inventa o mundo ao oralizá-lo, o devora e
o degusta em vorazes mordidas.
A vida, cotidianamente tomada pela boca,
evoca a cada refeição a possibilidade de
REENCARNAR A EDUCAÇÃO

recompor-se de novos nutrientes. Dentro de


distintos corpos com percursos mais curtos ou
mais longos, a comida é absorvida e repelida em
diferentes camadas a cada sistema digestório
percorrido. O estômago, um órgão fundamental
para o processo digestivo, é um dos protagonistas
e um dos mais sensíveis às emoções. Desde o
lirismo das “borboletas no estômago” às duras
penas de se conviver com gastrite ou tantos outros
distúrbios gastrointestinais ou, ainda, o culpado
por atordoantes roncos de fome, o estômago é
33 muito afetado pelo emocional e pouco se vincula
PÁGINA 34.

este órgão à imagem de um receptor de emoções,


revelando-se tangível, porém invisível. Assim,
entre fluxos e refluxos, se tivesse a habilidade de
falar, o que a boca do estômago teria a dizer?
A publicação Boca do Estômago se divide em
três bases: Dos Sabores, os Saberes, Quebra-Panela
e Comer a Cultura. Cada uma delas reúne assuntos
em comum, parecendo conversar entre si. Dos
Sabores, os Saberes contam com as entrevistas de
Fabiana Figueiredo, Ocupação 9 de Julho (Carmen
Silva e Edouard Fraipont), Walla Capelobo e Zainne
Lima. Esse título parte da etimologia da palavra
“saber”, que tem origem no latim, sapere, e significa
ter sabor, ter bom paladar, sentir por meio do
gosto. Ao atinar que a sabedoria está vinculada ao
sabor que as coisas podem ter, foi claro perceber
que a educação está tão próxima da cozinha
quanto qualquer sala de aula. Cozinhar, comer e
compartilhar refeições são processos educativos
em que se ensinam sobre ecologias, estética e o
estar junto, despertando a coragem e a curiosidade
REENCARNAR A EDUCAÇÃO

de saborear o novo. Com base nessa percepção


de educação, as entrevistas reunidas nesse eixo
apresentam pontes entre alimentação e pedagogia.
Em Quebra-Panela, as entrevistas foram
feitas com Adriana Salay, Fernando Vieira,
Wanessa Asfora e João Luiz Máximo. O título
é uma referência à Revolta Quebra-Panelas,
ocorrida na Fordlândia (PA) em 1930, na qual
trabalhadores brasileiros revoltados em serem
obrigados a terem uma dieta exclusiva de
produtos norte-americanos (e impossibilitados
34 de se alimentarem de ingredientes locais, como
PÁGINA 35.

peixe e farinha, por exemplo) quebraram as


instalações do refeitório da fábrica. Apesar do
prejuízo financeiro, é incomparável à opressão
oculta de se impor um gosto estrangeiro
descontextualizado a trabalhadores que, por
vezes, passavam fome. Preservar seu próprio
paladar guarda em si um símbolo de resistência.
Esse ato, assim como as entrevistas desse
eixo, fazem ressoar narrativas que começam
na cozinha, mas que revelam censura, disputa
de territórios, opressões e resistências.
Por último, Comer a Cultura conta com a
participação de Joana Pellerano, Paula Oliveira,
Tainá Marajoara e Felipe Chaimovich. Em um
jantar no final de 1927, em São Paulo, Oswald de
Andrade, Tarsila do Amaral e outros modernistas
paulistas comiam uma iguaria não muito comum
ao paladar brasileiro: a rã. Oswald elogiou e
exaltou a rã, enquanto Tarsila concluiu “[somos]
uns… quase antropófagos”.5 A prática do povo
Tupinambá e alguns povos Tupi-Guarani de
REENCARNAR A EDUCAÇÃO

alimentar-se de carne humana, no anseio da


absorção do inimigo sacro6 foi inspiração para o
comentário de Tarsila Amaral e para o que Oswald
de Andrade escreveria mais tarde: o Manifesto
Antropófago. A antropofagia, o ritual de comer
o outro, foi popularizado pelos modernistas de

5 ANDRADE, Rudá K. de. A arte de devorar o mundo: aventuras


gastronômicas de Oswald de Andrade. São Paulo: Edição do
Autor, 2021.
6 ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: Revista de
35 Antropofagia. Reedição da Revista Literária publicada em São
Paulo, 1ª e 2ª edições, 1928–1929.
PÁGINA 36.

São Paulo ao projetar um contexto cultural em


que se apoiaram em temas como alteridade,
incorporação e, principalmente, a invenção de
uma identidade nacional. Comer a cultura é, assim
como o convite dos modernistas, uma proposta de
devorar não só o que é matéria, mas também o que
é identidade, o que é fantástico e transcendente.
Assim, o Projeto Reencarnar a Educação
propôs, durante o ano de 2022, usar todos os
sentidos para apreender e aprender com o agora.
Depois de dois anos em isolamento social, o
projeto deu oportunidade de reunir-se no próprio
Instituto Tomie Ohtake para deleitar-se em uma
experiência sensorial coletiva e reconhecer o
trabalho de cozinheiras e cozinheiros, merendeiras
e merendeiros e nutricionistas das redes de
ensino que, diariamente, aquecem a educação.
Reencarnar a Educação possibilitou reunir pessoas
para conversar sobre a inevitável manifestação
cultural de todos os dias ao alimentar-se. Esse
projeto foi (e continua sendo, enquanto prospera)
REENCARNAR A EDUCAÇÃO

um convite a des-hierarquizar os sentidos,


explorar narrativas apagadas, saborear a própria
história, despertar curiosidade e, por meio do que
se come e se compartilha, sentir-se presente.

Julia Cavazzini
Pesquisadora e Curadora do Projeto Arte e Sabor

36
PÁGINA 38.

DOS SABORES,
OS SABERES

Audiodescrição: Página com fundo azul-marinho.


PÁGINA 39.

ENTREVISTA COM
FABIANA FIGUEIREDO
CLIQUE E OUÇA

Julia Cavazzini: Para começar a nossa conversa,


vou fazer uma pergunta que serve como
introdução: como a comida chega para você,
ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO

como você chega para a comida, e o que ela


significa para você?A
Fabiana Figueiredo: Eu respiro comida desde que
me entendo por gente. Interesso-me não só pelas
coisas de comer, mas pelas maneiras como as
pessoas lidam com a alimentação. Minha primeira
experiência com comida, em que percebi que era
um assunto de interesse para mim, foi aos três
anos de idade. Meu avô me trouxe caviar de uma
viagem. Uma criança dessa idade, geralmente, não
experimenta coisas novas, e eu passei o restante
do dia dizendo que queria mais daquelas bolinhas
pretas. Sempre me interessou a maneira como
as pessoas faziam a comida, como comiam e a
importância que davam para aquilo. Eu sempre
39 prestei muita atenção na comida, desde criança.
PÁGINA 40.

J.C.: Como se dá o seu caminho da Pedagogia até a


pesquisa com alimentação?
F.F.: Eu sempre tive um pouco de alma de professora;
sou como gente que gosta de ensinar, é da minha
natureza. Quando foi chegando a hora de entrar na
faculdade, não sabia muito bem por qual caminho
seguir, mas gostava de Matemática e, por isso,
minha primeira opção profissional foi Economia.A
Logo descobri que foi um equívoco. Eu gostava das
matérias do curso, gostava de estudar, mas quando
entendi que naquela época, início da década de 1990,
o mercado de trabalho para quem era economista
se resumia a trabalhar em banco, compreendi que
estava no lugar errado. Assim, fui em encontro ao
tema da infância, uma outra paixão. Eu era a criança
que gostava de outras crianças, cuidava da prima
mais nova, dava comida etc., o que me levou para
ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO

a Pedagogia. Já no primeiro semestre de curso,


estava completamente encantada. Depois de me
formar, fiz uma pós-graduação em educação infantil,A
trabalhei vários anos como professora de educação
infantil e, na minha prática, sempre arrumava uma
maneira de trazer a comida para dentro da sala
de aula. Meu Trabalho de Conclusão de Curso
se intitulava Você tem fome de quê? — Como as
creches e pré-escolas lidam com os momentos de
alimentação. Eu investiguei três escolas, incluindo a
que eu trabalhava, e descobri o que eu já imaginava:
a comida era relegada a um lugar de cuidado dentro
das escolas. O alimentar-se era visto como tomar
banho, escovar os dentes e ir ao banheiro. Era um
não entendimento de que o momento da alimentação
40 pode fazer parte de uma atividade pedagógica.
PÁGINA 41.

J.C.: Tenho insistido junto às cozinheiras e aos


cozinheiros no fato de serem educadores também.
O que você pensa a respeito disso?
F.F.: Com certeza, eles são educadores, mas é
curioso você reparar na dinâmica da cozinha em
escolas, em que o professor é afastado desse lugar.
É quase como se cozinhar fosse uma tarefa menor.
Eu não acho que seja. Pelo contrário: acredito
que as merendeiras de escola são joias raras.
Meu marido, que é professor do estado do Rio de
Janeiro, tem alguma coisa maravilhosa para contar
das merendeiras da escola toda semana. Pode
ser algum milagre que elas fizeram ao faltar umA
ingrediente específico, algum jeito mais carinhosoA
de lidar com crianças que têm algum tipo de
dificuldade para comer ou que não aceitam de tudo.A
Eu acho que essas merendeiras são educadoras,
ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO

mas, muitas vezes, a escola não as vê como


potencialmente educadoras. Outro agravante é
que o ambiente escolar é muito pouco passível
de mudanças. Obviamente existem projetos
inovadores, mas, em geral, as transformações no
ambiente escolar são muito mais lentas.
J.C.: Você disse que analisou diferentes atuações noA
seu Trabalho de Conclusão de Curso. Pode falar um
pouco mais sobre isso? As escolas em que fez essa
análise eram públicas?
F.F.: Em uma das escolas pesquisadas, havia
uma horta frequentada pelas crianças e de
onde elas colhiam verduras e legumes; a escola
também oferecia oficina de culinária. ApenasA
uma apresentava essa possibilidade e todas
41 eram particulares. Eu gostaria de ter realizado
PÁGINA 42.

a pesquisa no sistema público, mas o prazo era


curto para a burocracia que, frequentemente,
existe nos ambientes públicos. Eu até procurei que
uma escola municipal do Rio de Janeiro em que eu
havia feito algumas horas de estágio fosse objeto
de estudo, mas não consegui. Dessa maneira, as
três escolas tiveram de ser particulares: duas
exclusivas de educação infantil, e uma que
oferecia turmas da educação infantil ao ensino
médio. Por incrível que pareça, a escola que não
trabalhava exclusivamente com a educação
infantil era onde encontrávamos professores
comendo com os alunos, transformando o
momento de alimentação em uma prática
educativa. Era possível observar professores
mostrando às crianças um legume ou outro
alimento que estivessem comendo como incentivo
ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO

a uma alimentação diversificada. Foi com base


nesse meu trabalho que eu ressignifiquei ainda
mais minhas próprias práticas na escola, que
já tinham muita atividade de culinária, de
gastronomia e de pensar a alimentação.
J.C.: Pode dar um exemplo de uma dessas
atividades que você propunha?
F.F.: Fizemos um projeto maravilhoso sobre o
álbum Arca de Noé, de Vinicius de Moraes, sobreA
a alimentação dos animais, e encontramos coisas
em comum entre o que os bichos e as pessoas
comem, como as focas que comem sardinha ou
os patos do meu sítio que comem milho. Partindo
dessas informações, fizemos várias atividades comA
esses alimentos. Eu me lembro que levei sardinhas
42 inteiras para a escola, abrimos, tiramos as vísceras,
PÁGINA 43.

e as crianças ficaram fascinadas. Também fiz uma


oficina de bombons com crianças de dois a três
anos e foi uma experiência muito legal, porque
chocolate, de certa forma, é um alimento pelo
qual as crianças têm certo fascínio. E é ainda mais
fascinante ver como ele é feito. Foi então que eu
decidi que eu não queria mais ser professora de
escola, e sim professora de culinária. Eu queria
ensinar crianças a cozinhar e a lidar com a comida
de uma maneira, eu não vou dizer melhor, mas mais
autônoma, porque quando você entende algo, pode
realizar aquilo para si próprio.
J.C.: Você chegou a dar aula para adultosA
na escola?
F.F.: Na escola, não, mas ministrei aulas para
adultos no Ateliê das Ideias. Eu tive experiência com
adultos, professores, quando participei de um grupo
ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO

de pesquisa na Pontifícia Universidade Católica


(PUC), que estudava a formação de professores na
educação infantil. Mas não se falava sobre comida;
ela aparecia apenas como um detalhe.
J.C.: Qual é a diferença entre ensinar o adulto e
ensinar a criança sobre alimentação?
F.F.: Ensinar adultos é muito mais difícil do que
ensinar crianças. As crianças são muito mais
transparentes e, assim, não há dúvida se elas
estão gostando ou não. E, ainda que seja preciso
adaptar muito mais a linguagem para ensinar as
crianças, para os adultos também é preciso fazer
essa adaptação, porque hoje em dia as pessoas às
vezes sabem tão pouco de cozinha.
J.C.: Você poderia falar mais a respeito do AteliêA
43 das Ideias?
PÁGINA 44.

F.F.: Depois que terminei a pós, pedi demissão da


escola e comecei a pensar em como viabilizar essa
ideia de dar aula de culinária para crianças, porque
até aquele momento esse tipo de aula era uma
novidade no mercado. Fui chamada de maluca por
muita gente, porque as pessoas não entendiam a
importância desse desejo. Com uma amiga, que
foi minha sócia, abrimos o Ateliê das Ideias: uma
escola de culinária para crianças. O nome mais
genérico deve-se à uma ideia inicial de ser um lugar
com vários tipos de experimentação para crianças.
Chegamos a oferecer aulas de dança, capoeira,
cinema, moda, até compreendermos que o nosso
grande objetivo era mesmo a culinária. Assim
passamos a oferecer aulas também para adultos,
a fazer eventos, oferecer aulas extracurriculares
para escolas, entre outras ações. Fizemos um
ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO

projeto — do qual tenho muito orgulho — deA


programa de TV, que ficou no ar no Gloob duranteA
alguns anos. O programa se chamava Tem Criança
na Cozinha e foi pensado por nós desde o início. É
claro que foi um desafio ter muita gente pensandoA
junto por tanto tempo, porque o programa entrou
no ar em 2013, teve cinco temporadas, cada
uma delas com 26 receitas. No entanto, acredito
que conseguimos desmistificar esse preconceitoA
de colocar crianças para cozinhar. Até porque
eram crianças grandes, com certa autonomia, e
mostramos os cuidados necessários.
No Ateliê, chegamos a ter oito ou nove turmas
simultâneas de crianças, adolescentes e adultos. Os
cursos para adultos não eram regulares, mas os das
44 outras faixas aconteciam uma vez por semana, e
PÁGINA 45.

variávamos entre receitas doces e salgadas, sempre


com o intuito de experimentar fazer de tudo. A única
restrição com crianças pequenas era a fritura;
mais pelo perigo de lidar com o óleo quente do que
introjetar nas crianças a ideia de que comer fritura
não é saudável. Isso porque a nossa ideia inicial era
ampliar o repertório das crianças e não o restringir,
dizendo frases como “isso não pode, isso não faz bem,
isso não é saudável”. Queríamos que, primeiramente,
as crianças conhecessem os alimentos.
J.C.: Eu tenho pensado muito sobre uma
experiência estética do paladar, que tem critérios
completamente diferentes do sentido visual ou
auditivo. Claro que comida também é visual, mas
há outros critérios quando se fala em paladar.
F.F.: A ideia era justamente essa, permitir às
crianças uma experiência que fosse maravilhosa,
ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO

como estar em uma colônia de férias. Nós


propúnhamos atividades com o intuito de misturar
os alunos do Ateliê com outras crianças que nunca
tinham estado lá. Vendávamos os olhos das criançasA
e oferecíamos vários potinhos com frutas para que
cheirassem ou provassem e dissessem que fruta era.
Depois, dávamos uma fruta para a criança cheirar,
uma outra para provar e ela tinha de identificar asA
duas. A proposta era que essa dissesse: “eu cheirei
uma uva, mas provei um kiwi”. Essa atividade eraA
muito divertida, porque é uma maneira de brincar
com os sentidos e fazer certa confusão, e, por
isso, as crianças amavam. Quando narrávamos
a atividade para os familiares, havia aqueles que
questionavam: “Mas a Fulana comeu mamão? Ela
45 nunca comeu mamão em casa; não come mamão de
PÁGINA 46.

jeito nenhum”. E era possível identificar essa nova


relação da criança com o alimento.
Eu tinha uma aluna diagnosticada com transtorno
de ansiedade. Apesar de ter apenas sete anos, a
família já havia identificado que o lugar que a
acalmava era a cozinha. Ela ficou conosco no Ateliê
até os quinze anos. Aos poucos, sua saúde mental
foi melhorando, com o tratamento adequado e a
cozinha como apoio. Era ela quem fazia os almoços
de família aos finais de semana.A
J.C.: Essa é a fase em que a criança está formando
sua identidade. De certa forma, você a está
incentivando a se conhecer desde cedo.
F.F.: Além disso, a comida passa a ocupar um
outro lugar na vida das pessoas. Às vezes, as
crianças chegavam lá com alguma questão em
relação à alimentação, como muita seletividade
ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO

ou porque gostavam de comer demais.


Recebíamos esses dois extremos na relação com
a comida e tínhamos uma média de alunos que era
a turma interessada em aprender a cozinhar. Com
algumas crianças, tivemos sucesso total: de super
seletivas a interessadas em sabores e texturas
diferentes. Também identificamos casos paraA
além do que poderíamos ajudar, como questões
sensoriais ou alguns níveis de autismo. Algumas
dessas questões se mostravam muito evidentes ao
lidar com a comida e, nesses casos, chamávamos
os familiares e conversávamos para procurar
desenvolver a questão de uma outra forma, com
ajuda especializada.
Com o tempo, fomos chamando professores
46 de especialidades diferentes para dar aula no
PÁGINA 47.

Ateliê. Tivemos, por exemplo, uma professora de


culinária italiana absolutamente genial. Ela era
tradicionalista e, por isso, tinha um jeito diferente
de ensinar as receitas. Para o pesto, ela levava o
almofariz dela, de pedra, diferente do que tínhamos
no Ateliê, para machucar o manjericão. Você
provava esse pesto e um feito no liquidificador,
o sabor era outro. O pilão dela pesava oito
quilos, e ela dizia: “eu sei que as pessoas em casa
não vão fazer como eu faço, mas eu acho que,
para aprender essa receita, elas precisam criar
uma memória gustativa, fazer a receita como
tradicionalmente é feita”.
J.C.: Dessa maneira, se está prestando atenção
não só ao alimento, mas às ferramentas, como elas
funcionam.
F.F.: E às especificidades de cada cultura. DuranteA
ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO

as aulas dessa professora, Alessandra, fizemosA


formatos de massa que eu nem sabia que existiam.
Sem contar as estratégias pedagógicas que
ela utilizava. Por exemplo, ela não entregava a
receita, apenas os ingredientes, e solicitava aos
alunos que anotassem o modo de fazer. Essa
proposta era necessária, porque as pessoas
tendem a não prestar atenção quando sabem
que terão toda a informação. Assim, os adultos
se comportavam como crianças, perguntando se
o colega já havia anotado o processo, se podia
copiar. Um dos alunos desenhava os passos e
todos queriam fotografar seu trabalho. Realizando
as aulas dessa forma, ela provocou essa reflexão
sobre a educação e suscitou vários debates em
47 relação ao tema.
PÁGINA 48.

J.C.: Qual é a diferença entre o que é proposto


como educação em sala de aula e o que é proposto
na cozinha?
F.F.: Acredito que, em um primeiro momento, o
que mais muda é a disponibilidade do seu corpo,
a disponibilidade física. Na cozinha, não se ficaA
sentado. E sabemos que são poucas as escolas
que promovem um corpo mais livre durante o
aprendizado; já na cozinha vivenciamos essa
liberdade. Entretanto, na minha visão, a cozinha é
uma enorme sala de aula, em que se aprende com
a cabeça e com o corpo. Pense: para se cortar
uma cebola, é preciso estar em pé, ter utensílios
específicos, uma delimitação espacial e saberA
manejar todas aquelas coisas. Ao cortar a cebola, é
bem provável que a pessoa chore e, assim, todo seu
aparato sensorial e corporal está sendo ativado a
ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO

favor de um aprendizado. Por isso, a cozinha gera


muito mais possibilidades de aprendizado que a
própria sala de aula, entendida como um espaço
em que as crianças estão sentadas, o professor fala
sem parar e elas copiam alguma coisa. Na cozinha
há a possibilidade do fazer, do transformar, de ver
transformações acontecerem na sua frente.
Há até uma história para ilustrar essa questão.
O forno do Ateliê era um pouco alto, e havia um
aluno que era fascinado por ver as coisas no forno.
Para ver melhor, ele puxava uma cadeira e ficavaA
em pé, sobre ela, vendo o bolo crescer, ou vendo a
carne dourar. Acendíamos a luz interna do forno e ele
ficava ali, assistindo como se fosse uma televisão.A
J.C.: E se o tempo de forno fosse de duas horas, o
48 que você fazia?
PÁGINA 49.

F.F.: É preciso segurar a ansiedade e aprender


a viver. Eu sempre falo para a minha irmã, que é
uma pessoa muito apressada, que a culinária é
um exercício de presença. Esse exercício, para as
crianças, é ainda mais difícil, porque o tempo de
atenção delas é mais curto que o do adulto. Sempre
é desafiador, mas ao mesmo tempo, maravilhoso.A
Eu tenho uma amiga que costuma fazer um doce de
banana sem um grão de açúcar, usa apenas a fruta.
O doce leva horas, dependendo da quantidade,
dias, para ficar pronto. Poderíamos dizer queA
os ingredientes são banana e tempo, porque
basicamente é disso que precisamos: fruta e tempo
de dedicação. Hoje em dia, é tudo muito rápido, e
as crianças acabam ficando acostumadas comA
esse ritmo. O momento de perguntar: “e agora?”
é muito importante para começar a entender a
ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO

espera. E essa era uma das perguntas que mais se


ouvia nas aulas.
J.C.: E o que mais você aprendeu com as crianças
durante essas aulas?
F.F.: Uma das mais importantes lições é não me
deixar levar pelos meus próprios preconceitos. A
outra, é que as crianças são muito resilientes: elas
tentam de novo e de novo. Além disso, aprendi a
olhar com o olhar das crianças, a despertar meu
próprio olhar, a curiosidade, ampliar o olhar para
o mundo e rever coisas que eu já conhecia de
cor e salteado, como as receitas. Eu costumava
trabalhar a mesma receita com as diferentes
turmas, mas, cada aula era única por causa do
olhar das crianças. Por exemplo, se eu escolhesse
49 fazer uma receita que usasse goiaba, poderia
PÁGINA 50.

ter uma criança que gostaria de saber como é


a árvore de onde vem a goiaba. Essa pergunta
pode dar o tom de toda a aula. Em outra turma, a
criança não quer saber sobre a goiaba, mas está
interessada nas cores da fruta. Aquela turma já
parte para um outro lugar de reflexão. E, dessa
forma, era preciso que eu estivesse sempre aberta
ao que era proposto pelas crianças. Na educação,
se abrir para o que as crianças trazem e não ficar
preso apenas àquilo que você planejou é muito
importante. Se nos deixamos contaminar por toda
essa curiosidade, os processos ficam muito mais
interessantes, muito mais valiosos, levando até
a própria criança a enxergar mais valor naquela
atividade. Essa é uma grande oportunidade de
aprendizado quando se trabalha com crianças,
e eu tenho saudades.
ENTREVISTA COM FABIANA FIGUEIREDO

50
PÁGINA 51.

ENTREVISTA COM
WALLA CAPELOBO
CLIQUE E OUÇA

Julia Cavazzini: Para iniciarmos nossa conversa,


gostaria de saber como a comida chega para
você, como você chega para a comida e o que ela
significa para você.
ENTREVISTA COM WALLA CAPELOBO

Walla Capelobo: Eu gosto de pensar que a comida é


um outro estágio da terra, porque tenho entendido
que tudo é materialidade nesse planeta. A
comida talvez seja a parte mais gostosa da terra,
que geralmente age por dentro. Partindo desse
princípio, a comida chega a mim como afeto e
fazendo parte de um processo de nutrir que tem a
ver com a “cultividade” da vida, com energia, que
possibilita os processos metabólicos e faz nosso
corpo ter, literalmente, energia para nos movimentar
e continuarmos a viver. Ao comermos um alimento,
estamos comendo todo um processo; nele contém
a energia de muitas pessoas que passaram por esse
processo, desde quem semeou, plantou, colheu,
51 transportou a quem cozinhou. Os processos têm
PÁGINA 52.

constelações energéticas que vão se somando. Ao


mesmo tempo, devolvemos essa energia à terra,
por meio do processo metabólico. Eu percebo o
alimento como um presente. Para mim, comer é uma
das coisas mais gostosas de se fazer. Eu fico muito
feliz de ser convidada para comer e adoro cozinhar.
A discussão da comida, então, tem a ver com ciclos
para manter a energia circulando e talvez seja uma
das melhores coisas de se fazer.
J.C.: Podemos dizer que esses ciclos dizem respeito
ao nosso corpo, à incorporação das coisas, porque
o alimento passa a ser parte de nós?
W.C.: As pessoas se transformam ao se
alimentarem, porque a comida vira nosso corpo,
por meio de processos metabólicos. Essa
incorporação é uma das coisas mais bonitas, mas
também é um dos grandes perigos, porque estamos
vivendo em um momento em que a segurança
ENTREVISTA COM WALLA CAPELOBO

alimentar é muito difícil, cara e complicada. Poder


escolher o que comer é um privilégio, infelizmente.
De qualquer forma, saber de onde vem o alimento,
o que você está incorporando a si mesmo, é muito
precioso.
J.C.: Você diz que as pessoas não sabem de ondeA
vem o alimento, por que não se vê mais esse
processo, com o distanciamento das pessoas
da terra e a falta de autonomia em produzir o
próprio alimento?
W.C.: Exatamente. Eu estou no México e, ontem,
participei de uma caminhada com o artista Miguel
Cinta para conhecer melhor os problemas locais,
que são muito similares aos do Brasil. Os principais
52 problemas que percebemos foram a concentração
PÁGINA 53.

de terra e a fome. Há uma escala enorme de


produção de alimentos, por meio do agronegócio,
mas, ao mesmo tempo, existe uma epidemia de
fome, que gera desperdício em vez de promover
soberania alimentar.
Quando eu era criança, observava a minha avó
trocando receita com a vizinha. Hoje em dia, isso é
muito difícil de acontecer, porque não temos esse
tempo. O tempo está em um ritmo não humano;
não existe um tempo para o descanso, para a
reelaboração dos pensamentos. No dia a dia, com as
pressões diárias para produzir, o corpo acaba sendo
esquecido. Até o prazer e o desejo são esquecidos.
J.C.: Muito importante falar sobre como perdemos o
prazer e o desejo de cozinhar e de comer. Virou umA
recurso: comer algo para ser mais produtivo.
W.C.: Esse projeto colonial tem muito a ver com
transformar a natureza em recursos a serem
ENTREVISTA COM WALLA CAPELOBO

consumidos. Eu gosto de pensar que dentro


da palavra “consumir” tem “sumir”, ou seja, ao
consumirmos, fazemos algo sumir. Estamos
vivendo em uma dinâmica de extinguir as coisas,
e comer se transformou em algo fabricado. Até
os horários para se alimentar dizem respeito
muito mais a uma dinâmica mundial de produção
do que às necessidades do nosso próprio corpo.
Se não formos livres, não poderemos comer de
outras maneiras.
J.C.: Como foi o seu processo para chegar à
pesquisa com a terra?
W.C.: Eu cresci em uma cidade chamada
Congonhas, em Minas Gerais. Ela fica na mesmaA
53 região de cidades como Brumadinho e Mariana,
PÁGINA 54.

palco de incidentes graves que aconteceram, que


não foram acidentes. Congonhas é um desses
lugares que fica próximo a uma barragem de
minério de ferro. Minha família toda trabalha com
mineração, desde a geração dos meus avós. Por
conviver com isso desde nova, foi algo que nunca
quis para mim, porque sentia aquilo tudo muito
violento e percebia o quanto a exploração da
terra tinha a ver com a exploração das pessoas.
Eu não via muita diferença: o que acontecia com
as montanhas era o que estava acontecendo com
a minha família. Por exemplo, há 200 anos, no
período colonial, eu seria entendida muito mais
parecida a uma montanha do que a um ser humano,
no sentido de não ter humanidade, como se eu
fosse um objeto. Esse tratamento se perpetua
ainda hoje, o que fez com que eu me aproximasse
muito mais da terra, que talvez seja mais próxima a
ENTREVISTA COM WALLA CAPELOBO

mim do que esse projeto de humanidade. Passei a


entender que a terra, assim como eu, minha família
e outras pessoas, é um ser que tem autonomia,
agência, e por isso não pode ser explorada. Essas
reflexões em relação à terra perpassam pessoas
com sede de liberdade; não é algo individual e
acontece no coletivo.
J.C.: Você acredita que a terra é vista,A
ingenuamente, como algo a ser dominado apesar
de sua imensidão?
W.C.: A terra não é dominável. A dominação é uma
abstração; nunca foi possível se prenderem sonhos.
A terra é um ciclo como a água, em movimento.
Ontem eu conheci um vulcão. Fiquei muito feliz,
54 porque foi o primeiro vulcão que vi na vida.
PÁGINA 55.

Fiquei muito empolgada com tudo: o vulcão, as


pedras, as montanhas, o vento que bate nelas, a
transformação do magma em minério, a erosão...
Não tem como dominar isso. Outro exemplo:
o ferro que é extraído da terra enferruja e vira
minério de novo. Então, a dominação é uma
abstração violenta, que depende de tempo,
não de estabilidade.
J.C.: Como foi a sensação de estar em frente a
um vulcão, que é ao mesmo tempo assustador e
reconfortante?
W.C.: De muita felicidade. Eu vim para o México
para isso. Eu fiquei muito empolgada, porque asA
pedras são muito novas e, por isso, são porosas;
não estão ainda totalmente rígidas, mas em um
outro processo. Elas vão gerar uma terra linda,
muito preta, muito fértil. Esse vulcão que eu
visitei tem aos pés uma grande plantação. É um
ENTREVISTA COM WALLA CAPELOBO

lugar muito fértil, onde a vida recomeça. Fomos


ensinados que vulcão é algo que destrói, quando
na verdade ele é fonte de vida. Vulcões são umaA
grande explosão que faz tudo começar de novo.
J.C.: Na sua produção, há uma série de signos
relacionados a minérios que se repetem, e a cada
trabalho eles ganham uma dimensão nova, como
uma erupção de novas conversas. O que o minério
representa para você?
W.C.: O ferro me encanta muito. Nosso sangue, por
exemplo, só é vermelho porque possui ferro em sua
composição. É ele o responsável por transportar
o oxigênio pelo nosso corpo. Posso dizer, então,
que é ele que sustenta a nossa vida, é um agente
55 energético da vida.
PÁGINA 56.

