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Fotolitos e impressão - Rona Editora

Capa - Cláudio Alberto dos Santos/ Rose Oliveira


Revisão Gramatical: Padma
Foto da capa: Gabriel Marques. Dança coletiva do espetáculo Memórias - ENC. Rio de Ja-
FASCÍNIO
CIRCENSE
neiro. 2014.
Projeto gráfico/Editoração Eletrônica: Rose Oliveira
Vetores: Freepick

Ar te e Pedagogia na ESCOLA NACIONAL DE CIRCO

Cláudio Alberto dos Santos


SANTOS, Cláudio Alberto dos.
Fascínio Circense: Arte e Pedagogia na Escola Nacional de Circo.
1ªEdição
Rio de Janeiro: Editora Rona,2016.

ISBN:

Esta publicação é a primeira do Núcleo Xamã dentro de uma série dedicada à arte circense.
Este livro faz parte do projeto de pesquisa: XAMÃ - O Voo da pesquisa performática coordena-
do pelo Prof. Dr. Cláudio Alberto dos Santos (em andamento na UFSJ) Este projeto foi contemplado com o Prêmio Funarte Carequinha de Estímulo ao Circo
Dedico este livro a minha filha, Flor de Lis Caixeta dos Santos,
e a minha companheira nesta jornada de arte-vida, Luiza Fernandes
(juntos fizemos uma curva na rota por onde o circo passou).

Dedicado aos artistas circenses criativos e livres


(In memoriam de Wilson Gomes)
Cláudio Alberto dos Santos

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Fascínio Circense

AGRADECIMENTOS
Agradeço aos alunos, professores e funcionários da ENC por terem me recebido de braços
abertos e contribuído imensamente para este trabalho. Principalmente, a Carlos Vianna, Bruno
Gawryszewski, Pirajá Bastos, Walter Carlo, Edson Silva, Alexis Reyes, Marcelinton Lima e ao Mar-
cos Teixeira da Coordenação de Circo da Funarte.

A todos os entrevistados (e foram muitos) no Brasil e no exterior, meu muitíssimo obrigado!

A meu orientador do doutorado e do pós-doutorado, o Prof. Zeca Ligiéro, ao Programa de


Pós-graduação em Artes Cênicas, ao NEPAA da UNIRIO, ao generoso amigo Licko Turle e a
Casa Aldeia Viva, ao XAMÃ – Núcleo de Pesquisas Performáticas - (Luiza Fernandes, Júlio Ce-
sar Campagnolo e Fernanda Diniz), a Allen Medeiros, Lucas Campos e Jimmy Nicácio da Cia
Calangus Circus (São João del – Rei), a Paulo Henrique Caetano, Simone Bassi e a todos os
amigos da PROEX/UFSJ que apoiaram nossas diversas atividades circenses, ao Pedro Nasci-
mento, Teresa Ricou e Silvia Barros da Chapitô (Lisboa), a Donald B. Lehn, diretor da Carampa
e presidente da FEDEC (Madri), a Javier e Ana Lua (Barcelona), a Raquel Rache, Flávio Fran-
ciulli, Guy Carrara e Bruno Carneiro (Archaos – Marselha), a Gerard Fasoli, Ciryl Thomas, Danilo
de Campos Pacheco, Pedro, Catarina e Theo Baroukh do CNAC (Chalons- en-Champagne), a
Tim Roberts e Adilson Santos (National Centre for Circus Arts), a Karla Bessa, Rudá, Luiz Moretto,
Isabela Bassi, Maria Rita Antunes (Londres).

Aos meus colegas/amigos e alunos do Curso de Teatro/UFSJ e do DELAC/UFSJ.

Aos meus familiares, amor eterno por Alva Martins dos Santos, Aleixo Marinho, Jair Gonçalves,
Valda e Lucimar Martins (In memoriam), Vera Lúcia Martins, Sirlei Martins.

Aos amigos Jeane Caixeta, Alexandre Utsch, Ivone Caixeta, Gleice Fernandes, José Fernando,
Rafael Fernandes, Bruno Padilha, Ingrid Medina, Douglas Lauria, Orlando Almeida, Guto Mar-
tins, Antônio Maia Guimarães e Ivan Ferreira ( em memória).
Aos companheiros da ABRAMALA – Associação Brasileira de Malabarismo e Circo. A turma do
curso de Inglês e a professora Bruna.

Aos fotógrafos e desenhistas que gentilmente cederam os direitos autorais de suas obras.

Gostaria de agradecer imensamente ao precioso apoio da FAPERJ, através da bolsa de


pós-doutorado sênior em 2014 e, sobretudo, ao Prêmio Caixa Carequinha de Fomento ao
Circo, sem o qual, seria impossível a publicação desta pesquisa.
Fascínio Circense Cláudio Alberto dos Santos

“São as próprias pessoas que representam o que a ENC têm


de melhor.
É delas que você consegue tirar coisas maravilhosas, o afeto
e, sobretudo, a capacidade criativa de construção.
E depois dessa Escola ter tantos anos como ela tem, e ela ter
se aguentado, é graças às pessoas que aqui estão, que aqui
chegam e que saem, mas que continuam como eu, afetivamente
ligadas a ela.” (Zezo Oliveira)

Tranca do ponto de vista da Manu. Foto:Cláudio Santos em 14/07/2014


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Fascínio Circense Fascínio Circense

18 APRESENTAÇÃO

24 INTRODUÇÃO

ESCOLA NACIONAL DE CIRCO - RIO DE JANEIRO, BRASIL


33 Por mais longa que seja a Tempestade, depois vem a Bonança?
45 E vem chegando a Primavera do Circo: a ENC dos Primeiros Anos
60 Depois do Imperador Collor, a Imperatriz Leopoldina
74 Abrindo as Cortinas do Sonho - 2013 a 2016

ESPETÁCULOS /2014 - ALQUIMIAS DA CENA


88 Cabaré – Para Surpresa e Deleite Geral da Nação Internacional do Circo
125 Memórias – Admirável União de Mãos Vazias e Corações Confiantes
Demitri Manaf e Geórgia Bergamin-Trapézio Duo no Espetáculo Inversus (Dez/2013)

ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE EM SALA


188 Canastilha – Trampolim Humano

SUMÁRIO
201 Duo Acrobático – Sincronia em Plenitude
210 Antipodismo com Tranca – Pérola do Circo Brasileiro.
231 Paradas – Equilíbrio no Mundo de Cabeça para Baixo

SOB O SIGNO DA MUDANÇA


258 Buscando as Chaves que abrem os Segredos do Coração
274 Espiral e Dialética
284 Conclusões em Movimento como o Universo

REFERÊNCIAS
293 Livros
Sites/vídeos
Fontes Escritas
Fontes Orais
Fascínio Circense
Cláudio Alberto dos Santos

Dupla O Tempo em comemoração dos 32 anos da ENC. Foto: Cláudio Santos. 13/05/2014
Fascínio Circense Cláudio Alberto dos Santos
Fascínio Circense Fascínio Circense

“Te liga cara, presta atenção!”(Robby Retty)


Acendam as luzes da nossa lona dos sonhos, pois, é chegado o tempo da Escola Nacional
de Circo (ENC) celebrar sua história com grande entusiasmo e alegria.

Afinal, não é para menos. Depois de tantas e tão significativas conquistas nos últimos anos,
como a efetivação dos novos professores no quadro docente, o reconhecimento do novo
Curso Técnico pelo Ministério da Educação, bem como, o oferecimento de 60 bolsas de es-
tudos pela vigência do curso, o clima é realmente, festivo. Um picadeiro aberto, generoso e
como sempre... de muito trabalho e prazer.

É preciso saber reconhecer que este salto qualitativo é resultado de terem conseguido agar-
rar a flor do instante. Isto é, souberam aproveitar as oportunidades no momento certo. Mas,
nada veio fácil. Como já disse o poeta, o mar da história é agitado. Assim, só temos em mãos
esta Escola e estas condições hoje em dia, num momento particularmente difícil para a arte e
a cultura no país (sem falar nas outras áreas sociais) graças a um passado de lutas. Quem te

APRESENTAÇÃO
viu nos tempos do Collor e da Leopoldina e quem te vê.

Além disso, esta realidade é fruto de um sonho coletivo, um sonho que se sonhou e se sonha
junto. Afinal, este desejo profundo aliado a uma combinação de astúcia, ousadia, paciência
e perseverança, só podia dar no que deu.

A ENC está bem ativa e sintonizada com os anseios da atualidade. Seu apetite de vida abre
caminhos para novas conquistas. O novo Curso Técnico em Arte Circense é o primeiro do país
reconhecido pelo MEC. Na modalidade subsequente ao ensino médio, o curso está sendo
realizado em parceria com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de
Janeiro (IFRJ).

O tempo presente é sua matéria, a vida presente. Em movimento permanente, está bem longe
de ser um baú de antiguidades (como querem alguns). Com a garra e energia transformadora
atravessa as ameaças da contemporaneidade cortando-as como uma quilha de um navio
corta as ondas do Atlântico.

As memórias preservadas das tradições pela Escola são de suma importância, sobretudo,
porque conseguem dialogar com o presente. Isto pode ser constatado principalmente nos
temas tratados nos eventos e processos que estão em curso. A capacidade de lidar e ligar
informações diferentes de maneira rápida e fazer sínteses a partir disso, demonstra um sinal
inequívoco da vitalidade da Instituição.

Milhares de pessoas passam ali em frente da ENC todos os dias. Passam a pé pelas suas
calçadas e na passarela ao lado. Passam nos carros e ônibus lotados. Mas, dessas pessoas,
poucas sabem o que realmente acontece ali dentro de suas cercas. Uns e outros têm uma
vaga noção de que ali funciona uma escola de circo. Mas, a grande maioria não sabe que
ali é uma fonte de encanto e deslumbramento. Uma estranha realidade? Coisa do outro mun-
do, algo excepcional, maravilhoso, capaz de deixar os transeuntes de boca aberta, surpresos
e admirados? Sim, performances de tirar o fôlego e dar um frio na espinha, de fazer o coração
disparar.

Mas, será que as pessoas que passam pelas ruas desconhecem de fato o magnetismo que
exerce uma atração irresistível para os que são tocados pela magia daquele circo? Alguns
intuem a sensação de plenitude que se pode experimentar ali? Naquele terreno sagrado do
circo, a intersubjetividade inerente da arte une as pessoas, servindo de lugar de encontro, de
comunhão intuitiva, lugar da emoção, do espanto, das técnicas, das associações, das evoca-
ções e das seduções estéticas. Mas do que colocar de acordo, esta ARTE irmana. Seu campo
inclui o não racional, o indizível, a sensibilidade. Território sem fronteiras nítidas, muito diferente
do mundo da ciência, da lógica, da teoria.

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Fascínio Circense Cláudio Alberto dos Santos

Este contato com a ENC pode nos transformar. Porque ela traz em si, habilmente organiza- pretado pelos alunos da ENC/Funarte. O espetáculo, criado especialmente para o 2º Festival
dos, os meios de despertar em nós, em nossas emoções e razão, reações culturalmente ricas, Internacional de Circo do Rio de Janeiro mostrou um universo musical eclético. Foi apresen-
que aguçam os instrumentos dos quais nos servimos para apreender o mundo que nos rodeia. tado de 14 a 17 de maio na lona da Escola Nacional de Circo começando por volta de
Orquídea de fogo, lágrimas e risos cuja arte não se deixa reduzir a beleza, apenas. Ela traz 22h00min. Guy Carrara e Raquel Rache de Andrade, diretores da Archaos, uma das compa-
conhecimentos, ela é expressão, forma e apresenta um caráter enigmático. nhias francesas mais atuantes da cena contemporânea.

Talvez por isto, ela movimente e desenlace nos seus participantes um fascínio tão intenso O espetáculo Memórias foi dirigido por Brunna Mayernyik (aluna bolsista) e apresentado
quanto transformador. Alguns ex-alunos têm uma profunda gratidão pelo que aprenderam no dia 06 de junho de 2014 na ENC as 18h00min. Esta montagem contou com 39 dos 50
ali como profissionais e como pessoas. Sentem que ENC deu-lhes tudo. Mas, na minha humilde alunos aprovados no processo seletivo do edital BOLSA FUNARTE PARA FORMAÇÃO EM AR-
opinião, ela não lhes deu uma coisa: o talento. O talento foram estes apaixonados alunos, TES CIRCENSES/2013. Trata-se de um espetáculo-homenagem aos professores da ESCOLA
alunas e funcionários que deram a Escola Nacional de Circo. NACIONAL DE CIRCO e de uma pesquisa de linguagem baseada nos números tradicionais
combinada a uma leitura mais atual da narrativa circense.
E juntos, conquistaram uma coisa maior e mais importante que um diploma reconhecido pelo
Ministério da Educação. Conquistaram poder expressar a arte circense numa perspectiva Tudo na arte é mutável e ambíguo, polissêmico e complexo. A obra sempre escapa ao des-
ampla de busca, pesquisa e experimentação. Mais do que nunca o mundo precisa de uma vendamento total. Assim, a análise não busca esgotar a abordagem dos espetáculos. A ideia
arte inquieta. A Escola num esforço de superação e desafio e correndo todos os riscos foi enriquecê-los através do empenho, do interesse em pesquisar, entrevistar, filmar, fotografar,
possíveis deseja se reinventar, assumindo mais decisivamente sua responsabilidade social de examinar, detalhar e observar. Um misto de esforço e humildade como se estivesse diante de
uma maneira íntegra e consciente de seu lugar no mundo. Assumindo cada vez mais também, enigmas a serem decifrados.
um papel de liderança. Uma alavanca da emancipação do circo para além da diversão
e do entretenimento. O trabalho mais longo de etnografia e em que recolhi uma vasta gama de dados, informa-
ções e evidências empíricas foi o tempo de observação participante na ENC. Comecei a
O meu trabalho de pesquisa/escrita passou por diversas etapas. Exporei agora um pouco do fazer visitas em dezembro de 2013 e acompanhei assiduamente as aulas do primeiro e do
caminho percorrido, bem como, reflexões básicas que o nortearam, trazendo à luz alguns dos segundo período até a primeira metade do mês de setembro, bem como, o funcionamento e
procedimentos efetuados e o por quê de suas escolhas. o dia-a-dia como um todo da Instituição.

A escolha da Escola Nacional de Circo como o personagem principal desta história, aconte- O amor move. Entre 18 de setembro e o final de outubro de 2014, com a ajuda da pesqui-
ceu de forma intuitiva e natural. Sua saga de resistência e superação, na época já significava sadora Luiza Fernandes, foi realizado todo o trabalho de campo planejado para o exterior,
muito para mim e imaginava, para o ensino do circo no Brasil, como um todo. envolvendo inicialmente cinco escolas de circo europeias. Foram visitadas três escolas pro-
fissionalizantes (equivalentes ao nosso ensino médio) Chapitô - Escola Profissional de Artes e
O amor é inquieto. Depois de esperar por alguns anos para realizar tal sonho, finalmente em Ofícios do Espectáculo (Lisboa – Portugal), Escuela de Circo Carampa (Madri – Espanha),
2013, consegui o afastamento pelo período de um ano do cargo de professor adjunto/DE, Escuela de Circo Rogelio Rivel (Barcelona – Espanha); duas escolas de ensino superior de
no Curso de Teatro/DELAC/UFSJ, bem como, fui contemplado com uma bolsa sênior da FAPERJ circo, o Centre National des Arts du Cirque (Chalôns –en-Champagne - França) e o National
para realizar meu pós-doutoramento, sob a orientação do prof. Zeca Ligiéro (PPGAC/UNIRIO). Centre for Circus Arts (Londres – Reino Unido); e dois dos mais importantes espaços de cria-
Grande mestre já conhecido de outras bandas e outros carnavais. ção circense na Europa, La Central del Circ (Barcelona – Espanha) e Cia Archaos – CREAC
(Marselha – França). Ainda aproveitamos a oportunidade para participar do CIRCA - Festival
Desse modo, com tal apoio, mudei de São João del Rei, no início de 2014 para a cidade do de Circo Atual (Auch – França). Evento anual que reúne propostas circenses da atualidade e
Rio de Janeiro. Durante o seu primeiro semestre (20/01 a 11/06) acompanhei cotidianamen- espetáculos de várias escolas de circo da Europa.
te as seguintes aulas na ENC: Antipodismo - Tranca, com o Professor Pirajá Bastos, Paradas,
com o Professor Edson Silva, Duo Acrobático com o Prof. Marcelinton Lima e Canastilha com Na rápida, mas intensa viagem pelos quatro países (Portugal, Espanha, França e Reino
o Prof. Alexis Reyes. Unido) buscamos ampliar a visão sobre processos de ensino/aprendizagem, pesquisar as
instalações, dinâmica e funcionamento das escolas e espaços de criação, bem como, fazer
O acesso às aulas e a autonomia de trabalho por toda Instituição foi possibilitado pela gen- a coleta do material que fosse acessível nos acervos e bibliotecas que dialogassem com
til e receptiva acolhida de Bruno Gawryszewski, de Carlos Vianna Leite e de Marcos Teixeira, os objetivos do estudo.
na época, membros da divisão pedagógica e da direção, respectivamente. Nesse período,
realizei diversas filmagens e fotografias de inúmeros eventos e atividades, entre as quais, os Um dos princípios fundamentais desta abordagem foi a importância dada ao trabalho empí-
espetáculos Cabaré e o Memórias. Nesse período, embro que fiz muitas anotações no diário rico (prático) na construção do conhecimento artístico/científico. Esta opção se ligou a uma
de campo, entrevistas com os participantes das aulas e espetáculos. percepção que valoriza o modo de conhecimento fundamentado na observação direta dos
comportamentos sociais a partir de uma relação humana. Desse modo, a pesquisa de campo
Escolhi refletir neste livro sobre estes dois espetáculos para evidenciar a importância da in loco possibilitou a construção de um conhecimento mais livre das armadilhas das generali-
dimensão artística na constituição dos processos educacionais da Escola. Embora, a ENC zações fáceis, das camisas de força teóricas.
cobre prontidão, força física, velocidade, flexibilidade, exigindo o treinamento exaustivo
de várias modalidades por parte de seus alunos, isto não transforma eles em “meros atle- Este livro foi pensado para estudantes, professores, pesquisadores, profissionais de circo e das
tas”. A participação em espetáculos e a criação de números é constante, acrescentando artes cênicas, bem como, pessoas em geral, interessadas no assunto. Ou seja, não se destina
à formação deles, dessa maneira, aspectos ligados à estética, sensibilidade artística e apenas a um público especializado. Nesse sentido, a linguagem busca aliar o rigor da pes-
composição cênica. quisa universitária com uma forma mais acessível e fluida de escrita.

Explico a você. O Cabaré foi dirigido por Raquel Rache de Andrade e Guy Carrara e inter- Além de optar pela transcrição literal dos documentos nas citações, preferi não colocar
no caso das fontes orais o símbolo (sic), por entendermos que isso soaria preconceituoso
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Fascínio Circense Cláudio Alberto dos Santos

além de tornar a leitura desagradável.

A ENC foi e é uma feliz e apaixonante descoberta. Um lugar de humor rico, beleza requin-
tada dos movimentos, sabedoria profunda, emoção intensa e compreensão ampla. Alguém
esquece aquilo?

Tenho certeza que vai gostar de conhecer algumas faces surpreendentes desta Escola con-
sagrada internacionalmente como um dos capítulos essenciais na história das escolas de
circo, em todo o mundo. Mas, eu digo a você que não só a poeira das transformações atuais
não assentou totalmente, como novos ventos podem surgir a qualquer momento.

Enfim, o restante está a sua espera! Faça ranger as folhas deste modesto livro decifrando-lhes
as pálpebras piscantes.

Número de Quadrante Coreano. Cabaré. Da esq. para dir. Aisha, Olavo, Sofy, Samuel e Maria. Foto: Midia Ninja (rep. FLICKR) 2014.
Vamos direto ao que interessa?

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Fascínio Circense Fascínio Circense

“Tudo o que eu tenho hoje, tudo o que eu sou hoje,


eu agradeço a Escola de Circo” (Toquinho)

“Maravilhas nunca faltaram ao mundo,


o que sempre falta é a capacidade de
senti-las e admirá-las.” (Mario Quintana)

Escrever sobre a ESCOLA NACIONAL DE CIRCO, é escrever sobre uma Instituição vital e indis-

INTRODUÇÃO
pensável para se pensar o ensino circense no Brasil, na América Latina e no mundo.

É falar de um assunto para quais muitos sentem as palavras faltarem, escaparem como areia
na mão. Como é que a gente pode explicar isto? A ENC é emoção. Fundamentalmente, emo-
ção que brota à flor da pele. Embarga a voz. Enche os olhos de lágrimas. Por isso, em respeito
aos que vieram antes de mim, esta também é uma escrita à boca pequena. Aprendi cedo que
devemos falar baixo, quando falamos de amor. Assim, ao mesmo tempo é uma escrita dirigida
aos quatro e cantos, a todas as pessoas... mas, ao pé do ouvido. Não se engane. Esta é uma
história de amor ao circo, à arte e à vida.

É sempre bom lembrar que a Escola comemorou no dia 13 de maio de 2016, seus trinta e
quatro anos de existência (!). Isto é motivo de uma enorme alegria, pois a sobrevivência de
uma Escola de Circo com um grupo de professores, mais ou menos estável por tanto tempo
no Brasil, pôde ser responsável, neste caso, tanto pela manutenção de um polo de criação,
experimentação e aprendizado artístico quanto pelo desenvolvimento de ideias e procedi-
mentos que configurem metodologias específicas / próprias de ensino artístico.

Por ser uma grande referência na área, a Escola exerce uma atração irresistível em alunos
vindos dos mais diversos lugares. Ela já recebeu e recebe em seus processos seletivos, can-
didatos vindos da Argentina, Peru, Colômbia, Equador, Bolívia, Chile, Panamá, Estados Unidos,
Portugal, Bélgica, França, entre muitos outros países.

Seguramente, mais de três mil alunos passaram pelos seus cursos de formação e reciclagem.
O talentoso Luiz Carlos Vasconcellos, o palhaço Xuxu, foi um destes. Muitos ex-alunos atuaram
em circos e companhias como o Cirque du Soleil, Ringling Bros Circus, Barnum and Bailey, Cirkus
Dannebrog, Circo Rolando Orfei, Circus Krone, Circo Medrano, Cirque Pouce, Cia Archaos, Le
Collectif des Sens para citar apenas alguns, no exterior. Em nosso país, participaram (alguns
participam) de grupos bastante significativos como a Intrépida Trupe, Cia. Deborah Colker e
o Teatro do Anônimo.

No Brasil, foi somente a partir dos anos 70, com a Academia Piolin de Artes Circenses, fundada
em 1978, na cidade de São Paulo que as artes do Circo simultaneamente, as transformações

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Fascínio Circense Cláudio Alberto dos Santos

ocorridas em alguns poucos países do mundo, passaram a ser vistas e trabalhadas do ponto relação não existe se falta o espectador. O encontro é físico, concreto, sensorial, corporal. É
de vista do processo de ensino/aprendizagem fora do âmbito familiar e do espaço da lona. algo muito antigo, mas nem por isso, obsoleto. Debaixo da lona ou a céu aberto, estas artes
Isto significou que deixaram de ser um saber apenas transmitido exclusivamente no interior são raros abrigos da associação de seres humanos e da reunião de pessoas com interesses
das famílias circenses tradicionais, e passaram a ser um conhecimento tratado e desenvolvi- estéticos/éticos comuns.
do também nas escolas especializadas, dando abertura a um maior número de interessados,
democratizando o acesso e ampliando assim, de forma exponencial, as possibilidades de Os espetáculos chegam por todos os sentidos, num exemplo admirável de percepção total. O
expressão artística. circo não desapareceu, nem desaparecerá, porque ele vive desta relação direta do artista
com o público e vice-versa. É uma via de mão dupla que oferece um prazer estético muito
A ENC é a Escola de circo mais antiga em funcionamento do país, e a segunda instituição preciso e uma vivência que jamais poderão por sua própria natureza, ser substituídos pela
pública deste caráter a ser criada, em toda a América Latina. A fundação em 1981, do INA- reprodução de uma filmagem ou a transmissão ao vivo pela internet ou na TV.
CEN (Instituto Nacional de Artes Cênicas) por Aloísio Magalhães foi um passo crucial para a
consolidação em 1982, da Escola Nacional de Circo, na Praça da Bandeira, Rio de Janeiro. Não fique distraído, nem ouse piscar! Ninguém pode garantir como será uma apresentação
ou mesmo o número circense antes de realizá-lo. Numa apresentação pode acontecer de
Ao longo destas décadas muitos alunos, professores, coordenações pedagógicas e direções, tudo, além da morte, surtos psicológicos e incêndios podem interromper a sua realização.
deixaram se envolver pelo fascínio circense da ENC. Mas, o que é, exatamente, esse fascínio?
De onde ele vem? Quem saberá... O fato é que muitos fizeram mais do que se deixar envolver Na Escola, assim como nas Artes do Circo, o corpo vivo é a sua principal matéria-prima. Ele
pelo fascínio, dedicaram grande parte de suas próprias vidas a Escola. Alguns sofreram pri- é uma presença física que surpreende pelas habilidades e perícias corporais que superam
vações materiais por fidelidade a ela. Existem histórias do arco-da-velha, fantásticas, insólitas, de longe a média ou os padrões. Mas, na Instituição a arte circense também tem conjugado
e paradoxalmente bem concretas. isso com uma linguagem que engloba aspectos ligados aos conteúdos dos trabalhos como
a discussão de questões existenciais e de problemas sociais. Enfim, uma arte completa em
Cuidado! Esta Escola é um ponto fora da curva. Ela é fora de série. Desse tronco saíram suas técnicas admiráveis, mas também nos espantos dos pensamentos, dos sentimentos e dos
vários galhos. Desses galhos saíram vários frutos. Desses frutos saíram novas sementes... Talvez testemunhos da própria existência.
seja também porque trabalhe com artes corporais extremamente vivas e sensíveis e, ao mesmo
tempo, indefiníveis e fugazes. Mesmo que as ações de ensinar/aprender arte e, particularmen- Falar da ENC é falar também da acrobata, do palhaço, do saltimbanco, da paradista, do
te, de fazer circo não contenham em si, necessariamente, algo poderoso como a esperança, histrião, da aramista, da mambembe, da contorcionista, do mágico, da antipodista, do ma-
a Escola continua sendo um porto seguro e um abrigo certo dessa arte sublime e grotesca. labarista, da trapezista... É falar dessa gente interessante, comovente, muitas vezes no fio da
Dessa forma de sabedoria e magia, dessa fonte inesgotável de prazer e conhecimento cha- navalha entre a vida e a morte. Dessa gente fascinante e sedutora. Para mim, é impossível
mada Circo. deixar de admirar o pessoal do circo. Muitas vezes me emocionam com muito mais intensidade
que o próprio mundo.
Mas, os motivos do encanto exercido pela Escola se ligam apenas ao fato da arte circense
ser algo fundamentalmente corporal e de possuir infinita riqueza em sua composição? Isto é, A primeira parte começa com uma apresentação dos vários espaços e qualidades da Escola
ela produz este deslumbre nas pessoas por colocar em cena uma arte total com elementos na atualidade. Depois, aborda historicamente a criação e os primeiros anos da ENC, mos-
artísticos da acrobacia, do malabarismo, da palhaçaria, da música, da dança, das artes trando um pouco do cotidiano das aulas, dos professores, alunos e dos primeiros espetáculos.
plásticas, da poesia, do teatro, da maquiagem, da iluminação, da indumentária, entre outros? Em seguida, discute o período que vai de 1990 a outubro de 1992, tempo em que a Escola
quase foi fechada definitivamente no governo Collor. Na sequência, vamos para o período
A ENC é um lugar onde esta arte acontece de maneira poética e visceral? Os espetáculos entre 2009 e 2012, quando a ENC mudou para o pátio da Estação Leopoldina, no Santo
produzidos pela Escola e analisados neste trabalho, por exemplo, mostram como cada apre- Cristo. Para dialogar com estas diferentes épocas levanto posteriormente aspectos e ações
sentação é única, singular, intransferível, irredutível. É arte do esforço ao efêmero, ao fluido, ao entre 2013 e 2016 que tem em comum buscar consolidar a ENC como um espaço privilegia-
invisível que resiste apenas na memória daqueles que participaram de seu ritual. Mesmo que do para a pesquisa e experimentação artísticas contemporâneas.
um espetáculo seja filmado por inúmeras câmeras e editado, ainda assim, não se apreenderá
a totalidade que o constitui. Na segunda parte do livro estão as análises e reflexões estéticas e sociais sobre dois espe-
táculos, Cabaré, que representou a escola no 2° Festival Internacional de Circo do Rio de
Sempre há um mínimo de algo novo em cada apresentação, por mais rígida que ela possa Janeiro e Memórias, espetáculo de Formatura dos alunos da Bolsa FUNARTE para Formação
ser nas marcações. A natureza momentânea da arte circense, isto é, de algo que acontece em Artes Circenses/2013. Nem reportagem ou reconstituição. Tendo como norte a abordagem
num aqui e agora, já prefigura, por si só, um caráter improvisacional na obra acabada. Por dos Estudos da Performance, busquei explicar as encenações em suas várias dimensões, numa
mais que o espetáculo de circo esteja preparado, ensaiado e pronto ele não seria capaz de totalidade e em processo histórico. Tal análise passou necessariamente pelo reconhecimento
se repetir exatamente da mesma forma, por causa da sua natureza que para se concretizar da encenação na sua emanação de energia, que atinge o espectador, reunindo, organizan-
precisa estabelecer uma relação viva entre artistas e espectadores. Esta relação varia. Em al- do e sistematizando os materiais do objeto empírico em sua plenitude durante a performance.
guns momentos pode ser mais quente, atenta, intensa e em outras pode ser mais fria e distante. Nesse momento, trata-se de captar o espetáculo por dentro, no calor da ação, “de restituir
o detalhe e a força dos acontecimentos, de ter a experiência concreta daquilo que toca o
Olha! As artes do circo são artes do encontro e da comunhão entre os que se apresentam e espectador”.
os que os assistem. Sem a presença daquele que participa assistindo, gritando ou aplaudin-
do falta um elemento chave para a própria definição do fenômeno cênico. A arte enquanto Mas, além dessas impressões quentes, abordo também um pouco do processo criativo, dos

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Fascínio Circense Cláudio Alberto dos Santos

ensaios e da recepção do público através de entrevistas com os artistas, textos e roteiros nesse espaço e tempo, como você verá.
do espetáculo, áudios, vídeos, fotos, material de divulgação, depoimentos dos espectadores,
programas, notas no diário de campo, descrições verbais, anotações de encenação, etc., na Busquei evitar uma linguagem hermética, difícil, técnica e que só os iniciados ou e especialis-
perspectiva, de ampliar as vantagens em associar técnicas, métodos e multiplicar as fontes tas entenderiam. Penso que nem sempre seja o preço inevitável da chamada “profundidade”
de informação. ou mesmo do “rigor científico ou filosófico”. Assim, vou avisando desde já. Prepare o seu cora-
ção. Você vai encontrar de tudo aqui. Inclusive de uma forma que alia o formal e o informal
Na terceira parte do livro você vai encontrar os resultados e discussões dos processos de dando vazão à sabedoria ancestral e popular. Você vai ver como a mesma Escola pode ser
ensino aprendizagem de quatro modalidades circenses ensinadas na ENC - Antipodismo com símbolo, sonho, filosofia, religião, política, amor e o bem maior da vida. Desse modo, é pulsante,
Tranca, Parada de Mãos, Duo Acrobático e Canastilha. é arte, é vibrante, é poesia, é gente de verdade correndo risco e criando o sublime, o estu-
pendo, o grotesco, o insólito e o indizível.
Percebi nesta etnografia na ENC que nas quatro aulas (e mesmo nos espetáculos) os alunos
não aprendem da mesma forma. Enquanto alguns aprendem melhor a partir de explicações, Apesar de forma muito resumida, essa introdução buscou expor também um pouco do
discutindo as etapas do movimento, outros aprendem mais facilmente quando veem a de- significativo papel do próprio fenômeno artístico enquanto dínamo do processo de
monstração do exercício em vídeo ou ao vivo, existem aqueles que aprendem fazendo, expe- ensino/aprendizagem.
rimentando as dificuldades, sensações e medos daquele exercício novo.

Consegui perceber como é importante que o professor conheça bem cada aluno e crie ma-
neiras diferentes no processo de ensino/aprendizagem, nunca usando sempre o mesmo cami-
nho. O professor tem que adaptar ou mesmo mudar as didáticas para alcançar todos ou a
maior parte dos alunos. As rotas para que vários alunos possam ter acesso ao conhecimento
Bem vindo ao mundo da Escola Nacional de Circo.
não são idênticas. Por isso, é preciso conhecer melhor as vivências e histórias dos alunos para Divirta-se!
ensinar algo que eles não sabem fazer e desenvolver capacidades esquecidas pelas suas
dificuldades.

Na observação das pedagogias usadas, de fato, constatei que os conhecimentos apre-


sentados pelos professores não estão desvinculados dos problemas relativos ao sentido e
aos fins do próprio ensino-aprendizagem, assim como, do contexto histórico. As didáticas
observadas não são do tipo que considera como relevantes apenas e tão somente os meios
e as técnicas (o como fazer os truques e movimentos). Quer dizer, não impera unicamente a
lógica de que se o professor for bem-sucedido no uso desses meios e técnicas, o sucesso do
processo educativo estará garantido.

Na ENC ao contrário dessa visão que enxerga apenas a eficiência operacional, existe bas-
tante subjetividade nas relações entre professores e alunos até pelas próprias especificida-
des do processo de ensino e aprendizagem do circo que exigem um contato corporal, uma
atenção em relação aos riscos de acidentes, entre outros cuidados.

Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia... A quarta parte se debruça sobre os significados de
algumas permanências históricas, bem como, apresenta as conclusões possíveis até o momen-
to. Assim, discute algumas conquistas e indaga sobre outras coisas, serviços e relações que
podem melhorar com um pouco mais de boa vontade e empenho. Afinal, a autossuperação,
o desafio e o risco fazem parte do ethos circense. Superar desafios é condição básica para
uma pessoa de circo. Da mesma forma, a Escola pode estar cada vez mais em movimento bus-
cando corrigir falhas, ajustar certas medidas, estabelecer novas metas. Este processo tende
ao infinito. A quinta parte traz as referências usadas neste trabalho com destaque para as
mais de quarenta entrevistas que realizei durante estes anos.

Você vai se deparar neste livro com a complexidade e os paradoxos existentes em ações
como aprender/ensinar as artes do circo. A Escola é um verdadeiro centro de um cruzamento
por onde transitam sínteses de técnicas, métodos, conteúdos, condições de trabalho, realida-
de socioeconômica dos estudantes e dos professores, formação profissional, projetos políticos
e pedagógicos, entre outros elementos e sujeitos do processo educativo. Para além do es-
paço físico da sala de aula existem várias dimensões e aspectos que influenciam a atuação

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Espetáculo Labor em comemoração dos 34 anos da ENC. Foto: Cláudio Santos. 13/05/2016.
Fascínio Circense
Cláudio Alberto dos Santos

31
Fascínio Circense Cláudio Alberto dos Santos

Por mais longa


que seja a
Tempestade,
depois vem a
Bonança?

“Aquilo é igual um filho.


Cada vez que acontece uma coisa ali dentro...
eu sinto.”
(Luiz Olimecha)

“Antigamente eu dizia: _o circo é minha vida.


Agora, eu falo: _a Escola de Circo é minha vida!”
(Jamelão)

-Rio de Janeiro, Brasil-


32
Escola Nacional de Circo Por mais longa que seja. ...

Não podia deixar de iniciar comentando primeiramente como nas epígrafes acima É óbvio que o grande Fidélis Sigmaringa, mais conhecido como Jamelão, figura
pode ser percebida a identificação da Escola com um tipo de bem maior da vida, com lendária em se tratando de ENC, sabe das coisas. A lona de fato é feita em MP
a própria vida e tudo de mais significativo na existência. 1400, isto é, um material de última geração, reforçado com fibras de trevira bem re-
A lona da ENC atualmente é um grande estandarte azul do circo brasileiro hastea- sistente a rasgos. Além disso, tem propriedades antichamas e possui sistema black-
do em quatro mastros solidamente fincados na Praça da Bandeira. -out contra raios ultravioletas.
A Escola possui edificações perenes que fazem dela um espaço permanente das Os mastaréus que ficam dentro da lona  são tubulares (50mm) e móveis. É possí-
artes do circo. Afinal, foram construídas especialmente para abrigar aulas, eventos vel retirar boa parte deles. Mas, alguns devem ficar onde estão porque senão quando
e espetáculos circenses num terreno que, além de plano, possui uma grande extensão chove aparece a popular barriga ou bolsa d’água. O sistema de tensionamento da lona
de área, englobando ainda estacionamento, área para carga e descarga, áreas de envolve fitas, catracas e cabos de aço para travamento e fixação. A beirada da lona
treino e várias salas e edificações. que circunda a tenda é armada com a vara, que segura a lona, o tirante, que puxa a
Já faz alguns anos que a lona da Escola tem capacidade para abrigar 1.344 espec- lona e a vara e a estaca que prende o tirante e está cimentada no chão.
tadores confortavelmente sentados em cadeiras de aço com assento macio dos rigores O picadeiro tem 141 m2 de área total e para melhorar a visibilidade das perfor-
da chuva e do sol. Esta tenda de circo possui estruturas adequadas e equipamentos/ mances, fica a um metro de altura do nível da plateia. Abaixo do plano do piso do
aparelhos que permitem a execução de grande parte das modalidades da atualidade. picadeiro tem o plano inferior constituído por um alçapão considerável em extensão e
O seu formato circular é o melhor para a visibilidade do público, principalmente em que possibilita vários usos cênicos e espaciais e permite entre outras coisas, instalar
termos de proximidade e do melhor aproveitamento do espaço. aparelhos diversos, além da pista de trekking para saltos, para qual inicialmente foi
projetado.
Este picadeiro já recebeu várias apre-
sentações memoráveis. Nesta Escola
de circo ele é o coração pulsante. Tem o
seu piso todo coberto por placas azuis de
E.V.A. que ficam fixas ali para melhorar
a absorção de impactos. A rigor, este pi-
cadeiro forma uma semiarena e não uma
arena, pois, a área de atuação não é en-
volvida pelos espectadores em seus 360
graus. Este também é um formato muito
antigo na história da humanidade. Ele é a
combinação de um palco retangular a ita-
liana no fundo e de uma arena circular à
frente. Assim, o público envolve o espetá-
culo pela frente e pelas laterais e a área de atuação avança sobre a platéia.
Mas, isso não impede configurações arquitetônicas e cenográficas diferentes desta
disposição proposta pelas construções em alvenaria. Estruturas sólidas e fixas podem
ser ressignificadas. Cabe lembrar, que a variação dos lugares e posições dos atuantes
e plateia depende da concepção do espetáculo que for realizado neste espaço, assim
como a dimensão cenográfica adotada.
Para o bem e para o mal, dentro da lona, além do picadeiro, os camarins e cabine
Vista interna da lona: a direita ao fundo o camarim masculino.Cláudio Alberto. ENC, 2014. técnica são feitos em alvenaria, isto é, em estrutura fixa. A cabine fica localizada em
frente ao picadeiro como é esperado. Isto é mais acertado visualmente e acusticamen-
Com um acesso principal do público, e duas saídas de emergência laterais, a co- te do ponto de vista da equipe técnica. Tanto o iluminador, quando o operador da so-
bertura é de uma grande lona azul, em ambas as faces, com 50 metros de diâmetro. noplastia têm melhores condições para perceber como a plateia está ouvindo os sons e
Sobre ela, é sempre bom ouvir o que tem a dizer o sábio e experiente mestre Jamelão vendo as imagens ali. Para não atrapalhar a visibilidade da plateia ela fica instalada
que exerce a capatazia na Escola há 32 anos: a 2,5 de altura, num plano superior com estrutura em concreto armado e possui área
de 8 m2. O acesso é por uma escada marinheiro. A lona circular com o material de
“A lona é a MP1400. Essa é a melhor que tem! Ela é mais resis- ótima qualidade (MP 1400) é excelente para a propagação do som e permite trabalhar
tente. Vem com filtro solar para não passar claridade, para não com a ausência de luz no fechamento com os panos de roda.
pegar fogo”.(Jamelão) Os camarins, feminino e masculino, dispostos ao lado e ao fundo do picadeiro,

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Escola Nacional de Circo Por mais longa que seja...

medem 23 m2, sendo que possuem espelhos, pias, banheiros com 10.30 m2 e salas
de figurino 9.90 m2. O ambiente é bem iluminado e conta com os equipamentos ne- “O bom é que a gente hoje em dia tem uma Escola maravilhosa.
cessários. Tem muito lugar que não tem um espaço assim. Perfeito! Aqui se
Há uma cortina central com no mínimo, uns 10 metros de comprimento e 6 metros tem uma estrutura muito boa. Em toda Latino América não tem es-
de altura. Esta rotunda ainda pode ser um pouquinho mais alta para vazar menos cola comparada com essa do Brasil. Não tem. Eu falo sinceramen-
luz do fundo da lona e dar um acabamento melhor para não aparecer a cabeça dos te. Não tem uma estrutura maior do que essa aqui. Não tem. Essa
mastaréus. Há quatro entradas e saídas com robusta estrutura de alumínio, segundo estrutura aqui é maravilhosa!” (Alexis Reyes Gonzales - professor)
o Jamelão é o “freche” e foi doada pela aluna da primeira turma, Raquel Rache. Ela
trouxe da França de navio, as emendas são pesadas por serem de ferro. Além de ser- “Eu acho que a ENC tem uma estrutura física absurda e um po-
vir como uma ótima estrutura para aéreos ela possui outras partes montáveis para tencial imenso no corpo de educadores”.(Alexandre Santos - aluno)
outras modalidades. No lugar onde ela está, ao lado do camarim masculino aboliram
dois mastaréus. Ela permite instalar equipamentos de luz. “Quando montaram aqui “A estrutura melhorou muito em relação ao que era antigamente.
colocaram iluminação bonita pra caramba” (Jamelão). Foi doada na época da Leo- Hoje já está com uma estrutura bem legal, com material muito
poldina e permite ainda hoje também servir como estrutura para eventos em espaço bom também”.(Andrea Satie Nohara – artista formada na ENC)
aberto.
O terreno da lona está bem localizado e é de fácil acesso. O público não encontra “A Escola tem um espaço lindo. Ela não tem aparelhos top, mas
dificuldades para chegar até ela, pois, a mesma, está majestosamente, ao lado de ela tem os aparelhos!” (Olavo Rocha – professor)
movimentadas avenidas, passarelas, viadutos e estações de trem. É um local pri-
vilegiado em termos de fluxo das populações trabalhadoras da zona norte e zona “Dificilmente um artista pode ocupar um espaço de treino, ter acesso
metropolitana. a um galpão e a um lugar onde ele possa treinar altura. Material
de segurança. Eu acho que o que mais a Escola pode proporcionar é
isso. É esse espaço de você ter uma lona de circo pra você montar teus
aparelhos. Eu consegui montar aparelhos aqui que eu não teria
condição de montar sozinho fora daqui. Um trapézio de voos, um
quadrante, uma cama elástica. Pra você montar em casa você tem
que ter uma certa estrutura pra isso. Em primeiro lugar é isso. A Es-
cola te proporciona esse espaço”. (Demitri Manaf – artista formado na ENC)

Na área externa à lona, mais especificamente no pátio à sua frente, encontram-se


também instalados equipamentos, estruturas e aparelhos durante as aulas, ensaios
e apresentações.
No térreo, começando por esta área de treino e aulas, temos os seguintes espaços
e medidas: o pátio com 423 m2 de área e pé direito de 10 metros, copa e refeitório
63,50 m2 (cada), oficina com 62m2, sala da limpeza 15.50 m2, almoxarifado 13.50 m2,

Lançamento do Edital ComunicaDiversidade do MinC. Alunos da ENC apresentando-se no Pátio da Escola com
10 m de altura, ao fundo a imponente lona azul. Foto: Cláudio Alberto. Rio. Junho de 2014.

Mas, a ENC é muito mais do que a sua lona. Da área total do terreno de 9127 m2,
boa parte é e área construída. Ao todo 4273 m2. Um espaço significativo se conside-
rarmos a realidade brasileira e mesmo internacional. Assim, não é de se admirar que
os entrevistados tenham sido unânimes em destacar esse importante aspecto. Com a
palavra, professores, alunos e artistas formados na Escola:

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Escola Nacional de Circo Por mais longa que seja...
sanitário e vestiário feminino 93.60 m2 cada um, depósito 31 m2, fisioterapia 15.50 depois como artista, do que você aprende pra se manter na vida
m2, grêmio 15.50, portaria 9.50 m2, recepção e segurança 15.50 m2 cada, sala de re- mesmo. Pra significar na vida, pra gerar sentidos, pra valorar a
uniões e vídeos 95,50m2, academia 94.50, sala de dança 128 m2. vida. Ela é de tão grande importância pras pessoas que ninguém
No segundo pavimento tem a sala dos professores 38,50 m2, uma sala de aula 38,5 consegue tirar a Escola de si. E aí todo mundo em certa medida, na
m2, a sala direção e da psicologia, com 23 m2 cada, sala multimídia 47 m2, hall 54 sua possibilidade política, tem essa preocupação: as demandas da
m2, secretaria 46 m2, atendimento 11 m2, arquivo geral 11 m2, sala da coordenação Escola. (Davi Ferreira)
23 m2, sanitários feminino e masculino de 15 m2, biblioteca 68.50 m2. Estas medidas
têm como referência as plantas baixas das edificações. Muitos são os motivos para explicar o envolvimento. Certamente esta semente não
O acervo da biblioteca tem aumentado nos últimos anos e já conta com aproxima- brota por acaso no coração das mais variadas pessoas. Um dos fatores é a capacidade
damente setecentos livros e mais dezenas revistas e outros documentos ligados às da Escola estar sempre aberta às novas experiências. Por ser constituída por pessoas
artes do circo, além de vários álbuns de fotos da história da Escola, uma videoteca de diferentes realidades e que estão abertas a diferentes processos a ENC acaba ten-
com mais de trezentas fitas VHS e mídias em DVD relacionadas ao mundo do circo. do uma grande capacidade de acolhimento não somente de pessoas, mas também das
A gravura abaixo mostra os múltiplos espaços da Escola, bem como, um pouco do novidades que elas trazem. Nesse encontro há elaborações diversas:
entorno urbano que a cerca:
Para muitos dos entrevistados nessa pesquisa, as próprias pessoas representam o “Há um diálogo, há uma discussão, e as pessoas saem não somente
que a ENC tem de melhor. De fato, observei inúmeras vezes como ex-alunos e ex-fun- com o que trouxeram, mas também com o que ficaram daqui, e vão
cionários possuem uma relação afetiva com a Escola. Eles tratam a ENC como se fos- embora, mas deixam muito de si aqui. Então, essa ida e vinda
se parte de sua família. Preocupam-se com seus rumos e futuro. Desejam melhorias. das pessoas, ela é feita exatamente porque essa Escola é construída
por pessoas que são abertas ao mundo da criação. A arte tem essa
capacidade de mexer com a alma e com o jeito das pessoas serem.
Eu acho que isso que tem feito essa Escola ser desse jeito e construir
essas relações de afeto”. (Zezo Oliveira)

Como já foi dito, mas não custa lembrar, pela ENC passaram e passam alunos das
várias regiões do Brasil, da América Latina (Peru, Chile, Argentina, Equador, Colôm-
bia), da Europa (Portugal, França, Bélgica, entre outros). Enfim, ela funciona como
um ponto de encontro de pessoas de realidades muito distintas. Essa também é uma
das dimensões da importância da Escola. Ela funciona como um polo agregador de
pessoas que produzem e criam técnicas e tecnologias circenses. Então, o fato de reunir
essas pessoas proporciona aquecerem conexões com outras linguagens.
Além disso, existem outros aspectos como apontados pelo professor da Escola e
acrobata Edson Silva:

“Essa Escola é uma referência na América Latina. Todo mun-


do quer vir pra cá. Porque além das pessoas aprenderem, aqui
também é um ponto de trabalho, de arrumarem contratos pra
fora. Ao contrário de muitas Ongs por aí que querem segurar o
aluno pra eles, a gente quer é exportar aluno. Aluno começa a
ficar bom, vai embora caçar o rumo dele! A gente não cria filho
pra gente, a gente cria filho é pro mundo. O aluno é um filho.
Então, seria uma grande besteira nossa querer segurar as pessoas
Vista aérea das instalações da ENC. Projeto arquitetônico 2010. Acervo: ENC. aqui”. (Edson Silva)
“Tava numa festa de aniversário com pessoas que se formaram na Tem muita gente boa e dedicada na ENC. Muita gente disposta. A Escola oferece
ENC. E aí começamos a falar sobre a Escola. Escola, escola, es- um espaço maravilhoso para aprendizado e treino. Além disso, a formação possibilita
cola... gente tá todo mundo formado, entendeu? Não precisa mais ao aluno mais chances de encontrar trabalhos no mercado circense. Ela funciona com
disso. Mas, quando se ama e como se ama essa instituição, por- uma espécie de “vitrine”. Inúmeros alunos saíram da Escola diretamente para circos
que ela tem mais a ver com a sua formação como ser humano e em várias regiões do mundo, inclusive na Ásia.

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Escola Nacional de Circo Por mais longa que seja...

Acredito que os professores são profissionais capacitados para entender e desco- O depoimento do Davi Ferreira é bastante representativo de como o fato de ser
brir com os alunos. Vale ressaltar que um dos pontos que torna essa Escola tão fas- pública torna a ENC um local mais propício ao fomento do circo na perspectiva da
cinante é justamente a garra do alunado. Tanto os antigos, quanto os que entraram coletividade, do uso comum e da posse de todos. Nessa ótica, o espaço público como
na última seleção. É possível ver nos seus olhos a vontade de aprender, o desejo de a Escola tem mais condições de garantir princípios como o da impessoalidade e da
autossuperação, a busca pelo sonho. universalidade desde que satisfeitas as condições legais as pessoas podem ter acesso
Segundo o Olavo Rocha: ao espaço sem discriminação de qualquer ordem.
“Ela não possui aparelhos top, mas ela tem os aparelhos! A Escola oferece um tipo de serviço público que deve ser estendido ao maior nú-
E gratuito, né? Você não tem que pagar. Eu estou aqui todo dia mero possível de interessados, sendo que todos devem ser tratados isonomicamente.
e no que eu puder ajudar, o que eu puder carregar, estou super O acesso a Escola deve atender as necessidades da coletividade e não de indivíduos
disposto para tentar tornar isso daqui melhor.” (Olavo - professor) isolados. Embora, seja um espaço público, é óbvio que existem restrições ao acesso
e à circulação dentro da Instituição. Seja por questões de segurança e organização
A Escola pode não ter as tecnologias mais inovadoras no campo dos aparelhos re- a presença de pessoas que não sejam alunos ou funcionário é controlada e sujeita a
centes, mas possui os aparelhos fundamentais necessários a uma boa escola de circo. certas restrições como também acontece com outros edifícios públicos (hospitais, ins-
Muitos dos quais os alunos dificilmente teriam acesso para estudar ou para treinar tituições de ensino, prefeituras, fóruns, entre outros).
se não fosse a gratuidade do ensino. Num país de extrema desigualdade social como Muitos entrevistados ressaltaram o fato de que o caráter gratuito e público da Es-
o Brasil, a arte circense não chega a todos. As condições necessárias para que as pes- cola favorece o treinamento circense através de uma maior disponibilidade dos espa-
soas assistam espetáculos ou ainda inventem seus próprios fins e se tornem sujeitos ços e aparelhos. Pois, dificilmente artistas em início de carreira conseguem ter acesso
da cultura e da arte e não seus objetos, ainda estão longe de serem as ideais. a um pátio, a uma lona e outros lugares onde eles possam treinar altura (aparelhos
O acesso ao circo enquanto aluno e criador depende de circunstâncias materiais, de acrobacia aérea), e podem contar com os materiais de segurança. Ficar nas alturas
de meios concretos, enfim, de condições econômicas. Portanto, o caráter gratuito con- é uma paixão e uma atividade de risco. Algo que produz adrenalina e faz alguns estu-
tribui para uma maior democratização do fazer artístico circense e para inserção des- dantes estarem prontos para o combate já as sete da manhã:
ta arte na sociedade mais ampla, sem quaisquer tipos de discriminações econômicas.
Com a gratuidade há possibilidade de que um maior número possível de pessoas “Eu acho que o que mais a Escola pode proporcionar é isso. É esse
em termos de abrangência social conheça a parte fundamental da aventura cultural espaço de você ter uma lona de circo pra você montar teus apare-
que é a criação artística, distanciada milhões de anos-luz da experiência passiva da lhos. Eu consegui montar aparelhos aqui que eu não teria condição
contemplação, da recepção. O ensino gratuito contribui dessa maneira para que as de montar sozinho fora daqui. Um trapézio de voos, um quadrante,
pessoas desfavorecidas economicamente não sejam excluídas do saber circense de WWuma cama elástica. Pra você montar em casa você tem que ter
qualidade como o oferecido. Além disso, o ensino do circo é um dever do Poder Público uma certa estrutura pra isso. Em primeiro lugar é isso. A Escola
e um direito do cidadão, devidamente pago de forma direta ou indireta pelo usuário/ te proporcionar esse espaço. Em segundo, as pessoas pra te ensinar.
contribuinte através dos impostos, taxas e tributos. Isso aí é fundamental. A estrutura junto com o grupo docente aqui
Outro aspecto que chama a atenção na Escola Nacional de Circo, é que além de acho que é o presente pra quem vem pra cá. Fora isso a oportu-
gratuita, ela é pública: nidade de poder interagir com artistas do Brasil todo. Essa troca
aí é a recompensa maior pro artista. A oportunidade de acessar
“Eu me formei o ano passado, (2013) mas, tenho o espaço como material que você não tinha conhecimento. Isso aí que a Escola
referencia pra prática e o desenvolvimento da minha rotina de proporciona é muito bacana”. (Demitri)
treino e de produção artística, né? No caso, no Rio de Janeiro
outros lugares são privados, outros lugares exclusivos de deter- Durante o período que estive na ENC, fiquei impressionado com o acervo de apa-
minadas companhias, determinados grupos. E aqui é um espaço relhos e de materiais que já havia nela e os outros que foram elaborados nesse tempo.
que você tendo seriedade no desenvolvimento da sua atividade Os alunos vêem vários aparelhos de diversos lugares e a partir disso criam os seus
profissional você tem um respaldo mínimo, como eu tenho, pra próprios aparelhos e ferramentas. Desse modo, a ENC abre muitas possibilidades
dar continuidade nessa estruturação de um processo que levam para o circense em formação. É sempre bom lembrar que durante muito tempo da
anos, senão décadas ou uma vida toda. Então eu me formei, mas nossa história as pessoas não tiveram a opção de ir para uma escola pública e gra-
eu preciso ainda, não voltando pra São Paulo, ter aqui como re- tuita aprender e treinar as artes do circo. Ainda que os candidatos tenham que fazer
ferência. Então eu sigo na Escola até o final desse ano, que é o testes e provas para o ingresso na Instituição, o fato é de que há a garantia desta pos-
tempo que eu preciso (...). Nesse aspecto é fundamental porque a sibilidade de aprender circo, mesmo não sendo membro de uma família de circenses.
Escola é uma instituição pública a princípio aberta pras pes- Esta oportunidade conquistada historicamente das pessoas poderem fazer o que
soas que tem o intuito de produzir seriamente, profissionalmente, realmente gostam é, sem dúvida nenhuma, uma oportunidade que não tem compa-
receber e abarcar essa demanda”. (Davi Ferreira) ração:

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Escola Nacional de Circo Por mais longa que seja...

“Eu saí de um mercado que foi o mercado da administração, fiz pode fornecer parâmetros e bases para o processo de ensino-aprendizagem de uma
curso de administração na universidade, hoje eu posso dizer pra maneira mais ampla. É uma missão nobre contribuir neste nível para a formação de
você que eu faço o que eu gosto sabe? E que eu consigo viver e sobre- futuros circenses.
viver, porque são coisas diferentes, fazendo o que eu gosto. Mas eu A Escola, apesar do nome, no fundo tem um alcance internacional, pois histori-
sei que ainda existe dentro da minha própria classe dificuldades camente recebeu e recebe alunos vindos de vários países. Ao mesmo tempo, seus
nesse fazer, mas eu acho que a Escola te permite essa possibilidade, ex-alunos vão estudar em outras escolas de circo ou trabalhar em companhias e em-
e isso pra mim é um ganho feliz que o país tem com isso. Mas é presas circenses pelo mundo. Muita gente passou de vários lugares e deixou marcas.
uma relação da sociedade/mundo, ela tem conseguido compreen- Influenciaram a Escola. E como a influência foi recíproca:
der o circense como uma profissão. Antigamente isso não era visto
e a Escola defende essa bandeira, e eu acho que é legal, eu acho “Ela influenciou a cena teatral, ela influenciou a cena da
que em potencial é o que ela tem melhor a oferecer, ela te dá a possi- dança ela influenciou o que a gente passou a chamar de novo
bilidade de você fazer o que você quer, de você fazer o que você circo que eu prefiro chamar de circo contemporâneo, que não
gosta e você ser respeitado por isso”. (Alexandre Santos - aluno) é tradição, que não necessariamente é feito num picadeiro, mas
que é circo (...). E essa mistura foi riquíssima não só para o Rio
Além disso, o que é que a Escola traz de permanente na história do circo brasileiro? de Janeiro, não só para o Brasil, não só para a América Latina”.
Por que representa uma instituição tão importante para a formação do circense no (Alice Viveiros de Castro)2
Brasil?
Durante muito tempo ela tem formado novos circenses, com uma série de dificul- Sem dúvida, que a pesquisadora e batalhadora pelo circo, Alice Viveiros de Castro
dades, um série de limites, mas ela tem formado. Ela tem cumprido um papel único está coberta de razão ao reconhecer a decisiva influência da Escola em muitas com-
no Brasil. A institucionalização propiciou e propicia esta vida longa e a estabilidade panhias e grupos cênicos país a fora. Mais do que isso, de como também houve um
se comparada a outras experiências de ensino do circo. processo de troca, intercâmbio, de “mistura”. Nesse sentido, vale lembrar o Franciulli
Para o ex-diretor da Escola: quando ressalta em sua pesquisa que a criação da Escola Nacional de Circo “foi sem
dúvida o grande marco e de grande importância, sistematizando o ensino de números
“Então eu acho que a primeira importância dela é de marcar poli- tradicionais circenses e embasando tecnicamente todos os grupos que se formavam. O
ticamente pro Brasil que existe uma Escola de Circo, e que se existe Anônimo, a Intrépida, As Marias da Graça, a Cia do Público, os Irmãos Brothers e o
uma Escola de circo pertencente a uma instituição federal é porque extinto Atrupelados tiveram na Escola de Circo grande apoio.”3
essa linguagem é importante. Então aí a gente passa uma de- O testemunho a seguir Carla Dias e Ignasi Baldero é bastante significativo de
fesa política mesmo da Escola. Assim como o teatro, a dança, as como o aprendizado oferecido pela instituição possui desdobramentos não só profis-
artes plásticas, a música tem suas escolas, seus níveis de formação, sionais, mas abarcando toda a existência:
inclusive chegando até a Universidade, o circo ele tem uma escola
reconhecida pelo Ministério e que, portanto valida ele como lin- “Apesar de termos estados sempre envolvidos com outras áreas
guagem, evidentemente o que tem é pouco. Oxalá tenhamos várias artísticas, não acreditamos que a ENC, sendo uma escola tradi-
escolas federais, vários cursos profissionalizantes, e quem sabe al- cional, tenha nos reprimido, ou nos limitado artisticamente. Pelo
gum curso superior no futuro? Então o caminho ainda é longo, só contrário, temos um imenso respeito e credibilidade na escola,
o fato de ter uma, que é a Escola Nacional de Circo, representa o e nos professores que ali estão. Talvez haja um certo saudosismo
reconhecimento como parte do patrimônio brasileiro, e isso é de de nossa parte, mas o sentimento é extremamente verdadeiro. Não
uma importância capital para o futuro do circo”.(Marcos Teixeira) há um só dia em que não nos pegamos a recordar a Escola, ou os
professores ou mesmo os amigos. A experiência que estamos tendo
O reconhecimento de pelo menos uma escola de circo pelo Ministério da Educa- como professores e o contato direto com pessoas da área, que tive-
ção, no Brasil, de fato ainda é muito pouco, mas representa um grande avanço nesta ram outra formação, faz-nos pensar que o mais importante que
perspectiva, ao configurar além da responsabilização do Estado em manter esta ins- a técnica ensinada, é o sentimento de quem a transmite, a famosa
tituição o direito da sociedade de ter acesso público, gratuito e de qualidade ao ensino alma do circo; que temos certeza que está aí, na ENC, e que
circense e receber um diploma chancelado pelo MEC. de uma forma ou de outra faz parte da vida de todos aqueles que
A dimensão institucional confere à Escola um caráter mais permanente e estável um dia tiveram uma relação ‘íntima’ com a Escola. A nossa for-
para a transmissão dos conhecimentos, técnicas e experiências ligados ao mundo do mação não foi só técnica, mas aprendemos a conhecer e acima de
circo. Nesse sentido, tem um papel fundamental no país nesta modalidade de ensino tudo compreender, essa magia que transborda no olhar de nos-
vocacional, orientada para a integração do aluno no mercado de trabalho e na socie- sos professores ao relembrar uma estória, ou mesmo uma peripécia
dade enquanto cidadão ativo. Isto é importante para o futuro do circo porque a ENC no trapézio”. (Carla Dias e Ignasi Baldero)4

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Escola Nacional de Circo Cláudio Alberto dos Santos

E vem chegando
Estou plenamente de acordo que o essencial do que é ensinado é quase invisível.
Os dois tocaram no ponto chave. Na pedra de toque. O mais vital que pude presenciar
ali foi “essa magia que transborda no olhar”. Sim, um brilho. Uma paixão visceral
por parte de alguns professores especiais. Iluminados. Uma entrega e uma dedicação
dignas de qualquer sacerdócio.
O artista Rafael Munhoz, (ex- integrante do Cirque Du Soleil e aluno formado na
Escola) consegue traduzir este fascínio de uma forma bastante precisa:

“Eu aprendi a amar o circo de uma forma diferente, sabe?


a Primavera
do Circo:
Os professores, por serem de circo tradicional eles dividem
com você uma experiência que você não tem numa escola de
circo da Europa, onde a maioria dos professores não é de circo
tradicional. Então, eles te ensinam a amar o que você tem ali

a ENC dos
(...). Tudo a respeito da Escola de Circo hoje em dia me emocio-
na, sabe?” (Rafael Munhoz) 5

Primeiros Anos
“Eu acho que se divide o circo no Brasil, em antes e
depois da Escola.”
(Ângela Cerícola)

A alegria de fazer parte da Escola de Circo é eterna!


(Katya Guimarães)

“Se eu falar que eu tô bom, eu não tô bom.


Se eu falar que eu tô bom é mentira minha.”
(Beto Silva, aos nove anos de idade)

“A vida do artista circense está cada vez mais difícil,


pois a sua é uma arte que está muito desincentivada.
A situação desestimula as gerações mais jovens, que
não querem continuar no circo e se deixam atrair por
outras atividades. Com a escola, pode haver uma mu-
dança, pois queremos chamar a atenção da iniciati-
va privada, do público e das autoridades estaduais
2 Depoimento no filme Meu lugar de origem de Thiago Valente, 2015.
3 FRANCIULLI, Flávio. Laboratório Acrobático: Adequação Circo / Teatro. Rio de Janeiro: Universidade do Rio de Janei-
para o fato de que o circo faz parte da cultura bra-
ro, 2000. (monografia especialização). p.16. sileira e, portanto, deve ser incentivado”.
4 Trecho de entrevista transcrita de: FRANCIULLI, Flávio.Op cit. (Orlando Miranda)
5 Este trecho de depoimento está no filme de Thiago Valente: Meu Lugar de Origem. 2015.

44 45
Escola Nacional de Circo E vem chegando a Priimavera...