J.C.: Nesse sentido, você acha que se consegue


relacionar uma ancestralidade humana à natureza?
Como foi esse processo de se encontrar na sua
ancestralidade com a natureza?
W.C.: Sim, com certeza. Hoje é o primeiro dia de
agosto, mês de Omulu, rei da terra, orixá que é ao
mesmo tempo a doença, a morte, e a própria terra.
Aproximar-se dela é uma das formas de acessar um
modo de existência que tentaram apagar. A ideia
de ancestralidade também sofre uma abstração
colonial ao pensar que apenas nos encontramos
com ela vez ou outra, como se estivesse longe,
mas ela está no cotidiano. A ancestralidade
está presente na minha vida de muitas maneiras
e ela tem a ver com a natureza, por exemplo,
quando o vento bate em meu rosto. Acho que esse
encontro tem a ver com o cotidiano, não é algo
extraordinário ou extraterreno.
ENTREVISTA COM WALLA CAPELOBO

J.C.: Hoje existe uma ambição de contenção de


danos, no sentido de proteger a natureza, mas na
realidade ela é muito maior e mais poderosa que
nós. Como seria esse processo? Tem a ver com o
agenciamento da natureza de que você fala?
W.C.: Para mim, até essa ideia de preservar a
natureza tem a ver com dominação, como se o ser
humano tivesse resposta para o que acontece com
todos os seres. As extinções, por exemplo, também
fazem parte de um processo. As coisas têm de
acontecer para virarem outras. Os dinossauros
viveram aqui por muito tempo e não vivem mais;
a extinção deles foi um processo que possibilitou
a vida humana. Aceitar que um dia talvez surgirá
56 outra espécie, porque nos recombinamos e viramos
PÁGINA 57.

matéria orgânica, é fundamental. Falta humildade


no ser humano de aceitar que as coisas são
passageiras e que a ideia de preservação tem a
ver com dominação, já que escolhemos o que é e o
que não é preservado, obviamente passando pela
dominação econômica. Há um outro lugar perigoso
a que a preservação chega: o ecoturismo, porque
só pessoas ricas passam a ter acesso às paisagens;
passamos a disputar a paisagem. Quem tem direito
ao prazer de ver uma bela montanha, uma bela
praia, o direito de se alimentar?
J.C.: É curioso o quanto essa relação de
preservação também se expande para a cultura.
Por exemplo, a ideia de preservar a cultura
indígena, como se ela já não existisse.
W.C.: Talvez alguns desses povos prefiram nãoA
a ter preservada, mas absorverem mudanças.
Poderíamos deixar as pessoas decidirem o que elas
ENTREVISTA COM WALLA CAPELOBO

querem fazer. Atuando como curadora de arte,


havia muitas discussões sobre o que está no museu
e o que se preserva. Essa escolha, na maioria das
vezes, diz muito mais sobre quem decidiu preservar
do que sobre o que foi preservado.
J.C.: Como é essa troca de estar tanto no lugar de
historiadora da arte quanto no de pesquisadora
da natureza?
W.C.: É uma negociação eterna, cotidiana,
porque as soluções de ontem não vão ser as
de hoje. Eu acredito que são atividades que
têm a ver com circularidade, essa encruzilhada
cotidiana, uma maneira inteligente de se viver,
com sabedoria e paciência. O linear ou o
57 progressivo têm a ver com o fim, com o objetivoA
PÁGINA 58.

final, e o circular é entender que as coisas vão serA


diferentes todos os dias.
J.C.: Você falou sobre a ancestralidade noA
cotidiano, e eu fiquei pensando na moringa comoA
uma representação de algo que carrega muito de
ancestral e que também acolhe.
W.C.: As moringas são, para mim, grandes
presentes dos rios, porque as percebo como estar
na beirada de um rio, dentro da casa. Imagino
que houve um tempo em que se tinha sede e essa
tecnologia foi inventada. Nessa relação, nessa
conversa entre sede e rio, as coisas aconteceram,
como a percepção de que o barro está ali perto do
rio. As moringas, dessa forma, representam essas
pessoas mais velhas da nossa espécie, que nos
ensinaram a viver aqui.
J.C.: Você fala muito sobre aprender com a naturezaA
e, como professora, pode proporcionar essa troca
ENTREVISTA COM WALLA CAPELOBO

de saberes por meio do ensino.


W.C.: Para mim, o que mais faz sentido é a troca, o
poder de expressar para alguém o que você está
pensando e receber o mesmo em troca. Quando
você escuta, você imagina de maneira particular,
e eu acho muito bom estar pensando sobre alguma
coisa coletivamente, tendo acesso a muitas teorias
diferentes.
J.C.: E, para ser educadora, você precisa ser alguém
que está constantemente se transformando e
reconhecendo o seu entorno, não é?
W.C.: Sim. A vida, para mim, tem a ver com essa
transformação e reconhecimentos constantes, que
fazem com que seja muito prazeroso viver, talvez
58 sejam as coisas mais legais, além de comer.
PÁGINA 59.

J.C.: Nesse sentido, o que você mais aprende


com a natureza?
W.C.: Tem uma música do Gilberto Gil em que ele
fala que queria ser um grão de areia, porque um
grão de areia já sabe o valor que tem. Aprender
com a natureza tem a ver com reconhecer o nosso
valor na totalidade e entender que está tudo bem.
J.C.: E como você traduz ou dispara esse
conhecimento? Como você devolve essa
experiência para o mundo?
W.C.: Nas minhas aulas, eu incentivo o imaginário,
como despertar seu imaginário. Trabalhar com
barro é muito bom para esse despertar, porque a
pessoa precisa do corpo para estar ali. Assim que
acaba o projeto, e por algum tempo, ela vai sentir
algo no corpo que se liga ao que ela está sentindo.
Estimulo a pessoa a usar o próprio corpo para
produzir o que está no imaginário, porque senão ela
ENTREVISTA COM WALLA CAPELOBO

só ouve e não sente, e o mais importante para mim


é fazer sentir.
J.C.: Eu também fiquei pensando em outrosA
símbolos que aparecem no seu trabalho. VocêA
falou de tecnologia com os remédios caseiros para
doenças respiratórias. Como se deu esse processo?
Foi algo que você pesquisou?
W.C.: Esse processo aconteceu durante a
pandemia, pelo desejo de querer ficar viva. AA
pandemia gerou em mim uma sede de vida muito
grande, e fiquei pensando em como sobreviver aA
ela. Foi um período de recolhimento para todos,
que nos levou a pisar no planeta de outra maneira.
Também pensei em como não depender de um
59 sistema de saúde, tendo em vista os colapsos que
PÁGINA 60.

estavam acontecendo no planeta e como eles


se dariam em nosso país de maneira tão cruel. O
Brasil foi um dos países com mais mortes por covid,
com casos comprovados de eugenia na CPI da
covid, como a testagem de remédios em pacientes
no Amazonas e outras ações abomináveis. Esse
momento me fez tentar criar rotas de fuga e adiar
ao máximo a ida ao sistema de saúde, pensando em
uma certa autonomia, uma independência, com a
possibilidade de sonhar. E eu peguei essas receitas
de como curar gripe, como curar pneumonia, com
a minha avó. Eram receitas que haviam sido usadas
contra outras doenças e poderiam nos ajudar
naquele momento. A Jurema Werneck, médica e
líder da Anistia Internacional, e uma das pessoas
que denunciaram a eugenia que estava ocorrendo
no Brasil, escreveu um texto intitulado “A era da
inocência já acabou e já foi tarde”. Foi a ideia de
ENTREVISTA COM WALLA CAPELOBO

que não dá mais para sermos inocentes nesse


território que me fez buscar possibilidades com
as receitas de remédios caseiros. É preciso que
criemos nossos quilombos, nossas maneiras de
sobreviver para além do projeto colonial de Brasil.
J.C.: Eu penso que esses remédios podem
representar possibilidade de cura por meio da terra,
e como há uma potência nessas alternativas. VocêA
falou no início de nossa conversa que a autonomia
depende do alimento, da terra. Quantas maneiras
de cura a terra tem nos oferecido sem percebermos,
não é?
W.C.: A própria indústria farmacêutica também
é a terra, mas acaba por nos afastar da cura por
60 causa de sua maneira técnica e elaborada. Esses
PÁGINA 61.

remédios que minha avó me passou têm a ver com o


tempo em que não se tinha acesso aos médicos por
ser muito caro, ou seja, nascem de uma exclusão.
Esse saber existe, porque naquela época as
pessoas não tinham como ir ao médico sempre que
necessário e elas estavam interligadas com a terra.
E a indústria farmacêutica acabou nos afastando
de métodos de cura nos fazendo dependentes. Eles
reelaboram várias substâncias, em vários remédios,
são várias plantas com nomes codificados, de
maneira que apenas quem tem esse conhecimento
poderá ter acesso aos elementos naturais. Tudo é
a terra, só que organizado de uma maneira a gerar
hierarquias de poder.
ENTREVISTA COM WALLA CAPELOBO

61
PÁGINA 62.

ENTREVISTA COM
OCUPAÇÃO 9 DE JULHO
CARMEN SILVA E EDOUARD FRAIPONT

CLIQUE E OUÇA

Julia Cavazzini: Vocês poderiam começar se


apresentando e falando sobre o significado que a
ENTREVISTA COM OCUPAÇÃO 9 DE JULHO

comida tem para vocês?


Carmen Silva: Eu sou Carmen Silva, liderança do
Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), que gere
a Ocupação 9 de Julho. Na Ocupação, nós temos
uma cozinha comunitária. Dessa maneira, para nós
do MSTC, a relação com a cozinha sempre foi de
interação, de agregar nossas ocupações com uma
estratégia de reunir pessoas. A cozinha remete
também à questão da ancestralidade, uma vez que
cada um traz a forma como aprendeu a cozinhar
e a lidar com os insumos, nos levando a ter um
relacionamento muito mais próximo.
Edouard Fraipont: Eu sou Edouard Fraipont, militante
do MSTC, fotógrafo, documentarista, artista,
ativista ou, como costumo dizer, artivista. Eu sou um
dos que ajudou a formatar o projeto da Ocupação 9
62 de Julho, porque, como Carmen disse, somos muitos.
PÁGINA 63.

O projeto surgiu em 2017, concomitante à Bienal


de Arquitetura, com a ideia de abrir uma cozinha
comunitária que pudesse receber a sociedade para
almoços. Eu acredito que a comida é uma força vital
do coletivo, do comum. É nela que nos encontramos,
conversamos e fazemos política.
J.C.: Quantas pessoas estão envolvidas na cozinha
da Ocupação e quem são elas?
C.S.: O envolvimento de pessoas na cozinha é
bastante variável. Passam por lá chefs, artistas,
voluntários da sociedade civil que querem ajudar,
mas os mais comuns por lá são os moradores. A
cozinha iniciou como uma parte comunitária dos
próprios moradores, mas em 2017 passou a serA
aberta para receber pessoas de fora. Da cozinha
já surgiram outros projetos, como o Maravilhas
ENTREVISTA COM OCUPAÇÃO 9 DE JULHO

da Terra, que se baseia na produção dos próprios


moradores e oferece diversos cursos. Assim, são
muitas mãos envolvidas com a cozinha. Além
disso, hoje em dia temos uma equipe fixa que giraA
em torno de 25 pessoas. Se contarmos a parte do
serviço e da produção do evento do almoço, são de
30 a 40 pessoas.
E.F.: É um projeto que começa na cozinha, com
cozinheiros e ajudantes, mas vai incorporando um
evento maior, que é o almoço de domingo. Nesse
evento, tem pessoas também na montagem e na
limpeza, e todo esse trabalho é feito basicamente
por moradores, que são os únicos remunerados.
Mas todos são bem-vindos para apoiar e, por isso,
vem sempre gente de fora.
J.C.: E o que muda da cozinha do dia a dia para a
63 cozinha do fim de semana?A
PÁGINA 64.

C.S.: Durante a semana, o fluxo da cozinha para os


preparativos do almoço começa na quarta-feira.
Muitas vezes, fazemos um almoço pequeno para as
pessoas da administração e as assistentes sociais.
Temos também as responsáveis pela preparação
dos chips de banana e de batata, carne louca e
carne de jaca, a dona Nice e a dona Dulce, que
produzem para fora e fazem as entregas. Também
se trabalha nos sets de cinema e, ainda, há aqueles
dias em que sentimos saudades do início da
Ocupação, da cozinha comunitária, e bolamos um
almoço para o pessoal do administrativo e para as
pessoas que estiverem por lá.
E.F.: Sábado ocorre um desses almoços
comunitários. É o dia do pré-preparo para o grande
evento de domingo, mas também é um dia que
ENTREVISTA COM OCUPAÇÃO 9 DE JULHO

temos disponibilidade para fazer nossos encontros,


reuniões e conversas.
J.C.: A cozinha é um lugar muito convidativo, não é?
C.S.: Tem também a memória afetiva. Uma coisa
que me chamou a atenção recentemente foi a
lembrança de uma comida maravilhosa que minha
mãe fazia, que só relembrei quando um chef da
Bahia veio e preparou. Nessa semana, nós tivemos
uma grande festa junina na Ocupação, e uma
pessoa veio me agradecer, com vontade de chorar,
porque comeu algo com o sabor que tinha a comida
de sua mãe. A cozinha tem muito a ver com o afeto,
a ancestralidade.
E.F.: E a festa junina foi muito bonita, porque abriu
espaço para as barracas dos moradores, e cada um
pôde colocar o seu saber e o seu afeto na comida. Há,
64 por exemplo, o caso da Selma, que trabalhava como
PÁGINA 65.

diarista e, depois dos eventos da Ocupação, retomou


o preparo do acarajé, que aprendeu com a mãe.
Atualmente, ela vive desse quitute. Temos também
outras barracas, a da Dadá, que faz churrasco
maranhense, a do José e da Joana, que fazem um
churrasquinho gaúcho. Assim, cada um traz o seu
saber e essa mobilização é bem bonita de se ver.
C.S.: Toda essa mobilização está despertando
o interesse das crianças e dos adolescentes
também. Eles mesmos produzem e vendem doces.
A cozinha tem esse poder de trazer a diversidade
das pessoas. E, desde o início do movimento, a
estratégia foi criar um ponto de encontro.
J.C.: E vocês podem dizer que é um ponto de
encontro em que as coisas acontecem de forma
democrática, não é?
ENTREVISTA COM OCUPAÇÃO 9 DE JULHO

C.S.: Todos iguais. É interessante perceber que


alguns chefs, que são voluntários, trazem a
sabedoria gourmet deles, mas quando chegam na
cozinha percebe-se o quanto são humildes, o quanto
querem compartilhar seu saber e transformar o
que sabem em uma atração. Na Ocupação, temos
a capacidade efetiva de cozinhar em grande
quantidade e somos muito elogiados por isso. Em
alguns domingos, cozinhamos 70, 100 quilos deA
arroz, 30 quilos de feijão, 100 quilos de carne.
E.F.: Desde o começo da pandemia de covid-19,
temos o projeto Lute Como Quem Cuida, que entre
nós chamamos de Lute Como Quem Cozinha.
Todo domingo, depois de dois meses do início
do lockdown, nós abrimos a cozinha para fazer
refeições e distribuir nas comunidades da periferia
65 de São Paulo. Até hoje nós distribuímos refeições
PÁGINA 66.

para as comunidades: de 300 a 500 refeições


todos os domingos.
C.S.: É muita comida, e as pessoas costumam olhar
para esses números e fazer uma conta capitalista,
em que o importante é o quanto se vende.
Entretanto, tudo o que fazemos na Ocupação,
principalmente na cozinha, é uma gastronomia
de educação. A atividade é pensada para que as
pessoas tenham autonomia. Nós não queremos
apenas ter uma forma de ganhar dinheiro, nós
queremos distribuir. O que fica serve de caixaA
para os insumos e para manter as obras na própria
Ocupação. Projetos de elétrica e reformas são
financiados dessa maneira, uma autossustentação.A
Nós também mantemos uma pessoa que cuida da
horta, um outro projeto capaz de se manter por
ENTREVISTA COM OCUPAÇÃO 9 DE JULHO

causa da cozinha.
J.C.: De onde vêm os insumos da cozinha? E qual é a
importância da horta?
E.F.: No início do projeto, íamos ao mercado do
Pari, o mais próximo da Ocupação, e comprávamos
tudo ali. Aos poucos, fomos criando uma rede de
fornecedores, pequenos agricultores, cooperativas,
assentamentos, todos produtos orgânicos e de
agricultura familiar. Criou-se essa irmandade em
torno da comida, do insumo, do ingrediente ou,
melhor dizendo, do alimento. Fazemos um esforço
grande para que os alimentos venham desses
parceiros, dessa aliança do campo conosco.
J.C.: Dessa maneira, não é possível falar sobre
alimentação sem tocar no tema da reforma agrária.
C.S.: Não apenas a questão da reforma agrária é
66 importante, como também considerar o cuidado
PÁGINA 67.

com que retiramos o alimento da terra e como


temos que devolvê-lo para a terra. A cozinha como
caminho de educação nos leva a ter mais cuidado
com a terra, com a natureza como um todo. Então
não é somente uma questão de reforma agrária, mas
do meio ambiente, porque o que se retira da terra
pode ser devolvido como insumo para alimentar
essa mesma terra. Para realizar esse processo,
temos uma composteira e procuramos fazer a nossa
comida com o mínimo de produtos industrializados.
Podemos dizer que nossa comida é feita com 90% de
insumos naturais. O óleo, por exemplo, ainda não é
produzido por nossos parceiros.
E.F.: O tema da composteira é muito importante
para o projeto. Todas as sobras de alimento,
tanto do pré-preparo, dos cortes, quanto dos
ENTREVISTA COM OCUPAÇÃO 9 DE JULHO

restos dos pratos, vão para a composteira.


Temos que melhorar a questão do lixo reciclável,
porque ainda é difícil para nós alcançarmos o
lixo zero. Ele já é um projeto da Ocupação, mas
que não conseguimos pôr em prática, ainda.
O próximo passo é incluir os moradores nesse
trabalho com o lixo. E esse objetivo de administrar
melhor a produção de resíduos se encaixa nos
três eixos do projeto da cozinha da Ocupação
9 de Julho. O primeiro é a economia solidária com
oportunidades de trabalho para os moradores nas
barracas e na cozinha. O segundo eixo é reforçar
o território no seu interior e, depois, abri-lo para
que a sociedade possa conhecer o movimento,
de forma que as pessoas possam se despir de
preconceitos, conhecer o que é o MSTC e, assim,
67 criar uma rede de solidariedade, de apoio e até de
PAGINA 68.

militância. E o terceiro eixo é uma mistura desses


valores, em que deve haver uma troca de saberes
em torno da cozinha e em encontros com outras
cozinhas, outros movimentos. A Carmen pode falar
um pouco mais sobre o papel da Casa Verbo.A
C.S.: A Casa Verbo foi criada no início da pandemiaA
com o intuito de se fazer um comitê, em princípio
com foco de formação, de troca de saberes.
No decorrer da pandemia, entretanto, houve
uma preocupação muito grande com a fome,
porque na linha de frente do trabalho estavam
mulheres responsáveis pelas famílias, homens que
trabalhavam em lojas ou como motoristas, que
foram diretamente atingidos e muitos perderam
seus trabalhos. A Casa Verbo se preocupou muitoA
com as ocupações e o movimento tomou uma
ENTREVISTA COM OCUPAÇÃO 9 DE JULHO

proporção muito grande, em que conseguimos


conectar 160 núcleos de comunidades vulneráveis,
associações, terreiros de candomblé, igrejas,
albergues e lideranças comunitárias. Ao trazermos
a cozinha para esses núcleos, eles perceberam
como a comida agrega e que, além de matar
a fome, ela traz sabedoria. Assim tivemos a
inspiração de convidar essas comunidades
vulneráveis a formar suas próprias cozinhas
comunitárias. Com a Casa Verbo, damos o suporteA
para a administração das doações que fazemos,
em torno de 500 quilos de carne e de vegetais toda
semana. Até fizemos um manual para ensinar aA
usar esses insumos. Muitas pessoas vêm aderindo
às cozinhas solidárias, mantendo o pensamento
da nossa: fazer comida de qualidade, procurando
68 utilizar menos produtos industrializados.
PÁGINA 69.

J.C.: A Casa Verbo tem vários pontos ou umA


lugar fixo?A
C.S.: Ela tem um lugar fixo, que faz o cadastramentoA
dessas entidades e as atende aos domingos,
quando elas vêm buscar a comida que vai para
a comunidade que representam. É importante
lembrar que procuramos fazer a comida da melhor
qualidade, para que pelo menos aos domingos as
pessoas vulneráveis dessa comunidade tenham um
almoço digno. A ideia não é doar uma marmita, é
alimentar a comunidade. Por isso, todo domingo
atendemos até cinco comunidades. E tem mais: no
nosso almoço aos domingos, representantes da
aldeia Guarani vêm vender seus produtos, além de
vários editores, por exemplo, a n-1 edições, que
também vêm vender seus livros, os produtores do
ENTREVISTA COM OCUPAÇÃO 9 DE JULHO

MST, o brechó da própria Ocupação, entre outros


agregadores, resultado das relações incentivadas
pela cozinha.
Dessa maneira, temos uma troca magnífica, porqueA
da criação da cozinha durante a pandemia veio
a Casa Verbo, com o intuito de formação; depoisA
criamos o Comitê de Combate à Fome, que se
tornou tão grandioso a ponto de atingirmos cerca
de 60 mil pessoas em toda a grande São Paulo. Não
são marmitas feitas com sobras, mas um almoço
bem-feito, preparado pela Ocupação 9 de Julho.
Eu sempre digo que o MSTC quebra paradigmas,
porque entende que cultura é transformação e que
gastronomia também é inclusão.
E.F.: Além disso, nos diferenciamos por toda essa
troca que existe desde a produção do alimento até
69 a sua distribuição, passando pelos chefs e pelos
PÁGINA 70.

eventos culturais, até chegar a outras cozinhas


comunitárias.
J.C.: O caminho todo do alimento. Hoje em dia mal
sabemos o que estamos comendo, de onde veio,
quem fez, quem entregou.
C.S.: Você falou algo muito relevante: saber oA
caminho traçado pela comida desde a plantação
até o nosso estômago é muito interessante.
E.F.: Como temos contato direto com os
produtores, com os agricultores, sabemos de onde
vem o alimento, o que é muito saudável na relação
que temos com ele.
C.S.: Estou tendo uma ideia para cozinha: fazer
um mapa que mostre de onde vem o alimento ali
distribuído até chegar ao nosso estômago, para
expor nos almoços de domingo.
ENTREVISTA COM OCUPAÇÃO 9 DE JULHO

E.F.: Até chegar ao nosso estômago e à


composteira.
J.C.: O que nos leva a falar novamente sobre a terra,
ou seja, para onde a comida volta.
C.S.: Sim. E a Ocupação 9 de Julho é um espaço
peculiar porque lá tem árvores, gato, pica-pau e
muitos outros pássaros, o que nos permite ter contato
com a terra, a natureza, e sermos mais gratos a ela.
E.F.: Além disso, quem conheceu a Ocupação em
2016, pode passar a entender a máxima: “quem
ocupa cuida”. Depois de seis anos no local, a
Ocupação está toda bem-cuidada, com jardim,
horta. Tudo está vivo.
J.C.: A programação cultural também faz com que
esse lugar se mantenha vivo por meio da arte. Onde
a cozinha entra nessa programação?
70 C.S.: A cozinha é um atrativo gastronômico, em que
PÁGINA 71.

a pessoa vai para almoçar e se sente acolhida. É


um lugar em que se pode sentar e comer em paz,
mas também possibilita reflexões, ouvir uma boa
música, participar de uma roda de conversa, entre
outras possibilidades. E, nesse sentido, precisamos
saber acolher para que a pessoa tenha vontade de
voltar outras vezes.
J.C.: E o que significa para vocês emprestar aA
cozinha para outros chefs?
C.S.: Não consideramos como um empréstimo, mas
como uma troca. O chef traz conhecimento para
nós, porque todo mundo que passa ali deixa algo e
se aprende algo novo. Nós ensinamos, por exemplo,
sobre a quantidade de comida que vamos servir,
a maneira como fazemos. Cozinhar é um ato muito
grande de amor e de responsabilidade, então só
ENTREVISTA COM OCUPAÇÃO 9 DE JULHO

pode ser visto como troca.


E.F.: Além disso, a Ocupação faz parte da cidade. É
importante lembrar que há um movimento que cuida
daquele lugar para a cidade.
C.S.: É um plano de urbanismo integrado, em
que não há só a moradia, mas vários setores
agregados, para uso de toda a cidade.
J.C.: Como é possível que as pessoas participem,
ajudem e estejam juntos para além de ir apenas
para o almoço?
C.S.: Nós queremos que as pessoas venham de fato
nos conhecer, que participem. Sendo nosso lema
“doe aquilo que você pode fazer”, temos várias
atividades, como o Cine Ocupa, a exposição O
comum em nós que encerra neste final de semanaA
e a de autorretratos desenhados por mulheres da
71 Ocupação, oficinas de autoconstrução e, com asA
PÁGINA 72.

crianças, de artes. Mas antes de se engajar em


alguma atividade, é preciso conhecer.
E.F.: Nos domingos a Ocupação está aberta para
quem quiser vir ao espaço.
C.S.: E para quem quiser aprender a costurar,
vamos iniciar agora uma sala de costura. Também
estamos com uma nova parceria para preparar
mulheres para trabalhar na construção civil e a
utilizar a nossa marcenaria.
J.C.: Como falamos que a cozinha é o lugar da
educação, o que a Ocupação aprendeu com a
cozinha?
C.S.: Aprendemos que é possível fazer
solidariedade sem assistencialismo. Muitas
mãos fazem de tudo e, assim, praticamos de
fato a solidariedade humana em sua principal
ENTREVISTA COM OCUPAÇÃO 9 DE JULHO

característica: pela causa, que é amor.

72
PÁGINA 73.

ENTREVISTA COM
ZAINNE LIMA
CLIQUE E OUÇA

Julia Cavazzini: Eu gostaria de começar por uma


pergunta abrangente: o que a escrita significa
para você?
Zainne Lima: A escrita significa muitas coisas para
mim. Primeiro, porque ela tem tomado o lugar de
“dissolver” o que acontece comigo, o que passa pela
ENTREVISTA COM ZAINNE LIMA

minha cabeça e o que os meus sentidos absorvem


das minhas vivências, como uma tradução de mim
para mim mesma. É o lugar em que eu consigo me
encontrar e perceber o que eu tenho sentido ou
pensado, o que eu posso fazer diante dos impasses
que a vida me coloca. Ao longo do tempo, a escrita
tem se tornado esse espaço de terapia, autoanálise
e autoconhecimento.
J.C.: E o que acontece quando você escreve? Ou
seja, o que reverbera dessa tradução, uma vez que a
tradução se dá de tantas maneiras?
Z.L.: O processo de autotradução e
73 autoconhecimento permite que outras pessoas
PÁGINA 74.

também possam usufruir dele, conhecendo


aquilo que você quer dizer. A escrita torna sua
subjetividade, sua criação e sua ficção acessíveis.
Dessa maneira, podemos dizer que ela funciona
como um veículo de comunicação de uma pessoa
para outra e possibilita encontros muito potentes.
J.C.: Você poderia falar sobre algum dessesA
encontros proporcionados pela escrita? Como ele
reverberou em você?
Z.L.: Há um episódio muito marcante, que
aconteceu na Bienal do Livro de 2018, quando
lancei meu primeiro livro, Pequenas ficções de
memórias. Uma senhora que congregava na mesma
igreja evangélica que eu foi para a Bienal com meu
livro em mãos, dizendo que o primeiro texto falava
sobre a história de vida dela de uma maneira que
ela nunca tinha conseguido se expressar, porque
não podia expor o episódio traumático que o texto
abordava. Ela chorou e falou que era muito bom se
libertar daquele trauma através da leitura. Sempre
ENTREVISTA COM ZAINNE LIMA

retomo esse episódio, porque foi uma atitude


inesperada, de uma pessoa que eu não via há muito
tempo e sem ligação literária comigo, apenas
religiosa. Esse dia foi muito especial.
J.C.: Como foi o processo com a escrita desse seu
primeiro livro?
Z.L.: O meu primeiro livro publicado, na verdade,
não é meu primeiro livro escrito. Pequenas ficções
de memórias é uma coletânea de textos curtos,
crônicas e contos, que reuni por serem histórias
que minha avó me contava durante a infância. Ela
foi uma mulher analfabeta, que veio como retirante
74 da Bahia para São Paulo, com seus dez filhos.A
PÁGINA 75.

Sendo uma mulher que engravidou 14 vezes desde


a adolescência, em um casamento arranjado, em
troca de transações comerciais, ela veio resistir na
cidade de São Paulo. Ela tinha o hábito de contar
muitas histórias para mim, entre elas, muitas de
suas vivências na Bahia e outras a respeito dessa
mudança para São Paulo. Apesar de serem todas
elas carregadas de muita dor e sofrimento, eram tão
bem contadas que, mesmo a pior delas, se tornava
tão interessante e eu me sentava para ouvi-la,
enquanto ela cozinhava, lavava a louça ou a roupa.
Suas histórias eram tão envolventes que resolvi
escrever sobre elas e criar novas histórias a partir
de seus enredos. Foi assim que surgiu essa primeira
publicação, uma reunião de muitos motivos,
todos permeados pela figura de Delita, minha
avó materna. Ela faleceu em 2012 e a saudade
também me motivou na escrita, como uma maneira
de fazê-la presente e eternizá-la para outras
pessoas. Esse foi um processo muito importante
ENTREVISTA COM ZAINNE LIMA

de redescobrimento da minha árvore genealógica


e de ressignificação da figura da minha avó como
mulher. Enxergá-la para além da função familiar foi
muito importante para mim.
J.C.: Muito bonito o seu depoimento, porque reforça
a ideia da escrita como um lugar de encontro, seja
consigo mesma, seja com outros, com o passado,
com o presente ou o futuro. E como esse lugar de
encontro atravessa o seu trabalho como professora?
Z.L.: Eu estou ainda em processo de entender o que
significa ser escritora e professora ao mesmo tempo;A
sinto que tenho duas personas diferentes e que elas
75 atuam de maneiras diferentes. Até a minha assinatura
PÁGINA 76.

como escritora é diferente do meu nome de registro,


porque eu tenho essa necessidade de criar um duplo
dentro de mim e saber onde está a escritora e onde
está a professora. Mas existem encontros bastante
interessantes entre essas duas pessoas que me
compõem, e posso, em sala de aula, criar textos
para análise. Por exemplo, em uma turma de terceira
série do ensino médio, havia uma pessoa trans, não
binária, que estava sofrendo discriminação. Escrevi
um texto que narrava um processo de transição
para abordar o tema entre os estudantes. Por meio
dele, pudemos discutir o uso de pronomes neutros
em uma aula sobre tempos verbais. Também posso
inspirar meus estudantes a escrever, e alguns deles
já compartilharam o que escrevem comigo. Dessa
maneira, conseguimos fazer das aulas de produção
textual um laboratório que extrapola os muros da
escola e pode se aplicar à vida pessoal de cada um,
até ajudando-os a enxergar a escrita como uma
possibilidade de profissão.A
ENTREVISTA COM ZAINNE LIMA

J.C.: A escrita não acaba em si mesma, ela é uma


ferramenta de ação e potência de transformação.
Nesse sentido, você inspira esses jovens. Quem e o
que inspira você?
Z.L.: A minha avó foi a primeira inspiração que eu
identifiquei ao longo da minha trajetória. Não sóA
ela, mas as mulheres que me criaram: minha mãe e
minhas tias, porque eu fui criada por muitas pessoas,
não só pelos meus pais. Também tive encontros
com a literatura, e o primeiro deles, decisivo para
mim, foi com Lygia Fagundes Telles. Eu li Antes do
Baile Verde e descobri uma forma de narrar que
76 eu não conhecia. Em um conto, “Verde lagartoA
PÁGINA 77.

amarelo”, na medida em que ela descrevia o suor do


protagonista, eu comecei a suar também e pensei:
“meu Deus, como isso é possível? Como isso pode
estar acontecendo?”. Fiquei tão envolvida com
todas as reações físicas que a escrita me causou e
entendi que é possível narrar ao ponto de envolver
o leitor como se ele participasse da cena. Eu quis
ser contista por causa de Lygia Fagundes Telles. Por
meio dela, cheguei à Clarice Lispector, e foi outro
deslumbre: “como é possível adentrar o universo
psicológico e se perder nele de forma absoluta?”.
Assim cheguei a Machado de Assis, que apresenta
outra essência. Por meio de seu texto, compreendi
que a minha literatura precisava estabelecer um
território em relação ao meu corpo, à minha história
e à minha família. Foi por causa de Machado de
Assis que eu assumi que deveria escrever uma
literatura mais engajada politicamente. Até então, a
questão da identidade racial estava muito nebulosa,
e só a desvendei ao ler escritoras negras que
ENTREVISTA COM ZAINNE LIMA

falavam sobre negritude. A primeira delas foi Tula


Pilar, poeta, escritora, atriz e multiartista aqui de
Taboão da Serra, a cidade onde eu moro. Mais tarde
descobri outras autoras por meio de antologias
poéticas, que têm sido um recurso muito útil para
divulgar autores que estão à margem do mercado
editorial. Foi então que descobri Conceição
Evaristo, Geni Guimarães e Carolina Maria de Jesus.
J.C.: O processo que você realizou pelo caminho de
autodescoberta é ilustrativo do que você chama de
tradução de si mesma, não é?
Z.L.: A questão da autodescoberta me é muito cara,
77 porque eu venho de um processo de apagamento
PÁGINA 78.

de identidade pessoal por meio da religião. Eu


cresci em igrejas evangélicas, como filha de uma
pastora neopentecostal, e pude perceber como as
pessoas foram educadas e treinadas para serem
iguais e terem a sua subjetividade apagada. Dessa
maneira, durante o processo de leitura e escrita,
sinto que eu, à medida que escrevo, leio e descubro
a literatura, conheço mais de mim. O mundo se
revela para mim por meio desse processo.
J.C.: E como a religião se articula em sua relação
com a escrita e com a leitura?
Z.L.: Pode ser até por meio de um versículo em um
poema. É muito interessante essa relação, porque
parte da minha personalidade foi moldada por
preceitos religiosos, e não posso fugir disso, para
o bem e para o mal. A igreja me ensinou coisas
muito boas, como a solidariedade, a empatia, o
cuidado e o amor com o próximo. Ela também fez
muito serviço social, algo que deveria ser função
do Estado, e por meio dela tive oportunidade de
ENTREVISTA COM ZAINNE LIMA

fazer doações de alimento, de brinquedo e de


roupa desde muito pequena. Apesar de sempre
ter sido pobre, existia gente que era ainda mais
pobre do que eu, sem ter sequer os acessos que eu
tinha. Por causa dessas ações, a religião permeou
todas as minhas relações sociais e, mesmo depois
de desistir da religião, os valores aprendidos ali
ainda são úteis e permanecem. Dessa maneira,
invariavelmente eles aparecem no que eu escrevo.
A minha noção filosófica de justiça, por exemplo, éA
permeada por tudo o que eu aprendi sobre justiça
na Bíblia. E esse é um tema recorrente, por eu ser
78 uma pessoa negra. Há ainda as noções de amor, de
PÁGINA 79.

fraternidade, de bondade, mas também de ódio,


de maldade, de vingança. Todos esses conceitos
fazem parte de mim e eu escolho se eles vão me
aprisionar, por meio da culpa, ou me libertar, por
meio da justiça.
J.C.: O que me leva a pensar que a religião é uma das
primeiras maneiras em que se organiza uma história,
porque o mundo se inventa a partir da palavra.
Antes havia as produções de ícones e imagens, mas
como em um processo de tradução, elas só passam
realmente a existir quando as nomeamos. Agora
eu gostaria de saber como Carolina Maria de Jesus
atravessa sua obra, já que o convite para participar
do Calor da Escola se deu por meio dela e dessa
imensidão de conteúdo que você traz. Como a obra
dessa escritora chega para você?
Z.L.: Eu tenho o primeiro contato com a obra de
Carolina Maria de Jesus na universidade, o que
seria, por si só, um fato no mínimo curioso, porque
a universidade, especificamente a UniversidadeA
ENTREVISTA COM ZAINNE LIMA

de São Paulo, é um ambiente muito elitizado e


embranquecido. Apesar disso, eu a conheço em
uma disciplina que se propõe a discutir literaturas
brasileiras em comparação às literaturas
produzidas por autores de países africanos de
língua portuguesa. Li, então, Quarto de Despejo,
seu primeiro livro publicado. Foi um encontro
muito complexo, porque à medida que eu lia, eu
redescobria pessoas da minha família, do meu
entorno, do meu bairro, as minhas professoras.
Teoricamente, Carolina falava de si, mas é
impossível dizer o quanto de ficção há em seuA
79 texto, o que torna sua obra tão mágica, e me fazia
PÁGINA 80.

imaginar quanto de realidade e quanto de ficção


permeava a sua literatura. Foi nesse deslumbre,
nessa aura de mistério, que eu a descobri. Ao
mesmo tempo, categorizei a literatura dela como
um espelho, em que eu via a mim e às mulheres
próximas. Se olhar no espelho não é um processo
fácil; você descobre o seu próprio reflexo, encontra
os seus escombros, as suas ruínas. Saber como você
vai lidar com essa realidade ou o que você poderá
construir a partir dela é bem complexo.
Durante a leitura, eu chorava e ria ao mesmo tempo,
também ficava revoltada; às vezes precisava parar
de ler, porque meu estômago ficava embrulhado.
Ao mesmo tempo, eu estava curiosa para saber
como ela se virou para encontrar o que comer no
dia seguinte, porque Carolina fala muito sobre
fome, sobre escassez, e encontra detalhes em seu
dia a dia, fazendo de uma pequena coisa um grande
evento, um grande momento. O encontro com
Quarto de Despejo não foi agradável ou ruim, mas
ENTREVISTA COM ZAINNE LIMA

teve toda a complexidade que merecia ter.


A crítica, à época, lidou com a obra como se fosse
uma literatura banal, de cunho pessoal: um diário
sem valor literário, talvez apenas como matéria
sociocultural. Entretanto, Carolina é uma grande
fonte de estudo literário, de estudo de arte e,
atualmente, sua obra é tratada como um objeto
que merece atenção. E também venho descobrindo
outras possiblidades em sua obra. Cada dia que eu
a leio, descubro mais. E a cada encontro com outras
autoras também há descobertas, porque Carolina
tem uma espécie de chama que vai acendendo
80 outras à medida que vamos lendo sua obra. Foi
PÁGINA 81.

essa a experiência vivida com as cozinheiras e


os cozinheiros no Projeto Arte e Sabor: Carolina
foi acendendo chamas no coração de cada uma
delas e deles, permitindo que escrevessem a partir
dessa fagulha. Essa é uma reação que eu tenho
observado quando as pessoas encontram Carolina:
ela desperta nelas a vontade de escrever suas
próprias histórias. Posso chamá-la de um grande
difusor de escrita. Essas possibilidades trazidas
por sua obra fazem de Carolina Maria de Jesus uma
figura mágica, porque também é eterna. Eu sou
apaixonada por ela e, ao mesmo tempo, também
fico incrédula com as reverberações que ela traz.
J.C.: Pensando nisso, por que ler Carolina em 2022?
Z.L.: Por que não ler Carolina em 2022? Carolina
começa a publicar em 1960 e, mesmo assim,
parece que escreveu ontem ou poucos minutos
atrás. Sua literatura é absolutamente atual,
contemporânea, parece que voltará a ser real nas
próximas décadas. Isso porque vivemos em um
ENTREVISTA COM ZAINNE LIMA

mundo em que as mudanças sociais acontecem


a um ritmo muito lento, quase parado, se é que
acontecem. As mudanças são muito difíceis de
acontecer, principalmente para as populações
marginalizadas. Assim, não existe por que não ler
Carolina em 2022, já que é uma urgência conhecer
e se apropriar de sua literatura. Ela tem muito
a dizer sobre e para a população brasileira. Por
isso ela deve ser lida como um grande clássico da
nossa literatura, para conhecermos a nossa própria
história. O Brasil que Carolina oferece é, ao mesmo
tempo, realidade da maior parte da população e
81 desconhecida por tantos outros brasileiros.
PÁGINA 82.

J.C.: Como você se aproximou das cozinheiras e


dos cozinheiros quando trouxe Carolina Maria de
Jesus para eles? Você poderia contar como foi essaA
experiência?
Z.L.: O diálogo com os profissionais da cozinha daA
escola foi uma das experiências mais importantes da
minha trajetória, sem dúvida. Eu ainda tenho muito
a escrever sobre isso, relembrar, estudar e refletir
sobre o quão potente foi esse encontro. Pus em
prática a minha ideia inicial, que era a de começar
me apresentando, para que soubessem quem eu era
e por que estava com o microfone — é importanteA
demarcar esse lugar, porque o microfone é um
instrumento de poder e de influência. Logo depois da
minha apresentação, falo de Carolina Maria de Jesus,
e dos lugares que ela frequentou em São Paulo; o elo é
imediato, porque essas pessoas também já estiveram
nesses lugares. Saber que ela era uma pessoa real,
que pisou nas mesmas calçadas, que pode ter feito
o mesmo trajeto de ônibus, que visitou o mesmo
ENTREVISTA COM ZAINNE LIMA

mercado, que comprou pão na mesma padaria


aproxima o leitor do escritor imediatamente. Depois
dessa aproximação inicial com a história de vida de
Carolina, trouxe trechos de Quarto de Despejo que
pudessem ser considerados com a mesma data que
aquelas pessoas estavam vivendo, só que décadas
atrás. Era um “hoje” no passado, de forma a criar
um outro elo, dessa vez temporal. Depois eu não
precisei fazer mais nada, porque a ponte já estava
criada. A literatura de Carolina passou a conversar
diretamente com a subjetividade daquelas pessoas
que são responsáveis por alimentar e por tirar a
82 fome de crianças. Carolina fez toda a mágica, deu
PÁGINA 83.

todo um tempero ao encontro. Foi muito bonito ver


as diferentes reações daquelas pessoas; algumas
se emocionavam e não conseguiam falar, porque
também vieram de outros estados em busca de uma
vida melhor, como Carolina, e se depararam com uma
São Paulo hostil, de guerra social, de pessoas que
tinham sonhos, que queriam estudar e não podiam,
pessoas que, muitas vezes, preparavam comidas
nas escolas e não tinham o seu próprio alimento em
casa. A parte positiva do encontro foi justamente
esse estabelecimento de diálogo entre os cozinheiros,
que se abriram uns com os outros, dividiram seus
sentimentos e os pensamentos evocados a partir da
literatura de Carolina Maria de Jesus.
J.C.: Carolina é essa figura que nos ensina a contarA
a nossa própria história, não é?
Z.L.: Sim. E ela não só escrevia, ela cantava.
Também pensava no teatro e ia flertando com
diferentes artes o tempo inteiro. Reduzi-la à fome
não faz o menor sentido. Carolina é muito mais
ENTREVISTA COM ZAINNE LIMA

sobre poder comer do que passar fome; muito mais


sobre se alimentar de diversas maneiras e nomear
diversas fomes, para além da escassez de alimento.

83
PÁGINA 84.

PEIXE AO CREME DE ABÓBORA


Patrícia Aparecida Lima Silva

CLIQUE E OUÇA

Vamos lá: uma abóbora cabotiá, uma cebola


ralada, um dente de alho, uma colher de manteiga
sem sal, três colheres de leite em pó, salsinha e
cebolinha cortadas bem fininhas.A
Você dissolve o leite em pó em um pouco de
água, deixando ele bem grossinho. Quando virar
creme, mexa bem para que não deixe pedacinhos.
Depois do creme pronto, coloque as postas de
tilápia, deixe ferver e cozinhe o peixe, mantendo
o creme da abóbora cremoso. Sirva com arroz,
salada de alface ou escarola. Fique à vontade
para servir. As pessoas vão se deliciar.
RECEITAS

84
PÁGINA 85.

FAROFA SIMPLES PARA


ADULTOS E CRIANÇAS
Rosângela Batista Vieira de Sousa

CLIQUE E OUÇA

Azeite, alho e cebola picados, cenoura ralada, sal


e farinha de mandioca. Eu refogo o alho no azeite
até ficar moreninho. Em seguida, acrescento a
cebola. Depois, a cenoura ralada para dar aquela
refogadinha, porque ela solta um pouco de líquido.
Após todo esse processo de refogamento, adiciono a
farinha aos poucos, prestando atenção na umidade.
Caso queira a farofa mais molhadinha,
acrescento um pouco de água, com o fogo bem
baixo, para ir fritando a farinha de mandioca.
Eu coloco azeite no lugar de óleo, porque
às vezes a criançada estranha o óleo.
E por que eu não uso a manteiga? Porque
o azeite não tem derivado de leite e fica melhor.
A cenoura dá uma crocância para
a farofa. Às vezes, a criança não come a
cenoura de outro jeito, mas na farofa ela acaba
comendo. A gente pode usar outros legumes.
A farofa simples para adultos e crianças, eu
mesma acabei fazendo, sem receita. Em vez de
RECEITAS

pôr ovo, bacon e outras coisas, eu coloquei a


cenoura e gostei do processo. Quanto menos
ingredientes na farofa, melhor. Principalmente para
as crianças que já têm cisma de comer. Mas ficou
bem interessante, eu aprovei, as crianças gostaram,
85
PÁGINA 86..

pediram até repetição. A gente também tem de


pensar nas pessoas que têm algum processo
alérgico. Estamos acostumados a ver farofa
totalmente diferente, cheia de ovo. As pessoas, às
vezes, não podem comer. Mas o processo é esse; é
muito simples. Farinha de mandioca sempre fina.A
RECEITAS

86
PÁGINA 88.

QUEBRA-PANELA

Audiodescrição: Página com fundo azul-marinho.


PÁGINA 89.

ENTREVISTA COM
ADRIANA SALAY
CLIQUE E OUÇA

Júlia Cavazzini: Nós já conversamos sobre o tema,


mas eu tenho a sensação de que toda vez que eu
faço essa pergunta, dá para responder de uma
maneira diferente. Como o tema da comida chega
para você? Ou como você chega nesse tema? E o
ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY

que ele significa para você?A


Adriana Salay: Eu fiquei pensando sobre essa
questão quando você a fez da outra vez. Tem algo
muito importante nessa história de como a comida
se tornou um material de pesquisa, que tem a ver
com a minha formação. Eu estudei História e,
quando estava na graduação, fazia uma pesquisa
sobre política no período da Independência, nos
anos 1806 a 1808. Eu trabalhava com análise de
discursos e material de imprensa. Mais tarde, fiz
uma disciplina com Nicolau Sevcenko, grande
historiador. Na primeira aula, ele usou a banana
para falar sobre as relações de poder no Caribe.
89 Era a história da banana, mas também de coisas
PÁGINA 90.

do cotidiano, que nos tocam. Depois, ao fazer


um trabalho sobre samba, tango e músicas da
América Latina, falei sobre o mesmo tema, o que
fez muito sentido para mim, naquele momento.
Concluí, assim, que daria para trabalhar questões
de identidade por meio do alimento. E entrei no
mestrado pensando sobre o tema.
J.C.: De que maneira se consegue pensar a
identidade de um país a partir de um alimento? É
claro que estamos falando de um país continental,
mas é bonito pensar que as coisas do cotidiano
trazem informações de identidade, não é?
A.S.: Sim, você pode usar os elementos do cotidiano
para pensar sobre muita coisa, até política. Acho
que hoje, quando pensamos em Brasil, é muito fácil
nos identificarmos com os elementos que formamA
essa identidade, por exemplo, a língua comum, o
português. Também há um território, uma moeda,
um exército, um governo. São todos elementos
ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY

materiais que conseguimos enxergar e que nos


formam enquanto grupo. Mas isso é, em alguma
medida, fabricado. Porque durante milhares de
anos, até a invasão, essas terras foram povoadas.
Não havia um Brasil, mas outras configurações deA
grupos. E eu pensei: qual foi o papel da comida
nessa identificação? Se falava muito sobre feijão,A
mas nas práticas cotidianas eu não via tanto feijão
assim. Ou seja, o brasileiro seria um comedor de
feijão, mas, na verdade, no prato das pessoas não
tem tanto feijão. Você é menos brasileiro por nãoA
comer feijão?
Quando se fala de Brasil e de identidade brasileira,
90 se fala de um país continental, muito diverso. E
PÁGINA 91.

quando se fala em uma identidade nacional, se


apagam outras histórias. Estou muito interessada
nesses apagamentos, porque quando se elege uma
história para ser contada, normalmente é a história
de quem detém o processo, é uma relação de poder.
Por isso é tão importante desnaturalizar a história
única; e que possamos contar muitas outras.
J.C.: Como foi que você chegou a esse alimento, o
feijão? Porque há tantos outros, como a mandioca.
A.S.: Sim. O primeiro passo para quem vai fazer
uma pesquisa é tatear, conhecer o campo. O
que existe a respeito? E eu fui às plataformas de
pesquisa, nos bancos de teses e dissertações para
ver, por meio de termos e palavras-chave, o que
havia a respeito do assunto. Esse foi o primeiro
passo. E eu sabia que eu queria trabalhar a questão
da identidade nacional. Então comecei a buscar
pelos alimentos que faziam parte desse discurso,
mas que ainda não tinham sido trabalhados. E
ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY

não tinha muita coisa a respeito do feijão. Depois,


durante a pesquisa, encontrei trabalhos que citam o
feijão, mas não como o principal objeto de estudo.
Havia trabalhos sobre a mandioca, por exemplo, e
também sobre o milho, de Rafaela Basso, que é uma
excelente pesquisadora e historiadora. Mas sobre
feijão não tinha, mesmo sendo um alimento nativo.
Na verdade, uma parte dos feijões que comemos
são introduzidos — vindos da África —, mas aA
outra parte é nativa e eu queria trabalhar com
um alimento nativo. Então eu pensei em trabalhar
com esse alimento, que sempre esteve aqui. Como
o feijão foi “capturado” como um discurso de
91 identidade, ao mesmo tempo em que talvez não
PÁGINA 92.

seja tão predominante assim? Um bom exemplo são


os dados de que o consumo de feijão vem caindo
drasticamente nos últimos 50 anos.
J.C.: Você sabe por que o consumo de feijão vemA
caindo, para além dos fatores da insegurança
alimentar e da fome?
A.S.: É multifatorial. Algo muito interessante que
ficou evidente com a pesquisa foi que não sóA
a quantidade de consumo de feijão caiu, mas
também as variedades consumidas caíram mais
de 50%. Acho esse dado muito importante. Em
alguma medida, houve uma mudança expressiva em
nosso sistema alimentar. Antes, o sistema era local.
Existiam cadeias curtas: uma produção de alimento
e uma comercialização baseada nos pequenos
comerciantes ou no próprio produtor. Esse modelo
de produção e consumo fazia com que alimentos
que fossem cultivados no entorno das residências
fossem acessados. Claro que também havia um
ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY

comércio de longa distância. Cana-de-açúcar,


açúcar, café e algumas especiarias viajavam
muito, mas o consumo de subsistência era local.
Com o tempo, ocorrem fenômenos importantes:
a industrialização — grandes indústrias passamA
a atuar na alimentação das pessoas — e aA
urbanização — quando as pessoas perdem oA
contato direto com o campo e com o modo de
produção do alimento. Na cidade, com exceção
de uma ou outra pessoa, não se planta mais. Dessa
maneira, você precisa acessar o alimento via um
sistema de distribuição. Há também o fenômeno
da globalização, em que grandes indústrias
92 determinam, internacionalmente, o que as pessoas
PÁGINA 93.

vão comer, porque são elas que fazem esses


alimentos circularem. Então houve uma grande
substituição do que se põe na mesa. O que isso
representou na prática? Diminuição de mais de 50%
do consumo de feijão, por exemplo. Diminuição, um
pouco menor, do consumo de arroz. E substituição
por produtos industrializados, bebidas açucaradas,
refeições semiprontas ou prontas, proteínas
animais em detrimento da base vegetal composta
de feijão, arroz e farinhas.
J.C.: E esse é o tipo de mudança que nós não
enxergamos, não é? Porque está acontecendo de
uma forma silenciosa.
A.S.: Sim, totalmente. A mudança de hábito não
acontece “aos pulos”. Claro que é mais rápido do
que há alguns anos, mas a mudança acontece
cotidianamente, aos poucos. E, por isso, passa
despercebida, mas tem consequências para a
nossa saúde e para o planeta. É importante lembrar
ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY

que há uma crise ambiental global que tem tudo


a ver com esse modo de vida escolhido por nós
enquanto sociedade.
J.C.: Pensando nessa invisibilização de histórias e
na sua pesquisa, como você chega na questão da
fome? E o que é insegurança alimentar?
A.S.: No mestrado, eu trabalhei com o discurso
sobre o Brasil e a identidade baseada nos alimentos
em contraposição ao consumo efetivo deles. O
que encontrei foi que o discurso não corresponde
necessariamente à prática. Na primeira pesquisa
que olhei, do IBGE na década de 1970, a fome faziaA
parte de mais de 60% da população, uma realidade
93 catastrófica. Eu trabalhava muito com o historiadorA
PÁGINA 94.

Luís da Câmara Cascudo, cujos trabalhos são


muito importantes quando se fala em história da
alimentação no Brasil, quando me deparei com a
seguinte declaração: “eu conversei com um cara
chamado Josué de Castro e nós pensamos em
escrever um livro juntos, mas decidimos nos separar
e cada um seguiu o seu caminho”. Fiquei muito
curiosa com essa fala, porque eles pensavam a
respeito do mesmo objeto, que é a alimentação,
só que com pontos de vista muito diferentes.
Cascudo estava interessado no que as pessoas de
fato comiam, quais eram as influências culturais e
como se deu a formação desses hábitos. Já Josué
de Castro estava interessado na não comida, no
não acesso aos alimentos, na fome, nas causas e
nas consequências da fome. O objeto é o mesmo,
mas os pontos de vista são muito diferentes. Então
comecei a estudar o trabalho de Josué de Castro.
Eu tinha definido, metodologicamente, que só leriaA
ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY

textos da época, para não trazer conceitos que não


existiam naquela época e um deles é o conceito de
segurança alimentar. Até a chegada da pandemia,
eu não trabalhava com textos contemporâneos ou
discussões contemporâneas sobre a fome, porque
estava muito envolvida com a construção do
pensamento de Josué de Castro. Com o início da
pandemia, foi impossível me manter assim, porque
eu tinha acabado de construir um capítulo sobre as
repercussões da fome durante a Segunda Guerra
Mundial, no Brasil, e me deparei com a descrição
de um período catastrófico, com relatos horríveis,A
muito pesados, até de canibalismo. E eu pensei que o
94 que estava acontecendo era um problema tão grave
PÁGINA 95.

quanto o da Segunda Guerra Mundial, guardadas


as proporções de diferenças entre uma guerra e
uma grande crise. Dessa maneira, compreendi que
teríamos uma grande crise de fome também, o que
me fez mergulhar nas discussões contemporâneas
que trazem o conceito de segurança alimentar.
O termo, formulado nas décadas de 1980 e 1990,
passou a ser utilizado no Brasil apenas no começo
dos anos 2000. Nas escalas de segurança e
insegurança alimentar, são usadas as medidas de
percepção do sujeito em situação de fome. Assim
não é preciso pesar a pessoa, medir sua gordura
corporal etc., mas é ela quem responde se está
ou não em situação de fome, com base em seu
acesso ao alimento. As medidas corporais deixaram
de fazer sentido, na medida em que se convive,
concomitantemente, com sobrepeso, obesidade
e fome. Dessa maneira, outras medidas são
necessárias para se falar sobre o fenômeno da fome,
ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY

como é o caso da escala brasileira de segurança


alimentar.
J.C.: É curioso isso, porque a impressão que dá é
que não estamos falando de apenas uma fome.
Há uma percepção de que a fome é uma crise
passageira, que assim que a pandemia passar, esse
índice de fome também vai melhorar. Mas não é só
isso, não é apenas essa fome, não é?
A.S.: Exato. Josué de Castro trouxe duas ferramentas
para analisar a fome. A primeira é essa noção de crise
de fome, o que ele chama de fome epidêmica, que
está relacionada a uma crise, como seca, enchente,
guerra, entre outras. A crise gera um problema
95 de acesso ao alimento e, consequentemente, um
PÁGINA 96.

problema de fome. Mas existe outra fome, que antes


não era vista, chamada por ele de fome endêmica
— eu costumo chamar de fome estrutural; CastroA
também usa esse termo, mas com menor frequência.
Segundo ele, se trata de uma fome que é fruto das
relações sociais e que não chama tanta atenção,
porque não é aquela que a pessoa não come nada; a
pessoa se alimenta um pouco, todos os dias, mas ela
nunca mata a fome devido à quantidade insuficiente.A
O que ela ganha no mês não dá para ela se alimentar
de forma adequada e saudável.
Na época em que Josué de Castro escreveu sua
obra, não se utilizava as escalas de insegurança
alimentar, mas é disso que ele fala ali, não é? Ele
trata da fome que não é a inanição completa,
a ausência completa de comida. Há uma fome
estrutural no Brasil, que sempre existiu, desde
a colonização, ou seja, a invasão, e durante a
formação dessa sociedade em que vivemos hoje.
ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY

É claro que nos anos 2000 tivemos uma melhora,


mas ainda estamos falando de, mais ou menos,
2,5% da população, o que equivale a cinco milhões
de pessoas no Brasil, o que é muita coisa. E você
soma a essa fome estrutural uma crise de fome,
que é a entrada nesse lugar de muitas pessoas que
não estavam ali. Por isso eu acho que é importante
usar as duas categorias: a fome epidêmica e a fome
endêmica. A pandemia, portanto, intensificou um
problema estrutural do Brasil, que existe com ou
sem a crise.
J.C.: Você fala que nos anos 2000 o problema daA
fome melhorou. Quais políticas públicas influenciam
96 esse tipo de mudança?
PÁGINA 97.

A.S.: Josué de Castro pensou conceitos


importantíssimos para sua época, que são
usados até hoje, mas poucas de suas sugestões
conseguiram entrar em prática por completo, por
exemplo, a política de alimentação escolar, que na
época se chamava merenda escolar. Essa política
existia pontualmente em algumas escolas, mas não
abrangia tantas escolas assim, como uma política
nacional. E, apesar de ter sido mapeada, não foi
implantada em sua plenitude. Nos anos 1990, a
situação começou a melhorar um pouco, com o
aumento de políticas de transferência de renda, o
Plano Real, o aumento do salário mínimo etc., mas
a fome ainda era muito grande. Em 2003, começa
o Programa Fome Zero, que não é o primeiro
programa contra a fome no Brasil, mas o que houve
de peculiar nesse programa foi sua abrangência
a nível federal, interministerial e com a junção
de diversas políticas públicas. Foi um programa
ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY

vinculado diretamente à Presidência da República,


que depois se desmembrou em outros programas,
mas que continuou assim, de uma forma ou de outra.
O Programa Fome Zero continha políticas
emergenciais, de médio e de longo prazo para
o combate à fome. O Bolsa Família, que é uma
medida de transferência de renda, impacta
diretamente no acesso à alimentação, uma vez
que a renda é o primeiro fator que permite a
alimentação no Brasil. Se pensarmos nas cidades,
a pessoa que hoje ganha quatrocentos reais vai
comprar no mercado um quilo de arroz, um saco de
feijão, macarrão, molho de tomate etc., e vai gerar
97 renda para o estabelecimento comercial, que vai
PÁGINA 98.

repassar essa renda para outro estabelecimento, o


que gera um fluxo de renda muito importante para
a economia local. Uma outra política vinculada ao
hoje chamado Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE) é o Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA), que prevê que 30% da compra
de alimentos venha da agricultura familiar.
Comprar da agricultura familiar é fortalecer os
trabalhadores rurais que, estatisticamente, são
as pessoas que mais passam fome no Brasil. Outra
política importante é o programa de cisternas, que
leva água para o semiárido. Nós não temos que
tirar as pessoas do semiárido, temos que fazer com
que o semiárido se torne um lugar de manutenção
das pessoas em seu território, com a sua cultura, a
sua alimentação. E o que faltou para esses projetos
resolverem o problema da fome? Tivemos uma
pressão por reforma agrária, que não aconteceu
de fato. E, na minha opinião, esse foi o limite desse
ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY

programa, tanto que vimos um desmonte muito


acelerado dessas políticas públicas e um aumento
da fome também. E a pergunta que fica: quais são
os limites dessas políticas que foram implantadas e
como conseguimos retomá-las e avançar?
J.C.: Pensando nisso, como podemos, tanto
nas micropolíticas quanto nas macropolíticas,
influenciar nesses dados?
A.S.: Para mim, é muito importante ter sempre
no horizonte que a saída é sistêmica e pública.
A questão do campo é central para entender o
fenômeno da fome. São 33 milhões de pessoas só
no nível mais avançado, que é aquele nível de fome
98 em que as pessoas ficam um dia inteiro sem comer.A
PÁGINA 99.