É possível falar numa identidade da ENC? Quais foram os momentos mais trági- ENC. Foram para Brasília e apresentaram para o Ministro da Educação Ney Braga
cos, difíceis, gloriosos, triunfais? Como estas histórias podem iluminar as forças con- que também aprovou de imediato.
traditórias e o desejo de mudança do presente? Será que há mais profundidade nas Orlando deu a ideia de fazer no espaço da grande garagem que havia na Praça da
memórias do cotidiano da ENC do que supomos? Pode acontecer de voltar atrás ser Bandeira para um único carro do ministro. Embora, o ministério não estivesse mais
uma maneira de seguir em frente? Será que estas lembranças podem nutrir a Escola no Rio:
na atualidade, tornando-a mais apta a enfrentar as aventuras e perigos que ainda
estão por vir? Que será do futuro? Por hora, vamos ver as surpreendentes novidades “Eu falei com o Ney Braga, o Ministro.
do passado. É uma garagem imensa pra guardar só
O tempo era escasso e difícil para o circo no final da década de 70. O tom era um carro. Ele disse: - Nós não temos co-
apocalíptico. Não é exagero. A epígrafe acima de Orlando Miranda traz um pouco do nhecimento disso não. Pode tirar o meu
sentimento da época (zeitgeist). Alguns falavam com grande tristeza de uma “profis- carro de lá e pode ficar com a garagem.
são agonizante”. Portanto, mãos à obra. Diante de uma crise não se pode ficar com a O vício das pessoas era uma coisa im-
postura de braços cruzados. A resposta está na ação. É preciso criar uma dádiva já pressionante. Não largavam aquilo!
no início da década seguinte que verta o riso de pupila em pupila, de boca a boca. Os Era um posto de gasolina lá dentro,
artistas ansiavam por uma vitória. Algo que conciliasse na cidade do Rio de Janeiro, de tal maneira que era uma ladroeira,
o poder das tradições circenses e o mais que merecido apoio do Estado - e de uma uma malversação do espaço público, fa-
forma consistente. A Escola era uma esperança de transformação do cenário. ziam daquilo o que eles queriam. Um
Assim, do presságio à técnica e da precisão ao sonho muito trabalho foi realizado. estacionamento. Levou mais de um
Pessoas somente com os pés firmemente plantados no chão não alcançariam o céu ano, mesmo com o ministro dando or-
como elas alcançaram. Pessoas só com a cabeça nas nuvens, também não. Foi preciso dem, pode pegar lá, não tem problema,
paciência e ousadia. Foi preciso diálogo e ação. tem a minha ordem.”
Com a palavra, uma dessas pessoas indispensáveis, Luiz Olimecha: (Orlando Miranda)7

“A ideia de criar uma escola para formar os chamados ‘artistas A confusão entre privado e público no Brasil tem uma longa história. Até hoje é
de variedades’ era bastante antiga. Minha família, que vive em bastante comum ver o tratamento daquilo que é de todos, como sendo algo pessoal e
circo desde 1800, já se batera muito por isso. Quando, em 1975, o particular. Pessoas estavam tirando vantagens usando como estacionamento e posto
assunto, graças à interferência e ao entusiasmo de Orlando Miran- de gasolina. Orlando denuncia como para criar uma Escola de circo e fazer uso repu-
da, começou a ser discutido em nível de Governo, decidimos que o blicano dos bens e espaços encontrou obstáculos de interesses escusos. Há empecilhos
melhor seria construir um circo permanente, do próprio Serviço mesmo quando é para unir o útil ao agradável. É importante lembrar que o produtor
Nacional de Teatro, e dentro dele fundamos a primeira escola teatral Orlando Miranda, exerceu a direção do Serviço Nacional de Teatro e atuou
circense oficial”. 6 como mediador político no campo da cultura no período entre 1974 quando se deu iní-
cio a um processo de distensão do regime vigente com o ingresso de Ernesto Geisel na
Luiz Olimecha. Você tome nota deste nome. Combinado? Metaforicamente, ele fez Presidência da República e uma fase de redefinições das políticas culturais com a in-
mais do que limpar o terreno e plantar. Ele cuidou para que a semente germinasse. dicação de Ney Braga para o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e 1979 quando
Mas, isto também só foi possível porque do ponto de vista dos caminhos burocráticos, se efetivou um agrupamento das agências de fomento às artes com a criação do Ins-
ele e os parceiros de empreitada e aventura, aproveitaram o momento certo da trans- tituto Nacional de Artes Cênicas (Inacen) e Fundação Nacional de Artes (Funarte).8
formação do antigo SNT (Serviço Nacional do Teatro) para o INACEN (Instituto Na- A criação da ENC não era unanimidade no meio circense. Houve certa resistência
cional das Artes Cênicas), pois com a nova estrutura foi criado o Serviço Brasileiro de daqueles que consideravam que o aprendizado do circo só poderia acontecer dentro da
Circo, que por sua vez pôde responder pela Escola que ficou a ele subordinada. Até família e no circo, não numa escola.
mesmo estas mudanças tiveram a participação do Orlando Miranda, que antes disso, Havia os segredos, os truques que eram passados de geração para geração somente
em 1975, já havia convidado o Luiz Olimecha, que acabara de deixar a presidência do dentro da família. Olimecha argumentava que a ideia era abrir uma Escola para os
Sindicato dos Artistas, para assessorar o Serviço Nacional de Teatro na área do circo. filhos de circenses e dar uma oportunidade para os interessados em geral em ingres-
Quem não arrisca, não petisca. Assim, a proposta foi feita pelo Luiz ao Orlando sar no mundo do circo.
que abraçou a ideia desde o início. Ele orientou para fazerem um projeto e levar a Portanto, a ideia da Escola foi tomando forma com contribuições diversas e ain-
proposta para o alto escalão em Brasília. Luiz fez uma maquete do que poderia ser a da num período de poucas liberdades democráticas. Os arquitetos Marcos Flaksman

6 Depoimento presente no texto do extinto Serviço Nacional de Circo do antigo INACEN – que historia a criação da 7 Trecho de entrevista In: Documentário: Meu Lugar de Origem. Direção de Thiago Valente. Avec Produções. 2015.
Escola até a formatura de sua primeira turma. 8 GARCIA DE SOUZA, Miliandre. “A gestão de Orlando Miranda no SNT e os paradoxos da hegemonia cultural de esquer-
Ver: http://www.funarte.gov.br/circo/escola-nacional-de-circo-um-historico/ da.” Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011.

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(também importante cenógrafo teatral) e Carlos Pini transformaram os sonhos em Na inauguração o ministro já era o Rubem Ludwig. A data escolhida teve um ca-
um projeto arquitetônico. A parte da lona foi projetada pelo Olimecha. Através do ráter simbólico. Viam o 13 de maio como uma data que poderia também representar
apoio do Ney Braga, que segundo ele mesmo, tinha vocação para trapezista, as obras a alforria do circo de seu fardo de descaso público. Luiz convidou vários artistas, au-
começaram em 1978, no espaço atual, o dificílimo terreno da garagem de um carro do toridades e especialmente o Circo Tihany que estava na tradicional Praça Onze, no
ministro que tinha virado estacionamento particular. Tiveram que retirar grandes Rio de Janeiro:
tanques de gasolina do subsolo e depois aterrarem o terreno. Os materiais, equipa-
mentos e conceitos arquitetônicos foram os mais arrojados possíveis para o período.9 “Então, eu fui lá e pedi a ele que inaugurasse a Escola de Circo e
Mas, mesmo antes da inauguração houve um período de falta manutenção que ele com toda a boa vontade, atrasou o espetáculo dele para isso”.
somado a outros fatores fez a lona do circo ser nocauteada e desabar: (Luiz Olimecha)

“Antes de inaugurar, caiu! Seis meses antes eu avisei. Esse circo Saíram várias reportagens e matérias em jornais na época. Posso citar algumas
vai cair. Tá faltando manutenção. Não tinha ninguém para man- como: “É na Escola que se vai aprender a ser de circo” do Caderno B do Jornal do
ter. Não tinha dinheiro para comprar corda nova, para comprar Brasil, “Circo se aprende na Escola”. Jornal O Globo. “Escola de circo formará artis-
cabo de aço novo. Não tinha nada. Veio um temporal. Um vento tas e dará emprego” (P. Motta); “Agora, o circo já tem sua escola”, jornais Correio do
de uns 60 quilômetros por hora e derrubou tudo!” (Luiz Olimecha) Brasil e Correio Carioca, respectivamente. Eu digo a você como foi que desde a sua
inauguração o complexo arquitetônico da Escola construído em tijolinho aparente
No Brasil, temos a infeliz prática de deixar as obras públicas virarem ruínas an- pintado da cor marrom e pilares tubulares de ferro galvanizado abrangia salas para
tes de serem inauguradas, como já notou o antropólogo Lévi-Strauss. Enfim, a lona aulas, cantina, espaço recreativo, instalações para fisioterapia, banheiros e um pe-
neste período era circular - com 50 metros de diâmetro, quatro mastros, e com lotação queno “alojamento”, entre outros.
para mais de 03 (três) mil pessoas, em função do uso de plataformas/arquibancadas. Nos anos iniciais da ENC, outros aparelhos ficavam instalados sob a lona e se usa-
Depois do “acidente” sem vítimas. A manutenção se tornou presente nesta lona mul- va bem mais o picadeiro do que hoje em dia. O picadeiro era mais alto do que o nível
ticolor, com faixas verticais brancas e azuis separadas por bordas vermelhas e no do chão e numa arena circular completa. Em volta dele ficavam as arquibancadas,
alto, detalhes tradicionais com motivos estelares na cúpula também redonda. Estilo cadeiras e os camarotes. Em cada um dos mastros foram colocadas “caranguejeiras”,
Chapéu Mexicano. Ela não tinha lençóis e os mastaréus ficavam numa altura, de que semelhante a uma lona francesa se penduravam aparelhos aéreos como o Bambu,
por volta 5 metros. A parte técnica e de segurança incluía cobertura confeccionada Corda, entre outros. Mas, para aparelhos com maiores dimensões como o do trapézio
com material anti-inflamável e antitérmico, três canhões de luz, com cinco refletores de voos eram necessários outros arranjos e organizações:
móveis em cada mastro e sofisticada mesa de iluminação para a época. Apresentava
algumas dificuldades para armar aparelhos de aéreos de voos, mas nada que não “Tudo já ficava montado e pronto para os espetáculos. Entende,
contornassem com maestria. era um circo mesmo, já pronto pro espetáculo mesmo. E os en-
Segundo o depoimento do Edilson Santos, que até hoje trabalha como serralheiro saios eram assim, no meio do picadeiro, tudo era feito dentro do
na oficina de da Escola: picadeiro. A última aula que era dada, depois de todas as acro-
bacias e aéreos e arame, era os voos, era a última aula que dava,
“Eu sempre trabalhei em estaleiro. Aí eu fiquei desempregado. Fui porque tinha a rede, então no picadeiro não podia ter mais nada”.
no Ministério do Trabalho e me mandaram para a Escola de Cir- (Maria Delizier)
co pra soldar cadeira. Vou pra lá, né? Desempregado, vou soldar
cadeira. Aí eu fui pra soldar cadeira, mas quando eu cheguei não
era cadeira nada. Era pra fazer as estruturas do circo em 81”.
(Edilson Santos)

Como pode ser visto no depoimento do Edilson, boa parte das estruturas foi feita
no próprio local e por funcionários contratados pelo setor público. O piso instalado
nas áreas externas foi o intertravado, feito de bloquete de concreto. Havia canteiros
com plantas. O picadeiro era coberto com material apropriado. As colunas que sus-
tentavam as coberturas das áreas externas eram feitas de tubos de ferro pintados de
azul e vermelhos e divididos por uma estreita faixa branca. Ficou assim até a demo-
lição completa em 2009.

9 Informações obtidas no documento que faz o histórico da Instituição. Foto exposta no refeitório da ENC na época do trabalho de campo.
Autor desconhecido.10
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Na escolha dos professores, o Olimecha viajou pelo país, pegou um de cada região e pelo aquilo e ensina da melhor maneira possível”. (Beto Silva)
trouxe aqueles que ele já conhecia há muitos anos. O diretor exigia que eles tivessem
no mínimo 25 anos de experiência de circo. Nestes primeiros anos todos os docentes vinham de uma formação empírica, fa-
O quadro de professores da ENC no ano de 1984 pode ser visto na foto. A Escola miliar e profissional ligada a vivência e ao trabalho nos circos de lona. Foi um tempo
começou só com dez professores, depois entraram mais dois: Delizier e Abelardo.Em muito mágico porque os alunos conviveram com esse clima de circo. Os professores
pé da esquerda para a direita, estão Rogério de Sá, Armando Pepino, Maria Deli- recém-saídos de circos, todos eles com muita disposição para passar o que sabiam. Es-
zier, Ubirajara Henriques, Neuza Correia, Edvar Ozon e Franck Azevedo. Agachados tavam com muita energia. Ainda estavam novos. A maioria não tinha se desligado do
na primeira fila, da esquerda para a direita: Augusto Bastos, Robby Rethy, George trabalho no picadeiro. Desse modo, vieram com aquela sede de ensinar e com aquela
Layssons, Abelardo Pinto, Luiz Sorel (professor de Dança). Eles usavam uniformes força que tinham no circo:
completos, inclusive o tênis branco como calçado oficial.
Estes professores eram e são considerados grandes mestres circenses. A maioria “Estou passando para eles tudo que aprendi nos cinquenta anos
era bastante versátil e dominava várias modalidades, técnicas e habilidades. Assim, de carreira”.(Neusa Mattos) 11
os alunos muitas vezes aprendiam aspectos diferentes da mesma modalidade a partir
das contribuições diversas deste perfil polifônico dos professores. Estas calejadas pes- Chegaram entusiasmados para a ENC. Todos tinham uma visão muito boa, em-
soas de circo passaram acima de conhecimentos técnicos uma extraordinária capaci- bora, nenhum deles houvesse tido a experiência de dar aulas formais de circo para
dade de acreditar no sonho da lona e do picadeiro. Assim ensinaram os alunos nestes pessoas fora dos círculos familiares que compunham as trupes circenses. Eles davam
anos nas três fases de formação: Curso Regular Seriado de Iniciação à Arte Circense, aulas até então para as pessoas de circo, davam aulas para os filhos, sobrinhos, netos,
Curso Regular Seriado de Profissionalização e o Curso Livre de Técnicas Circenses. parentes, enfim.
O tom nostálgico é certeiro quando as pessoas lembram-se destes tempos: O professor de doma era o George Layssons, alemão naturalizado brasileiro. Ti-
nha uma maneira toda particular para conseguir ensinar os alunos sem correrem
“Tenho saudade de todos os professores que passaram por aqui, riscos. Sabia como direcionar os movimentos e posturas. Esse professor adestrava
Abelardo Pinto, Dona Neusa, Pepino, seu Frank Azevedo, Agosti- uma leoazinha muito pequena que às vezes ficava correndo atrás dos alunos para
nho, foi professor dos meus filhos aqui, o pai do Pirajá. Tenho sau- brincar quando eles estavam aquecendo e correndo no picadeiro. Mas, o Layssons
dade de todos eles, tantos os que passaram para outra dimensão, não era professor só de Doma em jaula. Ele foi dos Walendas, aquela equipe lendá-
quanto os que aposentaram. Fazem muita falta”. (Jamelão) ria que caiu do arame com o número de pirâmide. Ele fez parte desta tradicional
família circense, que durante pelo menos dois séculos deslocou-se pelo mundo com
A Neuza Correia era a professora de Trapézio simples e de Contorção. O Robby o Circo Westfalia. Após a recuperação do acidente e uma pausa de mais de dez anos
Rethy era professor de Adágio e de Malabarismo. Carismático. Todo mundo amava veio dar aula na Escola de Arame alto, que era a especialidade dele. Além disso,
ele. Era o apresentador (mestre de pista) da Escola de Circo nas apresentações e nos também dava aula de Bambu. Na Escola ele conseguiu juntar sua paixão pelo circo
shows. Era muito divertido. O pessoal se lembra dele com muito carinho. Falava com e o conforto para a sua família:
um sotaque espanhol, mas era húngaro.
O Augusto Bastos (Augustinho) ia de bicicleta para a ENC. Ele na época já devia “Não queria que minha mulher e filhos vivessem o desconforto
ter quase 60 anos. Ensinava Jogos Icários e Tranca (Antipodismo). Era um professor das estradas, não queria para eles uma vida sacrificada e sem
que esbanjava muita técnica também. Com a idade que tinha ainda subia na Parada paradeiro”. (George Layssons)
de mãos na mesa. Todo mundo ficava impressionado.
As especialidades do Divar Ozon eram o Trapézio de Voos e a Acrobacia de Solo. Você vá escutando. Em setembro de 1984, o Jamelão (Fidélis Sigmaringa da Silva)
Ele montava os números de Dândis (acrobacias cômicas) e Voo ao mesmo tempo. começou a trabalhar na Escola como capataz. Está lá até hoje. Ele estava trabalhan-
A Maria Delizier trouxe uma técnica de ensinar a subir na força na Parada de do antes no Circo Garcia e o circo foi fazer uma apresentação na ENC, por acaso, e
mãos diferente do que era praticado até então. Praticamente todos os professores ele ficou sabendo que tinha duas vagas, uma como professor e uma como técnico. O
ensinavam Parada de mão, mas esta modalidade era coisa mais dela. Antes de ficar Abelardo Pinto pegou a vaga de professor e ele a de capataz. Jamelão já tinha viajado
bastante conhecida como professora de aéreo ela era muito marcada pela Parada de durante 27 anos, inclusive com idas para Espanha, Estados Unidos, Canadá e quase
mão. Ela ensinava uma Parada menos envergada. toda a América Latina. Nestes contratos para fora sempre atuando na capatazia.
Essa é desde então a sua principal função, embora, confeccione aparelhos aéreos, e
“O Tecido veio um pouco depois. E ela pegou como ninguém como en- tenha dado aulas de contorcionismo, palhaço, pirofagia, perna de pau, e monociclo.
sinar o tecido e passou pra todo mundo, como todo o amor e com todo o Também conhecido como “Guindaste” pelos veteranos da velha guarda, ele costuma
cuidado do bom professor. Ela tem muita responsabilidade e carinho dizer que sua força vem de muito trabalho pesado.

11 Trecho de entrevista in: LOPES, Timóteo. “A irresistível paixão mambembe”.


10 Agradeço a Rosangela Santos, Claudia Assimos e Ricardo Camillo, Carla Clark pelo help na identificação. JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, 11 de maio de 1986. N. 523. p. 26

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Segundo seu ponto de vista: na Olimecha (Toquinho) é a décima primeira da primeira fila, a Ellen Dias Pátsavas‎
é a oitava da segunda fila, Michael Rodrigues é o primeiro da fila de trás; Luiz Henri-
“A Escola modernizou, entendeu? Não tem essa de melhorou, por- que Ozon é o primeiro da segunda fila, Carla Andrea Clark, é a primeira da terceira
que se eu falar que melhorou, eu vou estar querendo desclassifi- fila, Tania Luiza Cavalcanti, é a quarta da segunda fila; Luiz Alexandre Ozon, é o
car alguém. Antigamente os espetáculos eram mais tradicional terceiro da terceira fila; Claudia Assimos, é a quarta da terceira fila, Suzi Brasileira,
, agora está um espetáculo mais contemporâneo (...) Tem muita é a sétima da primeira fila, Marcia Campos, é a nona da segunda fila, Erika Dias, é
coisa que era, mas que agora não é mais. Ultimamente, eles estão a décima da segunda fila, Marcelo de Pinho Melo, é o décima da primeira fila, Mar-
adaptando a um coisa mais atualizada, antigamente era mais tra- gareth Campos é a nona da terceira fila, Ricardo Camillo, é o décimo segundo na fila
dicional. Antigamente era mais radical nas exigências, enten- de trás (ou o primeiro da direita para a esquerda), a Raquel Rache Rachel é a terceira
deu? Era um pouquinho mais duro”. (Jamelão) da segunda fila, o Walter “Gringo” é o nono da última fila, a Fabrizia é a segunda na
primeira fila, o Leonardo é o sexto da última fila. Ainda tem a Maya Babuska, o Pau-
Jamelão aponta nítidas diferenças estéticas de linguagem dos espetáculos dos alu- lo Muniz, e a Leyde Vasconcellos, para identificar entre outros, das quarenta e cinco
nos entre as épocas, bem como, alterações no próprio nível e forma de cobranças e pessoas que aparecem na foto.
exigências por parte da Escola. Desde 84, o mestre literalmente mora na ENC. Lugar
que ele considera excelente para poder educar os filhos, com garantia de moradia e
salário mensal fixo. A única coisa que se lamenta um pouco é que ele não queria per-
der o seu trailer. Para morar lá ele teve que abrir mão do seu trailer, pois, segundo
normas da época não dava para deixá-lo na Escola, como existem vários ainda hoje.
Ao longo deste tempo pôde assistir a todas as formaturas e conhecer de perto as
várias direções da ENC. Há alguns luta com o Mal de Parkinson, mas a pressao de
mão continua, bem como, o bom humor.
Entre 82 e 86, o circo no Rio de Janeiro estava começando enquanto escola:

“Então, a referência maior sempre foi a Escola Nacional de


Circo. Nós tínhamos professores só tradicionais. O ensaio era
duro, pesado, entendeu? Todos eles eram sábios. Tinham boa
didática.”(Edson Silva)

Não era apenas o “ensaio” que era “duro”. Nesse tempo os alunos eram proibidos
de fazer shows, de trabalhar enquanto estivesse aprendendo. Havia muitos motivos
que justificavam isso do ponto de vista da direção. Os professores batiam muito o
martelo em cima disso. “Pra você trabalhar, você tem quer bom! Você tem que apren- Fotografia da Primeira Turma da ENC. s/d. Autor desconhecido. 12
der a trabalhar antes”. (Silva). Além disso, nessa época os professores que escolhiam Nota-se que o grupo dos alunos nessa época é mais heterogêneo que em outros mo-
quais modalidades ou números os alunos poderiam aprender. Certas aulas não eram mentos. No mínimo, existem dois grupos bem distintos, cada um com características
para qualquer pessoa. Com o tempo os professores se tornaram melhores também sociais bem diferenciadas, o grupo das crianças que ainda estão na infância, e o grupo
pela forma e pela atenção que ele deram para as modalidades que estavam ensinan- dos adolescentes e jovens. O maior número de pessoas é do sexo feminino, embora,
do. Vão descobrindo cada vez mais a melhor forma de ensinar. Além disso, é sempre exista equilíbrio de gênero.
bom lembrar que nesses primeiros anos, a seleção dos estudantes na instituição se De acordo com Beto Silva:
pautava basicamente em alguns atributos físicos primordiais ao trabalho corporal.
Embora, não houvesse um processo seletivo sistematizado e detalhado como na atua- “Tinha um montão de crianças a fim de fazer contorção, mesmo
lidade considerava-se importante o aluno ter alguma base. Alguns dos ingressantes sem um pouco de noção. Foi um período interessante que as crian-
tinham experiências nas artes marciais como o Kung Fu, a Capoeira, entre outras. ças ficavam correndo pelo circo enlouquecidas. As crianças podiam
Alguns tinham conquistado flexibilidade e força na ginástica e nos esportes. Para es- entrar a partir de sete anos. Era de 07 a 17, basicamente. Entrava
ses foi menos dolorida e mais fácil a entrada no mundo do circo. Muitos alunos eram uma pessoa mais velha que isso e as pessoas estranhavam. É en-
crianças e adolescentes como pode ser visto na fotografia da próxima página. graçado porque aqui na Escola na verdade não existe mais isso.
Tomando como referência o registro acima da primeira turma, sempre da esquerda A faixa etária já mudou. Enquanto a pessoa tem disposição e
para a direita, vê-se o Edson Silva, o segundo na fila de trás (quarta fila), o Roberto
Pereira Silva (Beto Silva) é o primeiro na fila da frente (primeira fila), a Ana Christi- 12 Essa foto é a do convite da Formatura da Primeira turma. Tive a ajuda da Carla Andrea Clark para identificar as pes-
soas, a quem também agradeço.

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pode ensaiar, ela ensaia. Era uma correria danada. As crianças “Sabe qual minha principal lembrança dos 3 primeiros anos da
aprontavam demais correndo de um lado pro outro, mas eram ENC? O companheirismo dos colegas (quase sua totalidade). Na
boas para os portores ensaiarem”. (Beto Silva) hora do espetáculo então, era um por todos e todos por um. Não
sei se até hoje é assim, mas éramos uma família. Nossa! São tan-
No número de Adágio (acrobacia coletiva), que, por exemplo, é um número clássico tas lembranças...” (Ellen Dias Pátsavas)
na Escola, geralmente pegavam uma criança que era bem mais leve para ser volante,
colocavam a lonja (cinto de segurança) e treinavam com ela. Segundo os depoimen- “Minhas lembranças som as melhore possível. Na escola de cir-
tos dos entrevistados o rendimento do aprendizado e desenvolvimento dos números co vivi os melhore momento da minha vida. Eu tinha 16 ano.
acrobáticos como esses era muito grande. Os alunos mais velhos também aprendiam Eu treinei muito, fui trapezista. Foi muito bom para minha vida.
com aquelas crianças. Com o peso corporal bem menor dos volantes os portôs tam- Encontrei verdadeiros amigos. Para mim foi muito importan-
bém tinham maiores condições de aprendizado e poderiam depois fazer com os adul- te porque eu fiquei morando na escola de circo por uns três
tos também aquela mesma modalidade com tranquilidade. Também devido ao peso anos. Minha mãe morava na Argentina e meu pai tinha ido para
menor e a baixa estatura era muito mais fácil segurar ou controlar os movimento garimpo. Eu estava só. Para me manter na Escola passei a estam-
das crianças, e assim, garantir uma segurança maior. É interessante notar que a par as camiseta da Escola. Foi momento bom, mas difícil. Tudo
literatura científica aponta que a melhor fase de desenvolvimento das capacidades valeu a pena. Tive a oportunidade de viajar toda América do Sul.
coordenativas motoras é até os 13 anos, seja em termos de equilíbrio, ritmo ou tempo Foi muito bom, vai ficar na minha lembrança para sempre”.
de reação.13 (Walter Zanetti – “o gringo”)
Neste processo as crianças se divertiam muito fazendo as coreografias e realizando
uma grande diversidade de saltos. Aquilo era um chamariz e tanto para criançada: Este “companheirismo” que fala Ellen e o fato do Walter ter encontrado “verda-
deiros amigos” são pistas de uma tendência que se observa neste período de um forte
“Eu ficava muito encantado com os professores. Eles traziam um e precioso espírito coletivista onde de fato era “um por todos e todos por um”. Este
mundo que parecia um parque de diversão de tão fantástico. Era sentimento de pertencimento muito grande favorecia a cooperação, o auxílio-mútuo e
maravilhosa a sensação”. (Beto Silva) a solidariedade, no lugar do egoísmo. Isso gerava muita união entre todos.
Isso com certeza, também contribuiu para os processos didáticos específicos, pois
Aquilo cativava de uma forma que trazia a criança para técnica, isto é, para um ao conhecer melhor as vivências e histórias dos alunos os professores podiam ensinar
treino mais focado nos princípios técnicos, realmente. Os depoimentos evidenciam algo que eles não sabiam fazer e desenvolver neles capacidades esquecidas pelas suas
que as crianças viam a técnica como uma brincadeira, mas também como um lugar dificuldades. Em suma, o afeto, o querer bem, a atenção, a preocupação do professor
de valor. Ali no meio do picadeiro todos estavam olhando para elas. Eram o centro das tem fundamental influência no desenvolvimento do aluno, praticamente determinan-
atenções. Queriam muito aprender quase todas as modalidades. A criança, diferente do em que conteúdos a atividade corporal/mental se concentrará. Mas, sem as rela-
de muitos adultos, vai lá e faz. Não fica perguntando o tempo todo. ções afetivas, existe motivação que leve o ser humano ao conhecimento?
Embora, há que se lembrar de que se o aluno fosse muito bom tecnicamente podia Interessante como existem outras evidências que apontam na direção das falas.
entrar até os 22 anos de idade. Mas, fora isso não havia uma pré-seleção, os alunos se Nos primeiros anos uma comissão designada pela presidência do INACEN foi forma-
inscreviam e entravam. Existem filmagens mostrando eles fazendo abdominais, Pa- da para avaliar o trabalho desenvolvido na Escola Nacional de Circo. Ela foi composta
rada de ombro na mão do parceiro deitado, saltando no trampolim acrobático, mortal por Luiz Olimecha, pela profª. Nelly Menezes Quadrado, pela prof.ª Omar Elliot Pra-
para os ombros, pirâmides, equilíbrios em rola rola, trapézio de balanço, etc. do Pinto e pelo Carlos Miranda.
Nesse período o aluno não podia escolher aquilo que ele queria fazer, a direção Veja como o que está escrito na introdução do relatório, capta um dos maiores le-
juntamente com os professores determinavam aquilo que segundo suas visões mais gados deste período:
o aluno se adaptava. A formação era pesada. O diretor não dava mole. Os alunos
chegavam meio dia, almoçavam e ficavam até cinco treinando quase que sem inter- “O que esta comissão assistiu na Escola Nacional de Circo digni-
rupções. fica a equipe de instrutores-professores. Apesar do esforço cen-
As lembranças continuam nítidas para aqueles que vivenciaram esta experiência trado na transmissão de técnicas específicas às artes circenses,
precursora: todos consideram a criança como um ser total. Verificamos, na
prática, como a escola tradicional não é o único agente do processo
“Inesquecível, parece que foi ontem. Foi uma honra ter feito par- educativo. A essência dos exercícios e a habilidade dos professores
te dessa turma, e orgulho de todos que conheci e continuam a fazer desenvolvem este mesmo processo no sentido de fazer do homem
sucesso! Nunca esqueci tamanha tremedeira que sentia em cada um verdadeiro ser gregário, que não pode sobrexistir só na sua
espetáculo! rsrsrs!” (Márcia Campos) individualidade”.14
13 Ver: TRICOLI, V. & SERRÃO, J. “Aspectos científicos do treinamento esportivo aplicados à ginástica artística”. 14 Apud texto do extinto Serviço Nacional de Circo do antigo INACEN – que historia a criação da Escola até a formatu-
NUNOMURA, Myrian & NISTA-PICCOLO, Vilma L. Compreendendo a Ginástica Artística. São Paulo: Phorte, 2005. ra de sua primeira turma. Ver: http://www.funarte.gov.br/circo/escola-nacional-de-circo-um-historico/
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Uma diferença bastante perceptível em relação ao presente e que por si só expres- ram grande efeito na plateia.
sa nitidamente o sinal dos tempos, deve-se ao fato de que: O que há de admirável em trabalhos artísticos como estes é que eles realizam uma
transfiguração do mundo recriando-o noutra dimensão e de uma forma que a dita
“Naquela época não tinha prova, esses negócios pesados que hoje “realidade” não está antes ou ao lado e nem na montagem cênica enquanto obra, mas
tem. Não tinha. Era mais fácil de fazer circo. Naquela época o é a própria montagem, o próprio espetáculo, a própria obra de arte.
pobre podia fazer circo, hoje em dia a gente não pode. Porque hoje Olimecha é um artista circense que está em busca permanente e a insatisfação é
em dia pra fazer circo tem que ter o ensino médio. Hoje em dia constante. Nele, o ponto de chegada é sempre a exigência do recomeço, ponto de par-
tem que ter o ensino médio. Então, fica mais difícil. As provas são tida para outra busca, para outra experiência.
mais elaboradas. As coisas mudam, né? (Edson Silva) Por ser de família de circo sabia muito bem como orientar os professores para o que
ele queria de cada um.
A associação da pobreza como motivo de exclusão do acesso a educação formal,
feita pelo professor Silva é profundamente embasada na história brasileira. Diante “Ele tinha a vivência. Acompanhou o desenvolvimento de vá-
da nossa realidade de tamanhas e tantas desigualdades sociais, políticas, de raça, rios professores que ele trouxe pra Escola, os mais hábeis deles.
gênero, etnia e sobretudo, econômicas, fica difícil negar que permanece uma dívida Então, ele pedia aos professores pra ensinar exatamente aquilo
de exclusão do ensino básico, fundamental, médio e superior. Embora, o ensino fun- que o professor tinha vivido, vivenciado. Então, foi uma
damental obrigatório e gratuito esteja na Constituição e os outros também como “um época muito mágica sim. Desenvolvemos na Escola vários nú-
direito de todos e dever do Estado e da família” na prática vigora o contrário, pois não meros que hoje em dia, pouco a pouco, estão deixando de exis-
há de fato uma igualdade de condições para o acesso e permanência da população tir. Principalmente, aqui no Brasil”. (Beto Silva)
mais pobre às estas instituições.
As várias Sínteses de Indicadores Sociais lançadas pelo IBGE confirmam edição Existem evidências que mostram como o diretor já nessa época possuía princípios
após edição que o traço mais marcante da sociedade brasileira, infelizmente, ainda é pedagógicos bem definidos. Ele orientava os professores a não insistirem quando os
a desigualdade. É possível perceber a melhora de alguns indicadores no passar dos alunos caiam ou se machucavam nas aulas. Por mais que a cultura circense valorize
anos, mas a distância entre os extremos ainda é muito grande. A concentração de vencer a dor, superar os desafios, levantar a cabeça se você se machuca e fingir que
rendas continuou absurda. não aconteceu nada em cena e continuar, o diretor tinha consciência das diferenças
Nesse sentido, o período inicial da Escola possibilitou o ingresso de várias pessoas de um ensino mais formal em relação ao que era praticado no circo família. Nesse sen-
que em outras épocas não teria a mesma “facilidade”. Além disso, deu vida ao primei- tido, pedia ao professor para ter uma noção mais clara até onde poderia ir com o aluno
ro espetáculo com os alunos da ENC: em termos de exigência e sacrifício, lembrando que trabalha num outro ambiente e,
portanto, numa outra realidade espacial, institucional e pedagógica.
“Em 1984 eu fiz o primeiro espetáculo já com os alunos da Es-
cola. Um espetáculo logicamente fraco porque eram dois anos de “O cara que idealizou o grande sonho que mudou a vida de to-
Escola. E se você ver o espetáculo que foi feito, você não acredita, dos, graças a ele somos o que somos, grande Olimecha, um cara
como muita gente não acreditou, inclusive os próprios empre- de coragem e decisão. Me espelhei muito nele como homem de
sários circenses que eu convidei para vir assistir. Eles ficaram as- atitude e disposição. Meu grande abraço Luiz Olimecha. O ver-
sim... apaixonadíssimos, não é? Porque em dois anos de Escola as dadeiro homem de circo.” (Tchesco Villares)
crianças estavam fazendo o que fizeram: era assim, praticamente
um milagre! Eles ficaram muito apaixonados com a Escola e isso “Na verdade, a ENC na minha vida existe antes dela existir, porque
me deu muita força. Aí eu tive um pouco mais de apoio do gover- o idealizador da ENC, Luiz Olimecha, ela já foi volante do meu
no, tivemos mais facilidades. A Escola teve uma alavancada muito pai nos voos. Então, ele já trabalhava com meu pai antes da ENC.
forte. Ela teve uma alavancada muito forte. Ela teve uma subida E ele falava, ‘eu vou fundar uma escola de circo, eu vou fun-
astronômica com aquele primeiro espetáculo.”(Luiz Olimecha) dar’, e ele sempre falava. E eu falava: ‘quando você fundar eu vou
lá estudar’. E aí, não é que ele fundou mesmo a Escola de Circo! Eu
Realmente eram crianças e jovens de muito talento. Depois dessa montagem, digo que o Luiz Olimecha é um circense que ousou pensar dife-
por volta de dois anos depois, o Luiz dirigiu o espetáculo de formatura da primeira rente. E todo mundo pensava em continuar, em dar continuidade
turma, em 1986. Foi um deslumbre total com suas surpresas cênicas e número dos através dos seus filhos e seus netos, mas ele ousou pensar diferente,
Palhacinhos, Maca russa, Antipodismo com fogo e cartas, Adágios, Portagens sobre ele ousou em criar uma escola de circo, e fundou mesmo. Da-
Rola rola, Pirâmides e Acrobacia de solo. Há uma bonita cena de entrada com os nado esse Luiz Olimecha! ” (Ângela Cerícola)
alunos mostrando bandeiras dos vários estados brasileiros, bem como, os números
coletivos de Monociclo, Báscula e Contorcionismo. Os balões caindo do teto causa- Luiz Olimecha, com um nome tradicional no mundo do circo teve uma iniciativa

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Escola Nacional de Circo E vem chegando a Priimavera...

que anunciou um novo tempo para a relação entre o ensino circense e o governo fede- O fato de ser circense para ele é um dos fascínios da própria experiência de se estar
ral, no Rio de Janeiro. Ele não só preparou a vinda deste tempo como também contri- vivo. Tem-se a sensação de que a vida não está passando inutilmente. Ela tem um por
buiu para que ele seguisse adiante, mesmo após ter deixado a Direção da escola após quê. O circo é o seu sentido. Algo que deve ser honrado e sinal de orgulho para quem
a formatura da primeira turma. Ele e Orlando foram pioneiros. cumpre esta vocação.
Logico que não se pode roubar ou tomar emprestada a paixão circense. Mas não
“A Escola é uma dívida que todos os governos tinham com a arte empobrece quem a espalha como luzes na escuridão. No mundo do circo ninguém a
essencialmente popular.” (Luiz Olimecha) dispensa. Ela instaura alegria, contribui para a camaradagem e a disposição. É re-
pouso para os exaustos, antídoto para as preocupações. Ninguém necessita tanto da
Após a formatura da primeira turma arriscou iniciar de novo com um pequeno paixão circense como aqueles que não têm mais nada a dar. Olimecha com sua gene-
circo em Bangu, com a mesma ousadia de sempre: o Circorama. rosidade e rigor soube e sabe como poucos plantar a semente da paixão circense. Não
é que ela brotou, cresceu e passou por vários desafios ao longo desta jornada?
“E aí ele me convidou e eu pedi uma folga pro meu pai, do meu Com as palavras emocionadas do “Luizinho”, como é carinhosamente chamado
circo e falei: me libera que eu vou fazer uma temporada com o Cir- pelos amigos, encerramos aqui a primeira parte de nossa história. Elas revelam um
corama, do Luíz Olimecha. Daí, a primeira turma de formandos, profundo senso do significado da memória na vida de alguém. Algo fundamental para
mais eu, e outros artistas como o meu tio Massaroca, entre outros se pensar numa identidade. A única certeza que temos é que um dia vamos morrer.
artistas também conceituados, formavam a turma do Circorama. O picadeiro é um lugar carregado de ancestralidade para o circense e se reveste de
Eu me senti muito honrada em fazer parte do Circorama. Que foi um significado transcendental para alguns. O certo é que ninguém vai ficar aqui para
uma lona itinerante que deu certo!” (Angela Cerícola) contar a história final. Todos morrem. Mas, como dizia o já morto cineasta japonês,
Akira Kurosawa: “Pode-se morrer tranqüilo, caso se haja cumprido uma vocação”.
Quando a ENC surgiu em maio de 1982, logo (a hoje professora da Escola) Angela Vamos dar um salto no tempo agora para um período tão difícil para ENC, quanto
Cericola se inscreveu para fazer o curso de reciclagem (curso destinado ao aperfeiçoa- inspirador. Roma não foi feita num dia, vamos com calma.
mento de artistas circenses) e acabou se tornando uma das primeiras “reciclandas” da
instituição. Entrou para ficar três meses e acabou ficando dois anos.
Mas, os fascínios da Escola sempre acompanharam Olimecha: Vida que segue. Enquanto é tempo...
“Sempre me orgulhei muito em dizer que sou de circo. E vou ser
de circo toda a vida até morrer. Espero que quando eu morrer
o meu corpo seja velado aqui ó (pausa). Dentro da Escola de
Circo” (apontando para o picadeiro). (Luiz Olimecha)15

15 Este trecho do depoimento está no vídeo documentário de Daniel Elias (artista formado) sobre a ENC (2009). Disponível
Família Olimecha. S/d. Autor desconhecido. Acervo de Pirajá Bastos. no seguinte endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=NfHIHjgzz4E

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Fascínio Circense Depois do Imperador Collor...

Era Collor
Durante todo o processo de existência da Escola, ela teve seus altos e baixos, mas
nenhum até hoje foi mais preocupante que o período da Era Collor. Opa! A CASA

Depois do
CAIU? Deu zebra, a vaca foi para o brejo? Aconteceu o temido fechamento da Escola!
Que tal ser surpreendido com uma decepção dessas? Ora, foi isto mesmo, produção?
Desatino... Esta é a época referente ao mandato do primeiro presidente eleito pelo
povo desde 1960. A Escola como várias outras áreas vitais balançou na corda bamba

Imperador Collor,
por um triz, em perigo de extinção definitiva. Como é possível tamanho ataque a um
patrimônio material e imaterial do circo? Como em um período tão curto (iniciado
pela posse do presidente em março de 1990, e encerrado por seu afastamento do go-
verno em outubro de 1992), foram possíveis tamanhos retrocessos? Isso é para deixar
qualquer um de cabelo em pé.

a Imperatriz
Os trechos seguintes de entrevistas mostram para o espanto e o estarrecimento
geral, a enorme pedreira que tinham pela frente. De como, os heroicos defensores bo-
taram a boca no trombone ao ver que a ENC estava em papos de aranha, quase sem
saída:

Leopoldina “Na época do Collor a Escola passou apertada. Só não fechou


de vez, porque teve muita assinatura do pessoal. A opinião pú-
blica, todo mundo pediu. O povo do teatro manifestou favorável
a continuação. A própria Globo vinha aqui sempre fazer cobertu-
ra e tal. Não pode roubar a Escola de Circo! Aí chamaram a
(na adversidade prevalece o coração) dona Omar, que era a mulher do fundador da Escola de Circo,
o Orlando Miranda.” (Jamelão)

“Aí nós fizemos a maior anarquia lá na Cinelândia. Leva-


mos cama elástica, malabarismo, aluno e professor todos tra-
balhando ali. Os repórteres em cima, a imprensa e tudo, aí não
terminou. Nós ficamos aqui seis meses só assinando o pon-
to.”(Aberaldo Costa –-professor)

Fora! Fernando Collor confiscou não foi apenas os depósitos bancários superiores a
cinquenta mil cruzeiros. Embora, isso já tenha sido suficiente para matar muita gen-
te de ataque cardíaco e fazer outros caírem das nuvens. Evidentemente, que este não
foi o único flagrante desrespeito aos direitos constitucionais. Além disso, o “caçador
de marajás” (que até hoje continua sendo investigado por corrupções diversas) com
sua equipe tentou também interditar o futuro da ENC. Puxa, a Escola com a corda
no pescoço! Felizmente, não tiveram tempo suficiente para continuar tentando isso,
“O amor é o mistério que faz com que eu me perca, como aponta Orlando Miranda:
sem defesas, no outro e o outro em mim, mas, ao nos
perdermos um no outro, por sortilégio do amor, nos “A Escola passou um tempo muito difícil no tempo do Collor. Até
o terreno eles queriam vender. Queriam acabar com a Escola
encontramos e nos transformamos em liberdade e Nacional de Circo. E aí não conseguiu. A Escola era forte, ficou
criação.” (Laporte e Volpe) muito forte, foi um pouco complicado, mas se ele continuasse como
Presidente ela ia acabar.” (Orlando Miranda)

Passa! O dinheiro confiscado, de fato, nunca mais voltou. O povo ficou com a cara
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Escola Nacional de Circo Depois do Imperador Collor...

de tacho e a promessa entalada na garganta. Mas, para alegria geral a Escola ressus- a lona apodreceu, e a Escola fechou em seis meses”17. De acordo com informações da
citou onde forcas esganavam cidades. Raios! Isto só aconteceu, como indicam a fala pesquisadora, somente em agosto de 1991, depois da criação do IBAC, é que ela no-
do Jamelão e do Aberaldo, porque foi a “maior anarquia”, isto é, muita mobilização vamente foi reaberta sob a direção da educadora Omar Elliot Pinto, que participou
(mucha lucha) dos artistas, alunos, professores, ex-alunos, profissionais da cultura, da primeira comissão de avaliação da ENC. Funcionária do MEC há vários anos e
agentes culturais, entre outros. O pulso ainda pulsa. Na hora da onça beber água. Na com a experiência de direção da Escola Estadual de Teatro Martins Pena , a “dona
hora do vamos ver. Apareceram os amigos certos, nas horas incertas para segurar a Omar” assume o timão do barco e guia a ENC a novos rumos e bem diferentes da fase
batata quente que tava pegando geral. anterior como por exemplo, a separação da direção pedagógica e administrativa da
Vamos! Força! O protesto na Cinelândia não foi a única atividade pública de indig- direção artística.
nação e resistência. Por isso, mesmo considerando a correlação de forças do momento, Evoé! Fênix que renasce das cinzas sob a batuta da força feminina! A estrada não
não tenho tanta certeza que se o Collor ficasse mais tempo conseguiria acabar com acabou, ela só tomou um desvio. O importante é ter aprendido a lição e se cair outra
a ENC facilmente, sobretudo, quando penso na determinação destes guerreiros em vez, possa levantar de novo, quantas vezes for preciso. O corpo ainda será pouco. Mas
defender a sobrevivência da Escola. Posso estar sendo muito otimista, mas acho que não ficará só esperando o vendaval passar.
não iam deixar fechar de vez nem que chovesse canivetes. Houvesse o que houvesse Águas passadas não movem moinhos, mas nos ensinam a não repetir os mesmos
não poderiam cometer este crime contra o passado, o presente e o futuro. Toque três erros. O show tem que continuar. Claves para cima e avante! Este período foi intenso
vezes na madeira. Estou falando sério. Uai? em mudanças pedagógicas na ENC. Para a direção da área artística, foi escolhido o
Rua! Collor extinguiu praticamente todas as fundações e órgãos ligados a arte e veterano e tradicional professor Abelardo Pinto. A direção pedagógica deste momento
a cultura como a Embrafilme e a Funarte, por exemplo. Céus! Socorro! Vá de retro, buscou orientar a ENC rumo a uma reinvenção e não uma repetição das pedagogias
Satanás! Segundo Alice Viveiros de Castro: de tradição familiar, numa perspectiva mais educacional. Isto significou uma maior
normatização e diálogo com modernos padrões vigentes no mundo, “desde que fossem
“Um caos absoluto, ninguém sabia o que tinha acontecido. Em respeitadas as características culturais brasileiras e as formas peculiares de trans-
uma semana a quinze dias, vem uma figura para ser o interven- missão do conhecimento”.18
tor. Afastou vários funcionários, inclusive o Olimecha, por dois
anos. Colocou-os em disponibilidade. (...) Ninguém tem coragem de
fechar, objetivamente, mas também não acontece nada. Não se
faz a entrada de novos alunos.” (Alice) 16

Francamente! Uma Escola como a ENC à deriva, ao deus dará. Que situação...
Próxima Estação: LEOPOLDINA
Nesta época de retorno do cruzeiro como unidade monetária em substituição ao cru-
Diz o dito popular que a corda arrebenta do lado mais fraco. Pode ser. Mas, tam-
zado novo, de choque econômico em choque econômico o povo foi sobrevivendo por
bém o feitiço pode virar contra o feiticeiro. Eh! Vamos dar um salto de alguns anos
milagre, apesar da crescente miséria. A “República das Alagoas” representou o início
novamente. Vamos para o período entre 2009 e 2012. Quando a ENC mudou de en-
das reacionárias medidas neoliberais no Estado brasileiro. Nossa! O país embar-
dereço. Não que os alunos e professores quisessem. Qual o quê! Foi uma questão de
cou em uma canoa furada (mais uma vez). E as classes trabalhadoras e os setores
necessidade. Nem mesmo ela podia contar com a estabilidade e a solidez desejada. Ai!
culturais entraram pelo cano. Hum! As privatizações, a abertura comercial e finan-
Precisou deixar suas instalações na Praça da Bandeira por causa das obras de expan-
ceira, a desregulamentação econômica, a redução da máquina administrativa com a
são no metrô. Muitos temeram que ela tivesse sido tocada pelo beijo da modernidade.
extinção ou fusão de ministérios e órgãos públicos, demissão de funcionários públicos
Foi feito um acordo que em troca de uma pequena parte de seu terreno original cedido
e o congelamento de salários geraram profundos retrocessos sociais. Os ataques fo-
ao metrô a ENC seria reconstruída com melhores instalações e com o ganho de uma
ram para além da esfera da cultura. Atingiram em cheio a população com o aumento
área aos fundos. Epa! Assim, a localização das aulas mudou para o pátio da Estação
do descaso com idosos e menores, bem como, progressiva desresponsabilização do Es-
Leopoldina, no Santo Cristo.
tado de áreas sociais como saúde, educação e habitação. Onde fica a saída, por favor?
Aquele lugar, o ar... Primeiro, fique sabendo que acontece que a Escola nunca
Alguém vê alguma luz no fim do túnel?
tinha saído deste espaço desde a sua inauguração, em 1982. Ela foi criada para ser
Basta! Segundo Ermínia Silva, “mesmo com vários percalços, a Escola funcionou
uma escola fixa. Isto estava muito claro para os professores mais antigos. Isto era
até 1990, quando Collor tomou posse como Presidente da República e iniciou uma
algo forte e foi um processo que terminou sensibilizando muito, Zezo Oliveira, o di-
reforma administrativa que, entre outras, teve como alvo também a área da cultura.
retor da ENC, de então. Desse modo, ele buscou construir um processo de saída que
Diversos professores da tradição circense foram aposentados compulsoriamente, os
fosse o menos doloroso possível e na perspectiva que houvesse um ganho substancial
investimentos foram escassos, não houve nenhum tipo de manutenção do material,
nesse processo no retorno ao espaço original. Quem sabe podia acontecer então que
16 Depoimento no documentário: Meu lugar de origem de Thiago Valente.
17 SILVA, Erminia. “O ensino de Arte Circense no Brasil: Breve histórico e algumas reflexões”. 18 SILVA, Erminia. “O ensino de Arte Circense no Brasil: Breve histórico e algumas reflexões”.
In: http://www.funarte.gov.br/circo/escola-nacional-de-circo-um-historico In: http://www.funarte.gov.br/circo/escola-nacional-de-circo-um-historico/

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Escola Nacional de Circo Depois do Imperador Collor...

voltar para o espaço de origem após a epopeia da reconstrução sobre novas bases, noite. Pelo contrário, foi assim, lentamente e aos poucos. Pois, não tinha nada muito
fosse uma maneira de seguir adiante? estruturado no espaço da Leopoldina ainda. Todos os prazos não foram cumpridos,
como o de montagem da lona e da construção dos espaços provisórios.
Ânimo! Isso gerou uma sensação de que a obra não estava dando o tempo neces-
sário para a mudança ocorrer de forma planejada e digna. Sensação de que estavam
sendo empurrados à força para sabe-se lá quando poder voltarem. De fato, foi triste
e muito rápida a forma como os operários quebraram aqueles espelhos dos camarins.
Um passado enterrado sob os escombros da sede fáustica do desenvolvimentismo ur-
bano? A velocidade da destruição teve a utilidade de mostrar como aquele era um
“grande empreendimento” que contava com recursos poderosos. Este é um estilo ca-
racteristicamente moderno, indireto, impessoal, mediado por complexas organizações
e funções institucionais. Entretanto, o descompasso gerado pelo descumprimento da
entrega das instalações na Leopoldina acabou levando a perda de um semestre. Eia!
No segundo período de 2009 os alunos não tiveram aula. Ah! A mudança foi muito
tumultuada.
O pessoal se encontrou diante de uma coisa não esperada ou sequer imaginada.
Mas, calada a boca, resta o peito? Pode-se dizer seguramente que esta foi também
Antigas instalações praticamente demolidas. Foto: s/a s/d, reprodução rede.
uma fase bem complexa da ENC. Isto, sobretudo, em termos das condições do traba-
lho de ensino/aprendizagem, principalmente em aspectos como segurança e instala-
Entretanto, as coisas foram mais difíceis do que o esperado. De quem é esse lugar ções adequadas, entre outros problemas:
na cidade maravilha mutante? Quem é dono desse espaço? Será que o de cima conti-
nua subindo e o de baixo, descendo? Sei que professores, alunos e demais funcioná- “A gente tava com falta de equipamentos, com as instalações bem
rios começaram a abraçar o jacaré antes mesmo de saírem. Isto é, vivenciaram a ver- deterioradas, com uma quantidade muito pequena de alunos,
tigem e o terror de um mundo no qual “tudo que é sólido desmancha no ar”. Ninguém com os professores muito desmotivados. Uma situação bem di-
quer ficar na rua da amargura. Da noite para o dia, perder tudo? Precisava quebrar fícil pra Escola. Apesar de ser uma escola com 32 anos e fazer um
e demolir tudo, mesmo? Mais do que o desejo de transformação da realidade física o trabalho excepcional, aquele era um momento de bastante degra-
que prevaleceu foi o pavor da desintegração e da desorientação da vida coletiva que dação”. (Carlos Vianna)
se desfaz em pedaços. Querendo ou não, a invasão dos demolidores estava montada,
e ela contava os dias no relógio de kronos. Foi uma saída tensa, mas, foi a toque de “A estrutura do espaço nasceu pra ser provisória. Então, as pa-
caixa? redes das salas de aula eram de madeirite (placas de compensa-
do). Não era muito saudável porque as telhas eram de Eternit, um
“A gente teve que sair porque eles iam construir a Linha 2 do Metrô. material tóxico e quente pra caramba. Em baixo passavam uns
Foi tudo simultâneo. Eles tavam começando a construir a linha e cabos de eletricidade porque fazia parte da estação de trem. Vira
a gente ainda não tinha saído. Tavam começando a quebrar e mexe as estruturas davam choque. Era bem perigoso esse
algumas coisas e a gente tava ensaiando o espetáculo do Archaos negócio. Foi a alternativa que foi oferecida pra escola, ir pra lá.
(...). A gente ali e aquela poeira o tempo inteiro. Eles derrubando Foi um momento bem delicado. A escola tava meio abandonada,
tudo. Uma parte da Escola derrubada e a gente ainda usando ”. tinha passado por umas greves. Então o negócio tava meio ruim.
(Paulo Hartung) A gente tinha oportunidade de treinar mas o chão era um asfalto
preto. Quando esquentava o bicho pegava lá! Era meio insalubre
Paulo fala de um momento bem intenso e desgastante de convivência constante a rotina de treino”. (Demitri Manaf)
com o barulho de britadeiras e outras máquinas próximas a lona fazendo um som en-
surdecedor – absurdo, em termos da concentração necessária para o grau de risco que “Na Leopoldina, as salas eram feitas de uma madeira que não
envolve a atividade circense em um ensaio, como aquele. Além da poluição sonora em suportava nem a umidade da chuva. A academia foi transportada
altos níveis de decibéis, antes da saída, alunos e professores tiveram que aprender a tipo pra um trailer, uma coisa assim, era chamado de ‘galinheiro’,
conviver com o heterogêneo grupo de pessoas, engenheiros e operários da construção porque era muito provisório. Tinha também as paredes do banhei-
civil, profissionais da arqueologia, e outros estranhos ali presentes. Dividindo alguns ro que já tavam ficando com buraco (...).E também não tinham
espaços, inclusive. terminado de montar as coisas, os pontos do picadeiro. O tra-
Dessa maneira, a mudança de endereço não ocorreu de uma vez, do dia para a pézio de voos também ficou cheio de coisinhas. Toda hora tinha que

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arrumar... por conta de não ter feito uma coisa fixa, o tempo todo tensão e o risco eram constantes. Sabia-se que as soluções encontradas ainda eram
tinha que fazer manutenção. O Marcelinton vivia subindo sempre problemáticas e que uma solução mais definitiva dependia de outros fatores externos
na cúpula pra ajeitar as coisas.”(Andrea Nohara) a vontade dos participantes.
Outro aspecto que prejudicou bastante as atividades artísticas foi o fato da Escola
Neste período houve a diminuição da capacidade formativa da Escola? Estas al- durante este três anos na Leopoldina não poder contar com um alvará de liberação
terações afetaram o seu equilíbrio interno? A degradação foi gritante em várias di- de apresentação de espetáculos face a estrutura irregular e inadequada do terreno,
mensões do funcionamento da Escola como pode ser percebido nas falas acima. Em bem como, o processo de montagem do picadeiro de forma corrida. Isso depreciou
qualquer uma das dimensões é nítida a redução e a piora drástica na qualidade dos imensamente a relação extensionista da Escola e sua rotina de uma vez por mês
espaços das atividades. Isto significa na prática que foram tiradas da ENC por esse abrir os portões para públicos de periferia, alunos da educação pública assistirem as
tempo, algumas de suas prerrogativas e minimizadas as suas possibilidades e di- montagens circenses.
reitos conquistados. Percebe-se nos depoimentos que em alguns momentos isto foi
sinônimo de retrocesso nas possibilidades de felicidade. Ainda bem, que além dos “Sair de lá e vir pra Leopoldina como uma alternativa, deixou todo
aspectos materiais têm os invisíveis, subjetivos, da dimensão dos afetos e paixões que mundo que faz circo aqui no Rio e no Brasil com medo de não
movem a arte como a água move o moinho. ter mais a Escola Nacional de Circo. Enfim, um ícone de circo do
O fato das telhas serem “de Eternit, um material tóxico e quente” realmente mundo, né?” ( Celso José)
foi um problema, pois de acordo com especialistas, esse tipo de telha pode expor as
pessoas à fibra de amianto, conhecida também como fibra de asbestos. Sim, é a maté- “A gente tava sem esperança de voltar. Não tinha nada concre-
ria-prima de muitos produtos de baixo custo comuns em residências do Brasil inteiro, to. Nada no papel que a gente ia voltar para lá ou se a gente ia
como caixas d’água e telhas. Proibido em mais de 50 países e responsável por cerca pra outro lugar.”(Marcelinton Lima)
de 100 mil mortes por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas,
de fato o seu maior perigo está na fase de instalação das telhas, onde, por exemplo, é “Foi uma situação muito difícil e a gente ficava a mercê das ne-
comum que a telha seja perfurada liberando um pó altamente contaminante no ar e gociações, reuniões de cúpula, ficava na realidade sem ter mui-
que pode ser aspirado e/ou ingerido.19 to que fazer. A gente não participava disso, basicamente (...).
Outra ameaça na época é que às vezes as “estruturas davam choque”. Pela Era pra gente ficar um ano, a gente acabou ficando três anos aces-
forma como é exposto pelo Demitri Manaf compreende-se que era um choque relati- sando este terreno. Toda a infraestrutura que nos acolheu a partir
vamente fraco (provavelmente corrente entre 1 mA e 8 mA). Mas mesmo assim isso de 2009, foi se deteriorando. As paredes de madeira estão todas
não pode ser visto como algo normal ou corriqueiro. Medidas devem ser tomadas para cheias de cupim. Porque não era pra ficar tanto tempo.”
evitar este tipo de realidade, pois como diz o ditado “onde passa boi passa boiada”. A (Bruno Gawryszewski)
energia elétrica, apesar de útil, é muito perigosa e pode provocar graves acidentes,
como queimaduras (até de terceiro grau). Ela pode provocar a queda do professor ou O espaço antes era delimitado, fechado e controlado. Neste lugar provisório o espa-
do aluno de uma escada, do aparelho, do alto do mastro, etc. Além disso, dependendo ço durante muito tempo foi aberto e sem condições de impedir o acesso de estranhos.
da carga pode ocorrer a eletrocução - que é a morte provocada pela exposição do corpo Além disso, com muita poeira e poluição sonora extrema. Às vezes, tinham que molhar
à uma dose letal de energia elétrica. o terreno para baixar a poeira. Certos dias as aulas de acrobacia de solo chegaram a
Adiante! Em face da maneira como foi feita a mudança da ENC para este espaço, ser canceladas. Os alunos já não usavam uniformes. A higiene do lugar não era das
possivelmente vários tipos de proteção e de providências que poderiam ser usados melhores. Como era um espaço dividido com a circulação de trens não tinham como
para se evitar qualquer tipo de choque elétrico não foram corretamente tomados como manter os espaços de usos limpos. Pessoas estranhas chegaram a dormir escondidos
o uso de aterramentos e de materiais isolantes, bem como, fusíveis, disjuntores, sina- dos seguranças dentro da lona durante a noite. Agora a ENC é a casa da mãe Joana,
lização e proteção de todas as instalações e mesmo da fiação elétrica da Escola. Além onde vale tudo e todo mundo pode entrar a hora que quiser? Sei que alunos e professo-
disso, fica a dúvida sobre o bom estado dos fios e dispositivos elétricos da Estação res não tinham lugares certos para guardarem os equipamentos. Ficava meio jogado.
Leopoldina. No fundo, a Escola estava em maus lençóis. Também jogada pelos cantos da cidade.
O trecho da fala de Andrea Satie alerta para as dificuldades impostas ao traba- No meio do caminho tinha um Everest de impasse burocrático. Toca! A Funarte
lho cotidiano em escolas de circo quando se lida com uma situação que se apresenta não mandava os equipamentos e materiais novos para o novo espaço porque argu-
eternamente como provisória: “o tempo todo tinha que fazer manutenção”. Quer mentava que logo a Escola voltaria para o espaço original e não faria sentido mandar
dizer, não se trata aqui do procedimento periódico de revisão e manutenção dos equi- equipamentos para a Leopoldina. Mas a volta foi se prolongando indefinidamente.
pamentos e materiais como redes de voos, sistemas de lonja, catracas, mosquetões, O que era para durar alguns meses se transformou em três anos. Os sucessivos
anilhas, roldanas ou dos aparelhos dos artistas, mas sim de uma situação onde por atrasos na entrega das obras da Praça da Bandeira levaram a uma sensação de que
não montarem as estruturas e aparelhos como realmente deveriam ser montados a o espaço não ficaria pronto nunca. Isso foi gerando uma grande ansiedade e descon-
19 http://www.ecycle.com.br/component/content/article/35/479-o-amianto-e-os-problemas-para-o-consumidor.html
tentamento. Parecia que eles não tinham mais o antigo espaço e não tinham o atual

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Escola Nacional de Circo Depois do Imperador Collor...

por inteiro. O tempo passou e continuava o impasse burocrático. Comeram o pão somente mais um dos componentes ou elementos que o compõem, mas a base, o fun-
que o diabo amassou. Nem terminavam de construir na Praça da Bandeira e nem damento, a dimensão crucial e o pré-requisito de todas as atividades circenses que
mandavam equipamentos, materiais e aparelhos novos para a Escola: envolvam riscos de acidentes.21

“O calor, os equipamentos não estavam nas melhores condições, “Porque de fato, a gente quer encontrar uma escola melhor do que
tudo enferrujado, a gente não conseguia solicitar equipamentos uma Escola que ficou relegada debaixo de uma ponte durante
novos porque o espaço era temporário (...). Era um negócio bem três anos, no meio da sujeira. Aonde doença respiratória e de
na gambiarra ali. Foi onde eu aprendi a fazer gambiarra. A parte pele era comum. Aonde treinar dentro de uma lona com um calor
de segurança da Escola já tá bem mais equipada, você tem bol- exaustivo beirando os 55º era comum. Então, quero, por exemplo,
driers, mosquetões, fitas e capacetes. Antigamente não tinha isso que o meu filho tenha condições de encontrar uma instituição bem
não. Era meio sobe quem não tem medo. Pendura quem sabe. Por- estruturada, sólida. Por que o meu medo quando a gente estava de
que não tinha. O material não chegava. O que tinha tava enferru- baixo da ponte na Leopoldina era que a Escola não se perpetuasse
jado. (...). Eu tive a oportunidade de presenciar vários acidentes pros seus próximos, 30, 60, 90 anos”. (Davi Ferreira)
lá por conta disso. Falta de segurança, não estar num espaço
apropriado, o picadeiro era bem delicado, cheio de táboas soltas. A expressão “relegada debaixo de uma ponte” é bastante significativa quando nos
Era um negócio instável”. (Demitri) lembramos das pessoas que normalmente moram debaixo das pontes no Brasil, isto é,
os sem teto, os moradores de rua e indigentes sociais. Por um tempo a grande Escola
Nessas situações apontadas por Demitri notam-se uma falta de cuidado ou desa- Nacional de Circo teve um futuro incerto? Correu o risco de ter que conformar-se com
tenção em relação às reais necessidades da ENC como equipamentos e materiais de a Leopoldina? O fato é que alunos, professores e funcionários tiveram que conviver
segurança e proteção (cadeirinha, fitas, mosquetões, capacete, etc) para as pessoas com a “sujeira” e todos os inimigos invisíveis da saúde que ela traz como ácaros, fun-
que se arriscavam nas alturas. A “burocracia” não pode ser um buraco negro que im- gos e bactérias.
plique em negligência e omissão em agir de forma prudente e com o cuidado exigido Sabe-se que ficam incrustrados em lugares com condições propícias para que eles
pela circunstância. Observe que não se trata de uma responsabilidade da direção da se alojem e reproduzam (lugares sujos, colchões, tapetes, etc). Os fungos são microor-
Escola que na época fez todo o possível para reverter essa conjuntura. Mas alguém ganismos conhecidos por formarem mofos, mas também são causadores de micoses
que deveria tomar conta para que uma situação desta não acontecesse, não prestou a entre outras doenças de pele. O acúmulo de bactérias pode acarretar várias doenças.
atenção requerida e deixou acontecer. Talvez alguns acidentes tivessem sido evitados A higienização e a limpeza são boas formas de proteção contra estes inimigos invi-
se a Escola tivesse certos itens básicos de segurança em altura. A falta destes itens síveis. Além disso, o próprio lugar onde estava situada a Escola nessa época era um
fundamentais extrapola os limites da lógica e do bom senso. lugar de grande poluição sonora e do ar. Pode até parecer sem cor ou cheiro, mas a
Como diz Antonio Rigoberto Enriquez Esquerra, um dos professores cubanos poluição do ar ataca diretamente a saúde humana. Pulmões e pele são os órgãos mais
da Escola: prejudicados. No entanto, problemas de circulação e muitas alergias podem vir com
a sujeira do ar. A poluição sonora atrapalha a concentração e entre várias coisas, é
“Você nasce, vá cresciendo e depois você vai embora. Assim se também uma fonte de stress urbano muito intenso.
passa com todos os equipamentos. Sempre tem que ser renovado, Via crucis? A ENC estava no bico do urubu? Pelo exposto até aqui nota-se que falar
pois com o tempo vai perdendo sua textura, sua durabilidade, em insalubridade, não é um exagero, pois alunos e funcionários estiveram expostos
tudo tem que ser transformado, assim como a vida não para. Cada em caráter habitual a locais deletérios e em contato permanente com substancias
coisa tem o seu tempo limite” (Antonio) que poderiam vir a causar o desenvolvimento de doenças. A legislação trabalhista
protege, por meio de normas, todo trabalhador que executa suas funções em ativi-
Os aparelhos já estavam sendo usados bem além da sua vida útil. Tinham que ser dades insalubres ou perigosas, de forma a amenizar o impacto destas atividades na
renovados. Diante da situação de calamidade, alguns professores chegaram ao ponto sua saúde (NR-15).
de levarem os próprios materiais e aparelhos de uso pessoal para fazerem um bom Estavam em jogo naquele momento questões cruciais como a própria futura loca-
trabalho com os alunos na ENC. Se não fossem iniciativas, como esta, o quadro teria lização da ENC. Será que ela voltaria para o lugar de origem? Será que ela iria para
ficado ainda mais grave e preocupante. Pois, embora, devido a falibilidade humana outro espaço na cidade maravilhosa? O que será que será?
nunca estejamos totalmente livres da possibilidade de acontecer um acidente, é pre-
ciso também que entendamos o acidente “como um produto de uma situação de risco “Eles estavam querendo na verdade que a gente visse outro es-
cuja ocorrência é não intencional e que deve ser estudado visando ao desenvolvimento paço. E eu fui muito seguro, não! A gente quer ficar no mesmo
de procedimentos e tecnologias que permitam controlar as condições de risco, minimi-
zando, assim, a possibilidade de sua ocorrência”. 20 20 FERREIRA, Diego Leandro. Segurança no circo: questão de prioridade. Campinas, SP, [s.n], 2012.p.48.
21 BORTOLETO, M; LEITE, V e FERREIRA, D. “Segurança no circo – princípios básicos”. In: BORTOLETO, Marco. Intro-
Deve ser amplamente defendida a convicção de que a segurança no circo não é dução a pedagogia das atividades circenses. Vol. 2, Várzea Paulista, SP, Fontoura, 2010.

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Escola Nacional de Circo Depois do Imperador Collor...

lugar. (...). Essa questão sempre esteve em jogo, queriam fazer proteção. Demorou o salto, mas no final deu certo, porque como aparador do outro
uma permuta com o espaço da Praça da Bandeira com outro lu- lado estavam então todas as pessoas que se uniram e se mantiveram firmes para
gar no Rio de Janeiro” (Zezo) que isto acontecesse.
Professores e alunos criavam com o que tinham a disposição. Fizeram apre-
Zezo não caiu no lero-lero de “outro espaço” Aí tem truta. Não podia se dar ao sentações em que usaram o pa-
luxo de cair no conto do vigário. Muitos dependiam da sua astúcia. Cada macaco raquedas para fazer a cortina do
no seu galho. Foi seguro em dizer: o espaço da Praça da Bandeira é nosso! Fincou espetáculo (vide foto ao lado).
pé na situação. Na história da Escola este foi seguramente um momento de grande Trabalharam como muito ma-
fragilidade das condições materiais (objetivas) e ao mesmo tempo de uma grande terial reciclado e doações de so-
força (subjetiva) do grupo de pessoas que estava lá. Eles estavam convictos do que bra de material de alguns circos,
tinham que fazer. Sabiam que não podiam abrir mão da Escola, mesmo com todas as como o Cirque du Soleil quando
adversidades. Alguns temiam até pelo pior, que a Escola fechasse, acabasse. Neste vinha ao Rio de Janeiro.
processo, o diretor Zezo de Oliveira teve uma liderança firme, entusiástica e engajada Depois da saída forçada, levan-
em resolver os impasses. Ele falava para aquelas pessoas se manterem na Escola. E taram, sacodiram a poeira (tinha
essas 20 a 30 pessoas se mantiveram. muita, né?) e voltaram para o chão
Alguns iam para as aulas e treinos com “coceira na cabeça” porque sabiam que iam ancestral da Praça da Bandeira.
encarar uma pedreira. Mas, por outro lado isso deixava o aluno preparado para as Mortal triplo com dupla pirueta.
condições mais difíceis. Quem está na chuva é para se molhar. Os alunos brincavam De volta para o amado terreno (a
em tom de piada que se alguém fazia equilíbrio e andava de monociclo naquele pica- com o ganho de vários metros² ao
deiro andaria em qualquer lugar do mundo. fundo) e agora com instalações
mais coerentes com a sua capa-
“Pra querer treinar nessa Escola, apesar da estrutura, sabendo de cidade formadora. O espaço foi
todos os problemas e ainda assim, querer prestar prova e vir para totalmente reformulado. De volta
cá, acho que é muito amor mesmo. Acho que é muito querer fazer ao começo numa espiral crescen-
circo e se formar.” Natasha Jascalevich) te. Após a obra realizada, a ENC
ganhou instalações ampliadas em
Este depoimento de Natasha, feito na época em que estudava na Leopoldina é até três vezes. Mas, como foi so-
bastante revelador. Sugere como esta vontade de treinar ali (mesmo que às vezes, frido e lento esse retorno (mesmo
aos trancos e barrancos) só pode nascer do amor, aliás, de “muito amor mesmo”, como que triunfal).
afirma a brilhante contorcionista. Foi o amor que impediu estes alunos e professores, Zezo teve que se desdobrar em reuniões, telefonemas, viagens, ofícios, entre ou-
equipe pedagógica e direção de se tornarem áridos e duros como o espaço da Leopol- tros, para que A Escola voltasse. Ele contou com a ajuda e participação dos profes-
dina. sores, funcionários, alunos e ex-alunos empenhados num futuro mais promissor
Este sentimento vale mais do que ouro e diamante juntos. Ele manteve essas pes- para a ENC.
soas capazes de se encantar com a Escola, com a vida e de se envolver com a busca de Em trabalho de campo na Europa, pude entrevistar Donald B. Lehn, em Madri.
alguma solução para a crise instalada. Ele é diretor da Escuela Carampa e Presidente da FEDEC. Num certo trecho, ele
O amor foi e é fundamental para a ENC, como para a sociedade. Sem amor as afirma que:
pessoas não se sensibilizam com a dor dos outros. Sem amor não há encontro, não há
diferença, resta a escuridão do individualismo, do ser incapaz de relação, da frieza e “Falo da Escola Nacional como exemplo de importância. A Es-
calculismo da morte em vida. cola Nacional é uma Escola excelente. Zezo teve que fazer uma
Foram também tempos de resistência... O amor busca justiça. Os alunos ressignifi- transição de séculos para dar ao aluno ferramentas de criação
caram os espaços do entorno, conferindo sentidos para eles diferentes do que tinham para que possa desenvolver seu projeto pessoal. Para incentivar a
sido previstos originalmente. Eles começaram a usar as passarelas, as plataformas capacidade inventiva e criativa e não a mera reprodução de
dos trens para fazer corridas e exercícios adaptados. Exploraram cenicamente para truques.” (Donald B. Lehn)
fazer fotos naquelas estruturas. Mas, os seguranças começaram a limitar os espaços,
colocaram grades para impedir o acesso. Isto significa que o alcance da influência das gestões de Zezo como diretor não
Neste lugar provisório não tinham muito autonomia para sua utilização. Mas se restringem às novas instalações. Muito do que está colocado na atualidade em
conseguiram dar a volta por cima. Tiraram de letra. A garra e o coração se revelam termos de fomento ao aluno em forma de bolsas ou mesmo a perspectiva do diálogo
na adversidade. Foi o mesmo que saltar de um trapézio no escuro e sem rede de com outras artes e linguagens performáticas. Além disso, a visão do aluno como

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Escola Nacional de Circo Depois do Imperador Collor...

sujeito é outra contribuição sua. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Bravíssimo! O evento de reinauguração da ENC aconteceu em grande estilo no dia
O artista Celso José, formado pela Escola faz algumas comparações interessantes 17 de dezembro de 2012, a partir das 19h. Desde a decoração, as apresentações dos
sobre as construções e disposições espaciais nos dois momentos históricos apontando alunos até a ambientação do espaço com barraquinhas de pipoca, cachorro-quente e
não apenas vantagens, mas também aspectos a se pensar como a própria disposição maçã do amor, todos os lados remetiam a um clima circense. Na época, a então mi-
ou “ estrutura do pátio”: nistra da Cultura, Marta Suplicy e o presidente da Funarte, Antonio Grassi, entre
outros, se encantaram com a apresentação do espetáculo Cine Circo, dirigido por
“Antes o espaço físico, o prédio não era tão grande assim. Era bem Alice Viveiros de Castro e que fez referência aos sucessos do cinema que tiveram o
menor o prédio antigo. Inclusive, nesse projeto aqui muitos alunos circo como tema. A encenação contou com 17 formandos da Turma de 2012 do Curso
acharam que ia ter esses dormitórios para os alunos que viessem Técnico. 22
de fora, mas também não colocaram. Mas, é claro que esse prédio No ritualístico Charivari de 30 anos da ENC ocorrido no picadeiro e apresentado/
é muito mais bem estruturado que o prédio antigo. Apesar do organizado pela Alice Viveiros de Castro, os acrobatas Beto Silva, Olavo Rocha, Bru-
prédio antigo ter toda uma coisa histórica e tal. Quem pegou o no Carneiro e Papito, participaram com vários saltos, enquanto Marcelinton Lima
prédio antigo tem uma nostalgia, né? De ser o prédio original fazia a segurança. Ao som da música Misirlou tocada ao vivo por instrumentos de
da Escola e a estrutura no pátio, a meu ver, unificava mais percussão e sopro, Andrea Satie na Lira, também representou muito bem as modali-
a galera. Mas, claro que a gente tem que agradecer de ter esse dades aéreas.
prédio agora. Tem muito mais salas e são bem maiores do que Esta volta parece indicar a insistência em não abrir mão do sonho e da “inutilida-
antigamente”. (Celso José) de” da arte. Isto é, significou o princípio do prazer superando o princípio utilitarista.
Se tornou uma outra forma de afirmar a capacidade da imaginação, do devaneio, do
Ufa! O ensinamento que se pode extrair deste processo é que a determinação e o lúdico. Assim, a arte circense gratuita e “inútil” pode tornar-se uma atividade neces-
empenho pode fazer a diferença em transformar um tropeço num salto. Não dava para sária. De fato, somos mais do que estômago e músculos. O ser humano não pode ser
ter nadado tanto e morrer na praia? Se há males que vem para bem, este pode ter sido reduzido as suas necessidades primárias. Quando isto acontecer, ele estará muito
o caso. Mas, note que a postura não foi de ficar esperando os males se transformarem próximo em tornar-se uma máquina, um ser amputado de alma, um monstro utilita-
magicamente em um bem precioso e desejado. Quem maldosamente apostou que a rista e pragmático. As artes circenses não são coisas ou objetos úteis e práticos como
ENC não ia voltar para seu lugar de origem, caiu do cavalo. Sai para lá, olho gordo! um trilho, um vagão, uma estação de metrô. Aparentemente os números e espetácu-
Nessas mudanças, os alunos participaram ativamente para desarmar e armar as los circenses “não servem para nada”, são “inúteis” para o nosso dia-a-dia se forem
lonas nos dois espaços. Isso gerou um tipo de aprendizado raro na Escola. Além deste, comparados economicamente com tais coisas.
foram vários outros conhecimentos que só tiveram acesso em face da adversidade e da Mas, acontece que para além desta praticidade imediatista, a arte é uma forma de
especificidade das situações. acessar lugares recônditos do ser, é uma maneira de educar os sentidos rumo a uma
ampliação de nossas percepções e sensibilidades. Por isso, não é menos vital que o
transporte do corpo. Como a paixão, a arte circense poder não ser prática, mas a vida
não abre mão dela. É um arquétipo humano mesmo que transfigurado em rituais da
passagem ou xamânicos e presente no inconsciente coletivo de todos os povos. Isso
demonstra que a arte circense é necessária (assim como as outras) e não um mero
adorno da existência. A arte desempenha funções vitais e indispensáveis à vida hu-
mana plena, livre e digna.
O que existe de mais inspirador nestas experiências e momentos históricos dife-
rentes? Penso que é o fato da ENC ser tudo, menos morta. Pelo contrário, a história
mostra como é uma Escola bem viva. Plena de vitalidade e nenhum pouco acomoda-
da. É impulso renovador que ressuscita o ânimo. Desperta vontades.
Em suma, a ENC é muito mais do que uma Escola. É uma irmandade, uma comu-
nidade, uma grande família, uma tribo marcada com os sinais do circo. Vendo o seu
passado, pode se compreender melhor os significados dela passar por um momento na
atualidade em que parece não ter limites para sua capacidade e força criadora.
Este é o seu ofício. Este é o seu tempo. Este é o seu lugar.
Leia mais sobre isto, a seguir.

22 “Praça da Bandeira, no Rio, tem noite de festa na reabertura da Escola Nacional de Circo”. http://www.funarte.gov.br/
Matéria no Diário Oficial da União. Brasília, 18/12/2012. funarte/praca-da-bandeira-no-rio-tem-noite-de-festa-na-reabertura-da-escola-nacional-de- circo/#ixzz3ZgVvRX2c

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Fascínio Circense Abrindo as Cortinas do Sonho...

Após toda a reestruturação física da Escola ficou a grande expectativa sobre a


reestruturação em outras dimensões como a melhoria nas condições de trabalho e
remuneração dos professores, ampliação das possibilidades de permanência e dedica-
ção dos alunos, pesquisa e experimentações na linguagem circense em diálogo com os

Abrindo
aspectos vitais da tradição, entre outros.
Vale sempre o reconhecimento a este ator do Grupo de Teatro popular Vem Cá,
Vem Vê, de Recife. Isso mesmo, ao fundador da Escola Pernambucana de Circo, em
1996. Falo do ex-diretor da Escola Nacional de Circo/Funarte (2005/2013). Sim, José
Clementino de Oliveira. Ou simplesmente, Zezo:

as Cortinas “Gente eu fiquei tão emocionado, porque, ter lutado por essa Es-
cola, ter passado 8 anos na frente dessa Escola pra mim foi
maravilhoso, mas ao mesmo tempo também sofrido, principalmen-

do Sonho
te, nos últimos anos até chegar a esse espaço grandioso e legal.
Então ver a Escola passando por esse processo, por esse avanço,
porque é uma avanço histórico, um avanço de estrutura, isso é es-
sencial e maravilhoso. Eu fico feliz por poder estar fazendo parte
disso. Eu nem teria a obrigação de estar, mas fico feliz, Pra mim é

-2013 a 2016- importante que ela possa estar avançando, e se a oportunidade de


avançar é dialogar sem perder de vista o histórico, porque não dá
pra você pensar o novo sem você estar o tempo todo envolvido com
o que passou. Há um cara que diz muito, que na modernidade,
exatamente vai ser mais moderno aquele que pode recuar a sua
origem e reconhecê-la, e vê-la, e ver o que vai sendo construído”.
(Zezo Oliveira)

De fato, a reestruturação não foi só nos prédios, salas e no picadeiro da Escola. Ela
também aconteceu (e ainda está em curso) através de várias transformações ocorri-
das nos anos posteriores a reinauguração na Praça da Bandeira. Juntaram a fome
com a vontade de comer.
Assim, a Instituição tem realizado um conjunto de ações continuadas que tem em
comum buscar consolidar a ENC como um espaço privilegiado para a pesquisa e ex-
perimentação artísticas contemporâneas. Isto envolveu e envolve também ampliar o
alcance e inserção social de seus espetáculos, eventos, memória, história, bem como,
a difusão das artes circenses numa perspectiva geral.
As mudanças são de fazer qualquer um tirar o chapéu. A reforma completa da
sede da ENC possibilitou que ela estivesse cada vez mais aberta à sociedade mais
“É preciso um grande amor, capaz de inspirar e de ampla. Além do funcionamento dos cursos regulares, a Escola Nacional de Circo tem
sustentar o esforço contínuo em direção à verdade, atendido alunos de escolas públicas, ONGs e projetos sociais. Em comparação a um
passado mais recente a programação de espetáculos foi bastante intensificada, com
a generosidade conjunta e o despojamento profundo pelo menos um espetáculo por mês. As apresentações são gratuitas. E tem recebido
que implica a gênese de toda obra de arte. bastante público de diversas comunidades e bairros da cidade.
Mas o amor não está na origem de toda a criação?” Apoiado! Durante todo o ano, a Escola esteve de portas abertas para receber o
(Henri Matisse) público, tanto nas apresentações mensais como nas visitas guiadas para pequenos
grupos. Dessa forma, criou oportunidades para um maior número de interessados em
conhecer o cotidiano, sua estrutura e história. Apenas fazendo o agendamento com
alguma antecedência para fazer a visitação que acontece entre 9h e 16h.
A Escola está em plena ebulição neste ano de 2016. Vem desenvolvendo uma

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Escola Nacional de Circo Abrindo as Cortinas do Sonho...

série de atividades e ações articuladas como o Projeto #VEMPRAENC, o Programa do seu prestigiado novo espetáculo intitulado Labor, na lona do Circo Marcos Frota
ENC de Intercâmbios nas Artes do Circo, Ocupação da ENC, (dentro do Programa instalada na Quinta da Boa Vista às 17h30 e organizar o Seminário Nacional de For-
Laboratório ENC), Programa de Monitoria, Projeto Memória ENC, e uma maior aber- mação Artística e Cultura que celebrou em novembro de 2015 os dois meses de aulas
tura para pesquisadores de universidades públicas e privadas, centros de memória e do Curso Técnico da ENC, no dia 30 de março, a Escola Nacional de Circo inaugurou
cultura e para agendamento das visitas guiadas. sua agenda de apresentações mensais até novembro de 2016.
É extraordinário que Escola Nacional de Circo através do Laboratório ENC tenha Segundo informações da Escola divulgadas no site da Funarte, LABOR é o resul-
selecionado projetos de residências artísticas, intercâmbios, ocupações e monitorias tado do processo de investigação e experimentação do primeiro módulo de pesquisa do
para serem realizados no período de fevereiro a dezembro de 2016. O edital público novo formato do Curso Técnico em Arte Circense da Escola Nacional de Circo (MinC/
esteve aberto para pessoas físicas ou jurídicas de direito privado (com ou sem fins lu- Funarte) que iniciou no final de agosto de 2015. A montagem dirigida pelo professor
crativos), de natureza cultural; ou grupos informais, distribuídos conforme os módu- Alexandre Souto, aborda de uma maneira bastante rítmica, corporal, física e gestual,
los específicos.23 A Comissão de Seleção composta pelo Carlos Vianna e pela chefe da as relações do homem com o mundo do trabalho em suas mais diferentes perspectivas,
Divisão Pedagógica, Ana Vasconcelos avaliou as 27 propostas inscritas, nos diferen- abarcando desde aspectos pessoais, rotineiros, até dimensões mais amplas, como, a
tes módulos. Deste total, seis foram desclassificadas por não cumprirem as normas e constante pressão do relógio, do deus kronos devorando os percalços cotidianos e as
regras estabelecidas. relações interpessoais do corpo com o trabalho.
Pude participar no dia 13 de maio de 2016 da emocionante comemoração dos 34
“A Comissão também verificou que o número de aprovados está anos da Escola Nacional. O dia estava um pouco frio e com uma chuvinha fina e insis-
dentro do limite de alunos que a Escola Nacional de Circo pode tente que felizmente deu uma trégua
receber em 2016, de forma a atender todos os artistas, mantendo as próxima a hora dos três espetáculos
funções e atividades do Curso Técnico em Arte Circense”.24 começarem. Fragmentos e Cirkospí-
cio, das Cias Giracorpos e Cirkospício
Segundo os dados divulgados pela Funarte, das 14 propostas contempladas, sete (frutos do processo criativo dos alunos
(7) são do Rio de Janeiro, uma (1) da Bahia, uma (1) de São Paulo, uma (1) da Colôm- da Escola no Laboratório ENC sob a
bia, duas (2) da Argentina e duas (2) procedentes do Equador. Desse modo a Escola
orientação dos Professores Alexandre
irá atender um total de 30 artistas, sendo 22 para o módulo Ocupação – o único que
Souto e Alex Machado) e o espetácu-
contempla grupos e artistas individuais –, um (1) para Monitoria, dois (2) para Inter-
lo LABOR com os 59 alunos do Curso
câmbio e cinco (5) para Residência Artística.
Técnico em Arte Circense. A celebra-
A ENC vive sobre a direção/coordenação geral de Carlos Vianna, um momento
ção do aniversário da ENC foi muito
muito fecundo de autovalorização, de reconhecimento da importância dos conheci-
linda. Brindou-nos com momentos
mentos produzidos ali. Isto aliado a uma maior abertura institucional para proporcio- Cartaz do espetáculo. Fonte: publicidade. 2016 inesquecíveis.
nar uma ampla troca de experiências e diálogo entre artistas em formação brasileiros
e estrangeiros nos seus espaços, bem como, para o estímulo e fomento da diferença, A direção geral contou com a colaboração de outros dezessete professores. Estamos
da diversidade e do aperfeiçoamento constante das técnicas e pedagogias circenses. falando de Alex Machado, Alexis Reys, Angela Cerícola, Antonio Rigoberto, Bruma
Viva! Com esta vasta gama de ações ela tem conseguido uma maior visibilidade Saboya, Bruno Carneiro, Edson Silva, Helder Vilela, Latur Azevedo, Luciana Bel-
dos seus processos de ensino e aprendizagem e gradativamente se firmando como um chior, Maria Delizier Rethy, Patrick Nogueira, Patricia Moschini de Moraes, Olavo
polo de difusão, troca e pesquisa de saberes e técnicas entre escolas e espaços de for- Rocha Muniz, Pirajá Bastos, Roberto Pereira da Silva e Walter Carlo.
mações em todo o Brasil e do mundo. Há que se ressaltar que todas estas atividades
são gratuitas. Tanto para brasileiros e estrangeiros. Além disso, na maioria destas
atividades as pessoas tem acesso à toda infraestrutura da ENC (biblioteca, salas de
treinamento, palestras, oficinas, psicóloga, fisioterapeuta, almoço, wifi), e em certos
casos, pessoas, grupos e companhias tem acesso ao espaço físico para ensaios, pesqui-
sa e processos de formação.
A Escola está desenvolvendo um projeto piloto de recuperação de suas fotografias
que terá como resultado, um conjunto documental recuperado, tratado, identificado e
digitalizado. Isto é, uma excelente notícia para a memória visual do circo e para todos
os interessados em pesquisar o passado.
Após a ENC comemorar o Dia Nacional do Circo em 2016, com uma apresentação
23 Para saber mais, ver: www.funarte.gov.br/enc, no menu “Laboratório ENC”.
24 http://www.funarte.gov.br/circo/divulgado-resultado-final-do-laboratorio-da-escola-nacional-de-circo/ Labor. Foto: Cláudio, 13/05/2016 Transfiguração do ônibus/icários. Foto: Cláudio A. Santos. 13/05/2016

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Escola Nacional de Circo Abrindo as Cortinas do Sonho...

Melhor alembro. Em alguns momentos, neste governo federal está assumindo que existe a profissão do instru-
espetáculo temos a sensação de que a realidade tor circense com um cargo de nível superior, com um salário
se revela como se jamais a tivéssemos visto, ou- mais digno para o profissional. Então a gente está estabelecen-
vido e sentido. O elenco reconstrói o mundo sem do um parâmetro para o profissional, para o instrutor circense
um compromisso fotográfico de copiá-lo. Apre- no Brasil todo. É um objetivo que a gente tem há muito tempo e
senta uma experiência em busca de novidades só está alcançando agora”. (Carlos)
e invenções. Diria, que esta é uma passagem
do instituído ao instituinte. Uma ação poética O nome das vagas (“Profissional de Artes Cênicas – Instrutor Circense”) reflete
(criadora) de transfiguração do existente numa a realidade brasileira, onde ainda não existe o reconhecimento por parte do governo
outra realidade através da composição, do rit- federal da categoria do professor circense, mas apenas, do instrutor circense, de
mo, da técnica na modalidade específica e/ou na nível superior. Mas, antes dessa contratação, dos mais de dez professores que esta-
mistura de modalidades, fazendo-a renascer sob vam atuando apenas um professor era efetivo (Edson Silva). Todos os demais eram
a forma de uma obra artística cênica, espetacu- contratados:
lar que precisa do encontro com a plateia num
tempo e espaço para realmente acontecer. “A maioria dos nossos educadores são contratados como auxilia-
Explico a você. Ao invés de imitativa ou re- res administrativos. E isso os coloca num lugar em que o salário
produtiva esta obra de arte é busca de expres- de um auxiliar administrativo não tem comparação com o salário
são de formas relativamente novas. Tem uma de um educador, sobretudo, se esse educador, tem formação, seja
dimensão interpretativa em alguns momentos. ela genuína ou seja ela uma formação de fato adequada, no sen-
Dramaturgia corporal. Foto: Cláudio Alberto
Reflete sobre o tempo mecanizado, sobre o tra- tido do que a gente compreende como adequado hoje. E isso já é
dos Santos. 13/05/2016
balho burocrático e opressivo, sobre a sociedade, um fator motivador, né? Quando você é reconhecido salarialmente
volta-se para ela, seja para criticá-la ou superá-la. Mas, as imagens do exterior são falando, quando você é reconhecido financeiramente falando você
embaralhadas, processadas criando imagens sínteses. Assim, reconfiguram, reinven- tem uma postura diferente”. (Alexandre Santos)
tam, criam e deslocam categorias habituais. Afinal, faz uso da licença poética que o
mundo da arte possibilita de imaginação e sonho. Talvez, até porque o homem con- Sem dúvida, a situação anterior ao concurso é o resultado de uma visão gover-
temporâneo sonhe cada vez menos, perdido em seu individualismo. namental que atravancava completamente a existência futura de uma carreira de
Apresenta um distanciamento da forma conhecida na experiência imediata e cons- professores no Ministério da Cultura. Alexandre não está falando só do aspecto finan-
trói um deslocamento da vida real através de uma outra realidade temporária que ceiro, mas da necessidade de colocar o educador no lugar do educador. Isto é, se na
por meio de símbolos , movimentos e gestos evoca aspectos materiais externos ausen- classificação do profissional no momento de ser contratado já não é feito dessa forma,
tes no picadeiro. colocando o educador “em desvio de função” num lugar que profissionalmente não é
A linguagem desta montagem contou com as contribuições de alguns professo- o dele, há um problema. Entretanto, mesmo que o cargo de “instrutor circense” não
res que estão ligados a um recente fato histórico para a Escola. Cinco deles foram seja o ideal, nele já existem muitas vantagens e conquistas em relação a patamares
contratados como professores efetivos na categoria de “instrutores circenses” em um anteriores. Há um maior reconhecimento salarial, entre outros estímulos do plano
processo seletivo público que envolveu provas teóricas e provas práticas (7, 8 e 9 de de carreira. A Escola deve caminhar rumo a uma equalização deste desequilíbrio
junho de 2013). 25 futuramente. As mudanças não vão parar, pois, com a contribuição de Marcos Tei-
No dia 28 de fevereiro de 2014, tornou-se público o resultado dos nomes dos apro- xeira fazendo muitas vezes a interlocução entre ENC e Funarte, tem sido crescente
vados do cargo de Nível Superior: Profissional de Artes Cênicas – Instrutor Circense a perspectiva de apoio, reconhecimento, diálogo e ampliação das conquistas já feitas.
da Fundação Nacional de Artes: Bruma Seigneur Carvalhal de Saboya Ribeiro, Alex Todavia, a exigência por parte do edital de um título de graduação em curso supe-
Rodrigues Machado, Luciana Belchior Mota, Patrícia Moschini de Souza e Patrick da rior para poder participar do processo, não foi unânime, na época:
Costa Pereira Nogueira. Tudo em conformidade com os dispositivos da Constituição
Federal de 1988 e com o Edital nº 01/2014 - FUNARTE, publicado no Diário Oficial “As coisas estão caminhando. Estão se modificando. Mas acho
da União. Alex Machado trabalhava na ENC como contratado na época do concurso e fundamental pra existência desse espaço, os mais antigos. Mui-
após ser selecionado migrou para o novo cargo. tos deles não têm condição de concorrer a esses cargos porque se
A direção e a coordenação pedagógica viram essa contratação de uma maneira precisa de um diploma de curso superior. É difícil pra se inserir
promissora, como era de se esperar. Com a palavra Carlos Vianna em entrevista: nessa metodologia de ensino quem vem educando a partir da tra-
“Olha, eu vejo de uma maneira muito positiva. Eu acho que dição familiar. Quem vem estudando circo a vida toda e nunca se
para a profissão de circense em geral é até um marco, por que, o enveredou pelo lado do ensino formal, dificilmente vai conseguir
25 “ComunicadoConcursopúblico:ProfissionaldeArtesCênicas–InstrutorCircense(nívelsuperior)”.www.funarte.gov.br ter condições de concorrer a esse tipo de cargo”. (Demitri Manaf)

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Escola Nacional de Circo Abrindo as Cortinas do Sonho...

A renovação do quadro docente vinha sendo discutida desde o tempo em que o foi comemorado na ENC com o espetáculo: Tudo Novo de Novo, reunindo cerca de 600
Zezo Oliveira era o diretor. Parece que a própria reivindicação das vagas já tinha sido pessoas na lona com um público formado em sua maioria por crianças (de nove esco-
pleiteada por ele. O requisito estabelecido nesse concurso público do candidato ter las e algumas instituições do Andaraí, do Méier, Vigário Geral, entre outros lugares)
uma formação superior dialoga com o objetivo de dar maior peso aos conteúdos peda- que entravam em um circo pela primeira vez. A apresentação contou com participa-
gógicos e estabelecer um parâmetro salarial acima do anterior? Possivelmente, sim. ção especial do casal de palhaços Café Pequeno (Richard Righetti) e Currupita (Lilian
Mas, ele pode excluir a possibilidade do perfil anterior de professor? Não totalmente. Moraes), do Grupo Off-Sina, companhia de circo-teatro com 23 anos de existência.
Dificulta imensamente, sem dúvida. Mas, não impede. Demitri percebe o alcance do Mas, foi em 17 de abril, que houve finalmente a tão esperada, a tão sonhada
significado. Foi uma opção que representou uma mudança histórica nos critérios do divulgação oficial na página da Funarte que a Escola Nacional de Circo ofereceria
tipo de perfil docente desejado pela Instituição. Por sua vez, isto dialoga com outras o primeiro curso técnico em arte circense do país reconhecido pelo Ministério da
mudanças na própria estrutura e perfil da Escola que já estavam em curso? E se o Educação. Coisa formidável! O Curso tem duração de 4 (quatro) semestres e carga
concurso não tivesse o critério excludente, alcançaria de fato o professor vindo de uma horária total de 2800 horas e implicou numa ampla reformulação do próprio Projeto
família tradicional de circo? Pedagógico da Escola.
O professor da Unicamp, Marco Bortoleto, também reflete sobre estas mudanças
em entrevista concedida para este trabalho:

“Acho que no princípio o perfil do professor era o circense de


família, de tradição que vinha pra Escola Nacional atuar, por-
tanto já trazia um conhecimento muito profundo, e isso era
importante. E hoje o perfil do professor vem mudando não só pela
exigência de um papel, de um certificado. Mas vem mudando exa-
tamente pela disponibilidade no mercado de novos professores,
porque não é fácil você encontrar disponível hoje um circense de
quinta geração, quarta geração que esteja disponível, vir morar
no Rio e dar aula”. (Marco Bortoleto)

O pesquisador apresenta o paradoxo de que não é o critério que é excludente, mas


que o tipo de profissional anterior não está mais disponível como anteriormente. Si-
nal dos tempos. Um contraponto que ajuda a pensar outros problemas mais gerais.
Na percepção de Bortoleto, se por exemplo, a Escola abrisse um edital de contratação
de professores só para circenses de terceira, quarta e quinta geração, ela teria proble-
ma em preencher essas vagas. Isso soa estranho? O raciocínio é que se do outro lado
“tradicional” não tem gente sobrando, então, deve-se ver e valorizar o que de fato tem. Ilustríssimos participantes do Seminário/Projeto Pedagógico da ENC. Foto: Cláudio Santos. 04/04/ 2014

Depois de décadas de existência este reconhecimento através da Resolução nº 11


“Eu espero muito que essas pessoas entrem porque essas pessoas
de 2 de abril de 2015, assinada pelo Presidente do Conselho Superior e Reitor do Ins-
tem a filosofia do que é ser de circo”. (Celso José)
tituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro- IFRJ veio coroar
Salve! Como sugere a fala do “Celsinho” a realidade apresentou respostas melhor todo um trabalho e esforços realizados por uma insistente coletividade. Isso foi de
do que as esperadas. Os candidatos aprovados, em sua maioria, foram ex-alunos for- arrebentar a boca do balão. Muitas pessoas pularam de felicidade e se sentiram nas
mados pela ENC. Aprenderam com os vários professores veteranos da Escola. Sabem nuvens.
o que foi ótimo e aquilo que hoje podem mudar. O resultado do concurso foi que pre- Nos primeiros dias de maio, a ENC esteve representada no espetáculo Beleza da
valeceu uma síntese dialética entre tradição e contemporaneidade que veio somar e Cia. Sarabanda, com os alunos Ciro Ítalo e Renata Vatucci. Esta montagem dirigida
embasar significativamente as mudanças em curso da Escola. Os profissionais con- e coreografada por Boris Vecchio e Cinzia de Lorenzi (renomados artistas italianos)
tratados demonstraram ao longo desses poucos anos em exercício do cargo que eles já havia integrado o XIV Festival Internacional de Circo e Teatro Circumnavigando,
atendem o requisito de uma diplomação oficial e de serem circenses, isto é, de pos- em 2014, na Itália. A temporada no Rio de Janeiro, no Espaço de Criação da Intrépi-
suírem conhecimentos técnicos específicos desta arte em um nível avançado. Solução da Trupe na Fundição Progresso, fez parte da segunda fase da parceria. Na primeira
melhor, impossível (no momento). fase do projeto, Ciro e Renata foram selecionados, na ENC, para participar de todo
Agora, após estas digressões dá-se continuidade ao breve histórico entre 2013 e o processo da criação. Além deles, participaram do elenco Bruno Carneiro e Julio
2016. Assim, é bom lembrar que em 27 de março de 2015, o Dia Nacional do Circo Nascimento, formados pela Escola. Esta encenação que buscou estabelecer imbrica-
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mentos e diálogos entre diferentes artes (circo, teatro e dança) e culturas foi resultado (Peru), Nicolás Esteban Mancisidor Gonzaléz, Nicolas Alejandro Parraguez Castro
de uma cooperação internacional da Escola Nacional de Circo/Funarte, a Associação (Chile); e uma representante da Europa: Inka Alina Madeleine Müller (Alemanha). 26
Sarabanda Genova (IT) e o Instituto Italiano de Cultura. Em relação ao formato do último edital similar lançado de Formação Básica, só
Pudera! Em maio, foi lançado o também já ansiado, Edital Bolsa Funarte para para termos ideia de algumas mudanças, manteve-se o mesmo objeto do edital e as
Formação em Artes do Circo - 2015 que ofereceu 60 vagas para o Curso Técnico mesmas 4 etapas do processo seletivo, fora isso, existem muitas diferenças como o
em Arte Circense. A ENC preparou um tutorial disponível no youtube, que reuniu aumento do número de 50 para 60 bolsas.
12 vídeos, em que o artista e ex-aluno, Bruno Carneiro, executa os movimentos e É bastante válida a comparação porque foi o sucesso da iniciativa (nas edições
exercícios que os candidatos deveriam realizar conforme o edital. Este edital vem 2011, 2012 e 2013 do primeiro edital, atendendo a 125 artistas circenses de 17 esta-
consolidar o Curso reconhecido pelo Ministério da Educação, ao fornecer as condições dos, incluindo todas as regiões do Brasil) que estimulou a proposta do novo edital e
necessárias para o salto qualitativo da Instituição através das bolsas no valor de R$ curso nos moldes em que foram idealizados.
55 mil para os estudantes selecionados, no período de agosto de 2015 a junho de 2017. Em 2014, aliando “o desejo de se reinventar” e de elevar “o nível técnico geral dos
Nos dias 4 e 5 de agosto, os 70 candidatos que passaram para a terceira etapa do alunos, a ENC refez o seu projeto pedagógico propondo um curso de formação em
processo seletivo realizaram as provas presenciais na ENC. Eles foram avaliados por período integral”, contemplado por bolsa de estudos durante toda sua duração e com
uma Comissão de Seleção e fizeram provas de habilidades específicas previstas no uma dimensão voltada à pesquisa e à criação artísticas até então não verificadas na
edital. A Funarte publicou o resultado final com os nomes dos 60 candidatos aprova- história da Instituição.
dos na Bolsa Funarte para Formação em Artes do Circo 2015, no dia 10 de agosto, no Na habilitação dos candidatos no edital de Formação Básica só permitia os brasi-
Diário Oficial da União. leiros natos ou naturalizados (pessoa física), com idade mínima de 18 (dezoito) anos
Foram selecionados cinquenta candidatos de nacionalidade brasileira, com repre- e idade máxima de 25 (vinte e cinco) anos. No de 2015, todos os brasileiros natos ou
sentantes de todas as regiões e do Distrito Federal. O que já de início demonstra o naturalizados (pessoa física) e estrangeiros que tiverem concluído o ensino médio até
alcance e capilaridade do programa. Três representantes da região Norte: John Win- a data do edital foram considerados aptos a participar da seleção.
der Vieira da Gama (Amazonas), Thiago Silva Monteiro e Rayssa Palheta da Silva No que se refere às inscrições, acrescentou-se no último edital o Projeto de Pesqui-
(Pará); Cinco da região Nordeste: João Silva Osmar de Souza (Ceará), Alexandre sa Circense do candidato, em duas vias, e, escrito em língua portuguesa. O prazo de
Santos Ramos do Nascimento Júnior (Pernambuco), Luiz Alberto de Sales (Alagoas), vigência da bolsa de 10 meses não consecutivos passou para 24 meses consecutivos. A
Gladys Reinaldo do Espírito Santo e Ilaise Silva Santos (Bahia); Quatro da Região forma do pagamento e o valor da bolsa mudaram: antes era efetuado em 3 (três) par-
centro-Oeste: Rafael Fernandes Balbinot e Edivaldo Silveira da Silva ( Mato Grosso), celas, depositado diretamente na conta bancária (conta corrente) dos selecionados,
Rafael Lustosa da Silva, Norrana Hadassa Borger dos Santos (Goiás); Dez da Região agora: os recursos foram e serão depositados através 01 (uma) parcela de R$ 5.000,00
Sul: Gabriel Oliveira de Paula Costa (Rio Grande do Sul); Nove do estado Paraná: Ka- (cinco mil reais), após a comprovação da aprovação do candidato, encaminhamento da
rina Mitie Kuniyochi, Welyton Renan Bispo da Silva, Samuel de Oliveira Reise, Pa- documentação complementar e apresentação do projeto de pesquisa, e por 20 (vinte)
trícia Kostecki Santos, Roberto Carlos Freitas Griespach, Juliano Dias de Alvarenga, parcelas de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), pagas mensalmente a partir do
Gustavo Akira Aihara, Valdirene Cordeiro da Silva, Rafaela Oliveira; Vinte e sete da início do 2º bimestre do curso mediante frequência mínima obrigatória e coeficiente
Região Sudeste: Oito de Minas Gerais: Alice Tibery Rende, Gabriel Henrique Alves de rendimento satisfatório do aluno. Antes no edital informa que a Comissão de Se-
Silva, Fernando Henrique Domingues Gonçalves , Ivan Luiz Soares, Matheus Men- leção seria presidida pelo Diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte ou por um
donça Aquino, Lucas Oliveira de Souza, Gizelle Mariana Pimenta Perreira Flores, representante designado pelo Presidente da Funarte, no último, especificou-se que
Welber Barbosa Martins; Treze de São Paulo: Rachel Cristina da Silva, Kauê Rodrigo seria presidida pelo Coordenador da ENC (nova forma que é chamada a função de
Soares Santos Silva, João Batista Ferreira de Oliveira, Letícia Ramos, Paulo Ema- Diretor da Escola) a Comissão de Seleção. 27
nuel de Oliveira, Débora Fransolin Pires de Almeida, Bruno Ranieri Bueno Buccie- Segundo Celso José:
ri, Karen Massae Nashiro, Dyego Yamaguishi, Joana Brant De Carvalho, Raphaela
Abreu Olivo de Almeida, Núria Della Volpe, Jessica Alexandre da Silva, Seis do Rio “A graduação ser também integral, de 8 da manhã às cinco da tar-
de Janeiro: Rodrigo Gomes de Mello Costa, Gilmar Oliveira da Silva, Danielle Robles de e ter uma bolsa como ajuda de custo, eu acho que é uma solução
Anticona Rodrigues, Marcella Collares de Queiroz Ribeiro, Yasmin Ferreira da Silva, legal, porque dentro de uma grade maior você consegue colocar es-
Raquel Lima Castro; Uma do Distrito Federal : Isabela Mello Madeira Coelho. sas aulas teóricas sem atrapalhar o mais legal, que é você treinar
Do exterior, ao todo foram escolhidos dez representantes: nove da América do Sul, sua técnica circense, sua acrobacia e tudo mais”. (Celso José)
sendo de quatro países diferentes: Sofia Ferrari, Laura Gisela Calfuquir e Benjamin
Alberto Conti (Argentina) Christian Javier Naigua Aucancela e Sofia Moreno Iva-
nova Pavón ( Equador), Hector Antonio Marrache Bottega e Alain Prada Gutierrez 26 Conforme o documento público: “Resultado Final - Convocação Para Análise Documental”. www.funarte.gov.br
27 As informações base da análise comparativa estão disponíveis nos editais divulgados publicamente.

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Dando prosseguimento à narrativa das outras atividades, o coordenador, pro- e Paulo de Oliveira, Canastilha, Caminhos – Akira Aihara, contato, Rio Hello – Fer-
fessores e alunos da Escola participaram da 8ª edição do importante Festival de nando Domingues, Gabriel Henrique e Matheus Mendonça, Dândis e Atlas – Gabriel
Circo de Campo Mourão (PR), realizado entre os dias 26 e 29 de agosto. Durante Henrique, Paradas Curadoria: Prof. Alex Machado e Prof.ª Luciana Belchior.29
o evento, Alexandre Souto, Alex Machado e Alexis Reyes González ministraram
respectivamente, as oficinas Acrobacias de Solo e Trampolim Acrobático, Tecido/
Corda e Canastilha. Carlos Vianna fez a palestra Perspectivas para a Formação
em Artes do Circo. Os alunos Welyton Renan, Patricia Kostecki e Karina Kuniyochi
participaram do espetáculo Varieté.
Contos e Fadas, espetáculo dirigido pelo professor Edson Silva, com a colabora-
ção dos demais professores, comemorou em outubro, com apresentação na ENC, o
50º Concurso Criança Sorriso, realizado pela Associação Brasileira de Odontologia
(ABO) – RJ. Este é o primeiro espetáculo, formado pelos alunos depois da seleção dos
60 bolsistas para o Curso Técnico em Artes Circenses. A plateia foi composta princi-
palmente por crianças de 3 e 12 anos da rede pública de ensino e entidades assisten-
ciais. Esta apresentação foi uma contrapartida do apoio dado pela ABO em fornecer
tratamento dentário dos alunos.
Boa! Nos últimos três meses de 2015 a Escola abriu os portões para a população
para uma intensa agenda de programações que abarcou espetáculos, seminários e
mostras artísticas.
O Grupo Off-Sina/Escola Livre de Palhaços (Eslipa), com a qual a ENC mantém
parceria, na última semana de outubro, realizou na Escola, o Seminário Desafios da
Caminhada na Arte e no Ofício do Palhaço Brasileiro, com participação de Teófanes
Silveira, o palhaço Biribinha e do Carlos Vianna, entre outros. Este evento contou
com os espetáculos Confraria de Palhaços, da Eslipa; Eu sem você não sou ninguém,
da Companhia Teatral Turma do Biribinha, e Palhaçatura – Rito de passagem, for-
matura dos alunos da Eslipa.
No início de novembro, a Escola organizou o Seminário Desafios e Perspecti-
vas para Formação em Artes do Circo, que teve como temas a história da ENC,
sua reestruturação e o modelo do atual Curso Técnico em Arte Circense. Na ocasião
participaram representantes da Funarte, da ENC, do Ministério da Cultura, do Insti-
tuto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), da Univer-
sidade Estadual de Campinas (Unicamp) e de escolas de circo de diversas regiões do
país. Alunos da ENC fizeram intervenções artísticas na abertura e no encerramento
do seminário. 28
Tendo como objetivo apresentar aspectos do processo de aprendizagem destes alu-
nos no Curso Técnico em Arte Circense (que teve suas aulas iniciadas em 31 de agosto
de 2015) aconteceu a Mostra Artística da Escola Nacional de Circo, com entrada
gratuita no dia 15 de dezembro do mesmo ano). Ela foi dividida em duas partes: a
primeira, com a apresentação do espetáculo Circo em Cena (fruto da criação e experi-
mentação de cinco alunos e do professor Alexandre Souto); a segunda, com apresen-
tações de números em diferentes modalidades e criados a partir de pesquisas indivi-
duais ou em grupo, sob a curadoria dos professores Alex Machado e Luciana Belchior.
No elenco do espetáculo, Alexandre Souto e os alunos Alice Tibery, Antônio Mar-
rache Beto Freitas, João Osmar e Samuel Oliveira. A segunda parte contou com os
seguintes Números: Que Valha a pena – Débora Fransolin, Tecido, Lobo – Alexandre 28 http://www.funarte.gov.br/circo/escola-nacional-de-circo-realiza-seminario-%E2%80%9Cdesafios-e-perspectivas-pa-
Santos, trapézio, Mata Hari – Yasmim Ferreira, Corda indiana, Duo Eros – Welber ra-formacao-em-artes-do- circo%E2%80%9D. Publicado em 5 de novembro de 2015.
29 Dados do Elenco e dos Números: http://www.funarte.gov.br/circo/funarte-apresenta-dia-1512-mostra-artistica-da-escola-
Barbosa e Gizelle Pimenta, Quarteto – Thiago Monteiro, Sofy Pavon, Rayssa Palheta nacional-de-circo/

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Fascínio Circense Cláudio Alberto dos Santos
Espetáculo Cabaré – Gabriel (volante) Danilo e Rafael (portôs). Foto: Mídia Ninja.

ESPETÁCULOS/2014
-Alquimias da Cena-
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Fascínio Circense CABARÉ

O espetáculo CABARÉ representou a ENC no 2º Festival Internacional de Circo


do Rio de Janeiro (2014). Teve direção de Raquel Rache de Andrade e Guy Carrara,
assistência de direção de Valèrie Bordedebat e preparação técnica do corpo docente
da Escola Nacional de Circo - Alex Machado, Alexandre Souto, Alexis Reyes Gonza-
lez, Angela Cerícola, Chicão, Edson Silva, Jamelão, Janaína Guerreiro, Juliana Ber-
ti, Latur Azevedo, Marcelinton Lima, Pirajá Bastos e Walter Carlo.
Este trabalho apresenta características muito interessantes para se pensar numa
linguagem circense brasileira e contemporânea em termos de uso da multiespaciali-
dade, múltiplos focos, justaposições, quebras constantes de climas, contrastes e au-
sência de narrador (mestre de pista), entre outros recursos.
O público reagiu de forma fantástica, a aceitação foi ampla e o sucesso enorme.
Frente às adversidades do processo criativo superou todas as expectativas. O am-
biente da lona de circo da ENC transformou-se num club noturno de cabaré. Tudo é
festivo e sensual. O espetáculo ofereceu diferentes espaços e ambientes para o espec-
tador ficar. A dança cumpriu um papel de destaque, aparece em vários momentos e
de uma forma crucial ao conseguir unir o teatral ao movimento dentro de um ritmo. A
trilha sonora original conseguiu expressar estados de espírito, sentimentos e emoções
correspondentes a diferentes momentos. Também foi um dos principais meios para
estabelecer contrastes, intensificar cenas e estabelecer climas. A música é presente
praticamente o tempo todo. Sendo que o ROCK desempenha um papel central.
O espaço da plateia foi dividido em mesas cobertas com forros vermelhos e cadeiras
em volta. No picadeiro, o que prevaleceu no espetáculo foi uma cenografia compacta e
reduzida a um mínimo de elementos concretos: cortinas, tambores e plataformas. No
caso dos tambores esse conjunto cenográfico teve como função primordial representar
um meio físico, um objeto de uso concreto, um meio estético.
O elenco foi composto pelos seguintes alunos da Escola - Aisha Britto, Alice Tibery
Rende, Alisson Almeida, Ana Júlia Moro, Andrea Satie Nohara, Artur Cacciolari,
Arthur Marques, Carlos Petit, César Augusto de Paula, César Augusto Rodrigues,
Ciro Ítalo, Daniele Costa Ferreira, Danilo Ribeiro, Demitri Manaf, Fabiano Souza,
Vanessa performando a Parada no Cabaré. Foto: CAS. 2014

CABARÉ
Para Surpresa e Deleite Geral da
Nação Internacional do Circo Cena na parte final. Foto: Mídia Ninja. 2014. Rio de Janeiro.

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ

Gabriel Martins, Gisela Portal, Jana Serrat, Kleber Lira, Letícia Ramos, Luiza Fer- que é isso. Tem uma dificuldade nisso que é a gente sair da nossa
nandes, Maria Clara Bathomarco, Maurício José da Silva, Rafael Alves, Raíssa Pa- normalidade. A normalidade da Escola Nacional de Circo é o
lheta, Rosângela Bandeira Leite, Samuel Oliveira, Sofy Pavón, Toño Marrache, Va- treinamento técnico, repetição, algumas apresentações em dias de
nessa Lopes e Wallace Rhuan. Olavo Rocha Muniz era monitor de acrobacia de solo prova, dois espetáculos por ano. Então, você ter um espetáculo
na disciplina do Souto. novo entre as atividades eu com certeza sabia que seria compli-
João Franco foi o responsável pela iluminação, Karlla Tavares pelo figurino, Artu- cado. Mas eu também não poderia dizer não e tirar dos alunos
ro Cussen pela trilha sonora, Creso Filho criou a coreografia. A produção e a assistên- essa oportunidade de participar desse projeto com uma compa-
cia de produção foram respectivamente de Luana Lessa e Flávia Spinardi. Esta ence- nhia importante na cena do circo no mundo”. (Carlos Vianna)
nação franco-brasileira tendo a frente os diretores da Archaos, uma das importantes
companhias francesas de circo contemporâneo teve o apoio da Funarte e do Consulat A Companhia Archaos passou por muitas transformações em sua trajetória, mas
Général de France no Rio de Janeiro e do Institut Français. 30 dificilmente deixará de ser reconhecida como uma das expoentes do movimento que
Mesmo com a classificação de 16 anos, o espetáculo foi apresentado de 14 de maio, sacudiu a poeira da linguagem circense mundial a partir dos anos 80. No final dessa
uma quarta-feira até o sábado, 17 de maio, às 22h na lona da Escola sempre com a década e início dos anos 90, leva a criação e a destruição da beleza explodindo coisas,
casa cheia. Os ingressos foram gratuitos, bastava retirar uma hora antes do espetá- cortando carros ao meio, fazendo malabarismo com motosserras e inspirando uma ge-
culo no local. Cada pessoa teve direito a um ingresso, acompanhantes tiveram que ração inteira. Nos seus espetáculos, já não havia outros animais além do homem. Me-
entrar na fila também. tal Clown teve como tema o “descobrimento do Brasil”, a vida nas ruas e a violência
doméstica misturado com a linguagem usual da Archaos de choque, caos e contraste
entre o amor e a violência. Outros espetáculos marcantes dessa época são Chapiteau
des Cordes, Bouinax BX91.31
Já no ano seguinte da sua criação, foi reconhecida por seu trabalho precursor no
Festival de Avignon. Depois disso vieram sucessivas premiações na Grã-Bretanha e
Processo Criativo na França. Archaos foi e é uma companhia extremamente ativa e inventiva que per-
correu dezenas de países pelo mundo. Não podemos esquecer-nos de suas experimen-
Raquel Rache, é ex-aluna formada na primeira tur- tações no Brasil, na Austrália, em Israel, no Canadá, na Itália, Espanha, Alemanha,
ma da Escola. Fez carreira artística no exterior e é uma Inglaterra, Irlanda, Holanda, Dinamarca, Suécia, Finlândia e Noruega. 32
das fundadoras do Polo de Circo do Mediterrâneo, em Depois de um estrondoso sucesso em 1990 com o Metal Clown chegando a fi-
Marselha, na França. No Brasil, em 2009, dirigiu dois car em temporada no Clapham Common (Londres), em 1990, por três meses (!),
espetáculos, um só com alunos da Escola e um em par- a continuidade da turnê de 1991 encontrou sérias dificuldades financeiras após a
ceria com alunos de escolas circo associadas à Federação lona ter sido destruída por vendavais em Tallaght, Dublin.33 Isso, e uma série de
de Escolas de Circo da Europa (FEDEC). Eles se apre- diferenças artísticas, levou a um impasse na continuidade da Archaos. Assim, tudo
sentaram em festivais europeus. Alguns alunos depois indica que a partir de 1993 a companhia entra numa nova fase onde a cenografia e
do trabalho também conseguiram montar suas próprias a abordagem artística estabelecem um diálogo mais rico e específico com as salas de
companhias que se apresentam em vários lugares do concerto e espaços fechados.34 Em 1997, Pierrot Bidon e a sua segunda esposa Ana
Rache de Andrade (irmã da Raquel Rache) se instalam no Brasil e fundam o Circo
Brasil e no exterior.
da Madrugada. 35
Em outras oportunidades, Raquel e o Guy Carrara
Foi exatamente no ano 2000 que Raquel Rache de Andrade performer na Archaos
ministraram oficinas de criação de espetáculos circen-
desde 1988, torna-se codiretora ao lado de Guy Carrara. Em 2001, a companhia mu-
ses na ENC. Dessa forma, havia já constituída uma re- dou-se para Marselha e criou o CREAC (Centro Europeu de Pesquisa das Artes Cir-
lação de muitos anos com a Escola. Nesse sentido, tinha censes). Este centro é um lugar aberto para encontros, debates, trocas, reflexões e
plena confiança por parte da coordenação pedagógica e ações para todos os artistas e companhias de circo. Funciona também como um labo-
direção. ratório de pesquisa permanente, sobretudo sobre o treinamento do ator do circo dra-

“Quando houve essa proposta no ano passado 31 Apresentação completa do Bouinax BX 91, em Bristol - 18/7/91: https://www.youtube.com/watch?v=m-HWjIJtVVM; o
Metal Clown : https://www.youtube.com/watch?v=haQ8ekMzs7o
de montar esse espetáculo a gente foi super receptivo e conversa-
32 TAIT, Peta.Circus bodies: cultural identity in aerial performance. New York: Routledge, 2005.
mos no melhor interesse dos alunos. Eu acredito que da montagem 33 PATRICK, Ian. Archaos. Paris: Éditions Albin Michel S.A. et Vue sur la ville, 1990.
do espetáculo sempre você tira várias lições que por vezes no dia 34 CARRARA, Guy. In Vitro. Ou la légende des clones. Montpelier:L'Entretemps, 2009. 35 MALEVAL, Martine. Archaos
– Cirque de caractère. Paris: Actes Sud/CNAC, 2010. 36 Ver: http://pole-cirque-mediterranee.com/?page_id=77
a dia de aulas e treinamentos você não tem uma dimensão exata do 35 MALEVAL, Martine. Archaos – Cirque de caractère. Paris: Actes Sud/CNAC, 2010. 36 Ver: http://pole-cirque-mediter-
ranee.com/?page_id=77
30 Fonte: Ficha Técnica Cabaré - Archaos / Escola Nacional de Circo (2014). 36 Ver: http://pole-cirque-mediterranee.com/?page_id=77

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ

mático. Segundo a página na internet o CREAC “é um lugar criado por artistas para Voltando ao Cabaré, isto é, o “espetáculo novo” de que fala Carlos Vianna. Em certo
artistas”.36 As companhias podem alugar o espaço por uma semana (por 20 euros), momento a montagem incomodou bastante os alunos que não estavam participando
um mês (50 euros) ou até por um ano (130 euros). Há muita procura e a agenda vive dela - por ter interferido em sua rotina de aulas, atenção dos professores, horários
cheia. Em 2012, o espaço Archaos – CREAC foi credenciado pelo Ministério da Cul- e espaços. Foi um pouco complicado principalmente pelo o uso do picadeiro, pois o
tura francês como o Pólo de Circo do Mediterrâneo. Desse modo, conseguem verbas espetáculo precisou usá-lo para ensaiar durante os dois turnos. Mas, a situação era
e apoio para realizar a Bienal Internacional de Artes Circenses Provence Alpes Côte tão dramática? Houve uma tentava de equilibrar as coisas e com a montagem em
d’Azur em janeiro de 2016. andamento encontrar medidas de minimizar os possíveis danos no decorrer das ati-
Em julho de 2016, durante a 2ª Edição da Annual Internacional Professional Cir- vidades diárias?
cus Award em Sochi na Rússia, Raquel Rache de Andrade e Guy Carrara receberam
o reconhecimento internacional com o prêmio de melhores produtores de circo do “A Escola tem algumas fragilidades no sentido do atendimento
mundo com a programação do “Entre duas Bienais” em 2016 ! pedagógico, e eu acho que o Festival, em particular, está acen-
Entretanto, é impossível falar mesmo que um pouco da história da Archaos sem tuando essas nossas fragilidades no atendimento. Dessa forma,
lembrar-se do papel crucial de Pierre Bidon na sua criação e trajetória nos anos lou- tendo que 104 alunos fazem parte da Escola, acho que 30 estão
cos. Artista que já tinha trabalhado em muitos circos pelo mundo e foi um dos gran- participando do espetáculo, e outras 74 ficaram meio que fragi-
des diretores artísticos do circo contemporâneo. 37 lizados por um processo que não foi planejado. Eu acho sim
Para ele: que tem seu valor, isso é inegável, eu acho que a participação
em festival que tem renome internacional, é sempre um festival
“Uma escola de circo ideal é uma escola naquela se pode aprender internacional, mas acho que essas opções têm que ser feitas cui-
(além das técnicas do circo) todas outros artes ao vivo (dansa, dadosamente, entendeu? De forma que a atividade do Festival, da
commedia dell arte, teatro, musicas etc...) e também outras téc- participação com o espetáculo que é tão rica, essa possibilidade
nicas (escalada, moto trial, preestyle, skate...). Uma escola aberta de criação, ela entrar como um planejamento que engloba os
ao exterior: Incontros com outros artistas, estágios, etc...Em breve a outros alunos, talvez até ali na acessoria técnica, na acessoria
escola ideal farei uma escola naquele o aluno, invés de aprender a da própria direção, como eu falei. Entrando pelos outros setores,
ser o melhore do mundo tecnicamente, aprende a ser o mais hu- que também é formação. Acho que você aproveitar o Festival como
milde e, sobretudo o mais curiose. Um grande artista e um artista escola para outras possibilidades teria sido uma opção - que a
que tem uma boa técnica e muito curiosidade. Quanto aos pro- gente não soube fazer”. (Alexandre Santos)
blemas econômicos do Brasil, eu não conhece uma escola de circo
no mundo sem problemas econômicos, até Chalons e Montreal – so A visão exposta pelo Alexandre, na época presidente do Grêmio, era compartilhada
que eles são differentes. A escola mais “rica” não é a escola que tem por uma boa quantidade de alunos que não se sentiam alcançados por essa parce-
mais dinheira, mas a escola que sabe melhor administrar o ria pedagógica dentro Escola. A situação também era percebida assim por ex-alunos
dinheira que ela tem. Se pode fazer grandes coisas com pouco como Celso José:
dinheira, e nada com muito dinheiro! E veja bem, muitas vezes as
criassãos artísticas sem dinheiro são mais generosas (no sentido “Eu vi que a grande parte dos alunos que não foram selecionados
artístico) que as criassãos com dinheiro. Esse não e dizer que para participar do espetáculo da Escola no Festival, ficaram aqui
não precisa de dinheiro. Ao contrario – precisa de administração e a esmo. Por que? Porque o festival chegou, fez uma parceria com
de generosidade. (Pierre Bidon) 38 a Escola pra fazer este espetáculo. Eu acho isso uma maravilha!
Acho uma iniciativa muito legal, acho que isso tinha que acontecer
A partir de 1988, Bidon começou a dirigir outros trabalhos como por exemplo, a sempre. Mas como o processo de criação se deu aqui dentro da Esco-
banda U2, Circus of Horrors, IP Circus, Goulaj (Rússia), Circus Baobaol (África), la, ao meu ver, atrapalhou a graduação e os bolsistas. Por que
Zinzin (Europa) etc... Além de bandas de músicas, teatros, óperas, eventos, roteiros quem não foi selecionado, quem não tinha um número parcialmen-
de filmagens e o Circo da Madrugada, no Brasil. Desligou-se do Circus Archaos em te desenvolvido e que ficou meio de lado, ficou muitas vezes sem
1997. Morreu de câncer prematuramente aos 56 anos em março de 2010. Guy Carra- aula. Os professores que iam dar aulas para estas pessoas tinham
ra manteve-se firme no Archaos e juntamente com Raquel demonstrou ser ao longo que estar lá ensaiando os números que iam estar sendo feitos no
dos anos um encenador de circo com uma linguagem cada vez mais inventiva e de espetáculo. E pegaram o horário para ensaiar o espetáculo no
grande plasticidade visual. horário da formação, das aulas dessas pessoas”. (Celso)
36 Ver: http://pole-cirque-mediterranee.com/?page_id=77 De fato, muitos falavam abertamente que era um projeto que potencializava uma
37 http://en.wikipedia.org/wiki/Archaos minoria em detrimento da maioria. Reclamavam que seus professores não podiam
38 Trecho de entrevista transcrita literalmente de: FRANCIULLI, Flávio. Laboratório Acrobático: Adequação Circo /
Teatro. Rio de Janeiro: Universidade do Rio de Janeiro, 2000.
dar suas aulas normalmente porque tinham que prestar assistência ao espetáculo,