Se juntarmos todos os níveis de insegurança


alimentar, estamos falando de mais da metade da
população brasileira.
J.C.: E então voltamos à Carolina Maria de Jesus,
não é? A ideia de ter como presidente alguém que
passou fome.
A.S.: Sim, a Carolina é maravilhosa. Porque as
pessoas que falam sobre fome raramente falam
de um lugar de fome, elas falam de um lugar de
não fome, um olhar de fora. E a Carolina fala
de um lugar de dentro. E é essa personalização
cotidiana, da dificuldade dela, registrada no diárioA
transformado em livro — Quarto de Despejo — queA
toca profundamente.
J.C.: Quando eu ouvi você falar da Carolina, você
também falou que leu outros autores da época,
como Rachel de Queiroz, para acessar esse
contexto. Como foi esse processo?
A.S.: Eu comecei a ler literatura da década de 1930,
ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY

como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, José


Lins do Rego, entre outros autores, para entender
o que as pessoas falavam ao se referir à fome.
Essas são pessoas, via de regra, que falam sobre
o fenômeno da fome, mas não o vivenciam. A
Carolina, quando publicou o Quarto de Despejo, foi
um dos maiores fenômenos editoriais que o Brasil já
teve, e ela fala de um lugar de fome. A preocupação
da tese é: o que permitiu a Carolina que tivesse
essa repercussão tão grande? O que estava
acontecendo naquele período?
J.C.: E volta ao lugar da agência.
A.S.: Sim, com certeza. Quando eu comecei a
99 pesquisar a fome, percebi que não é um problema
PÁGINA 100.

do passado, como poderia parecer. Eu acho que o


nosso desafio é, em termos de educação, ampliar o
acesso à informação. Como conversar com outros
públicos que possam se juntar nessa vontade
de mudança?
J.C.: E estamos aqui fazendo essa conversa com os
cozinheiros e cozinheiras das escolas também.
A.S.: Exatamente, por isso que projetos como
este são tão importantes, porque vão trazer essa
discussão para outros públicos, para que se juntem
a nós. Se alguém está com fome, a culpa é de toda
a sociedade. E a solução da fome passa por toda a
sociedade.
ENTREVISTA COM ADRIANA SALAY

100
PÁGINA 101.

ENTREVISTA COM
FERNANDO VIEIRA
CLIQUE E OUÇA

Julia Cavazzini: Para iniciarmos nossa conversa,


gostaria de saber como o tema da comida chega
para você, como você chega para o tema da
comida e o que ela significa para você.A
ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA

Fernando Vieira: O que vou dizer pode ser óbvio:


a comida vem de família e está ligada ao afeto
e à minha mãe. Como grande parte das mães e
considerando a divisão de gênero no trabalho, a
minha sempre esteve na cozinha. Ela é uma mulher
preta que foi adotada por uma família de pessoas
brancas; era ela quem cozinhava, porque sempre
teve uma mão muito boa para a cozinha. O bobó de
camarão que ela faz, por exemplo, é incrível, e eu
não consigo comer outro, porque sei que será uma
grande decepção. Assim, acabei adquirindo gosto
pela cozinha por meio dela. Aos 19 anos, quando
saí de casa, comecei a fazer novas receitas e a
cozinhar para outras pessoas, sempre muito curioso
101 para descobrir novidades. A comida tem para mim
PÁGINA 102.

um significado muito forte, porque sempre faço


um paralelo entre a cozinha e o processo criativo.
A alimentação começa na ideia, na vontade,
em uma etapa ainda subjetiva, e a partir de um
momento vai tomando forma, quando o processo
alquímico de juntar os ingredientes e descobrir
o que combina com o que, por meio do erro e da
repetição, se inicia. Além disso, a comida para mim
é eminentemente social. Eu gosto de cozinhar para
outras pessoas, e a Antropologia categoriza a rede
de relações entre as pessoas como dádiva. Dessa
forma, se hoje eu cozinho para você, você está me
devendo algo em troca, como cozinhar para mim
ou trazer uma bebida, uma sobremesa. E eu gosto
dessa rede de relações que a comida estabelece
entre as pessoas.
J.C.: Cria-se um ritual compartilhado, que não
acaba a cada refeição. Sem falar do corpo, que
ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA

vai incorporando a comida aos poucos até o


próximo momento.
F.V.: Essa questão de não acabar naquela refeição
é o fundamento da dádiva: ela prevê uma relação
que nunca acaba, porque quando você fizer aA
comida para mim, eu é quem estarei devendo, e,
dessa forma, ficamos em um processo contínuo deA
retroalimentação, de — para usar a palavra certaA
— relações. A comida, portanto, constrói muitasA
possibilidades de encontros.
J.C.: Como antropólogo, de que maneira a sua
pesquisa chega na relação entre alimentação e
território?
F.V.: É curioso, porque, na verdade, a questão
102 racial sempre foi pauta do meu trabalho. Quando
PÁGINA 103.

me mudei para o Rio de Janeiro para fazer o


mestrado no Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), a minha intenção era
trabalhar com relações entre raça, cultura negra,
território e cidade. Em um primeiro momento, eu
procurava entender como o repertório do samba
estava territorializado em diferentes lugares e
se havia algum processo de territorialização
que influenciava esses repertórios. Por causa da
pesquisa, fui a rodas de samba em vários lugares. O
que me chamou a atenção foi o fato de que quando
as rodas eram menos conhecidas, elas aconteciam
no quintal da casa das pessoas. Da janela da
cozinha que dava para o quintal saíam vários
alimentos, e observar essa ação me fez pensar o
quanto a comida estaria envolvida com o samba.
Passei, então, a pesquisar sobre a Pequena África,
ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA

que foi de onde surgiu grande parte das escolas


de samba das tias, como a tia Ciata, e descobri a
figura da quitandeira e um mundo incrível.
Nessa época já existiam pesquisas sobre as
quitandeiras, mas nada muito substancial. Acabei
tendo sorte de iniciar a minha pesquisa quando a
Biblioteca Nacional havia acabado de digitalizar
a hemeroteca. Por meio desse acervo digital, me
deparei com uma infinidade de documentos que me
auxiliaram a fazer essa pesquisa. Os documentos
sobre as quitandeiras eram tão incríveis e fartos,
como casos e anedotas que contavam um pouco
a história dessas mulheres, que elas passaram
a ser meu objeto de estudo. Entre esses casos,
103 está um de que gosto muito, porque o considero
PÁGINA 104.

característico do que eram essas mulheres


quitandeiras na história do desenvolvimento urbano
do Rio de Janeiro.
É uma história que narra a transição do século
XIX para o XX, já em um processo intenso de
modernização. Havia uma quitandeira chamada
Sabina, que vendia laranjas para os estudantes
da faculdade de Medicina, que ficava no centro
do Rio de Janeiro na época. Assim como outras
quitandeiras, Sabina sofria com o acosso da
polícia, que era baseado em um código de
condutas semelhante a um mecanismo de
higienização, de controle, dessa população negra
que vivia na cidade do Rio de Janeiro. Um dia,
um policial tirou a barraca de Sabina e a mandou
embora. No dia seguinte, houve uma enorme
comoção; muitos estudantes, revoltadíssimos,
fizeram uma passeata no tom entre o cômico e
ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA

o político, com estandartes que diziam “não!”.


Sabina era uma figura que fazia parte do cotidianoA
desses estudantes; diariamente ela vendia a eles
frutas, doces e uma série de quitutes. O caso saiu
na imprensa e um jornalista afirmou: “que mudemA
todas as leis, que tudo se altere, mas não, que não
tirem Sabina das ruas”.
O lugar ocupado pelas quitandeiras na sociedade
era dúbio: ao mesmo tempo em que eram
perseguidas e sofriam com a higienização da
cidade, também cumpriam um papel social
extremamente importante. No final das contas,A
a passeata dos estudantes acabou chamando a
atenção das autoridades. O delegado de polícia
104 que comandou a retirada da barraca de Sabina foi
PÁGINA 105.

desautorizado por seu superior. Alguns anos depois,


essa história virou samba-enredo: As laranjas da
Sabina. Essa história diz muito sobre esse lugar que
as quitandeiras ocupam na História e o papel que
elas cumpriam na cidade do Rio de Janeiro.
J.C.: Nesse caso, uma delas tem nome e está
presente na História. Você poderia comentar maisA
sobre essa questão da ambiguidade?
F.V.: Essa é uma postura comum da historiografiaA
sobre populações negras e negras escravizadas até
as décadas de 1970 e 1980. Até então havia umaA
posição dicotômica de arquétipos históricos. Uma
delas era a figura paternalista do “pai João”, sobreA
a qual se levava em conta apenas o sofrimento,
a opressão, e que até hoje carrega o fardo do
escravismo, uma marca da sociedade brasileira.
A outra, mais romantizada na historiografia doA
negro, é Zumbi dos Palmares, o negro herói que
ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA

se salvou e que, com sua força e capacidade


de articulação, conseguiu reverter todas as
agruras da escravidão. Entretanto, o dia a dia das
pessoas reais é muito mais complexo e cheio de
meandros do que o representado por essas duas
figuras. A visão que tinham das quitandeiras nãoA
se encaixa nessa visão dicotômica. Elas viveram
em um contexto racista, patriarcal, durante a
escravidão e eram a todo tempo atacadas pelas
autoridades — como Sabina —, mas elas também seA
articulavam politicamente, por meio das próprias
capacidades, e conseguiam ter alguma vantagem
ou reverter determinadas situações. Essa figuraA
intermediária, que é a figura do dia a dia, é o que deA
105 fato se aproxima mais do real. Assim, é importante
PÁGINA 106.

ressaltar que elas conseguiam fazer articulações


dentro da cidade, apesar de toda a estrutura estar
voltada contra elas.
J.C.: Você falou que a comida estava muito presenteA
no samba. Quem são as pessoas que representavam
essa relação entre samba e comida?
F.V.: A figura central foi tia Ciata, sobre a qualA
existe bastante material de pesquisa. Acho que a
questão principal sobre ela e a Pequena África eraA
a possibilidade de articulação em redes de ajuda
entre comunidades negras. Nessas redes, havia
quitandeiras, a própria tia Ciata e outras tias na
Pequena África que também estavam ligadas àsA
rodas de culto aos orixás — não podemos dizerA
candomblé, porque essas categorias religiosas
ainda estavam em processo de construção —, seA
unia religiosidade, música e alimentação. Então,
se tratava de entender esse lugar como um grande
ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA

complexo, com várias camadas de cultura negra


que sobreviviam na cidade do Rio de Janeiro. E o
papel das quitandeiras, a partir do que tia Ciata
realizava, foi uma questão focal, porque pude
enxergar essas mulheres ocupando um espaço
central em uma rede de relações muito potentes.
J.C.: Quando você falou das rodas de samba
no quintal, fiquei pensando sobre esse lugar doA
doméstico que se potencializa. Você poderia contarA
um pouco mais sobre as divisões de gênero e raça nos
espaços domésticos ampliados para o comércio?
F.V.: Eu procuro fazer um paralelo entre o que
ocorria com os negros na África e aqui, noA
Brasil. Quando se fala da quitanda em alguns
106 países africanos, especialmente Angola e outros
PÁGINA 107.

países de língua bantu, onde surgiu esse ofício,


entende-se que era um ofício designado quase
que exclusivamente a mulheres e, portanto,
existia um recorte de gênero. No Brasil, houve uma
permanência desse recorte de gênero, mesmo
considerando essas pessoas em um processo
de escravização. Permaneceu aqui o papel
fundamental das mulheres negras na intermediação
entre o alimento e as pessoas.
Se pensarmos sobre o processo de colonização
do Rio de Janeiro, ele começou nas praias e foi
se interiorizando aos poucos. Nessa realidade, o
papel dessas mulheres foi muito importante, porque
elas ficavam no entorno do porto e alimentavam
os negros escravizados que chegavam, os
trabalhadores locais e até senhores e pessoas de
alto escalão que estivessem ali, porque não havia
acesso fácil à comida naquele período. Dessa
ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA

forma, essas mulheres conseguiam adquirir dinheiro,


poder e capacidade de articulação na sociedade.
J.C.: Você consegue imaginar como se deu esseA
recorte de gênero nessa atividade?
F.V.: Há várias teorias com perspectivas
diferentes sobre as razões de a comida ser uma
responsabilidade estritamente ou majoritariamente
feminina. Uma delas fala da dinâmica de terras
dentro dos engenhos, por exemplo, ou de terras
onde havia pessoas escravizadas. Muitas vezes,
o homem trabalhava na terra, cultivando, e a
mulher vendia o excedente. Essa divisão de gênero
no trabalho no sistema escravista tinha essa
característica não só no Brasil, mas em outros
107 países, como os do Caribe. As feiras livres e os
PÁGINA 108.

mercados teriam surgido do agrupamento de


mulheres que se reuniam para vender o excedente
do que o homem produzia nas terras que eram
cedidas ou arrendadas pelos senhores de escravos.
Essa é uma das linhas teóricas de explicação, mas
ainda não existe consenso sobre como de fato o
recorte de gênero se deu.
J.C.: Como você acha que a presença das
quitandeiras influencia a cultura alimentar do
Rio de Janeiro?
F.V.: Pensando junto com você: a comida de feira, de
mercado, de rua, ainda existe hoje em dia no Rio de
Janeiro. Você vai às feiras e pode consumir comidaA
fresca, produzida na hora. Não são os mesmos
pratos servidos antigamente, como o angu e a
feijoada, e sim o pastel. Por outro lado, no ambiente
de samba, ainda encontramos a feijoada, como no
samba da Portela. Em uma cidade onde o samba
ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA

e a cultura musical negra é muito forte, a comida é


também fundante. Assim, voltamos à questão dos
quintais. Ao entrar na casa da pessoa, você passa
a fazer parte do processo e, de certa forma, espera
que haja comida, parte fundamental da relação ali
estabelecida.
J.C.: O termo “quitanda” tem origem africana, não
é? Você poderia contar um pouco mais sobre aA
origem desse termo e sobre a influência africana na
cultura alimentar brasileira?
F.V.: O termo “quitanda” vem do bantu, mais
especificamente de Angola, e pode significarA
tanto uma cesta que as mulheres usavam para
carregar os produtos à venda quanto a feira em
108 si, o mercado. Até hoje falamos “a quitanda do
PÁGINA 109.

seu João”, “a quitanda de fulano”. E, apesar de


estarmos falando das quitandas em África e no
Rio de Janeiro, é preciso lembrar que elas existiam
em Minas Gerais, Porto Alegre e outros lugares
onde havia grandes agrupamentos de pessoas
escravizadas, sempre cumprindo um papel muito
importante para fazer funcionar a máquina social.
Os gêneros alimentícios vendidos nas quitandas
eram, frequentemente, gêneros locais, o que
caracterizava esse espaço. Havia também
uma caracterização estética: a quitandeira se
vestia de determinada maneira e era facilmente
reconhecida pela sua função. Entretanto, havia
diferenças regionais: em Angola e em outros
países africanos, elas usavam roupas bem
específicas; já no Brasil, a vestimenta era outra,
porque a quitanda no Brasil foi muito misturada
a outros povos. Essa mistura também dificulta os
ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA

estudiosos a traçar esse caminho de continuidade


entre o que era praticado na África e o que se
manteve em nosso país, porque o processo de
escravização foi marcado pela destruição da
identidade desses povos e, mais especificamente,
dessas mulheres. No Brasil, portanto, a quitanda
tomou um contorno diferente, em que se
misturavam roupas, cores, utensílios e produtos.
J.C.: De que maneira a figura da quitandeira seA
mantém na sociedade de hoje?
F.V.: Um paralelo próximo, mas talvez forçando um
pouco a correlação, é a baiana de acarajé. Ambas
se assemelham em termos do ofício estar ligado
a uma rede; no caso das baianas de acarajé,
109 originalmente estavam ligadas ao candomblé. Se
PÁGINA 110.

formos pensar de maneira anedótica, podemos


dizer que a figura da quitandeira ainda se mantém,
não com o visual e a forma de sobrevivência
de antigamente, mas é possível reconhecê-la
nas próprias baianas de acarajé, nas feirantes
que cozinham e vendem comida e nas mulheres
cozinheiras das casas de samba. No Rio de
Janeiro, há ainda as pessoas que oferecem comida
quando você vai a uma escola de samba e que,
de certa maneira, também podem se relacionar
à figura das quitandeiras. Por outro lado, muita
coisa mudou e, atualmente, esse é um ofício
multiétnico, realizado por homens e mulheres. A
característica específica de recorte de gênero
que havia no período pré-abolição já não existe
mais tão fortemente. Outra importante mudança
nesse processo de transição foi o surgimento
dos mercados; enquanto nas feiras livres as
ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA

quitandeiras eram muito acossadas, porque o


trabalho era realizado na rua, por meio de pregões
e sendo vendedoras ambulantes por toda a
cidade, com os mercados fechados, houve, de
acordo com alguns teóricos, um processo de
higienização do espaço, de conter o comércio em
um espaço controlado, para o qual você paga uma
taxa etc. Essa característica da quitanda de ser
um comércio de rua diminuiu drasticamente.
J.C.: Talvez o papel das quitandeiras tenha sido
subestimado, na medida em que elas podem
influenciar a cultura alimentar de um lugar com
base no que produzem e vendem.
F.V.: Esse é o ponto-chave de se fazer pesquisa:
110 a surpresa, a desmistificação de certosA
PÁGINA 111.

pressupostos. Durante a minha pesquisa, por


exemplo, mesmo já trabalhando com cultura
negra, fiquei absolutamente surpreso quando
descobri o papel central que as quitandeiras
tinham no desenvolvimento da cidade do Rio de
Janeiro. Em determinado trecho da dissertação,
descrevo como elas acumularam recursos
suficientes para emprestar dinheiro para pessoas
brancas da aristocracia carioca que faliram.
Para essas descobertas, considero “invisível” um
termo muito adequado: não está aparente, mas
quando se começa a pesquisar, encontram-se
informações que podem mudar completamente a
perspectiva que se tinha. Se as quitandeiras não
estivessem vendendo comida na cidade, ela seria
completamente diferente.
J.C.: O que você acha que pudemos aprender com
as quitandeiras?
ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA

F.V.: A maneira como as redes de apoio funcionam.


Durante muito tempo, trabalhei em Minas Gerais
com comunidades quilombolas, e percebi que o
que mantinha a comunidade funcionando eram as
redes de apoio. Podemos extrapolar para outras
comunidades negras, como comunidades de favela,
onde essas redes estão em funcionamento e se
diferem muito das relações existentes no formato
urbano de prédio de apartamentos, condomínios
etc. Eu não me esqueço do caso do Carlinhos,
um colega de trabalho que morava no Complexo
da Maré. Ele conta que, uma vez, uma vizinha
tinha deixado o feijão cozinhando na panela de
pressão, saiu para fazer alguma coisa e esqueceu
111 o fogo ligado. Ele chegou, percebeu o que estava
PÁGINA 112.

acontecendo e, por meio de uma janela baixa,


passou o irmão menor para dentro da casa para
poder desligar o fogo. A rede de apoio, de cuidado
mútuo entre as pessoas — e de vigilância mútua
também, porque falamos de comunidades que são
muito violentadas pela força policial e pelo Estado
— é muito importante para essas comunidades. Por
meio dessas redes, as comunidades negras têm
uma capacidade de articulação impressionante,
e conseguem, a partir dessa organização, ir
melhorando pouco a pouco as dificuldades que
ainda vivem, principalmente as ocasionadas pelo
racismo estrutural e ambiental.
J.C.: Assim como mantêm a cultura negra.
F.V.: Exatamente. E é triste pensar que existe
uma fetichização da cultura negra; enquanto de
um lado ela traz a identidade nacional, como a
feijoada e o samba, de outro, a pessoa negra,
ENTREVISTA COM FERNANDO VIEIRA

portadora daquela cultura, seria facilmente


excluída da institucionalidade dessa cultura. Por
isso, o papel das quitandeiras em conter essa sanha
de higienização, com seus próprios recursos e
processos, por meio de suas próprias dinâmicas e
criação de suas redes, foi fundamental para manter
o vínculo entre cultura e persona. Como falamos,
houve resistência.

112
PÁGINA 113.

ENTREVISTA COM
WANESSA ASFORA
CLIQUE E OUÇA

Julia Cavazzini: Para iniciarmos nossa conversa,


gostaria de saber como a comida chega para
você, como você chega para a comida e o que ela
significa para você.A
ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA

Wanessa Asfora: A comida chega para mim por


meio da família: eu venho de uma família em que a
mesa sempre foi protagonista. Claro que isso não
é muito diferente do que ocorre em muitas outras
famílias, mas na minha casa a mesa era espaço
de convivência, de resolução e de produção de
conflitos. Aos poucos pude perceber o poder
desse espaço e, a partir dessa vivência, passei a
considerar a comida como um vetor, uma maneira
de pensar muitas questões da existência humana.
Mas essa experiência não disparou a vontade de
estudar alimentação, que só veio ao longo dos anos. 
J.C.: Você poderia explicar como o recorte daA
sua pesquisa sobre história medieval envolve
113 alimentação e gênero?
PÁGINA 114.

W.A.: No início da minha trajetória de pesquisa,


eu trabalhei com relatos de viagem. Um deles,
entretanto, foi especial, pois contava a história de
uma peregrinação a um paraíso perdido e a descrição
dos alimentos aparecia com certa recorrência.
Chamava-se “A viagem de São Brandão”. O que
mais me interessou naquele momento foi o aspecto
simbólico da alimentação, mas não pude dar
foco a isso na pesquisa que estava fazendo. Já no
doutorado, pude perseguir essa vontade de estudar
alimentação de maneira mais central, usando como
objeto de estudo um livro de cozinha ligado à história
da Roma antiga, que sobreviveu no período medieval
por meio de três manuscritos produzidos em um
contexto, como se sabe, eminentemente cristão.
Tratava-se do livro de cozinha atribuído a Apício,
também conhecido por De re coquinaria. Este detalhe
foi intrigante para mim: como um livro escrito em um
ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA

momento de paganismo (visto da perspectiva cristã)


floresce, é copiado, chama a atenção, e o que ele nos
diz a respeito daquela sociedade dos séculos VIII eA
IX? Foi por meio desses questionamentos e desse livro
que eu entrei no universo da alimentação. A questão
de gênero veio depois do doutorado, com o convite
da professora Leila Mezan Algranti para organizar,
em 2012, um dossiê chamado “Alimentação e gênero”
para os Cadernos Pagu, do Centro de Estudo de
Gênero da Unicamp. Esse dossiê possibilitou um outro
caminho de pesquisa para mim, embora em paralelo
aos meus interesses centrais: o Ocidente medieval,
a comida e a saúde.A
J.C.: Imagino que o tema que toque a alimentação
114 nas suas pesquisas seja a cultura.
PÁGINA 115.

W.A.: Exatamente. Sendo a alimentação um


fenômeno totalizante para onde várias dimensões
da vida humana confluem, como os especialistas
gostam de ressaltar, é inevitável que adentremos
outros terrenos por meio dela. Dessa maneira, ao
entrar no tema por um viés mais cultural, acabo
dialogando muito com a Antropologia, ciência
na qual o estudo das culturas ocupa um lugar
proeminente. Também preciso dialogar com as
ciências relacionadas à saúde e ao ambiente para
chegar ao meu objeto de uma maneira mais profunda.
Com as questões de gênero não é diferente.
J.C.: Faz sentido, porque é preciso contextualizar
que se trata do que ocorreu do Ocidente no
contexto medieval. Não é possível falar de
gastronomia hoje em dia sem olhar para seu alicerce
lá atrás, ou seja, os estudos relacionados à saúde.
W.A.: E não podemos ignorar que o grande período
ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA

da Idade Média — que, grosso modo, compreende


cerca de mil anos — foi fundante para os moldesA
dos papéis sociais do feminino e do masculino
nas sociedades judaico-cristãs. Embora muitos
desses papéis não pareçam ter muito a ver com
os modos de vida atuais, é durante a Idade Média
que a história cristã é interpretada de forma a
constituir os alicerces que mais tarde serão usados
ideologicamente pelo Estado moderno. Assim,
não é possível desconsiderar a importância desse
momento em que o cristianismo é utilizado como
equipamento mental e ideológico de ordenação da
sociedade. Muitas das construções sociais sobre
o que é ser homem, o que é ser mulher, o que é o
115 feminino e o que é o masculino aparecem durante a
PÁGINA 116.

Idade Média, e há noções que permanecem mesmo


depois do século XVIII, quando muitos Estados
se laicizam. Obviamente essa noções foram
retrabalhadas, algumas ressignificadas, mas estão
presentes ainda hoje. 
J.C.: O fato de essas noções sociais permanecerem
até hoje é bastante significativo, ainda maisA
quando as percebemos invisíveis, de alguma forma.
W.A.: De tão interiorizadas, as noções do que deve
ser o feminino e o masculino se naturalizaram,
como se sempre tivesse sido assim. Outro fator
que auxilia a não fazermos essa correspondência
com um tempo passado, é a grande distância que
a Idade Média está de nós. Para o historiador,
contextualizar alguma ação, acontecimento,
ou pensamento, por exemplo, pode parecer
óbvio, pois isso faz parte de seu trabalho, mas
fora dos limites da academia, nem sempre essa
ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA

correlação contextual acontece. Contudo,


pontuar o surgimento de determinados padrões
no decorrer de um longo período é essencial para
que se desenvolva um pensamento crítico, mais
complexo sobre o presente. Por exemplo, mesmo
para se pensar a história das mulheres de tempos
e lugares não relacionados à Idade Média, pode
ser importante compreender aspectos da história
medieval, uma vez que o pensamento cristianizado
forjado nesse período foi difundido por meio da
colonização a várias outras partes do mundo.
Ou seja, a Idade Média teve um papel importante
nesse construto, apesar de muitas vezes estar
associada a ideias equivocadas (misticismo
116 exagerado, obscurantismo, entre outras coisas).
PÁGINA 117.

Há um desconhecimento muito grande sobre esse


período que traz considerações interessantes para
se pensar na nossa existência hoje.
J.C.: E como a história da mulher caminha com a
história da gastronomia na sociedade?
W.A.: Mais até do que a história da gastronomia,
a história da alimentação e a história da mulher
não apenas caminham juntas, como estão
profundamente imbricadas. A comida foi sempre
um aspecto importante da construção da
subjetividade feminina, considerando, obviamente,
esse mundo que se ordena a partir do cristianismo.
A importância da comida para o feminino pode não
parecer muito explícita, porque tendemos a pensar
em outros aspectos, como a beleza, as relações
amorosas e a maternidade. Entretanto, a comida
se relaciona com todos eles. A ideia de corpo belo,
por exemplo, esconde um protagonismo importante
ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA

da comida, afinal o corpo para ser belo precisaA


de alimento (e de um saber gerir o alimento, tanto
em termos de quantidade quanto de qualidade).
Quando se pensa na maternidade, imediatamente
também se pensa na comida, porque a ideia de
cuidar carrega o sentido de dar de comer aos
próprios filhos, aos filhos dos outros e aos doentes,A
por exemplo. Então é preciso olhar para a questão
da alimentação também quando se discute gênero.A
J.C.: Fiquei curiosa sobre como outras culturas que
não a judaico-cristã influenciam na construção do
feminino. Pode falar mais sobre o tema?
W.A.: Esse ainda é um ponto complexo, porque
precisamos de mais estudos. No judaísmo e no
117 cristianismo, há uma narrativa de mundo que
PÁGINA 118.

começa com sua criação e o surgimento de duas


figuras, Adão, o primeiro homem, e Eva, a primeira
mulher. Pode-se pensar que fora do mundo
judaico-cristão as narrativas cosmogônicas,
de criação do mundo, são totalmente diferentes
e, portanto, não seria possível fazer paralelos.
Entretanto, é interessante pensarmos que, em
alguns estudos antropológicos com sociedades
tradicionais que vivem fora dessa ordenação
judaico-cristã, é comum que as funções do cuidar
e do alimentar sejam associadas à figura feminina
e, em alguns casos, inclusive, a mulher só se torna
mulher porque ela cozinha. Saber disso pode ser
um pouco incômodo para aqueles que querem criar
um discurso em que todo o problema de gênero
deriva do cristianismo. De qualquer forma, essa
ainda é uma discussão complexa e relativamente
recente, ainda com lacunas para pesquisas que
ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA

possam colaborar para construir visões de conjunto


um pouco mais abrangentes e que deem conta de
todas as nuances.
J.C.: E também precisamos encontrar essas outras
matrizes, não é?A
W.A.: Encontrar outras matrizes e perceber como
elas dialogam entre si e com a nossa sociedade.
Afinal, sempre vivemos em um mundo conectado.A
A conexão que temos hoje não é da mesma
natureza da que havia em outros tempos, mas
ela sempre existiu entre comunidades diferentes.
As trocas de experiências e as conversas sobre
maneiras diferentes de ver e de pensar o mundo
sempre aconteceram. Agora precisamos de fato
118 pontuar as várias matrizes e saber se há ou não
PÁGINA 119.

conexões ou se essas conexões produziram uma


terceira escolha; reconhecer o que aconteceu.
J.C.: Seu texto “Comer como um passarinho e
cozinhar como uma feiticeira” foca no recorte de
gênero. Você poderia falar um pouco sobre ele?A
W.A.: O título retoma expressões relativas à
alimentação bastante familiares em algumas
sociedades ocidentais. É uma resenha crítica
do trabalho de historiadoras que se dedicam
ao estudo sobre mulheres e comida. O objetivo
ao escrevê-lo foi refletir sobre por que essas
são expressões correntes, que as pessoas
repetem sem pensar. Há muitos outros estudos
a respeito de outros aspectos dessa discussão,
mas o que eu pretendia, com base no período
medieval no ocidente, era aprofundar essas duas
ideias e pensar de onde elas vêm. “Comer como
um passarinho” remete a um comportamento
ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA

considerado ideal para as mulheres, que é o comer


pouco. Esse “pouco” sustenta um corpo frágil, um
ser menor em relação ao homem e que, portanto,
não dá conta de realizar certas atividades. Dessa
maneira, o comportamento alimentar da mulher
precisa ser condizente com sua constituição.
Essa ideia de que a mulher é frágil, mais sensível,
aparece durante a Idade Média, não apenas na
literatura de fundo mais teológico, mas também na
literatura médica produzida no período. Há a ideia
de que homem e mulher são feitos de matérias
diferentes, que a constituição de seus corpos é
distinta. O homem tem constituição quente, seu
corpo produz mais calor. E é a existência desse
119 calor que consegue administrar fluidos corporais
PÁGINA 120.

nocivos, potenciais causadores de doenças. Já a


mulher, considerada de constituição fria, não seria
capaz do mesmo e por isso adoeceria mais que o
homem. Essa ideia se perpetua mesmo quando a
medicina começa a se modernizar no século XVIII.
Contudo, nos textos da área da ginecologia, por
exemplo, essa disparidade permanece. 
A expressão “comer como um passarinho” ao mesmo
tempo em que existe porque está assentada em
ideias como essas, ajuda a reforçar essas mesmas
ideias, contribuindo para fixar um certo modelo
de comportamento alimentar . O interessante é
constatar como uma sociedade de outro tempo e
com outras dinâmicas socioculturais se apropria
de ideias antigas. Atualmente, esse discurso de
que a mulher deve comer como um passarinho vem
revestido de preocupações dietéticas e estéticas.
Apesar do discurso ser diferente, o fundamento é o
ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA

mesmo: o comportamento alimentar associado ao


feminino é o de comer pouco. 
Já “cozinhar como uma feiticeira” nos leva ao
polo oposto: à ideia de que o feminino tem uma
habilidade inata para manipular ingredientes,
cozinhar, preparar refeições e até medicamentos.
De onde vêm ideias como a da fragilidade e a
da sabedoria? É a isso que tenho me dedicado a
estudar, aspectos, como, por exemplo, a narrativa
da criação do mundo na concepção judaico-
-cristã e como Eva é usada como metáfora para
normatizar certos comportamentos entendidos
como femininos.A
Deixando de lado os debates teológicos sobre
120 oAGênesis e suas interpretações, ficou para nósA
PÁGINA 121.

daquela narrativa a ideia de que um crime foi


cometido no paraíso do início dos tempos. Até
então, a figura masculina e a feminina viviam em
harmonia. Eva descumpre o pacto e leva Adão
a cometer o pecado e comer o fruto proibido da
árvore do conhecimento. Podemos interpretar essa
narrativa de várias formas, mas a ideia central é
a de que o feminino induz o masculino a pecar e, a
partir dessa traição primordial, a humanidade está
danada para sempre. A partir de então, as pessoas
começaram a envelhecer, a adoecer e passaram
a ter de trabalhar para conseguir o próprio
alimento; esses são os castigos que recebemos dos
nossos antepassados do paraíso. E se pensarmos
especificamente nas mulheres, elas passaram a
sentir as dores do parto e a ter de cuidar da própria
alimentação. E o que se diz sobre Eva são ideias
com as quais as mulheres convivem até hoje. 
ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA

J.C.: Fiquei pensando na questão do tempo


espiralar, de algo que volta para o mesmo lugar,
talvez um pouco mais distante, mas para esse
mesmo lugar, para essa matriz.
W.A.: Essa ideia do tempo espiralar é, de certa
forma, cara aos historiadores. Contudo, trata-se
de pensar um tempo que flui, mesmo que em
modo espiral, sem nunca passar pelo mesmo
lugar do mesmo jeito. Quero dizer um fluxo de
tempo que carrega mudanças que se processam
com duração diversa, longa, média, curta. O
estudo do tempo também nos permite perceber
como algumas questões voltam a fazer parte da
sociedade para atender a alguma dinâmica do
121 momento e, outras vezes, essas questões podem
PÁGINA 122.

se perder para sempre. É essa espiral, mas também


contínua passagem do tempo, que não é linear
nem progressivo, como se várias dimensões da
existência convivessem. Às vezes as diferentes
dimensões se chocam, outras vezes, se sobrepõem. 
Eu acredito, empiricamente, que todos nós
sentimos ecos desses argumentos a respeito do
feminino ainda hoje. A subjetivação da mulher por
meio da cozinha é algo muito evidente.
J.C.: No sentido de que a mulher não precisa só
saber cozinhar, mas ela também precisa saber
comer, como o passarinho?
W.A.: A ideia cristã de que estamos fadadas a nos
redimir com base no que aconteceu no início dos
tempos, leva-nos a adotar certos comportamentos
de retidão. No que diz respeito à alimentação, esse
comportamento adequado seria a contenção: fazer
jejuns e abstinências. Do ponto de vista da
ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA

ordenação da sociedade, esses comportamentos


corroboram noções cristãs e políticas. A contenção
do feminino é muito cara ao cristianismo e de uma
força tremenda, porque quando a mulher contém o
corpo, não é apenas a boca que é contida, mas
todos os prazeres. Outra mulher-símbolo que vale
lembrar como forma de colaborar nessa contenção
feminina é a representação do oposto de Eva,
Maria. Ela é a mulher dessexualizada, que não se
entrega aos sentidos ou aos prazeres, que gera um
filho sem o ato sexual. Ela representa o cuidado, aA
que cuida da humanidade, a mãe de Deus, a santa
para a qual se reza, à qual se recorre quando se
está em dificuldade. Essas duas imagens femininasA
122 são construídas ao longo dos séculos e
PÁGINA 123.

permanecem nas sociedades até os dias de hoje. 