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isto é, dar uma atenção especial aos alunos que estavam montando números para a reduções salariais e de direitos trabalhistas. Para que não houvesse uma desvalori-
encenação. zação excessiva, o governo brasileiro comprou e queimou toneladas de café. Mas, isso
Mas, o que quase ninguém sabia na época é que entre abril e maio de 2013, por não impediu as inúmeras falências.
volta de um ano antes da estreia, Raquel Rache já havia apresentado o projeto desse A estilista francesa de origem humilde, Coco Chanel, se tornou símbolo da mulher
espetáculo para a coordenação pedagógica e direção da ENC. Desde o início, ele foi independente e bem-sucedida no séc. XX. Das significativas contribuições para uma
concebido para ser apresentado no Festival Internacional de Circo do Rio de Janeiro. transformação na moda feminina, é impossível não citar o conforto. Muitos conside-
A Escola ainda não estava no circuito e a diretora considerou importante trazer a ram que Chanel libertou as mulheres dos trajes rígidos e desconfortáveis do século
montagem para a ENC. Quando e como surgiu a ideia do espetáculo CABARÉ? Como IX. A sua revolução envolveu também o corte de cabelo curto “Chanel”, o uso de calças
foi o processo de concepção/criação do espetáculo? Quem responde é a própria Raquel: e camisetas no dia a dia, inclusive, calças com modelagem bem solta e folgada. Quer
dizer, ela mostrou que a mulher pode ser elegante sem ter cabelos compridos e usar
“Surgiu de um pedido do Junior Perim (um dos diretores do Fes- saias e vestidos.
tival), com o acordo do diretor da ENC. Ele queria que eu e Guy Getúlio Vargas foi presidente do Brasil em dois períodos. O primeiro período foi
fizéssemos um cabaré diferente para cada dia do Festival. Vimos de 15 anos ininterruptos, de 1930 até 1945. No segundo período, em que foi eleito
que era impossível, pois montar 10 espetáculos diferentes seria por voto direto, Getúlio governou por 03 anos e meio até quando se matou. Getúlio no
muito caro, inviável. Então escrevemos uma versão de 3 cabarés poder, teve caráter centralizador e autoritário, principalmente no período do Estado
diferentes de 3 épocas diferentes. Quando foi chegando perto Novo. Ele suprimiu a liberdade partidária, a independência entre os três poderes e o
da data de ensaios e apresentações do Festival, Junior e Isabel nos próprio federalismo existente no país. Vargas fechou o Congresso Nacional e criou o
disseram o orçamento disponível para o Cabaré então mudamos Tribunal de Segurança Nacional. Os prefeitos passaram a ser nomeados pelos gover-
o roteiro, e fizemos uma miscelânea dos 3 cabarés. Ao mesmo nadores e esses, por sua vez, pelo presidente. Foi nessa época que o samba, até então
tempo queríamos que o máximo de alunos aproveitassem dessa marginal e perseguido, tornou-se a música “oficial” do país. A presença de calos na
experiência”. (Raquel Rache) mão esquerda (fruto da prática do violão) podia levar um cidadão para a cadeia, acu-
sado de vagabundagem e boemia. Mas, o samba passou a ser usado como propaganda
Quando Raquel apresentou o projeto inicial para a ENC, era um projeto bem maior da ideologia do Estado Novo (com a valorização do trabalho e da figura do operário,
de realização não apenas de um, mas de três espetáculos com nove apresentações e e o malandro, figura frequente dos sambas do período anterior, aparece regenerado,
uma apresentação final que seria uma montagem dos três espetáculos ao mesmo numa clara concordância com a ideologia do governo. Surge o samba exaltação..
tempo. O segundo roteiro aborda os anos 80. Tem como apresentador Cocouille e Bibite
A seguir, exponho de uma forma resumida alguns aspectos formais e assuntos dos (partner do apresentador). Os números são de Icários, Tecido, Acrobacia com tonéis,
três roteiros. Pensando na montagem efetivamente realizada é importante discutir e Malabares+ Aéreo. A cenografia é baseada em cinco escadas, sendo que quatro se-
os roteiros, até mesmo, para se perceber como a montagem (texto espetacular) é bem riam montadas nos mastros da lona e uma independente no fundo do picadeiro. O fi-
diferente de qualquer um dos roteiros escritos. É preciso distinguir com cuidado o gurino é baseado na cultura punk. A linguagem lembra bastante os velhos tempos da
que é da ordem das intenções ou das declarações dos roteiros e o que é o resultado Archaos. Coucouille chega em cima de uma moto, dá um giro no picadeiro e só depois
artístico, o produto final entregue ao público. anuncia o cabaret 80. Em certo momento, Bibite volta com pernas de pau (uma está
O primeiro roteiro é sobre os anos 30. A cena é apresentada por Olga. Os núme- quebrada, ele está manco) e Coucouille vem atrás dele com uma serra elétrica e gri-
ros envolvem Parada de mão, Lira, Portagem coletiva e Duo de Trapézio em balanço. tando o proximo número. Numa passagem mais adiante no roteiro, Coucouille volta
O cenário é composto por 15 mesas e 30 cadeiras. Segundo indicações claras, a ideia com a cabeça /ou braço de Bibite. Bibite corre atrás dele buscando a cabeça/ou braço
era “de incluir no discurso frases sobre as situações no mundo, na França e no Rio de perdido e quando ele consegue recolar os dois anunciam o número surpresa. No final,
Janeiro, numa tentativa de situar uma época”.39 Isto é, frases sobre a crise de 29, a Coucouille apresenta os artistas e todos vêm buscar o publico para dançar um rock.
moda e a mudança na atitude das mulheres promovida por Coco Chanel, bem como, Sabe-se que na década de 1980, começou a surgir uma nova forma de cabaré. Uma
o nascimento do samba e o paralelo com Getúlio Vargas. nova geração de comediantes alternativos começou a difundir sua obra frente a um
Em certos aspectos, a linguagem sugere uma mistura do legado glamouroso dos público reduzido, mas participante. O roteiro dá indicações de que no discurso dos
estilos de cabaret parisiense dos anos 20 e das agruras do pior e mais longo perío- apresentadores deveriam aparecer eventos fundamentais da história da década,
do de recessão econômica do século XX. Afinal, o capitalismo mundial nos anos 30 como a Guerra fria, o papel de Reagan nos EUA e Tatcher na Inglaterra, o significa-
passou pela “Grande Depressão” detonada a partir da crise de 1929, com altíssimas do de François Miterrand ter sido eleito o primeiro presidente socialista da França,
taxas de desemprego, aumento da miséria, da subnutrição e da fome, quedas drásti- entre outros.
cas do PIB e na produção industrial, crescente fechamento de instituições bancárias, Thatcher (teve três mandatos consecutivos) e Ronald Reagan (de 1981 a 1989)
foram arautos no mundo Ocidental de um contexto internacional marcado pela po-
39 RACHE, Raquel & CARRARA, Guy. Roteiro Cabaret. 2013. (bilíngue – Francês/Português) larização da Guerra Fria. Isto é, o período histórico (que teve seu início logo após

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a Segunda Guerra Mundial - 1945 até a extinção da União Soviética - 1991) de dis- aldeia onde a rede de conexões deixam as distâncias cada vez mais curtas, facilitando
putas estratégicas e conflitos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética, as relações culturais e as inovações se propagarem entre países e continentes com
competindo pela hegemonia política, econômica e militar no mundo. Ambos foram ba- acesso bem mais amplo à informação e aos bens (para quem pode pagar). Por outro
luartes do pensamento liberal ultraconservador (neoliberalismo). Thatcher digladiou lado, problemas como o aquecimento do planeta, a destruição da camada de ozônio e
contra a intervenção estatal na economia, reduziu os gastos do governo, por meio de a poluição atmosférica, não distinguem fronteiras, podendo originar-se em um país e
um modelo econômico de inúmeras privatizações. Ficou conhecida como Dama de afetar países vizinhos ou até mesmo distantes. Assim, o processo em curso tem pro-
Ferro, por sua ferrenha oposição ao socialismo. piciado lidar de uma maneira mais eficiente com estes problemas transnacionais, ou
A Doutrina Reagan (“paz através da força”) com uma política externa baseada em seja, que ultrapassam as fronteiras dos Estados.
se contrapor à URSS, ajudou ostensiva e secretamente com dinheiro, agentes, armas Dentro deste processo econômico, muitos países se juntaram e formaram blocos
e bombas, aos guerrilheiros e movimentos armados de direita em golpes militares e econômicos, cujo objetivo principal é aumentar as relações comerciais entre os mem-
guerras civis em diversos países da África, Ásia e América Latina. Ronald Reagan foi bros. Neste contexto, surgiram a União Europeia, o Mercosul, a Comecom, o NAFTA,
o senhor das gafes. Confundiu Indonésia com Indochina, Afeganistão com Paquistão o Pacto Andino e a Apec. A União Europeia é o maior bloco econômico do mundo,
e disse que as árvores poluíam mais que os carros. Quando visitou Brasília, em 1982, conhecido pela livre circulação de bens, pessoas e mercadorias e pela adoção de uma
fez um brinde ao povo da Bolívia. Os rivais aproveitavam seu passado de ator de moeda única: o euro. A origem remonta a fevereiro de 1992, mas sua criação esteve
faroeste para ridicularizá-lo como uma espécie de caubói inculto. Um quase idiota. intimamente ligada a processos anteriores de criação de um grande bloco econômico
Digo quase, porque nos governos dele, a burguesia ficou mais rica e poderosa ainda. europeu.
Na sua cruzada anticomunista, diminuiu os impostos federais sobre as grandes for- A EU (União Europeia) atua através de um sistema de instituições supranacionais
tunas e por outro lado, aumentou a taxa tributária e impostos para a população em independentes e de decisões intergovernamentais negociadas entre os Estados-mem-
geral. Em resumo, os dois governantes (Thatcher e Reagan) favoreceram um grave bros ( Comissão Europeia, o Conselho Europeu, o Tribunal de Justiça da União Eu-
processo de concentração de renda e desigualdade social que repercute até hoje. ropeia e o Banco Central Europeu). A União Europeia instituiu um mercado comum
Mitterrand, primeiro presidente da república oriundo do partido Socialista, mo- através de um sistema padronizado de leis aplicáveis a todos os Estados-membros.
veu-se durante um tempo em sentido contrário a Reagan e Thatcher. No seu gover- A partir de 2002 o Euro foi colocado em circulação, porém, alguns países, como
no, foi abolida a pena de morte na França, em 1981, criado o imposto sobre grandes Dinamarca e Inglaterra, preferiram manter suas moedas nacionais, outros foram
fortunas, aprovadas as 39 horas semanais de trabalho e de uma quinta semana de adotando o euro de forma gradativa. O euro demonstrou um rápido crescimento e
férias pagas. Houve descentralização regional e a redução de 65 para 60 anos a idade passou a ser um grande rival do dólar, que, no entanto, continua a ser a principal
legal para a aposentadoria. Também foram nacionalizados diversos setores da eco- moeda utilizada em políticas financeiras internacionais.
nomia, ampliado o controle estatal do setor financeiro, bem como, realizado aumento Os três roteiros mostram temas que transcendem o âmbito pessoal e a aborda-
dos salários e pensões dos trabalhadores. gem psicológica. Temas sociais, econômicos, culturais com base em décadas (30, 80,
O terceiro roteiro é sobre os anos 2000. Yvan é o apresentador. Ele chega do 2000). O tempo estabelece o recorte e a estrutura. Buscam comunicar o conteúdo.
topo da lona em cima do mastro e mostra uma sequência de movimentos ao mesmo Muito é só indicado, sugerido. O picadeiro é praticamente vazio. Por exemplo, no Ca-
tempo em que anuncia o início do espetáculo. Ele continua a falar até que seus gestos baré 2000, há apenas um mastro central que todos os números usariam como apoio.
diminuem e ele sobe por uma corda até o topo da lona. Este apresentador é bem di- Através de cenas e ações inusitadas os roteiros fazem bastante uso da imaginação
ferente da figura do Mestre de pista que estamos acostumados. Em outro momento, até mesmo como uma capacidade alargada para o espectador pensar, para encontrar
Yvan está sentado numa cadeira suspensa e bebe e come tranquilamente, quando a soluções inteligentes para os problemas estéticos, para adivinhar o sentido de ques-
luz o ilumina. Então ele desce (esta suspenso em um motor) e ao mesmo tempo ele tões e fatos não muito evidentes. Através do uso da imaginação, os roteiros captam o
anuncia o próximo numero de manipulação de objetos. essencial e o reúnem de uma forma inteligível até mesmo o sentido profundo e invisí-
No discurso do apresentador chamado Yvan, aparecem fenômenos históricos como vel de algumas situações.
a globalização, a transformação da Europa com a chegada do Euro e a formação do Considerados em conjunto os roteiros apresentam uma perspectiva temporal bas-
bloco, atualmente com 27 países. tante ampla, quase não tem limite. Reúnem muitas histórias e conciliam gêneros
Embora, os pesquisadores ainda não tenham chegado a um consenso sobre o con- que na aparência se repelem. As narrativas agem também por meio de argumentos,
ceito de globalização, é fato que em termos gerais, ela aumentou a desigualdade e aguçam o espírito crítico ao apreenderem longo itinerário cronológico.
a pobreza no mundo. Tem significado também um processo de expansão da cultura Analisados individualmente ou em conjunto mostram o mundo em transformação.
ocidental e do sistema capitalista sobre os demais modos de vida e de produção. Vibram no mesmo diapasão da vida. Significam busca de novos processos. Ao invés de
Apesar das contradições entre os pesquisadores, há certo acordo de que globalização uma cena em função da outra e de uma progressão de acontecer retilíneo, apresenta-
aumentou os riscos globais de transações financeiras e a rapidez com que as epide- -se na maioria das vezes, cada cena por si numa construção curvilínea ou por saltos.
mias se alastram a todos os pontos do globo. Quase todos apontam a perda de parte Todos os roteiros são referentes a cabarés em diferentes tempos. Acontecem em
da soberania dos Estados nacionais. instalações específicas, unem revista e variedade e têm na música (em seus vários gê-
A globalização tornou a “Aldeia Global” de McLuhan algo palpável. Isto é, uma neros) um forte apoio estrutural. Fazem uso de algumas técnicas épicas tradicionais

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como apresentadores/narradores, alocuções dirigidas ao público e comentários das A capital da histórica e musical Andaluzia. O espetáculo foi conduzido com maestria
mais variadas espécies, a própria estrutura (composta por cenas independentes e não e muita graça pela performer Terremoto de Alcorcón. Encenação com um primoroso
contínuas), o desejo de não apresentar apenas reações inter-humanas individuais, trabalho de iluminação em interação com o cenário composto de escadas laterais,
mas também a história mais ampla, as forças em disputa. Isto é apostar na arte como uma plataforma em segundo plano e uma enorme boca no centro do picadeiro. Esta
conhecimento e ação transformadora. Não só como diversão e entretenimento. companhia valenciana de circo começou suas viagens The Hole em 2011. Quando
O termo “cabaré” pode ser entendido como o local, a casa de espetáculos, normal- chegou a Sevilha para a temporada já tinha conseguido alcançar mais de 700.000
mente de funcionamento noturno, que coloca no mesmo espaço/tempo possibilidades espectadores nas outras diversas cidades espanholas por onde tinha passado. O que
que geralmente acontecem de forma isolada. Nesse sentido, é onde se pode beber, mostra como o gênero cabaré está bastante vivo e atuante em várias regiões.
dançar, fazer refeições, ver shows, números, entre outros. Nesta acepção tem sua Todavia, falando especificamente do espetáculo montado e apresentado no Fes-
origem no espanhol (cabaretta ou casa de diversões). Posteriormente, foi incorporada tival é importante indicar que ele surge em grande parte como uma síntese dialética
pelo francês (cabaret ou taverna). Casas noturnas como estas se espalharam por de ideias dos três roteiros e concepções específicas, como não ter a figura do apre-
vários países europeus na primeira metade do século XX, como Rússia, Alemanha, sentador. Nessa perspectiva, do primeiro roteiro sobre os anos 30, veio a concepção
Suíça, França, entre outros. Na Belle Époque parisiense seus shows com mulheres e cenográfica baseada em mesas e cadeiras onde fica a plateia e os números de Parada
travestis em apresentações sensuais faziam deles lugares frequentadíssimos. de mão, Lira, Portagem coletiva e Duo de Trapézio em balanço. Do segundo roteiro, os
O mais radical e inovador desses lugares foi o Cabaret Voltaire, em Zurique (1916- bouinax (vestidos com mangas anos 70 e saias feitas com luvas amarelas de faxina),
1917), onde Hans Arp e Tristan Tzara deram os primeiros passos do dadaísmo, que os números de Icários, Tecido, Acrobacia com tonéis e o figurino baseado na cultura
não demoraria a expandir-se como um movimento artístico independente. Após a punk. Do terceiro roteiro, vieram os números de Aéreo, Manipulação de objetos, Pole
Primeira Guerra-Mundial, os cabarés alemães, especialmente em Berlim, tornaram- dance (Mastro pendular), Mastro chinês e todos agradecerem com uma coreografia
-se mais políticos, solo fértil para a dissidência e para a sátira.40 no final.
Apesar das diferenças de propostas dos vários lugares e das diversas tradições (em Lendo os roteiros nota-se que envolveriam um elenco muito maior e uma série bem
alguns, por exemplo, as pessoas não se sentavam para que se comportasse mais pes- mais diversificada de atividades. Seria uma ação para envolver a Escola toda, com
soas e para que o público pudesse dançar) eles tinham em comum ser um espaço para todos os alunos e professores participando. Mas, infelizmente (como acontece princi-
algo mais libertário e inconformista. Não raro estiveram envolvidos em escândalos. palmente na área das artes e cultura), a realidade econômica posteriormente trouxe
a necessidade de diminuir para uma só montagem, o que por sua vez reduziu drasti-
No Brasil, o termo “cabaré” também é usado para denominar locais onde ocorre
camente a quantidade números circenses e consequentemente, o número de alunos
a prostituição como zonas de meretrício, bordéis, prostíbulos, puteiros, entre outros.
participantes. Então, já no final do ano de 2013, entre novembro e dezembro, estavam
Além disso, segundo Ermínia Silva “na região Nordeste do Brasil, é comum toldos
cientes que precisariam fazer uma seleção bem maior para ver o que efetivamente
serem armados, como circos itinerantes, mas seus espetáculos se resumem a exibições
iria entrar no espetáculo:
de mulheres realizando striptease, por exemplo, sendo denominados cabarés”. 41
Ainda de acordo com a pesquisadora, “há certo senso comum de definir cabaré
“A gente ainda não tinha clareza dos números que iriam entrar
como um espetáculo que inclui canções e cenas cômicas, apresentado por um mestre-
e a gente já tinha feito até algumas reuniões com os alunos pra dar
-de-cerimônias, que se desenvolve, geralmente, em um local de dimensões reduzidas,
um pé da situação. Já havia feito várias reuniões de trabalho
como um clube ou um café, no qual durante a representação se janta ou se bebem be-
com os professores explicando o que é que era o espetáculo. Porque o
bidas alcoólicas”. 42 No entanto, como a própria autora reconhece, existe sob o termo
espetáculo já veio com um roteiro pronto e com uma necessidade
“cabaré” uma grande multiplicidade e diversidade de significados em relação ao seu
de números. Então, a orientação foi pra que a gente formasse esses
contexto histórico e geográfico. Mas, a definição é bem interessante porque traz ou-
números pro espetáculo. Alguns números foram desenvolvidos pra
tros elementos sobre a forma artística dos cabarés, a variedade de canções, a figura
esse espetáculo, especificamente durante as aulas”. (Carlos)
do apresentador, entre outros.
Assim, além do sentido que vincula o termo cabaré a um espaço há também o
Estas informações mostram que foi um projeto que tinha um diálogo com interfa-
sentido de uma linguagem cênica, uma forma de conduzir o espetáculo cuja coesão
ces e foi elaborado para envolver, aglutinar, somar e não para isolar ou dividir. Era
era mantida geralmente por um mestre de cerimônias e a exploração das relações
uma ação artística, pedagógica e cultural. A Raquel fazia sempre questão em todas
entre vida e arte, entre outros aspectos. É nessa acepção que percebo o espetáculo da
as reuniões de estar com todos os professores da Escola e com a equipe pedagógica
Archaos.
presentes. Então, foi um projeto compartilhado, discutido num processo que abarcou
Na Europa, pude assistir ao cabaré The Hole, na efervescente cidade de Sevilha.
grande parte do corpo docente.
Sobre o processo criativo é importante ver como trabalham com o roteiro na pers-
40 Ver: The Cambridge Guide to World Theatre, 1988. pectiva de um ponto de referência que estabelece conexões entre todos os elementos
41 SILVA, Erminia – “Histórias do aqui e agora - cabaré e a teatralidade circense”. In: www.portalseer.ufba.br/index.php/
revteatro/article/download/5213/3763 do espetáculo em sua totalidade:
42 Idem.

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“escrevemos um roteiro antes e é em cima desse roteiro que vêm as simultaneidade que é muito fascinante.
modificações, ideias e contribuições. Partimos de algo preestabele- Enquanto a apresentação se desenrolava Raquel e Valérie davam instruções e
cido e depois deixamos livre à imaginação. Mas é no confronto de orientações para o elenco sobre ritmo, andamento e marcações. Faziam comentários
ideias e universos diferentes que avançamos, do chaos nasce a cria- como “eu não tô me sentindo num cabaré”, “é uma coisa mais urbana”, “ainda estão
ção, na dialética dos contrários que deixamos fluir algo que foge meio perdidos”. A partitura com os tambores também não estava muito definida. Mo-
ao nosso controle e que formará a totalidade do espetáculo. Mas, vimentos dispersos. A música do número do duo acrobático foi a mesma da primeira
para isso é preciso ter muitos anos de experiência”. (Raquel) dança coletiva. Petit e César Augusto não conseguiram fazer o mortal atrás para o
ombro partindo do chão.
Apesar da existência do roteiro, Raquel e Guy não apresentaram o projeto de um As quatro caixas de som ficaram de um único lado do picadeiro numa plataforma
espetáculo pronto e acabado, mas antes, uma montagem para ser criada em parceria. elevada usada para números de arame alto. Foram feitos testes com algumas luzes
A Raquel pareceu muito cuidadosa nesse sentido. A figura da dialética implica sa- mesmo estando de dia. Estavam presentes na plateia professores como Ângela, Wal-
ber que o conflito e a contradição são partes inerentes do processo. Mais do que tese, ter Carlo, Alex Machado, Edson Silva e Alby Ramos. Alunos como Thaígor, Ayla e
antítese e síntese. É uma postura de busca da totalidade em que tudo se relaciona e ex-alunos como Bruno Carneiro. Depois foram chegando várias outras pessoas.
nada pode ser compreendido de forma isolada. Prevalece uma visão aberta à dúvida Dos professores, o Papito (Alexis Reyes) pareceu o mais envolvido em todo o pro-
e ao devir. cesso desde a montagem até a apresentação. Latur também ajudou no trapézio de
Mas, sobre o processo é importante trazer algumas ações realizadas ao longo do balanço. Assim que terminou a apresentação do processo, Raquel pediu para os mem-
tempo. Assim, foi numa segunda-feira, 25 de novembro de 2013, que a Raquel, esteve bros do elenco e equipe sentassem na borda do picadeiro. Chamou e apresentou o
inicialmente conhecendo o trabalho técnico e artístico dos alunos selecionados com a Júnior Perim, coordenador geral do Festival, depois o Marcos Teixeira. Comentaram
colaboração dos respectivos professores. aspectos da apresentação e do Festival.
Em dez de abril de 2014, aconteceu a primeira apresentação pública do processo. Importante notar que a escolha dos números/modalidades que seriam mostrados
Por volta das onze horas da manhã. Dia quente, lona mais quente ainda. Raquel anda em cena, foi da seguinte maneira. Alguns números foram mostrados para a Raquel e
de um lado para o outro. Nota-se que os alunos ainda não acreditam muito nos seus Valérie, outros números, Raquel e Guy tinham combinado com os professores no ano
papéis ficcionais. Falta a fé cênica. Ainda não desenvolveram ações físicas, marca- anterior para que eles preparassem em cima dos roteiros dos três cabarés e outros fo-
ções. Estão meio perdidos. ram uma surpresa ou foram montados no ultimo momento. Alguns professores foram
Nos ensaios e nesse dia quem operou a trilha sonora foi o Carlos Vianna. Apa- importantíssimos nesse processo.
receram alguns “buracos” como na marcação da entrada da Bicicleta. Ela deveria Os exercícios contribuíram para que os alunos expressassem de uma forma mais
coincidir com uma música mais pesada e rock. Demorou um pouco e o volume do satisfatória os movimentos, truques e o que deveriam apresentar em cena. Ajudaram
som estava muito baixo nesse momento. A entrada da Lira também foi lenta por não a desenvolver a visibilidade dos corpos e rostos, a confiança de picadeiro, a construção
terem afinado a altura antes. Os últimos movimentos do número de Lira ainda esta- de gestos, a concentração capaz de fazer com que doassem aos eventos imaginários
vam muito sujos e indecisos. Não tinham definido o final. No momento da dança em de cena o mesmo nível de envolvimento inabalável, bloqueando as distrações, uma
que as meninas são trazidas em segunda altura ainda faltava intenção nas ações. A postura de picadeiro, a energia e expressão, enfim, auxiliaram a aprimorar as habi-
coreografia estava completamente fora de sincronia. lidades de atuação.
Como o novo Quadrante coreano ainda não estava montado passaram apenas as Frente às evidências apresentadas pelos participantes tudo indica que a maioria
marcações de balanços, saltos e movimentos de cima de uma plataforma de menos de dos exercícios e ensaios constituíram-se em um recurso de eficácia comprovada no
dois metros de altura. Houve atraso na montagem da pirâmide dos tambores após o que se refere ao aprendizado de vários procedimentos necessários ao bom desempe-
número de Quadrante e antes de entrar o número de Mastro pendular. Novamente nho do elenco em cena.
um atraso para iniciarem o Quarteto de claves. O número do Mastro chinês começou Dando um salto de vários dias, mais especificamente na estreia, isto é, em 14/05,
no tempo. Silva fez várias brincadeiras enquanto Alice parava de mão em um tonel por volta das sete horas da noite, ainda há muito trabalho para fazer como instalar os
próximo aos espectadores. No final, ela sorriu. Ele disse: “Alice no País do Circo”. Os pontos com cabos de aço onde ficariam os aparelhos aéreos como Tecido, Rede e Lira.
meninos que projetavam o foco de luz nos paradistas ainda estavam em dúvida para Olavo, Demitri e César Rodrigues ajudam no trabalho técnico de afinação dos pontos
onde ir depois que eles saíssem. Perguntaram a Valèrie. Nesta cena foi colocada a de ancoragem para os aéreos. Eles que sustentam e descem o técnico do festival que
musica que era do fim, pois, a trilha sonora ainda não estava inteiramente composta está fazendo o trabalho nas alturas. Trabalho de afinação das luzes, melhorando o
e gravada. Em seguida, o Doble trapézio também demorou a começar. A sonoplastia ângulo ou a posição. Samuel coloca calços em alguns dos tonéis que ficam ao pé do
atrasou. mastro chinês. Outros estão bastante envolvidos em posicionar os diversos tonéis
Sem o uso da luz como foco narrativo o espectador se perdia muito na apresentação azuis nas marcações anteriormente definidas. Outros da produção estão ocupados em
durante o dia. Desconcentrava. Mas, já foi interessante ver essa linguagem narrativa colocar os forros nas mesas. As cadeiras tem espuma no assento e no encosto. Foram
de não esperar um número terminar completamente para começar o outro. Há uma limpas durante a tarde pelas funcionárias da ENC.

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ

Samuel e Carlos Petit sobem nos mastros frontais da lona para colocar a enorme A Apresentação do Espetáculo
cortina que é usada no início do espetáculo. Algumas duplas passam o básico de seus
números. Depois há uma passagem coletiva do número de dança do final, ensaiam a O espetáculo se inicia com Aisha e Maria Clara escalando o mastro frontal do lado
sequencia dos agradecimentos. esquerdo. Samuel escala o mastro do lado direito. A iluminação vinda de baixo das es-
O pessoal antes da apresentação além de fazer a maquiagem, vestir o figurino, truturas treliçadas somada à música sedutora já de cara compõem uma cena distinta
aquecer, alongar, também fazia um lanche e tomava água. Havia uma mesa no cama- do que se é visto geralmente no Brasil. Os performers vão subindo lentamente, alter-
rim com uma cesta de maçãs, pães e suco de laranja para os artistas. Um clima alegre nando movimentos para fora e para os mastros. As saias brancas feitas de camadas
predominava neste ambiente, as pessoas faziam brincadeiras umas com as outras. A sobrepostas de filó refletindo a luz contrastam com a escuridão em volta. Eles sobem
figurinista Kar La realizava os últimos acertos e retoques em figurinos já nos corpos até o fim e a luz se apaga.
de alguns artistas. Quase ao mesmo tempo, na parte traseira do picadeiro uma luz em resistência vai
Mas, quais foram as principais dificuldades encontradas no processo? subindo lentamente. É um vermelho escuro que ilumina Vanessa que faz movimentos
ondulantes com os braços e depois com todo o corpo. De seu lado direito estão Jana,
“O tempo, o atraso do dinheiro, a equipe técnica. Tive muito Demitri e Olavo e do lado esquerdo estão Alisson e Ciro sentados em tambores. A
pouco tempo pra trabalhar com tantos alunos, não pude dar a música muda e a luz também. Agora são sussurros envoltos em acordes com efeitos
atenção e profundidade que eu gostaria de ter dado, mas ao mesmo de chorus. A luz é roxa e vem do outro lado do picadeiro. Vanessa fica de costas e
tempo a vida artística é assim, nunca temos as condições ideais tira um dos lenços a plateia aplaude e assovia. Ela tenta subir na bengala usando o
para criar. O atraso do dinheiro foi uma pancada no início, impulso e com as pernas carpadas afastadas, mas, só consegue na terceira tentativa.
mas levantei a cabeça pedi dinheiro emprestado e fui em frente. A Normalmente, ela faria isto de olhos fechados, mas está nervosa e sentindo a pressão
equipe técnica era muito complicada... fui abandonando sonhos da estreia.
no meio do caminho”.(Raquel)

Nem tudo são flores, mesmo na primavera. Apesar do planejamento e pesquisas,


a realidade de escassez e dificuldade em receber os recursos reduziu muitos aspectos
da proposta inicial evidenciando a necessidade da criação de um novo espetáculo na
medida do (im) possível. Contudo, como pontua Raquel, é necessário saber enfrentar
as adversidades e ir em frente.

Vanessa no número de Parada de Mãos. Foto: Cláudio. Rio, 2014.

Depois de subir, junta as pernas em cima, faz a figura do quatro, faz o sapinho, a
Parada para uma das laterais, cruza as pernas e imita uma caminhada com as pernas
e pés, vai depois para a outra lateral, faz a caminhada novamente e desce do aparelho.
Dança graciosamente com movimentos sutis, coloca um dos pés sobre o taquinho da
bengala, depois as mãos e sobe com o impulso na posição carpada afastada sem titu-
bear, junta as pernas, caminha e vai para a Parada lateral direita e tira uma das mãos.
O público aplaude. Ela então faz a mesma coisa do lado esquerdo. As pernas estão bem
afastadas uma da outra. Ela cruza as pernas e fica equilibrando só na mão direita.
Últimas passagens das movimentações. Foto: Cláudio Alberto dos Santos. Rio, 2014. Algumas pessoas aplaudem.

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ

Essa posição era a deixa para Olavo e Demitri cada um de um lado carregarem Depois entra Samuel com sua Bola de cristal fazendo contato. Aisha e Maria Clara
Jana para o outro lado do picadeiro. O trio começa a se movimentar. A cena é de um entram em cena, colocam faixas pretas nos punhos e vão atrás de Samuel. O número
triângulo amoroso cheio de idas e vindas, seduções, intrigas e tensões. Jana faz uma de Lira recomeça em sincronia com outro rock n’roll. O ponto alto do número são os
estrela por entre os braços de Demitri, depois é a vez de Olavo levantá-la por sobre a giros da dupla na Lira. O público responde com gritos e assovios. Os giros coincidem
cabeça segurando em suas cristas ilíacas enquanto ela abre os braços na figura conhe- com um solo de bateria nos tontons.
cida como avião. Depois ele transfere Jana para a sua mão direita segurando ela no Mais uma quebra com o início da música numa levada rock e um número de dan-
lado esquerdo do quadril. Ela ajuda no equilíbrio apoiando com a mão no ombro dele. ça. O figurino para alguns foi hilário. Os rapazes tem uma luva amarela no topo da
Em seguida ele a lança um pouco pra cima e a recebe deitada nos braços. Ela desce, cabeça e as moças usam várias luvas sobrepostas como minissaias. República das
faz alguns movimentos de dança e depois sobe para o pé mão com meio giro usando bananas?
o impulso da estafa feita por Olavo. Ele anda com ela e depois ela pula de suas mãos
nos braços de Demitri. Fazem o balanço. Primeiro ela fica em pé e depois faz um mor-
tal para frente pousando sentada nos braços dos dois. Em seguida sobe na cadeirinha
da canastilha a partir da barriga. Faz um mortal pousando em pé. Desequilibra-se
um pouco.
Enquanto os três vão saindo, Alisson e Ciro sobem nos seus aparelhos aéreos. A
música ainda é a mesma. Ciro faz o desenho de uma estrela com seu tecido vermelho.
Alisson faz um espacate lateral na rede. Enfim, seria demasiado longo ficar descre-
vendo aqui todos os números. Este início é somente para termos uma ideia da riqueza
de detalhes que compõem essa arte tão completa, versátil e rica que é a arte circense.
Quebrando com este clima onírico e até mesmo psicodélico entram Tonho fazendo
acrobacias free style na bicicleta, Rafael e Sid (Danilo) fazendo passes de claves e
Cézar e Gisela na lira. A música agora é um rock com guitarras distorcidas e uma
influência do estilo punk. Eles apresentam seus truques da seguinte maneira: Tonho
passa pela frente do picadeiro (plano baixo), faz algumas manobras e depois sobe
para um tablado mais ao fundo, onde continua realizando suas peripécias. Os mala-
baristas ocupam a frente do picadeiro e executam seus diversos tipos de câmbios de
claves. O duo de Lira espera um pouco e começa a subir no aparelho. Assim que eles
saem fazem diversas portagens e pranchas.
Os dançarinos/ portôs. Foto: Cláudio Alberto dos Santos. Rio, 2014.

Para o Cabaré, as perneiras verdes, as saias feitas de luvas amarelas com enchi-
mentos de espuma foram feitas pela Karl La, a figurinista do espetáculo. Raquel doou
sua coleção de meias americanas para as meninas do elenco fazerem suas blusas.
Quase todo o figurino foi feito a partir de roupas dos participantes que foram custo-
mizadas por Karl La Tavares (Vedete encapuzadx na empresa Viemos do Egyto).
Algo fundamental na definição do figurino foi ele não dificultar a movimentação,
atrapalhar a visibilidade. A concepção dos figurinos veio da direção do espetáculo.
Eles foram feitos coletivamente, customizados sob a orientação da figurinista. Com a
escassez de verbas não tiveram muitas opções para a escolha dos materiais. A escolha
das cores delimitou campos bem diferentes. Em um grupo predominou o vermelho e
o preto e no outro grupo o verde e amarelo. Os figurinos dialogaram com a proposta
geral da direção do espetáculo na medida em que tinham uma forte dose de esponta-
neidade, estranhamento e ironia.
Ana Júlia, Letícia, Luiza, Rosângela, Andrea, Dani, Rayssa e Alice dançam em
cima dos tambores azuis, mandam beijinhos e vão descendo aos poucos em direção ao
público, depois é a vez do Artur Caciolari, do Kleber, do Demitri, do Wallace, do César
Augusto (José Culito), do Olavo, do Fabiano e do Artur Marques fazerem sincroni-
Número de Lira em Duo (Gisela na prancha). Foto: Cláudio Alberto dos Santos. Rio, 2014. zadamente um mortal para trás no último e mais baixo degrau de tambor es de

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ

metal. A dança continua animada. Formam-se três grupos que se apresentam alter- Trapézio duo em balanço com Maria Clara e Aisha desenvolvendo várias figuras e
nadamente. Todos sentam nos degraus dos tambores e fazem os mesmos movimentos portagens. No chão Samuel faz movimentos com dois malabares chamados Buugengs.
alternados com palmas. Eles olham diretamente para as pessoas da plateia. Sorriem. São giros e manipulações que em alguns momentos criam uma ilusão de ótica conhe-
Entram Rafael, Sid (Danilo) e Tonho que faz o seu solo de Bike ao som do mesmo cida como caleidoscópio. Mais uma vez predomina na composição da cena ações em
rock que serviu para a participação deles antes. Tonho desce para o nível do público mais de um espaço ocorrendo simultaneamente e cabendo ao público escolher qual
e faz diversos truques neste plano conseguindo vários aplausos. No picadeiro é o Trio deseja prestar mais atenção.
de Dândis feito por Gabriel, Sid e Rafael que arranca risos através de suas acrobacias Ao som do bom e velho rock n’roll
e golpes de luta. De repente, o foco narrativo desloca-se para fora do picadeiro. A luz entram Danilo (Sid) e Rafael para
branca estabelece recortes na escuridão da lona. O número de Mastro Coreano feito roubar os Buugengs do Samuel e ele
por Sofy Pavón como volante e Olavo Rocha como portô foi um dos pontos altos do sair correndo atrás deles para as co-
espetáculo. A música é lenta. Um solo suave de clarinete repete um leitmotiv entre- xias. Em seguida voltam com um te-
cortado por gemidos femininos. Os truques variam entre piruetas e mortais. No final cido preto e derrubam a pirâmide de
tentaram um mortal saindo da pegada nos pés da volante, mas escorregou no final tambores. Entram vários membros do
e Sofy caiu nos colchões. Tentaram de novo e com as vibrações positivas e gritos de elenco fazendo acrobacias de solo em
apoio do público conseguiram realizar o truque com precisão e beleza. volta, ao lado e até dentro dos tambo-
Mais adiante fazem mortal com pirueta e um mortal e meio (540). Os aplausos no res. No final Luíza e Vanessa saem
final foram longos e intensos. Nesse momento, vários participantes vindos do espaço levando Sofy e Alice respectivamente,
do público sobem no picadeiro gritando e batendo nos tambores. Depois montam uma na segunda altura.
pirâmide empilhando eles. Lá de cima é que o Sid (Danilo) faz o vértice de uma for- O número de Duo acrobático de
mação em “V” de passe de claves com o Toño e o Rafael em baixo. No caso, o Sid faz a Carlos Petit e César Augusto (José
alimentação do jogo com seus companheiros. Entra o Gabriel para participar do jogo. Culito) teve grande impacto pela pre-
Ele joga uma clave tão alta que o Sid ao tentar pegá-la simula estar caindo de cima cisão com que foi executado. De fato,
dos tambores. É um instante em que muitos deram risadas. eles já ensaiavam a base desse núme- Os revoltosos Sid e Rafael.
A “queda” é a deixa para entrarem em cena ro antes de entrar na ENC. Em certa Foto: Cláudio Alberto dos Santos. Rio, 2014.
Aisha no Mastro pendular, Maria Clara na dança altura, Petit com a ajuda do César faz
contemporânea e no Mastro pendular e Samuel um mortal para trás aterrissando nos ombros do companheiro. A plateia responde
fazendo malabarismo de contato. A vibração pul- com entusiasmadas palmas e sonoros assovios. Ao fundo Vanessa, Luíza, Rayssa,
sante da música aliada a dinâmica da movimen- Letícia, Andrea e Gisela fazem uma coreografia. Aos poucos, já havia começado
tação estabelecida fizeram deste número um dos antes um número de Jogos icários com César Rodrigues e Serragem formando uma
momentos mais marcantes deste espetáculo. A dupla e Fabiano e Gabriel como volante formando outra. Mostram corvetas, mortais
leveza, a técnica e a presença cênica de Aisha e a frente, piruetas e mortais para trás na saída.
Maria Clara e a comicidade natural de Samuel em-
polgaram muitas pessoas da plateia.
O próximo número também acontece fora do pi-
cadeiro. Samuel inicia com uma dança pessoal en-
volvendo a Bola de contato até que sobe no Mastro
chinês. O ritmo dessa música é bastante quebrado
e predominantemente percussivo. Samuel apre-
senta uma sequencia com uma linguagem bem
própria e pessoal. Tem algo de poético.
Assim que ele senta no tambor e abaixa a ca-
beça entre as pernas muda-se o foco de luz para
Vanessa, Letícia, Alisson, Andrea e Alice que vem
do picadeiro em direção ao espaço do público sen-
do iluminados por refletores carregados por cole-
gas de montagem. Após dançarem fazem paradas
Aisha no Mastro Pendular. de mãos nos tambores (tonéis de 200 litros da cor
Foto: Mídia Ninja. Rio de Janeiro. 2014 azul) que estão posicionados em diversas partes.
Número de Icários. Cesar e Serragem (volante). Foto: Mídia Ninja. Rio de Janeiro. 2014.

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ

Na sequencia, os tonéis são rolados de diversas direções sucessivamente sendo De volta ao picadeiro são feitas cinco formações de Banquine envolvendo dois por-
saltados com mortais a frente pelos diversos acrobatas como Olavo, Demitri, César tôs e um volante. A seguir, acontecem as diagonais de saltos como rondadas, flics,
Rodrigues, Fabiano e Petit. Fechando esta parte Sofy Pavon é lançada por Olavo e mortais, mortais com pirueta. Mais uma vez “invadem” o espaço da plateia com mo-
César Rodrigues de dentro de um tambor para as mãos de Demitri e Artur Marques. dalidades diversas como Malabares Swing poi no formato de uma meia lua e de um
Número acrobático com os tonéis. círculo feito por Luíza, monociclo com Artur Cacciolari e Ana Júlia, cubo com Rosân-
gela e bambolê com Alice, entre outros.
Depois disso, infelizmente é o começo do fim anunciado pela bonita música que
serve de base para a coreografia coletiva. Saem de costas batendo palmas no ritmo
da música enquanto Sid e Rafael pixam “C-A-B-A-R-É” em seis tonéis dispostos em
linha no meio do picadeiro. Tonho sobe em cima dos tambores e levanta sua bicicleta
por sobre a cabeça. Todos os que estavam atrás vão correndo e de mãos dadas agrade-
cem o público com prazer e alegria. Em seguida, vem os professores também de mão
dadas: Jamelão, Juliana Berti, Teco, Alex Machado, Souto, Papito. Também sobem os
diretores do espetáculo Raquel Rache e Guy. O coordenador pedagógico Carlos Vian-
na é chamado da plateia e todos fazem uma grande festa no picadeiro comemorando
efusivamente o sucesso estrondoso da estreia.
Durante a temporada, geralmente após as apresentações fiz entrevistas rápidas
com pessoas da plateia perguntando sobre suas impressões do espetáculo. As falas
foram unânimes em apontar o fascínio exercido pela encenação:

“Eu amo esse espetáculo! É sério. É um dos melhores do festival.


É sério mesmo. Por isso que eu vim quatro vezes. Vocês acha que
se não amasse, eu viria quatro vezes?” (Glauber Gonzales)

“Apresentação show. Muito boa a produção. É isso aí!”


Mortal para trás em grupo. Foto: Mídia Ninja. Rio de Janeiro. 2014
(Thiago Monteiro)

É a vez do Duo de Artur Cacciolari e de Ana Júlia no aparelho chamado por eles “Incrível, incrível, parabéns pra galera! Eu vi como ralou no
de Pirâmide. O duo de grande plasticidade e sincronia explora este aparelho que con- processo! Incrível, parabéns!” (Elton Modesto)
siste num quadrado de ferro sustentado por tecidos nas quatro extremidades e unidos
no alto em um único ponto, formando assim o desenho de uma figura. Do outro lado “Eu achei legal como ele foi construído. Os intervalos que tem e
da lona acontece outro duo. Trata-se do impecável Doble trapézio de Fabiano e Kle- as amarrações são bacanas. É bem rápido! Quando você vê já
ber. Fizeram parecer fácil truques de grande dificuldade. O ritmo e o timing perfeito acabou. Eu tive a sensação de quero mais.” (Greice Kelly)
dos dois foi um show a parte.
Um dos motivos principais que levaram essas pessoas a fruírem as apresentações
dessa maneira, é a sensação boa de prazer, deleite, gozo, gratificação. Algo oposto à
dor, numa sociedade mais preocupada em diminuir o sofrimento e as privações do
que obter e cultivar o prazer ao máximo. Esta foi uma das magias desta montagem
circense?
A relação exposta por integrantes do público evoca um princípio de solidariedade,
um jogo, uma adesão, uma participação, sobretudo. Para os artistas a receptividade
da plateia jogou o espetáculo para cima, em termos de entrega e compromisso. Senti-
ram a energia emanada do público nesta forma viva e completa de comunicação. Uma
comunicação direta e humana, provocando e sentindo a reação da plateia.

“O público reagiu de forma fantástica, a aceitação do Cabaré


foi total e o sucesso foi enorme. Esse encontro tão intimo entre os
alunos e o publico foi o momento tão esperado, tão trabalhado e que
Duo de Trapézio: Fabiano e Kleber. Foto: Cláudio Alberto dos Santos. Rio, 2014.

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ

deu certo. Quanto ao publico: ele respondeu ‘presente!’ e lotou em cima das músicas que me foram apresentadas. Se eu via que
no ultimo dia. Se tivéssemos feito uma temporada maior acho que ia complicar, que a rapaziada não estava fazendo como eu gosta-
iríamos ter que fazer dois espetáculos por dia...Imagina que deli- ria, mudava logo para uma coisa mais simples, um movimento
cia!rsrs Críticas existiram e existirão sempre, faz parte da profissão mais fácil. Não dava para confiar no tempo de aprendizagem e
e elas nos fazem avançar, se questionar e questionar o mun- adaptação da moçada às minhas propostas”. (Creso Filho)
do em que vivemos. Mas, que foi uma experiência gratificante, foi
sim, em todos os sentidos”. (Raquel Rache) As coreografias relacionam-se com a concepção geral da direção. Raquel passou
os temas, explicou por e-mail e telefone o que era cada cena, o que ela pretendia com
O que falar da reação do público? Superou todas as expectativas. Além de lotar cada coreografia e ele seguiu esse caminho sempre pedindo a opinião, o conselho e as
todos os dias foi um público vivo, atento e intenso. Dessa maneira, possibilitou uma sugestões dela. Para não trabalhar em vão, ele ia criando e mostrando, para saber se
maior presentificação e que o espetáculo renascesse no momento de sua execução. estava no rumo certo.
Toda atuação constituiu em última instancia, uma nova criação. Apesar das mar- Mas, houve alguma intenção específica na escolha dos movimentos? Como por
cações e músicas dando a base para movimentações e entradas de personagens o exemplo, para fugir dos clichês de sensualidade dos cabarés?
Cabaré não se apresentou duas vezes igual. Cada vez que os artistas atuaram rea-
lizaram um novo ato de criação, variaram os matizes subjetivos, o estado de ânimo, “Houve, sim… até porque o conceito de ‘sensualidade de cabaré’
saúde, humor, etc; possibilitando a cada instante leves variações. mudou muito. A apelação ao sexo atualmente, principalmen-
te no Brasil, é muito explícita, deslavada, até bastante vulgar,
acho. Como tenho mais intimidade com o hip hop e a streetdance,
tentei buscar sensualidade dentro desses estilos. Da tradicional
sensualidade dos cabarés usei alguma coisa, mas acho que de
uma maneira mais chique e debochada ao mesmo tempo”. (Creso)
A Dança
Agora, vamos discutir alguns aspectos e dimensões do espetáculo. Como foi visto
na descrição da apresentação a dança cumpriu um papel fundamental. Ela aparece
em vários momentos e de uma forma crucial.

“A dança foi muito importante para os alunos e para o espetá-


culo. Foi uma decisão que tomei sozinha: deveríamos contratar 2
atores profissionais para participar e falar um texto que havíamos
escrito, mas desisti após 2 semanas de ensaios, achando que era
melhor para os alunos e para o espetáculo eles trabalharem a
dança, foi um momento onde realmente priorizei os alunos,mais
do que o espetáculo. Por isso liguei para o Creso e perguntei se ele
toparia embarcar na aventura. Conheço o Creso ha mais de trin-
ta anos, temos uma cumplicidade enorme no trabalho e na vida.
Fiquei muito feliz quando ele disse que topava essa loucura tão
rápida e intensa!” (Raquel) Dançarinas boinax: Letícia, Luíza e Rosangela. Foto: Cláudio Alberto dos Santos. Rio, 2014.

O espetáculo como um todo trata a dimensão da sensualidade de uma maneira


Em entrevista, Creso também afirmou que foi ótimo trabalhar com amiga. Prin-
surpreendentemente sutil. Nada de cenas muito diretas. Muito é só sugerido ao pú-
cipalmente, porque recebeu carta branca para fazer o que quisesse. Entenderam-se
blico que completa as alusões com sua própria imaginação. Paradoxalmente, isso re-
bem no processo. Ele cedeu no que podia, ela também e chegaram num acordo. Mas,
forçou a dimensão erótica com o atrativo do mistério, da possibilidade e da descoberta.
segundo o artista ele trabalhou em função das necessidades e indicações da diretora:
É interessante como apelação sexual explícita que fala o ator, dançarino e coreó-
“A palavra final era sempre a dela”. Respondendo sobre como foi a criação das coreo-
grafo Creso Filho dialoga bastante com o que alguns escritores percebem na contem-
grafias ele confirmou que foi:
poraneidade como o “desaparecimento do erotismo”, isto é, a sexualidade banalizada
ao extremo e tratada com completa vacuidade e vulgaridade. Em outras palavras, o
“Super corrida. Rápida e de efeito dentro do possível. Não havía-
sexo reduzido a uma atividade fisiológica trivial, puramente instintiva e “animal”,
mos muito tempo para criar e ensaiar. Tudo foi coreografado
sem a esfera do simbólico, portanto, dissociado de afetos ou paixões amorosas.

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ

A base de Creso é o teatro. Como coreógrafo ele parece primar pela teatralidade do entram baixo e base percussiva aos poucos, guitarra em flanger. Os acordes variam
gesto. Ele consegue o unir o teatral ao movimento dentro de um ritmo, uma música (Dm Am). Contrabaixo sobe em A C D. O número de aéreos de Alisson e Ciro também
singular. A escolha por esta via tornou a dança mais criativa e compartilhada inten- se desenvolve com essa música, com maior destaque para os solos de guitarra. É
sificando o prazer estético da composição geral, cercando-a de movimentos e gestos um rock progressivo e com uma pegada psicodélica suave. Na parte final o ritmo vai
artísticos. O resultado foi bastante satisfatório considerando o pouco tempo e a dança saindo e fica só o acorde da guitarra. Com 92 bpm, andante moderado e tonalidade
ter sido executada por alunos de uma escola de circo e não por profissionais de dança. em ré menor.
Segundo ele, adora o pessoal da ENC, mas considera que tenham faltado mais Contrastando com este clima entra o leitmotiv do espetáculo, o rock de guitarras
dedicação e disciplina aos alunos do elenco. Ele cita como exemplo, nunca ter conse- distorcidas (Rock 3 mins )na chegada dos malabaristas e das acrobacias na bike. A
guido ensaiar com todos. Estava sempre faltando um, dois ou três. Acreditava até que primeira parte do número de Lira duo também usa essa música. São 130 bpm. An-
faltassem por motivo justo. Todavia, esse não era o seu jeito de trabalhar. Afinal, já damento allegro. Compasso 4/4. Sequencia de acordes (A G A C - A G A D C) (D C D
tinha mais de 100 espetáculos nas costas. Cada um deles importante na sua época e C). Esta segunda parte lembra a levada de Desordem dos Titãs e Soldados da Legião
por algum motivo: Urbana. Influência nítida do punk estilo anos 80. Quebrando o andamento entra uma
música eletrônica enquanto Samuel faz isolamentos e dança com a bola de contato.
“Enveredei-me pela dança porque gosto, porque rolou, porque quis Compasso 8/4. Aproximadamente 94 bpm. Esta música parece simbolizar os anos
ampliar os meus horizontes e possibilidades. Coreografei 2000 por seu caráter exclusivamente eletrônico. Junto com o Duo de Lira volta o Rock
desfiles, shows, clipes, espetáculos de teatro, de circo… espetácu- 3 Mins com guitarras distorcidas. Nesta parte predomina um estilo heavy metal final
los de dança, nunca coreografei. Embora eu dê oficinas de Street dos anos 70. Lembra um pouco as bases do Black Sabbath (D C D C) (D C F E). Um
Hip Hop”pelo mundo inteiro, não sou um militante da dança. momento muito interessante de sincronia da música com o número é no solo de bate-
Já fiz tanta aula com tanto professor, que acabei me tornando um ria simultâneo aos giros da dupla na Lira. Encerrando esse número entra a música
ator que dança, (mas que não faz mais musical). Enfim, desen- Rock Coreografia para a dança dos boinax (número de dança coletiva). O compasso é
volvi a minha própria técnica ao longo desses quase 25 anos de 8/4. Sequencia de acordes: (G C G C) ( D C D C G D). Todos acordes são maiores. O ré
Hip Hop, seus estilos e tendências”. (Creso) às vezes é com sétima. A progressão é a tradicional: I – IV – I – V- IV. Do blues e do
rock. 132 bpm. Tonalidade em sol maior. É um rock influenciado pela pegada rápida
O artista trabalhou em vários países com diretores teatrais fantásticos como e direta do country.
Peter Greenaway (Rosa, A Horse Drama), Bob Wilson (Madama Butterfly), Dario Na volta dos malabaristas e do acrobata da bicicleta entra um heavy metal mais
Fo (Il Barbiere Di Siviglia) e nosso brasileiro, Augusto Boal (O Corsário Do Rei). pesado. Número de bike do Tonho em baixo do picadeiro e dos dândis em cima. Inicia
Sempre como ator físico, digamos, já que possui formação em mímica, dança e circo. a música do Mastro Coreano. Base do contrabaixo e bateria. Solo de clarinete. Anda-
mento lento. Clima mais suave e introspectivo. Música em ré menor. (Dm Gm). Apa-
recem os revoltosos. Momento sem música gravada. Os sons são apenas os vindos dos
performers. Quando sobem no picadeiro volta o leitmotiv rock, enquanto empilham
os tonéis formando uma pirâmide. Troca de claves em diferentes planos. O início da
música do mastro é a deixa para o começo do número de Mastro pendular. É a música
Trilha Sonora mais diferente da trilha sonora. A única com unidade de tempo ternária. O compasso
é 12/8. 132 bpm (allegro). Chama-se Mastro Oscilante. A progressão de acordes é a
A trilha sonora original foi composta, executada, gravada e mixada por Arturo clássica do flamenco: E – F – G- E. A divisão das notas da percussão em colcheias dá
Cussen. No Cabaré a música foi usada para expressar estados de espírito, sentimen- um sabor mais latino. A progressão dos acordes não é tão marcada como no flamenco.
tos e emoções correspondentes a diferentes momentos. Ela conseguiu estabelecer con- É sutil e se mescla muito bem com a percussão.
trastes, intensificar cenas e estabelecer climas. Entra o rock novamente enquanto empilham os tonéis numa formação mais alta.
A música que toca na abertura do espetáculo (“Prévia”) é marcada por uma me- Isso é rápido. Começa a base eletrônica para o número de Contato e Mastro chinês. É
lodia singela feita num saxofone. A formação é simples: baixo, guitarra e base per- a mesma usada na outra aparição do Samuel com o contato. Tem início a música das
cussiva eletrônica. Compasso 4/4, andamento com 93 a 90 batidas por minuto (bpm). paradas feitas nas mesas da plateia. Solo de guitarra. Bateria, baixo e guitarra na
Andamento próximo do ritmo do andar humano, agradável e compassado (andante). base rítmica e harmônica. Tonalidade de Fá maior. (F Am F Am Dm). Compasso 4/4.
Fá maior é a tonalidade. A sequencia harmônica é composta pelos seguintes acordes 92 bpm. Andante Moderato. Música dos sussurros e gemidos do início do espetáculo
em cifras: (F Em Dm) (G F D#). no número de Doble Trapézio em balanço, no piso do picadeiro Samuel faz o buugeng.
Quando os artistas sobem até o alto dos mastros começa a música do número de Volta o rock, derrubam os tambores. Acrobacia coletiva com os tonéis.
Parada de mãos da Vanessa. Música composta por acordes espaçados de guitarra com Entra um rock estilo anos 50 com um andamento rápido (133 bpm) para o número
efeito chorus com sustain, sussurros, gemidos de prazer ( tom em ré menor) e único de Duo acrobático de Petit e César, Icários e Dança das meninas sobre os tonéis. Tom
acorde dedilhado. Coincidindo com as portagens acrobáticas de Jana, Olavo e Jimi ré maior. Sequencia harmônica: (D G D A G D A). O contrabaixo faz um desenho

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ

melódico tradicional deste período do rock. Formação em bateria, baixo, guitarra e apresentação. A música também teve o poder de nos tocar no irracional, na esfera do
guitarra solo. sensível, do indizível, do inconsciente, enfim.
Volta o Rock 3 Mins, leitmotiv distorcido para continuidade do número acrobático No espetáculo prevalece um rock mais ao estilo dos anos 80. Um rock brasileiro,
com os tonéis. Música tema do duo na Pirâmide e do Doble Trapézio fixo. Volta o rock, curado da purple-haze psicodélica-progressiva dos anos 70 que tirou o gênero musical
número Canastilha e Acrobacia de Solo. Tocam novamente o rock com influencia do do gueto e conseguiu sua naturalização, como lembra Dapieve.46
country e os números acontecem no mesmo plano dos da plateia e no picadeiro. A sequência musical construída pelo Cussen e o uso pelos diretores a partir de al-
Após o mortal atrás em linha tem início a coreografia do fim do espetáculo. A mú- ternâncias e contrastes garantiu um melhor ritmo geral da encenação, unificando os
sica traz um pouco de melancolia e mistério. O solo é do teclado. A percussão é bem diversos materiais, dispondo-os no tempo sob a forma de ações cênicas. Nota-se como
discreta. É a mesma música que toca no momento que os paradistas atuam em meio o ritmo da encenação não esteve só nos contrastes de mudanças de velocidades, mas
ao publico sobre as mesas. A diferença básica é que ao invés da guitarra é um teclado também em algumas acentuações (como no giro do duo na Lira simultâneo ao solo de
que faz o solo. Outra menos perceptível é que nessa versão usa-se percussão e não a bateria). O encadeamento das ações físicas articulados às músicas aumentou o ritmo
bateria. Volta o rock (leitmotiv) enquanto pixam os tambores e todos gritam e correm e o sentido do tempo, de sua ductibilidade e elasticidade sob o efeito da composição
para a frente do picadeiro para os agradecimentos. artística dos diretores.
Este rock que fecha o espetáculo é utilizado na trilha sonora como o leitmotiv. Toda a trilha sonora foi operada a partir de programas de áudio pelo próprio Ar-
Mas, o que significa isso? Significa que ele funciona como um modo de condução da turo Cussen junto à equipe técnica na cabine com a mesa de som e de luz. A música
narrativa colocando a ideia do contraste, da contradição, do conflito, enfim. Além do espetáculo foi projetada por caixas colocadas nas laterais do picadeiro. Colocaram
disso, através da repetição serviu como uma maneira de ligar os diferentes números. também caixas de retorno voltadas para o picadeiro. Mas a maior parte das caixas
Todavia, acredito que ele envolve uma significação especial. Marca momentos de de som ficou nas laterais ao fundo e voltadas para a plateia. O resultado final foi de
revolta como a “invasão dos punks” no início, a derrubada da pirâmide de tonéis (der- qualidade. O que mostra que foram usados bons equipamentos para processar e pro-
rubada do poder, já que a pirâmide é um grande símbolo de poder), protesto vindo da jetar a trilha.
plateia com pessoas batendo nos tambores, falando alto e gritando; pixação nos tonéis Como vimos, no Cabaré, a música é presente praticamente o tempo todo. Ela não
quase no fim. está localizada apenas em alguns momentos. Sendo que o ROCK desempenha um pa-
Diante dos cenários opressivos (recessão, doutrina Reagan, Dama de Ferro, glo- pel central. O uso da guitarra elétrica em todas as músicas também é um indicativo
balização, etc) este ROCK tem o caráter simbólico de um sentimento de incômodo deste universo, uma vez que este é o instrumento musical mais comum e represen-
com o modo de vida padrão, oficial, estruturado e institucionalizado. Ele é um tema tativo na história do rock, sempre presente nas bandas, podendo possuir um único
associado, no decurso do espetáculo a personagens rebeldes que possuem um modo instrumentista, ou dois com funções diferenciadas (guitarrista base e solo). Dessa
diferente de encarar e de se relacionar com o mundo e com as pessoas. Um outro maneira, a própria forma musical já se constitui num dos aspectos que dialogam com
universo de significados e valores, com suas regras próprias. O mundo ainda é mar- a concepção geral do espetáculo. A execução das músicas estava prevista para acon-
cado por esta linguagem internacional da juventude que a acompanhou e expressou tecer ao vivo, mas devido aos cortes orçamentários foi inviabilizada.
todas as novas atividades de prazer, assim como o seu comportamento transgressor. Arturo Cussen é chileno, nascido na capital, Santiago. Fez a trilha original para
Desde os anos 50 até hoje o rock é um estilo de vida e de comunicação, mas nos anos o espetáculo Inversus com direção de Glaucy Fragoso. Morando no Rio de Janeiro há
60, o rock foi, senão a maior, uma das principais fontes inspiradoras das mudanças de alguns anos é um dos cofundadores do Circo da Silva, um coletivo de artistas que se
comportamento da juventude. Ou melhor, de uma parcela significativa da juventude reúnem em diversos formatos para realizar espetáculos que mesclam circo, teatro
no Ocidente, inclusive no Brasil. Como afirma Paes, “no sentido de que as mudanças físico e música. Segundo informações do próprio grupo, o repertório do Circo da Silva
daí advindas nos acompanharam, nos abriram novos caminhos e significados”.43 No vai desde espetáculos infantis como HumAnimal e Violeta TV ao Cortejo-cênico-mu-
quadro da contracultura, o rock foi um tipo de manifestação que estava bem longe sical Banda de Muvuca, considerando também o show do disco do coletivo.
de ter sentidos e repercussões apenas no plano da música. Conseguindo um desta-
que e um envolvimento social surpreendente, foi “um fenômeno verdadeiramente
cultural, no sentido mais amplo da palavra, constituindo-se num dos principais
veículos da nova cultura que explodia em pleno coração das sociedades industriais
avançadas”. 44 Sem dúvida, um período em que mundialmente a juventude apare-
cia como um foco de recusa radical da ordem política, cultural e moral, empenhada
numa luta contra o establishment reivindicando uma inteira reversão do modo de ser
da sociedade.45 Assim, o rock no espetáculo aparece não apenas como efeitos, intensi-
ficações, mas como a própria estrutura da criação. Ele é a base.
A trilha sonora foi capaz de irradiar influenciar bastante a percepção global do 43 PAES, Maria Helena Simões. A Década de 60 - Rebeldia, contestação e repressão política. São Paulo: Ática, 1993, p.
espetáculo. A disposição das músicas obedeceu a ideia de contraste e isto foi bom 08. 44 Idem, p. 43.
45 MUGGIATTI, Roberto. Rock, o Grito e o Mito. Petrópolis: Vozes, 1983.
para compor uma atmosfera que tornou os espectadores particularmente receptivos à 46 DAPIEVE, Arthur. BRock: o rock brasileiro dos anos 80. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. p.195.

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ
numa perspectiva de totalidade.
Cenografia No picadeiro o que prevaleceu no espetáculo foi uma cenografia circense compacta
e reduzida a um mínimo de elementos concretos: cortinas, tambores e plataformas.
Na entrada do pátio, do lado direito funcionou um bar que vendeu bebidas
No caso dos tambores esse conjunto cenográfico teve como função primordial repre-
e comidas um pouco antes e durante as apresentações. Ao entrar no espaço da
sentar um meio físico, um objeto de uso e um meio estético.
lona o espectador percebe que os lugares para assento não são nas fileiras con-
A cenografia teve a intenção de organizar visualmente o lugar para que nele se
vencionais, mas agrupados em torno das mesas. A disposição geral em relação
estabelecesse a relação cena/público. A qualidade esteve tanto em ser integrado à
ao picadeiro é semicircular.
proposta central da encenação (afinal, é um cabaré) quanto na inventividade e no
O espaço da plateia foi dividido em mesas ou tonéis e cadeiras em volta como se
uso adequado dos elementos e materiais propostos.
fosse um bar. Antes de começar o espetáculo tocava um jazz antigo para receber as
Houve unidade na concepção do espetáculo. Cada elemento foi pensado como
pessoas. As mesas tinham um forro vermelho. A iluminação deixava o ambiente
necessariamente interligado ao outro. O cenário dialogou com o figurino, ilumina-
na penumbra.
ção, etc. Os tonéis foram utilizados sob o princípio brechtiano que em cada objeto
há vários objetos. Serviram tanto como objetos de manipulação (para saltar sobre,
dentro, andar sobre, etc) quanto como cenografia móvel. Enquanto objetos cênicos
estiveram associados a um conjunto, a uma dinâmica que levou em conta seu uso
material, mas também simbólico. Os toneis figuraram como sistema integrador e
como ponto de referência espacial e temporal. Com suas diferentes disposições em
filas diagonais, horizontais ou sobrepostos eles estruturaram o espaço do picadeiro
em vários números.
Em suma, Guy e Raquel buscaram a estilização, a simplificação, a busca do es-
sencial da cenografia. Ela não chamou a atenção do espectador sobre si em detri-
mento da atuação. Assim, sua beleza esteve na simplicidade e adequação dos ele-
mentos plásticos em função da encenação.

Disposição espacial e plateia. Foto: Cláudio Alberto dos Santos. Rio, 2014.
O espaço cênico, lugar no qual movimentam os artistas não se limitou ao picadeiro.
A área de atuação propriamente dita e seus prolongamentos se estenderam para a
plateia e outros lugares. Houve uma multiplicidade de espaços onde ocorreram dife-
rentes números. Isto por sua vez aumentou a amplitude do olhar do espectador atra-
vés de um foco narrativo construído pela posição cênica e os deslocamentos sucessivos
dos atuadores pelo espaço.
Como já foi dito anteriormente, em alguns momentos os artistas buscavam intera-
gir com o público. Assim a plateia pôde responder com bastante intensidade, e não só
ao nível dos risos, dos assovios, do aplauso, mas também com falas, gestos, posturas e
atitudes. Não mais apenas um diálogo físico com o espectador, mas também o intuito
de provocá-lo, de instigá-lo a atos de envolvimento. O prazer da performance circense
nesses momentos em boa parte, vem também da reação da própria plateia.
Houve também um contato próximo entre os circenses e a plateia, através de um
relacionamento espacial diferente do picadeiro fechado em si mesmo e cenocrático.
Espacialmente esta escolha pode significar a vontade de não mais separar o picadei-
ro da plateia, de aproximar artistas e espectadores, de mostrar um mundo de mais
igualdade, contato e troca de energias.
A lona e o pátio formaram em sinergia o espaço completo. Dentro da lona as
pessoas se agruparam em esferas de espaços, espaços dentro de espaços. A lona foi Letícia na Parada de mãos sobre um tonel.
um espaço que conteve e envolveu vários ambientes menores que se relacionaram Foto: Cláudio Alberto dos Santos. Rio, 2014.

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ

Iluminação “É hoje... explode coração. O quarto dia é o dia que tem que ter
muita atenção. Já começaram os machucadinhos aqui e ali, então
A iluminação tornou os números circenses visíveis em seus diferentes espaços, galera M-U-I-T-A atenção! Circo é perigoso. Não é para relaxar
coloriu os ambientes, aparelhos e figurinos. Além disso, a luz foi o foco narrativo não. Sempre tem que ter um medinho. Nunca confiança demais.
que substituiu a figura do apresentador. Diante da multiplicidade de espaços que se Confiança demais não é bom não. Então aquela atençãozinha tem
desenrolaram em sucessão temporal, a luz teve o poder de editar, narrar, dirigir a que ter, entendeu? Guardar a atenção entre vocês, os olhares. Tro-
atenção do público para a cena desejada. car mais olhares. Não esquecer e ficar só consigo mesmo, enten-
Os refletores permitiram selecionar, enfatizar, aproximar ou distanciar os artistas deu? Realmente trocar, olhar, prestar atenção em tudo, em vocês, no
e aparelhos dos olhos da plateia. Na medida em que iluminaram determinada área público, em tudo. Hoje o espaço inteiro tem que ser amigo. Tá
ao mesmo tempo esconderam outra com a escuridão enquanto faziam os preparativos bom? E muita merda! Vocês estão lindos!” (risos, gritos, urros)
para a próxima cena. A intensidade da luz destacou a presença do performer, revelou
detalhes das superfícies, texturas, volumes, diferenciando as áreas claras e escuras Depois foi a ver de Guy, o outro diretor que não gastou muito o seu português:
das coisas, a altura, o perfil, os contornos, a profundidade.
No espetáculo pôde ser vista grande quantidade de luzes espalhadas nos mais “Por favor, é a última (pausa) mas não faz piadinha. Nada de piada.
diferentes espaços e incidindo nos mais diferentes ângulos. Luzes PAR 64, fresnel, Concentracion. Espetáculo. Muito sério. Melhor espetáculo do
planos convexos, move lights, set lights, a maioria de led. Luzes de ribalta, luzes de festival! Ok?” (Guy Carrara)
pino (zenitais), luzes de contra (sobre a cortina vermelha) nas laterais do picadeiro,
nas laterais fora do picadeiro, spots dentro dos mastros frontais, luzes no alto dos No final, juntamente com um gesto de levar o punho fechado a frente do corpo
mastros traseiros apontando para o centro do picadeiro, refletores nos aparelhos fora ele chamou um “uêêêê!” que foi prontamente respondido em coro por todos os outros
do picadeiro como o Quadrante Coreano, o Mastro Chinês, a Pirâmide e o Trapézio participantes daquele momento. Uma animada salva de palmas.48 Todos continua-
Fixo. As luzes elipsoidais, com seus focos e recortes acentuados, criaram territórios ram com os últimos preparativos antes de entrar em cena. Mais próximo do início da
em números como o Duo de Trapézio Fixo e a Pirâmide, por exemplo. A luz Fresnel e apresentação rezaram coletivamente o Pai Nosso. Gritaram e deram um abraço co-
PAR 64 foram usadas para efeitos abertos difusos, espalhamento e uniformidade no letivo empolgadíssimo. Depois pularam juntos gritando Cabaré, cabaré, cabaré! Em
conjunto da luz do picadeiro. seguida iniciou a última apresentação.
João Franco foi o responsável pela iluminação. Isto é, o iluminador, o designer, en- Interessante notar como nem sempre houve tamanha energia e entrega por parte
carregado de conceber o projeto capaz de definir equipamentos, localização de fontes, do elenco e equipe técnica. Quem mostra isso com precisão e uma boa dose de since-
estabelecer combinações, calcular quantidade de quilowatts, definir focos e ângulos, ridade são acrobatas integrantes do elenco Demitri e Cesar:
além de analisar o espetáculo e propor um estilo e um modo adequado de iluminá-lo.
Como lembra o grande mestre Roberto Gill Camargo “o design implica planejamento, “Cara, tá massa! Surpreendeu, pelo menos pra mim surpreendeu
organização e estruturação das diversas etapas da iluminação cênica”. 47 bastante. No início eu não botei muita fé, mas a resposta foi super
Em grande parte, foi por meio da luz que as unidades visuais da cena se organi- positiva e aí veio contagiando o elenco assim. Com a resposta da
zaram, estabelecendo equilíbrio, clareza, ritmo. Além de modificar a aparência física galera. Aconteceu! Eu confesso que eu não depositaria minhas fi-
das coisas e dos ambientes que iluminou, ela nitidamente teve também o poder de chas no sucesso do espetáculo não, cara. Mas a resposta foi muito
agir sobre as pessoas, alterando seu estado de espírito, seu humor, por meio das im- bacana. Acho que o conjunto todo agradou e a galera curtiu. Fico
pressões psicológicas que causou. feliz. Rolava essa tensão por conta do figurino excêntrico demais
e por muita gente em cena, né? Trinta e dois! Mas, conseguiu com
esse jogo de iluminação, com essa divisão dos espaços do circo
conseguiu harmonizar o processo. Gostei! Todo mundo se sur-
preendeu com o resultado final.” (Demitri Manaf)

Direção “Toda vida nossa é um aprendizado e esse espetáculo foi um


aprendizado bem maior do que eu esperava. Sobretudo, a
Na última noite de apresentação da curta, mas intensa temporada, por volta das convivência com essa galera de tantos lugares diferentes, gale-
21:30, portanto meia hora antes do começo previsto para o espetáculo, Raquel Rache ra tudo unida pra construir uma coisa só. Foi muito bom!
e Guy Carrara chamaram todos para irem ao camarim. Comunicavam alegremente
que estava lotado enquanto convidavam todos para entrar. Tinham umas “coisinhas 47 CAMARGO, Roberto Gill. Função estética da luz. São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 24.
pra falar”. Todos fizeram um grande círculo na medida do possível. Ficaram em volta 48 Estas falas e outros momentos dos bastidores do espetáculo podem ser vistos no vídeo síntese que publiquei na
época: https://www.youtube.com/watch?v=NdcIo5FgIvM. O espetáculo inteiro está dividido em duas partes: https://www.
das araras. Sorrisos. Shhhhh silêncio... Raquel foi quem começou: youtube.com/watch?v=SJUy9zsE0W4 e https://www.youtube.com/watch?v=D7P-vbZl5h8.

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ

Muita energia positiva nessa hora quando entra no picadeiro. No eles entenderam que é com um conjunto que se faz um espetá-
começo eu tava meio por fora do negócio, não queria entrar muito, culo e não existe aprendizado melhor!(...) O grande mistério
não tava enturmado, mas depois que eu vi a parada pegando fogo, que ficará sem resposta sempre é: a partir de que momento todos
eu falei: vou meter a cara nesse negócio aí!” (Cesar Rodrigues) resolveram que virariam um grupo, que a linha invisível que
liga seres tão sensíveis existiria? Sem grupo, sem solidariedade
Eu me lembro de que durante o processo boa parte dos alunos/artistas não estava não existe circo possivel.... Eu vi essa linha se desenhar no dia
acreditando muito no espetáculo. Como já foi discutido anteriormente, os cortes no da estreia. Nunca fico angustiada ou nervosa se não vejo a linha,
orçamento vindos da direção do Festival provocaram consequências que minaram o pois pra mim faz parte do mistério”. (Raquel)
terreno, em certos aspectos. Por experiência própria em várias direções cênicas desco-
bri que uma das principais qualidades de um diretor é ACREDITAR no potencial do A potência transformadora do circo talvez seja a grande sabedoria que se possa
trabalho. Mesmo que esteja sozinho nesta, em alguns momentos. Nisso assemelha-se extrair deste processo. A sua eficácia simbólica, a sua magia consistiram na alteração
um pouco ao profeta. Fala com convicção de um futuro que muitos têm dificuldade profunda do estado emocional e intelectual das pessoas diretamente envolvidas. Pode
de visualizar o impacto. Mas, como Raquel lidou com essa situação? O que fizeram ser que esta transformação tenha sido pelo resto da vida. A partir do momento que se
diante disso? inicia o processo de montagem dos aparelhos no picadeiro e a organização do espaço
parece que ocorreu uma mudança que resultou não só na transformação das coisas,
“Enquanto não existe a estreia e o sucesso, muitos ficam assim, mas, principalmente, das pessoas, sejam os artistas, seja o público. Isto dialoga com o
é normal, faz parte do processo. Para alguns eu dei uma atenção que escreveu Rocha “quando se abre a cortina, é outra pessoa quem entra no picadeiro
maior, mas com todos tínhamos a preocupação de dar à eles o que (...). Na verdade, o espetáculo, enquanto ritual, tem a eficácia de produzir a reunião do
era importante: o processo pedagógico da criação, onde frus- que está separado: essa é a magia do circo”.49 Sim, esteve presente nestas apresenta-
trações, dúvidas, posicionamento em relação à profissão (mesmo se ções a mudança de estado em que o ser humano restabelece o contato consigo mesmo,
esse posicionamento ficava ligado somente na sensibilidade), ale- ao reunir, magicamente, espiritualidade e animalidade, racionalidade e emotividade,
grias,e tantos outros sentimentos que um grupo de 32 alunos po- corpo e espírito, sexo e erotismo, concretude e simbolismo, arte e vida.
dem viver. Além disso era importante eles viverem a experiência de As evidências apontam para o fato de que Raquel Rache e Guy Carrara exerceram
trabalhar com diretores de circo contemporâneo.Muitos não a direção do espetáculo de uma forma predominantemente democrática. Eles esti-
sabiam o que era isso”. (Raquel) mularam no elenco a imaginação - que inventa a si mesma e se abre para as novas
possibilidades. Deram ao Cabaré um cheirinho de alguns momentos dos espetáculos
Como era de se esperar de uma experiente diretora, lidou com a situação com tran- do Archaos dos anos 80 e criaram outros diferentes.
quilidade reconhecendo as especificidades do processo e as diferentes visões de circo e
mundo. Nesta perspectiva de direção aberta às dúvidas e frustrações dos participan- “A participação de muitos professores foi simplesmente incrível
tes chega ter um caráter pedagógico deliberado a paciência de esperar que a lagarta e surpreendente. Os alunos são maravilhosos, pois eles estão
complete sua muda transformando-se aos poucos e sair da crisálida uma borboleta. na fase de sede e fome do aprendizado, leves, abertos mesmo que
As mudanças ocorrem em momentos decisivos como a estreia e o retorno positivo do não estejam entendendo ou acreditando. Ainda estão verdes, isso é
público, mas também com sutilezas e lentamente: muito gostoso, pois estão dispostos a dizer sim. Por outro lado, a mi-
nha responsabilidade é maior, pois não tenho direito de pedir à
“Em vários momentos houve mudanças em cada um deles, sem eles o que peço a um profissional tarimbado. Então, tive que dosar
eles perceberem. Foi a soma de todas as pequenas mudanças minhas exigências”. (Raquel)
que desenharam e permitiram a melhoria. Isto é, um salto qua-
litativo? (Afinal, pude presenciar que nos dias das apresentações A compreensão do que se pode extrair de um artista cênico de melhor implica em
que o grupo estava visivelmente bem mais unido e intenso). Cada reconhecer seus limites, características e qualidades. Nesse sentido, tanto Raquel
elemento novo que aparecia, dava à eles um alimento, o primeiro quanto o Creso apontaram exatamente essa compreensão na relação com os alunos.
foi a música. O segundo foi a chegada do Creso, foi o primeiro pata- Por outro lado, o Cabaré contribuiu para que os alunos entrassem em maior contato
mar. Eles tinham que aprender num tempo recorde 3 coreografias. com o universo de aprendizados do espetáculo circense, com instituições apoiadoras
A chegada do Guy acalmou muitos deles, foi outro pulo, a presença e com o próprio Festival. Sem falar, evidentemente da oportunidade de trabalharem
masculina na direção foi importante- nosso duo funciona (ainda com diretores significativos como o casal Raquel e Guy. Puderam ver como diretores
bem!rsrs),os figurinos foram essenciais no aprendizado da modés- circenses decidem quais os números vão entrar e sair. Como estabelecem a colabora-
tia e da solidariedade, a produção funcionou muito bem, os tonéis e ção com a equipe técnica (qual música, figurino, onde a luz vai focar, e que cor vai ser).
as cortinas deram uma força incrível e com a chegada da luz o espe-
49 ROCHA, Gilmar. A magia do Circo –Etnografia de uma cultura viajante. Rio de Janeiro:. Lamparina & FAPERJ, 2013.
táculo estava vestido e a roupa era linda.Foi no dia da estreia que p.210.

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ESPETÁCULOS 2014 CABARÉ

Raquel e Guy atuaram como diretores e ao mesmo tempo como roteiristas. Eles Outros Encontros, Outras Possibilidades:
são os autores do espetáculo. Escolheram o tema e seguiram a inspiração orientadora
do roteiro sem amarras. Nele há claramente uma dimensão teatral, existem persona- espaço ARCHAOS/CREAC (Marselha)
gens. As ações tem um significado que transcendem a concretude do movimento. Elas
simbolizam, expressam, comunicam sentidos. Quando estava no trabalho de campo realizado na Europa para conhecer escolas
Isto dialoga com o fato já discutido por Albrecht de que hoje em dia os diretores de circo, visitei o espaço da Archaos em Marselha, na França. Luiza e eu fomos re-
de espetáculos contemporâneos de circo são mais do que guardas de transito, mo- cebidos por Flávio Franciulli (fundador do Grêmio da Escola), profissional de circo
vimentando pessoas, ou ensaiadores.50 Ultimamente o trabalho deles vai além de na França há mais de 16 anos. Foi ele quem gentilmente nos hospedou em sua casa
selecionar os números e arranjá-los na ordem em que vão ser apresentados. Como em Marselha. Ele foi ótimo e hospitaleiro. Levou-nos ao espaço Archaos, bem como,
no caso discutido, os diretores são também responsáveis por descobrir e selecionar nos guiou pelas salas explicando o que víamos e respondendo as nossas perguntas.
as imagens e sons que a plateia vai experimentar. Em termos gerais, esta geração de Começamos pela Sala 01 do Archaos, a sala de ensaio dos artistas. Nesse espaço
diretores busca explorar todas as possibilidades que a produção circense pode ofere- viam-se aparelhos circenses como trapézios, faixas, corda volante (marinha), qua-
cer sem as restrições esmagadoras do peso da “tradição” e com um grau de aventura drante americano, roda alemã, bola de equilíbrio, arame baixo, colchões de tama-
e criatividade que nunca foi vista antes no circo. nhos e formatos diferentes, linóleos, vários sistemas de lonjas, cadeiras e mesas de
Houve uma divisão dos trabalhos entre Raquel o Guy Carrara durante o processo. um dos lados posters espalhados pelas paredes, o cartaz do plano de evacuação da
Além disso, uma estratégia de direção baseada na cumplicidade e na complemen- sala, uma estrutura em andaime com rodas para instalação, manutenção e desins-
taridade. Quando organizaram a direção, combinaram que ele viria para o Brasil talação de aparelhos aéreos, (na França é proibido o uso de escadas) lonjas, lâmpa-
nas ultimas semanas de montagem quando a Raquel provavelmente não teria mais das e spots de luz. Além disso, numa estante próxima a parede esquerda de quem
objetividade alguma. Isto é, “estaria totalmente envolvida com o espetáculo, sem ter entra encontramos diversos livros interessantes para a nossa pesquisa.
distanciamento algum”. De fato, ele chegou no momento certo, fez o trabalho drama- Depois fomos para a sala dos artistas em que guardam os materiais, objetos, apa-
túrgico de estabelecer as costuras e ligações das cenas, deu o ritmo que estava fal- relhos e pertences pessoais que estiverem trabalhando na ocasião. Haviam várias
tando, e embarcou com Raquel nesse espetáculo que foi um sucesso de publico. Isto prateleiras de metal ocupadas por bolsas de claves, sacolas e caixas. Flávio mostrou
é, conseguiram vencer o desafio de levar os alunos e os professores à participar desse sua cadeira em que faz aéreos. Primeira vez que vimos uma pessoalmente. Em
Festival de corpo e alma. seguida, vimos o vestiário e banheiro, a garagem para deficientes físicos (pois na
França em espaços onde se faz espetáculo é necessário uma licença que exige que
“Fico sempre frustrada após uma direção, pois sempre gostaria de haja vagas de estacionamento para deficientes físicos).
ter tido mais tempo, mais aprofundamento, mais tudo. Mas
sempre digo também: é da frustração que nasce o desejo... Adorei
viver esse processo e dei a minha colaboração na construção da
idéia de um circo contemporâneo brasileiro e carioca. Quero
agradecer à todos que participaram do projeto, TODOS. Graças à
Junior e Isabel, Marcos e Carlos,parceiros de primeira concluímos
esse projeto com sucesso, e espero que sementinhas brotem nos
corações e corpos desses alunos cheios de talento,e em todos que
estavam conosco, e que a estrada circense nos reserve surpresas
inesperadas. E profundamente solidárias”. (Raquel)

As mentes multifacetadas, inquietas e com tendência para a totalização de Ra-


quel e Guy Carrara superaram a especialização, a separação dos ramos do conhe-
cimento e a divisão do trabalho. Souberam respeitar e lidar com os participantes.
Transformaram diferenças em somas. Eles passam por um caminho antagônico ao
caminho onde a produção volta-se contra o ser humano. A produção está a serviço
do homem, e não o homem a serviço da produção. Ou melhor, dizendo, o ser humano
não desaparece por trás de um mundo de coisas, de mercadorias, para tornar-se
uma coisa a mais. Pelo contrário, humaniza-se no seu fazer. Os diretores são seres
profundamente solidários.

50 ALBRECHT, Ernest. The Contemporary Circus: Art of the Spectacular. Scarecrow Press, Inc. Maryland, 2006. Sala 01 do espaço ARCHAOS/CREAC. Foto: CAS. 2014.

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ESPETÁCULOS 2014 Cláudio Alberto dos Santos
MEMÓRIAS

Após conhecer a garagem fomos para a Sala 2 – onde os artistas, companhias,


trupes e grupos de fora fazem suas residências artísticas. Além disso, é o espaço de
apresentações. Vem todo um sistema de arquibancadas, som e luz por ocasião dos
espetáculos. As paredes são todas num preto fosco, para melhorar a qualidade da
iluminação. A estrutura do teto permite montar nessa sala inclusive o trapézio de
voos. Nas paredes laterais há ganchos para instalar as espias. Atrás dessa sala tem
um depósito com os materiais da Archaos. Na grande sala ainda há uma cozinha
onde o pessoal pode fazer suas refeições. Foi tudo pensado em função das necessida-
des e especificidades das artes do circo: “aqui é uma sala de residência, aqui é uma
sala de criação de espetáculo, aqui não é uma sala de formação”. Fala de Flávio
Franciulli se referindo a Sala 02.
A Archaos teve e tem algumas subvenções públicas que permitiram reformar e
adaptar este espaço que alugam desde 2001. Faltam algumas coisas, mas, aos poucos
estão resolvendo. Marselha é a segunda maior cidade da França. Nela existem muitas
companhias para disputar as verbas públicas. Tudo é muito suado. Nada vem fácil.
Foi um tempo bom que passamos ali, com muitas lembranças e risos. Depois fomos
visitar também os escritórios da companhia e reencontramos Guy Carrara. Fomos
apresentados aos vários funcionários que estavam trabalhando ali naquele momento,
fotógrafa, designer gráfico, secretaria, entre outros. Estavam todos atarefados, in-
clusive o Guy Carrara com a organização da Bienal Internacional de Artes Circenses
Provence Alpes Côte d’Azur de 2016. Mesmo assim conversamos um tempo sobre a
Archaos e outros assuntos. No final da conversa nos deu dois livros sobre a Archaos,
sendo um de sua autoria.
Depois dessa agradável
visita fomos para a casa do
Franciulli onde de noite re-
cebemos o Bruno Carneiro
para um jantar. A lua cheia
estava linda vista da jane-
la. Lua sagrada dos ciga-
nos. A comida e o papo uma
delícia. Luiza e eu partimos
na manhã seguinte para o
CNAC. Assim, graça a ge-
nerosidade e solidariedade
dessas pessoas, dessa famí-

MEMÓRIAS
lia chamada ENC, chamada
CIRCO, nossa viagem para
Marselha se tornou uma rea-
lidade bem prazerosa e pu-
demos conhecer um desses
raros espaços de criação pro-
Admirável União de
fissional de circo na Europa,
e, sobretudo, saber um pouco
Mãos Vazias
mais sobre o modo de traba-
lho desses artistas. Da esq. para a dir. Bruno Carneiro, Raquel Rache, Luiza Fernandes,
e
Corações Confiantes
Cláudio Alberto dos Santos, Guy Carrara e Flávio Franciulli.
Foto: Louise Bloom. Marselha, 2014.

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS

A lista final ficou assim: REGIÃO CENTRO-OESTE: Marta C.F.C. de Oliveira,


“Mas olha soh como eh a vida!! Isabela M.M. Coelho, Ana Luiza S.B. Del Pino, Arthur Lopes Marques, Ana Flavia
Em um ano fizemos laços tão fortes que nos V.Silvestre, Adenilton P. Conceição, Livia Silva Brandão, Marcos Paulo de Souza,
Danilo Lucio Ribeiro, Letícia A.F. Esteves; REGIÃO NORDESTE: Aisha Q. de Brito
tornamos, sim, uma nova família!!!” (Karina Bredariol) e Lima, Camilla S.S. Albuquerque, Jana Bourscheid Serrat, Maurício José da Silva,
José Anísio da Silva, Jonathan da Silva, Felipe de Abreu Rodrigues, José T. de Mace-
do Neto; REGIÃO NORTE: Rayssa Palheta da Silva, Thiago Farias Pereira, Joseph
B.O. dos Santos; REGIÃO SUDESTE: Renata Vatucci, Kleber Lira de Lima, Vanessa
Lopes Aguiar, Giovana de Camargo, Marco A.R. Tartarella, Mateus Juda Torquato,
O espetáculo Memórias foi apresentado uma única vez. Quanto trabalho, Patrícia Tiemi Kuwai, Gabriela Bernardo Ferreira, Cesar Augusto de Paula, Davi M.
energia e tempo dedicados a um evento único, não? Mas, isto de alguma for- Fernandes da Silva, Luiza Fernandes Barros, Fernando Felix, Carlos de Jesus Bispo,
ma transformou o público presente em testemunha de algo que não iria se Gabriel Martins dos Santos, Karina A. Bredariol, Rafael Conceição Alves, Letícia Sil-
repetir. Esta condição deu à plateia a característica de cumplicidade? O que va Coelho, Alice Tibery Rende, Brunna Mayernyik, Jânio Carvalho Matos, Chandra
por sua vez aumentou a presentificação do momento? Acentuando o aqui e H.P.C. Andrade; REGIÃO SUL: Artur G. C.M. Ramalho, Samuel de Oliveira Reise,
agora? O tempo presente? O fugaz instante da duração do ritual? Daniele Costa Ferreira, Greice K.M. Barros, Fabiano Francisco, Gian Lucas da Cruz,
Mas, para realmente entender o que estava em jogo durante estas duas Cesar Augusto Rodrigues, Valdirene C. da Silva.
horas de encontro entre artistas e plateia é fundamental conhecer um pou- Patrícia Tiemi Kuwai não chegou a assumir a vaga dando lugar a Yasmin Ferrei-
ra da Silva. Pelos mais diferentes motivos, razões e fatores: Marta de Oliveira, Ana
co da turma e do próprio processo de criação do espetáculo. Posteriormente,
Luiza Del Pino, Adenilton Conceição, Kleber Lira, Marco Tartarella, Letícia Silva,
faz-se a análise da encenação e dos significados para o público. Pois, tanto
Mateus Torquato , Giovana de Camargo, Joseph dos Santos, Chandra Andradre e
o momento anterior, quanto o imediatamente posterior a apresentação são Gian Lucas saíram da ENC em diferentes momentos do percurso, não participando
bastante esclarecedores do por quê “o conhecimento da preparação do espe- da montagem final de formatura.
táculo só tem interesse (pelo menos para a análise) se esclarecer o fenômeno Quando as aulas começaram e durante os próximos meses parte dos estudantes
produzido: a encenação. A encenação só se compreende se pudermos julgar a ainda estava se ajeitando na nova cidade. Buscando lugar para alugar. Procurando
maneira com a qual toca e influencia o espectador. É então a imbricação dos um cantinho para chamar de seu. Adaptando-se a nova vida, a nova realidade cultu-
três momentos e das três instâncias que está no coração e no nó do problema, ral da cidade frenética e cosmopolita que é o Rio de Janeiro. Pessoas tão diferentes
a descrição de um tem apenas um interesse reduzido sem a descrição dos dois em seus sotaques, ditados populares, culturas enfim, que tiveram no aprendizado do
outros”. 51 circo o denominador comum.
Como se trata de um trabalho de conclusão de curso é muito revelador perce- Vida de artista, um dia aqui e outro dia lá. A maioria na expectativa de viver um
ano fantástico e inesquecível. Mas, nenhum deles sabia o que iriam encontrar ali na
ber como nesse caso a arte tem um grande poder de criar e capacidade de ino-
ENC e na cidade do Rio. Alguns largaram tudo o que tinham de mais estável e foram
var, ressignificar, e, sobretudo, de ensinar. O ato criador estrutura e organiza o
atrás de seus sonhos. Sonhos tão comuns entre eles. Sonhos divididos que se somam
mundo num constante processo de transformação dos seres humanos e de suas pelo amor compartilhado às artes do circo. Muitas vezes, longe dos amores, das famí-
realidades. E no caso específico do circo isso tem essa potencialidade amplifi- lias e dos amigos alguns sentiram que só tinham uns aos outros.
cada. Pois, na linguagem desta montagem os artistas circenses atuam numa O maior problema é que no primeiro mês de estadia não puderam contar com o
perspectiva versátil, totalizante. Portadores de toda a arte. O circo se faz dança, dinheiro da bolsa. Alguns estavam tendo sérias dificuldades em pagar ou pelo menos
canto, teatro... o circo se faz uma arte completa. postergar os pagamentos do aluguel, da alimentação e de alguns acessórios básicos.
Pássaros novos longe do ninho? Em certo momento, a coisa se complicou bastante.
Face ao descontentamento que o atraso no pagamento gerou Carlos Vianna, mesmo
estando de férias orientou a bolsista Renata Vatucci montar uma comissão para se
O Início – Primeiros Tempos reunirem com a direção da Escola.
A diretora substituta Janaína Botelho estava levando todas as questões ao co-
O resultado final do Edital 2013 da Bolsa de Formação Básica comparado a outros nhecimento do escalão superior na Funarte em busca de uma solução por entender a
anos mostrou que houve um crescimento do número de proponentes nas regiões Cen- importância da questão. Enfim, a Bolsa estava atravancada na engrenagem dos pro-
tro-Oeste, Nordeste e Sul, aumentando a inserção regional e capilaridade do progra- cedimentos burocráticos para pagamentos com recursos públicos que demandavam
ma. Outro aspecto, é que também se constata um aumento na qualidade técnica dos tempo e envolviam vários setores e pessoas. Nos últimos dias de Agosto já tinha gente
proponentes e um maior equilíbrio de gênero. rezando para a nossa Senhora da Bolsa Funarte. Outros tentavam descruzar os bra-
51 PAVIS, Patrice. Análise dos Espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2010. p.303.
ços e falavam em organizar um ato público, etc. Até que para alívio geral da turma,

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS

no dia 4 de setembro de 2013 o dinheiro foi depositado nas suas contas bancárias. Processo Criativo/ MEMÓRIAS
Uma atitude pedagógica que contribuiu imensamente para a formação destes
alunos foi o fato da ENC ter facilitado bastante o acesso deles a vários eventos ar-
Entraram no processo com a cara e a coragem. Pau na máquina, não tinham tempo
tísticos e culturais no Rio de Janeiro no horário extraclasse através do oferecimento
a perder. Na semana de 03 a 7 de março de 2014, faltando praticamente três meses
de ingressos de cortesias. Assim foi no Panorama - Festival de dança Contemporâ-
para a apresentação fizeram algumas reuniões em que após a indefinição de propos-
nea do Rio, na apresentação da Sagração da Primavera no Teatro Municipal, entre
tas Artur Cacciolari foi escolhido o diretor e propôs o esboço de um roteiro do espetá-
outros espetáculos como o Séquence 8 da companhia Les 7 doigts de la main. A
culo A Caixa Mágica com uma noção de começo, desenvolvimento, clímax e solução do
turma buscou socializar-se das mais diferentes maneiras. Encontros no Posto 08
conflito. Visivelmente uma estrutura teatral.
ou 09 na Praia de Ipanema nos fins de semana e feriados, luais no Arpoador, festas
de aniversários, confraternizações, as idas e vindas nas casas dos coleguinhas, as
gafieiras e sambas na Estudantina, a boemia nos bares na Lapa, etc.
De segunda a sexta, trabalho duro na ENC. Além das aulas os alunos no início de
dezembro de 2013 já estavam envolvidos nos ensaios para a Palhaceata do Anjos do
Picadeiro (Encontro Internacional de Palhaços que existe desde 1986). Trabalharam
num roteiro de Glaucy Fragoso que também dirigiu a intervenção artística. Alguns
ensaios como o do dia 11 de dezembro de 2013 não puderam acontecer por conta dos
alagamentos. A Escola ficava fechada e não ocorria nenhuma atividade. Havia va-
zamentos na lona que molhavam o motor do guincho de içamento e a parte elétrica.
Ficava fechada por questões de segurança e prevenção de acidentes.
Trabalharam também no Lançamento do Edital na sede da Funarte no Palácio
Gustavo Capanema, localizado na Rua da Imprensa.
Também atuaram como apoio na formatura dos alunos do curso técnico. Isto
é, fizeram parte da equipe de montagem e recepção do espetáculo INVERSUS
ocorrido em 20/12. Essa atividade foi contabilizada na carga horária dos bol-
sistas como estágio profissional. Alexandre Santos, que fazia a assistência de
direção é quem fez a maior parte das articulações com a turma.

Recepção INVERSUS. Ao centro Giovana Cataruzzi. Foto: Cláudio Santos. ENC. 20/12/ 2013
Não dava para ficar marcando touca. Artur teve a iniciativa de lançar esta concep-
ção cênica vista a partir da imaginação de uma criança que faz do mundo um lugar
de magia e alegria, “onde tudo é possível e nossos sonhos podem se tornar realidade”.
Era um enredo com vários personagens como bonecos, super-heróis, brinquedos com
vida, filhos, macaquinhos, dois irmãos, uma mãe e o grupo de brinquedos do fogo que
assustam e apavoram todos. Nas reuniões realizadas anteriormente discutiram os
prováveis temas e o tema “brinquedos” venceu na votação.
Mas o processo estava apenas começando. Vieram as divergências. Gian Lucas
discordou pelo fato desta ideia já ter sido usada pelo Artur na Escola de Circo de
Londrina e querer fazer algo novo e não uma cópia ou algo que remetesse de alguma
forma ao já feito. Parte significativa da turma não tinha gostado muito, mas até aque-
le momento só havia aquele tema, “ninguém tinha uma ideia melhor”. Incomodava
sobremaneira, alguns para quem o tema havia tomado um rumo muito infantil.
Apareceram logo em seguida duas propostas que também não agradaram muito.
Anísio Silva propôs a ideia de “Ritmos”, um espetáculo que misturaria a música dos
anos 70 e a do final de 2014, incluindo o funk na coreografia aprendida nas oficinas de
Hip hop. Thaígor Pharias defendeu a ideia do Circo-Shakespereano, numa perspecti-
Lançamento Prêmio Carequinha. Foto: Cláudio Alberto dos Santos. Rio de Janeiro. Dez/2013.
va de fazer desconstruções das obras de Shakespeare.

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS
Foi só em 14 de março que um tema conseguiu praticamente o consenso da turma. Desenrolando o novelo de Memórias
Brunna Mayernyik juntou os temas “baú de histórias” e “retrospectiva dos anos 50,
60, 70.”, e encontrou uma forma de homenagearem seus professores tão queridos e No dia 17 de abril, depois da aula, os formandos tiveram mais uma reunião onde
que estavam sempre tão cheios de histórias para contar e graças a elas com tanto a partir de propostas de Brunna definiram os dias que ficariam depois do horário
para ensinar: letivo, das 17 as 19h, para trabalharem as montagens dos números, principalmente
os coletivos maiores, como o “Pirâmide + Canastilha” que encerraria o espetáculo e
“A história seria de um artista de circo aposentado que está teria a participação de TODOS os alunos. Além dele, o então ainda número de “Solo +
revendo e mostrando seus álbuns de fotos para seus netos, contan- Icários + Báscula + Cama Elástica”, que também incluía muitas pessoas. Concorda-
do-lhes suas emocionantes histórias. A partir de suas memórias, ram que todos os números deveriam estar com uma sequência técnica/um esqueleto
as cenas e apresentações vão acontecendo. Poderíamos traba- já montado até o dia 08 de maio para que pudessem sincronizá-los com a música,
lhar com algumas histórias reais de nossos professores e usarmos elementos de composição e direção para começarem os ensaios gerais.
algumas fotos deles mesmos projetadas durante as memórias. Não Alguns aproveitaram o feriado prolongado para se dedicarem ao roteiro do es-
sabemos por mais quanto tempo nossos mestres estarão comparti- petáculo como o Thaigor Pharias e a Brunna Mayernyik. Assim que voltaram as
lhando seus conhecimentos conosco, e vejo na nossa formatura, aulas reuniram-se com seus grupos dos números para “agilizarem” a montagem das
uma forma de agradecê-los por fazer parte dessa fase tão impor- sequências e as pesquisas de músicas e figurinos. Brunna pediu para o pessoal da
tante nas nossas vidas e homenagearmos a história do circo”. BANDA para pesquisar e ensaiar para o cortejo.
(Brunna) Lívia Brandão agitou o grupo da cenografia em 24 de abril propondo marcarem
uma primeira reunião. Já era o momento para levantarem matéria prima para a ce-
Esta proposta conseguiu UNIR as várias pessoas que até o momento ainda nografia. Lívia orientou que praticamente tudo que conseguissem de brilhos, plumas,
estavam insatisfeitas com o processo. Como desdobramento prático quase que ime- paetês, papelão, embalagem tetrapak, madeiras, caixas, tecidos, jornais, revistas,
diato foi feita uma divisão de tarefas que envolveu roteiro, sonoplastia, produção, cola de todos os tipos e tudo mais que julgassem úteis seria bem-vindo.
montagem, comissão de direção e coreografia. Ela foi o primeiro passo rumo a uma No dia seguinte, Lívia procurou saber o que podia ser disponibilizado na oficina
maior organização. Inicialmente a divisão ficou assim: ROTEIRO - Brunna Mayer- da ENC para o espetáculo. Esta atitude era necessária, pois não existia orçamento
nyik, Greice Kelly, Artur Cacciolari, Thaigor Pharias; SONOPLASTIA - Danilo Lucio para a cenografia. Então precisavam da colaboração de todos para a coleta de ma-
Ribeiro, Arthur Marques, Jonathan Marinho PRODUÇÃO - CENOGRAFIA, FIGU- terial e mutirões para produção. Posteriormente, iriam fazer uma “vaquinha” (cola-
RINOS, ADEREÇOS - Isabela Mello, Ana Flavia Valle Silvestre, Lívia Brandão, Da- boração financeira de todos) para a compra de material básico, então quanto mais
niele Costa Ferreira, Letícia Esteves, Felipe de Abreu, Fabiano Souza, Kleber Lira, conseguissem de graça nesta etapa, menos teriam que desembolsar depois.
Yasmin Picchetto, Samuel Oliveira; MONTAGEM - Janio Matos, Samuel, Fernando Em 29 de abril de 2014 a turma teve duas reuniões: uma reunião às 14:40, no
Felix, Cesar Augusto Rodrigues, Fabiano, Jana Bourscheid; COMISSÃO DE DIRE- auditório, para tratar do encerramento do Curso Básico em Artes Circenses e solici-
ÇÃO: Brunna - Diretora Geral; Aísha Britto e Theo Macedo - Assistência de Direção; tação de transferência para o Curso Técnico em Artes Circenses e outra reunião logo
César Rodrigues e Maurício José - Direção Acrobacias; COREOGRAFIA - Luiza após, a partir das 17h, sobre o espetáculo de formatura.
Fernandes e Alice Tibery Rende. Brunna, Greice Kelly, Rayssa Palheta, Fernando Félix e Daniele Costa Ferrei-
O plano era que cada grupo destes se encontrasse separadamente e escolhesse um ra aproveitaram o feriado de primeiro de maio para trabalharem pelo espetáculo.
coordenador para estar mais em diálogo com a comissão de direção do espetáculo. Começaram as coletas de materiais pela cidade. Mais tarde deste mesmo dia como
Em 16 de abril de 2014, Mayernyik entrou em contato com os colegas dizendo que prometido, Brunna enviou o roteiro mesmo que não totalmente concluído (faltava
precisava de uma relação das pessoas que estavam treinando os números da For- definir algumas falas do apresentador). O roteiro foi feito pela diretora com a ajuda
matura em horários diferentes dos estabelecidos em suas grades horárias. Isso era da Greice e do Thaígor. Desde o início ele foi apresentado em construção, passível de
necessário para que o Carlos Vianna conseguisse remanejar oficialmente os horários. mudanças na ordem dos números e também nas falas. Um trabalho work in process.
Era importante porque caso qualquer aluno saísse de alguma das aulas de suas gra- Sintonizado com seu tempo.
des mesmo que para treinar os números da formatura poderia ficar com falta e ser Na semana de 05 a 09 de maio os bolsistas participaram das mais diversas ativi-
prejudicado na nota da aula. Tendo em vista sanar as dificuldades na distribuição dades da SEMANA DE ESTUDOS INTEGRADOS da ENC, organizada pela pro-
de elenco para ensaios, foi de fato efetivada, a partir de 24/04/14, a reestruturação fessora Janaína Guerreiro. Nesse evento ocorrido em tempo integral (os dois turnos)
na grade horária de treinamento para espetáculo de conclusão do Curso Básico em os alunos puderam complementar sua formação em cursos de dança contemporânea,
Artes Circenses, que, a partir desta data, foram supervisionados pelos professores street dance, criação de figurinos, edição de vídeo e áudio, mágica, música - prática
de técnicas circenses. em conjunto, música - canto coral e teatro físico.
Em seguida, foi a vez de acontecer outro evento de proporções ainda maiores: o
II Festival Internacional de Circo do Rio de Janeiro. Entre 8 e 18 de maio, a segunda
edição do Festival abarcou 52 atrações de circo, nacionais e internacionais, que se
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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS
revezaram em cerca de 200 apresentações, todas gratuitas, em 62 espaços espalhados de dois alunos saltando (rondadas, flics, mortais, etc). Os dois primeiros saíam das
pela cidade, sendo 43 localizados em comunidades. A ENC funcionou de 13 a 17 de laterais frontais e os próximos seis saíam de diagonais traseiras. Algumas vezes não
maio quase que exclusivamente em função do Festival. Foram impossíveis os ensaios, deu certo a execução da coreografia. Nesse dia, os erros foram mais relativos a ace-
pois muitos integrantes do espetáculo de formatura estavam atuando em outras mon- lerarem o tempo da duração dos movimentos, principalmente na parte que faziam
tagens durante o Festival como foi o caso de Jana Serrat no espetáculo Aero moças e as pirâmides. Enfim, estava nítido que se quisessem melhorar eles precisavam de
todos os participantes do Cabaré, apresentado entre 13 e 17 na lona da ENC. Além mais... ensaio. O saldo da manhã foi bastante positivo. Avançaram na criação de
disso, o picadeiro não estava acessível nestes dias. mais movimentos e conseguiram mais sincronia e expressividade do grupo.
Nesta semana de Festival, alguns bolsistas que não estavam envolvidos direta- No final, todos ficaram de mãos dadas numa roda e Luíza Fernandes comentou
mente nos espetáculos, como a Brunna e a Livia e algumas outras pessoas, começa- num tom otimista:
ram a trabalhar na cenografia. Estabeleceram o valor de 10 R$ para compra dos ma-
teriais que ainda estavam faltando. Combinaram também que na semana seguinte “Nós vamos experimentando e vamos achando o caminho.
iriam ver os números e começar os ensaios gerais. Com calma a gente vai achar. A gente tá trilhando e logo, logo
No dia 22 de maio, aconteceu num cemitério na região metropolitana do Rio o veló- a gente vai ter o finalzinho. Estamos juntos galera. Valeu!”
rio e enterro do queridíssimo Wilson Gomes, morto num acidente com a Maca Russa, (Luiza Fernandes)
durante apresentação no Circo Tihany. Segundo informações obtidas na Escola ele foi
o primeiro aluno formado pela ENC que perdeu a VIDA em acidente de trabalho. Um Esta era uma experiência em construção. Teve um início claro e estruturado, mas
absurdo! Uma situação que abalou profundamente todos desde o dia anterior. Assim sem um fim totalmente determinado naquele momento. O importante era estar dia-
que chegou a notícia que ele havia morrido as aulas pararam e as pessoas foram para logando de uma forma viva com os anseios de um espetáculo que vai melhorando com
o pátio desoladas, chorando sentadas pelos cantos. Logo em seguida, todos foram para o tempo. Que aprimora o ritmo, o impacto visual, a plasticidade da cena e a qualidade
o picadeiro da lona e foi feita uma roda ritual com falas, orações e saltos mortais no do repertório musical, entre outros elementos.
final. Algo muito comovente que marcou certamente todos que participaram. Uma Ainda na roda conversaram rapidamente sobre várias coisas do espetáculo como
linda homenagem. o horário, a iluminação, sugestão do nome, pois ainda estava um impasse. Ninguém
A turma de formandos ficou meio dividida, a direção liberou todos conforme a res- havia sugerido nada efetivamente. Nem bom e nem ruim. Apenas boatos de corre-
ponsabilidade individual. Isto é, na perspectiva de que cada um sabia como estava o dores. Então, foi nesse momento que Letícia Esteves sugeriu a palavra “Nacional”.
encaminhamento dos números que faziam parte. Boa parte foi no velório de manhã Muitos falaram circo nacional praticamente ao mesmo tempo. Até que Brunna Ma-
e de tarde fizeram os ensaios. Outros ficaram na Escola o dia inteiro. Aconteceu o yernyik propôs o nome “Nacional Circus” (sem pronúncia americana ou inglesa). O
ensaio das pirâmides e da Báscula. Arthur Cacciolari discordou do nome dizendo que estava muito “Escola Nacional”.
Felipe de Abreu, no dia 24 de maio, estava à procura de alguém que pudesse em-
prestar o figurino para a Mulher Barbada. Daniele Costa Ferreira foi a pessoa que
se prontificou em levar para ele o figurino pois estava precisando para dançar o seu
dramático e visceral tango.
A Ana Flavia Valle Silvestre (Flavinha) divulgou no grupo do facebook em 25 de
maio mais alguns desenhos feitos por ela das mandalas que iam recepcionar o público
no pátio. O homem bala, o cuspidor de fogo, o cara mais forte do mundo e a mulher
barbada. A turma gostou dos esboços. O trabalho estava tomando o seu curso.

Dia 27 de Maio
Luiza Fernandes coordenou e coreografou o número coletivo final na sala de dança
na parte da manhã. Nesse dia ensaiaram detalhes e passaram a coreografia até onde
haviam criado. Passaram a parte do “bolinho” onde os menores ficavam na frente. 5,
6, 7 e 8... As movimentações das meninas que faziam as pirâmides ficaram mais de-
finidas, mas Luiza pediu para criarem alguns gracejos porque ainda estava sobrando
algum tempo.
Passaram depois para a parte das criações de marcações com as malas. Nesse dia
o Prof. Alexandre Souto contribuiu imensamente para solucionar o impasse de como
tirar as bagagens que estavam empilhadas no centro da cena. Sugeriu que ficassem
duas pessoas (Rafael e Fernando) que lançavam as malas após a entrada simultânea Foto: Ensaio Paradas. Foto: Cláudio Alberto dos Santos. ENC. 2014

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS
Mas, a maioria concordou com a sugestão da diretora. Terminaram o ensaio com a variavam da tristeza, preocupação e indignação. Isto sobrecarrega e impede um tra-
tradicional mística de todos colocarem as mãos umas sobre as outras num centro e balho realmente eficiente.
gritarem “Nacional Circus!” enquanto levantavam as mãos juntas. Aplausos, sorri- Nada como o diálogo. Luiza Fernandes consegue sintetizar a transformação que
sos, abraços efusivos. Sensação que haviam caminhado em direção ao que buscavam. estava iniciando naqueles momentos:
A manhã daquela segunda foi muito produtiva.
Interessante notar que o nome Nacional parece ser parte da homenagem que fa- “Em minha opinião, um dia muito relevante, pois pudemos sen-
zem aos professores. Historicamente, o que prevaleceu no circo foi o caráter inter- tar e conversar sobre coisas importantes para o funcionamen-
nacional como chamariz do público. Claro que também existiram e existem os circos to de um grupo. E mais além, coisas que possibilitam que os
nacionais. Mas, segundo Rocha “o epíteto de alguns circos como internacional ganha corpos que formam este grupo acessar um pouco o estado de
destaque a partir dos anos 1950. Momento de internacionalização da economia com leveza. Existe a tensão do processo de criação, da relação entre
abertura do capital monopolista no pós-guerra. O internacional cada vez mais ganha seres tão diferentes atuando nessa busca comum. O corpo, fala,
destaque e torna-se medida de qualidade e diferencial”. 52 grita, expressa e esperneia. A reunião foi tensa, mas chegamos
Reflexões históricas à parte, é digno de notar que durante esse mesmo dia 27 em lugares muito importantes. Que possamos sempre ser vivos,
já por volta das três e meia da tarde começaram os preparativos para o ensaio contestar, falar, pensar, discordar, discutir, criar e buscar ca-
no picadeiro. Iniciaram pela última cena, isto é, a dança final e depois o canto de minhos e alternativas para as mais variadas situações. E
despedida. Tudo ainda bem confuso, mas conseguiram ir até a parte sugerida pelo vamos sempre LAVAR A ROUPA SUJA!” (Luiza Fernandes)
professor Alexandre Souto.
Em seguida foram passando os diversos números do espetáculo que já apresenta- Após as inúmeras falas, as vezes, não tão conciliatórias como a acima e que expu-
vam condições de serem mostrados. Assim, passaram o número dos Dândis no início, nham pontos de vistas bem diferentes o grupo pareceu... respirar. Sim, um respiro
o cortejo de chegada, o número da Corda indiana, Malabarismo, Trapézio de balanço. aliviado e sem tanto peso. Algo como “o estado de leveza” de que fala Luiza. Até a lona
Após uma interrupção para instalar as liras começou o número. As meninas ain- parecia respirar junto com eles. Podiam-se ver sorrisos e ouvir gargalhadas. Fizeram
da estavam ensaiando com a música do Glenn Miller. A música estava engolindo a brincadeiras como o montinho no final da reunião onde as pessoas pulam e ficam
performance delas. O clima estava desanimado. A apresentação não ganhava ritmo, deitadas umas em cima das outras formando uma pilha de gente alegre e esmagada.
fluência e identidade. Depois de uma demora incrível veio o número da Acrobacia de Nada como o diálogo e também não deixar as pequenas misérias cotidianas irem se
solo. Em seguida, foi a vez do trapézio e logo depois o número de Parada de mãos. acumulando. Tirar os entraves e limpar o caminho é uma das principais contribuições
A iluminação do picadeiro estava muito fraca. Talvez isto também tenha influen- de uma boa comunicação interna. Saber quem realmente está engajado em ver a coisa
ciado para o ensaio não ser muito animado. A energia foi baixa nesse dia com exce- acontecendo e quem está numa postura cômoda ou até parasitária. A comunicação
ção para o pessoal do número de Báscula que terminou com o astral lá em cima. interna esclareceu como estavam sendo cumpridos os diferentes papéis e possibilitou
Enfim, o mais importante estava acontecendo. Estavam enfrentando o espetáculo em uma avaliação extremamente saudável para o amadurecimento e coesão deste grupo.
todas as suas dificuldades técnicas, adaptações e ajustes necessários para uma boa
apresentação. Gera uma ansiedade ver o quanto ainda faltava para melhorar e per-
ceber por outro lado o pouco tempo que dispunham para isso. Não podiam dormir no Dia 30 de Maio
ponto e nem marcar touca. Mais precisamente a uma semana da estreia e apresentação única, ocorreu a con-
tinuidade de um tipo de diálogo que azeita as engrenagens dos mecanismos de convi-
vência e trabalho coletivos. Após o ensaio dos vários números, transições entre alguns
Dia 28 de Maio e terem dedicado uma atenção especial à parte do encerramento da apresentação,
Este dia pode ser considerado (tomando o processo como um todo) como “o dia ofi- vieram as falas na roda feita no centro do picadeiro. Quase todos estão sentados no
cial da lavação da roupa suja” entre os participantes da montagem. O clima estava chão. Nesse dia o tom foi mais conciliatório:
tenso desde o início. Pesado. Muita coisa precisava ser dita e esclarecida. Além disso,
a pressão para a apresentação estava aumentando. Estavam cansados de tanta con- “Eu sei que é chato. A gente demorou hoje um tempão montando o
versa entre grupinhos e nos corredores. Estavam de saco cheio de tantas reclamações arame. Mas a gente precisa fazer essas coisas, entende? Da mes-
e cochichos pelos cantos. Era hora de discutir frente a frente e dizer olhos nos olhos o ma forma que a gente pensou umas coisas pro segundo ato com o
que estava incomodando. O que não dava para continuar sustentando calados. mastro e a gente vai ter que repensar. Então, a gente tem que
Assim, o principal problema discutido foi a pouca participação e envolvimento de quebrar a cabeça com o roteiro pra ficar melhor, mas é uma ques-
alguns no processo. Foi dito em alto e bom som que a indisciplina de uns em faltar ou tão de paciência. A gente vai vendo as coisas que funcionam na
chegar atrasado e sair mais cedo dos ensaios fez com que a MAIOR parte do trabalho prática, que as pessoas gostam e aí vai melhorando.” (Greice Kelly)
ficasse nas costas de uma pequena minoria. Durante a reunião as expressões faciais
Greice desempenhou um papel muito importante no aperfeiçoamento do trabalho
52 ROCHA, Gilmar. Op cit. p. 113.

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS
coletivo. Suas reflexões demonstram uma experiência em trabalhos artísticos como ragem. Nesse caso, se a pessoa não entra para desmontar ou montar aparelhos no
estes. Afinal, a direção por ser encarregada de montar a peça, assumindo a responsa- tempo certo ele atrapalha não apenas um número, mas todo o espetáculo. O público
bilidade estética e organizacional, pode (e deve) ter uma visão processual do trabalho não assiste apenas UMA parte ele assiste o TODO. Além disso, precisavam também
e uma postura de admiração e dúvida. Em suma, como defende a assistente de dire- agilizar o tempo de troca de figurinos. Dando um encaminhamento prático para me-
ção, a montagem deve estar aberta ao devir. O caminho se faz andando. Há espaço lhorar a barreiragem combinaram de trazer para o próximo ensaio uma lista com os
e tempo para mudanças em roteiros pré-estabelecidos. O princípio é trabalhar com nomes em ordem de entrada das pessoas.
sobra para poder cortar e ter o melhor. Cortar para selecionar. É fazer opções. É ter Outra fala muito interessante foi a do Alexandre Santos que nesse dia assistiu e
liberdade para escolher. O problema é que isso às vezes mexe com o ego (ísmo) de anotou no caderno as observações que queria fazer para o grupo. Gostou muito de te-
certas pessoas porque exige muitas vezes abrir mão da vaidade e do orgulho e com- rem trocado a música do número de Lira. Disse para Luíza, Brunna, Renata e Flávia
preender que se trata de uma obra, de um espetáculo e não apenas do SEU número seduzirem mais o espectador, brincarem e curtirem mais a atuação. Pontuou que os
Falaram também sobre a importância de todo mundo decorar qual parte vai entrar barreiras entram em cena para tirar as quatro liras e que não precisava disso. Basta-
em cena, antes de quê e depois de quê. Saber quando sobe no picadeiro e se preparar va chegá-las para o lado amarrando-as nos mastros. Sugeriu para o Caruaru (Jona-
para isso, estando de prontidão: than) projetar mais a voz e para o Sid 53 manter o brilho no olho quando contracena
com outros personagens. Além de aspectos pontuais e específicos trouxe uma visão
“Tem que ter pro atividade diante do espetáculo, não é só porque mais abrangente e instigante do trabalho que estava sendo gerado:
eu passei o meu número que eu vou lá pro fundo treinar. Mano,
a gente tá junto, sabe? Não é só o meu número e o número do “Gostei muito do que eu vi, da proposta de vocês e dos números que
coleguinha, sabe? É um espetáculo coletivo”. (Renata Vattucci) eu encontrei. Consegui ver uma construção e consegui ver na cara
de vocês que ainda é um processo desgastante. Mas o resultado
tá ficando muito bom! Resolvi destacar umas coisas, embora não
desmereça as outras. Primeiro, é essa ideia de fazer o espetáculo
coletivo eu acho extremamente significativa. Qual é a companhia
hoje que vocês conhecem que consegue colocar trinta e nove artistas
num picadeiro? Vocês tem a possibilidade de fazer um espetáculo
numa proporção tamanha que talvez lá fora vocês não tenham.
Essa experiência vai ser única de vocês. A gente não consegue tra-
balhar lá fora com tanta gente. Quando vocês sabem aproveitar
isso tem uma força que arrasa com a gente na plateia. É muito
bom! Esse processo deu resultado porque vocês compraram a ideia.
Vocês quiseram fazer”.(Alexandre Santos)

Compreende-se melhor o significado de um trabalho coletivo como este quando


se volta o olhar para o contexto histórico em que se insere. Nos últimos 25 anos
ocorreram transformações profundas na sociedade brasileira com o alinhamento do
Estado através dos sucessivos governos à nova ordem mundial de expansão do capi-
talismo – leia-se NEOLIBERALISMO (= privatizações, abertura econômica, desregu-
Foto: Cláudio Alberto dos Santos. ENC. Rio de Janeiro. 30/05/2014 lamentação financeira, redução do Estado nas áreas sociais, e enfim, o ajuste fiscal).
Mudanças macroeconômicas afetam a economia das subjetividades. Não foram deter-
Sem dúvida, uma das fragilidades naquele momento do processo era a barreira- minantes, mas implicaram na desintegração de padrões sociais mais propícios aos re-
gem. As pessoas ainda não tinham um bom tempo de entrada ou sequer entravam lacionamentos humanos e coletivos em função da hegemonia de valores que cultivam
para fazê-la. O espetáculo ainda não era visto como um todo. Para alguns se tratava um individualismo que tende ao absoluto.
apenas da “sua própria parte”, mas nada. O número era o momento de “brilhar”. Carlos Vianna trouxe elementos para reforçar o espírito coletivo e a consciência
Eram os donos do pedaço. Como Renata e várias outras pessoas apontaram nas reu- comunitária na roda de avaliação/debate:
niões o espetáculo é uma obra coletiva. É dos 39 formandos e das pessoas que estão
em volta colaborando efetivamente. “É importante que você venha pra frente ver o espetáculo, não só
Os artistas circenses, assim como os atores, geralmente tem uma visão fragmentá- para saber a ordem que entra em cena, mas também para criar
ria do espetáculo. Mas esse trabalho de criação coletiva requer uma responsabilidade
tanto na criação do todo, na execução dos seus números, mas também na barrei- 53 “Sid” é como os amigos e colegas chamavam carinhosamente o Danilo Lucio Ribeiro. Ao que tudo indica trata-se de
uma referência ao personagem Sid, a cômica preguiça da série A Era do Gelo.