Os estudos de gênero, que não são recentes,
mas que têm dado mais espaço para as questões
alimentares de uns tempos para cá, enriquecem a
nossa capacidade de analisar o tempo presente.
Aliás, o historiador está sempre pensando
no presente, ainda que transite entre várias
temporalidades. De alguma maneira, ele trabalha
com a história do presente, pois o passado é
pensado a partir dele.
J.C.: O que você acredita que pode ser pensado
como reparação desses estigmas que se
consolidaram durante anos daqui por diante,
considerando o contexto contemporâneo?
W.A.: Não sei se podemos usar a palavra
“reparação”. O que acredito é que podemos pensar
sobre que mudanças são possíveis. Devemos
começar a falar sobre essas mudanças, e o que
ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA

já tem sido feito discutindo o assunto com base


em estudos sérios e reflexão crítica. Não tenho
certeza se essa seria uma forma de reparação, mas
certamente de contenção de ideias equivocadas
para o nosso tempo (embora eu reconheça que
seja muito difícil falar em contenção diante de
ideias tão difundidas). No nosso dia a dia, no
âmbito da família e nos lugares em que se atua
profissionalmente, poder falar sobre essa temáticaA
com fundamento, dar espaço para quem tem algo a
dizer já são exemplos de pequenas ações em prol de
mudança. Nós vivemos em um tempo em que todos
podem falar sobre tudo. O que é bom. Mas abre
espaço também para muita besteira, porque há uma
123 tendência de se privilegiar discursos bombásticos,
PÁGINA 124.

performáticos, que muitas vezes não explicam


nada. Então, eu diria que o importante é falar, não
de qualquer jeito, mas falar para o maior número de
pessoas, nos mais diversos ambientes, para todas
as faixas etárias, grupos sociais e regiões. Falar
de forma a educar, porque eu ainda acredito em
algo que muito se fala, mas pouco se pratica: que a
grande transformação vem da educação.
ENTREVISTA COM WANESSA ASFORA

124
PÁGINA 125.

ENTREVISTA COM
JOÃO LUIZ MÁXIMO
CLIQUE E OUÇA

Julia Cavazzini: Para iniciarmos nossa conversa,


gostaria de saber como a comida chega para
você, como você chega para a comida e o que ela
ENTREVISTA COM JOÃO LUIZ MÁXIMO

significa para você.A


João Luiz Máximo: Eu vou contar como eu comecei
a trabalhar com comida, do ponto de vista da
minha relação como pesquisador. Quando eu fiz
minha pesquisa de mestrado, em que eu trabalhei
com cultura material em relação às cozinhas, aos
equipamentos domésticos, aos fogões a gás etc.,
eu não tinha nenhuma aproximação com a área
da história da alimentação. Encontrei no Museu
Paulista muitas propagandas de fogão a gás e
algumas de aparelhos elétricos, todos voltados
para fazer parte do espaço da cozinha. Foi com
base nesse material que surgiu o tema do meu
mestrado: entender a relação do espaço doméstico
com as transformações que estavam acontecendo
125 em São Paulo no período, em que a eletricidade
PÁGINA 126.

e o gás eram, talvez, os maiores símbolos. O


meu orientador era um dos principais nomes que
desenvolvia trabalhos sobre cultura material,
principalmente porque ele foi diretor do Museu
Paulista, que trabalha basicamente com esse tipo
de cultura. Assim, o foco do meu mestrado era
trabalhar com os equipamentos domésticos e com
a dimensão material deles.
Ao terminar a pesquisa, meu orientador sugeriu
que eu investigasse o tema da alimentação no
doutorado. Para isso, precisei sair do espaço
doméstico, da casa, para a rua, mudando o foco.
Hoje em dia, trabalho com pesquisas voltadas para
o campo da alimentação e com a docência como
professor de cursos voltados para a alimentação,
como Gastronomia e Nutrição.
J.C.: Enquanto lia sua pesquisa, fiquei pensando naA
ENTREVISTA COM JOÃO LUIZ MÁXIMO

palavra “tecnologia” como algo que incorpora o


gás e a eletricidade. Mas agora penso que “cultura
material” traz mais essa ideia.
J.L.M.: Tem um campo na História, a História da
ciência e da tecnologia, da qual eu acabei me
aproximando, assim como da Arquitetura para
entender as transformações do espaço doméstico.
Ou seja, no final das contas, essa pesquisa de culturaA
material acaba virando um estudo mais amplo.
J.C.: Entrando um pouco mais na sua pesquisa, no
contexto por ela descrito, como a cultura material
vai moldando os hábitos alimentares?
J.L.M.: A introdução do gás, da eletricidade e dos
equipamentos a eles associados, especificamenteA
na casa paulistana, transforma os cardápios
126 e, consequentemente, os hábitos alimentares.
PÁGINA 127.

No entanto, quando eu desenvolvi o trabalho,


isso não estava no meu foco. Mas ao estudar as
propagandas, me deparei, por exemplo, com a
necessidade que a empresa que vendia o gás
e o fogão tinha de instruir as pessoas a como
manusearem esse equipamento. No caso brasileiro,
na virada do século XIX para o século XX, quem
estava na cozinha era a empregada doméstica,
vinda de uma longa tradição de escravidão; no
entanto, a propaganda não era voltada para ela,
mas para as donas de casa, isto é, as mulheres
brancas, com poder aquisitivo maior. Percebi,
então, um descompasso.
E, ao mesmo tempo em que entram os fogões a gás,
as panelas de alumínio começam a ser vendidas, e
as panelas de ferro vão começar a ser colocadas de
lado. Dessa maneira, o saber fazer dentro da cozinha
ENTREVISTA COM JOÃO LUIZ MÁXIMO

está sendo transformado em muitos aspectos.


J.C.: É interessante pensar não necessariamente
nos hábitos alimentares, mas como a presença
do fogão, da luz elétrica e do gás influencia
essa tradição do doméstico. Você falou sobreA
as panelas de ferro, qual é a justificativa daA
substituição de uma pela outra? E qual é a
influência da propaganda nessas mudanças?
J.L.M.: Eu acabei estudando um pouco isso, na
Europa e nos Estados Unidos, em um período
imediatamente anterior. Na Europa, a preocupação
estava muito no campo da arquitetura, na mudança
do espaço da casa e de uma nova cozinha, para
que fosse funcional. Nos Estados Unidos, tinha
muito a ver com os engenheiros e com a criação
127 de novos equipamentos, que possibilitassem novos
PÁGINA 128.

movimentos dentro da casa e incorporassem a


mudança das mulheres que estavam saindo para o
mercado de trabalho. Nessa época, por exemplo,
alguns grupos feministas nos Estados Unidos
pregavam a ideia de coletivização do trabalho
doméstico. No caso brasileiro, as empresas de
energia é que fomentam essa transformação, se
aproveitando das mudanças que aconteciam na
sociedade. No caso de São Paulo, por exemplo,
a cidade se transformava por causa do café e da
industrialização, que pressionavam mudanças no
espaço urbano, com a expulsão das pessoas mais
pobres para áreas distantes da região central.
Em nível de país, havia um discurso sanitário, de
limpeza das ruas e do espaço público, levando
à integração do antigo espaço doméstico com
esse novo espaço urbano. E o que a panela de
ENTREVISTA COM JOÃO LUIZ MÁXIMO

ferro tem a ver com essas transformações? Ela era


considerada muito pesada para o dia a dia, até
discursos médicos corroboravam essa ideia, muito
bem aproveitados pelas empresas de energia.
Além disso, o alumínio é considerado um material
de melhor condução de calor, que não transforma
tanto a comida. Todos os argumentos que hoje em
dia consideramos vantagens do uso da panela de
ferro eram considerados negativos. As empresas
de energia se aproveitavam do discurso médico,
de um discurso sanitário para vender essas novas
formas de energia, acompanhadas por novos
equipamentos desenvolvidos pela indústria. Enfim,A
podemos perceber que tudo está associado
e aparece de forma absolutamente clara nas
128 propagandas desse período.
PÁGINA 129.

J.C.: Impressionante como as perspectivas sanitárias


e científicas são manipuláveis pelo marketing.
J.L.M.: Havia, na época, uma necessidade real de
limpeza da cidade no sentido físico, mas é óbvio
que as ações higienistas esbarram em questões
morais, porque as pessoas mais pobres são vistas
como empecilho para essas transformações. As
empregadas domésticas, na visão das empresas,
não estavam capacitadas para manusear os
novos equipamentos e precisavam ser treinadas,
em prol de uma casa mais limpa, mais higiênica.
Obviamente, há uma grande carga ideológica por
trás desse discurso. Eu encontrei propagandas
em que se associava atraso tecnológico com o
fogão a carvão e progresso com fogão a gás; a
figura de uma mulher negra era associada ao fogãoA
a carvão, e a figura de uma mulher branca, bemA
ENTREVISTA COM JOÃO LUIZ MÁXIMO

vestida, ao fogão a gás. Essa ideia está explícita


nas propagandas desse período. É absolutamente
evidente o forte componente racial.
Hoje em dia, alguns estudos estão começando a
trabalhar com essas questões, porque a estrutura
da cozinha vai ter transformações durante o século
XX, mas vai manter ainda muito forte essa divisão
que acontece dentro da casa.
J.C.: Esse boom da tecnologia também trouxe uma
grande leva de livros de receitas, muitos deles
produzidos por marcas de produtos relacionados
à cozinha. Você acha que esses produtos eA
materiais podem estar ligados a essa proposta de
higienização?
J.L.M.: É uma questão interessante, essas
129 transformações aconteciam nas cozinhas
PÁGINA 130.

das elites, porque é nelas que vão entrar os


equipamentos elétricos, fogões, geladeiras e tudo
o mais que acompanhou essas mudanças. Há
um estudo de doutorado que enfoca duas coisas
curiosas. Uma delas é a chave da despensa que,
na cozinha antiga, era comum que ficasse com aA
dona de casa, como se fosse um objeto ligado à
figura dela. A outra são os cadernos de receita,A
e, claro, a própria indústria de equipamentos
domésticos e alimentícia vai se valer disso.
J.C.: E como a presença desses objetos, como a
geladeira e o fogão, influenciam a lógica doméstica?
J.L.M.: A presença desses objetos impacta,
primeiramente, as casas mais abastadas.
No período que eu estudo, há uma série de
informações sobre os palacetes e como essa
tecnologia entra nesses lugares, por exemplo, o
ENTREVISTA COM JOÃO LUIZ MÁXIMO

fogão a gás. A indústria de combustível, a São


Paulo Gas Company, vendia o fogão a gás dizendo:
“O fogão a gás vai te ajudar, porque é limpo”, o
que o relaciona com a questão sanitária e com a
diminuição do trabalho na cozinha. Mas podemos
nos perguntar: “Diminui o trabalho para quem? VaiA
diminuir o trabalho da empregada doméstica?”.
Não vai, mas a indústria vende essa ideia e, mais
do que isso, a ideia de status. Assim, os primeiros
eletrodomésticos entram na casa das pessoas
que podiam adquiri-los basicamente por uma
questão de status. Uma das referências que eu
encontrei em minha pesquisa é emblemática nesse
sentido, o caso de um palacete em Higienópolis.
Havia, nessa residência, o fogão a gás de duas
130 bocas encontrado em um vestíbulo e o fogão
PÁGINA 131.

de ferro de duas bocas na cozinha. Na parte de


cima ficava a sala de jantar e esse vestíbulo com
acesso para a cozinha na parte debaixo. A comida
era feita no fogão à lenha, na cozinha, onde
estava a empregada fazendo o trabalho pesado.
Essa comida subia para o vestíbulo e, lá, ela era
esquentada no fogão a gás.
J.C.: Como um micro-ondas nos dias atuais.
J.L.M.: É um pouco essa ideia. Mas para que era
preciso ter o fogão a gás? Por causa do sinal de
status, mais do que necessidade. Com o tempo,
isso começa a mudar. Nas casas mais pobres,
vai passar a ter aqueles fogões a gás com abas
laterais, depois, as geladeiras, e vai-se compondo
o ambiente de cozinhas de classe média, no
decorrer do século XX. É um local propício até
para receber visitas, porque não tem mais aquela
ENTREVISTA COM JOÃO LUIZ MÁXIMO

ideia do trabalho pesado, do chamado trabalho


sujo, realizado na área externa da casa. Eu
trabalhei mais tarde com algumas propagandas
das chamadas “cozinha modelo”, com azulejos,
pisos, de cor clara, com a linha branca de
eletrodomésticos etc. Dessa maneira, uma nova
cozinha vai se desenvolvendo durante o século XX
e, de certa forma, ecoa ainda hoje.
J.C.: Começou a fazer parte de design de interiores.
J.L.M.: Há estudos realizados na Europa e, depois,
nos Estados Unidos, que impressionam ao identificarA
a posição da mulher dentro da cozinha e o tipo de
deslocamentos que ela faz. Para ser bem aceitos,
os equipamentos deveriam ser padronizados, com
determinada disposição dentro do ambiente. Com
131 o desenvolvimento dos apartamentos, isso vai se
PÁGINA 132.

tornar ainda mais necessário, porque é preciso


alocar muita coisa dentro daquela estrutura. E
a indústria se aproveitou das transformações
arquitetônicas que estavam acontecendo nessas
novas cozinhas.
J.C.: Quando a cozinha, que até então era
separada, veio para dentro do apartamento, das
casas, influenciou as relações entre as pessoas
daquela residência?
J.L.M.: Nos anos 1930, as casas de classe média
ainda mantêm uma divisão de cozinha e copa. A
copa teria uma mesa para refeições e, depois, nos
apartamentos, essa função se deslocaria para a
sala de jantar, o que antes só existia nas casas mais
abastadas, como os palacetes, em que havia uma
sala de jantar e a cozinha. O que passa a não existir
mais é a cozinha fora de casa. Era um lugar com
ENTREVISTA COM JOÃO LUIZ MÁXIMO

fogão a lenha, às vezes um forno, onde as mulheres


faziam doce de tacho e outras preparações mais
demoradas. Dentro da casa, elas começam a
ter um fogão a gás para manter a cozinha mais
limpa e, assim, a parte externa desaparece com o
tempo. Atualmente, nos apartamentos de classe
média e classe média alta, tem a cozinha e uma
varanda gourmet, com alguns equipamentos.
Muitas vezes, essa varanda é o espaço do homem
que quer cozinhar e sair da cozinha, mas esse é um
desdobramento bem recente.
J.C.: E como todas essas mudanças influenciam nos
papéis de gênero dentro da casa?
J.L.M.: Historicamente, no Brasil, a cozinha
sempre foi espaço da mulher, seja da empregada
132 doméstica, da mulher escravizada ou da dona de
PÁGINA 133.

casa com o gerenciamento, que supervisionava


todo o trabalho doméstico. É um espaço
basicamente feminino, da mulher pobre,
escravizada ou empregada doméstica, e da
mulher que é dona de casa; o espaço masculino
está fora desse ambiente, se limitando, quando
muito, a alguma atividade externa, que é a ideia
do churrasco. Com a mudança do espaço da
cozinha, mais recentemente, começa a ter a
presença do homem nesse espaço, mas apenas
em determinados momentos. Eu acho que a
varanda gourmet reuniu a ideia do churrasco
com um espaço onde ele pode demonstrar sua
atividade gastronômica, que não é mais cozinha,
é gastronomia, podendo usar um belo avental, e a
mulher continua com o espaço da cozinha, ainda
muito associado à comida do dia a dia e não dos
ENTREVISTA COM JOÃO LUIZ MÁXIMO

momentos especiais.
J.C.: Fiquei pensando na atuação do homem na
cozinha como lugar da caça. Estamos falando do
lugar do churrasco, que se diferencia do que vai ser
servido na cozinha de dentro de casa.
J.L.M.: É curioso porque, pensando em relação à
tradição europeia — diferentemente da tradiçãoA
indígena no Brasil —, normalmente o churrasco eraA
visto como algo superior; a caça foi vista durante
muito tempo como atividade de nobres, enquanto
o mais popular era o cozido, a comida do dia a dia,
de tempo demorado de trabalho, de cocção em
panelas ou caldeirões. E o preparo dessa comida
mais pobre era associado às mulheres.
J.C.: Quando você fala da influência do gás nas
133 cozinhas, eu imagino que houve uma concessão
PÁGINA 134.

econômica e social em sentido amplo quando


você passa a estudar a alimentação de rua.
J.L.M.: É, porque, no final das contas, eu meA
deparei com uma problemática muito parecida.
Para se estudar a questão das transformações do
espaço da cozinha, duas grandes empresas, a São
Paulo Gas Company, de que já falei, e a Light se
aproveitaram das transformações urbanas e da
questão sanitária para vender fontes de energia.
No caso da comida de rua, o que eu comecei a
perceber é que, durante o século XIX, quando a
cidade iniciava o processo de transformação, as
pessoas mais pobres estavam em deslocamento,
como os tropeiros e os escravizados, e compravam
comida das mulheres escravizadas que a vendia nas
ruas. A transformação que estava acontecendo no
espaço doméstico acontecia também no espaço
ENTREVISTA COM JOÃO LUIZ MÁXIMO

público: havia uma limpeza do espaço público e


uma definição dos espaços com a transformaçãoA
da área central em área de comércio elegante e o
surgimento de restaurantes, cafés e confeitarias.
Esse embate me interessou. Como é que a comida
de rua, que tinha muita ligação com a cidade e com
as pessoas escravizadas, se transformou? Por causa
da limpeza do espaço público, o matadouro sai da
área central e a venda de comida na rua começa a
ser proibida, porque agora os mercados fechados
vão ser os espaços para essa atividade. Ou seja, a
transformação que visava regulamentar e controlar o
espaço nas cozinhas acontecia no espaço urbano de
forma ainda mais evidente. Algumas comidas de rua
desapareceram nessa época. A nova elite paulistana,
134 enriquecida pelo café e pela industrialização, não
PÁGINA 135.

quer mais comer como se comia; agora querem


comer como os europeus, particularmente os
franceses. Nesse ponto, precisei estudar a mudança
nas formas de se alimentar na cidade.
J.C.: É muito interessante pensar o quanto a
alimentação está ligada à sociabilidade e como
influencia a vida doméstica, mas também os
espaços públicos.
J.L.M.: São Paulo é um caso emblemático, porque
era uma cidade minúscula até meados do século
XIX, como uma cidade do interior. O processo de
transformação urbana foi muito estudado. Já a
transformação do ponto de vista da alimentação
não foi tão estudada assim, apenas mais
recentemente. Hoje já existem estudos mostrando
como é que, pela alimentação, se podem perceber
as mudanças de forma até mais dramática.
ENTREVISTA COM JOÃO LUIZ MÁXIMO

J.C.: Por que se tem tão pouca informação sobre


essa história doméstica?
J.L.M.: Eu acho que, durante muito tempo, essa
questão doméstica não foi vista como algo digno
de ser estudado. Na França, essa mudança já tinha
começado, e, mesmo no Brasil, dos anos 1980 para
cá houve uma valorização desse tipo de estudo.
E são fontes difíceis de serem encontradas. Por
exemplo, como descobrimos o que as pessoas
mais pobres comiam? Alguns relatos sobreviveram,
mas não temos acesso a muito material. Acredito
que, como os estudos têm aumentado bastante
de algum tempo para cá, é possível encontrarmos
trabalhos preocupados com esse tipo de enfoque.

135
PÁGINA 136.

NHOQUE DE BATATA-DOCE COM FRANGO


Ilma da Silva L. Costa

CLIQUE E OUÇA

Cozinhe a batata-doce, passe no espremedor ou


amasse com o garfo. Cozinhe o peito de frango
e desfie.
Junte esses ingredientes e acrescente um ovo
ligeiramente batido, sal e salsinha a gosto. Faça
bolinhas pequenas e coloque em uma assadeira.
Faça um molho de tomate batido com cenoura,
refogue com alho e cebola e leve ao fogo para
engrossar um pouco. Acrescente o nhoque e
leve ao forno por, mais ou menos, 30 minutos.
RECEITAS

136
PÁGINA137.

FAROFA DE ARROZ PARA CHURRASCO


Antonio Arnaldo Rocha

CLIQUE E OUÇA

Vão 200 gramas de bacon, duas calabresas, duas


linguiças toscanas bem picadas, alho a gosto, uma
cebola picada, uma cenoura ralada, coentro e
cebolinha. Se tiver abobrinha, pode colocar uma
abobrinha ralada. Um pouquinho de couve fica
bom também ou uma latinha de milho. Se o arroz
estiver amanhecido é melhor ainda. Um pacote de
farofa pronta tipo Yoki e um pouco de farinha de
mandioca. Esses são os ingredientes.

Modo de preparo:
Em uma panela, coloque um pouco de azeite e
o bacon para fritar. Deixe bem fritinho, quase
pegando o fundo da panela — e se pegar, melhorA
ainda, porque dá um gosto melhor. Depois, frite
bem as calabresas com a linguiça toscana; quanto
mais assadinhas, melhor.
Comece a entrar com os temperos: o alho, a
cebola e um pouco de cheiro-verde. Se tiver
tempero baiano, pode pôr. Um pouco de orégano
RECEITAS

também fica legal. Depois de fritar bem, você junta


o arroz, mexendo sempre e, em seguida, coloca a
farofa e a farinha de mandioca. Se quiser colocar
a farinha de milho grossa, também fica legal.A
Essa farofa de arroz acompanha o churrasco.
137
PÁGINA 138.

BOLINHO DE FRANGO COM ABÓBORA


Daniela Brito dos Santos

CLIQUE E OUÇA

Na receita vai uma abóbora japonesa inteira, um


quilo de peito de frango desfiado, duas cenouras
raladas, cinco dentes de alho, uma cebola picada,
uma xícara e meia de farinha de trigo ou de aveia,
salsinha e sal a gosto.
Cozinhe o frango na panela de pressão
e desfie. Tempere-o com cebola, alho, sal,
orégano e temperos a gosto. Cozinhe a abóbora
no vapor ou em água, até ficar bem molinha.
Depois que a abóbora esfriar, amasse com um
garfo. Misture a abóbora com o frango, a farinha
de aveia ou de trigo, a cenoura e a salsinha a
gosto. Unte as mãos com óleo, faça bolinhas e
asse no forno por 15 a 20 minutos, a 180 graus.
RECEITAS

138
PÁGINA 140.

COMER A
CULTURA

Audiodescrição: Página com fundo azul-marinho.


PÁGINA 141.

ENTREVISTA COM
JOANA PELLERANO
CLIQUE E OUÇA

Julia Cavazzini: Vou começar com uma pergunta


ampla, que tenho feito para todos que participaram
desse projeto: como o tema da comida chega para
você, como você chega ao tema da comida e o que
ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO

ela significa para você?A


Joana Pellerano: Essa pergunta é difícil, porque
nunca houve momento em que a comida não
chegou a mim e nunca deixei de chegar para
a comida. E essa realidade me coloca em uma
posição de muita sorte, principalmente no país
em que vivemos, mas também me coloca em
uma posição de pensar que esse privilégio de
ter comida todos os dias é uma oportunidade
de me aprofundar um pouco mais a respeito
desse assunto. Não preciso pensar apenas no
que vou comer, se está gostoso, se tem algo que
prefiro ou não.
J.C.: Interessante você dizer isso, porque existe uma
141 diferença entre comer e pensar o comer. Todo mundo
PÁGINA 142.

come, mas falar e pensar sobre isso, não é todo


mundo que faz.
J.P.: É o tipo de ação tão presente em nossa rotina,
que não costumamos prestar atenção, até que
falte. Assim como várias outras atividades que,
quando se costuma fazer com frequência, já não se
presta mais atenção nelas, mas não é bem assim
que deveria ser.
J.C.: Concordo. Também vemos que se pensa muito
em estética a partir do paladar, geralmente restrita
à gastronomia, mas ela está presente em outros
campos. Poderia falar um pouco sobre isso?
J.P.: Podemos perceber em veículos especializados,
cadernos de jornais ou revistas, que o foco é
a comida como prazer e não como elemento
essencial para a vida, que não só mata a fome,
mas oferece outros valores, como regras de
convivência. O foco fica, portanto, na conexão daA
ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO

alimentação com o prazer, em questionamentos


sobre se os ingredientes são refinados, quaisA
são as credenciais das pessoas que preparam a
comida etc. Há também o foco na relação entre
alimentação e nutrição, sem que necessariamente
haja conexão com a ciência da nutrição. Mais
recentemente se passou a olhar para as outras
questões relacionadas à comida, como a produção
e a distribuição dos alimentos e a situação da fome.
J.C.: Você poderia falar sobre a diferença entreA
alimentação, culinária e gastronomia?
J.P.: É bem comum que essas três palavras sejam
usadas como sinônimos. Às vezes, para não repetir
o mesmo termo nos textos, as pessoas intercalam o
142 uso delas. Entretanto, ao conceituarmos cada uma
PÁGINA 143.

delas, vemos que não querem dizer a mesma coisa.


Elas têm significados diferentes e funcionam como
enunciados diferentes. De forma breve, podemos
pensar culinária como a prática do cozinhar, com
o objetivo de encontrar uma solução alimentar, no
sentido de que há pessoas que precisam comer e
esse problema deve ser solucionado. Por isso, é um
sistema adaptativo, no sentido de que se organiza
com base no problema que aparece, e funciona
mais no âmbito doméstico; a culinária, portanto,
seria da esfera doméstica.
J.C.: Podemos usar o exemplo que você usava: não
se pode comparar o feijão da minha mãe com o
feijão da sua mãe?
J.P.: Exatamente. A culinária é um sistema simbólico
para nos representar, mas que tem como principal
objetivo alimentar pessoas. A gastronomia, de
um ponto de vista conceitual, é um discurso
ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO

racional sobre a culinária, uma maneira de se


pensar a culinária e de falar sobre ela. Essa fala
não acontece, necessariamente, para resolver
problemas alimentares, mas para focar no prazer e
em proporcionar uma experiência agradável para
as pessoas. Essa noção da gastronomia é muito
popularizada na França, e a herdamos por aqui —A
por isso até hoje a gastronomia é relacionada com
uma maneira sofisticada de comer. Se a culináriaA
se localiza no ambiente doméstico, a gastronomia,
por sua vez, se localiza no ambiente público,
como restaurantes e imprensa especializada,
em que é possível haver uma comparação sobre
a melhor maneira de se preparar o alimento, as
143 melhores combinações de sabor e o prato mais bem
PÁGINA 144.

sucedido. Questões que não fazem sentido em um


ambiente doméstico, porque, como o exemplo que
você mesma lembrou, não posso comparar o feijão
da minha mãe com o feijão da sua mãe ou com o
feijão de mães de outras pessoas, porque cada
uma vai dizer que o feijão da mãe dela é o melhor e
não tem espaço para discussão. Porque, apesar de
aquela comida resolver uma questão específica da
fome, ela abarca vários outros sistemas simbólicos
e se conecta com outros valores que não só os
nutricionais. Aquela comida vai ter afeto, amor,
memória, e isso não tem como comparar, porque
cada um tem uma experiência subjetiva.
J.C.: E como você encaminha a sua pesquisa para
esse assunto?
J.P.: Eu sempre gostei de ler receitas e de assistir
aos programas de cozinha na TV. Esse foi o meuA
ponto de partida. Eu gostava de ler livros de receita
ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO

como quem lê um romance. E gostava de assistir


a esses programas como quem assiste à novela.
Eu queria entender o que estava acontecendo
ali. Então, apesar de esse ter sido o início de meu
interesse por esse assunto, só comecei a estudar
alimentação de maneira mais formal durante
a faculdade. Cursei comunicação social, com
habilitação em jornalismo, e comecei a me voltar
para o jornalismo gastronômico. Nessa época, criei
um blog para publicar o que eu estava aprendendo
para além do que entraria no meu trabalho da
faculdade. Foi assim que comecei a pesquisar,
ainda sem saber muito bem que o que eu fazia era
nomeado assim, pois não estava muito familiarizada
144 com o que significava fazer pesquisa sobreA
PAGINA 145.

alimentação. Ao acessar esses conteúdos, descobri


que existia um curso de mestrado na Espanha sobre
comunicação e gastronomia, reunindo essas duas
áreas. Ter a oportunidade de fazer esse curso abriu
muito a minha cabeça e pude descobrir que eu
gostava não apenas do jornalismo gastronômico,
mas também da relação das pessoas com a comida
e com outras pessoas com base na comida. De volta
ao Brasil, fiz mestrado em Ciências Sociais, tendo
como tema a alimentação, e depois fiz o doutorado
seguindo o mesmo assunto. O foco específico das
minhas pesquisas foi mudando, mas a alimentação
esteve sempre presente, como um filtro para o modo
como observo a realidade.
J.C.: Essa escolha fez com que você estudasse
outras áreas, uma vez que alimentação não é uma
disciplina?
J.P.: Ainda não temos, pelo menos no Brasil, uma
ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO

disciplina de estudo específico sobre alimentaçãoA


e todas as possibilidades de abordagem da
área. Existem os cursos de gastronomia, mas
antes não tínhamos nem esses. Hoje em dia, é
possível encontrarmos programas de mestrado em
gastronomia no Brasil e também cursos superiores
na área, mas esses não eram exatamente o meu
interesse. Eu estava mais focada em entender
o fenômeno da alimentação, que não é simples
e, para entender algo que exige tantos olhares
diferentes, é necessário acionar áreas do
conhecimento diferentes.
J.C.: Você encontrou pessoas com outros pontos deA
vista, que partiam de lugares diferentes para olhar
145 para o mesmo tema?
PÁGINA 146.