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS
uma relação emocional com a produção. Porque senão você fica pedagógico caso aparecesse qualquer problema. Foi avisado que se alguém ainda não
com uma relação emocional apenas com o seu momento, com o havia dado o nome para a lista que foi passada para o setor de segurança não conse-
seu número. Você não tá vendo os outros. As coisas tem uma li- guiria entrar. No final a Renata avisou que precisava de ajuda para levar os apare-
gação, tem um sentido. A ideia de trabalhar juntos é a de ter a lhos aéreos para o trailer do professor Alex, uma vez que estavam sendo usados fora
sensação de depender de várias pessoas. O cara do figurino, da do horário das aulas, quer dizer, entre as 08h e às 17h.
luz, do som. Vocês tem que ter uma visão que cada um que faz parte A sabedoria do grupo muitas vezes nasce do debate e da exposição de argumentos
da produção tem uma grande importância para o espetáculo. diversos entre os integrantes. Este método de direção que abre espaço para a comuni-
Tem uma galera que fica com uma cara: - Que chato tá aqui! É um cação interna através destas rodas demonstrou ser um acerto durante o processo. Ele
grande equívoco não querer participar! (Carlos Vianna) tem evitado o “diz que me disse” ou os boatos de corredores.
A maioria dos envolvidos estava percebendo cada vez mais que o espetáculo tinha
A tendência contemporânea que se observa de apelo cotidiano ao isolamento e à justamente na sua coletividade uma força imensa. A estrutura da narrativa cênica é
solidão aumentaram o individualismo como modo de vida. Assim, a euforia capita- cíclica e até diria ritual. Eles vêm de um lugar e voltam para esse lugar? Será que é
lista conferiu sustentação ao crescimento de um tipo de individualismo tendente a a estrada? Estão em movimento. Embora, tivessem que trabalhar melhor a energia e
desconsiderar quaisquer proposições que valorizem o coletivo ou dito de outra forma, a presença cênica a movimentação do inicio e do fim sugeriam uma dimensão épica.
que vejam o indivíduo como parte de um todo complexo do qual ele depende para se
realizar como ser humano. É inegável que o individualismo tem corroído laços comu-
nitários fragmentando ainda mais o cotidiano. Em certos ambientes cada vez mais Dia 03 de Junho
as pessoas se confinam aos seus restritos espaços privados, incapazes de realmente Faltando apenas três dias para a apresentação começaram o dia ensaiando na sala
interagirem com os outros e, portanto, de criar uma experiência partilhada. de dança a parte vocal da música Na Carreira de Chico Buarque e Edu Lobo executa-
Mas, o caráter coletivo do espetáculo circense aponta para a necessidade da COO- da no final do espetáculo. No início, a maioria ficou sentada e apenas alguns em pé.
PERAÇÃO e não da competição, do AUXÍLIO-MÚTUO ao invés da concorrência, da Cada um com uma folha de papel com a letra da música. Passado um tempo seguiram
SOLIDARIEDADE no lugar do egoísmo. Isso gera UNIÃO. Gera um sentimento de a sugestão de Alexandre Santos e todos ficaram em pé e cantaram numa roda. Muitos
pertencimento. Desse modo, um espetáculo pode ser estética, forma, conteúdo e tam- ainda estavam descontentes com os resultados da música, faltava afinação, precisão
bém um lugar de encontro e comunhão intuitiva. Um lugar de VIDA plena. no ritmo e interpretação. Depois deste ensaio do canto foram para a lona e ensaiaram
Carlos Vianna pontuou questões específicas como de que não dava para a Brunna a chegada do circo na cidade (parada). Chegam num cortejo usando monociclo (Taí-
Mayernyik orientar, soltar a música e ir lá chamar os barreiras. Disse que ela deve- gor), claves (Rayssa, Daniele, Dira, Davi, Serragem) pernas de pau, acrobacias. Uma
ria ter no mínimo outras quatro pessoas que não estavam em cena para fazer isso. chegada alegre que visava contagiar o espectador com a magia do circo.
Sugeriu para o Alexandre ensaiar direto na parte da sonoplastia e que se tivesse Assim que terminam as memórias narradas pelo palhaço Arrepia, saem do baú
alguma música que ainda não tinha sido editada que resolvesse isso o quanto antes. Jana Serrat e Gabriela Bernardo, enquanto Karina Bredariol e Letícia Esteves vêm
Deu alguns outros toques de quem conhecia sobre o que estava falando. Disse que se das coxias. Após uma coreografia sincronizada entram os partners (Cesar com a Jana,
era para dançar, que dançassem, que se era para fazer “carão” que fizessem o “carão”, Fabiano com a Karina, Janio com a Gabriela e o Fernando com a Leticia) que vão gi-
que se era para se posicionar, que se posicionassem no local exato onde iriam ficar: rar as cordas indianas. Nesse ensaio, a corda da Jana estava girando lentamente e a
da Gabriela a mais rápida de todas.
“É melhor ter dúvida agora do que na hora. Toda movimentação A diretora gritou para o Alexandre subir o volume da música. Theo, o mestre de
tem que ser feita à vera. Fazer como se fosse a apresentação. Se pista estava tendo problemas com o microfone e com o texto. Esquecia as suas falas e
não for assim, no dia não sai. Você vicia em fazer com cara de xoxo tinha que ler o texto do roteiro. Quando ele parava, Brunna pedia para ele continuar.
e no dia faz com cara de xoxo. Tem que ensaiar exatamente como A sonoplastia demorou a entrar no número da Família Carlos e pior, quando entrou
vai fazer. Ensaio com o figurino e com os penteados e adereços de foi trocada com a música de outro número. Mesmo assim, as pessoas que estavam
cabeça é fundamental. Tem que se organizar e se preparar presentes no ensaio ficaram animados com a apresentação dos malabaristas. Brunna
para não acontecer na hora disso atrapalhar a performance. Se o fez outras observações:
ensaio começa uma hora tem que chegar antes, aquecer, alongar,
preparar o figurino”. (Carlos) “cadê a barreira? (...) Sid você tem que entrar um pouco antes (...)
o apresentador virou de costas você sobe pra não deixar buraco no
A ideia é que quanto mais próximo for um ensaio do que vai ser feito no dia da espetáculo (...) Camila, entra mais no personagem da partner”.
apresentação mais preparado estará o artista. De fato, nos ensaios deve existir uma
entrega e uma intensidade assim como nos momentos de encontro com o público. Depois veio o Artur Cacciolari com o Trapézio em balanço. Ele teve alguns proble-
Carlos disse que recomendara desde a semana anterior para os seguranças não in- mas com o fato da lonja ter ficado com as cordas cruzadas nas suas costas. Na sequen-
terferirem no trabalho dos alunos. A orientação era para ligar para o coordenador cia veio a entrada do Arrepia com o baú enquanto os barreiras trabalham montando

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS

um piso de madeira. Música errada na entrada do Arthur Marques em seu numero de


mágica. Ele brincou com a situação. Ângela Cerícola deu sugestões para a partner se
afastar um pouco para trás porque ele quase tropeçou nela. Isso foi corrigido com elas
se afastando mais do aparelho para as laterais. Houve um erro em que as mãos da
Daniele apareceram um pouquinho antes e revelaram o truque quebrando a ilusão. O
número não fluiu muito nesse dia, ainda precisava de bastante ensaio.
O posicionamento das quatro liras também demorou. As formandas (Luiza, Brun-
na, Renata e Flávia) tiveram que sair dos camarins para testar a altura. Ainda não
havia sido marcada. A professora Ângela questionou da plateia: “Na hora do espetá-
culo vocês vão entrar em cena pra medir a altura da lira?”
Foi um bom teste para o figurino, pois perceberam que as penas estavam caindo
enquanto faziam os movimentos. Em alguns momentos o efeito foi cômico. Muitos
riram, inclusive elas. O professor Marcelinton brincou com o seu conhecido senso de
humor: “Depenou as galinhas todinhas, né?” É ótimo passar o número com o figurino
por causa disso, pois dessa forma se evita situações que poderiam acontecer na hora
do espetáculo e causar um efeito diferente do esperado (ainda mais, em se tratando
das artes do circo).
Logo em seguida, foi preciso repetir algumas vezes a marcação entre o mestre de
Foto: Ensaio Paradas. Foto: Cláudio Alberto dos Santos. ENC. 2014
pista e o Arrepia e combinarem algumas falas, movimentos e tempos, pois, estavam
atravessando e se atropelando. O próximo número foi o de Tripézio. Logo após entram os palhaços Petit e Carua-
O encadeamento entre os números estava lento. Sem ritmo. Ângela provocou o ru. Número de tecidos. Báscula. As pessoas vibram após cada salto. Apresentador.
Sid: “você fica parado assim, morto em cena?” Risos na plateia. O clima era bastante Dança final. Canto de despedida. Depois de uma rápida conversa do grupo decidem
amigável. Após isso, começou a esquete tradicional do repertorio dos palhaços co- ensaiar a dança e o canto mais uma vez. Como atividade de encerramento fizeram a
nhecida como Sonâmbula. Arrepia, Caruaru e Letícia Esteves protagonizaram esta roda de discussão.
entrada. Brunna Mayernyik avisou que eles tinham que tirar o baú no final. Hou- Esta reunião começou com um assunto tenso naquele momento. Tratava-se do fato
ve demora na entrada do Theo Macedo como Mestre de Pista. Ângela comentou: de que a maioria dos integrantes do número de Báscula estava descontente com a
“Na hora que o público bate palma no fim do número que entra o apresentador falan- galera da Acrobacia entrar em cena com o mesmo figurino que já estavam usando na
do”. Sim, o tempo de entrada dele foi ruim nesse dia. Em seguida, veio a acrobacia de Báscula. O problema é que houve uma controvérsia gerada pelo fato de que anterior-
solo com a Trupe Silva. Fizeram saltos sincronizados no início partindo das diagonais mente todas as vezes que sentaram para discutir o figurino da acrobacia combinaram
traseiras do picadeiro. Predominaram os saltos leões. Depois foi a vez dos saltos mor- que usariam o mesmo figurino. Acontece que houve uma mudança no roteiro que
tais sobre as bandeiras e no final do número um tradicional charivari em que entram ainda precisava ser mais bem esclarecida. Antes iam ser acrobacia e Báscula como
duplas realizando saltos diversos e ocupando cada uma das laterais. Tiveram alguns um número só e nesse dia mudou para dois números distintos. As pessoas que provi-
problemas para se posicionarem adequadamente. denciaram o figurino inicialmente eram só da Báscula e acharam ruim ele ser usado
Mais uma pausa, dessa vez para montar o mastro chinês. No dia da apresentação também na acrobacia, sobretudo, porque a báscula seria apresentada depois:
este número vai abrir a segunda parte do espetáculo. Número coletivo que se desta-
cou pelo ritmo e pela relação orgânica com a música – embora, ainda faltassem con- “Essas coisas acontecem porque o roteiro ainda está mudando.
fiança e sincronia dos movimentos. A trilha sonora ajudou a manter a energia sempre Ele não está fechado”. (Brunna Mayernyik)
alta, a não ser quando era bruscamente cortada pelo sonoplasta.
Número de contorção e paradas de mãos. Ainda há alguns erros de execução, es- Mas será que conseguiriam mudar o figurino assim de última hora? Afinal, falta-
quecimento de parte das coreografias, demora em realizar alguns movimentos. Boa vam menos de três dias... Pensaram outras maneiras da galera da acrobacia não ir
barreiragem na retirada dos aparelhos do picadeiro. Entrada da “macaca do professor do mesmo jeito que a da báscula, pensaram em adereços, etc. Propuseram fazer uma
Latur” e do Arrepia. Letícia ensaiou sem a máscara. Pequeno número de chicote. A reunião no dia seguinte somente entre os membros dos dois números para pensarem
música entrou bem atrasada. No final do número, ainda não haviam montado o ara- soluções para o impasse:
me. Atraso da barreiragem.
No número de Arame o Felipe ensaiou com uma bermuda jeans por baixo do “Acho que a gente deve procurar soluções e não mais problemas”.
vestido. Ficou hilário. Arrancou muitos risos na plateia. Foi um momento de des- ( Maurício - Serragem)
contração que aliviou um pouco a tensão da falta de ritmo e encadeamento dos
números em geral. Assim, passaram a discutir outros aspectos do ensaio como o fato que a barreira foi

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bem ruim, demorou bastante e que no dia anterior tinha sido bem melhor. Fernan- os aparelhos na ordem pra não trombar. No circo é sempre assim,
do Félix, então o principal responsável por coordenar o trabalho de contra-regragem uma parte pra entrar e uma parte pra sair. Quer dizer, não é que foi
falou que no próximo ensaio queria ver todos bem mais atentos. Orientou os barrei- uma merda, mas que não foi bom... ainda. Vamos nos preparar
ras para ficarem escondidos atrás dos mastros enquanto aconteciam os números e para o show que vai ser excelente. Antes de começar o ensaio vamos
e assim que terminassem entrariam e tirariam aparelhos e outras coisas. Mayer- lá atrás checar se tá tudo direitinho. Beleza?” (Marcelinton Lima)
nyik ponderou sobre a necessidade das pessoas decorarem os momentos em que iriam
atuar. Vem depois de qual número? Já não era mais tempo dela ficar avisando a Depois de terminar sua fala ele iniciou uma dinâmica de grupo em que todos colo-
pessoa o momento de entrar em cena. Faltavam dois dias e na hora não haveria nin- cam as mãos sobre as mãos dos outros e gritam “memórias” ao mesmo que sobem as
guém para falar. Precisavam memorizar isso sem falta. Além disso, alertaram para mãos. O clima final mudou para algo mais positivo e otimista como o professor queria.
a necessidade de haver um diálogo entre os barreiras e os artistas para combinarem Ao invés de desconfiança predominou a convicção de que fariam uma excelente apre-
certinho onde iriam deixar os aparelhos e objetos. A diretora do espetáculo enfatizou sentação. Isto é importante num processo como este. As pessoas tem que acreditar
isso. Lembraram-se da necessidade em colocar algum tipo de luz para iluminar atrás que vai ser lindo e que vão superar os obstáculos.
das cortinas, bem como, de tomar cuidado para não amontoar as coisas ou dificultar Mesmo que ainda precisassem melhorar uma série de coisas como visibilidade,
a passagem das pessoas para entrada e saída dos números. Tem um lugar certo para equilíbrio e plasticidade da cena, parece que uma mudança ocorreu nesse dia no sen-
cada coisa. É fundamental ser mais organizado para não perder tempo procurando as tido de terem um brilho diferente nos olhos, algo que indicaria mais garra na hora de
coisas. Decidiram que todos os objetos pessoais deveriam ser levados para o camarim. entrar no picadeiro. Mais gana. Mais vontade. Mais tesão. Parecem que saíram do
Falaram sobre esperar as pessoas saírem de um lugar para as outras entrarem, para clima de ensaio para entrar no clima da apresentação.
não ficarem trombando ou disputando o espaço. Ao que tudo indica a participação próxima e generosa do professor Marcelinton
Vários outros toques como finalizar o movimento primeiro para depois pedir contribuiu efetivamente para este percurso:
aplausos:
“Ele nunca deixou a gente sentar e desistir de fazer um negócio.
“Se errar, não faz cara de ódio, agradece do mesmo jeito. Espe- Nunca, nunca. Sempre parceiro assim. Sempre querendo que a
rar o tempo do aplauso após a dança do final para começar a can- gente faça tudo o que der pra fazer. Sempre acalmando todo
tar. Isso para não ficar uma coisa chata de ficar pedindo para o mundo. Trabalhar em grupo é muito difícil. Então, as vezes acon-
público fazer silêncio”. (Brunna) tece de discutir, né? Stress e tal. Ele sempre chamando a galera
junto. Vamos trabalhar em equipe! Se todo mundo colaborar, se
Daniele fez ponderações alertando as meninas para tomarem cuidado em não dei- todo mundo se juntar, se entender um ao outro a gente vai fazer um
xar os seios à mostra (“pagar peitinhos”). Capricharem na maquiagem. Depilar as axi- trabalho muito legal. O Marcelinton foi o cara, viu? Ele é muito
las e região genital (principalmente as meninas, porque o figurino era bem decotado). foda. Eu gosto muito dele”. (Daniele)
Lívia avisou para quem não tinha pagado os dez reais da cenografia, pagar. Porque
estava precisando liquidar as faturas. Ainda não tinham decidido pela música do nú- Marcelinton está acionando um processo que provavelmente não ocorreria com
mero de chicote. Karina pediu sugestões para todos. a mesma intensidade que ocorreu sem a sua intervenção. É um professor que tem
Ficou combinado que no dia seguinte, dia 04 de junho, deveriam chegar as 7:30 bastante experiência no trabalho artístico e é capaz de entender os mecanismos da
porque haveria um piquete dos grevistas da Funarte que não deixariam os alunos atuação em grupo que possibilitem a esse coletivo o exercício da organização e da
entrarem. Se tivesse piquete era para pularem a cerca do lado da linha do metrô, mas criatividade numa perspectiva de explorar as suas potencialidades - como está bem
sem deixar os grevistas verem. Pairava nesse momento certo clima de suspense sobre evidente na fala da Daniele.
o dia seguinte. Afinal, eram unânimes em pensar que estava faltando ensaio de todo Em momentos decisivos como este, ele buscou eliminar as tensões e exaustões da
mundo. De que no tempo mínimo que dispunham deveriam se juntar para tentar lim- competição e abrir caminho para a criação. Sua ótica favoreceu uma convivência pau-
par o terreno. Na opinião de muitos era o que estava mais faltando. Havia propostas tada numa busca maior de igualdade, de ao invés de uns quererem ser melhores do
boas, mas ainda faltavam ensaios para uma boa performance. que os outros, de quererem superar a si mesmos.
Somente após todos falarem que o professor Marcelinton pediu a atenção da roda,
pois, gostaria de dizer algumas coisas. No tom descontraído de sempre misturado a
um pouco mais de firmeza na fala, ele disse: Dia 04 de Junho
Faltando apenas dois dias para a estreia só conseguiram começar o ensaio do es-
“Esse debate que tá tendo agora é excelente. Todo mundo por aqui petáculo por volta das quatro da tarde. Isto porque aconteceram provas de final de
é igual e eu estou aqui como partes iguais. Esse ensaio de hoje foi período na parte da manhã e na parte da tarde dos alunos regulares do Curso de
um passo para sexta-feira. Ainda foi uma merda, mas agora tá tudo Formação Técnica.
definido. A gente já combinou, a gente já sabe o que fazer. Colocar Frente a situação do picadeiro estar ocupado com as avaliações dos alunos do Cur-

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so Técnico não ficaram de braços cruzados. Muita coisa ainda precisava ficar pronta o Além disso, ela sugeriu outra marcação para entrada do apresentador após o Ma-
quanto antes. Karina Bredariol levou esmalte e pintou as unhas de algumas meninas labares. Ressaltou que o Sid deveria entrar mais rápido na hora da mágica. Observou
para já irem adiantando para sexta. Outros também colocaram mãos a obra para ter- que todas às vezes ele estava atrasando e ficava um buraco em que o púbico ficava
minar a parte da cenografia. Inicialmente isto ocupou toda a manhã e parte da tarde. sem saber o que iria acontecer:
Quase no fim da tarde conseguiram passar o número de malabarismo, depois, lira,
acrobacia, Parada de mãos. Em seguida, retomaram os outros números que faltavam. “O Arthur passou pela cortina, você já tem que entrar com o
O ensaio foi assistido pelo Júnior e a Nicole, o Rafael, Sofy Pavon, e o Professor Alexis baú. A entrada da mágica também tem que ser mais rápida. A es-
( Papito). No final eles deram dicas e sugestões sobre coisas que deveriam melhorar. quete que o Sid faz com o César tem que falar mais alto. Não dá
Após esta conversa decidiram terminar de pintar as mandalas da mulher barba- para escutar nada. No número de tecido a Camila tem que sorrir
da, do homem mais forte do mundo e do Jamelão cuspindo fogo, entre outros. Tempo mais. Brincar mais com o público. Seduz gata. Diva!” (Brunna)
usado de uma forma bem produtiva e necessária.
Definiram que no dia seguinte iriam ensaiar pela manhã e durante a tarde. A Es- A Karina Bredariol fez observações sobre detalhes no número de Lira que deve-
cola iria ser deles o dia todo. Além disso, combinaram chegar na sexta feira chegar as riam ser melhorados. Lembrou que faltou aos barreiras puxarem os aparelhos para
10 da manha para arrumar o cenário, organizar o picadeiro, marcar lugares e resol- baixo para a corda ficar na altura. Colocaram mais quatro pessoas na barreira para
ver todas as pendências. Ficaram de levar as roupas para tomar banho e preparar-se agilizar este processo. Isto aconteceu porque os refletores instalados nos mastros
para ficar o dia todo até a hora do espetáculo. fizeram mudar os lugares dos pontos marcados anteriormente.

Dia 05 de Junho “No número de solo a Alice ainda está muito perdida nas mar-
Na véspera da apresentação o clima estava bastante agitado, mas também bem cações e a Rayssa prestar mais atenção na bandeira. Ele tava
alegre. Ao contrário do dia anterior o espetáculo correu com mais ritmo e já deu para saltando e você com a bandeira lá em cima. No mastro vocês de-
saber com a cara que ele iria ficar. Precisou apenas de pequenos ajustes. Como exem- moraram a fechar a cortina quando saíram. A contorção precisa
plo, lembro do ensaio de Lira e da Báscula. No ensaio do número de Lira pela manhã sorrir mais e sair pela lateral. Quando o pessoal da Parada errar
Brunna foi a única que ensaiou sem o figurino. Flavinha conseguiu subir de primeira precisa improvisar alguma coisa e não ficar só olhando o pes-
para a portagem com a Brunna. Bom ritmo dos barreiras para liberarem e prepara- soal fazer. Tem que olhar mais para a plateia. O arame tem que
rem o picadeiro para o próximo número. diminuir, ainda tá muito longo. O chicote foi ótimo, mas tá fal-
No número de Báscula prevaleceu um bom ritmo e excelente presença cênica. Co- tando a música ainda. O tecido melhorou, mas vocês erraram feio.
meteram pequenos erros no momento de formarem as diagonais e nos tempos de en- O número dos palhaços ainda está um pouco longo. O tempo da
trada de alguns saltos. Marcelinton fez mortal atrás com pirueta. Carlos Petit passou Sonâmbula tem que ser um pouco maior para dar tempo do Theo
um pouco o giro no duplo. Rayssa não acertou o mortal para a terceira altura. Petit trocar de roupa”. (Karina)
acertou o triplo atrás (com lonja). Os movimentos de dança dão ritmo e leveza e aju-
dam a manter o interesse no número. Nesse dia aconteceu um pequeno acidente em que o Serragem trombou com o
Na reunião final a atmosfera coletiva estava ótima. Muitos sorrisos de satisfação Gabriel no número de acrobacia e teve um pequeno corte e sangramento no nariz.
com o trabalho do dia. Brunna Mayernyik como diretora do espetáculo iniciou suas Foi levado ao hospital. Momento de muita apreensão para saber se ele teria condi-
considerações a partir de anotações feitas durante o ensaio numa folha de papel: ções de fazer a apresentação no dia seguinte.
Fernando Félix usou o megafone para se comunicar com os barreiras e organizar
“O número do Dândis tem que aumentar a música, o cortejo foi todo o pessoal. Por volta das seis e meia da tarde voltaram a se reunir no picadei-
lindo, vocês arrasaram no cortejo! Foi a melhor passada que ro. Ao invés de apenas debater e refletir sobre aspectos da montagem, preferiram
vocês fizeram da corda, foi lindo, tirando o erro da música no co- ensaiar alguns detalhes da dança final, do canto coletivo e dos agradecimentos. A
meço e na hora de sincronizar as palmas lá em cima. Cada uma música continuou desafinada. Alguns ainda não tinham firmeza na letra. Theo como
tá num tempo e o ritmo? Aquele abraço! Além disso, é preciso Mestre de Pista ainda estava sem empolgação e sem confiança. Luiza passou a coreo-
sorrir mais na corda. Outras coisas, a entrada do Theo tem que grafia final com uma parte do grupo (Samuel, Alice e Taígor). As meninas do Tripézio
ser bem mais marcada. Não pode deixar esse buraco depois da passaram o número e ensaiaram uns detalhes.
corda indiana. O Serragem entrou depois no número de Malaba- Até o momento este já havia sido um grande aprendizado para alunos que esta-
res... Vamos ficar atentos na entrada de nossos números para vam experimentando o universo do espetáculo pela primeira vez:
isso não acontecer. Além disso, vamos tentar manter o sorriso, sei
que é difícil por causa da tensão das claves caírem, mas vamos “O que mais eu aprendi? Tudo de uma montagem de espetá-
tentar manter mais o sorriso. O horário amanhã é as 13h. Não culo. Foi a minha primeira participação. As reuniões em grupo.
esqueçam de trazer roupa preta para a barreiragem”. (Brunna) A escolha do nome do espetáculo. As discussões do tema. Figu-

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS
rinos. Como vai ser, quem vai fazer o quê. Porque no circo uma Às 18h40min fizeram uma roda atrás das cortinas na penumbra. Todos de mãos
pessoa faz várias coisas e cada um quer mostrar o que faz, mostrar dadas. Falaram da importância de manter a concentração daquele momento até o
suas habilidades. Mas, não dá para numa turma de 39 pessoas fim da apresentação. De que ali naquela plateia apesar de não ser numerosa havia
todo mundo fazer tudo o que sabe. Então, essa parte de delegar pessoas muito especiais para a maioria dos formandos. Não existia nenhum motivo
o que cada um vai fazer, o que cada um vai apresentar. Isso foi para decepcionar com o público pouco numeroso e que assim como o circo tradicional
legal também.” (Felipe) deveriam apresentar com toda a garra e alegria. De que naquele momento era muito
importante que cada pessoa ali sentisse a força e a energia que estariam colocando no
A experiência da montagem estimulou no Felipe e em outras pessoas, a cons- picadeiro. Lembraram-se da força que tinham como grupo, enquanto um coletivo de
ciência do eu (consciência psicológica), da própria representação como a mente se 39 pessoas. Que isso já era forte querendo ou não.
oferece; a consciência do coletivo (a noção da existência do outro, a partilha de ideias Enfatizaram nas falas a necessidade de cuidarem um do outro, prestarem atenção
e aparelhos, a interação, a convocação das energias comuns para encaminhar as so- no que tinham que fazer e no colega que iria entrar depois, cuidarem da cena, cuida-
luções para os problemas); a consciência das coisas do entorno - as coisas, do espaço, rem da parte de trás das cortinas e terem cuidado para não tropeçar ou esbarrar um
das relações estabelecidas pelas coisas entre si e entre elas e o próprio corpo e os no outro. Enfim, os presentes tinham consciência clara que aquele não era o momento
outros corpos. de mágoa, de raiva ou de ódio. Aquele era o momento da formatura deles. Momento
de comemoração:
Dia 06 de Junho - Dia da Apresentação
Finalmente o grande dia chegou. Esperando ele foram feitos inúmeros treinamen- “Esse é o momento de vocês brilharem, vocês trabalharam duro
tos e horas e horas de ensaio e reuniões sob a lona. Desde a parte da manhã o Mar- para isso. Vocês passaram dez meses aqui para esse objetivo.
celinton e a equipe de som e luz trabalhavam duro para deixar tudo pronto antes do Curtam o momento. Vivenciem essa experiência de estarem num
previsto. Da mesma forma, os alunos envolvidos em fixar as amarrações e aparelhos picadeiro com mais 38 pessoas! Fiquem tranquilos. Fazer do últi-
nos mastros, ensaiar truques, corrigir detalhes do número. mo dia de vocês o dia mais bonito! Sintam-se queridos, sintam-se
Além disso, foi feita a montagem do cenário de recepção do público. Estenderam amados. Porque a Escola, mesmo com todos os problemas que ela
o tapete vermelho, montaram a fachada com o cartaz do circo, fixaram as mandalas, tem, ela olha pra vocês e sempre percebe o quanto vocês são bons, o
ligaram e afinaram a luz para elas. quanto vocês são especiais e o quanto a arte de vocês emociona as
Por volta das três horas da tarde as faxineiras tiravam a poeira das cadeiras co- pessoas que estão ali, tá?” (Alexandre Santos)
locadas para a plateia e a maioria das meninas pintavam suas unhas com esmalte
sentadas no pátio. Sim, a emoção era grande: para alguns o último dia na Escola significava uma mu-
As quatro e meia o elenco inteiro já estava se maquiando, arrumando os pentea- dança de cidade e até de país à vista. Na plateia havia pessoas do circo tradicional.
dos, e costurando os figurinos. Depois foi o momento de vestir o figurino. Ajustar os O espetáculo foi feito para tocar o coração dessas pessoas, sobretudo. Sim, Alexandre
adereços, ir ao banheiro, etc. captou bem o clima de que iriam entrar em cena com o objetivo de dar o melhor de si
e emocionar as pessoas que estivessem ali naquele encontro.
Greice Kelly lembrou que a música do final não teria arranjo, que “não teria mais
frescura” e que deveria ser cantada baixinho e num tom confortável:

“Foi um prazer trabalhar com vocês, foi um prazer conhecer vocês


e a gente... vai arrasar!” (Greice)

Depois foi a vez da diretora do espetáculo:

“A gente é capaz é de fazer o melhor espetáculo que a Escola já


teve. Eu acredito em vocês. Vai ser lindo. É isso!” (Brunna Mayernyik)

Em seguida, o na época, Chefe da Divisão Pedagógica da ENC, tomou a palavra:

“Pessoal, eu só gostaria de agradecer muito a vocês pelo o empe-


nho. Eu sei que não é fácil. Não foi uma tarefa fácil que nós passa-
mos pra vocês. Pelo que eu vi do esforço nos ensaios, tudo que vocês
Nicole, Júnior, Brunna, Felipe e Olavo levantando a fachada. Foto: CAS. ENC. 2014. conseguiram nesse pouquíssimo tempo de ensaio, o espetáculo já tá

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS
maravilhoso. Muito obrigado mesmo a todos, pelo esforço, pelo A cena é invadida pela imagem lírica de um mundo novo, para os olhos maravi-
empenho e... até a próxima pra todo mundo, tá? ” (Carlos Vianna) lhados da plateia. Assim que o público se vira para trás vê uma parada circense com
palhaços em pernas de pau (Anísio e Luiza), o Mestre de Pista com seu megafone,
Theo Macedo propôs uma oração do circo, do teatro, das artes para que todos refle- monociclistas, malabaristas (Lívia, Davi, Dira, Rayssa, Dani, Caruaru, Isabela), bai-
tissem. Ele falava primeiro a frase e depois todos repetiam em coro: larina (Alice,) equilibrista sobre bola (Artur Cacciolari). Aos poucos vão subindo no
picadeiro, atravessam-no e vão para trás das cortinas. Estão sorridentes e buscando
“Eu seguro as minhas mãos nas suas contagiar a plateia com a tradicional alegria do circo brasileiro.
Para que possamos fazer juntos Chegou a hora de fazer a passagem para um espaço-tempo onírico que se abre
aquilo que eu não posso fazer sozinho temporariamente dentro do esmagador cotidiano. Um oásis de fantasia e fascínio em
O erro de um é o erro de todos. meio ao deserto da realidade social.
O acerto de cada um é o acerto de todos. Muita fumaça no picadeiro neste percurso dando mais magia a entrada do palhaço
Merda!!!” ( gritos, risadas). Arrepia puxando o seu já gasto baú de memórias:

Após isso, cada um foi para as suas marcas iniciais porque a apresentação já ia “Esta música... quantas lembranças. Posso sentir o cheiro da
começar. serragem no chão. Posso sentir o perfume de Maria. Até parece
que foi ontem...” (Palhaço Arrepia)

Ele usa um microfone de mão sem fios e se movimenta pelo espaço fazendo piadas
ESPETÁCULO MEMÓRIAS a partir de palavras parecidas até que pergunta se a plateia está ouvindo. Abre o
baú e começa uma música. Fecha e a música para. Começa novamente e de dentro do
No início, era o som do retinir de metal contra metal. Imagine pesadas marretas baú saem Gabriela e Jana enquanto vindas da lona entram Karina e Letícia. Juntas
cravando estacas de ferro em solo duro. Quem já montou uma lona de circo sabe a que fazem passos de dança com graça e beleza até que sobem nas Cordas indianas. Em
tipo de som estou me referindo. Tudo ainda está escuro, mas o tilintar indica o que baixo girando as cordas estão César Augusto, Fabiano, Jânio e Fernando.
vem por aí. Com um dos tornozelos preso nas estafas e de cabeça para baixo executam várias
Acendem-se as luzes e vemos um trio de acrobatas palhaços segurando marretas figuras de grande plasticidade.54 Demonstram todo o seu alongamento e força. Falta
enormes e aprontando várias confusões e as mais diversas trapalhadas enquanto sincronia ao conjunto em alguns momentos. Em seguida, prendem um dos punhos na
armam a lona do circo. Moliendo Café é a música que toca durante todo número. Ga- estafa e fazem giros com mais velocidade ainda. Gaby e Jânio tiveram alguns descom-
briel, Sid e Rafael estão usando botas e calças pretas, camisetas brancas e suspensó- passos nos giros, mas se recuperaram bem. Enquanto agradecem no final do número
rios escuros. Já de início, temos uma boa dose de comicidade em relação a força e gol- entra o Mestre de Pista:
pes de telecatch (pro wrestrling) e do repertório tradicional dos números de Dândis.
É um festival de saltos. Mortal no balanço pousando sentado nos braços dos por- “Senhoras e senhores, estão preparados? Porque o show está
tôs, mortal atrás esticado com dupla estafa, mortal atrás saindo e voltando para a apenas começando! Com vocês a Trupe Carlo de Malabares!”
Canastilha (cadeirinha de mãos), mortal atrás saindo da Canastilha para o ombro do
Rafael e depois mortal para trás saindo dos ombros e aterrissando no chão. Tudo isso
feito com bastante ritmo e em sincronia com a música. Conseguem montar a torre de
terceira altura na primeira tentativa arrancando vários aplausos do público presente.
As palmas aumentam ainda mais quando fazem o desmonte bem sincronizado dos
rolamentos.
Dançam em alguns momentos, fazem as mímicas dos objetos invisíveis, a atuação
é exagerada ressaltando a resistência para a realização dos movimentos (peso, força
contrária, etc). Isto é feito intercalado com acrobacias diversas.
No final o Rafael toma uma distância inicia uma corrida e faz um salto mortal
para frente. Na sequencia o Sid faz uma rondada seguida de um flic-flac para trás.
Gabriel também faz a mesma coisa, mas no final com o impulso do flic ele se encaixa
nas pernas do Rafael que já está de cavalinho no Sid. Nessa formação eles saem de
cena sob assovios e aplausos.
Quando atravessam a fresta da cortina algumas pessoas do elenco começam a gri-
tar apontando para a entrada da lona: “Olha, o CIRCO chegou!”
Saindo do baú das memórias. Foto: Gabriel Marques. ENC. Rio de Janeiro. 2014

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS

Entram primeiro os quatro malabaristas Rafael, Sid, Serragem e Caruaru. Depois “Malabares é uma coisa complicada... Pra fazer passe com várias
entram as meninas Dira, Dani, Luiza e Rayssa, respectivamente. O homenageado pessoas precisam de anos de treino. A gente teve muito pouco
está presente na plateia. É o professor Walter Carlo, mais conhecido como Teco. tempo de treino pra fazer uma coisa bem feita. Mas, ficou um
Os meninos fazem um passe de claves (câmbio) em fila e envolvendo lançamento número bem legal e dá muita saudade. Malabares é uma coisa
em tempos diferentes (um carrossel de quatro pessoas). Desenvolvem outras varia- que eu gosto muito também!” (Daniele Costa Ferreira)
ções. As garotas roubam as claves dos garotos e fazem diversos truques como rodas
alternando os tempos de lançamentos das duplas. Após o número da Família Walter chegou a vez do único número solo do espetácu-
Depois os oito malabaristas fazem formações em filas paralelas que se movimen- lo. É o Trapézio em balanço. Aí vem... Artur Cacciolari:
tam fazendo evoluções a partir das duplas. As meninas ficam num círculo no centro
trocando passes com os meninos num círculo externo. “Desafiando a gravidade, nesse número incrível, impressionante e
A roda delas vai girando enquanto a deles permanece parada. Encerram o animado impactante”. (Theo Macedo – Mestre de Pista)
e dinâmico número com as meninas fazendo os câmbios na segunda altura enquanto
os portôs fazem os passes sustentando e equilibrando o peso delas. O número termina De fato, ele já sai da cortina correndo para uma rondada e um flic-flac seguido de
numa crescente. Formidável! mortal para trás. Hei! Aplausos! Artur faz algumas transições das mãos para os pés
e vice-versa sempre com a segurança da lonja. Esse artista é realmente um prodígio.
“A elaboração foi boa, sabe? Foi muito gratificante ver a galera Tem uma incrível habilidade de desenvolver diferentes modalidades. Interessante foi
sorrindo e fazendo com gosto. Tanto é que a gente teve um ou dois ver como ele já no início desvencilhou de um problema com a corda sem demonstrar
erros, no máximo. O mais marcante foi a interação final! A ga- para o público. Improvisou movimentos corporais que eram completados com ações
lera estava unida... A gente conseguiu puxar bastante os malaba- para colocar a corda no lugar que deveria estar. Demonstrou um bom jogo de cintura,
isso sim.
res. Essa era a intenção! Família Walter! Bem representada...”
A estrutura deste espetáculo junta a costura (em números apresentados pelo Mes-
(Danilo)
tre de Pista) como no circo tradicional e a maneira do “circo novo” de usar um perso-
nagem encarregado de ligar as várias partes.
Nesse caso, é a figura do palhaço Arrepia que entra no picadeiro falando que o baú
Isto foi muito significativo no momento era mágico mesmo e que ele achava que vinham mais coisas por aí. Mas onde está o
da apresentação, sobretudo porque este ti- baú? Cadê o baú? Das cortinas surge o baú carregado por três barreiras. Ele fica con-
nha sido especificamente um processo tor- versando com o baú até que se assusta com a entrada do Arthur Marques, o Mágico!
tuoso e difícil: Sid coloca a cartola na cabeça dele e entra no baú.
Arthur começa uma sequencia de truques de manipulação. São pequenos objetos
“O Rafa tava meio que conduzindo. Mas que ele faz ficarem visíveis e invisíveis, aparecer e multiplicar, sumir e desaparecer.
surgiram imprevistos, discussões e aí a Mágica das bolinhas que vão aparecendo e sumindo. Surgimento de uma tulipa com
galera ficou meio assim... Daí a gente teve água dentro de lenços pretos. Ele bebe da água e oferece para o Arrepia que pronta-
que reformular a equipe. O processo foi mente aceita.
cansativo, mas foi muito prazeroso”. Em seu número também há um gran finale em que cria uma maravilhosa ilusão
(Danilo) com a ajuda das três assistentes, Jana, Camila e Daniele. No caso, duas o auxilia-
vam com uma bela caixa que ele mostrava estar vazia por todos os lados. E aí com
Alguns duvidaram que fosse possível. um passe de mágica aparecia outra assistente lá dentro. Música tribal com tambores
Outros acharam que havia um desnível téc- ancestrais promovem um clima interessante para a cena. Fumaça de gelo seco no ar.
nico entre os participantes. Faltou paciên- Depois é a vez de fazê-la desaparecer. Aplausos.
cia por parte de uns em certas situações. Uma mágica de grande efeito. No caso, o aparelho foi ele mesmo que desenvolveu,
Vieram os desentendimentos. Mas, mesmo desenhou e inclusive, construiu. Ficou tudo muito bem executado, com destaque para
assim o aprendizado que conseguiram ex- a pintura e o cuidado no acabamento.
trair desta experiência se mostrou prazero- Arthur Marques faz um número de mágica na sua formatura, mesmo não exis-
so, como lembra o Sid. tindo esta modalidade na grade curricular da Escola na época. Estudou por fora em
Enfim, não se pode esquecer também oficinas, cursos e livros. Mas aprendeu, sobretudo, com sua própria família, pois nela
da enorme pressão exercida pelo tempo esta arte é cultivada. O seu irmão chegou ao Rio mais ou menos uma semana antes da
escasso, como apontam as ponderações da apresentação e o ajudou a estruturar melhor o número. Ele já tinha uma sequencia
Daniele: que precisava ser mais bem estruturada.
Foto: Gabriel Marques. ENC. Rio de Janeiro. 2014

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS
“A apresentação foi engraçada porque as pessoas não estão muito frente. Depois entram Petit, Fabiano, Davi, Gabriel, Artur Caciolari e César com um
acostumadas a ver mágica. Então, muitas vezes não tem reação. salto leão sobre as moças que neste momento estão com um dos joelhos dobrados.
Eu faço várias mágicas seguidas e o público fica meio... Eu tenho Mortais laterais para trás e para frente, mortais saindo de uma ou duas estafas,
que acordar eles e pedir aplausos e aí ele se toca que foi legal e mortais para trás na Canastilha (banquine). Gabriel faz uma Parada de mãos so-
aplaude. No começo foi bem esquisito. Eu pensei que as pessoas bre as cabeças de dois portôres, Fabiano e Jânio. Em seguida usam uma bandeira
não estavam gostando. Mas, só depois que eles vieram me falar vermelha e uma amarela que são saltadas das mais diferentes formas. Destaco um
que era legal, mas que não sentiam momento para aplaudir porque momento em particular que as bandeiras escondem intencionalmente a formação da
tava todo mundo meio besta.” (Arthur Marques) Canastilha. De repente, temos a surpresa de ver Alice voar por cima das bandeiras
num movimento de muita beleza e plasticidade.
A fala do Arthur é exemplar de como a atuação do circense lida muito com o “aqui- Fazem sequências de saltos como rondada, flic, mortal, flic, mortal (Fabiano); mor-
-agora” e com um contato direto com o público. Isso faz com que o trabalho com ener- tal, rondada, dois flics, mortal (Davi e Petit, sendo que o Davi lesionou o pé esquerdo
gia ganhe grande significação. Essa energia diz respeito à capacidade de mobilização na aterrissagem e saiu de cena mancando).
do público para estabelecer um fluxo de contato com o artista numa via de mão dupla. Depois do alegre e vibrante número fizeram um intervalo de dez minutos até co-
O artista deve ter habilidade para sentir o público, o espaço e as oscilações dinâmicas meçar a segunda parte do espetáculo:
dos mesmos. Nota-se que o mágico foi capaz de dar respostas a alterações que ele
notou na recepção. “Aproveitem para se deliciar com as iguarias no Nacional
O Theo Macedo perde um pouco o ritmo da ação vocal na apresentação das meni- Circus.” (Mestre de Pista)
nas do número de Lira. Mas, mesmo assim a entrada delas contagia os espectadores.
A dança do bailado inicial é bem instigante e sensual. A trilha sonora é ótima. Trouxe A família do professor Latur estava vendendo pipocas e doces no pátio. Isso soma-
um pouco de leveza. O aparelho gira o tempo todo enquanto fazem as mais diferentes do as mandalas e iluminação especial dava um clima mais próximo dos circos itine-
figuras explorando alongamento, força, postura e sincronia. Muda a música e elas pe- rantes que viajam pelo país.
gam giro e sobem no esquadro afastado, daí vem a prancha lateral, passam a curva, A segunda parte do espetáculo inicia-se com: “Uma trupe vinda diretamente de
sentam nas Liras, equilíbrios de rins, fazem a posição “maldita”, o reloginho, algumas Cuba”. (Mestre de Pista)
fazem flex e outras calcanhar, prancha do macaquinho, uma curva, pé cabeça, espa-
cate na corda, sucessivamente cada uma faz uma queda. Caminham para a Lira duo, É a galera do Mastro Chinês: Aisha, Samuel, Jânio e Taígor. Este foi seguramen-
Brunna e a Renata são portoras, Luiza e Flávia são as volantes. Fazem a subida com te um dos pontos altos. As figuras coletivas, o ritmo, a sincronia, as pranchas, as
apoio na omoplata, envergada e contrapeso, fazem cambalhotas em duplas (giros no portagens, enfim, fizeram deste um dos nú-
eixo horizontal). meros mais dinâmicos. No mastro, fizeram a
A parte do número em que fazem as portagens no centro do picadeiro é a parte subida clássica, a subida do macaquinho, a
mais divertida e aquece o público. Mesmo com alguns pequenos erros e pouca ilumi- subida saltada, sequencia de giros e posições
nação do lado esquerdo o número foi muito bom. de descanso como a curva do joelho e coxa,
A seguir vem a entrada da Sonâmbula (Letícia Esteves) com a participação do Ar- bolinha, descanso de quadril e pranchas (de
repia e do Caruaru. Este número tradicional pode ser encontrado no livro de Fernando ombro, de rins, superman, e bandeiras. As
Bolognesi. Evidentemente que descidas foram feitas de várias formas, en-
ele apresentou características tre elas, a invertida de pernas e a descida
específicas. Mas a estrutura é encorpada. Taígor fez uma queda com trava
a mesma. O Sid usou um mi- de quadril e Samuel uma queda reversa com
crofone auricular (earset) bas- trava nas pernas.
tante discreto e apropriado A maior parte das portagens foi feita uti-
para o tipo de movimentação. lizando a estafa presa no alto do mastro.
Funcionou muito bem. Nesta técnica Aisha fez um espacate de ca-
O próximo número é apre- beça para baixo.
sentado pela Trupe Bastos. Interessante como eles tiveram confian-
Taí um número em alto as- ça para fazerem o número sem o uso de col-
tral e uma justa homenagem chões. Isto mesmo nos momentos de quedas
ao professor Pirajá Bastos. A em que deslizam no mastro relaxando o mo-
Acrobacia de solo inicia com vimento de apoio e reduzindo o atrito, depois
a Isabela, Daniele, Rayssa e Da esq. para dir.: Luiza, Brunna, Renata e Flávia. apertando e travando de novo para parar De cima pra baixo (Jânio, Samuel, Aisha e Taígor).
Alice com uma reversão para Foto: Gabriel Marques. ENC. 2014. bem próximo ao solo. Foto: Gabriel Marques. 2014

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS

É um número mais dançado e teatral. Eles experimentaram a criação de ações fí- (pulls). O número bastante animado destaca em determinado momento a Parada com
sicas, gestos e movimentos que deram uma dimensão mais simbólica para as figuras. uma mão da Vanessa na bengala de segunda altura. Depois vêm os truques de mão
Além disso, estabeleceram uma boa relação com a música pontuando os momentos a mão e portagens feitas por Janio e Serragem, também respondidos com aplausos
mais rápidos e alegres e os momentos mais lentos e tristes. Há um diálogo bacana pelo público.
com as alterações de andamento, mas, também com a amplitude da música. O final é O número seguinte é o de Chicote feito por Karina Bredariol e por Fernando Félix
bastante preciso. Aplausos! com a participação da macaca interpretada por Letícia Esteves. Jornais são rasgados
Este número é uma homenagem ao professor Alexis Reyes (Papito). Ele ministrava pelo chicote em tamanhos cada vez menores, exigindo mais pontaria e precisão. A ma-
aulas de Mastro chinês nessa época. Cuba é um dos países com grande tradição nesta caca atravessa o arame em busca de uma banana. É uma homenagem ao professor
modalidade e suas apresentações são baseadas principalmente em movimentos que Latur, também presente na plateia.
exigem bastante força e técnicas de bloqueios ou travas, como as pranchas. 55 O próximo número é introduzido pelo palhaço Arrepia. Trata-se de um número
Entra o Arrepia no meio da plateia passando uma fita zebrada em pessoas enquan- de arame numa pegada cômica que utiliza as figuras da mulher misteriosa (Felipe)
to os barreiras vão desmontando o mastro e deixam pronta a mesa para o próximo e do “homem mais forte do mundo” (Fabiano). A música é um tango bem intenso e
número de Parada de mãos com a Trupe Silva. dramático. Eles têm ritmo nos movimentos. Felipe é levado ao arame nos braços
Isabela, Alice e Flávia abrem o número com a modalidade do Contorcionismo. por Fabiano. A iluminação está fraca. No arame está um pouco escuro. Fabiano faz
Fazem movimentos de grande flexbilidade sincronizados e em cânone explorando o espacate, Felipe salta de costas, anda para trás com uma das pernas num ângulo
principalmente as possibilidades oferecidas pela mesa de paradas. de 45 graus. Eles sentam, deitam, dançam, andam com as pernas flexionadas, entre
Em alguns momentos passam por contorções frontais, flexionando o tronco sobre outras habilidades.
as pernas esticadas. Também fazem extensões no tronco e quadril colocando os pés Interessante como mantêm os personagens de forma que no final existe de
na cabeça. fato uma surpresa por parte de pessoas da plateia ao verem que a mulher miste-
A música que anuncia os paradistas é do repertório do “circo tradicional”. Os me- riosa (assim que tem o lenço retirado do rosto) revela a mulher barbada. Felipe
ninos entram andando com as mãos. Fazem várias figuras de grande beleza: Parada faz o papel com verossimilhança. Percebemos que ele está se divertindo ao atuar
esticada, carpada aberta, grupada, mexicana, lateral, sapinho, beija-flor, entre ou- daquela maneira. O público também se diverte. Gritam “arrasou!”. Enquanto a
tras variações. Janio, Serragem, Cesinha, Artur Caciolari, Artur Marques, Vanessa mulher barbada anda pela plateia até sentar no colo do Papito. As gargalhadas
e Dira alternam posições tradicionais com danças, paradas em cadeiras, nas bengalas tomam conta da lona. O professor sai da situação sem aparentar nenhum cons-
trangimento.

As contorcionistas Alice, Flávia e Isabela ao fundo. Foto: Gabriel Marques. ENC. 2014

54 Definição de ESTAFA: “Alça de tecido com um anel ajustável em que se prende a mão, o pé ou a cabeça em apa-
relhos aéreos. Antigamente, era feita de corda e encapada com pano. Hoje, é vendida em lojas especializadas de circo
ou fabricada por indústrias do ramo de carga e segurança”. In: STOPPEL, Erica. Trapézio Fixo – Material Didático. s/l,
2010. p. 130.
55 Ver: OLIVEIRA, Philippe R. & DUPRAT, Rodrigo M. “Mastro Chinês”. BORTOLETO, M. (org). Introdução à pedagogia
das atividades circenses. Várzea Paulista: Fontoura, 2010. Fabiano à esq. e Felipe à dir. Foto: Gabriel Marques. ENC. 2014

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Nas palavras de Felipe: Rayssa Palheta fez uma vela nas cordas, depois uma prancha facial com as pernas
abertas, transições, figuras coletivas, chaves de pé, recuperação, entre outras. A cha-
“A mulher barbada... Na real eu sabia que ia fazer o número de ve do portô foi a mais utilizada nas portagens (também conhecida como curva ameri-
arame porque foi o que eu peguei como grade, né? Mas, eu não cana). Fazem a sereia, suspensão com o tornozelo, curva e mão, sentada com a barra
tinha ideia por onde ir. E aí a galera numa das reuniões do entre as pernas, suspensão com um mão e pé e mão e a queda para chave de pé.
grupo o pessoal falou : - faz a mulher barbada. Eu tinha cabelão e Em suma, as meninas do Tripézio apresentaram-se em grande estilo com uma
a barba tava grande. Eu disse: Vai ser! Tem que ser! Aí o Fabiano coreografia bem suingada ao ritmo do foxtrot numa pegada meio jazzística. Brunna,
topou. Entrou na brincadeira, fez o homem forte. Foi bem intenso Dani, Rayssa e Greice Kelly demonstraram como são ricas as possibilidades deste
porque a gente não tinha muito apoio do professor. Na época era a aparelho. As portagens, as figuras coletivas, o balanço só foram possíveis graças a
Ângela. Ela meio que queria ajudar, mas ao mesmo tempo ficava boa sincronia, equilíbrio, força e flexibilidade delas.
meio alheia. Ela não apoiava o que a gente queria fazer. Mas, foi. Enquanto os barreiras preparam os aparelhos e o espaço para o próximo número,
No final das contas o número saiu na última semana. Na sema- Caruaru e o Petit fazem uma breve esquete (entrada) em que no final saem com o
na do espetáculo. A gente juntou, chamou os amigos e pediu a palhaço Arrepia empurrado dentro do baú. Percebe-se que é um número de preenchi-
opinião das pessoas da turma. Deu certo! A apresentação foi mento e distração do público.
boa porque foi uma grande brincadeira para mim, né? Eu nunca Mesmo assim há um pequeno “buraco” (tempo sem ação cênica intencional) até
tinha me apresentado num espetáculo no picadeiro com iluminação começar o número de Tecido Acrobático. O atraso possivelmente ocorreu pelo fato
e tudo assim. Foi muito massa!” (Felipe de Abreu) do apresentador também fazer parte do quarteto. Fazem uma subida cambiada (hip
lock from hocks climb). Esquadro invertido afastado ao lado direito, depois a curva
esquerda com o tecido do lado direito, chave de cintura para recomeçar a sequência.
No alto do tecido fazem uma chave de pé, depois espacate com os tecidos separados,
giros com trava na cintura e outros truques envolvendo a flexão da coluna para trás
(Nataraja e ponte). Camila é a primeira a descer. Faz uma descida direta com trava
na coxa direita e com a cabeça para baixo. Depois é a vez da Lívia e da Dira que des-
cem desenrolando o tecido travado na cintura. Em seguida vem o Theo que faz uma
queda à frente da chave de cintura com trava de segurança.
Lívia Brandão traz importantes informações sobre o número e o processo como
foi criado:

“Tinham algumas pessoas interessadas em fazer Tecido, mas


vários números de Tecido não ia dar muito certo no espetácu-
lo. Então, a gente decidiu fazer quatro pessoas numa sequencia
sincronizada de Tecido. Foi muito difícil porque a gente teve
que arranjar quatro tecidos pra montar ao mesmo tempo.
Foi uma experiência boa, mas também foi bem difícil sincronizar
quatro pessoas certinho em tão pouco tempo. Além do mais, a
gente tinha que cuidar de outras etapas do espetáculo. Foi uma
experiência enriquecedora. Gostei bastante de compartilhar tro-
cas com outras pessoas e com o professor Alex ajudando também.
Pessoas de outros estados. A Dira do Paraná, o Theo de Natal, a
Camila de Aracaju. Você vê a linguagem diferente de cada
Meninas do Tripézio. Foto: Gabriel Marques. ENC. Rio de Janeiro. 2014
um, o processo que cada um tem, absorve aquilo e coloca pro nú-
Com vocês o número de Tripézio! É isto mesmo. Não estou escrevendo trapézio de mero. Isso foi bem legal !” (Lívia)
uma maneira errada. O Tripézio tem este nome porque consiste numa barra de ferro
de aproximadamente 1 metro e 80 cm suspensa por quatro cordas de uns cinco metros Segundo a própria Lívia, os movimentos, truques e a sequencia foram definidos
encapadas por um tecido de algodão verde. da seguinte maneira:
Seu formato desenha a figura trapezoidal nas cordas laterais e se torna três tra-
pézios paralelos e ligados entre si. Como ele fica estático, suas técnicas corporais “No começo o Alex Machado (professor) deu uma liberdade para
dialogam com a do Trapézio fixo. São realizadas principalmente portagens e figuras a gente tentar encaixar os movimentos que a gente já tinha. A par-
sincronizadas e quedas. As meninas subiram com o auxílio de duas cordas. tir desses movimentos ele foi lapidando. Tirava algum truque
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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS

que tava meio capenga e que não se encaixava no movimento no duplo mortal para trás com dupla pirueta (Serragem), mortal para trás pousando
outro. A gente perguntava se tava legal. Ele foi importante. Ele foi sentada numa cadeira na extremidade da Percha (Yasmin), mortais esticados (Dani e
meio que ‘o diretor do número’. A postura dele era essa. A gente Rayssa) e o mortal para trás pousando em pé nos ombros do portô na terceira altura!
conseguiu e foi bem legal no final” . (Lívia) O estilo e técnica são claramente ligados à tradição russa, pois, os acrobatas salta-
dores abandonam a báscula e aterrissam no chão após os mortais e piruetas, enquan-
Assim que terminam os aplausos para o número de Tecido, logo abaixo do nível do to na tradição coreana, eles realizam todos os seus saltos sobre a prancha.
picadeiro a Sonâmbula (Letícia) aparece outra vez e cai em cima de pessoas da pla- Os picadores (os que impulsionam os volantes) são o César e o Danilo (Sid). De-
teia. Quem chega na sequencia é o Arrepia. Ele a leva carregada no colo. Risos e um monstram boa sincronia em todos os momentos em que correm ou saltam na Bás-
pouco de confusão! cula para lançarem seus colegas no ar. Saltam de uma plataforma com mais de
O Arrepia já existia antes do espetáculo Memórias. Ele nasceu no Circo Laheto, 1.80cm para a prancha da Báscula. Outra técnica foi a do impulso duplo a partir da
na cidade de Goiânia, onde também já havia apresentado outros esquetes de palhaço. corrida diagonal.
Arrepia tem algumas características bem específicas: Como em vários outros países, nas extremidades da prancha usada na ENC existe
uma saliência revestida por um material antideslizante que facilita o equilíbrio do
“Ele é sonso, parado no tempo, pensando longe, ele é baixinho, acrobata. Elas também são um pouco mais largas do que o restante da prancha.
assim meio corcunda, tem um jeitinho de andar próprio. Ele Os saltadores ou volantes são: a Dani, a Rayssa, a Yasmin, o Davi,o Serragem, o
é bem carinhoso, de abraçar, de sorrir e de dizer coisas boas.” Fernando e o Anísio. Dominaram bem a energia e o timing que o aparelho pede. O
(Danilo) Carlos Petit encerra o número com chave de ouro fazendo um triplo mortal para trás.
O público foi abaixo. César Augusto Rodrigues grita enquanto todos estão de mãos
A relação entre texto decorado e improviso é algo interessante de se observar com dadas nas bordas do picadeiro: Báscula, báscula! Respondem em coro: Hei!
mais detalhes: Entre os grupos que estavam ensaiando para este espetáculo o da Báscula se de-
monstrou um dos mais unidos e dispostos a enfrentar desafios de superação lançados
“A Brunna criou o texto com o Taígor e eles me passaram. Lá ti- pelo professor da disciplina e preparador do número, Marcelinton Lima.
nham as falas certinhas. Mas, era só um caminho né? Daí a partir
daquilo eu fui costurando e falando como o meu personagem. “O Marcelinton é demais! Ele tem uma didática muito boa,
Seria como o meu personagem fala aquele conteúdo. Seria mais sabe? Em menos de dois meses a galera tava voando muito alto
um conteúdo. Daí eu peguei as falas e fui criando, fui brincando, e sem medo. Fazendo mesmo. Daí começamos com lonja e ele foi
dando uma construção melhor. Dando umas diferenças de tom, passando confiança, sabe?” ( Danilo)
de altura da voz e aí saiu.” (Danilo)
Percebe-se que embora o processo tenha sido curto foi intenso e obedeceu a um
A atuação do Arrepia envolve evidentemente as características peculiares do pa- aprendizado gradual e sem queimar etapas. Nessa perspectiva, Daniele também
lhaço que busca o ridículo que existe em cada um. Algo único, pessoal e intransferí- aponta outros aspectos do processo de ensino que dialogam com a necessidade da
vel. A relação mais livre com o texto implica em expor as tendências e propensões do confiança do aluno em si mesmo, em suas capacidades:
próprio Arrepia. É uma relação que se pauta em sua personalidade. O palhaço não
representa. Ele é a dilatação e ampliação das características acima mencionadas. “Eu participei de quatro números do espetáculo de formatura:
Em certos momentos, seu improviso em cena foi abertura para o inesperado, para báscula, malabares, acrobacia de solo e o número final. Pra mim
o imprevisível. Nos momentos de esquecimento ou de falha de mecanismos o improvi- o mais difícil foi a báscula. Meu pé estava machucado. Tinha
so foi usado principalmente como um recurso para safar-se de obstáculos que podiam ficado três meses na ENC sem treinar. O professor também era
interromper ou prejudicar a continuidade do espetáculo. Nesses momentos, foram as acelerado e tal.Ele estipulou um truque para cada pessoa. Falou
circunstâncias que o levaram a improvisar. para eu fazer um duplo. E eu disse: mas como eu vou fazer um
Ele também demonstrou capacidade de dialogar com as pessoas do público acen- duplo se eu não sei? Não sei nem fazer o mortal direito e ainda na
tuando assim, ainda mais o caráter momentâneo da experiência. Contribuiu para a báscula.? Daí ele falou: Vai lá! Eu confio em você. Eu sei que
intensificação do “aqui e agora”. Nesta perspectiva, é importante não esquecer que você vai fazer! Daí acabei fazendo. Claro que ele ajudou com a
os espaços influenciam muito nesse processo. Eles podem dificultar ou facilitar. No lonja e o colchão. O bom também é que eu não machuquei o meu
caso, a maioria destes diálogos do Arrepia ocorreu no mesmo plano e com bastante pé. Muito bom, maravilhoso! A melhor experiência da minha
proximidade, olho no olho. A improvisação nesses casos provocou uma penetração da vida foi fazer báscula. Amei fazer báscula! Amei de verdade! Todo
arte na vida. Abriu caminho para uma maior participação da plateia. mundo ajudando e dando apoio. Acho que isso foi o mais legal.
Senhoras e senhores, com vocês o próximo número - a Trupe da Báscula! Os acro- Foi incrível”. (Daniele)
batas entram com rondadas, flics e mortais. Na Báscula fazem duplos mortais (Dani
e Petit), mortal para trás tracassado (Caruaru), duplo mortal com pirueta, tsukahara, Este número foi impecável no quesito animação e energia. A crescente na dificul-
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dade dos truques trouxe uma sensação de risco e adrenalina. Souberam preencher lhas: mortal e mortal com pirueta. Serragem, Dani e Jana são os volantes. E então
muito bem com movimentos de dança e acrobacia os momentos em que outros ainda todo o pessoal da frente é empurrado pelo o último da fila e todo mundo cai em per-
estavam se posicionando nos aparelhos. Não é por acaso que se tornou “a melhor ex- feita sincronia com o fim da música. Todo mundo cai num efeito dominó.
periência” da vida desta brilhante acrobata de Campo Mourão, Paraná. Este finalzinho fechou magnificamente a coreografia coletiva. Foi feérico,
Assim que retiram os colchões, plataformas, básculas e demais objetos entra o surpreendente, triunfal! Interessante como ele surgiu ao acaso. Eu me lembro.
Mestre de Pista. Ele caminha até o centro do picadeiro. Faz uma pausa, olha bem as Dessas coisas que os processos criativos estão cheios (quando se permitem).
pessoas da plateia e diz enquanto caminha pra frente: Abertura é lucidez:

“O circo existe para encantar e despertar vidas. Escolhemos “E isso aconteceu sem querer num ensaio, no início machuca-
essa nossa profissão, pois, temos como objetivo que nossa arte va bastante, um caia em cima do braço ou da perna do outro.
toque outros corações ao redor do mundo. No final a gente viu que era possível e ficou bem interessante.
Temos uma alma de característica errante. Temos isso na pele, A gente usou na cena”. (Luiza Fernandes)
na garra, na vontade de ganhar, de melhorar, de aperfeiçoar.
(ele começa a caminhar de costas para o fundo do picadeiro) Percebe-se que muitas vezes as ideias cênicas não nascem prontas tas. Elas têm
Senhoras e senhores, hoje é o último espetáculo, mas partimos. que ser trabalhadas, pesquisadas e analisadas para encontrar soluções para alguns
Partimos felizes sabendo que deixamos um pouco de cada um de problemas ou dificuldades. Se desistissem não teriam descoberto este efeito que fun-
nós e levamos um pouco de cada um de vocês. cionou tão bem no momento escolhido na cena.
(ele para próximo a cortina) A coreografia coletiva apresenta também outros significados que são apon-
Senhoras e senhoras é com muita alegria que encerramos a nos- tados nas seguintes falas:
sa temporada na cidade maravilhosa. Mais que sensacional, é
Nacional Circus!” (Mestre de Pista) “A acrobacia final foi incrível. Juntar tantas pessoas num mes-
mo palco pra fazer um monte de coisas... Meu, você não tem a ideia.
Após esta fala inicia-se a coreografia coletiva. Apito do trem. Entrada da Greice É muito foda! (risos) A Lu (Luiza Fernandes) foi incrível pra
Kelly no picadeiro vindo das cortinas. Ela está com pressa. Espera o pessoal e ele logo montar tudo aquilo com a ajuda de todo mundo. Mas, pegar lá
chega. Cada um atrasado já com sua mala, procurando onde é o seu lugar. Um caos. na barra sozinha foi foda! Ficou lindo. A imagem daquelas ma-
Esta parte é teatral. Na sequencia começa a dança com o grupo se organizando em las. Manipular e a expressão que a gente teve que ter...” (Daniele)
duas diagonais e movimentando as malas num cânone espelhado. Os meninos rolam
para frente, suspendem as meninas, se direcionam para o centro e fazem o salto leão “A dança no final foi muito legal! No pouquíssimo tempo que a
sobre os outros que fazem um rolamento no chão. As meninas vêm desfilando para gente tinha... Caraca! Vamos fazer alguma coisa no final porque o
frente do picadeiro fazendo evoluções em duas filas. Alguns se posicionam para fazer Carlos quer que a gente faça um número coletivo. Aí a gente tentou
as pirâmides lá atrás. Na frente um muro. Uma fila com os troncos voltados para o as pirâmides. Mas elas não podiam ficar isoladas então a gente fez
público. Fazem uma dança em linha. Movimentos de pés. Dividem-se em dois grupos com que ficasse no número. Todo mundo botou energia ali pra
e abrem espaço para mostrar as pirâmides feitas lá atrás. Uma pirâmide de terceira fazer e ficou legal. Eu me senti emocionada no final. Foi um des-
altura e as meninas fazendo esquadro na perna das outras. Fazem formações coleti- fecho de um ciclo que foi importante que tava acabando”. (Lívia)
vas e aí todo mundo se posiciona, se abraça, cumprimenta. Coreografia em que todo
mundo faz os mesmos movimentos sincronizadamente. “O final tá uma Broadway, tá uma super produção da porra!
Espalham-se pelo espaço e se preparam pra fazer o salto na Canastilha. Três A gente vê que o espetáculo tá terminando numa crescente!”
meninas, 1, 2, 3. Voltam e são carregadas para o fundo do picadeiro. Uma dessas me- (Alexandre)
ninas é carregada por toda a turma até o centro em clima de brincadeira. O grupo se
organiza e faz uma nova coreografia coletiva. Vão para o fundo. Sobem em segunda, Sem dúvida, a sensação no momento foi de surpresa por ver um coletivo tão nume-
em meia e em terceira alturas e começam a passar as malas, procurando os donos das roso em cena. Isso é forte. Todos sabem como é complicado articular tantas pessoas
malas e juntando elas no centro do palco. É um desenho de um triângulo. em movimento num espaço como o picadeiro. Daniele destaca a contribuição de Luiza
As pessoas descem. Os rapazes vêm ao centro e começam a distribuir as malas Fernandes em ter assumido a responsabilidade por conduzir esta parte tão difícil do
para os outros que chegam saltando: salto mortal, flic, sequencia de cinco flics, as espetáculo. Lívia lembra como também havia a cobrança por parte do coordenador
meninas fazem rondada e mortal. Alice, Dani e Rayssa pegam as malas. Rafael e pedagógico de um número coletivo e de como o grupo reagiu positivamente a este
Fernando saem com as malas do centro. Passam as malas para o cantinho enquanto desafio. Além disso, enfatiza um aspecto maravilhoso daquela obra de arte: a sua
vem um fila para a entrada dos passageiros no trem. intrínseca fusão com o momento em que aquelas pessoas estavam vivendo. Era arte,
São trinta e nove pessoas enfileiradas! Já entraram os três que não participaram. era representação, era VIDA! Algo que ia entusiasmando o público na medida em que
Fazem uma coreografia na frente, abaixam e lá atrás fazem os saltos das Canasti- ia se desenrolando. Talvez um pouco mais de conhecimento sobre o processo criativo
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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS
traga outros elementos que reforcem este caráter coletivo intenso e de fechamento As viagens de circo como as deles seguem uma sequencia de atividades que envol-
emocionado de um ciclo. Um verdadeiro ritual de passagem: vem desde os preparativos da partida – a estação de trem, a logística para levar os
materiais e embarcar, a melhor hora para se viajar, a escolha da próxima cidade, o
“Quando a gente fez a reunião para dividir as tarefas, cada trabalho de publicidade, a aproximação com a população local, os riscos envolvidos.
um falava mais ou menos com o que poderia ajudar e eu falei que
Uma viagem longa exige cuidados redobrados.
podia ajudar com as coreografias. E aí surgiu a possibilidade
Percebe-se que a atuação dos formandos na sua maioria foi de um trabalho de
de fazer uma coreografia com todo mundo. Uma coreografia fi-
nal, já que o espetáculo inteiro é dividido em números com menor equipe. Geralmente mesmo em tarefas específicas, entendiam a natureza do processo
quantidade de pessoas. A música foi proposta pela Brunna. e acompanhavam o desenvolvimento do todo. Sabiam da história. Quase todos se-
Era uma música que ela já tinha feito a seleção e me apresentou. guiam tudo. Não há uma relação de trabalho alienado ou alienante. Penso que essa
E aí eu percebi que na verdade durante a nossa formação na Escola experiência é em certos aspectos similar àquela em que segundo Teixeira Coelho,
Nacional de Circo a gente poucas vezes trabalhou o grupo inteiro. “o indivíduo como um todo, em total absorção no ato que entrega, resolve os proble-
Sempre foi dividido em modalidades, até porque éramos cinquenta mas que enfrenta usando seus recursos pessoais e os grupais do coletivo sem o qual
pessoas, então era difícil caber numa turma só, numa aula só. E aí despenca no vazio “.56
eu tentei trabalhar algumas coisas de coletivo, de troca, de Juntaram-se em torno de uma experiência e se agruparam em função do número
olhares, de contato e... Mas a gente não tinha muito tempo. coletivo definido. Quando a engrenagem funcionava bem, internamente no grupo,
Se eu não me engano a gente teve sete encontros. Então a gente co- cada um procurava colaborar com o que era possível. Mesmo que as condições e prin-
meçou a trabalhar: eu, fazendo a proposta das atividades e várias cipalmente o pouco tempo tornasse o clima mais tenso esses artistas tiveram que
pessoas foram muito importantes pra fazer o desenvolver da dança,
lidar como difícil aprendizado de não agredir o semelhante, de aprender a comunicar-
da coreografia. Então, o Fabiano, a Dani e mais outras pessoas
-se, de interagir e de decidir em grupo. Difícil aprendizado porque o conflito também
sempre trouxeram movimentos que podiam ser trabalhados em
grupo. Sugestões... E junto a gente foi criando ali. Como era a cena permeou essa convivência entre as pessoas que pensavam diferente, que buscavam
final, já tinha a ideia , e eu fui aprofundando essa ideia de que objetivos de outra forma, tinham interesses distintos, mas, que puderam discutir e
seria a despedida. A gente faria como se tivesse organizando as consensualizar ideias comuns, colocadas acima das divergências.
malas, juntando as coisas do circo pra despedir daquela cidade e As evidências apontam para o fato de que esta experiência específica de trabalha-
ir para uma próxima cidade. Em cima disso, foi mais ou menos rem todos num único número favoreceu a reconciliação e a união do grupo. Afinal, o
que a gente criou, que eu orientei, mas criamos coletivamente relacionamento entre os participantes na época da criação do espetáculo como já foi
a coreografia”. (Luiza Fernandes) descrito anteriormente, nem sempre foi o melhor possível. Não se pode dizer que o
relacionamento foi ótimo o tempo todo, porque de fato não foi. Houve um período de
intensas discordâncias, indefinição dos rumos e pouca paciência para resolver as coi-
sas mais tranquilamente. Claro, isso não durou o tempo todo. Isso foi mais no início
do processo. Nesta parte da coreografia coletiva prevaleceu a convivência alegre, o
companheirismo e a energia positiva.
Pensando no processo como um todo realmente se destaca esta transformação na
forma de relacionamento entre estas pessoas. Com o tempo foram consolidando o
sábio aprendizado que no circo se uma “ponta não estiver firme, nada ficará firme”.
Quer dizer, a corrente é forte e resistente quanto o seu elo mais fraco. Mesmo com
uma pequena responsabilidade, cada pessoa é importante para que o conjunto realize
as tarefas com êxito. Na prática uma pessoa, com suas ações individuais pode fazer
a diferença e modificar bastantes coisas. Este número coletivo mostrou como certas
abordagens podem harmonizar toda uma coletividade antes dividida.
O final da encenação foi concretizado ritualmente com o canto coletivo e a movi-
mentação de saída dos artistas pelo corredor que dividia os lados da plateia. Partem
para a estrada em busca de outra praça, de outra cidade…
A música escolhida faz parte da peça teatral O Grande Circo Místico de Chico
Buarque e Edu Lobo:
Dança Coletiva. Foto: Gabriel Marques. ENC. Rio de Janeiro. 2014 56 COELHO, Teixeira. O que é Ação Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 20.

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“Pintar, vestir, calçadas rotineiras, anos a fio.


Virar uma aguardente para a próxima função Sim, estão indo... mais uma vez. As inúmeras viagens são fonte de experiência,
Rezar, cuspir, constituem espécie de uma riqueza invisível, histórias para contar, bem imaterial,
Surgir repentinamente na frente do telão memórias... Ainda levam consigo a aura de mistério, sedução e fantasia... Agora tudo
Mais um dia, mais uma cidade pra se apaixonar se transforma. Fim do encantamento? Não, fica sempre algo. Empolgação, entusias-
Querer casar, pedir a mão mo, excitação. Memórias que para alguns nunca se apagarão. Ao voltarem ao lugar de
Saltar, sair, origem nunca mais ele será igual. A órbita costumeira foi definitivamente modificada.
Partir pé ante pé antes do povo despertar “Criar raiz e se arrancar. Hora de ir embora, quando o corpo quer ficar”. Ir, estar
Pular, zunir, em movimento sem fixar a nenhum lugar cumprindo o modo de vida em que a es-
Como um furtivo amante antes do dia clarear trada é mais do que metáfora do tempo de vida de uma pessoa no circo (“Tem muita
Apagar as pistas de que um dia ali já foi feliz
estrada...”). A estrada é a metáfora da vida nômade, sem enraizamentos possíveis
Criar raiz e se arrancar
onde a a mudança é uma regra, e não uma exceção, como é para os sedentários.
Hora de ir embora, quando o corpo quer ficar
Vida circense. Vida como a dos “reis dos ciganos”. Sem paradeiro certo. Hoje aqui,
Toda alma de artista quer partir
amanhã, ninguém sabe.
Arte de deixar algum lugar
Quando não se tem pra onde ir Um contínuo caminhar explode na canção final, numa imagem do moto perpétuo
Chegar, sorrir, que se renova através das gerações, num permanente chegar e partir para estradas,
Mentir feito um mascate quando desce na estação deixando sempre atrás de si nesse grande circo da vida, a imagem dos fascínios, de-
Parar, ouvir, safios e intensidade destes representantes de um mundo novo.
Sentir que tatibitati que bate o coração Esta cena final do espetáculo encontra bastantes ecos, entrelaçamentos e conexões
Mais um dia, mais uma cidade para enlouquecer com a realidade mais ampla. Estar na estrada é tão importante para a história e o
O bem querer, o turbilhão modo de vida circense que autores, como o antropólogo Gilmar Rocha, consideram a
Bocas, quantas bocas a cidade vai abrir viagem o mecanismo principal na organização social do circo, assim como na constru-
Pr’uma alma de artista se entregar ção da identidade social do circense. Nessa perspectiva, a viagem atua como o ele-
Palmas pro artista confundir mento estruturador na organização social do circo, bem como, no seu funcionamento.
Pernas pro artista tropeçar Consiste numa categoria-chave para se penetrar no mundo do circo: “a verdade é que
Voar, fugir, o circense narra a sua trajetória biográfica de artista por meio de suas viagens. Elas
Como o rei dos ciganos quando junta os cobres seus possibilitam a construção da identidade do artista de circo”. 57
Chorar, ganir, Duarte também discute em seu belo livro, entre outras coisas, como o nomadismo
Como o mais pobre dos pobres dos pobres dos plebeus dos circenses (inclusive, famílias de ciganos) no século XIX transgredia o projeto de
Ir deixando a pele em cada palco e não olhar pra trás sedentarização apregoado pela construção do Estado brasileiro e produzia um imagi-
E nem jamais, jamais dizer nário de fantasia: “nômades, carregam suas bugigangas de cidade em cidade, tentan-
Adeus” do conferir à sua ocupação o máximo de valor”. 58
É ponto pacífico que a expansão geográfica é um traço que normalmente os estu-
diosos destacam na história do circo no século XIX. A diáspora nesse período é tão
intensa que muitas famílias circenses, resultantes da estimulante associação entre
militares e artistas ambulantes de rua (saltimbancos, teatros de feiras, ciganos, ato-
Movimentos, sons e sentidos? res da commedia dell’arte), expandiram para muito longe o campo de atuação. Só na
parte final do século XIX é que temos notícia da vinda para o Brasil de companhias
Lá estão indo eles, assim como chegaram: num raio de estrela, no vento, no ar como
itinerantes inteiras, oriundas de diversos países da Europa. Atravessaram o oceano
num passe de mágica pelo labirinto das cidades. “Ir deixando a pele em cada palco e
Atlântico em busca de outros territórios para conquistar. Mas, não se pode esquecer
não olhar pra trás”. Que pena, já é hora de dizer adeus a estes estranhos seres de ha-
que já havia em solo brasileiro um número expressivo de famílias de ciganos que
bilidades extraordinárias. “Mais um dia, mais uma cidade pra se apaixonar”. O circo
tiravam seu sustento, em todo ou em parte, de apresentar para as mais diferentes
de lona, apesar da vida de trabalho, é um lugar de aventuras, de conhecer novas pes-
plateias as mais diversas artes circenses.59
soas, novos lugares, sempre viajando. O risco não está somente sob a lona, também
está nas viagens. Pois, viajar é, de certa forma, colocar-se em risco; é até certo ponto,
57 ROCHA, Gilmar. A magia do Circo – Etnografia de uma cultura viajante. Rio de Janeiro: Lamparina & FAPERJ,
lidar com o inesperado por mais que haja um bom planejamento anterior. Não há ro- 2013. p. 26.
tina como alguém que levanta todo dia e vai para o seu emprego pisando nas mesmas 58 DUARTE, Regina Horta. Noites circenses. Campinas: UNICAMP, 1995.p. 175.
59 ANDRADE, José Carlos dos Santos. O Espaço cênico circense. São Paulo. ECA/USP. 2006 (Dissertação de Mestrado)

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A esfera da recepção: “Eles trouxeram novamente para lona da Escola Nacional


Plateia, a parceira que não pode faltar de Circo a essência circense. Esse é o espetáculo de circo!”
(Pirajá Bastos)
Para compreender melhor os significados deste espetáculo, em específico, é fun-
damental investigar também como as pessoas que assistiram receberam a apresen- “Eu gostei muito. A turma tá de parabéns. Eles se esforçaram
tação. Ainda mais que através da metalinguagem o espetáculo veicula claramente a bastante. Foi uma produção bacana. Circo é isso, essa possibili-
percepção de que no circo a plateia é vital e indispensável para que aconteça o próprio dade de cada exercício você poder trabalhar uma linguagem. Isso
(“show”) fenômeno artístico: aqui é só o primeiro passo. Eles tão abrindo a porta da vida
deles!” (Alex Machado)
“Lembra Arrepia, lembra! Todas as noites e também durante o dia
e se isso não tivesse o show não acontecia. Essa é sua melhor lem- “Gente, isso aqui foi apenas o começo e não o fim! O importante
brança... Já sei! Nem alcateia ou centopeia, vocês são uma pla- é o crescimento e o coração, é isso aí!” (Alexandre Souto)
teia. E que indelicadeza a minha não ter notado antes, pois num
circo, é o mais importante”. 60 “Sinceramente, pra mim foi um dos melhores espetáculos que
eu já vi aqui na Escola. Os meninos mandaram pra valer. Eu sou
Quer dizer, é essencial indagar sobre a esfera da recepção. Afinal, todo o trabalho chato, mas eu gostei do trabalho deles”. (Papito)
realizado teve em última instância, o objetivo de tocar corações e mentes da plateia.
“Amei a homenagem. Eu tenho que ir embora, mas eu queria
ficar mais um pouquinho (risos). Até a próxima! ”(Marcelinton)

Apesar de não conseguir entrevistar o professor Walter Carlo, ele divulgou as suas
impressões sobre o tinha presenciado em sua página numa rede social:

“Foi massa e arrasoooooooouuuuuuuuuu Venho na minha


fraca opinião me orgulhar de vcs pelo empenho e dedicação e o
conjunto da obra parabéns a todos a escola agradece um lindo
com todos maravilhosos as roupas das meninas muito lindo saí da
escola emocionado, parabéns e DEUS proteja vcs um beijão do
TÉCO”

Público e técnica (do lado direito mesas de som e luz). Foto: Gabriel Marques. 2014.

Vamos conhecer primeiramente um público muito especial, vamos ver como os


professores receberam a homenagem dos alunos. Será que gostaram? Será que ela
foi à altura?

“Eu achei muito bacana, muito bonito o espetáculo. Circo


Nacional está a toda. Foram dez meses de muita alegria,
Professores Walter Carlo (Téco) e Janaína Guerreiro. Foto: Gabriel Marques. ENC. 2014.
muita concentração, e o final é isso aí que vocês viram: as
crianças brilhando”. (Edson Silva)61 60 MAYERNYIK, Brunna. ROTEIRO DO ESPETÁCULO MEMÓRIAS. 2013. Rio de Janeiro (in mimeo).
61 Esta e as outras entrevistas a seguir foram feitas logo após o término da apresentação de Formatura.

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Aos Mestres com Gratidão e Amor “Ah, foi bem legal o espetáculo! A gente teve a ideia de fazer um
espetáculo tradicional já que a gente vem de uma Escola de
Em artes performáticas (que acontecem ao vivo para uma plateia) as informações Circo onde as pessoas são mais tradicionais. E é isso, a gente
se transferem, por intermédio de todos os sentidos, num exemplo admirável de per- foi montando os números a partir dessas referências e de
cepção total. A arte do circo é também uma arte do encontro e de comunhão entre os fazer o - Hei! (depois de cada número). O artista de circo ele
que se apresentam e os que os assistem. Esse encontro é físico, concreto, sensorial... se apresenta, ele mostra o que sabe fazer ali num número e faz
corporal. É algo muito antigo, mas nem por isso obsoleto. hei no final e pede aplauso. Diferente do artista de teatro que
Perceber o reconhecimento dos professores significou para os alunos, agora já representa”. (Arthur Marques)
“formados” pela Escola que todo esforço, dedicação, concentração e paixão tinham
valido a pena? Possivelmente. Afinal, é um espetáculo em homenagem aos professo-
res. Aos seus mestres das artes do circo. E pelo que tudo indica os alunos consegui-
ram agradar em cheio. Conseguiram despertar emoções a respeito de lembranças
muito queridas nas vidas dos seus mestres. A Atuação
Marcos Teixeira, mostra na fala seguir como os veteranos eram vistos pela direção
da Escola e um pouco sobre o tipo de perfil e aprendizado deles: O que dá a característica de representação a um espetáculo é o caráter ficcional:
o espaço e o tempo são ilusórios (se reportam a outro instante), da mesma forma que
“Os nossos velhinhos que a gente chama carinhosamente, eles não os elementos cênicos (incluindo os performers) se reportam a uma “outra coisa”. Eles
podem sair daqui. Eles são a alma desta Escola. Eles são a liga- “representam algo”. O público é colocado numa postura de espectador que assiste a
ção que a Escola tem ainda com os circos de lona. Com uma coisa uma “história”. Tudo remete ao imaginário. 62
mais itinerante. O que a gente tem de contato são eles. (...) Não é a No caso em questão, há uma ambiguidade maior, pois, se por um lado há referên-
toa que estão aí até hoje. Profissionais versáteis. Eles são de uma cias a memórias passadas ou a situações ficcionais, por outro lado, como lembra o
época onde se aprendia tudo no circo. Da montagem, passando por Arthur há a dimensão da performance, da demonstração de habilidades corporais que
todos os números, equipamentos, aparelhos, todas as situações de não passam necessariamente só pelo plano simbólico da representação.
espetáculo. E isso é fundamental para a gente. Essa memória Houve uma pesquisa por parte de alguns bolsistas, seja através do estudo da histó-
que eles têm. Tinham que ter algum título de notório saber. ria do circo no Brasil, seja assistindo a Mostra Clássicos do Tradicional em comemo-
Tinha que ter. Qualquer um deles merecia”. (Marcos Teixeira) ração ao aniversário da Escola, ou seja, ainda, analisando vídeos da história do circo
norte-americano no Youtube como: Here Comes the Circus - 1940’s Amusements &
Pela vinculação da maioria destes professores com a própria dinâmica histórica Attractions Educational Documentary ; View the attractions and activities at a typical
circense nacional (com destaque aos mais antigos: Téco, Jamelão, Pirajá, Ângela Ce- 1940’s circus in America Circus Day In Our Town (1949).
rícola, Latur), num sentido mais amplo, pode ser entendido também, como um tri- Nessa perspectiva, mesmo que não tenham procurado representar uma história
buto a história do circo brasileiro. A linguagem escolhida para a montagem exalta, específica quanto entraram no espaço/tempo cênico do picadeiro passaram a “signifi-
enaltece, prestigia e dignifica este circo. Incorpora elementos contemporâneos na sua car” (vira um signo) algo diferente do cotidiano. É um tempo/espaço marcado por sua
linguagem, mas faz referência a técnicas, modos de apresentação, figurinos, gestos, atuação corporal em que isso em certa medida também implica “representar”.
prosódias, valores culturais desta história. Mesmo, que na sua trupe tenham acroba- Mas, como lembra Renato Cohen, não existe o estado em que o artista não simboliza,
tas vindos diretamente de Cuba. Isto não significa uma mudança de linguagem. não representa ou que só represente, que esteja completamente tomado, “possuído”.
Todavia, o primeiro e mais importante significado é o de ser uma demonstração Quer dizer, num outro extremo, alguém também nunca pode estar só “atuando”: pri-
de carinho e gratidão desta turma de alunos para estes professores. Para essa gente meiro, porque não existe o “estado de espontaneidade absoluta; à medida que existe
comovente e emblemática que ensina quase como num sacerdócio: o pensamento prévio, já existe uma formalização e uma representação. Mesmo que a
personagem seja auto-referente (o ator representando a si mesmo). Ainda assim have-
“A gente tem professores com 80 anos ensinando circo e eles são rá o desdobramento. Segundo, porque sempre que estamos atuando (e isto é extensível
uns amores. Eles ensinam mesmo! A carga deles é a do circo tra- para toda as situações da vida) existe um lado nosso que “fala” e outro que observa”.63
dicional, né? Então, todo o tema do espetáculo foi voltada para a
tradicionalidade mesmo. Não teve essa pegada mais contempo-
rânea que se faz hoje, né? Você entrar nesse universo da tradicio-
nalidade é uma coisa incrível porque você tá vivendo um outro
tempo, você tem outros valores, outras linguagens corporais 62 COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1989.
e cenário e música pra passar”.(Lívia) 63 Idem, p. 96.

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A importância destes professores no imaginário dos alunos e de pessoas que bus-


Tradição, tradicionalismo, tradicionalidade... cam compreender a ENC é conhecida há muitos anos. É só lembrar da equipe que
formou o corpo docente nos primeiros anos da Escola. Esta marca é inegável, mas
O que os formandos querem dizer, mais precisamente, quanto se referem aos co-
tem passado por inúmeras transformações ao longo destas três décadas. Entre julho e
nhecimentos obtidos em sua formação como ligados ao “circo tradicional” e a “tradi-
dezembro de 2003, o saudoso pesquisador Guilherme Veiga fez seu trabalho de campo
cionalidade”?
na ENC, inclusive frequentando as aulas. Chegou a conclusões que reforçam a ligação
A princípio, podem ser compreendidos como técnicas reelaboradas e ressignifica-
dos “velhinhos” com a própria identidade da Escola. Por exemplo, quando se refere
das das tradições familiares dos circos de lona. Quer dizer, relacionam com os códigos,
a eles na página 216 de seu livro, afirma que “cada um dos professores é um acervo
termos, didáticas, ritmos, movimentos, formas, elementos e aspectos que possivel-
vivo de informações acerca da história do circo e da prática de suas artes. Em sua
mente, estabelecem uma identidade para o processo de ensino-aprendizagem reali-
totalidade, tais indivíduos são pessoas entre sessenta e setenta anos e, apesar de não
zado na Escola Nacional de Circo. Como pontuou Mauss, a técnica é “um ato tradicio-
praticarem mais as atividades que ensinam, são tratados com enorme respeito pelos
nal (e vejam que nisso não difere do ato mágico, religioso, simbólico). Ela precisa ser
alunos e pelos demais funcionários da instituição. De fato, esse grupo de professores é
tradicional e eficaz. Não há técnica e não há transmissão se não houver tradição”.64
o centro nervoso da própria escola, sua alma e sua essência”. 65 (grifos meus)
Estas falas também traduzem bem o sentimento geral da turma, o tema, os obje-
Os trechos de depoimentos abaixo são bastante significativos, pois também são de
tivos e a pesquisa que envolvia a proposta de direção. Interessante ver como conse-
um público especializado e trazem pistas de outras questões:
guiram comunicar este “outro” universo, esta “essência circense” que fala o Professor
Pirajá Bastos.
“Achei ótimo o espetáculo, adorei! Sur-
É importante entender o significado que lecionar na Escola tem para alguns destes
preendente! Achei legal essa volta pra
professores:
uma linguagem mais tradicional.”
“Eu vi que se eu não viesse aqui pra Escola a minha parte de circo
(Marcos Teixeira)
na minha vida ia acabar. A família Azevedo que é uma família
tradicional de circo ia desaparecer. Quer dizer que agora eu não
“A coisa mais linda do mundo. Me vi
tenho meus filhos trabalhando em circo, mas tenho os meus
antigamente quando eu pisava no pi-
alunos. Aquele negócio. Eles sempre vão dizer quando pergunta-
cadeiro. Muito lindo, muito lindo, eu
rem quem ensinou, foi o Latur Azevedo, da família Azevedo. Quer
amei”. (Rita del Rio Bastos)
dizer, um pouquinho da minha vida de circo ainda continua.”
(Latur Azevedo)
As evidências são bastante claras quanto ao tipo
de linguagem predominante no espetáculo. Ela se
O coordenador da área de pesquisas na ENC e membro da Coordenação Pedagógi-
inscreve na retórica da tradição, na medida em
ca, na época da entrevista, ressalta como a formação na Escola dialoga com um cará-
que, apresenta características como buscar esteti-
ter muito específico e singular da história de vida de alguns professores:
camente gerar a admiração diante da beleza, ser
“Acho que uma particularidade grande e que se encontra em pou- predominantemente feito para estimular as emo-
quíssimas escolas Brasil afora, é ter um corpo docente que nesse ções e não para provocar reflexões intelectuais, Jamelão cuspindo fogo.
Desenho de Ana Flavia V.Silvestre. 2014.
momento é baseado em profissionais que tem o saber decorrente de pela evocação da presença no circo de outros ani-
uma história de vida, e que acumularam esse saber na sua prá- mais (“macaca do Latur”); espaço do picadeiro semicircular, figura do apresentador,
tica, porque estavam inseridos em um modo de organização, pro- espetáculo sem vulgaridades gestuais e verbais ou exibicionismo sexual, violência
dução e socialização do saber muito particular e que agora podem (espetáculo considerado “sadio”). 66
transmitir esse saber para os alunos. Ter esse corpo docente que Segundo Ermínia Silva, predominou da segunda metade do século XIX até meados
a gente tem aqui de profissionais do chamado circo-família, me da primeira metade do século XX, a estrutura do circo-família. Nessa perspectiva,
parece algo muito singular, porque eles tem a possibilidade de re- “ser tradicional é, portanto, ter recebido e ter transmitido através das gerações os
memorar números que hoje estão em desuso, que não estão tão di- valores, conhecimentos e práticas, resgatando o saber circense de seus antepassados.
vulgados. Rememorar histórias do circo de 50, de 60 anos atrás. Até Não apenas lembranças, mas uma memória das relações sociais e de trabalho, sendo
pra gente entender como que o circo se estruturou na época deles, e a família o mastro central que sustenta toda esta estrutura”.67
porque as coisas acontecem às vezes de determinado modo aqui. (...)
Ainda assim esse corpo docente tão específico, tão particular, que 64 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 497.
tem um saber tão rico talvez seja o grande diferencial que a gente 65 VEIGA, Guilherme. Ritual, Risco e Arte Circense. Brasília: EdUNB, 2008. p.216.
tenha até hoje na Escola.” (Bruno Gawryszewski) 66 HOTIER, Hugues. Cirque, communication, culture, Montaigne-Bordeaux : Presses Universitaires de Bordeaux, 1995.
67 SILVA, Ermínia. O circo, sua arte e seus saberes. Campinas: UNICAMP, 1996. (Dissertação de Mestrado).

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS

Os conhecimentos tradicionais não estão escritos nos livros, mas na memória cole- e não transformar a Escola numa extensão do que é daquele gru-
tiva, na memória social. Entretanto, a palavra oral, nunca existe num contexto pura- po, foi um processo muito difícil (...). Eu aprendi de certo modo,
mente verbal, como ocorre com a palavra escrita. Entretanto, nem toda a transmissão mas que aqui (na Escola Nacional) não é assim. Então há uma
oral deve ser tida como tradição. Esta envolve uma série de condições que dizem dificuldade no entendimento que aqui é outra coisa, só que eles
respeito ao aprendizado não formal baseado num modo de vida e num contexto social se reinventam o tempo inteiro, a cada turma, a cada direção, a
e cultural que dialoguem com esse saber construído historicamente. O que implica cada projeto político, a cada diretor. Eles são e não são os mesmos,
numa constante tensão entre inovações e continuidades, conflitos e reelaborações de eles são e não são iguais, mas sempre tem uma certa memória de
conhecimentos ligados a estes grupos sociais. uma certa forma, que também de uma forma ainda nostálgica, é
Uma das grandezas deste espetáculo é colocar em primeiro plano esta questão idealizada, e que também não era ideal. Havia ali um processo de
tão atual hoje em dia. Mas, na própria linguagem do espetáculo não se busca uma formação mas que hoje é idealizado, e é esse o processo que a gente
“pureza”, ou “autenticidade” tradicionais, de uma forma absoluta. Na construção cê- vai fazendo. De idealizar certos momentos como sendo ideal, certo?
nica final, bem como, no roteiro nota-se em alguns momentos específicos, a mistura Então, tudo isso... mas veja, a pesar de tudo isso eles se reinventa-
desta linguagem com uma narrativa mais moderna (não usar o apresentador para ram o tempo inteiro, entendeu? Então, eles não são mais o que
fazer a costura dos números, estabelecer um tempo-espaço ficcional – a montagem eles acham que eles são ainda. A emoção, a memória, a lembran-
de uma lona por trabalhadores, a estação de trem, a chegada e saída das cidades nas ça, o saber, o aprendizado, o que aprendeu ta aí, mas também teve
paradas circenses, por exemplo). que ser reinventado. Ele não foi jogado fora, mas ele também teve
Da mesma forma, em relação aos professores homenageados, as relações culturais que se reinventar, na relação com os alunos.” (Ermínia Silva)
se deram de forma mais intricada. Nesse sentido, o primeiro aspecto a ser salientado
é que o conceito de “tradição”, por sua riqueza e complexidade, obriga a trabalhar com Durante o trabalho de campo na ENC pude perceber o quanto esta “dificuldade no
vários níveis de profundidade. entendimento” que fala Ermínia é real. Isto pode ser comprovado também no trecho
Outro aspecto fundamental neste estudo de caso é resguardar o sentido plural do depoimento abaixo, como podemos ver:
de tradições. Isto é, mesmo os conhecimentos tradicionais não são o prosseguimento
determinado da cultura de um único grupo ou de uma única família circense. Não é “Às vezes, os professores aqui fazem relações e cobram os alunos
um passado chapado onde tudo se equivale como se tudo fosse igual. Isto abre para coisas que os alunos não podem fazer. Às vezes, não conseguem
a diversidade, pois, no circo historicamente se busca construir um número próprio, entender que eles foram formados naquela estrutura de circo-fa-
diferente, único, inigualável. Quer dizer, o ato de transmissão oral de técnicas, va- mília, então eles dedicavam a vida aquilo. Atualmente, o que a
lores, princípios, mecanismos e práticas de geração em geração numa perspectiva gente têm são alunos que vêm de uma classe média urbana e que
processual e ampliada. Além disso, não se pretende que o conhecimento vindo das escolheram, optaram por ser circenses. Então, eles cobram que
TRADIÇÕES seja privativo e excludente em termos de outras formas que contribuem os alunos tenham uma dedicação exclusiva: - Na minha época com
para o processo de ensino/aprendizagem dos alunos. sete anos eu já fazia isso!” Porque se partiu de patamares históricos
Os conhecimentos da tradição oral apresentam regras que subentendem uma teo- diferenciados”. (Bruno Gawryszewski)
ria, a qual se encontra pouco verbalizada. A existência dessa teoria é atestada pelo
fato dos erros não passarem despercebidos pelos professores sendo apontados e corri- De fato, encontrei várias evidências de como se comporta a “tradição” nesse aspec-
gidos. Como no caso do aprendizado musical tradicional. to. Mas, por outro lado também encontrei inúmeras evidências de como ela é vida,
Tenta-se aqui tornar esta discussão mais precisa e defini-la sempre a partir de como apontam trechos da fala de Ermínia: “eles se reinventam o tempo inteiro, a
um debate com as pistas, sinais e vestígios que se constituam em evidências ana- cada turma, a cada direção, a cada projeto político, a cada diretor”.
lisadas criticamente. Afinal, não se devem colocar reflexões de forma simplista, ou Assim como na linguagem do espetáculo, quando se trata do fazer docente, con-
seja, em termos de dualidade (conhecimento tradicional versus conhecimento eru- temporaneidade e tradição não são polos opostos, pelo contrário, em ambos os casos
dito), nem muito menos, concebido como uma justaposição harmoniosa e tranquila se apresentam como complementares. Acredito que isto dialoga com a afirmação de
de saberes tradicionais com os saberes formais e científicos resultando no plano Ricoeur que toda “tradição vive graças à interpretação; é por este preço que ela dura,
cultural numa síntese. isto é, permanece viva”. 68 Os saberes tradicionais não estão descolados da contem-
Nesse sentido, o trecho da entrevista feita com a historiadora Ermínia Silva é bas- poraneidade e vice-versa. Ao menos é assim que se apresentou no período estudado.
tante esclarecedor de como se dá o processo pedagógico e cultural na prática docente: Por este e por outros aspectos mencionados anteriormente a “retórica da perda”, ou
seja, o discurso de autenticação de uma manifestação cultural supostamente vista
“O que eu estou querendo colocar é, há um processo diversificado como tradicional, original, pura, que sofre a ameaça de desaparecimento, extinção e/
para eles, de mudança e transformação, que eu acho que eles ou morte, frente às forças inelutáveis do processo neoliberal ou da globalização, não
ainda não conseguiram dar conta de todo processo. Saí do circo se estabelece como algo relevante.

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS

Os saberes estão sendo reinventados o tempo inteiro por terem que lidar com o
aqui e agora, com o mundo atual. Muitas vezes, quando se dispuseram a “trocar” uma
Passado e Presente caminhando
técnica tradicional por uma técnica moderna isso não significou em alguns casos, lado a lado como Dois Gigantes
nada mais do que um aspecto exterior. Interiormente, não houve uma mudança que
tenha afetado a identidade. Afinal, se a transformação vem no sentido de tornar ain- A discussão dos significados das tradições circenses e das condições de trabalho de
da mais forte e eficaz a técnica buscada, não há problema em ser realizada. alguns professores se mistura com o tema central do espetáculo:
Enfim, a dinamicidade da cultura impede que suas transformações sejam perce-
bidas como empobrecimento ou deterioração. Assim, mesmo as técnicas consideradas “Ai ai essa música! Quantas lembranças! Posso até sentir de
as mais tradicionais devem ser entendidas em sua dimensão de recriação, reinvenção novo o cheiro da serragem! O cheiro do perfume da Adelaide
e transfiguração e não como simples e mecânicas transposições de sobrevivências em (Nome sujeito a mudanças! Perguntar o nome da mãe da Ângela
técnicas absolutamente idênticas às feitas no passado. O importante é perceber, so- e adaptar)... Ahh Adelaide! (Suspiro!) Parece ontem que fugistes
bretudo, a permanência dos significados para os sujeitos. com nosso circo! Posso vê-la bem ali! (aponta) Girando, girando,
A admiração e o respeito dos alunos também têm muito a ver com a dedicação, girando, girando... e depois agradecendo...” 69
compromisso e responsabilidade que a maioria deles demonstra com o ensino de circo,
mesmo trabalhando em condições de trabalho bem distantes das que realmente me- O esquecimento significa a perda de nossa relação com o passado e, portanto, com
recem. Demitri Manaf expõe este problema de uma forma bastante representativa: uma dimensão do tempo e com uma dimensão de nossa vida. Esquecer é ficar privado
de memória, de história, é perder alguma coisa. Interessante como o cheiro parece ser
“O que é que acontece? A Escola ela não tem muita autonomia de um elemento central nessas recordações.
gestão. A grana não ta aqui pra ser administrada. Tudo tem que Mas, para entender a real dimensão desta montagem que celebra estas memórias
ser requerido pra Funarte. Aí esse processo é muito burocrático circenses é importante perceber em que contexto histórico ela acontece. Sem isso, cai-
e lento. E aí o que acontece? Os professores, a grande parte deles, ríamos no equívoco de analisar o objeto fechado em si mesmo, sem as suas conexões e
principalmente os mais antigos, eles tem contrato de auxiliar de relações com a realidade mais ampla.
serviços gerais. Isso não é culpa da Escola. É um problema geral O espetáculo acontece em meio há um frenesi globa(na)lizado acerca do “deus novi-
do sistema de artes no Brasil. Eles recebem menos do que um dade”. Numa época, onde a indústria da amnésia produz como mercadorias o esque-
aluno do processo de formação da bolsa. Ganha 2000 por mês cimento e o silêncio. A desvalorização da memória apresenta-se em situações como, o
e o professor ganha 1200, 1300, 1600. É um processo delicado ver descaso pelos idosos - considerados inúteis -, na forma como a indústria da construção
um senhor de 60, de 70 anos ganhando essa miséria. Eu acho que civil destrói quase cidades inteiras através da demolição de suas casas, prédios, pra-
isso desmotiva o professor a estar acordando às quatro horas da ças e acima de tudo no culto fundamentalista do “progresso” a qualquer custo.
manha. Duas horas de viagem pra chegar aqui. Aí o aluno que A destruição do passado, ou melhor, dos meios sociais que ligam nossas experiên-
ganha mais nem vem. É uma coisa que me entristece um pouco. cias pessoais às das gerações anteriores -- é um das mudanças mais características do
(...) Então, você vê o profissional mal remunerado, mal valorizado final do século XX (e primeiras décadas do terceiro milênio. Quase todos os jovens de
dentro da maior instituição de ensino do Brasil relacionado hoje continuam crescendo numa espécie de presente eterno, permanente, contínuo,
as artes circenses, isso aí é entristecedor. Eu quando tive dentro do sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.
grêmio estudantil tentei batalhar por isso”. (Demitri) Com certeza, a ideologia mais conveniente e celebrada há um bom tempo é a ideo-
logia do progresso e da ciência. Na sociedade contemporânea há uma obsessão,
De fato, é uma situação de grande injustiça e falta de reconhecimento por parte uma compulsão patológica em torno do novo. Ela é fomentada pelo marketing e o
do Estado brasileiro do real valor destes profissionais. Esta triste realidade na época merchandising publicitário repetido incansavelmente na TV, no cinema, na internet
(de precarização dos direitos trabalhistas e de apenas um professor efetivo e todos e em outros meios de comunicação de massa. A defesa apaixonada do avanço indus-
os demais terceirizados, sendo que uns contratados como auxiliares de serviço) já trial e tecnológico leva-nos precipitadamente a confundir passado com atraso, a iden-
foi denunciada em tempos anteriores pelos estudantes em apresentações, debates, tificá-lo com o inútil, o primitivo. Trata-se de ver esse “novo” de uma forma crítica.
vídeos e encontros. Por parte do Governo Federal não existe ainda uma carreira de Precisamos perguntar: novo pra quê? Qual é a sua finalidade e seu emprego social?
professores no ministério da Cultura. A Funarte abriu concurso e empossou, pos- Serve para quem? Prejudica a quem? Ou o novo não precisa justificar? Novo é novo e
teriormente, o Profissional de Artes Cênicas (PAC)/ instrutor circense (deveria ser está acabado?
professor circense!). Neste sentido, a proposta do espetáculo de dialogar, evidenciar e conservar esta
memória circense não é neutra ou pura. Assim, é importante perceber se não houve
neste caso, uma idealização como refletiu Ermínia Silva:
68 RICOEUR, Paul. “Hermenêutica e estruturalismo”. O Conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica.
Porto: Rés, 1988. p.28. 69 ROTEIRO DO ESPETÁCULO, p. 01 (fala de abertura).

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“Sempre tem uma certa memória de uma certa forma, que também Na Lira, as moças atuaram ao som da música Why Don’t do Right, com Julie Lon-
de uma forma ainda nostálgica, é idealizada, e que também don. Na parte do contorcionismo, a música escolhida foi a Pluk a Dub (Amsterdam
não era ideal.Havia ali um processo de formação mas que hoje é Klezmer Band). No Número de Paradas, a música Salomé – Club Mix – Chayanne.
idealizado”. (Ermínia) No dinâmico número de Malabares, a música Tank com Yoko Kano and the Seatbelts
from Cowboy Bebop, foi bastante apropriada. No número de Arame foi Mister tango
Pela própria maneira que o espetáculo foi estruturado, isto é, incorporando tam- com Massimo Castellina and his Orchestra a música selecionada. No Tecido usaram
bém alguns traços estilísticos de uma linguagem cênica hoje associada a algo mais I’ve Heard Sing Before, com o Swingtime Big Band. Jumpin’Jack com Big Bad Voodoo
contemporâneo, penso que sutilmente ele nos mostra exatamente que o amor pelo Daddy deu o ritmo no número de Báscula. No Número Coletivo final com pirâmides e
passado nada tem a ver com indiferença pelo presente. Pois ao contrário do senti- canastilha, Wartime Dancing caiu como uma luva.
mento nostálgico, que é apenas uma evasão de um presente para um passado pleno e Neste espetáculo três músicas do repertório foram executadas pela banda romena
agradável, a memória é tratada como a valorização presente de certo passado. Não faz Fanfare Ciocarlia: no número dos Dândis escolheram Moliendo Café, no número de
apologia de um passado morto e enterrado que nada tem a ver com o presente. Chicote e da Macaca do Latur, usaram a música Foxtrot e na Corda Indiana, a vi-
Afinal, a preservação desta memória pode trazer um sentido para a história em brante Golden Days. 71
suas vidas, bem como, resgatar a consciência de que todas as pessoas (sem exclusão A utilização da música neste e nos outros números foi ao mesmo tempo uma técni-
de nenhuma) são sujeitos históricos. A memória pode nos devolver a relação profunda ca e um processo de criação. Técnica porque dá o ritmo dos números. Como processo
com a experiência humana ao se constituir num apoio decisivo para o estabelecimen- de criação, a música envolveu as etapas de pesquisa sonora, seleção e ordenação do
to de nossa posição no mundo. A memória pode ser a seiva que alimenta a coragem. material que fosse mais representativo do universo encenado. Boa parte deste traba-
Tudo que tem memória tem um valor concreto, um interior, uma qualidade. A quali- lho ficou também a cargo de Brunna Mayernyik, diretora do espetáculo.
dade é o que singulariza as coisas e cria uma atmosfera de significados à sua volta. A
memória pode fazer ver faces do mundo que a época tende a encobrir. 70
Ao contrário de uma visão passadista, defendem uma visão criadora, inspiradora
e compromissada com o seu tempo e lugar. Assim, as “memórias” do circo “familiar/
tradicional” ajudam a estimular e fomentar a criação e uma produção com caracte- FIGURINOS - Entre Plumas e Lantejoulas
rísticas próprias. Sim, elas estão bem ativas nesta montagem feita no “aqui e agora”
e para as pessoas da atualidade. Em suma, a pesquisa desta memória atenta para o O figurino foi um elemento que chamou atenção no espetáculo pela beleza do aca-
fato que a arte do circo é fundamentalmente uma relação que se cria entre seres vivos. bamento e diálogo com o tema. Merece que se discuta um pouco mais sobre o assunto:
Circo é encontro, é uma encruzilhada onde passado e presente, corpo e espírito, rea-
lidade e sonho se fundem. “A pesquisa foi pegar fotos antigas deles pra ver como eles se ves-
Debaixo da lona ou a céu aberto, a arte do circo é um dos últimos abrigos da as- tiam. Teve uma oficina de figurinos que a gente pode discutir
sociação de seres humanos, da simples reunião de pessoas com interesses estéticos como seria o figurino geral do espetáculo. Teve uma linha. Teve
comuns. Ele não desapareceu nem desaparecerá, porque esta é uma comunicação uma unidade nos figurinos.” (Lívia Brandão)
direta do artista para o público e vice-versa. É uma via de mão dupla que oferece
um prazer estético muito preciso e uma vivência que jamais poderão por sua própria A fala da Lívia deixa claro como houve um estudo por parte dos participantes para
natureza ser substituídos pela reprodução de uma filmagem ou a transmissão ao vivo conhecer mais sobre as “memórias” tratadas no trabalho. Isso parece indicar que o
pela internet, cinema ou TV. figurino também pode revelar muito da linguagem e da atuação dos performers.
O “figurino geral”, possivelmente levou em conta uma série de fatores como a épo-
ca, os aparelhos, o local, o perfil, o tipo físico e outras orientações da diretora. Depois
de discutidas e aprovadas as propostas de figurinos, contrataram principalmente a
SONOPLASTIA – no Compasso da Polifonia Edivalda uma costureira que já trabalha um bom tempo com os alunos da Escola.
Vários figurinos do número de Báscula foram feitos por Yasmin Picchetto, também
Com exceção de alguns poucos momentos, a música está presente neste espetáculo participante da trupe. Outros ainda foram feitos pelos bolsistas.
durante o tempo todo. O repertório é eclético, mas sem perder a identidade “tradi- Entende-se aqui o figurino abarcando as roupas e os acessórios dos artistas, proje-
cional”. Só para lembrar-se de algumas, no número de Mágica, a música escolhida
71 Fanfare Ciocarlia é uma banda de música cigana que conquistou os EUA, Japão, Austrália, Europa, o mundo, enfim.
foi Ethiopino, com o Jungle by Night. Houve boa sincronia entre a cena e a música, Considerada por muitos, uma das maiores bandas ao vivo, com a responsabilidade de manter a energia e o verdadei-
principalmente no fim. ro espírito da música cigana. Os integrantes da banda são todos ciganos e nasceram na aldeia escondida no vale de
Zece Prajini, no nordeste da Romênia. Segundo estudiosos, na banda pode se encontrar vestígios da antiga tradição
70 GONÇALVES FILHO, José Moura. “Memória e Sociedade”. In: Memória e Ação Cultural. São Paulo: DPHM/SMC/ otomana de bandas de música que acompanhavam exércitos, casamentos e funerais que já havia muito tempo morrido
PMSP .1992. no resto da Romênia. (https://en.wikipedia.org/wiki/Fanfare_Cioc%C4%83rlia acessado em 04/04/2016)

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS
tados e/ou escolhidos de acordo com as necessidades do roteiro, da direção e, sobretu-
do, das possibilidades orçamentárias.
Cenografia do Papelão e da Imaginação
Já no início da apresentação
Buscaram na cenografia mais um elemento da linguagem circense que possibi-
no número dos Dândis perce-
litasse uma leitura mais fluida do espectador para a compreensão da proposta do
be-se a intenção de comunicar
espetáculo como um todo, segundo Lívia Brandão:
através de suas roupas quem
são e o que estão fazendo. Os
“Antigamente, o circo era uma coisa bem preparada para rece-
três usam o mesmo uniforme,
ber o espectador. Quem ia pro circo ficava maravilhado com o
calças pretas, coturnos pretos,
ambiente, as cadeiras, as estruturas, o tapete vermelho, o jeito que
suspensórios pretos, camisetas
a contra-regragem trabalhava. A gente quis fazer uma coisa que se
brancas, Gabriel usa uma boina
remetesse a esses tempos dourados. Então, pra mim foi mui-
com protetores de orelhas. As
to importante compor a cenografia pra poder compor com toda
roupas usadas por Rafael, Dani-
a atmosfera do circo tradicional que a gente queria mostrar.
lo e Gabriel acentuam o caráter
Emocionar as pessoas que estavam assistindo. Ver que aquilo é
simbólico da cena. No número de
uma coisa importante, faz parte da história. Que aquilo foi cons-
Corda indiana as meninas usam
truído e a gente tá construindo em cima disso.” (Lívia)
collant preto de regata, detalhe
Oficina Figurinos. Foto: Cláudio Alberto dos Santos. ENC. 08/05/14
triangular prateado na frente;
As evidências mostram que a cenografia não foi um fenômeno isolado da proposta
pompons brancos atrás na altura da cintura, dois leques brancos cada uma; sapato
da direção, pelo contrário, dialogou com a pesquisa de linguagem escolhida para en-
feminino preto de salto por volta de 6,5cm sola em borracha com fivela; arranjos bran-
cenação. A proposta da “atmosfera do circo tradicional” foi a base que possibilitou a
cos ajudando a manter o cabelo preso e lindas gargantilhas prateadas.
criação dos elementos cenográficos.
É claro que se trata de um figurino trabalhado com riqueza de detalhes buscando
Sejam as mandalas desenhadas e dependuradas como móbiles pelo pátio, a facha-
valorizar esta característica das tradições a que se refere o espetáculo. Percebe-se
da do circo, o tapete vermelho, ou os murais com fotos dos professores, em todos eles
como ele é mais que uma simples veste, mais que uma roupa. Nota-se um simbolis-
percebe-se ambientes, e uma sucessão de imagens que também constituem a narra-
mo, uma carga histórica, um depoimento sobre todo o panorama do espetáculo com
tiva da encenação, tornando-se parte viva e atuante da mesma. Funcionaram como
funções muito específicas dentro do contexto.
uma das maneiras de preparar a plateia para que recebesse com mais familiaridade
Nesse sentido, vale lembrar também dos enormes sapatos usados pelo palhaço
o conteúdo do que iria ser mostrado.
Arrepia, das claves prateadas e dos figurinos dos malabaristas (em calças pretas,
Mas, como foi realizado este processo de produção da cenografia? Quem participou
camisas brancas de manga curta, coletes pretos) e das malabaristas: duas meninas
além da Lívia e da Flávia? Como foram cobertos os gastos e investimentos? Lívia aju-
usando collants azul (Luiza e Dira) e duas usando collants brancos brilhantes; meias
da a trazer algumas pistas para responder a estas questões:
calças brancas e botinhas pretas. Tudo muito tradicional, inclusive com maquiagens
e arranjos de cabelos por parte das moças. Quase clichês visuais, para facilitar sua
“A cenografia foi feita com pouquíssimo dinheiro. É uma ex-
identificação no picadeiro.
periência que eu já havia tido. Sou formada em arquitetura e
Enfim, vários figurinos receberam uma atenção como é o caso do figurino da Maca-
quando eu era estudante a gente fazia umas festas para arrecadar
ca do Latur, do Mágico com suas tradicionais cartola e casaco, do número de Tripézio
para o centro acadêmico. Então, a gente se virava com pouca grana,
com collant macacão de manga longa branco com detalhes em preto e do número de
com pouca estrutura. A gente trabalhava muito com cenografia
Arame com o “homem mais forte do mundo” representado por Fabiano se exercitando
para atrair as pessoas. Foi uma experiência que eu trouxe da
com uma barra de alteres de isopor hilária, sem falar da “mulher barbada” com seu
arquitetura e eu pude aplicar na Escola de Circo tentando trazer
leque e lenço, também bastante engraçados.
uma união das pessoas. Todo mundo construir junto. A gente
Desse modo, o figurino geral escolhido pela coletividade após discussões cumpre
fez a cenografia coletivamente. Cada um na hora que estava livre
funções como marcar a própria presença com uma dimensão histórica, chamar a
chegava lá e pintava um cartaz ou fazia umas mandalas grandes.
atenção pelos brilhos e lantejoulas, pôr ênfase em determinadas partes do corpo. Em
Também tem o processo dos bastidores ali e ele foi importante
suma, o figurino foi uma parte importante do espetáculo, pois através dele se criou
para a gente se juntar e para a gente ver a força que essa
uma linguagem através das formas, cores, texturas, que transmitiram várias infor-
linguagem tem”. (Lívia Brandão)
mações da época, da linguagem circense. Esses figurinos foram quase arquetípicos
para facilitar sua identificação no picadeiro. Em suma, ofereceram elementos neces-
Esta capacidade demonstrada por esta turma de alunos em utilizar os parcos re-
sários para expressar com maior amplitude o próprio sentido do espetáculo.

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cursos que encontraram ao alcance das mãos e ainda assim fazer um espetáculo belo Mais uma vez, o caráter coletivo deste trabalho pode ser visto em situações como
e verdadeiro é para mim um símbolo do poder maravilhoso que as pessoas têm de se estas. Frente à inexistência de dinheiro para a Escola alugar os equipamentos o
libertar das adversas circunstâncias externas, de transformar o mundo, de transfigu- Prof. Marcelinton apelou para laços de cooperação e auxílio mútuo. Mostrando
rar sua própria matéria. Isto é válido para outros espetáculos de formatura da ENC. assim como a rede de relações mesmo em uma capital, uma metrópole, pode se
Nesse sentido, também pautar por princípios vitais como a solidariedade. Sem esta iniciativa, os alunos
nunca me esquecerei do es- provavelmente não teriam as condições básicas para apresentarem dignamente seu
petáculo InVersus dirigido espetáculo de formatura:
por Glaucy Fragoso.
A limitação imposta pela “Na verdade, a iluminação apareceu de última hora também. A
carência de verbas destina- gente nem contava. A gente só tava contando com as duas luzes
das especialmente à produ- amarelas da Escola e só! (risos). No último dia o Marcelinton
ção dessa cenografia exigiu levou a iluminação e tudo. A fumacinha ficou legal. Pra mim foi
que a mesma fosse o mais tudo novidade em criação de espetáculo”. (Felipe de Abreu)
econômica possível. Os alu-
nos a pagaram através de Sem dúvida nenhuma, a atitude do professor foi fundamental para a qualidade
uma “vaquinha” onde cada estética geral do espetáculo. Todo o trabalho de treinamento e preparação dos artis-
um contribuiu com uma pe- tas corria o sério risco de não ser apreciado como devia por falta dos equipamentos e
Foto: Cláudio Alberto dos Santos. ENC. Rio de Janeiro. 2014. equipe técnica para fazer a iluminação cênica.
quena quantia de dinheiro.
Quem assistiu a apresentação viu como a luz tem o poder de editar a cena, de
Além disso, usaram o papelão como base das mandalas e cartazes valendo-se de um
narrar onde ela estava acontecendo e de dirigir a atenção do público. Por exemplo,
mínimo de elementos que, diante dos olhos da plateia, adquiriram um aspecto essen-
na cena dos Dândis na abertura do espetáculo, a luz é basicamente uma luz branca
cialmente simbólico.
frontal e um contra luz a direita. Somente metade da cortina fica iluminada. Quando
No picadeiro mantiveram a “tradição”, isto é, picadeiro vazio de elementos ceno-
o circo chega na parada, há focos de luz iluminando a entrada dos artistas no tapete
gráficos, limitando-se à utilização dos aparelhos e objetos de manipulação em cena.
vermelho. Nos dois casos os focos direcionam o olhar da plateia. No finalzinho, quan-
Interessante que historicamente, a itinerância das companhias circenses, assim
do passam pela cortina as máquinas de fumaça colocadas nos lados esquerdo e direito
como a escassez de recursos, acabaram por exigir que a cenografia circense fosse
(abaixo do nível do picadeiro) criam um clima mais onírico. Para o palhaço Arrepia e
extremamente compacta e, “ao mesmo tempo, reduzida a um mínimo de elementos
para as meninas da corda indiana a luz é branca e frontal. Assim que sobem os moving
concretos”.72
heads movimentam os focos em azul nos mais diversos lugares. Em certos momentos,
piscam luzes que iluminam o alto da lona como se fosse uma luz estroboscópica. Na
trupe Carlo de Malabares, além das luzes frontais usam duas contraluzes fixadas nas
torres traseiras da lona. Variaram as cores entre o azul, o verde e o vermelho.
Foram usadas luzes como PC’s, Fresnel e PAR 64 de led para efeitos difusos e
ILUMINAÇÃO – Gente é para Brilhar! uniformidade no conjunto da luz. Geralmente, foram usadas para efeito aberto e di-
fuso, contribuindo para dar uniformidade e espalhamento, embora a luz branca que
iluminou o Artur no número de mágica oscilou em alguns momentos deixando alguns
Durante e após a reunião no dia 05 de junho, na véspera da apresentação a equipe lugares um pouco menos iluminados do que os outros. Boa quantidade de fumaça na
trazida pelo Marcelinton montava o equipamento de luz. Ele mesmo emendava fios, entrada das meninas da Lira, mas pouca luz do lado esquerdo do picadeiro visto da
enrolava os cabos. Participava ativamente de todo esse processo. plateia. Parece que se esqueceram de ligar a contraluz correspondente. Na parte do
Contorcionismo a iluminação variou entre o verde e o azul escuro. Mas, cabe destacar
“Este equipamento de som e luz não foi alugado, isso aqui é ami- que a maioria dos números recebeu predominantemente a combinação de luz branca,
zade. São uns amigos que vieram dar uma força. E você sabe fumaça e o dois moving head nervosos.73 Talvez tenham faltado um pouco os focos e
que isso faz toda a diferença. Com certeza. Isso é pra mostrar recortes acentuados das luzes elipsoidais.
mais uma vez que o ser humano não vive sozinho. Dinheiro No entanto, o fluxo da luz permitiu selecionar, enfatizar, aproximar ou distanciar
não serve pra nada! (pausa) Mas, se quiser dar o dinheiro pra o objeto dos olhos do espectador. A intensidade da luz destacou a presença dos per-
mim eu aceito. (risos) Essa aqui não teve dinheiro. A galera que formers, revelando detalhes dos figurinos, das texturas, dos volumes, da altura, do
me estimulou a fazer, por isso que eu to aqui. Galera boa! A leva perfil, os contornos e da profundidade do picadeiro da lona azul da ENC.
desses formandos foi um astral bom.” (Marcelinton)
73 O moving head se destaca por ser um equipamento que possui várias funções, entre elas: cor, desenho, strobo,
72 ANDRADE, José Carlos. O Espaço Cênico Circense. Op cit. p.13. foco, entre outras. A qualidade e função deste equipamento variam de cada fabrica

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Considerando a forma “de última hora” como aconteceu a iluminação constata-se, Alexandre Santos) fazer uma síntese das ideias e sentimentos da coletividade. Em
todavia, que ela foi bastante funcional, pois, o Marcelinton já conhecia bem o rotei- alguns momentos a sua autoridade foi questionada por alguns colegas. Também fi-
ro de movimentações, entradas e saídas do espetáculo, por ter acompanhado prati- zeram reclamações que ela deveria saber escutar mais e gritar menos. Esta é a sua
camente todos os ensaios no picadeiro. Assim, ele sabia inclusive a sequencia dos primeira experiência na área de direção. O elenco é bastante numeroso e heterogê-
números e onde deveria iluminar. Demonstrou ter conhecimentos suficientes para neo. O tempo, por sua vez, bastante escasso. Diante destas condições a Brunna se
definir equipamentos, localização de fontes de luz, estabelecer combinações, calcular saiu muito bem na direção, mesmo com certo autoritarismo ela conseguiu valorizar e
quantidade de quilowatts e definir focos e ângulos. fortalecer o poder desta coletividade:
Foi armado um pequeno tablado que funcionou como a cabine técnica de luz e som.
Nele colocaram duas cadeiras para os dois operadores. A mesa de som usada foi uma “O processo, a vivência que a gente teve com o pessoal, o tempo
ROXY – Renix 2442 FX. Usaram microfones shure sem fio. Também havia um rack da montagem, o sofrimento com o figurino, com os números que
de dimmers e a mesa de luz. não encaixavam pra direção do roteiro. Coisas boas e ruins,
né. O que mais me marcou foram os números que eu participei e
a união do pessoal. Isso é o que eu tenho mais memória e o que
eu mais quis guardar mesmo.”(Sid)
Direção Circense – Na discussão sobre o processo criativo do espetáculo pode ser vista a atuação da
norteando os rumos da Felicidade Coletiva direção buscando melhorar a expressividade, o uso do tempo e do espaço do elenco. É
claro que as propostas não agradam a todos o tempo todo. Dirigir também é conduzir
e organizar, ou seja, ter noção geral do que se passa naquela determinada situação
Como já foi visto na discussão do processo, neste espetáculo Brunna Mayernyik, e a partir daí estabelecer a organicidade e unidade que todo trabalho em grupo ne-
além de se apresentar nos números de Lira e de Tripézio, atuou também como a dire- cessita.
tora da montagem. Isto é, ela foi a pessoa encarregada de montar o quebra-cabeças do Brunna com a ajuda de seus assistentes de direção (Greice e Fernando) conse-
espetáculo, assumindo a sua responsabilidade estética e organizacional: guiu estabelecer um planejamento e cronogramas eficazes para usarem da melhor
forma o pouco tempo que dispunham. Nesse percurso o elenco trabalhou os ensaios
“A gente trabalhou com esse modelo. Vários nichos, várias moda- de marcação (composição e disposição espacial dos performers). Nos primeiros en-
lidades se dividiram para treinar cada uma o seu número. Tinha saios a direção usou a marcação não para fixar, mas para organizar. Mais adiante
a diretora que era a Brunna. Ela ajudou a dar o fio desse trabalhou no que pode ser chamado de ensaio de detalhes (atenção às minúcias e
espetáculo para ele ser uma unidade. E acho que foi o melhor pormenores), principalmente, os ligados ao ritmo e as entradas e saídas dos artistas.
espetáculo que eu participei.” (Arthur Marques) Em seguida, vieram os ensaios corridos com o máximo de elementos do espetáculo
como figurino, sonoplastia, etc (em que Brunna ao invés de ficar interrompendo a
De acordo com a fala do Arthur é possível perceber como a Brunna “ajudou a dar o atuação e dando orientações, apenas tomou nota dos erros e discutiu depois na roda
fio” da encenação escolhendo, burilando e selecionando o que tinham de melhor para de avaliação). Foi nestes ensaios que percebeu que o estabelecimento do ritmo certo
ser mostrado em cena. A escrita do roteiro foi um grande passo rumo a uma propos- estava ligado ao estabelecimento da fluência necessária à apresentação da obra de
ta que pusesse fim as intermináveis discordâncias entre os membros da turma. O arte. Quer dizer, havia uma necessidade ainda maior do que pensava de repetição e
roteiro condensava uma ideia de organicidade, totalidade e unidade estéticas. Além ensaio para ganhar a fluência e o ritmo desejados. Isto é, buscava uma apresentação
disso, permitia a todos extravasarem o sentimento de gratidão por tudo que tinham que acontecesse de uma maneira rápida, intensa e vigorosa. Nos dias anteriores da
vivenciado. apresentação fizeram ensaios gerais que a princípio, deveriam transcorrer como o
De fato, durante um tempo foram feitas reuniões para discutir o espetáculo e as espetáculo. O elenco ouviu as considerações de colegas e professores que assistiram
divergências eram acentuadas sobre o que deveria ser feito. Depois da discordância a estes ensaios abertos.
com o roteiro proposto pelo Cacciolari, ninguém se dispôs arcar nesses tempos ini- Após o fim da correria para deixar tudo pronto nos mínimos detalhes, Brunna
ciais com a responsabilidade da direção. Isto tornava as coisas mais instáveis ainda. pode respirar um pouco e após a apresentação, expressar o significado de todo o seu
Até que Greice Kelly no dia 14 de março propôs no grupo do Facebook que a Brunna envolvimento com aquele processo:
dirigisse o espetáculo. Vannessa também reforçou a proposta/convite. Após um tem-
po para pensar, Brunna assumiu este papel e colaborou imensamente para que este “Só tenho o que agradecer a todos por me ajudarem a colocar
fosse “o melhor espetáculo” da vida do Arthur e de muitos outros colegas de curso em pratica essa ideia, pela oportunidade de estar a frente deste
dele. espetáculo e ainda poder dividir o palco com cada um de vocês.
Brunna não foi um Oráculo, mas alguém que conseguiu (com a ajuda principal- Foi uma experiência incrível do começo ao fim. Os pontos ne-
mente de Greice Kelly, Fernando Felix, Luiza Fernandes, Taígor, Lívia Brandão e gativos, com certeza só vieram para acrescentar. Acho que cum-

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ESPETÁCULOS 2014 MEMÓRIAS

primos nossa missão e esse é o melhor presente que eu poderia diferencia um pouco de experiências como a do Circo Nerino, por exemplo.74 O uso
levar desse período da minha vida. Ontem um ciclo se encerrou da figura do apresentador mantém o caráter épico e comunicativo do espetáculo, sem
e, consequentemente, outro se iniciou. Que cada um, em seu novo abdicar também de momentos do gênero dramático (diálogos do Arrepia). O apresen-
ciclo, se realize! Um obrigada especial à todos que me ajuda- tador dirige-se a plateia diretamente, comentando situações, anunciando entradas,
ram na produção, não me deixando perder as estribeiras de vez despedindo-se, ou seja, esta é uma cena aberta à interação e a presentificação do
e a todos que se esforçaram para me aguentar no stress de momento que dialoga com as antigas tradições de ruas de várias culturas.
cada dia! Hahahha. Foi lindo lindo lindoooooooo! OBRIGADA!
MEMÓRIAAAAAAAS!” (Brunna Mayernyik)

A experiência da direção foi considerada como uma oportunidade que ela deveria
agarrar e não um fardo que deveria carregar. Estar “a frente” significou se responsa- DESPEDIDA –
bilizar pelo resultado do arranjo cênico, mas também, estar no centro do cruzamento “de repente, não mais que de repente”
(a grande articuladora do processo). Sua direção transcendeu de longe a simples
marcação dos lugares que os circenses tinham de ocupar no picadeiro e de seus deslo- Os momentos que seguiram ao fim do espetáculo foram bem intensos e merecem
camentos e movimentos no decorrer do espetáculo. Foi mais do que a soma das partes. ser registrados aqui. Com a palavra Luiza Fernandes:
Foi uma totalidade integrada que mostrou a harmonia, o equilíbrio entre o roteiro e
sua realização o que requer a intervenção de uma verdadeira artista, de uma circense “Eu sabia que a gente poderia fazer o melhor dentro do que a gen-
que busca ter o pleno domínio dos seus meios, bem como, conhecer as sutilezas do ofí- te tinha de possibilidade de tempo, de luz, de figurino, de acessório,
cio. Assim, Mayernyik conseguiu tornar materialmente evidente o sentido profundo eu acho que a gente fez um trabalho incrível, porque realmente é
do roteiro escrito. Para isso, dispôs de todos os recursos cênicos ao seu alcance, como um trabalho grupal. Você vê a cena e reconhece ali um grupo
a sonoplastia, a iluminação, a cenografia e os figurinos, entre outros. que se formou junto, que trabalhou junto durante um tempo e teve
Mesmo que em alguns momentos tenha se considerado o centro de gravidade do uma história muito intensa durante a permanência na Escola e
grupo, Brunna também teve a generosidade suficiente para perceber que não deveria que ali era o momento da maioria dizer adeus. Então teve
ter uma concepção prematuramente acabada, em vez de experimentar. Assim, esteve uma emoção muito grande dos participantes porque a maioria ia
aberta ao devir e não quis fazer tudo sozinha, em vez de deixar os colegas descobrirem embora do Rio de Janeiro de volta para as suas terras ou iria para
a importância de também participarem ativamente. novos lugares fora do país. Foi um momento bem emocionante. É...
foi realmente a despedida e dentro do espetáculo já começou
essa despedida, por isso que envolveu tanta emoção por parte dos
participantes, né? Teve gente que foi embora no dia mesmo ou
Mestre de Pista – o Épico Circense no outro dia cedo. E aí tem gente que até hoje tá na Escola mas
a maioria tá espalhada aí pelo mundão. ” (Luiza)
Como já foi mencionado antes, este espetáculo faz uso de dois recursos para en-
cadear os números: a figura do palhaço Arrepia com suas memórias e a figura do Aisha Brito fez questão de dar o seu depoimento na mesma noite sobre este mo-
apresentador. No roteiro ele é chamado de “Mestre de Cena” e possui poucas falas. mento, em sua página do Facebook:
Durante o processo foram incorporando outras participações com falas e marcações
específicas dialogando com os palhaços. “Hoje foi um dia muito especial para mim porque pude dividir o
No espetáculo O Mestre de Pista também assume funções importantes como as palco com pessoas incríveis que eu admiro muuuuuuuuito e sen-
mencionadas abaixo pela professora Ângela tirei muuuuuita falta ao longo do meu dia-a-dia. Hoje foi o espe-
táculo de formatura dos bolsistas de 2013 e sou muito grata por ter
“O apresentador tem que estar ligado no espetáculo todo, por- me formado com vcs... vocês são grandes artistas e amei ter pas-
que se acontecer um imprevisto ele tem que segurar a situação. sado o ano e ter podido aprender um pouco com cada um de vcs...
Ele tem que conhecer a sequencia do artista pra saber”. Tenho certeza que nossos caminhos vão estar sempre se cruzando,
(Ângela Cerícola) por isso não digo adeus, mas sim até logo queridos amigos!!!
Para aqueles que continuarem na ENC até breve e para aqueles que
Embora, contracene com os palhaços ele não atua muito como o “diretor de cena seguirão seus caminhos, brilhem!! Enfim, FORMADOS!!! =))))
do picadeiro”. Isto é, não é efetivamente “quem comanda a montagem e a desmonta- (Aisha Brito)
gem dos aparelhos”, e a apresentação do espetáculo como um todo. Nesse sentido, se
74 AVANZI, Roger e TAMAOKI, Verônica. Circo Nerino. São Paulo: Pindorama Circus: Códex, 2004. p. 30.

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ESPETÁCULOS 2014

Os momentos após o espetáculo foram de muitas despedidas. Muita gente estava


partindo já naquela noite ou para os próximos dias. As falas acima são bastante ní-
tidas sobre o que a maioria daqueles participantes estava sentindo. Afinal a viagem
juntos tinha durado praticamente um ano. No caminho não faltaram os obstáculos.
Mas, até nesses momentos a força deste coletivo compensava a fraqueza do indivíduo
ajudando-o a transpor abismos. Todavia, chegou o momento de cada um seguir via-
gem sozinho. Embora, não fossem os mesmos de quando chegaram à Escola. Alguns
mudaram muito, outros nem tanto. Mas, todos se transformaram neste percurso.
Assim, as experiências compartilhadas no caminho ajudarão nesta nova etapa, neste
novo ciclo da vida.
Essa talvez seja a grande lição da Escola Nacional de Circo, o seu enorme potencial
em transformar as pessoas, a sua eficácia simbólica, enfim, a sua magia em mudar o
estado emocional, intelectual e existencial das pessoas. O espírito da ENC contagia e
transforma as pessoas pelo resto da vida. Mas, fica por parte dos que estão partindo
ou dos que estão ficando aquela sensação da certeza da saudade futura e da esperan-
ça de um reencontro, quem sabe, da turma. Para alguns esta despedida foi dor. Mas, a
maioria sabia que a caminhada continuava e que aqueles tempos não voltariam mais.
Afinal, todo começo tem um fim.
E todo fim é um novo começo.
Vida que segue.