J.P.: Quando eu comecei a pesquisar o assunto,


as pessoas pensavam que eu queria cozinhar e
abrir um restaurante. Elas não entendiam como
seria estruturar teoricamente a alimentação.
Na pós-graduação em Gastronomia, História e
Cultura que fiz no Senac, encontrei outras pessoasA
que queriam estudar e pensar a alimentação.
Depois, quando fui para o mestrado, comecei a
perceber que, apesar de várias pessoas estudarem
a alimentação, elas não se davam conta, porque
acabam estudando o tema em áreas específicas,A
como se fosse um tema em paralelo. Além disso,
os estudiosos não necessariamente conversavam
entre si. Para sanar esse problema, criei juntamente
a uma colega um site de divulgação científicaA
sobre estudos da alimentação, o Comida na
Cabeça, com o intuito de organizar oportunidades
que ampliassem os meios de informação
ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO

para pesquisadores, como cursos, eventos e


lançamentos de livros, permitindo também que
essas pessoas entrassem em contato. Esse trabalho
me ajudou a ter uma noção do tamanho dessa área
e de quantas pessoas estão, de fato, olhando para
a alimentação.
J.C.: Como se entende que comida é cultura? Ou
seja, a partir de que momento se começa a falar
sobre comida como um aspecto da cultura?
J.P.: Essa pergunta é muito importante. Para mim,
a relação da comida com a cultura, hoje em dia,
é muito óbvia, mas é curioso pensar como foi
impactante a primeira vez que eu ouvi isso; até
então, eu não tinha parado para pensar nessa
146 relação. Porque biologicamente, enquanto seres
PÁGINA 147.

humanos, precisamos comer muitos nutrientes


diferentes, provenientes de variadas fontes. Nosso
corpo precisa dessa variedade para funcionar da
melhor maneira. Entretanto, não comemos todos
as mesmas coisas; cada grupo vai fazer escolhas
bem específicas do que é comestível. O grupo dá
significados diferentes para os alimentos, para além
dos valores nutricionais, e eles se tornam comida.
Essas escolhas dizem muito a respeito do grupo:
como se organiza, quais são as regras, quais são
os papéis sociais etc. A comida se relaciona com
a cultura na medida em que passa a representar
o grupo, porque é uma escolha feita dentro de um
contexto específico. Em alguns lugares, um alimentoA
pode ser entendido como uma comida do dia a dia,
em outros lugares, esse mesmo alimento pode ser
percebido como sofisticado, e em outros, ainda,A
pode ser visto como asqueroso, horrível. É o mesmo
ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO

alimento, mas os significados atribuídos a ele sãoA


diferentes, de acordo com o que cada grupo entende.
J.C.: E como esse aspecto cultural diz respeito também
à identidade? Como pensar em um poder de agência
dentro dessa cultura, a partir do que se come?
J.P.: As pesquisas que começam no ambiente
acadêmico não chegam necessariamente para
todos, então é comum que elas fiquem presas nesseA
ambiente, o que é uma pena, porque todo mundo
come... Quer dizer, todos que têm sorte e privilégio
comem, então muita gente merece conhecer um
pouco mais a respeito do assunto. Não que as
pessoas tenham que querer aprender a respeito das
questões da alimentação com muita profundidade,
147 mas seria interessante se elas tivessem acesso a
PÁGINA 148.

essas reflexões, para entender que comida não é só


um combustível. Eu acredito que, se as pessoas que
têm a oportunidade de escolher o que vão comer
tivessem a oportunidade de pensar a comida mais
profundamente, todos seríamos beneficiados,
não só as classes mais favorecidas. Porque, por
exemplo, não se tentaria resolver a questão da
fome de um ponto de vista de caridade, mas
poderia se olhar para esse problema de maneira
mais humana, de que todos merecem comer o que
é reconhecido como comida.
J.C.: Refletindo sobre o que se falou a respeito
de não conhecermos mais o caminho da comida,
porque ela chega diretamente ao nosso prato, assim
que se pergunta “Por que eu como isso?”, “Como
isso chegou até aqui?” é um caminho sem volta.
J.P.: Eu também acho que não tem mais volta.
Quando se entende que o que comemos é um
ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO

conjunto de escolhas feitas pelo nosso grupo social


em algum momento, e que continuam sendo feitas
ao longo do tempo, concluímos ser um conjunto
de escolhas com o qual colaboramos. Todos
contribuem um pouco para essas escolhas, e é
por isso que a comida tem a ver com identidade,
sobre quem somos e quem não somos. Aquilo
que eu como e aquilo que eu rejeito conta um
pouco da minha história, descreve quem eu sou.
Quais são as comidas que me importam, quais
são as que me movem, quais são as regras que eu
sigo, todas essas questões são relacionadas ao
indivíduo também.
J.C.: Esses questionamentos me fizeram lembrar daA
148 sua pesquisa sobre o coentro.
PÁGINA 149.

J.P.: Como capixaba, pessoa nascida e criada


no Espírito Santo, o coentro é um alimento muito
presente. Quando me mudei para São Paulo,
descobri que era possível não gostar de coentro,
algo que, até então, eu nunca tinha ouvido falar.
Com base nesse meu estranhamento nasceu a ideia
da minha pesquisa de doutorado, que era entender
como as pessoas usam a comida para contar quem
elas são ou não são. Por meio da comida é possível
mostrar informações a respeito de si e também
pensar em como se organizar em uma mudança de
um estado do Brasil para outro. A comida faz parte
dessas experiências, porque quem muda precisa se
sentir mais em casa, mais confortável no novo lugar
em que está morando, ou, ainda, para demarcar
diferenças e poder dizer: “Eu estou aqui, mas eu não
sou daqui”.
No Brasil, país tão grande e de tanta diversidade
ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO

cultural, há poucas coisas em comum nos


diferentes cardápios. A antropóloga Paola Pinto
Silva mostra que há uma regularidade do trio
“feijão, farinha e carne seca” em nosso país. O
feijão pode ser trocado por outras leguminosas,
a farinha pode ser de mandioca, de milho ou de
outra base, e a carne seca pode ser substituída
pelo peixe seco, por exemplo. Se olharmos a
partir desse tripé, é possível encontrarmos
pontos em comum no Brasil inteiro. Mas, fora
ele, temos apenas a percepção de que arroz,
feijão, carne e salada é um prato comum no país,
reconhecido em diferentes localidades, ainda
que não seja consumido em todas elas. No mais,
149 há poucas coincidências e os jeitos de comer
PÁGINA 150.

são muito variados. Durante a minha pesquisa,


procurei conversar com muita gente diferente,
que variassem em idade, gênero, classe social
e naturalidade. Apesar das origens das pessoas
serem as mais variadas, procurei concentrar as
entrevistas em São Paulo, porque é onde moro e
também era uma forma de relacionar a pesquisa
à minha própria condição de migrante. Todas
as pessoas com quem conversei repararam na
grande diferença entre o jeito que elas comiam
em suas cidades natais e aqui em São Paulo. Até
os horários de comer variavam. Dessa maneira,
as pessoas passam a usar essa diferença para
contar sua história; é um jeito de organizar melhor
a rotina nesse novo ambiente que você escolheu
para viver.
J.C.: E como se dá a pesquisa a partir das
informações divulgadas pela mídia?
ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO

J.P.: Eu, particularmente, gosto de fazer pesquisa


a respeito daquilo que ocorre em minha vida e me
instiga. Se vejo um fenômeno acontecendo e não
consigo entendê-lo completamente, gosto de
olhar para ele com um pouco mais de atenção. E
como eu assisto a muita televisão, muitas séries,
muitos filmes e venho da área da comunicação,A
esse é um objeto de pesquisa frequente. Dessa
maneira, eu também me interesso em entender
como a comida aparece nesses meios de
comunicação, porque o que eles produzem dizem
respeito a quem produziu os conteúdos, ou seja,
um produto cultural fala a respeito do grupo social
que o criou. Quando eu tenho contato com algum
150 material que me lembra algumas das questões que
PÁGINA 151.

já estudei ou que me provoca uma curiosidade,


ele se torna um objeto de pesquisa. As formas
de estudá-lo variam: pode ser para produzir um
artigo, um trecho de uma pesquisa maior, como
a do mestrado ou a do doutorado, criar um curso
caso encontre outras pessoas interessadas
naquele tema, o que pode trazer pistas
interessantes a respeito do que está acontecendo
na nossa sociedade naquele momento.
J.C.: Aproveitando que estamos falando sobre
mídia e comunicação de massa, você diria
que existem políticas públicas que possam
fomentar a discussão sobre gastronomia como
processo cultural?
J.P.: Depende do que se quer discutir como
cultural. Precisamos nos lembrar de que a
gastronomia tem um significado de comidaA
sofisticada para a população brasileira, e queA
ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO

faz parte de um restaurante premiado ou algo


próximo a isso. E não é só esse tipo de comida
que tem relação com a cultura. Conceitualmente,
cultura é o que o ser humano faz. Assim, como
todos comemos, precisamos comer, queremos
comer, nossas comidas são cultura para além
dessa imagem da gastronomia. Se houvesse
política pública que entendesse toda a produção
de comida como cultura, seria uma ação bastante
válida, porque atingiria muito mais gente. Agora,
se as políticas ficarem restritas à alta cozinha,A
seria apenas mais uma maneira de separar as
diferentes camadas sociais do Brasil e reforçar
a ideia equivocada de que a cultura não é
151 para todos.
PAGINA 152.

J.C.: Ouviremos dizer que cuscuz não é cultura.


J.P.: Pois é. E que arroz com feijão não é cultura.
Quem decide isso? Quem faz essa separação?
Tudo o que o ser humano come é cultura; o que
o brasileiro come é importante para a cultura
brasileira.
ENTREVISTA COM JOANA PELLERANO

152
PÁGINA 153.

ENTREVISTA COM
PAULA OLIVEIRA
CLIQUE E OUÇA

Julia Cavazzini: Para iniciarmos nossa conversa,


gostaria de saber como a comida chega para
você, como você chega para a comida e o que ela
significa para você.A
Paula Oliveira: Sem dúvida, o primeiro espaço é
ENTREVISTA COM PAULA OLIVEIRA

afetivo, e acredito que muita gente não consegue


desassociar da comida essa qualidade da
reunião familiar, do aconchego. Às vezes temos
oportunidade de ir para fora do Brasil ou do
nosso lugar de nascimento e percebemos mais
claramente quanto a alimentação tem o poder de
nos trazer para um lugar de conforto. Ao mesmo
tempo, o outro espaço ocupado pela comida é o
da inquietação. Desde que eu comecei a trabalhar
como professora, faço uma reflexão crítica
sobre o tema, principalmente relacionando-o às
desigualdades sociais, tão marcantes em um país
como o nosso. A comida, portanto, tem essas
153 duas maneiras de me tocar: uma delas afetiva, e
PÁGINA 154.

a outra no sentido de se pensar criticamente a


sociedade.
J.C.: Você é formada em gastronomia, o que a fezA
escolher essa área?
P.O.: Eu costumo dizer que fui aprendendo no
decorrer do meu caminho profissional. Apesar deA
ninguém da minha família trabalhar na área ou
exercer alguma atividade profissional relacionadaA
à gastronomia, eu sempre me interessei por
formas de representação cultural. Escolhi o
curso por entender que ele poderia me ajudar
não só a pensar, mas a realizar alguma atividade
que tivesse um impacto social interessante e
fosse também uma atividade econômica. Com
o passar do tempo, começaram a surgir outras
oportunidades, incluindo a de entrar no ambiente
acadêmico. Com as pesquisas, minha visão
sobre a importância da transmissão dos saberes
culinários mudou muito. Parece-me urgente levar
ENTREVISTA COM PAULA OLIVEIRA

em consideração os nossos pontos de partida


para não permitir que apenas alguns aspectos da
culinária estejam presentes, enquanto outros são
esquecidos ou silenciados. Assim, fui percebendo
a gastronomia enquanto a vivenciava.
J.C.: A formação levou você a caminhos que só
percebeu ao atravessá-los.
P.O.: Exatamente. Além disso, a gastronomia é
uma área de formação profissional muito recente,A
então ainda se está tentando entender quais
são seus limites. Se pararmos para pensar sobre
os conceitos, os significados trabalhados naA
gastronomia, percebemos que são pouco precisos;
154 o que tem de concreto é que se trata de uma
PÁGINA 155.

atividade econômica, alimentada pelo contexto


cultural e que produz bens e serviços.
J.C.: E como encontrar documentos e dados que
corroborem o sentido mais histórico, cultural e
político da gastronomia?
P.O.: Durante o mestrado, fiz uma pesquisaA
sobre a coleção de cardápios do modernista
Mário de Andrade e pude perceber o quanto
esses documentos são objetos do discurso
da gastronomia, determinando alimentos que
deveriam ser conhecidos e consumidos. Como
objeto, o cardápio é um recurso material que faz
parte do cotidiano das pessoas. Historicamente,
ele apresenta a lista de refeições disponíveis
para as pessoas provarem. Ao longo do tempo,
com os eventos aristocráticos, imperiais e, mais
tarde, burgueses, o cardápio passa a transmitir
saberes culinários como símbolo de importância
social. É fundamental perceber que um documento
ENTREVISTA COM PAULA OLIVEIRA

aparentemente inofensivo colabora na difusão de


comportamentos, em que ingredientes particulares
passam a estabelecer uma relação de hierarquia.
Assim, os cardápios fazem parte de importantes
momentos de tomada de decisão sobre o futuro
das sociedades, das nações e, portanto, naquele
documento existem várias informações. No
começo do século XX, o cardápio se estabelece
e se difunde pela cultura ocidental, e passa a ser,
para além de um objeto estético, um suporte, um
meio em que artistas fazem suas ilustrações e
comerciantes divulgam produtos, como os vinhos,
o que colabora para sua ampliação de mercado.
155 Mesmo que o cardápio pareça um simples papel,
PÁGINA 156.

é muito interessante pensar em todas suas


funções sociais.
J.C.: Como você chegou aos cardápios e menus
dentro da sua pesquisa?
P.O.: Como professora, eu sempre procurei entender
a diversidade dos assuntos que precisava apresentar
para os meus alunos. Dessa maneira, minha intenção
era a de esmiuçar um pouco mais a gastronomia,
para além da atividade prática. Ainda devido ao
meu ofício como professora, fui cursar o mestrado
no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade
de São Paulo, a fim de me inteirar melhor como euA
poderia tratar da culinária. A primeira disciplina que
eu cursei se chamava Epistolografias no Brasil, queA
nada mais era do que a história do Brasil por meio de
cartas. O professor Marcos Morais, que mais tarde
veio a ser o meu orientador, propunha discussões
muito interessantes sobre o tema. Nesse momento,
os menus ainda não eram uma possibilidade de
ENTREVISTA COM PAULA OLIVEIRA

estudo, mas fui percebendo o quanto essa produção


escrita tinha sido essencial para construir uma ideia
de cultura brasileira e como essa ideia foi sendo
transmitida a outros suportes materiais. Da mesma
maneira que aparentemente a literatura começou
com as cartas para depois chegar nos livros, pode-se
pensar que os cardápios estão associados a
uma literatura culinária: os livros de receitas, os
dicionários e as enciclopédias. Aos poucos fui
percebendo como os registros são dominantes para
a permanência das informações culturais. Foi quando
Marcos Morais — faço estes parênteses para reforçarA
a importância que tem o professor na vida de seus
156 alunos ao oferecer janelas de oportunidades — meA
PÁGINA 157.

mostrou uma coleção de documentos que pude


perceber o papel fundamental da produção escrita
para registrar a cultura, ainda que seja possível
problematizar o que essa escrita não abarca e os
silêncios de quem está envolvido. Naquele momento
percebi que poderia pensar a culinária a partir dos
registros escritos.
Os cardápios são objetos materiais, característicos
da gastronomia, que nos oferecem a possibilidade
de pensar sobre uma sequência de apresentação
dos pratos, sobre as prescrições e proibições
alimentares e o que é mais consumido. Essa
coleção de menus de Mário de Andrade de imediato
me chamou atenção. Poderia dizer que 90% deles
eram escritos em francês, o que já me deu uma
ideia do que eu encontraria nos estudos. Uma
característica particular dessa sistematização
culinária na gastronomia é que nos deparamos
com fórmulas. Assim, na descrição de um prato
ENTREVISTA COM PAULA OLIVEIRA

em francês, não conseguimos saber exatamente


quais alimentos fazem parte da receita. Por isso,
precisei buscar outros livros que me ajudassem a
entender o que era consumido naquelas reuniões.
Nesse levantamento, identifiquei os alimentos que
apareciam mais constantemente, como os peixes
e a trufa — cogumelo que ainda hoje segue sendo
pouco acessível financeiramente. O que o consumo
desses produtos significava naquela época?
Atualmente, temos a globalização e, por meio dela,
o acesso a mercados de uma maneira muito mais
ampla do que no começo do século; mas como
já naquela época a trufa era muito requisitada,
157 assim como os aspargos, um vegetal que não é
PÁGINA 158.

necessariamente comum aqui no Brasil, e o foie


gras, foi necessário encontrar meios de conseguir
esses alimentos. O menu, portanto, auxilia-nos a
reconhecer a presença e a ausência de escolhas
alimentares.
J.C.: Como um simples cardápio pode falar sobre
classe social e alimentação em uma escala
pública?
P.O.: Em primeiro lugar, eles são um documento
impresso categorizado como efêmero, porque
é constantemente produzido e substituído,
diferentemente de um livro, por exemplo. Depois,
precisamos pensar que ele está no domínio da
produção escrita, necessariamente circunscrito
nos limites do uso das práticas culinárias,
geralmente dominadas por vozes masculinas,
brancas, ocidentais e de elite. Outra questão é
que o menu constantemente reproduzido vai se
tornar um instrumento importante da difusão
ENTREVISTA COM PAULA OLIVEIRA

dos conhecimentos culinários de potências


econômicas e culturais.
Isso ocorre porque essa sistematização da
gastronomia é construída ao longo dos séculos
por muitas colaborações, sobretudo ocidentais
e europeias, determinando a marca desses
conhecimentos culinários como símbolos de
civilidade e de bom gosto, que atravessam mesas
imperiais e aristocráticas para as mesas burguesas.
Porque, embora seja um recurso europeu, não
podemos nos esquecer da importância da
dominação cultural francesa no mundo inteiro,
incluindo o Brasil. Os modos de comer e de cozinhar
158 à francesa vão se tornar símbolos de civilidade e
PÁGINA 159.

vão contribuir para criar uma imagem de culinária


a ser conhecida e consumida caso você quisesse
estar em um espaço de destaque social.
J.C.: É curioso se pensar que Mário de Andrade,
um dos modernistas que estavam interessados na
busca por uma identidade nacional, foi o recorte
escolhido por você.
P.O.: É muito difícil saber qual era a intenção da
produção dos menus, como eles foram construídos,
ou por Mário de Andrade ou pelo grupo modernista.
Primeiro, porque essa coleção não tem anotações
que indiquem as motivações pelas quais ele reuniu
os documentos. Todos os menus apresentam Mário
de Andrade como um convidado de destaque, não
oAanfitrião desses eventos, mas um convidado comA
importância e função ativa. O que talvez possamos
dizer, ao menos considerando os estudos feitos
até agora e até que se descubra quem os produziu,
é que os menus para os modernistas poderiam
ENTREVISTA COM PAULA OLIVEIRA

ocupar esse espaço do lúdico, da brincadeira.


Agora, a afirmação que podemos fazer é queA
pela seleção das receitas e pelo aspecto
material, eles foram elaborados por pessoas que
conheciam a literatura culinária, mesmo que não
profissionalmente, sem dúvida conheciam as regrasA
culinárias e as colocavam à disposição nesses
eventos. E essa é uma informação importante.
Apesar de não conseguirmos compreender qual
foi a participação do movimento modernista de
fato na produção dos menus, é curioso notar que,
como você disse, havia uma intenção de repensar
a cultura brasileira nessa época. Entretanto, no
159 cotidiano das reuniões, nesses 23 documentos,
PÁGINA 160.

o que tinha espaço como culinária festiva era o


molde afrancesado.
Uma outra curiosidade desses menus é uma
receita culinária que também estava presente
nas coleções de Olavo Bilac e dom Pedro e que
vai sendo reproduzida em momentos importantes
no contexto histórico: uma receita de peru com
farofa. A receita vem escrita em francês, então
mesmo que houvesse uma vontade de expressar
a culinária brasileira, não houve condição de
afirmá-la mais firmemente. Há um menu específicoA
da coleção de Mário de Andrade com a descrição
de receitas que não se consegue entender o que é.
Esse menu, especificamente, pode ser consideradoA
uma paródia. Por isso afirmei que a coleção deA
cardápios para os modernistas, ao menos nessa
coleção de Mário de Andrade, pode ocupar esse
espaço lúdico.
J.C.: A influência francesa também é muito presente
ENTREVISTA COM PAULA OLIVEIRA

na arte nessa época. Ao mesmo tempo em que


se tenta quebrar essa influência e se pensar a
identidade nacional, há todo o embasamento
cultural da França, o que também diz respeito a
uma classe social da época.
P.O.: Exatamente, e o colecionismo, não só de
menus, mostra a afeição que o colecionador tem
com os objetos. Para termos mais informações
sobre o processo de produção e das escolhas
das receitas culinárias, precisaríamos ter
outros documentos que nos fornecessem essa
possibilidade de reflexão.
J.C.: Mário de Andrade produziu um pensamento
160 crítico ou uma observação a respeito dessa coleção?
PÁGINA 161.

P.O.: Não, ao menos não no material que eu


consegui ter acesso. No entanto, em outras
produções do escritor, há suas notas sobre
culinária. No Instituto de Estudos Brasileiros,
além de sua coleção de menus, há seu arquivo de
verbetes, chamado de fichário analítico. Nele,A
Mário de Andrade organizava seu processo de
pesquisa e as referências bibliográficasA
consultadas, categorizando-os. Nesse fichárioA
analítico há uma série de referências à culinária, à
cozinha e a ingredientes brasileiros. Também é
possível acessar um rascunho a respeito da
cachaça; como o material estava bem estruturado,
poderia ser a prévia de uma publicação, o que
demonstra que esse era um assunto de seu interesse.
Também é possível perceber a importância que
Mário de Andrade dava para a culinária e para
alimentos brasileiros na literatura que ele produzia.
Em Macunaíma, que é a grande representação da
ENTREVISTA COM PAULA OLIVEIRA

obra do escritor, notamos esses elementos. Em uma


publicação póstuma, O Turista Aprendiz, espécie
de diário sobre as viagens que fez pelo Brasil, de
cunho etnográfico, há um registro sobre impressõesA
que ele teve ao consumir alimentos amazônicos
durante um banquete de que ele participou no
Palácio do Rio Negro. Comparando os menus com
essas outras referências, pude entender melhor o
que ele consumiu.
Em um outro menu muito interessante, que se difere
esteticamente dos demais porque está em uma
folha comum, mas talvez seja o mais importante em
relação à cultura culinária brasileira, há a descrição
161 de uma refeição que Mário de Andrade fez na casa
PÁGINA 162.

do escritor Luís da Câmara Cascudo. É uma folha


de papel manuscrita, um cardápio muito bonito
e singelo, mas sem qualquer informação de que
aquele evento pudesse ser compreendido como um
evento específico ou que estivesse acontecendo
na casa de uma figura histórica relevante como
Cascudo. No entanto, o cardápio traz peixes
brasileiros, com algumas nuances de uma refeição
nos moldes franceses. Além dos peixes, há muitos
outros ingredientes brasileiros e chama a atenção a
importância que dá ao coco na doçaria. E, apesar
de não termos registro, imaginamos que pudessem
ter conversado sobre culinária brasileira, porque
em trocas de cartas que tiveram, o tema da cultura
brasileira era recorrente. Esse menu é o registro de
um encontro pessoal dos dois, que até então eram
apenas correspondentes, amigos intelectuais.
J.C.: Como os cardápios da coleção de Mário de
Andrade apresentam a sistematização da culinária
ENTREVISTA COM PAULA OLIVEIRA

francesa? Pode-se dizer que esse seria um registro


da culinária naquele contexto?
P.O.: Existe um padrão de servir, uma sequência
de pratos que é afrancesada e que podemos
reconhecer nos menus. Em primeiro lugar, eles
são apresentados em francês, o que já marca
essa influência estrangeira. Entre os pratos, estão
aqueles da cultura europeia, mas especialmente
francesa no que diz respeito à combinação
de alimentos, às técnicas mais comuns e mais
habituais, aos utensílios que fazem parte desse
processo de serviço e à sucessão dos pratos, que
define como uma refeição deve ser construída eA
162 consumida à francesa.
PÁGINA 163.

J.C.: Para concluir nossa conversa, o que os livros


de receitas no Brasil trazem de informação sobre
as pessoas?
P.O.: Os livros de receita não são um simples
registro; a literatura culinária registra hábitos
específicos de pessoas consideradas importantesA
em relação à culinária. Assim, em um país como
o Brasil, se não usarmos essa literatura de modo
crítico, vamos continuar transmitindo a cultura
culinária de acordo com o ponto de vista de uma
classe social específica. Os saberes tradicionais,A
as práticas alimentares do cotidiano, na grande
maioria das vezes, não vão estar nessa literatura
culinária. Além disso, as vozes masculinas
são maioria nessa literatura, ao contrário das
práticas culinárias do cotidiano das sociedades,
que geralmente são femininas. E, à medida que
a gastronomia se interessa pelo fazer culinário
artesanal, esse fazer também precisa ser analisado
ENTREVISTA COM PAULA OLIVEIRA

de modo crítico, para não reproduzirmos o que está


sendo feito até então e não continuar ofertando
um ponto de vista único na cultura. Até mesmo
reproduzindo violências estruturais, porque
a cozinha, a culinária, é uma prática social e,
portanto, está totalmente envolvida com essas
violências estruturais. É importante pensar como
a produção da literatura culinária se reflete em
um contexto diferente daquele em que ela foi
produzida.

163
PÁGINA 164.

ENTREVISTA COM
TAINÁ MARAJOARA
CLIQUE E OUÇA

Julia Cavazzini: Vou começar com uma pergunta que


tenho feito para todos que participaram do projeto:
como o tema da comida chega para você, como você
chega para a comida, e o que ela significa para você?A
ENTREVISTA COM TAINÁ MARAJOARA

Tainá Marajoara: Comida para mim é o cheiro de


rio, de mato, do dedo da minha avó. Para falar de
comida, preciso começar por esses lugares, que
me levam a fechar os olhos e a sentir o cheiro de
quando minha avó passava os dedos pelos meus
cabelos e exalava o cheiro da comida.
J.C.: Comida seria para você, então, uma relação
que começa em casa?
T.M.: É uma relação de afeto e ancestralidade,
história, carinho e colo, mas também entender isso
tudo enquanto cultura e existência. Eu aprendi que a
nossa cultura indígena Marajoara existia, os sonhos
falavam, a floresta soprava, o cheiro do tamuatá
cozinhando era o cheiro do nosso território, os
164 desenhos e os grafismos nas nossas redes eramA
PÁGINA 165.

parte da nossa história. Quando eu fui para a


universidade, levei um susto, porque ali aprendi que
não existíamos. Falar de cozinha é também falar da
nossa existência enquanto cultura Marajoara.
J.C.: Que curso você fez na universidade?
T.M.: Fiz duas faculdades, Ciências Socias e
Comunicação, mas eu sou das artes, do teatro, e dali
também surge minha cozinha. As artes abraçaram
meu corpo e meu pensamento, especialmente o
teatro, cuja prática iniciei aos 11 anos.
J.C.: Você passa, portanto, pelas artes, pelo teatroA
e, nas ciências sociais, estuda história oral. VocêA
considera esse assunto tão difícil de ser abordado
no âmbito da academia, como a comida?
T.M.: Passamos por esses lugares e fizemos esseA
percurso justamente por ser difícil, por não haver
esse lugar para nós. Como não existia um lugar
que caberia a nossa voz, onde teríamos escuta e
ENTREVISTA COM TAINÁ MARAJOARA

nossas práticas seriam abraçadas, a academia e


as artes foram escolhidas por termos conseguido
entrar, dialogar e, muitas vezes, confrontar pela
nossa própria existência. A história oral está
relacionada ao meu percurso como cozinheira,
que não se refere apenas a fazer comida, mas
também àquilo que não se come. A prática de
cortar, preparar, moquear e cozinhar é mecânica e
cotidiana, mas o pensar a cozinha, o respeito aos
nossos encantados, a sensibilidade, a transmissão
do conhecimento, a ancestralidade, os rituais da
cozinha, especialmente relacionados àquilo que
não se come, seguem terrivelmente ameaçados.
Foi o despertar para o que não se come e a
165 salvaguarda dele que me deslocou do teatro
PÁGINA 166.

para uma dedicação integral à cozinha. E, nessa


mudança, passei a estudar o conceito de cultura
alimentar, porque o conceito de gastronomia não
contemplava o que queríamos dizer. Não é porque
um chef de cozinha usa um ramo de jambu em
um prato com cinco outros alimentos enlatados
que ele está promovendo a cultura alimentar.
Ele apenas está seguindo o modo de produção
materialista hegemônico. A cultura alimentar, por
outro lado, é feita do sensível, do que não se come,
dos encantados, da espiritualidade, da relação
com a mata e dessas energias que nos regem
e protegem. Assim, a partir do encontro entre
cozinha, ancestralidade e encantarias, surge uma
cozinha coletiva com a ancestralidade Marajoara.
Podemos dizer que essa cozinha é “de trincheira”,
de confronto, de revolução, e reúne aqueles que
estão conosco na luta pela garantia dos direitos e
ENTREVISTA COM TAINÁ MARAJOARA

pela floresta em pé, porque só existe floresta viva


com cultura viva.
J.C.: Pode-se dizer que a cozinha também é um
lugar de escuta, não é?
T.M.: Sim. Quando se fala sobre o que não se come,
no âmbito da cozinha, causa certo estranhamento.
Eu sou do povo originário Marajoara, e partimos
do entendimento de que o que não se come está
severamente ameaçado, mesmo quando se tem
o que comer. Dessa maneira, eu precisava ouvir o
que os nossos troncos antigos tinham para falar,
pedir abertura à pesca, ao mato, e manter essa
relação com os que se encantam. Essa relação,
chamada pelo universo ocidental branco como
166 metafísica ou filosofia, entre outras denominações,A
PÁGINA 167.

para nós são relações de encantados. Mas é


delicado falar sobre isso, porque ao mesmo tempo
em que falo das sutilezas das nossas existências,
enquanto povos e culturas, existe um avanço
fundamentalista que coloca sobre essas pessoas
estigmas de “endemoniadas”. Por exemplo, não
se pode mais pedir abertura da pesca, porque
há uma série de proposições fundamentalistas
religiosas que são aniquiladoras dessas culturas.
Uma maneira de manter isso é, antes de comer,
ouvir o que havia para se contar, porque se
trata de transmissão do conhecimento e, assim,
nossas culturas se renovam. Nessas conversas,
procuramos entender a relação do encantado que
protege os campos do Marajó para garantir que
se tenha o que comer no dia seguinte. O nome do
nosso ponto de cultura, iacitatá, tem a ver com a
nossa cosmovisão, porque iacitatá (iacia, lua, e
ENTREVISTA COM TAINÁ MARAJOARA

tata, fogo) traz o sentido dessa lua grande de fogo,


essa lua vermelha que se anuncia.
O inferno criado no século XV para a dominação
cristã não faz parte da nossa cultura. Para nós,
o fogo, essa energia que vem do fundo, remete a
coisas boas, à energia forte da lua de fogo que
anuncia tempos fortes, ou de muita água, ou de
muita seca. São energias que se renovam todos os
dias, para que a terra possa florescer novamente.
J.C.: A cozinha pode acolher a teatralidade e a
história também.
T.M.: É uma das grandes perdas que se tem com os
protocolos sanitários quando destroem as relações
afetivas com os alimentos e, consequentemente,
167 as relações culturais com os alimentos, na medida
PÁGINA 168.

em que determinam uma divisão de trabalho e uma


quantidade limitada de pessoas. Por exemplo, as
casas de farinha são verdadeiras festas, em que
uma comunidade ajuda a outra; se o mestre estiver
com uma macaxeira muito grande, a ponto de não
conseguir fazer o trabalho sozinho, outro mestre
vai ajudá-lo; ou quando a mestra da comunidade
ao lado precisa tirar a mandioca da água e torrar
a farinha, os outros mestres ajudam. São relações
de compartilhamento e afeto. Nesses fazeres da
tapioca, no caminho do Igarapé, se conta e se
transmite muita coisa.
J.C.: E existe muita tecnologia nesse processo.
T.M.: Todas as cozinhas, de todos os povos do
mundo, trazem suas próprias tecnologias. Da
mesma maneira, os povos têm o seu sal, seu açúcar
e seus azeites. A história de que aprendemos
a cozinhar com a chegada do europeu, porque
ENTREVISTA COM TAINÁ MARAJOARA

o vimos salgar o bacalhau, serve apenas para


manter o sistema hegemônico pulsando dentro
das universidades e das escolas técnicas de
gastronomia. Se formos para a arqueologia e
ouvirmos os nossos antigos, vamos entender que
existem inúmeros métodos de conservação, seja
com tucupi, com a pimenta, com os próprios sais
(o de casoar e o de aningal) e com outras formas,
como a salga de óleo. Essas práticas vêm sendo
feitas há milênios, em todos os lugares do mundo.
E como podemos definir tecnologia? Será que paraA
modernizar uma produção artesanal é preciso
implementar a tecnologia das mangas de aço inox?
Quando se coloca a farinha nessas mangas de
168 aço inox, ela frita em vez de esfriar. Ou tecnologia
PÁGINA 169.

seria conseguir ter os piquiazeiros o tempo todo


presentes e não só quando são necessários, por
conta dessa relação de respeito com a mata?
J.C.: E essa é uma tecnologia que existia e ainda
existe. Podemos dizer que dar prioridade para
outras tecnologias é estar na expectativa de olhar
para o futuro?
T.M.: Acredito que as ideias para adiar o fimA
do mundo estão postas, quando se fala nessas
tecnologias. Por exemplo, madeiras usadas para
cozinhar, que hoje são protegidas e têm seu
uso criminalizado; assim como as práticas de
conservação que usamos e que escapam aos
protocolos ou, se pautadas por eles, já não são
mais vistas como práticas de povos originários.
Esse lugar que nega o conhecimento tradicional,
aqui no hemisfério sul, em Abya Yala, é um lugar
colonialista. Mas seguimos mostrando que é
ENTREVISTA COM TAINÁ MARAJOARA

possível minimizar os impactos climáticos e fazer


uma cozinha que tenha uma relação sensível com
o meio ambiente, sem precisar de produtos que
venham de terra grilada.
J.C.: Como a alimentação pode estar ligada ao
apagamento de uma cultura?
T.M.: A alimentação está ligada ao apagamento
cultural de diversas maneiras. Desde 1492, quando
dividiram este território, a terra seria usada para
expropriação, exploração e aniquilação. O modelo
colonialista, que é esse modelo ruralista de latifúndio
e escravidão, não mudou. Estamos em 2022 e o Brasil
segue tendo recordes de concentração fundiária,
de assassinato de lideranças e de devastação.
169 A única alteração nesse modelo produtivo é o
PÁGINA 170.

recorde de utilização de agrotóxicos. São mais


de 500 anos com o mesmo modelo de produção,
que não se desassocia da aniquilação dos povos.
E atualmente, ainda que se fale em bioeconomia,
ação semelhante à grilagem, que é feita a partir do
Cadastro Ambiental Rural (CAR) com declarações de
terra sobre territórios indígenas, quilombolas e outros
territórios tradicionais, acontece com as políticas de
neutralização de carbono. As empresas sobrepõem
suas áreas de neutralização de carbono a práticas de
grilagem de exploração, expropriação e aniquilação,
que não se separam do racismo estrutural e
institucional.
J.C.: E o que fazer quando se percebe que se está
neste lugar colonizado?
T.M.: Costumamos dizer: “se levante e diga ao
povo que avance”. É importante entender esses
processos, que são violentos, mas também
ENTREVISTA COM TAINÁ MARAJOARA

reconhecer as estrelas que o agronegócio nos


impede de enxergar. A floresta queimando, no
chão, não nos deixa respirar. Experimente parar
de respirar para ver se vai conseguir comer alguma
coisa, mesmo que seja da indústria. Logo faltará
o ar e, então, acabará a vida. Ou entendemos
que não é possível sobreviver em um processo
colonialista ou seremos todos aniquilados pela
fome, como projeto de Estado e de dominação,
pela devastação, pelo colapso climático e pela
violação constante de direitos.
J.C.: É importante você falar isso, porque dá
para fazer política pública por meio do alimento.
E como se dá, no âmbito da colonização, a
170 apropriação cultural?
PÁGINA171.

T.M.: Temos de diferenciar colonização, que destrói


sua cultura, o seu modo de vida, a sua língua e o
que te faz existir, para ser substituído por algo
que seja hegemônico, de apropriação, que é
uma usurpação do conhecimento tradicional ou
das culturas tradicionais. Ou seja, se apropria
de algo que não é seu e coloca o seu nome, a sua
assinatura, como se fosse de sua propriedade.
Por exemplo, mais ou menos em 2010, em São
Paulo, houve um projeto do governo do estado do
Pará para promover a gastronomia local, e dois
chefs de cozinha daqui se juntaram a uma chef,
em São Paulo, para lançar um prato, a canhapira.
Quando me perguntaram o que eu tinha achado
do projeto, porque fizeram um estardalhaçoA
e disseram que estavam lançando um prato
Marajoara inédito e o difundindo para o mundo,
disse que estava tudo errado. Em primeiro lugar,
ENTREVISTA COM TAINÁ MARAJOARA

disseram que criaram um prato Marajoara, mas


para haver um prato Marajoara, é preciso que ele
exista antes. Nada foi descoberto, mas era latente
a colonização da cozinha. Também chamaram
o nosso prato de “feijoada”, o que também está
errado, porque é um preparo Marajoara conhecido
por canhapira entre nós. Canha, pimenta, e pira,
peixe, porque a base do prato é feita com peixe
passado na pimenta, seco e, depois, cozido no
caldo do tucumã. A versão criada foi feita com
o porco, como a feijoada, e disseram que tinham
descoberto um preparo Marajoara. Não se pode
dizer isso, porque canhapira é canhapira, feijoada
é feijoada. Mas como é da nossa cultura, ninguém
171 respeita. É comum o branco chegar, colocar a
PÁGINA 172.

etiqueta dele e dizer que está tudo ok. Entre os


pratos criados, eles realmente lançaram um prato
inédito, o guisado de sereia, prato esse que nunca
fizemos. Mas no outro caso, esses chefs fizeram
colonialismo e apropriação, reunindo ambos na fala
sobre a descoberta da canhapira. No entanto, o
que criaram, na verdade, foi o guisado de sereia.
J.C.: Como se consegue preservar e promover a
cultura por meio da alimentação?
T.M.: Comendo e respeitando. A cultura se transmite
por meio da alimentação assim que se entende
que é necessário comer o que é servido. Uma vez
que não é mais necessário comer, certo alimento
deixa de ser plantado e vai desaparecendo, até
deixar de existir. E se eu conto à minha filha sobre oA
mingau de carimã, a única coisa que ela vai saber
é que a mãe dela tomava o mingau, mas não vai
experimentá-lo. Contar e viver estão interligados,
ENTREVISTA COM TAINÁ MARAJOARA

e as práticas culturais se mantêm vivas em nossos


cotidianos. A cultura alimentar é feita do saber,
do fazer, do falar, do cozinhar, do ritualizar, da
ancestralidade, da espiritualidade e da relação
com o território, com as águas, com as estrelas
e com os animais. São muitas as dimensões que
nos permitem existir e praticar nossas culturas
alimentares.
J.C.: E o que acontece quando você não vê a comida
até o momento em que ela chega ao seu prato?
T.M.: Quando não se sabe de onde vem a comida,
não se sabe também para onde ela vai. Se eu sei
que a comida está vindo da agricultura familiar
ou do mato, sei de onde ela vem e quem a está
172 cultivando. A relação não é necessariamente
PÁGINA 173.

com o produto, mas com o produtor. Quando a


comida vem da indústria ou do agronegócio, a
relação é com o produto, porque eu não sei quem
é o produtor. Esse produtor gigante, na imagem
de uma corporação, um mega empresário ou um
latifundiário, suga minha força de trabalho e meu
dinheiro, que vai ser usado para concentrar mais
poder, mais renda e mais terra na mão desse grupo
hegemônico. Quando eu digo que sei para onde a
comida vai, é porque a comida que chega e que
posso preparar, vai para a composteira. O que ela
gerou ou monetizou financeiramente volta para o
produtor e é redistribuído. Já a comida que chega
de um lugar que eu não conheço, o resultado é uma
relação de expropriação, em que ela é usada para
alimentar um sistema esmagador, opressor, racista
e colonialista, mas eu não posso nomeá-lo.
J.C.: Voltando ao que você falou sobre osA
ENTREVISTA COM TAINÁ MARAJOARA

encantados e a cultura Marajoara, como vocês


veem esse alimento? Ele existe antes de ser colhido?
T.M.: Ele existe no invisível e no campo sensível.
Dessa maneira, antes de ser colhido, ele alimenta
de outro jeito. Temos também os alimentos
ritualísticos, como os cauins, os caxiris, os
fermentados e as bebidas. Passamos a tarde e a
noite inteira cantando, dançando e tomando de
uma única cuia, desmentindo quem diz que elas
não têm caloria ou quantidade suficiente. Mas osA
elementos culturais, espirituais e encantados não
se encaixam nessas tabelas calóricas, porque eles
existem em outras relações com os alimentos.

173
PÁGINA 174.

ENTREVISTA COM
FELIPE CHAIMOVICH
CLIQUE E OUÇA

Julia Cavazzini: Para iniciarmos nossa conversa,


gostaria de saber como a comida chega para
você, como você chega para a comida e o que ela
ENTREVISTA COM FELIPE CHAIMOVICH

significa para você.A


Felipe Chaimovich: Eu comecei a me interessar
pela comida por causa de um livro de Rosa Maria
chamado A arte de comer bem, um clássico
brasileiro. Nele havia uma parte epistolar, com
epígrafes e filosofia, e uma organização de
cardápios que despertava muito minha imaginação,
o que gerou em mim uma curiosidade sobre a
cultura material da mesa. Quando eu comecei
a cozinhar, passei a organizar as refeições
conjuntamente, criando essa intersecção entre
cultura material, essa parte mais teórica, e a ação
de cozinhar, a parte prática.
J.C.: É interessante você falar da relação dos
cardápios com o cozinhar, o que desperta muitas
174 outras discussões.
PÁGINA 175.

F.C.: E essa parte epistolar é muito afetiva, porque


tem um estilo de cartas escritas por uma mãe a
sua filha.A
J.C.: Parece bonito! E como você chegou a esse
livro e como ele disparou o início da sua pesquisa
em relação ao gosto que, por fim, o levou àA
alimentação?
F.C.: Esse livro fazia parte da biblioteca da
minha casa. E, por causa do que ele gerou em
mim, fui estudar filosofia. Durante a graduação,A
me interessei pela estética, tema filosófico emA
que o gosto aparece como um conceito bastante
abstrato. Ao mesmo tempo, tomei conhecimento
da antropologia estrutural e do livro Origem dos
modos à mesa, de Claude Lévi-Strauss, em que
vi a possibilidade de reunir um interesse muito
pessoal com uma pesquisa teórica. Depois do
ENTREVISTA COM FELIPE CHAIMOVICH

meu doutorado, fui me interessando por uma


linha crítica na filosofia, que tem a ver com aA
filosofia da linguagem, e uma das temáticasA
pelas quais eu passei a me interessar foi sobre
como esse vocabulário filosófico do gosto, queA
é extremamente abstrato, sobretudo na filosofiaA
crítica de Immanuel Kant, poderia ser muito
esclarecido em relação às experiências concretas.
J.C.: Foi então que você trouxe Marcel Duchamp
para seus estudos? Além de Lévi-Strauss, das suas
referências da filosofia, como se deu esse mergulhoA
no tema do gosto?
F.C.: Em 2006 ou 2007, quando oferecia o cursoA
Estética do Gosto, eu levava, pela primeira vez,
a pesquisa para uma experiência didática. Foi
175 então que encontrei Duchamp, porque ele fala
PÁGINA 176.

que o maior perigo é uma forma de gosto. Eu


situo a experiência de gosto dele a partir do
modo como a classe social a qual ele pertencia,
na França, comia naquele momento, baseada
no serviço à russa. Essa reflexão tem a ver com
um curso que ofereci na Galeria Vermelho, com o
Henrique Fogaça, abrangendo oito aulas teóricas
e quatro jantares. Os jantares eram estruturados
com base na transformação de certos modelos
de comensalidade, que eu entendia como etapas
que levaram até o modo dominante da sociedade
comer hoje, moldada por uma certa cultura
material, que se impõe a partir da Revolução
Industrial e tem a ver, por exemplo, com o uso do
prato individual, do garfo, da faca e da colher,
como elementos obrigatórios. No fundo, essa
cultura material estrutura o nosso modo de comer,
ENTREVISTA COM FELIPE CHAIMOVICH

o que tem a ver com a evolução de certas práticas


de comensalidade, das Cortes europeias entre os
séculos XIV e XIX.A
J.C.: É muito interessante pensar como a estrutura
europeia foi moldando nossos hábitos alimentares
até hoje. Por que você acha que não houve mais
mudanças depois disso?
F.C.: Essas mudanças passaram por práticas de
repressão social do corpo, e como traz Norbert
Elias em seu livro O processo civilizador, esse
processo tem a ver com a formação dos Estados
tal como nós os conhecemos, nos quais o poder
da violência é delegado e concentrado na mão do
Estado. A grande contribuição de Lévi-Strauss,
de acordo com as minhas reflexões, é que a
176 centralidade de todas essas transformações se
PÁGINA 177.

relacionam com a comensalidade. Lévi-Strauss,


nas Mitológicas, entende que o núcleo de toda
mitologia humana é o domínio do fogo e a
comensalidade, a maneira como se cozinha.
Baseando-me nessa visão, eu entendi que esse
processo de repressão do corpo, de alguma
maneira, se manifesta primariamente na
transformação dos hábitos de comensalidade e
na cultura material ligada a essas transformações.
Dessa maneira mantemos, no fundo, certos
padrões de separação dos corpos, de nojo e de
repressão corporal, que se perpetuam até hoje,
e isso é, em geral, inconsciente.
J.C.: E nessas reflexões caberia o gosto da arte?
Como seria ver esse exemplo de maneira concreta?
F.C.: O gosto da arte é uma derivação abstrata
da experiência concreta. A comensalidade é uma
ENTREVISTA COM FELIPE CHAIMOVICH

experiência física, não tem nada de conceitual.


Assim, quando se tem uma grande transformação,
a questão do gosto muda. Há, na verdade, três
grandes transformações de comensalidade.
Primeiro, todas as comidas são compartilhadas
e as pessoas não têm prato individual; depois
tem a transformação para o que vai ser chamado
de serviço à francesa. Nele, todas as travessas
são dispostas geometricamente na mesa e as
pessoas compõem seus pratos, já individuais,
livremente, se servindo de todas as possibilidades
das travessas. Nesse momento, o gosto é livre,
porque cada pessoa compõe o seu prato, mas
não se compartilha a escolha. A terceira grande
mudança é para o serviço à russa, no qual as
177 porções individuais são todas idênticas, e o gosto
PÁGINA 178.

é impositivo. É esse o gosto ao qual Duchamp se


refere como grande perigo. No século XVIII, na
filosofia de Kant, por exemplo, o gosto é livre
e individual, porque era nesse padrão que se
comia na época. Agora, quando se fala de arte,
precisamos analisar em que momento da história
se fala sobre o gosto, porque o gosto artístico era
absolutamente individual e livre, e ele transitava
para uma forma dominante, determinista, a partir
da transição para o serviço à russa.
J.C.: Como foi a experiência do curso que você
ministrou na Galeria Vermelho com HenriqueA
Fogaça? Essa foi a primeira vez que você trabalhou
com um chef?
F.C.: Foi a primeira vez trabalhando com um chef,
e repeti outras três vezes, no MAM, o que levou à
exposição Encontros de arte e gastronomia, no
ENTREVISTA COM FELIPE CHAIMOVICH

mesmo local. A experiência foi muito interessante,


porque deu concretude ao curso, na medida em que
oA Fogaça topou o desafio de fazer quatro cardápiosA
de quatro serviços diferentes, pautados pela
pesquisa que eu estava fazendo. Eu disponibilizei
as receitas de época, a sequência em que os pratos
deveriam ser servidos, a etiqueta do serviço, e
toda essa informação deu muita concretude à
experiência. Mas o formato do primeiro curso
separava a parte teórica dos jantares. Depois, já no
MAM, transformamos o curso em quatro encontros,
com uma hora de aula expositiva seguida por um
jantar. Durante o jantar, eu continuava a aula à
mesa, explicando todas as etapas que havíamos
visto na teoria. Além disso, convidamos um chef
178 diferente para cada jantar. O primeiro jantar foi
PÁGINA 179.

baseado na etiqueta dos jantares da Corte dos


duques da Borgonha, no século XIV. O segundo
foi baseado no que seria um jantar da Corte de
Versalhes, do fim do século XVII. O terceiro foi
um jantar baseado na estrutura de um serviço à
russa. E o quarto foi um desafio para o chef pensar
o que seria uma comida contemporânea. Mas é
interessante frisar que, em todos os jantares, os
chefs, inconscientemente, acabavam servindo à
russa, que é o serviço comercial de restaurante.
J.C.: Essa prática estrutura as refeições hoje em dia?
Ela pode estar ligada à proposta autoral do chef?
F.C.: Servir porções individuais idênticas estrutura
as refeições atualmente, sim, e tomamos esse
costume como um dado, algo natural, quando na
verdade não é. Essa escolha tem a ver com uma
relação econômica, na qual o porcionamento de
ENTREVISTA COM FELIPE CHAIMOVICH

refeições idênticas é entendido como algo que


estimula o consumo individual e estrutura uma
refeição na qual as pessoas estão reprimidas
corporalmente, separadas umas das outras. Esse é
um serviço mais relacionado a restaurantes.
J.C.: O que mudou para você do que foi realizado na
Galeria Vermelho com o curso ministrado no MAM?A
Como reverberou para você esse segundo momento?
F.C.: O segundo curso foi muito mais sintético, e a
pesquisa evoluiu também. O fato de as pessoas que
estavam fazendo o curso poderem experimentar
essa mudança de serviço, permitia a elas perceber
como ficou muito mais refinado, no sentido deA
preciso. E, do ponto de vista da minha atuação, do
material de cultura da mesa, eu pude determinar
179 as escolhas com muito mais precisão: alugava
PÁGINA 180.

as toalhas, os talheres, os copos, os pratos e


as travessas. A pesquisa sobre os cardápios
também avançou, assim como as receitas e as
práticas de servir. Nesse momento, iniciei minha
coleção particular de talheres, o que me permitiu
supervisionar com muito mais precisão a forma
como as refeições eram preparadas e servidas,
e para quem estava fazendo o curso era uma
experiência muito mais efetiva e pedagógica.
Depois de fazer os cursos e colaborar com Laurent
Suaudeau, apresentado a mim pelo Henrique
Fogaça, o convidei para pensar duplas de artista
e chef ou coletivo artístico e chef. Nessa época,
nós conseguimos um patrocínio que nos permitiu
construir uma cozinha de concurso gastronômico
internacional na sala Paulo Figueiredo. Também
fizemos uma horta de temperos para enfatizar as
ENTREVISTA COM FELIPE CHAIMOVICH

questões ecológicas envolvidas no transporte de


alimentos e organizamos esses encontros sem o
constrangimento do serviço à russa ou da aparência
de restaurante. Ou seja, o modo de servir o que quer
que fosse criado também era livre, era parte do
processo criativo.
J.C.: E quais foram os critérios para reunir os artistas
com os chefs?
F.C.: Nós selecionamos artistas que já tivessem
trabalhado com comida nas próprias poéticas, e
chefs que aceitassem o desafio de criar com essesA
artistas. Os resultados eram imprevisíveis; as criações
duravam uma semana, sem nenhuma instrução prévia,
e aconteciam ao vivo. Eu fiz a seleção de artistas;A
Laurent olhou o portfólio de cada pessoa escolhida
180 por mim e imaginou que chef poderia interagir com ela.
PÁGINA 181.

J.C.: Como foi a recepção do público?


F.C.: Para o público foi incrível, porque não tinha
barreira entre o público e as obras de arte, como o
é em um museu. As pessoas não tinham repressão
física, como ficar em silêncio, botar as mãos paraA
trás e se sentir de alguma maneira fisicamenteA
reprimidas. Estávamos lidando com comida: as
pessoas entravam no museu e sentiam o cheiro de
comida, viam as pessoas cozinhando: o processo
artístico acontecia ao vivo, sem barreiras. Por isso,
houve uma adesão muito, ouso dizer, visceral do
público ao processo artístico e aos momentos de
servir a comida. Em um desses momentos, o pessoal
do curso saiu distribuindo marmitas pelo Ibirapuera.
J.C.: Que interessante. Fiquei pensando em uma
frase sua, que não há uma obra de arte a ser
preservada nesse contexto.
ENTREVISTA COM FELIPE CHAIMOVICH

F.C.: É verdade. Embora uma das duplas quisesse


doar a obra para o MAM, ainda era um processo
experimental. O que foi proposto como objeto
não podia ser preservado. Apesar disso, depois
de Laura Lima, que fez dupla com José Baratino,
participar do processo, ela foi convidada para
uma exposição sobre o centenário da Bauhaus,
na Alemanha. Lá, ela refez o processo na cozinha
de uma casa projetada por um dos arquitetos da
Bauhaus. Nesse caso, a obra pôde ser doada ao
museu, já que havia muito mais consciência dos
processos de conservação. No MAM ainda era um
momento muito mais experimental, em que vários
artistas testaram novas possibilidades.
J.C.: Como se deram as negociações com o museu?
181 Que estruturas mudaram na instituição?
PÁGINA 182.

F.C.: Desde o início encontrei muito apoio:


precisamos criar um encanamento de esgoto,
instalar água, isolar o ar-condicionado e outras
tantas questões técnicas, mas não encontrei
dificuldades para realizar cada uma delas. FoiA
mais esse aspecto da instalação da cozinha em si,
mas eu já estava fazendo uma série de exposições
experimentais, do ponto de vista da experiência
física do público no museu. Nesse sentido, portanto,
a minha proposta era uma exposição que estava
dentro do que o museu estava se propondo
oferecer, embora tenha sido a primeira vez, que
eu saiba, que o museu tenha feito uma cozinha
funcionar, ao vivo, como espaço expositivo. Não é
como instalar um restaurante, porque o restaurante
abriga um tipo de serviço e de lógica de cardápio,
que era justamente o que eu estava querendo evitar.
ENTREVISTA COM FELIPE CHAIMOVICH

Essa experiência foi uma possibilidade de estar em


um museu com menos repressão física do corpo de
quem visita o museu.
J.C.: É uma experiência bastante única, diferente
de outras. Se pensarmos, por exemplo, em Hélio
Oiticica, podemos fazer alguma relação?
F.C.: Muitos artistas trazem esse tipo de
experiência em suas obras. Antes de Hélio Oiticica,
Yves Klein fez uma exposição na qual ele servia um
coquetel azul, preparado pelo La Coupole, que era
um bistrô onde ele comia em Paris, e as pessoas
eram atravessadas pelo azul e urinavam azul.
Até essa experiência fisiológica fazia parte daA
exposição. Há uma série de práticas artísticas de
Klein que vão transitando, digamos assim, para o
182 comer, para o beber, como maneiras de trabalhar
PÁGINA 183.

o corpo de formas diferentes, até por meio do


esporte, porque Yves Klein era professor de judô.
Também podemos relacionar o esporte e as lutas
marciais com uma prática meditativa. No Brasil,
exposições assim podem contribuir de maneira
significativa para processos de reflexão e deA
questionamento sobre a repressão do corpo e,
de maneira ampla, sobre o processo civilizador.
J.C.: Onde a sua pesquisa se encontra agora?
F.C.: Na verdade, a minha pesquisa segue três
diferentes linhas, mas as últimas coisas com as
quais trabalhei estão ligadas ao momento inicial
desse percurso, que tem a ver com o banquete do
faisão, oferecido por um dos duques da Borgonha,
para lançar o projeto de uma cruzada. Esse
banquete ocorreu no ano seguinte à conquista
de Constantinopla, em 1454, em Lille. De acordo
ENTREVISTA COM FELIPE CHAIMOVICH

com minha hipótese, esse é o primeiro momento


em que se usa empadões temáticos com sentido
político. Dessa maneira, esse evento seria um
marco do uso escultórico da comida. Eu já comecei
a esboçar um trabalho para entender esse uso,
por exemplo, como as esculturas de açúcar, ou
seja, o uso do açúcar como matéria plástica
escultórica, se tornaram uma maneira de a Europa
dar sentido à economia escravagista do ciclo
do açúcar. A entrada do açúcar na Europa se dá
pela via farmacêutica, isto é, o uso do açúcar
como medicamento. Pouco a pouco o açúcar vai
transitando para um uso culinário, muitas vezes
em forma de balas e nesse uso escultórico. Toda a
tragédia da escravização de populações africanas
183 para gerar o acúmulo capitalista relacionado ao
PÁGINA 184.

ciclo do açúcar, principalmente no Brasil e no


Caribe, tem como contraponto o crescimento do
uso do açúcar como matéria-prima escultórica
na Europa. Os meus estudos, portanto, vão no
sentido de procurar entender esse mascaramento
da tragédia da economia escravagista com o uso
político das esculturas de açúcar. Ainda estou
reunindo a bibliografia para avançar nessa pesquisa.A
ENTREVISTA COM FELIPE CHAIMOVICH

184
PÁGINA 185.

CARNE DE PANELA COM MILHO VERDE


E ABÓBORA
Maria Aparecida Candido Nunes

CLIQUE E OUÇA

Ingredientes:
Um quilo de miolo de acém, três espigas de milho
verde, 300 gramas de abóbora japonesa ou cabotiá
descascada e em cubos, uma cebola bem picada,
dois dentes de alho, duas xícaras de chá de água
quente, azeite a gosto, duas folhas de louro, duas
colheres de chá de coentro em pó, uma colher de
chá de cominho em pó, uma colher de chá de colorau
e sal a gosto. Como nem todo mundo gosta da folha
de coentro, você pode substituir por cheiro-verde.

Modo de preparo:
Corte o miolo de acém em cubinhos. Coloque em
uma travessa, tempere com o coentro, o cominho, o
colorau, o alho e misture bem. Às vezes, eu bato os
temperos no liquidificador para ficar bem moidinho,
assim criança nenhuma consegue tirar um pedaço
do tempero, que vira um creminho, além de ficar
bem mais fácil para temperar também. Depois de
RECEITAS

bem temperada, você coloca a carne para cozinhar


na panela, em fogo brando. O miolo de acém é
macio, você vai cozinhando ele ao vapor, porque
não está congelado, mas em temperatura ambiente.
Enquanto a carne está no fogo brando,
185 comece a picar o restante dos ingredientes: a
PÁGINA 186.

abóbora em cubinhos e as espigas de milho em


rodelinhas. Quando a carne está quase macia,
no ponto em que dá para a criança comer —
para o adulto deixamos mais firme, mas para
criança tem de ficar bem mais molinha —, você
coloca a abóbora, que já ficou ao vapor, nem
dura nem mole. Pode acrescentar o milho sem
cozinhar. Finaliza com cheiro-verde ou coentro,
tampa a panela e deixa mais um pouquinho. Na
hora de servir para as crianças, é uma delícia.
Na minha casa, eu coloco um pouquinho de
cachaça para amolecer a carne, pimenta do reino
e pimenta dedo de moça. Mas não na creche.
Para acompanhar, nós fazemos uma salada
colorida de repolho verde e roxo e cenoura
ralada. Se você faz um prato colorido, chama
a atenção das crianças, e eu trabalho com
saladas sempre coloridas. Pode ser salada
de alface, tomate e beterraba para chamar a
atenção delas. Espero que você tenha gostado.
RECEITAS

186
PÁGINA 187.

TORTA DE LEGUMES
Receita coletiva

CLIQUE E OUÇA

Ingredientes do recheio:
Uma cenoura, uma abobrinha, uma beterraba e
duas batatas, todas raladas, 500 gramas de creme
de mandioquinha, 200 gramas de queijo branco,
um pimentão vermelho, um pimentão verde, uma
cebola e três dentes de alho amassados.

Modo de preparo do recheio:


Misturar todos os legumes ralados e dar uma leve
refogada. Em seguida, acrescentar o creme de
mandioquinha e o queijo. Reservar.

Ingredientes da massa:
Dois ovos, 500 mL de leite, duas xícaras e meia
de farinha de trigo (pode ser integral), 180 mL de
azeite e uma colher de fermento tradicional.

Modo de preparo da massa:


Bata e coloque metade da massa em uma forma
untada. Adicione o recheio e termine com a outra
RECEITAS

metade da massa. A torta leva de 25 a 35 minutos


para assar, dependendo do forno.

187
PÁGINA 188.

TORTA DE ABACATE COM BOLACHA


Jane Ribeiro da Silva

CLIQUE E OUÇA

O ingrediente da massa é um pacote de biscoito


maisena e quatro colheres de margarina ou
manteiga. Para o recheio é um abacate, uma xícara
de leite em pó, meia xícara de açúcar e dois limões.

Modo de preparo:
Bata o leite, o abacate, o açúcar e o limão e
coloque na geladeira por 30 minutos. Para fazer
a massa, triture o biscoito no liquidificador,
coloque a manteiga e amasse. Transfira a massa
para uma forma de fundo falso e coloque no
forno pré-aquecido por 15 minutos. Depois desse
tempo, coloque o recheio que estava na geladeira
dentro da massa e está pronta a torta de abacate.
Bom apetite!
RECEITAS

188
PÁGINA 190.

BIOGRAFIAS DAS COLABORADORAS


E DOS COLABORADORES

CLIQUE E OUÇA

Adriana Salay trabalha com alimentação e é


professora universitária. É mestre e doutoranda
em História Social pela USP. Fez estágio na
BIOGRAFIAS DAS COLABORADORAS E DOS COLABORADORES

Universidade da Califórnia Riverside, onde


estudou hábitos alimentares e a fome no Brasil. Foi
professora visitante da Unicamp-SP, na Faculdade
de Engenharia de Alimentos, e criou o projeto
Quebrada Alimentada com o restaurante Mocotó
a fim de promover assistência alimentar durante a
pandemia de covid-19.

Antonio Arnaldo Rocha é cozinheiro no CEI Eliel


Rosa e apresentou a receita de Farofa de arroz para
churrasco.

Daniela Brito dos Santos é cozinheira no CEI São


Sebastião Função e apresentou a receita de
Bolinho de frango com abóbora.

190
PÁGINA 191.

Fabiana Figueiredo é pedagoga, especialista


em educação pela PUC-Rio e em gastronomia
pelo Centro Universitário Senac-SP. Apaixonada
pela cozinha e pela educação, foi professora de
educação infantil e, durante treze anos, dirigiu
o Ateliê das Ideias, escola de culinária para
crianças, adolescentes e adultos no Rio de Janeiro.
Atualmente trabalha com pesquisa e é uma das
integrantes do podcast Treta a Dorê, em que debate
BIOGRAFIAS DAS COLABORADORAS E DOS COLABORADORES

assuntos ligados à alimentação com bom humor.

Felipe Chaimovich é doutor em Filosofia pela


USP, professor titular pleno da FAAP e diretor de
curadoria e participação do Museu Judaico de São
Paulo. Foi crítico de arte da Folha de S.Paulo entre
2000 e 2006 e curador do MAM-SP entre 2007 e
2019. Também foi curador do Festival Internacional
de Jardins do MAM no Ibirapuera, em 2010, dos
Encontros de Arte e Gastronomia no MAM-SP, em
2012, e de Cidade da Língua no MAM-SP, em 2017.
É autor de “Elementos para uma história do gosto
contemporâneo”, publicado pelos Anais do XXVI
Colóquio do CBHA, 2007.

191
PÁGINA 192.

Fernando Vieira de Freitas trabalha como


pesquisador, é doutorando em Antropologia
Social pelo Museu Nacional da UFRJ, mestre em
Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ
e bacharel em Ciências Sociais pela UFMG. Sua
dissertação de mestrado abordou a ocupação das
quitandeiras negras nos territórios da cidade do
Rio de Janeiro durante o século XIX, e, atualmente,
está concluindo tese de doutorado sobre as
BIOGRAFIAS DAS COLABORADORAS E DOS COLABORADORES

práticas alimentares de comunidades rastafári na


Jamaica e pesquisa as relações raciais, a comida e
a alimentação. Também atua como UX researcher
(pesquisador de experiência do usuário).

Ilma da Silva L. Costa é cozinheira no CEI


Fraternidade Irmã Amélia e apresentou a receita de
Nhoque de batata-doce com frango.

Jane Ribeiro da Silva é cozinheira no CEI Um Novo


Sonho e apresentou a receita de Torta de abacate
com bolacha.

Joana Pellerano é bacharel em Comunicação Social


com habilitação em Jornalismo pela UFES, mestre
em Ciências Sociais pela PUC-SP e em Comunicação
e Gastronomia pela Universitat de Vic (Espanha), eA
doutora em Comunicação e Práticas de Consumo
pela ESPM-SP. Professora no Centro Universitário
Senac-SP e na ESPM-SP, é pesquisadora da área
de alimentação e autora do site Comida na Cabeça
(www.comidanacabeca.com).A

192
PÁGINA 193.

João Luiz Máximo é formado em História pela USP e


concluiu mestrado e doutorado em História Social
na mesma instituição. No primeiro, desenvolveu o
tema cultura material e cozinha em São Paulo e, no
segundo, história da alimentação. Atualmente, tem
desenvolvido pesquisas na área de alimentação
e gastronomia e é professor de História da
Alimentação no curso de Gastronomia do Centro
Universitário Senac-SP. Desde 2020, é coordenador
BIOGRAFIAS DAS COLABORADORAS E DOS COLABORADORES

e professor da pós-graduação em Gastronomia:


história e cultura. Escreveu diversos artigos na área e
publicou o livro Cozinha modelo, pela Edusp.

Julia Cavazzini é artista, curadora e educadora,


graduada em Artes Visuais pelo Centro UniversitárioA
Belas Artes e pós-graduada em História e Cultura
da Gastronomia no Centro Universitário Senac-SP.
Trabalha com arte-educação desde 2012 em
instituições culturais, como Fundação Bienal de São
Paulo, MASP e Museu da Língua Portuguesa. Produz
trabalhos que abordam temáticas relacionadas à
pedagogia na arte contemporânea e estudos em
culturas alimentares. Fez parte da coordenação
da plataforma de entrevistas 60’3”, coordenou o
educativo da 11ª Mostra 3M de Arte e trabalhou
como tutora no curso de formação Arte Aplicada
à Sociedade da Uberbau. Atualmente, é curadora
assistente no Instituto Tomie Ohtake.

193
PÁGINA 194.

Maria Aparecida Candido Nunes é líder de cozinha


no CEI Campo Limpo e apresentou a receita Carne
de panela com milho verde e abóbora.

Ocupação 9 de Julho é um prédio ocupado pelo


Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), em São
Paulo. O MSTC tem como objetivo garantir o direito
constitucional à moradia e defende uma reforma
política e social que democratize o direito à cidade
BIOGRAFIAS DAS COLABORADORAS E DOS COLABORADORES

como um bem comum. Desde 2017 desenvolve umA


projeto de cozinha coletiva, cujo objetivo é suprir as
necessidades do MSTC em relação à alimentação
durante suas atividades e promover, por meio de
almoços abertos, uma maior visibilidade à luta por
moradia. Oferece incentivo e apoio às atividades dos
moradores, a maioria composta de trabalhadores
informais e de baixa renda, além de remunerá-los por
meio do trabalho realizado na própria cozinha.

Paula de Oliveira Feliciano é mestra em Culturas e


Identidades Brasileiras pelo IEB-USP, graduada em
Gastronomia e pós-graduada em Docência para o
ensino superior pelo Centro Universitário Senac-SP.
Atua como coordenadora dos Projetos Verakis
Brasil e, desde 2010, é professora nos cursos de
graduação e pós-graduação em Gastronomia no
Centro Universitário Senac-SP. Em 2018, foi bolsista
no programa de estágio da Fundació Alícia, centro
de pesquisa em cozinha, sustentabilidade e impacto
social e, em 2019, passou por estágio acadêmico
no Observatório d’Alimentació da Universitat de
Barcelona, acompanhando atividades na linha de
194 pesquisa de turismo gastronômico.
PÁGINA 195.

Patrícia Aparecida Lima Silva é cozinheira no CEI


Infância Feliz e apresentou a receita de Peixe ao
creme de abóbora.

Rosângela Batista Vieira de Sousa é cozinheira


no CEI Shirley Salomão Borgarelhi e apresentou a
receita de Farofa simples para adultos e crianças.
BIOGRAFIAS DAS COLABORADORAS E DOS COLABORADORES

Silvana Mendes, nascida e criada na periferia


de São Luís do Maranhão, é multiartista visual e
sua pesquisa envolve questões raciais, território,
políticas de afirmação e desconstrução de
visualidades negativas e estereótipos impostos a
corpos negros, usando como suporte artístico a
colagem, a pintura, a videoarte e a fotografia.
Muralismo e lambe-lambe também são usados
como suporte de disseminação do que acredita
como didática artística decolonial, ocupando
espaços como facilitadora de oficinas e palestras,
e participando em festivais, bienais e exposições
nacionais e internacionais.

195
PÁGINA196.

Tainá Marajoara carrega a ancestralidade


matriarcal do povo originário Aruã Marajoara.
É curadora, cozinheira, realizadora cultural e
fundadora do Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá,
e do Observatório de Cultura Alimentar e Direito
Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas
(Ocadhana), com foco na criação de métricas
e indicadores sobre alimentação a partir da
realidade local da Amazônia. Foi eleita conselheira
BIOGRAFIAS DAS COLABORADORAS E DOS COLABORADORES

nacional de cultura alimentar pelo Ministério da


Cultura e, desde 2013, passa a tratar a cultura
alimentar como salvaguarda ambiental e de
direitos, em especial para povos originários
e comunidades e outros povos tradicionais. É
pesquisadora-membro do Núcleo de Estudos em
História Oral (NEHO-USP) e membro da Latin
American Studies Association (LASA).

Walla Capelobo é mata escura e lama fértil.


Transfeminista e anticolonial, é pesquisadora
e artista. Na busca por ser semente crioula
capaz de regenerar terras invadidas, compõe a
plataforma Desculonizacion: acción y pensamiento
(México-Brasil) como coordenadora pedagógica.
Colabora também no Circulo Permanente de
Estudios Independientes (CIPEI, México-Brasil),
plataforma de investigação de contrapedagogias
e contravisualidades.

196
PÁGINA 197.

Wanessa Asfora é historiadora pela USP, onde


também concluiu mestrado e doutorado na
área de História Medieval. Foi investigadora de
pós-doutorado do Departamento de História da
Unicamp-SP, com estágio de pesquisa no The
Harvard University Center for Italian Renaissance
Studies. Atualmente, é investigadora colaboradora
do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos
da Universidade de Coimbra e coordenadora
BIOGRAFIAS DAS COLABORADORAS E DOS COLABORADORES

de área do Laboratório de Teoria e História das


Mídias Medievais da USP e da UFRJ. Seus objetos
de investigação são a história da alimentação, da
medicina e das práticas intelectuais na Idade Média
e no Renascimento.

Zainne Lima da Silva é natural de Taboão da


Serra, zona metropolitana de São Paulo,
bacharel e licencianda em Letras pela FFLCH-USP.
É arte-educadora literária, escritora, poeta,
revisora, pesquisadora e professora de Língua
Portuguesa no ensino básico. Autora de Pequenas
ficções de memória pela editora Patuá, de Canções
para desacordar os homens, e-book independente,
e de Pedra sobre pedra, da editora Popular Venas
Abiertas. Participa de diversas iniciativas culturais,
antologias impressas e virtuais, portais e revistas
de literatura. Mais recentemente, recebeu o Prêmio
Malê de Literatura para jovens escritores negros
e menção honrosa do 19º Prêmio Paulo Setúbal,
promovido pela Prefeitura de Tatuí-SP.

197
PÁGINA 198.

FICHA TÉCNICA CLIQUE E OUÇA

ARTE E SABOR Produção Executiva


Geovana Oliveira
Idealização e Coordenação
Instituto Tomie Ohtake Assistência de Produção
Jogê Pinheiro
Presidente Instituto Tomie Ohtake
Ricardo Ohtake Identidade Visual
Julia Paccola
Núcleo de Cultura e Participação
Carol Tonetti (diretora) Comunicação
Flávio Silva
Coordenação de Projetos Vaneska Rezende
Fernanda L. Beraldi
Equipe de Ação e Pesquisa Educativa
Coordenação de Acessibilidade Divina Prado
Claudio Rubino Kaya Fernanda Vallim
Jordana Braz
Assistente Administrativa Luara Alves
Jane Santos Natália Vinhal
Natame Diniz
Coordenação de Projetos Pedro Costa
Socioculturais
Vera Nunes Assessoria de Imprensa
Pool de Comunicação
Produção de Projetos Socioculturais Marcy Junqueira
Dara Roberto Martim Pelisson

Coordenação Arte e Sabor Acessibilidade


Renata Araujo Ponte Acessibilidade
Libras: Lívia Vilas Boas
Pesquisa e Curadoria Legendas: Mara Alonso
Julia Cavazzini Edição: Miriam Morales

Elaboração do Projeto Arte e Sabor


Cláudio Rubino
Maiara Paiva
PÁGINA 199.

Agradecimentos Patty Durães


Andrea Wang Catalani Zainne Lima
Antônio Arnaldo Rocha
Claudia Lopes Macedo Fotografia
Claudio Bueno Mônica Silva
Casa Preta Hub
Daniela Brito dos Santos Equipe de Apoio
Geisy Nunes Camila Araujo
Giovanna Zoia Cristina Oliveira
Ilma da Silva Costa Fabíola Gonçales
Jane Ribeiro da Silva Maisa Castro
Maiara Paiva
Maria Aparecida Candido Nunes Sonorização
Maria de Fátima de Brum Cavalheiro Gustavo Martins
Michele Gimenez Leandro Souza
Mônica Nogueira
Nutricionistas, cozinheiras(os) e Avaliação
merendeiras(os) da Rede Municipal de Stella Ramos
Ensino de São Paulo-SP
Patrícia Aparecida Lima Silva
Rosângela Batista Vieira PODCAST
Bocado de Arte
Patrocínio
Carrefour Convidadas(os)
Unilever Amilcar Packer
Bayer Ayrson Heráclito
Bruno Brito
Parceiros Institucionais do Jorgge Menna Barreto
Núcleo de Cultura e Participação Laura Lima
Kapitalo
Unigel Roteiro
Julia Cavazzini

EVENTO PRESENCIAL Produção


O calor da Escola Geovana Oliveira

Convidadas Montagem
Aline Chermoula Ricardo Miyada
Grupo Clarianas
Pé de Feijão
PÁGINA 200.

Transcrição Felipe Chaimovich


Audiotext Fernando Vieira
Joana Pellerano
João Luiz Máximo
VÍDEOS E MINIDOC Paula Oliveira
Sob o Céu da Boca Tainá Marajoara
Walla Capelobo
Convidadas(os) Wanessa Asfora
Adriana Salay Zainne Lima
Aline Chermoula
Diana Tubenchlak Organização
Igor Trindade Julia Cavazzini
Isis Gois Mariana Leme
Tia Nice (Organicamente Rango)
Patty Durães Edição de Áudios
Rodrigo Oliveira Ricardo Miyada

Produção Audiovisual Edição e Finalização de áudios


Terra Preta Produções Bruno Pucci
Áudio: Bruna Makini
Câmeras: Thiago Silva e Bruna Makini Transcrição
Direção de Arte: Francine Moura Audiotext
Assistente de Direção: Leonardo Vieira
Edição e Finalização: Kelly Carvalho Narração
Roteiro e Direção Minidoc: Lino Reis
Rodrigo Portela Lívia Simardi

Roteiro Vídeos Preparação e Revisão


Priscila Guimarães Penelope Brito

Projeto gráfico e diagramação


PUBLICAÇÃO Julia Paccola
Boca do Estômago: conversas
sobre cultura, saberes e história Ilustrações
a partir do alimento Silvana Mendes

Convidadas(os) Fotografia
Adriana Salay Mônica Silva
Ocupação 9 de Julho
Fabiana Figueiredo
PÁGINA 201.

Acessibilidade Conselho Fiscal


Ver com Palavras Miguel Gutierrez
Elaboração de roteiros: Lívia Motta Patricia Verderesi
Consultoria: Roseli Garcia Sérgio Miyazaki

Produção Núcleo de Pesquisa e Curadoria


Geovana Oliveira Paulo Miyada, curador-chefe
Priscyla Gomes
Julia Cavazzini
INSTITUTO TOMIE OHTAKE Diego Mauro

Presidente Estatutário Núcleo de Cultura e Participação


Ricardo Ohtake Carol Tonetti, diretora
Ana Karina Nogueira
Conselho Deliberativo Andrea Lalli de Freitas
Flavia Almeida, presidente Claudio Rubino
Tito Enrique da Silva Neto, Dara Roberto
Divina Prado
vice-presidente
Fernanda Beraldi
Altamiro Boscoli
Guilherme de Lima
Antonio Meyer
Jane Santos
Aurea Vieira Jordana Braz
Daniela Villela Kaya Fernanda Vallim
Fernando Morais Natália Vinhal
Fernando Shimidt Natame Diniz
Heitor Martins Renata Araújo
Jandaraci Araujo Sabrina Fontenele
João Vieira da Costa Vera Nunes
Lilia Moritz Schwarcz
Luciana Trajano Núcleo de Produção de
Marlui Miranda Exposições e Projetos
Paula Mello da Rocha Azevedo Vitoria Arruda, diretora
Renata Motta André Luiz Bella
Roberto Miranda de Lima Carolina Pasinato
Rodrigo Bresser Pereira Karina Mignoni
Sergio Gusmão Suchodolski Ligia Pedra
Sueli Carneiro Lucas Fabrizzio
Walter Appel Pedro Lemme
Ricardo Miyada
Rodolfo Borbel Pitarello
PÁGINA 202.

Administração e Coordenação Operacional


Desenvolvimento Institucional Marcos Sutani
Gabriela Moulin, diretora
Apoio
Administração Alessandro Oliveira
Bruno Damaceno Bruna Silva
Carlito Oliveira Junior Cristiane Aparecida Santos
Ollyver Silva Martins, aprendiz Edmilson Pereira
Tatiane Romani Edna Cristina Simão
Willian dos Santos Edson José
Elcio Borges
Eliane Karsch Firmino
Projetos Elza Martins
Beatriz Saghaard Fábio Araújo
Beatriz Lima de Jesus, aprendiz Jonas Pires
Leticia Ribeiro da Silva
Captação Marcelo Mariano
Julia Bergamasco Raiana Ramos
Ana Paula Silva Silvia Regina
Rafael Pinheiro Steven Washington
Tainara de Jesus Veloso
Vandoclécio Vicente
Design
Vitor Cesar Junior Técnica
Felipe Carnevalli de Brot Adilson Oliveira
Jacildo A. Paula
Tecnologia da Informação Silvio S. Lima
Wesley Pereira da Silva Jeferson Souza

Secretaria Serviços Gerais


Maria de Fátima Rocha Elizandro Ferreira
Maria Aparecida da Silva
Comunicação Maria Severina Gomes
Flávio Silva Sebastião Alves Silva
Vaneska Rezende Jairo Nascimento
Luciene Monteiro

Assessoria de Imprensa
Pool de Comunicação Zeladoria
Marcy Junqueira Aroldo Eça
Martim Pelisson Valdir Ramos
PÁGINA 203.

ACESSE
CESSE

Minidoc Podcast
Arte e Sabor Bocado de Arte

Playlist de Vídeos Eixo: Playlist versão


“Sob o céu da Boca” acessível da publicação

Clique aqui para acessar


a versão para impressão

Instruções para impressão:


Tamanho de papel A4,
duas páginas por folha,
escala: ajustar à área impressa.
PÁGINA 204.

Ilustrações
p. 37 Mapas da terra, Silvana Mendes
p. 87 Mapas da terra, Silvana Mendes
p. 139 Retrato brasileiro, Silvana Mendes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Boca do estômago [livro eletrônico]: conversas sobre cultura,


saberes e história a partir do alimento / [coordenação
Instituto Tomie Ohtake]. – 1. ed. – São Paulo: Instituto Tomie
Ohtake : Arte e Sabor, 2022.
PDF.

Vários colaboradores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-89342-23-6
ISBN: 978 65 89342 23 6A

1. Arte contemporânea - Exposições 2. Culinária


3. Gastronomia.

22-134628 CDD-700.74

Índices para catálogo sistemático:


1. Arte contemporânea: Exposições: Catálogos 700.74
Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129
PÁGINA 205
AUDIODESCRIÇÃO DO LIVRO:
BOCA DO ESTÔMAGO
CONVERSAS SOBRE CULTURA, SABERES E HISTÓRIA
A PARTIR DO ALIMENTO

Este é um arquivo PDF com audiodescrição para que as pessoas com deficiência
visual possam acessar não só o texto original da publicação, mas também o
conteúdo das imagens. Para tanto, a audiodescrição de cada uma foi embutida
no código do PDF, permitindo a identificação pelos softwares leitores e
ampliadores de tela usados por esse público. Até este momento, devido a
limitações técnicas, a melhor experiência de acessibilidade é oferecida no
ambiente Windows com o software Adobe Acrobat Reader, que pode ser
baixado gratuitamente para os principais sistemas operacionais no link a seguir:
https://get.adobe.com/br/reader/otherversions/

O texto descritivo das imagens foi inserido aqui ao final do livro para que os
usuários de outras plataformas e demais interessados possam conferir o
conteúdo, página por página.

Audiodescrição: VER COM PALAVRAS


Elaboração: Lívia Motta
Consultoria: Roseli Garcia
Formatação PDF acessível: Wagner Caruso.
Consultoria em acessibilidade: Laercio Sant'Anna.

Capa. Audiodescrição: A capa do livro intitulado: BOCA DO ESTÔMAGO,


CONVERSAS SOBRE CULTURA, SABERES E HISTÓRIA À PARTIR DO ALIMENTO,
com fundo branco, borda e título na cor azul marinho, é ilustrada no canto
superior esquerdo pela fotografia com efeito de desenho, em tons azulados, de
um cacho de bananas; e no canto inferior direito por um abacaxi com folhas
volumosas. No canto superior direito, a logomarca do Instituto Tomie Ohtake;
no canto inferior esquerdo, o nome da editora: Arte e Sabor e no canto inferior
direito o símbolo da audiodescrição composto pelas letras A e D maiúsculas e
por três linhas curvas que saem da letra D representando ondas sonoras.

Folha de rosto. Audiodescrição: A folha de rosto com fundo branco, borda e


nomes na cor azul marinho, é ilustrada no canto superior direito pela fotografia
com efeito de desenho, em tons azulados, da metade de uma romã exibindo a
polpa composta por caroços simetricamente enfileirados. No canto inferior
esquerdo, uma alface com folhas recortadas e crespas. No meio os nomes dos
convidados escritos com letras de forma azul-marinho. No canto inferior direito

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o símbolo da audiodescrição composto pelas letras A e D maiúsculas e por três
linhas curvas que saem da letra D representando ondas sonoras.

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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
ouça.

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Audiodescrição: Logomarcas da Lei de Incentivo à Cultura e PROAC Programa
de Ação Cultural São Paulo ICMS.
Patrocínio: Unilever, Bayer, Grupo Carrefour Brasil
Parceiros Institucionais do Núcleo de Cultura e Participação: Kapitalo, Unigel.
Apoio: Cidade de São Paulo Educação.
Idealização e Coordenação: Instituto Tomie Ohtake.
Realização: Governo do Estado de São Paulo, Secretaria Especial da Cultura,
Ministério do Turismo, Pronac: 203086

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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
ouça.

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Audiodescrição 1: Fotografia colorida de um grupo de pessoas admirando
uma instalação, composta por uma cadeira espreguiçadeira com colchonete
branco e por um rolo de tecido branco como um grande minhocão fazendo
voltas no chão e sobre a cadeira, em uma das salas do Instituto Tomie Ohtake.
Nas paredes grandes obras de arte. Logo abaixo da foto, do lado direito,
símbolo da audiodescrição composto pelas letras A e D maiúsculas e por três
linhas curvas que saem da letra D representando ondas sonoras.

Audiodescrição 2: Fotografia colorida de um grupo de mulheres merendeiras


que participam do Projeto Arte e Sabor, sentadas em carteiras em semicírculo,
fazendo anotações, no hall do Instituto Tomie Ohtake. Logo abaixo da foto, do
lado direito, símbolo da audiodescrição composto pelas letras A e D maiúsculas
e por três linhas curvas que saem da letra D representando ondas sonoras.

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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
ouça.

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Audiodescrição: Fotografia colorida de muitas mulheres merendeiras que
participam do Projeto Arte e Sabor, reunidas em volta de uma mesa comprida,
sobre a qual estão muitos vasos de plástico colorido e mudas de plantas, no

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hall do Instituto Tomie Ohtake. Algumas mulheres usam máscaras de proteção.
Logo abaixo da foto, do lado direito, símbolo da audiodescrição composto pelas
letras A e D maiúsculas e por três linhas curvas que saem da letra D
representando ondas sonoras.

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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
ouça.

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Audiodescrição: Fotografia colorida, tirada de cima para baixo, de uma mesa
posta, com muitas cumbucas feitas de folhas de bananeira, copos, duas panelas
de barro com tampa e um vaso de flor, sobre toalhas estampadas. Logo abaixo
da foto, do lado direito, símbolo da audiodescrição composto pelas letras A e D
maiúsculas e por três linhas curvas que saem da letra D representando ondas
sonoras.

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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
ouça.

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Audiodescrição: Fotografia colorida, tirada de cima para baixo, de um grupo
de mulheres merendeiras que participam do Projeto Arte e Sabor, sentadas em
círculo, em volta de uma mesa comprida, sobre a qual estão muitos vasos de
plástico colorido e mudas de plantas, no hall do Instituto Tomie Ohtake.
Algumas mulheres usam máscaras de proteção. Logo abaixo da foto, do lado
direito, símbolo da audiodescrição composto pelas letras A e D maiúsculas e por
três linhas curvas que saem da letra D representando ondas sonoras.

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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
ouça.

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Audiodescrição: Fotografia colorida de uma professora à frente do grupo de
mulheres merendeiras, com os braços abertos, palestrando, no hall do Instituto
Tomie Ohtake. Logo abaixo da foto, do lado direito, símbolo da audiodescrição
composto pelas letras A e D maiúsculas e por três linhas curvas que saem da
letra D representando ondas sonoras.

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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
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Audiodescrição: A montagem fotográfica com fotos em preto e branco de
uma mulher e de um menino, e coloridas das frutas e cenário, mostra uma

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mulher negra com um amplo turbante branco, vestido longo com saia xadrez de
preto e branco, blusa cinza de mangas curtas sentada, com a fisionomia séria,
segurando uma maçã bem vermelha. Ela está descalça, de frente para um
tabuleiro repleto de maçãs bem juntas, e de uma fruteira com laranjas, limões
e uma romã cortada ao meio, apoiada em um bloco de pedra, sobre chão
gramado. Um menino negro com roupas brancas está parado à direita da
mulher, com uma mão estendida na direção dela, segurando uma maçã. Ele
tem uma cesta com bananas e abacate pendurada em seu ombro. Os dois têm
auréolas de raios finos, a da mulher é amarela e a do menino é preta, em volta
da cabeça. Acima deles, um grande cacho de uvas verdes pende do alto. Ao
fundo, vegetação e céu azul com nuvens. No canto inferior esquerdo, símbolo
da audiodescrição composto pelas letras A e D maiúsculas e por três linhas
curvas que saem da letra D representando ondas sonoras.

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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
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Audiodescrição: A montagem fotográfica com foto em preto e branco de uma
mulher, e colorida do cenário, mostra uma mulher negra com um amplo
turbante e blusa brancos, saia longa e rodada com estampas floridas e um xale
listrado no ombro, sentada embaixo de uma árvore, no chão com folhagens
exuberantes e flores brancas com hastes longas e miolos vermelhos. Ao fundo,
campos verdejantes, montanhas e céu acinzentado de final de tarde. A foto da
mulher, em formato oval, é contornada por folhas de hera e tem moldura azul.
No canto inferior esquerdo, símbolo da audiodescrição composto pelas letras A

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e D maiúsculas e por três linhas curvas que saem da letra D representando
ondas sonoras.

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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
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Audiodescrição: A montagem fotográfica com fotos em preto e branco de
uma mulher e do cenário, e coloridas de frutas, flores e de uma ave, mostra
uma mulher negra com uma tiara dourada com folhas de alface adornando sua
cabeça, de vestido branco longo com mangas curtas e decote redondo, sentada
embaixo de um grande guarda-sol, cercada de flores e frutas. À esquerda, um
abacaxi maduro está sobre uma bandeja redonda apoiada em banco. Aos pés
da mulher, um prato com caquis avermelhados apoiados em um feixe de cana
de açúcar. No canto inferior direito, um prato com duas grandes pencas de
bananas e outro prato com ameixas. Um ramo de lírios brancos está sobre as
frutas, ao lado direito da mulher. Ao fundo, muitas bananas e mais um feixe de
cana de açúcar. No canto superior esquerdo, pousada na beirada do guarda-
sol, uma exuberante ave com longas penas verdes e algumas vermelhas. A
montagem tem paspatur branco, margem de papel entre a obra e a moldura,
enfeitado com arabescos, e moldura azul royal. No canto inferior esquerdo,
símbolo da audiodescrição composto pelas letras A e D maiúsculas e por três
linhas curvas que saem da letra D representando ondas sonoras.

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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
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Audiodescrição: fotografia colorida, com efeito de desenho, de um abacaxi
com volumosas folhas verdes e, sobre ele, um cacho redondo de bananas bem
amarelas. Na parte superior da obra, à esquerda, um grande pé de alface com
folhas crespas na cor verde claro. À direita uma romã cortada ao meio com as
muitas sementes vermelhas simetricamente organizadas em fileiras amarelas.

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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
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Audiodescrição: Desenho de fones de ouvido azul marinho e a frase: clique e
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CONTRACAPA.
Audiodescrição: fotografia em tons azulados, com efeito de desenho, de um
abacaxi com volumosas folhas e, sobre ele, um cacho redondo de bananas. Na
parte superior da obra, à esquerda, um grande pé de alface com folhas
crespas. À direita uma romã cortada ao meio com as muitas sementes

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simetricamente organizadas em fileiras. No canto inferior esquerdo, símbolo da
audiodescrição composto pelas letras A e D maiúsculas e por três linhas curvas
que saem da letra D representando ondas sonoras.

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