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Fascínio Circense Cláudio Alberto dos Santos

DA PERFORMANCE EM SALA
“Escola é...
O lugar onde se faz amigos
Não se trata só de prédios, salas, quadros,
Programas, horários, conceitos...
Escola é, sobretudo, gente,
Gente que trabalha, que estuda,
Que se alegra, se conhece, se estima.
O diretor é gente,
O coordenador é gente, o professor é gente,
O aluno é gente,
Cada funcionário é gente.
E a escola será cada vez melhor
Na medida em que cada um
Se comporte como colega, amigo, irmão.
Nada de ‘ilha cercada por todos os lados’.
Nada de conviver com as pessoas
e depois descobrir

ETNOGRAFIA Que não tem amizade a ninguém


Nada de ser como o tijolo que forma a parede,
Indiferente, frio, só.
Importante na escola não é só estudar,
não é só trabalhar,
É também criar laços de amizade,
É criar ambiente de camaradagem,
É conviver, é se ‘amarrar nela’!
Ora, é lógico...
Nunca escola assim vai ser fácil
Estudar, trabalhar, crescer,
Fazer amigos, educar-se,
Ser feliz”.
(Paulo Freire)

188 189
ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE CANASTILHA

CANASTILHA pessoas, com dois ou mais bases (portôs) e pelo menos um volante. O nome banquine,
provavelmente, é uma referência a plataforma que os portôs (vide foto a seguir) for-
mam com seus braços e mão entrelaçados que sustentam e projetam o volante no ar
–Trampolim Humano- para realizar seus saltos mortais e outros truques enquanto voa. 76
Posto isso, é importante falar inicialmente sobre a vida artística e formação de
As aulas da disciplina de Canastilha aconteceram na sala de dança de segunda Alexis Reyes Gonzales. Mais conhecido pelo apelido de “Papito”, este alegre e exigente
a sexta-feira, entre 14h48minm e 15h58minm e foram ministradas pelo professor professor começou sua trajetória nas artes corporais com apenas cinco anos de idade.
cubano Alexis Reyes Gonzales. Este é o ultimo horário no turno da tarde. Antes dessa Até os quatorze ele aprendeu e treinou ginástica acrobática em Havana, Cuba. Foi
aula o professor já ministrou as aulas de Quadrante americano e Mastro chinês sob quanto sofreu um acidente que o fez trocar o esporte pela arte ao entrar para Escola
a lona da Escola.75 Nacional de Circo de Cuba. Lá teve uma formação versátil e tradicional de quatros
Iniciei meu estágio de observação no dia 12 de fevereiro de 2014, após conver- anos. Logo em seguida ingressou na Faculdade de Educação Física. Até a conclusão
sar com o Alexis sobre meus objetivos e metodologia de trabalho. Ele ficou bastante do curso superior levou paralelamente sua carreira artística no circo, mesmo com
contente com o interesse despertado e desde então sempre foi bastante atencioso, todas as dificuldades impostas pelas sucessivas viagens. Afinal, no mundo do circo
respondendo as minhas perguntas e me ajudando no que fosse possível. Acompanhei hoje você está aqui amanhã pode estar em qualquer lugar do mundo. Mesmo assim,
praticamente todas as aulas. depois conseguiu concluir o mestrado de ginástica acrobática em Educação Física.
A arte da acrobacia requer dedicação, esforço e vontade de superação. Necessita Em seguida, dedicou-se de corpo e alma aquilo que mais amava - a vida nômade do
também de uma entrega corporal intensa e completa para se romper com os medos artista circense.
e hesitações. Os alunos mais presentes e participativos nessa disciplina foram dois Com a palavra, Alexis:
alunos equatorianos do Curso de Formação Técnica - Sofy Pavón e Christian Javier e
os alunos bolsistas do Curso de Formação Básica: Fabiano Souza, Jana Serrat, Luiza “Quando regressei pra Cuba o Trio Bantu também estava de re-
Fernandes, Alice Tibery Rende, Danilo Lúcio Ribeiro, Gabriel Martins, Gian Lucas. gresso e tinham ficado dois integrantes no país onde estavam. Aí
A modalidade circense da Canastilha possui em seu repertório números de im- me chamaram pra fazer parte do grupo. Não é tão fácil assim estar
pressionante precisão, habilidades espetaculares e espantosa e agilidade do corpo lá. Tive que trabalhar pra conseguir meu espaço. Não tinham
humano. Também conhecida internacionalmente como “banquine”. Aliás, este é o muito a ver com o meu contexto, era um grupo negro de gente forte
termo mais utilizado mundialmente com suas variações de acordo com os idiomas. e eu era branco e magrinho. Eles trabalhavam especialidades
Isso é interessante de saber por que mostra como a ENC tem suas próprias tradições muito diferentes das que eu fazia. Tive que me adaptar. Fizemos
de conhecimento e como no mundo do circo há uma enorme gama de termos distintos vários números e ficamos vários anos trabalhando. Fazíamos
que são aplicados para no- Mastro chinês, Canastilha, Faixa e fazíamos Parada de manos”.
(Alexis)
mear o mesmo fenômeno.
Sabe-se que a Canasti-
lha foi bastante praticada Com este habilidoso e versátil grupo trabalhou em circos em várias partes do mun-
pelos italianos na Idade do como Europa, China, México, Canadá, Estados Unidos, ilhas do Caribe, Porto Rico,
Média, mas que sua ori- Panamá, República Dominicana e Brasil, entre outras. Um tipo de trabalho profissio-
gem se perde nas noites nal de viagens constantes em que a sua família é o seu grupo. Hoje está aqui, ama-
dos tempos. Dentre as nhã está lá. As pessoas não podem ser individualistas se quiserem manter por muito
pinturas rupestres anali- tempo um trio acrobático de circo como esse. A parceria e a responsabilidade devem
sadas por Alice Viveiros prevalecer. É trabalho em grupo. Mas, nem tudo é perfeito e aqui no Brasil o trio se
de Castro há uma imagem desintegrou.
que mostra formações e fi- Depois de um tempo aqui em nosso país, aproximadamente um ano, Alexis foi con-
guras numa atividade que vidado a ser professor na ENC, onde já está lecionando a mais de seis anos. Na Escola
lembra imensamente a ele lecionou aulas de várias modalidades:
Canastilha. Em suma, tra-
ta-se de uma modalidade “Você precisa ser versátil numa Escola Nacional de Circo. Tem
acrobática que envolve no Em primeiro plano a pegada da Canastilha sendo demonstrada por Roger muita demanda e muito aluno e você tem que poner em prática
mínimo um grupo de três
a esq. e Alexis Reys a dir. Ao fundo Christian e Sofy Pavón. todos os seus conhecimentos. Porque não somos muitos profes-
Foto: Cláudio Alberto dos Santos. 2014. Rio de Janeiro.
sores”. (Alexis)
75 Como pode ser conferido na GRADE HORÁRIA DO 1° SEMESTRE de 2014 – ESCOLA NACIONAL DE CIRCO.
76 ALBRECHT, Ernest. The Contemporary Circus: Art of The Spectacular. New York: Scarecrow Press, 2006. Geralmente é uma pessoa alegre e parece estar feliz em trabalhar na Escola.

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE CANASTILHA
Talvez a primeira e a indispensável “aptidão” que alguém deva ter pra trabalhar Além disso, aprendeu informalmente pelos circos e espaços onde trabalhou. Antes
como professor numa escola de circo é amar o circo e, sobretudo, amar ensiná-lo. de vir para o Brasil sempre atuava como o volante na Canastilha. Aqui por não ter
Não é se você é bom ou se é ruim. É sentir o circo pulsando como o sangue nas veias. encontrado um portô para atuarem juntos, desenvolveu também as habilidades do
portô para conseguir trabalho, pois, se não fosse assim, segundo ele, já teria morrido
“Eu vivo pra fazer circo, entiende? É uma coisa que não tem de fome.
explicación, sabe? É uma cosa que está em mim e eu vou morrer Alexis percebe diferenças e especificidades entre ser artista e ser professor. Na sua
com isso. Eu faço isso circo pra curtir e pra fazer as personas ver forma de ver, o professor tem a obrigação de ser mais versátil e experimental do que o
que o circo é uma cosa que vale a pena investir, entende? É uma artista. O professor além da sua especialidade deve saber um pouco de tudo. O artista
cosa que tem todo o valor. Cinco anos sem ver a minha família. para ser bom tem que se dedicar a uma única modalidade. A que ele trabalha na sua
Cinco anos sem minha mãe. Ô cara, é muito tempo. E eu não fico vida profissional. Em sua opinião, “o professor é outra coisa. É pesquisa, é trabalho. É
triste. Eu não vou transmitir minha saudade pro aluno. Eu outra dedicação distinta. É muita coisa, cara!”
to feliz. Minha mãe sabe que eu estou feliz. Ela sabe que eu faço Uma das características notadas na aula do Papito foi justamente o grande reper-
circo porque eu gosto. Foi minha escolha também fazer circo, tório de truques que ele ensina para seus alunos. Seria demasiadamente extenso
fazer arte. Você faz arte é pra alegrar o mundo. É uma maneira descrever todos. Isso seria muito longo, mas para tornar as aulas mais concretas e
de expressar a sua alegria. É uma maneira de expressar que reais serão apresentados pelo menos alguns.
você se sente bem. Se você se sente bem você vai fazer o público Nesse tempo muita coisa aconteceu. Gabriel Martins foi lançado da Canastilha
também se sentir bem. Isso é circo! Se me perguntassem: fica para um mortal atrás com dupla e tripla pirueta. Danilo Lúcio, Gian Lucas e o pro-
com essa mulher e não faz circo ou faz circo e fica sem essa mu- fessor é que fizeram a base de lançamento. Ele pousou num colchão segurado há mais
lher. Eu escolho o circo. Eu não deixo o circo por ninguém. Eu de um metro de altura por Cristian, Jana Serrat, Daniele Costa Ferreira, Sofy Pavon
nasci pra fazer isso. Eu vim ao mundo pra fazer circo. Pra e eu. Nesse dia, havia música cubana muito boa na caixa de som. Ela parecia per-
ensinar a fazer circo. Essa é a minha trajetória aqui nesse feitamente ajustada ao tipo de ação performada. Fabiano e Nina fizeram a base da
planeta.” (Papito) Canastilha e Alice Tibery executou o salto mortal atrás. O professor estava lonjando
Alice. Ele observou que ela estava inclinando o tronco um pouco para trás na saída e
Papito demonstra através da sua prática cotidiana que estas palavras não são va- isso tinha feito seu salto ir muito para trás. A idéia é que o volante após o salto mortal
zias. Há por parte dele uma grande dedicação e envolvimento enquanto professor de pouse no mesmo lugar de que saiu. Ou seja, os portôs ficariam mais plantados e não
circo. Chega invariavelmente as oito da manhã e teriam que sair em busca do volante. Mais adiante ela conseguiu realizar o salto pra-
sai as sete da noite. Ele se considera até mesmo ticamente no mesmo alinhamento da saída. Alexis pediu para ela executar o duplo
um pouco exigente demais para os padrões vi- mortal atrás tendo como portôs Danilo Lúcio e Davi Fernandes. Ela tentou algumas
gentes. Pois, sua formação na escola cubana de vezes sem obter muito sucesso na aterrissagem. Em alguns momentos faltaram e em
circo foi muito mais rígida. Teve vários professo- outros passaram os giros.
res russos. Há um tempo não muito distante era Em outra aula, Luiza Fernandes fez os saltos como volante, Danilo e Davi fizeram
muito comum os cubanos irem estudar na então a plataforma de lançamento. O exercício foi o mortal atrás. Na primeira tentativa ela
URSS – União Soviética. Por outro lado, tam- saiu do alinhamento e foi projetada para o seu lado esquerdo. Parece que a cabeça foi
bém graças aos acordos e intercâmbios envolven- para trás junto com os braços e o tronco ficou um pouco tenso. Na segunda tentativa
do os dois países socialistas era muito comum os acertaram e ela pousou nas mãos e punhos dos colegas. A postura foi bem melhor.
soviéticos, principalmente os russos irem para Papito falou para ela relaxar mais os braços e para não afobar. Ela sorriu feliz. De-
Cuba. Alguns acabaram ficando, trabalhando pois treinaram lançá-la num mortal atrás pousando no colchão. Em seguida fizeram
e morando lá. Portanto, na Escola Nacional de o mesmo com Alice, sendo que depois de algumas vezes o Papito pediu para ela fazer
Circo de Cuba há uma forte herança desse perío- o duplo mortal. Parece que a mão dela estava escorregando quando ela puxava os
do na constituição de sua didática e pedagogia joelhos no mortal grupado. O giro estava um pouco lento e depois foi acertando o tem-
de formação circense. Sem dúvida, esse legado po. Luiza também experimentou os duplos mortais atrás. Depois de uma dificuldade
a qual foi apresentado influenciou muito na sua inicial também conseguiu pousar no chão com equilíbrio.
carreira como artista e na forma como conduz Ao longo do curso, professor e alunos experimentaram também o duplo mortal
suas aulas. saindo da Canastilha e aterrissando no colchão gordo e depois o duplo mortal re-
Assim, sua formação em Canastilha foi prin- gressando para a Canastilha. Nas primeiras aulas usaram a lonja e algumas alunas
cipalmente com um professor russo que lecio- ficaram com algumas escoriações e hematomas de choques do corpo com a corda du-
nava na Escola em Havana. Ele tinha mais de rante os saltos em que saíam em diagonais. Algo normal no início. Como dizem na
Alexis em sua espetacular Parada sobre claves.
Reprodução Internet. 80 anos. Foi seu professor durante quatro anos. ENC “é o circo entrando”. De fato, o circo dói no corpo. São muitas horas levando o

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE CANASTILHA

organismo aos seus limites de força, flexibilidade e resistência física. Mas, para quem çamento não vem somente dos portôs. Há toda uma conexão entre portôs e o volante
quer aprender isso significa uma coisa boa. Possui o sentido de que vale a pena, pois que ajuda muito. Se o volante está em sintonia com os portôs a técnica acaba fluindo
o prazer do aprendizado e da superação é muito maior do que qualquer coisa dessas. muito mais tranquila. Não se torna desgastante nem para os bases e nem para o
Nas aulas mais para o fim do curso, Sofy Pavón praticou triplo mortal atrás com volante. Trata-se da força conjunta. Tal força cinética que vem lá de baixo dos pés,
o auxílio da lonja. Essa aluna conseguiu durante esse período um desenvolvimento passando pelos joelhos, quadril, tronco e braços vale tanto para os bases quanto para
técnico bastante promissor. Jana e Karina Kuniyochi treinaram primeiramente a o volante. Ele também tem essa explosão que junta e soma com a explosão vinda dos
subida de barriga, se equilibrar em pé. Depois, treinaram os três movimentos enca- portôs e manda o salto lá para cima. Essa força que vai passando pelas articulações e
deados: a subida de barriga, ficar sentada e finalmente em pé. Kuniyochi participou explode num ponto é muito usada nas artes marciais. Todos os movimentos usam os
de algumas aulas e ajudou bastante no desenvolvimento dos alunos, principalmente pés como base e como impulso inicial. O boxe, por exemplo, é uma luta em que você
dos volantes. tem que flexionar o tornozelo e movimentar o pé para executar o movimento do soco.
Karina treinou o mortal com pirueta voltando para a Canastilha. Algo impressio- A Canastilha é algo parecido. Os bases usam bastante a força dos pés, das pernas pra
nante de se ver. Isso tudo aconteceu com base nos impulsos conjuntos dos portôs e da depois fazer um arremesso com os braços.
volante. A sincronia na movimentação foi fundamental. Importante observar que a Segundo Fabiano Souza, um dos alunos da disciplina:
lonja usada por Sofy não possuía giro de corda e algumas vezes travava a polia sendo
preciso desenrolar a corda. “Quando eu faço a portagem com o Papito, por exemplo, que já tem
Muitas aulas foram divididas pelo professor em duas atividades e grupos distin- essa técnica. Quando a gente lança a Jana, por exemplo. Não pelo
tos. Por exemplo, o dia em que o primeiro grupo foi inicialmente composto por Luiza fato dela ser leve, mas pela técnica dela, o salto acaba subindo
(volante), Danilo (base), Davi (base) e Christian (lonja), o segundo grupo por Jana, muito. Muito, muito, muito. Ela vai e chega tranquila no portô.
Karina, Alice, Sofy (volantes), Alexis, Fabiano (bases). Dois truques de Canastilha Quando a técnica está correta não importa se é muito alto o
aprendidos simultaneamente. Os integrantes de um grupo transitavam no outro em salto a chegada não fica pesada. Se ele sai na técnica, ele chega
alguns casos. na técnica também. É aquele salto, leve e que parece uma pluma.
Essa forma de dividir a turma em grupos e exercícios torna as aulas mais dinâ- Não tem peso nem na saída e nem na chegada”. (Fabiano)
micas e em muitos casos foi uma maneira de dialogar com as diferentes fases de
aprendizado e aperfeiçoamento técnico dos diferentes alunos. Isto é, funcionou tam- Na técnica (de influência predominantemente russa) de Canastilha ensinada em
bém como uma maneira de dialogar com os momentos específicos sem querer forçar sala de aula, no lançamento do volante o que prevalece é uma técnica conjugada de
demais o aprendizado para quem não possuía as condições técnicas para tanto. força, timing e alinhamento. Isto é, todos fazem força e não só um faz força. Mas, há
De uma forma resumida, o conteúdo envolveu também exercícios de mortais sim- sutilezas dependendo do exercício, pois em alguns lançamentos são principalmente
ples e duplos no aparelho chamado Pizza (em que nove pessoas seguram nas alças os portôs que direcionam o ponto onde o volante vai pousar. Se o volante for para
de um tecido redondo e lançam o volante para trás são os portôs que vão lançar para trás. A função do volante é cuidar da execução
os saltos). Houve também o processo de ensino- do movimento aéreo e estar em sintonia com os bases. A parte de lançamento ou da
-aprendizagem da saída de dupla estafa para direção do volante é feita basicamente pelos portôs em consonância com o volante, é
mortal atrás pousando de costas (decúbito dor- claro. Eles é que dão a orientação principal. Talvez, seja mais eficaz quando os portôs
sal) nos braços dos portôs (o volante não pode trabalham dando essa direção. Quanto mais facilitar para o volante, melhor.
relaxar o tronco se não ele arqueia para trás, Do ponto de vista do volante como é a sua percepção no processo dos saltos? Ao que
trata-se do corpo todo duro em contração mus- tudo indica, a volante tem que abrir mão de querer fazer tudo sozinha. Essa é uma
cular isométrica); exercícios mais básicos como das marcas principais?
a saída em pé da Canastilha e pouso deitado de
bruços nos braços de quatro colegas (educati- “Por exemplo, no meu processo, porque eu vim da ginástica, então
vos); saída em pé, giro do mortal, abrir e cair eu tinha um trabalho individual antes. E aí chegou nessa hora que
deitado de barriga. Para esse truque primeiro o tanto na Canastilha, como por exemplo, no mão a mão, que você tem
volante fez o salto no colchão suspenso por seis que abrir mão de controlar tudo. Na Canastilha não é você que
pessoas. E em seguida, fez o salto sendo recebi- controla sua altura, a altura que o portô te joga e isso é exatamen-
do por quatro portôs frente uns aos outros com te essa conexão de ‘eu abro mão de fazer isso e você vai fazer isso por
os braços paralelos estendidos num ângulo de mim’. Então, não estou sozinha, de jeito nenhum”. (Alice Rende)
45 graus acima da cabeça.
Em primeiro plano, a esq. Olavo Rocha (base) A técnica básica da Canastilha ensinada é o Diante de uma percepção como a exposta pela aluna que se compreende como
ao centro Jana Serrat (volante) e a dir. Alexis Reyes. que pode resumidamente ser chamada de técni- a conexão entre bases e volante deve ser muito boa e a confiança imprescindível.
Momento que precede o salto.
Foto: Cláudio Alberto dos Santos, 2014. ca de força conjunta. Assim, o trabalho de lan- Além disso, mostra como num salto são várias etapas envolvidas além do lançamen-

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE CANASTILHA

to e da recepção. Pois, a partir do momento em que o volante é lançado o trabalho dependendo do sexo. Isso significa entre outras coisas tomar todo o cuidado para que
em grande parte do alinhamento corporal, da técnica do giro no eixo horizontal ou o seu pouso no chão seja leve como uma pluma.
no eixo vertical e de manter o corpo em contração isométrica e centralizado na hora No aprendizado de volante para Canastilha há processos que são similares ao
do pouso é dele: aprendizado do volante em diversas outras modalidades acrobáticas. Segundo,
Alice Tibery Rende:
“É engraçada a sensação de que seu corpo é quase uma clave.
O portô tá fazendo malabares com você, então você tem que estar “O primeiro processo que eu tive que desenvolver e que serve para
bem firme. Não dá pra achar que o fluxo pode vir sem você ter essa ser volante em qualquer aparelho: é você confiar muito no por-
firmeza”. (Alice) tô. Então, eu acho que assim, tem algumas pessoas que você vê
que ela já tem experiência, e que elas realmente vão te segurar.
No início do curso, essa firmeza na hora de pousar foi uma dificuldade grande das Tem algumas atitudes do portô que eu reparei que dão uma sen-
volantes, quase de uma forma geral. Com o tempo essa dificuldade foi sendo supera- sação de presença dele, por exemplo,... não quer dizer nada, mas
da. É o tipo de dificuldade inicial encontrada em outras atividades corporais também. portô que fala no meio, tem gente que parece dispersa, tem portô
É uma dificuldade normal vencida com a prática e com o tempo. Pois, é bastante difí- que você sabe que ele ta ali, presente, meio te ajudando... não sei.
cil no início ficar ali sobre a Canastilha em equilíbrio. É difícil porque a pessoa tem ao (...). Enfim, a conexão com o portô é o essencial, e você con-
mesmo tempo que ficar rígida, explodir no salto e depois ficar toda rígida novamente. fiar nele, isso é difícil, as vezes, porque uma coisa é você confiar
Exige coordenação motora e o controle exato do seu tônus corporal. Porque também no seu próprio corpo, que você vai fazer uma acrobacia e não vai
não adianta a pessoa ficar dura demais e perder o timing do salto. É um controle de cair mal, outra coisa é você poder fazer ela perfeitinha e por acaso
tônus muito difícil porque é no corpo inteiro, não é em uma parte só. a pessoa não conseguir te amparar, isso dá um pouco de medo.
Nas aulas, ficou nítido que há por parte do professor o objetivo consciente de de- E essa situação meio alerta do tipo: será que eu posso confiar
senvolvimento por parte do aluno da noção de rotação, percepção espacial e de muita nesse portô ? Isso faz com que você não desenvolva tão rápido
agilidade. Busca-se a inteligência corporal que se adquire no treino. Mas nesse trei- como volante. Então, primeiro de tudo é importante que você pos-
no deve haver a compreensão da importância para o acrobata de entender onde ele sa confiar no portô, conviver com o portô, sabe? Sentir confian-
está no espaço. Isso faz toda a diferença. É o que pode salvar a vida dele. Quando o ça pela pessoa e pela técnica dela”. (Alice)
acrobata está girando a cinco metros de altura e percebe que o seu giro está muito
lento e ele não vai completar antes de pousar, ele naquele átimo percebe tudo e puxa A técnica ensinada na recepção do volante é uma parte muito importante de ser
mais a rotação e consegue completar o movimento. É uma capacidade de calcular os destacada. Pois, de certa forma, o lançamento é fácil, mas a recepção requer mui-
giros e o pouso enquanto está no ar. Esta percepção espacial foi uma das qualidades to, muito mais do portô, tanto tecnicamente, quanto fisicamente e psicologicamente.
trabalhada durante o curso: onde você está, aonde você quer chegar, como você quer Porque além dele passar confiança para o volante ele tem que ser autoconfiante e
chegar, quando você quer chegar. O cuidado que o volante deve ter aonde ele vai ater- garantir a segurança do volante. Nas palavras de Jânio Matos, aluno na época e hoje
rissar. Ele tem que aterrissar muito bem. Quando você pousa em outro ser humano no momento da escrita desse texto trabalha como profissional em circos na Itália. Ele
você tem que ser muito mais cuidadoso. O volante tem que possuir a noção do impacto é portô do trapézio de voos da Trupe Olimecha:
(“porrada”) que o portô está recebendo. Se ele souber amortecer bem ele pode evitar
bastantes dores e até lesões nas bases. “O portô deve saber que muitas vezes o volante não vai sentir total
O professor ensinou que mesmo em apresentações o importante é o volante não confiança, principalmente nos primeiros treinos. Isso é uma coisa
cair da Canastilha quando pousa. Assim, quando a aterrissagem não for muito está- que vai sendo conquistada ao longo do tempo. Então, o portô
vel e o volante estiver caindo para trás ele pode segurar no pescoço ou na testa dos tem que estar ciente que ele sempre vai se machucar, que ele sempre
bases, mas, deve tomar muito cuidado para não ferir os olhos dos portôs com os dedos. vai ter hematomas, que ele sempre vai ter algum tipo de dano.
Explicou também que é justificável tal procedimento, pois, do contrário, o volante vai Isso ele tem que estar ciente!” (Jânio Matos)
cair de costas no chão. Os dedos devem ficar bem juntinhos, esticados e as palmas
voltadas para as laterais. Mesmo nos momentos de apuros deve manter a frieza sufi- Para isso, os portôs têm que ser preparados antes das atividades, ou seja, ter um
ciente para não apavorar e “sujar” a apresentação. preparo físico, ter uma técnica de como aparar o volante antes de começar a lançar
Ao longo das aulas os alunos foram aprendendo a controlar a ansiedade e conse- o volante. Eles têm que fazer movimentos iniciais básicos, como subir, exercícios de
guir relaxar o suficiente para que o movimento ficasse fluido e no tempo preciso da elevação, sincronia com o parceiro, exercícios de arremesso para trabalhar bastante
acrobacia. Pude notar como o relaxamento melhora o desempenho técnico e antes o as articulações dos ombros e dos braços, que são as ferramentas que ele mais vai usar
que era pesado e truncado depois pode ficar leve e elegante. e aonde ele mais vai sentir. Se ele souber usar a fisiologia, a anatomia, usar toda a
Em muitas oportunidades o professor ressaltou a importância de se buscar o for- parte motora, vai ficar muito mais fácil também. Porque isso que realmente vai de-
talecimento inteiro do corpo. O portô deve tratar o volante como um rei ou rainha, senvolver a sua técnica.

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE CANASTILHA

Para os portôs, também é muito importante subir as mãos bem alto justamente fazer. Então, vai e faz! Assim, acaba levantando a autoconfiança
para poderem descer quando o volante pousar nelas. Isso faz com que amorteça o im- da pessoa e ela vai e faz. É exatamente isso. Eu acho importante,
pacto nos punhos e mãos dos portôs e joelhos dos volantes. É importante o alinhamen- mas às vezes é meio louco. (risos). Se não for em excesso é ótimo.
to na altura das mãos dos dois bases nos momentos de lançar e de receber o volante. Mas, tem o limite, né? Chegou no limite, parou.” (Fabiano Souza)
Quando isto acontece na hora do lançamento certamente vai o volante numa diagonal
e na hora do pouso o equilíbrio fica mais difícil. Para o volante é muito importante
que ele pouse com o corpo alinhado com o eixo vertical. Se pousar com o tronco incli- Em algumas situações, ele desafia o aluno, principalmente o volante a ousar a ir
nado para frente com os joelhos semiflexionados, geralmente cai para trás também. além do que fez e do que sabe. De certa forma, em algum ou outro momento coloca o
Papito é um professor que auxilia muito o aprendizado dos seus alunos também aluno numa situação fora da sua zona de conforto. Você fez um duplo? Então faz um
em virtude dos constantes observações que faz com a sua intensidade habitual após, duplo com pirueta. Parte dos alunos considera essa didática muito boa, desde que não
ou antes, de alguns exercícios. Frases do tipo: “Mais rápido! Tá muito lento o impulso! seja em excesso, é claro. Desperta o desejo de evoluir, de ser melhor do que você é. Por
Traz os joelhos mais perto do peito! Não abre muito as pernas, se não pode acertar o outro lado, é fundamental existir o respeito aos limites do aluno. Ele nunca obrigou
portô. Não gira muito atrás. Gira aqui nos joelhos! Tem que ir pra fazer! Não precisa ou forçou as pessoas a fazerem alguma coisa que realmente não queriam fazer. Se
ter medo. Vamos embora! Você é acrobata, cara!” fizeram os exercícios, é porque houve um consentimento delas.
Para alunos como o Fabiano Souza o aprendizado nessa disciplina foi além do
aprendizado técnico. Tocou em dimensões também cruciais na formação do aluno
enquanto profissional.

“Aprendi muitas mais coisas não só tecnicamente. Ele deu mui-


tos conselhos que a gente acaba levando pra vida. Pra mim, pelo
menos foi assim. Ele me ajudou muito. Não só técnica, mas pas-
sando a experiência de vida dele pra mim. Acho que isso acaba
valendo até mais que a técnica, as vezes. Acaba te dando um
sentido. Saber como chegar. O que eu quero viver, ele já viveu. Ele
está me dizendo por onde seguir. Não mais fácil, mas o que eu vou
sofrer menos. Ele é incrível!” (Fabiano Souza)

O Alexis enquanto professor vai um pouco além só da técnica. Ele busca chegar
um pouco mais perto, um pouco mais próximo da realidade do aluno para conseguir
falar a linguagem dele e conseguir uma maior eficácia em suas aulas. Este é um
importante ensinamento: saber trabalhar com vários tipos de alunos e saber chegar
em cada tipo de aluno. Pois, numa mesma sala há o aluno mais avançado e o aluno
que demora um pouquinho mais a aprender. Com sua didática o professor conseguiu
atingir os dois tipos de alunos ao mesmo tempo ensinando a mesma quantidade para
os dois? Outros significados dessa fala relacionam com a trajetória de artista circense
antes de ser professor.
No alto, a aluna Rayssa Palheta fazendo um duplo mortal grupado. Foto: Cláudio. 2014.
Papito tem uma visão mais aberta do processo de ensino-aprendizagem e consegue
Nota-se, que nem sempre se tratam de correções técnicas de postura ou do tempo reconhecer as contribuições individuais e a importância dos conhecimentos trazidos
nos exercícios, mas sim, palavras de estímulo, encorajamento, ânimo e força. O pro- pelos alunos:
fessor gosta de estimular os seus alunos no constante exercício da superação. Para
isso trabalha muito a atitude de confiança e decisão dos alunos. Como ele sempre “Todo dia eu aprendo algo distinto com os alunos. Eu curto ter
dizia, “tem que ir pra fazer”. Quer dizer, é preciso que o corpo esteja decidido, que ele a troca, sabe? Eu não sou do tipo de professor que acha que sabe
não hesite e que ele assuma o controle do movimento até o final. tudo. Eu não. Eu aprendo todo dia algo distinto. Tem aluno que
O professor tem como característica em sua didática esta atitude de estimular no vem com uma proposta nova e eu digo: - Nossa, que maneiro! Nun-
aluno a autossuperação, de jogar o nível sempre para mais alto: ca havia vista. Você tem que tener a troca com o seu aluno. Se não
tem a troca e não tem uma confiança, não funciona, entende? Tem
“Muitas vezes era isso: - mas, eu acabei de fazer um e você já quer que que ser pessoal porque eu convivo mais com meu aluno às vezes do
eu faça dois. Mas, é isso mesmo, pois você já tem a capacidade de que com a minha mulher. Pra mim, o meu aluno é praticamente

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE DUO ACROBATICO

a minha família. Se machuca eu vou ficar preocupado. Se pre-


cisar de um ajuda eu vou ajudar. Se um aluno me disser que está
precisando de dinheiro, se eu tiver, eu empresto. Se no tengo vamo
DUO ACROBÁTICO
para o sinal jogar malabares com ele. Eu sou bem realista, porque –Sincronia em Plenitude-
eu passei fome quando era aluno. Eu passei necessidades.
Todo mundo tem problema. A vida não é perfeita”. (Papito) As aulas da disciplina Duo Acrobático aconteceram na sala de dança no penúltimo
horário do turno da tarde, isto é, entre 14h: 26m e 15h: 36m. Os alunos da disciplina
De fato, para alguns alunos o professor Alexis é mais do que apenas um profes- foram Rafael Conceição, Gabriel Martins, o Danilo Lúcio, o Davi Fernandes, Valdire-
sor, ele é um amigo. Muitas vezes sabe ser rigoroso, mas sem perder o tato no trato ne Silva (Dira), Jânio Matos, Andrea Satie Nohara e Paulo Emanuel.
com os alunos. O ensino da acrobacia também é algo delicado. As pessoas envolvi- O professor foi o Marcelinton Souza Lima, ex-aluno da instituição formado na tur-
das devem possuir bastante tato no trato das relações humanas. Tato que nasce do ma de 1997. Entrou na ENC quando não tinha nem quatorze anos. Teve o prazer e a
contato direto e diário com o outro, dentro de um programa de atividades que deve oportunidade de conhecer e de trabalhar com a velha guarda da Escola. Teve aulas
ter uma firme organicidade interior, para que a experiência possa ter segmento e com os lendários professores Aberardo, Rogério e Divar Ozon (recentemente falecido).
soma. Sem dúvida, quando há essa abertura para a troca há muito mais possibili-
dades de melhorar a convivência em sala de aula, bem como, ampliar os horizontes
dos conhecimentos trabalhados.

Marcelinton, no centro do trio no The Living Carrousel do Ringling Bros


and Barnum & Bailey Circus. EUA. 1999. s/a.
Como reconhecimento ao talento que já vinha demonstrando no Brasil foi convi-
dado logo ao sair da Escola a trabalhar no renomado Ringling Bros – Barnum and
Bailey, nos Estados Unidos, onde ficou por oito anos. Dentre as suas inúmeras proe-
zas neste circo ele saltava sobre cinco elefantes contando apenas com uma rampa e
um mini trampolim no seu final. Ele descia a rampa correndo pulava no mini tramp,
projetava o corpo como num salto leão e no finalzinho fazia um salto mortal. Para
absorver o impacto muito forte do pouso ele fazia um rolamento frontal assim que to-
cava o colchão com os pés. Também foi volante de Barra russa, Trampolim acrobático,
Trapézio de voos e de Báscula. Fez acrobacias e evoluções com cavalos.

“Fiz esse trabalho com cavalos, números com elefantes, além de


saltar eles eu fazia acrobacia com elefante, fazia mortal em cima
da cabeça do elefante, o elefante me lançava com a pata e fa-
zia mortal, elefante me empurrava abaixo e me lançava pra fazer
doble volta pra cima de outro elefante. Eram coisas que iam
crescendo. Viam que eu tinha habilidade e falavam: - Vamos expe-
rimentar? Vamos tentar? - Vamo bora! Esse é um circo tradi-
cional, mas eles procuram novidade. Então, vamos embora,
vamos trabalhar!” (Marcelinton)
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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE DUO ACROBATICO

Apesar dos riscos de acidentes ou lesões envolvidos em números como estes, Mar- sei aqui. Minha vida toda eu vivi no circo. Não sou de família
celinton nunca se machucou em sua carreira de artista circense. Como começou cedo tradicional de circo, mas pode-se dizer que eu sou adotado do
seu corpo se acostumou a pegar peso. Nunca fraturou nenhum osso ou teve luxações circo. Sou uma das crianças que com certezas são muito gratas.
se apresentando. Nenhuma lesão séria. Mas, ironia do destino, na carreira docen- Eu sou muito grato ao circo. Todo o meu conhecimento como ser
te quebrou o osso de um dedo da mão fazendo segurança de um aluno. Coisas da humano, como pai, como profissional eu adquiri aqui na Escola de
vida... Nessa época em que estava nos Estados Unidos aproveitou a oportunidade Circo e em todos os circos por onde eu passei”. (Marcelinton)
para aprender e trabalhar montando lonas enquanto também ganhava um dinheiro
extra. Sentiu-se valorizado por lá. O currículo profissional do professor seguramente o credenciou como um especia-
lista nas modalidades acrobáticas que envolvem saltos, figuras estáticas, elementos
dinâmicos e elevações em coluna exigindo um mínimo de três pessoas (terceira altu-
ra).Enfim, Marcelinton é um grande conhecedor do funcionamento dos exercícios de
força, equilíbrio e agilidade em que ao invés de acessórios e aparelhos de apoio mate-
rial ou propulsão mecânica, se conta apenas com os próprios parceiros.
Nas aulas de Duo Acrobático foram ensinados elementos de dança e diversos
exercícios acrobáticos muito interessantes e de um bom nível técnico. Mesmo sem
buscar fazer uma descrição exaustiva é importante relatar pelo menos um pouco da
rotina das aulas.
Marcelinton, normalmente chegava descontraído nas aulas e logo conseguia tirar
boas risadas dos alunos. Com sua energia sempre em cima ele ensinou vários passos
de samba de gafieira para a Andrea e o Paulo. Primeiro, ele ensinou dançando em par
com ela e depois observou e corrigiu os dois. Andrea estudou a subida simples para o
ombro do Paulo. Dessa base ela fazia o salto mortal grupado para trás aterrissando
com a ajuda do portô para amortecer o impacto. Ele segurava nos quadris dela en-
quanto a volante apoiava-se sobre o trapézio e ombros dele.
No início do aprendizado desses exercícios o professor fazia a segurança e era ele
Arte como transformação social. Marcelinton ao centro, no espetáculo quem dizia quando ela devia saltar. Nos pousos dela ele segurava suas costas quando
O Menino do coração grande. Foto: Rodrigo Anis. 2013. ela se desequilibrava para trás. Durante um tempo a Andrea estava puxando o mor-
De volta para o Brasil se tornou o coordenador geral na área de oficinas da Uni- tal com a cabeça posicionada com os olhos fitando o teto. Fato que ele fez questão de
versidade Livre do Circo criada pelo Marcos Frota. Fez parte do elenco do espetáculo mostrar para ela e pediu que ela fizesse com o queixo colado no peito.
musical Unicirco Rock Show em 2012 que foi assistido por mais de 100 mil especta- Usando a lonja, Andrea repetiu nesses meses, vários dos truques trabalhados.
dores na lona armada no Parque Municipal da Quinta da Boa Vista, na cidade do Rio Treinou a subida simples para os ombros do Paulo a partir da estafa, depois um
de Janeiro. mortal atrás. Na aterrisagem o Paulo
Atualmente faz parte da CHAP – Companhia Horizontal de Arte Pública, mas amortecia com as mãos e com o pró-
também atua em espetáculos de outros grupos como o Palhaçaria Circo Show. Con- prio abdômen. Depois ia para trás da
tinua trabalhando com Douglas o seu parceiro e companheiro de longa data que se volante segurava nos seus quadris,
formou com ele na ENC. Também faz parte de uma equipe de dublês do Rio de Janei- os dois flexionavam os joelhos, ela
ro a Superação Dublês e às vezes trabalha atuando como ator, palhaço e dançarino. com os pés paralelos e ele com uma
Mas, em síntese, continua trabalhando da forma circense. Profissional versátil faz base de um pé na frente do outro. En-
de tudo um pouco. Acredita que a pessoa tem que procurar os seus caminhos. Apro- tão ela pulava para cima pra realizar
veitar a suas qualidades ou sua versatilidade e usar isso. O circense é muito assim. um mortal atrás e ele a impulsionava
Ele se adapta ao lugar. Continua atuando, fazendo suas acrobacias, um pouquinho empurrando-a para cima e a pegava
menos agora, por conta da idade. pelos pés após o giro. Marcelinton fi-
É possível perceber alguns dos significados de gratidão e intensidade das expe- cava controlando a lonja e ao mesmo
riências de sua trajetória nesse período: tempo dava indicações seguras do que
deveria ser feito. Entre uma tentativa
“Agradeço muito a minha vida toda pela Escola de Circo. e outra, mostrava com o próprio corpo
Que foi o meu jardim da infância, ensino primário, o ginásio, por- Paulo aparando Andrea em um mortal enquanto os movimentos que a volante deveria
que antigamente a gente falava assim. Minha vida toda eu pas- o Marcelinton controla a lonja. Foto: CAS 2014 fazer no salto mortal.

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE DUO ACROBATICO

Na subida simples, o Paulo (base) com as pernas semiflexionadas fez uma estafa e ainda ta segurando a lonja, é pesado. E ele foi super paciente com
na altura dos quadris e impulsionou a volante a partir do solado dos pés e pegou-os na a gente, ao invés de olhar a gente como se fosse um peso mesmo,
altura do seu ombro. A volante no momento da propulsão primeiro apoiou as mãos no era mais como um projeto a ser realizado né? De ‘vocês dois vão ser
trapézio do base e depois no segundo momento apoiou os dedos do pé no mesmo lugar. bons artistas e eu vou contribuir com isso’. Eu senti que a gente
O base teve que travar os braços bem firmes no momento de agarrar os pés e supor- teve muita afinidade, o Paulo e eu gostamos muito das propostas
tar o impacto do peso do volante. Outro movimento que ajudou no amortecimento foi que ele deu”. (Andrea)
flexionar os joelhos e até mesmo fazer uma posição com uma perna na frente e outra
atrás ao invés das pernas paralelas. O portô manteve o olhar fixo na volante o tempo Como nas suas aulas prevalece um clima agradável e alegre não é de se estranhar
todo. Outro exercício treinado nesse tempo foi o do mortal para trás a partir da subida essa percepção tão positiva da aluna. Ela também destaca a paciência do professor
simples e pouso na cintura. É importante notar que caso a volante esteja usando lonja para explicar os mínimos detalhes dos movimentos que eles tinham que fazer, bem
no momento de seu pouso o portô deve tomar cuidado com a lonja para não machucar como, que isso às vezes faz toda a diferença. No curso inteiro Marcelinton dividiu
os dedos no momento de passar as mãos e agarrar o volante. suas aulas em função do tempo que dedicava a cada proposta coletiva dos alunos. En-
Mais um truque estudado foi a subida para as mãos a partir do chão com meio giro. sinava alguns movimentos e pedia para treinarem enquanto ia ensinar outro duo ou
O professor ensinou para o Paulo que no momento em que ele ia segurar os pés da vo- trio. Depois de cada prática conversava com os alunos e analisava o que tinham feito
lante ele tinha que flexionar os joelhos para estar com mais prontidão para conseguir e o que deveria melhorar. Sua presença criativa é muito forte. Praticamente, toda a
equilibrá-la. Na estafa, ele já ficava com os joelhos semiflexionados e encostados um coreografia e a sequência acrobática e teatral dos números de dândis foram sugeridas
no outro. Dessa base, Andrea executava um mortal para frente. No pouso o Paulo e ensinadas por ele.
a amortecia apoiando com as mãos em sua região lombar. Nos saltos como estes, o Importante notar como durante o tempo em que o professor dava atenção as outras
impulso, a força e a explosão tem que ser dos dois e num tempo ritmo exato. Se um duplas, ao invés de ficarem parados esperando a sua vez, os alunos Rafael, Gabriel e
dos dois adiantar ou atrasar no momento do lançamento o movimento será bastante Danilo ficavam passando as várias marcações de sua sequência de dândis.
prejudicado. O portô fica com os pés paralelos um pouco mais afastados do que o ali- Nos dândis deles tiveram a disputa, as confusões, os tapas, socos, chutes, esqui-
nhamento dos ombros. Esta base em que ele dobrava o joelho para lançar a volante vas, rasteiras, tropeções e voadoras com as pernas e golpes bem típicos do repertório
parecia ser bastante eficiente em termos biomecânicos. Nem precisa dizer que repeti- tradicional desse tipo de linguagem. Assim, foram ricas e divertidas as acrobacias en-
ram esse truque diversas vezes, não é? volvendo elementos dinâmicos como balan-
Como pode ser visto na foto, Andrea e ços para mortal a frente, dupla estafa para
Paulo também aprenderam esse truque de mortal a traz, salto do gato, estafa para mor-
grande beleza visual. Trata-se uma eleva- tal a frente sobre a cabeça do base, etc. Hou-
ção da volante sendo sustentada em uma ve momentos coreografados de dança, poses
perna pelo portô. A outra perna flexiona-se que representavam que eram muito fortes e
para trás sendo segurada pela mão análoga valentes, cenas de mímica, instantes em que
(se for perna direita, mão direita). O braço brincavam e interagiam com um espectador
fica esticado a frente do corpo. Na descida, imaginário situado a frente da cena. Gabriel
o portô a lança um pouco para cima e a re- foi jogado dos braços de um para outro. Eles
cebe no colo. Ela passa a mão por trás de não usavaram nenhuma palavra em nenhum
seu pescoço. momento durante o número. Quase no fim
Interessante perceber o ponto de vista e faziam uma pequena sequência de acrobacia
a percepção dos alunos nesse intenso pro- de solo: rondada e flic-flack, rondada e mor-
cesso corporal de aprendizados. Com a pa- tal e rondada, flick-flack e mortal para trás.
lavra a aluna Andrea: Estudaram muito em sala de aula o tru-
que da terceira altura, também conhecido
“Eu acho que ele foi muito pa- como “torre” ou “coluna”. Este foi um dos
ciente com a gente, porque em truques que mais tiveram dificuldade. Pois,
momento algum ele desacredita- muitas vezes não conseguiam ter impulso e
va. E é o esforço do professor que alinhamento para que Gabriel chegasse nos
ta lá junto, segurar lonja não é ombros de Rafael. Foi um desafio que tive-
fácil, é pesado. E ter uma ro- ram que enfrentar em muitas aulas durante
tina como a que ele tem, ele ta Portagem. Foto: Claudio Alberto dos Santos. Momento da subida para a terceira altura. o curso. Marcelinton exercia o papel de dire-
acompanhando vários trabalhos, Rio de Janeiro, 2014. Foto: Cláudio Alberto. Rio. 2014. tor da cena. Dava dicas de atuação, sugeria

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE DUO ACROBATICO

ouvirem mais a pulsação da música, a continuarem mesmo quando não conseguiam Quando isso acontecia, ele mostrava que era o contratempo. Pois, era preciso uma
realizar o truque da forma esperada. Quando o clima ficava meio tenso entre os alu- sincronia a partir de um tempo forte e o que se percebia era que algum deles adian-
nos por não estarem conseguindo fazer o truque, o professor fazia algumas piadas ou tava o movimento indo num tempo fraco anterior ou atrasava indo num tempo fraco
comentários para descontraí-los. Agia sempre como uma força positiva, reforçando a posterior. Quando isso acontecia, havia uma desarticulação da força, impulso e ex-
confiança e a concentração para a boa execução das acrobacias. plosão do movimento.
O Gabriel Martins desempenhou a função de volante do trio, o Rafael fazia o pa- Com o passar do tempo, Marcelinton tirou a lonja do Gabriel e fez a segurança
pel de intermediário e o Danilo de portô. Em algumas aulas usaram uma clave de enquanto executavam o truque. O professor dava indicações verbais como: “Segu-
malabares para substituir a mala, objeto da disputa de forças e valentia entre eles ra!” “ Fica, fica!” “Vai lá! ” “Isso!” “Concentra” “Desceu”, “Respira”. “Um tem que
na primeira parte do número. Ensaiaram a terceira altura diversas vezes tentando ajudar o outro”.77 Elas davam ritmo e organicidade ao trabalho. Tais intervenções
corrigir os detalhes. foram fundamentais para o aprofundamento dos saltos mortais e dos movimentos
Ela acontecia da seguinte maneira: Rafael subia nos ombros do Danilo e dava as acrobáticos, de uma forma geral.
mãos cruzadas para o Gabriel que estava no chão (esquerda com esquerda, direita Ao longo das semanas, o trio de dândis aprendeu novos truques. Praticaram a
com direita). Gabriel então pisava com seu pé esquerdo na mão direita do Danilo subida de barriga do volante (Gabriel) para ficar em pé na Canastilha e em seguida
para conseguir impulso e ao mesmo tempo ser puxado pelo Rafael, fazendo meio o salto mortal atrás para cair no ombro do Rafael e depois mais um mortal atrás
giro e pousava seus pés no ombro dele. É um truque que exige uma boa coordenação, para cair no chão. Marcelinton observava nas primeiras tentativas que o Gabriel es-
timing e força conjunta. O Danilo, o portô de base que sustentava o resto da coluna tava chegando na base e dobrando os joelhos e que ele deveria chegar duro e com as
era o mais forte e o mais experiente do trio. Função dolorosa que exigia energia pernas esticadas. Além disso, seus braços deveriam ficar em cima quando subisse.
física e vigor, senso de equilíbrio e o conhecimento de como funcionavam os saltos. Nessa técnica, o volante tem que ficar durinho o tempo todo (contração isométrica)
O intermediário, Rafael, ficava sobre os ombros do primeiro e ao mesmo tempo sus- e o equilíbrio é buscado pelos alunos que fazem a plataforma dos saltos. O professor
tentava o volante em seus ombros. Também desempenhava uma função igualmente falava para os portôs jogarem o volante um pouco mais alto, pois estava muito bai-
dolorosa porque tinha que exercer a força necessária para que o volante fosse ele- xo ainda. No momento em que o Rafael ia receber o Gabriel nos ombros ele deveria
vado da terra até aos seus próprios ombros. Gabriel, o volante, era o mais leve dos levantar o peito e olhar para frente, não para baixo. Mesmo que o volante estivesse
três, ficava em equilíbrio no ponto mais alto e depois descia fazendo um rolamento descendo um pouco a frente ele deveria andar a frente também e recebê-lo em seus
no chão para amortecer o impacto. ombros com a coluna reta e não inclinada para a frente. Isso tem a ver com a movi-
O professor durante esse tempo realizou diversas observações sobre o que fa- mentação dos pés e não com flexionar o tronco para alcançar o volante. No momento
zer para conseguirem subir sem muita dificuldade. Quando erravam dizia que não em que o Gabriel fazia o mortal da segunda altura para o chão, o Rafael deveria
tinha problema. Para repetir de novo. Às vezes, erravam o timing do movimento. flexionar mais os joelhos na base do arqueiro ( um pé na frente do outro).
O trio foi melhorando sua performance com o tempo. Alcançaram aos poucos uma
velocidade mais rápida na movimentação. No início, existiam lacunas, breques,
atrasos que foram aperfeiçoando durante o semestre. Selecionaram aquilo que fun-
cionava mais e descartaram alguns movimentos. Acrescentaram outros. Percebe-
ram como cadência, andamento e ritmo deixaram o número mais vivo, dinâmico e
engraçado. Os alunos também desenvolveram aspectos ligados à atuação do palhaço
como expressões faciais e piadas visuais. 78
Durante parte do curso os alunos Valdirene e Jânio praticaram mão a mão a par-
tir da posição em que o portô fica deitado. Experimentaram algumas variações. De-
pois praticaram saindo do portô sentado e em pé. Marcelinton ensinava com prazer
e alegria. Todos se divertiam aprendendo enquanto estavam naquela sala de aula.
O clima sempre foi bastante propício ao aprendizado. As pessoas pareciam estar
felizes em estarem ali e em fazerem aquelas atividades.

“Quando o aluno já passou da base. E tem que ser uma base boa.
A gente começa a jogar, montar o quebra- cabeça. Porque cada um
77 Anotações no Diário de Campo.
78 Segundo os livros de história, as artes do circo desde seus primórdios conseguiram fazer a engraçada aliança entre
acrobacias e bufonaria. Assim o bufão se envolveu com o mundo da força e o acrobata com o mundo do riso. Ver OGER,
Christian. “Force et Acrobatie” in: RENEVEY, Monica (org.) Le Grand Livre du Cirque. Genebra: Bibliothèque des Arts,
Terceira altura observada por César Rodrigues. Salto mortal atrás da Canastilha e pousando nos 1977, (vol.2). No truque da terceira altura se destacaram trupes como os Stebbing, os Cragg, Heras, Mansuy, Montrose,
Foto: Claudio. 2014 ombros do Rafael. Foto: CAS. 2014. Balaguer, Mangini e os Bragazzi.

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE DUO ACROBATICO

tem um corpo diferente, cada um tem uma cabeça diferente, cada peito e amizade que sempre predominou em seus estudos conjuntos.
um tem o seu tempo, cada um tem o seu limite, cada pessoa Para os parâmetros da ENC o aluno Paulo Emanuel tem o perfil do portô devido a
tem o seu cada um. Então a gente tem que entender isso. A gente sua força, peso e estatura. Ele ao longo do tempo foi sendo requisitado cada vez mais
tem que respeitar”. (Marcelinton) para fazer atividades de segurar pessoas, de fazer portagens com uma e duas pessoas
em cima. Ele é um portô “cascudo”, isto é, suporta bem os impactos e as quedas, sem
O professor usa uma didática em que também cobra exercícios difíceis e mesmo reclamar. Também parece gostar muito do que faz e buscou com sua paciência desen-
que tenham certa dificuldade ele vai lapidando e fazendo as correções necessárias, volver mais o tato para sentir o outro. Entender o que se passa na cabeça do outro,
passando informações para que o aluno comece a entender, para que fique fixado na para poder trabalhar junto.
cabeça e no corpo do aluno. Assim, ele faz observações sobre detalhes mínimos dos Em conversas informais me lembro dele falar sobre a importância do olhar no tra-
movimentos, mas, sobretudo, respeita os limites de cada individualidade. Nessa es- balho do portô. Isto é, conseguir desenvolver aquele olhar e aquela calma para dar os
tratégia didática ele faz com que o aluno sinta a necessidade do seu conhecimen- “botes certos”. O base precisa ter o timing de catar a pessoa no momento exato. Falou
to. Como o aluno não consegue fazer o exercício ele se pergunta o que é que está sobre a importância da força aliada a técnica. Que se você não tiver força e a técnica
dificultando. você não consegue administrar o momento do impacto. O processo de ganho de força
é demorado. Mas ele acontece. Ele se dedicou bastante nesse processo. Praticamente
“A experiência, a experiência de vida dele contribuiu muito todo dia ele possuía uma rotina de academia. Possuindo a técnica e a força ele está
pra gente entender pra onde vai sabe? Entender o caminho. Ele no caminho. Mas tem que conseguir a frieza do olhar. Não dá para ficar nervoso e ir
aprendeu muito lá fora, aprendeu muito aqui com os professores contando com a sorte. Não tem essa de sorte. É precisão. Paulo é daqueles alunos que
na época dele, que foi outra geração. Ele transmitiu com muita sabem que devem correr atrás.
clareza isso dele. Os trabalhos que ele fez com o colega dele, Em suma, as aulas do professor de Duo Acrobático demonstraram como é impor-
parceiro dele, o fizeram aprender como se porta uma pessoa, tante manter no ambiente formal de ensino-aprendizagem a leveza, a alegria e o jogo.
como você transforma isso dentro de uma cena, porque não é Marcelinton tem uma forma bastante lúdica e própria de trabalhar.
só um truque”. (Andrea)
“Eu não preciso estar com o chicote. O Marcelinton sempre vai tra-
Além das contribuições de sua experiência de acrobata que Andrea menciona balhar de uma forma talvez até extrema, que talvez nenhum pro-
(destacando também a dimensão artística e não só técnica), Marcelinton pareceu es- fessor trabalharia. A brincadeira não tira o respeito do professor.
tar sempre buscando novas maneiras de melhorar o processo de ensino-aprendiza- Acho que o professor vai aprendendo. Então ele tem que pesquisar
gem. Suas didáticas funcionaram, pois, os alunos desenvolveram de uma maneira a forma de dizer, talvez a forma que era muito rígida antigamente
digna de nota, muitas habilidades e qualidades acrobáticas requeridas para o traba- a gente tem que deixar um pouquinho de lado”. (Marcelinton)
lho do volante e da base.
Nesse sentido, vale a pena mencionar que consideram ser necessário ao bom acro- Ele trabalha em sala de aula em certos aspectos, da forma como encara a arte do
bata ter confiança e coragem. Confiar no outro e confiar nele mesmo. Precisa saber circo. É um lugar para as pessoas mostrarem suas contribuições individuais, a sua
aceitar correções, sugestões, precisa saber ouvir. Precisa também saber se colocar, subjetividade enquanto pessoa. Se não fosse dessa maneira possivelmente não con-
pois um acrobata passivo que só faz o que os outros mandam, não evolui ou aprende seguiria fazer o bom trabalho como percebido. Ele muitas vezes chamou a atenção
tanto. Fica estagnado. Deve contribuir com ideias e não esperar tudo pronto. dos alunos de uma forma descontraída e através de brincadeiras. Não apresentou
passes de mágicas e nem antídotos. Apresentou um grande compromisso e dedicação
“Um volante precisa estar muito atento, porque é arriscado. É próprios de quem passou grande parte da sua vida na ENC e tem o fascínio do circo
arriscado pra ele e é arriscado pra quem ta em baixo. Uma boa no coração.
volante precisa ser leve, né? Precisa ser leve, precisa ter uma ba- Em síntese, suas didáticas se mostraram coerentes e eficazes em relação a seus
gagem corporal boa, uma bagagem de postura. Uma boa volante objetivos pedagógicos. Sua prática docente no ambiente escolar é muito interessante,
como todo artista precisa ter presença também, porque o destaque dado que ela funcionou muito bem ao proporcionar aos alunos um aumento do vocabu-
vai todo pra ele. Eu acredito que o portô pode até estar com uma lário motor e corporal, e aumento das capacidades sensório-motoras (tais como força,
tensão no rosto, preocupação o tempo todo, porque ele ta lidando flexibilidade, agilidade, coordenação, equilíbrio etc.). Através das aulas de Duo Acro-
com a questão da segurança. Já o volante ele é o destaque mesmo, bático os alunos também aprenderam muito sobre ritmo (uma vez que sua prática, em
se joga pra cima você não vai ficar olhando pra baixo se o cara vai geral, ocorre com música), integração (por ser praticada no mínimo em duplas), res-
pegar ou não, você olha pra onde vai ser arremessado”. (Andrea) ponsabilidade (devido às figuras acrobáticas), compromisso, colaboração, interação,
entre outros. E isso tudo, não apenas suando, mas também com muito riso e alegria.
Paulo e Andrea já possuíam uma história de amizade anterior a ENC. São amigos
desde o projeto social Crescer e Viver onde se conheceram. Talvez isso explique o res-

208 209
ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE ANTIPODISMO COM TRANCA

A disciplina teve como critérios e instrumentos de aferição do conteúdo programá-


ANTIPODISMO COM TRANCA tico as avaliações individuais sobre o processo de ensino-aprendizagem, a participa-
ção e contribuições em aula, assiduidade e o exame final de semestre (a “prova”).
–Pérola do Circo Brasileiro- Dentro do vasto repertório do conteúdo programático ensinado/apreendido podem
ser mencionados o equilíbrio do aparelho com os dois pés ou com as duas mãos na
posição horizontal, bem como, na posição vertical com os dois pés, com um dos pés e
A disciplina Modalidade Circense – Equilíbrios/Antipodismo (tranca) também é na ponta dos pés.
de regime semestral e teve carga horária total de 116 horas. Foi ministrada no pri- Outras variações técnicas percebidas durante o período foram o equilíbrio do apa-
meiro período de 2014 pelo professor Pirajá Bastos e teve como alunas: Manoela Cris- relho na posição vertical sobre os joelhos com as pernas flexionadas e sobre a tíbia e
tina Wolfart, mais conecida como “Manu” e Thais Caroline da Silva, na Tranca. a fíbula (ossos da canela). Manipulação do aparelho com as mãos e pés e com as mãos
As aulas de Antipodismo aconteceram sob a lona de circo azul da ENC. Nos dias por entre as pernas. Meio giro do aparelho na posição horizontal. Além destes, mere-
quentes de verão a sensação de calor era bem mais forte. Mas estar sob a lona gerava cem ser lembrados os exercícios de lançamento do aparelho: das mãos para os pés e
uma atitude diferente do que se estar numa sala aula comum cercada por paredes. dos pés para as mãos; das mãos para os pés executando giros e com troca de equilíbrio
Mas não ocupa toda a enorme lona azul. Há um espaço delimitado para estas aulas. entre os pés; das mãos na posição vertical com equilíbrio com um dos pés e na ponta
Geralmente acontecem do lado esquerdo da cabine técnica tomando como referencia dos pés. Lançamento do aparelho na posição vertical com giro e meio e equilíbrio com
a entrada principal da lona. Às vezes, o pano de roda fica inteiramente levantado um dos pés, com duplo giro e equilíbrio com um dos pés.
próximo às aulas, outras vezes, apenas uma parte. Isso influencia na iluminação do
ambiente e na ventilação, evidentemente.
Nas aulas práticas orientadas pelo professor usaram como materiais didáticos, ba-
sicamente os equipamentos circenses (colchinetes, trancas, colchões adaptados para
encaixar o colchinete). O malabarismo com a Tranca é praticada com uma quantidade
pequena de roupas e/ou calças justas para facilitar a movimentação precisa dos mo-
vimentos. Na parte de cima do corpo as meninas usam camisetas. Evitam o uso de
relógio ou jóias, pois, podem machucar se chocarem com o aparelho.

Manu se alongando antes de praticar antipodismo. Foto: Cláudio Santos em 12/05/2014.

Características do Antipodismo
Segundo Christian Oger, a palavra “antipodista” é uma palavra ao mesmo tempo
secreta e mágica que significa fazer malabarismo com os pés.79 Na Europa, no passa-
do usaram almofadas com diversos materiais (areia, algodão, serragem) para calçar
a coluna do antipodista. Assim, tendo como traço fundamental ser um malabarismo
de contato e de lançamento feito predominantemente numa posição em que as pernas
ficam perpendiculares ao solo e utilizando um ou mais objetos de tamanhos, texturas,
pesos, volumes e formatos diferentes. Assim, deita e de cabeça para baixo em rela-
ção ao malabares a (o) artista tem que coordenar membros inferiores extremamente
habilidosos, fazendo movimentos diferentes para lidar com as variações de tato das
propriedades dos distintos aparelhos.
Esta é uma modalidade que pode ser executada individualmente ou em grupo, na
medida em que é possível fazer passes ou câmbios (lançamentos dos aparelhos) entre
dois ou mais antipodistas. Nesta técnica coletiva é necessária muita cooperação, rit-
mo, pontaria e timing. Algo muito precioso de se presenciar.
Thaís equilibrando a Tranca na vertical. Foto: Cláudio Alberto dos Santos em 27/02/2014. 79 OGER, Christian. “Équilibristes, Jongleurs et Funambules” in: RENEVEY, Monica (org.) Le Grand Livre du Cirque.
Genebra:Bibliothèque des Arts, 1977, (vol.2)
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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE ANTIPODISMO COM TRANCA

Os orientais comparam os aparelhos em movimentos a dançarinos. Como se o obje- O professor também aponta como até no meio profissional podiam se contar os ar-
to dançasse com vida própria. Os chineses antigos já faziam proezas com guarda-chu- tistas da modalidade nos dedos de uma mão. Alguns brincam com a situação dizendo
vas, tubos de madeira, placas, tapetes, leques, rodas, jarras grandes, mesas, escadas que os poucos praticantes ou vão ficar ricos (pela pouca concorrência) ou vão desapa-
e cadeiras. A partir de várias referências percebe-se como este malabarismo era uma recer. Por que está escasso?
forma altamente desenvolvida de arte na China antiga. Além do fato que é uma modalidade que não é fácil desenvolver a fluência por ser
A novidade é que existem três evidências históricas da prática autóctone em ter- de evolução lenta, muitas pessoas não conhecem e, então, fica mais difícil vender o
ras latino americanas: as pinturas de 1529 do alemão Christoph Weiditz80, o Códice número para outros espaços que os circos de lona. O Pirajá mesmo fala que muitos
Florentino (Sahagun Troncoso)81 e o livro de Clavijero. Tal atividade cultural entre anos essa modalidade ficou “desaparecida” na ENC. Na leva da Bolsa 2013 dos cin-
os astecas era considerada um jogo ritual na região do México e era chamada Xo- quenta alunos que ingressaram nenhum se interessou por antipodismo com Tranca.
cuahpatollin. Os procedimentos para execução de sua performance são bastante Nenhum aluno assinou grade. O César e Serragem fizeram Icários por um tempo,
semelhantes aos do antipodismo contemporâneo: uma pessoa deitava no chão sobre pouco tempo.
um couro com suas pernas esticadas e pés voltados para cima equilibrando um peda- Uma mente mais individualista pensaria que o fato de ter poucas pessoas fazendo
ço trabalhado de madeira roliça na horizontal e depois girava-o rapidamente nesta e no Rio de Janeiro isso daria mais destaque quando aparecer alguém se apresentando.
em outras posições. Além disso, rolavam o aparelho em seu eixo e, por vezes, faziam Mas, esta perspectiva não é compartilhada pela aluna Thaís Caroline:
lançamentos de uma ponta a outra ponta e novamente voltavam-no para a posição
horizontal. 82 “Eu acho que quanto mais pessoas fazendo seria mais incrível.
Os Jogos Icários ou Icários (icarien), como são normalmente conhecidos também Para fazer trocas, passes e etc. sabe? Seria mais legal porque da-
são um tipo de antipodismo, mas com a diferença crucial que ao invés de objetos ou ria para gente explorar mais movimentos como as chinesas fazem.
coisas os movimentos são feitos com pessoas, entre um (a) portô e um (a) volante. Isto Cara, as chinesas também são uma inspiração que às vezes dá
é o que distingue os Icários dos outros tipos de antipodismo. Nesta perspectiva, ele até raiva de ver. Poxa! Elas fazem segundas e terceiras alturas
pertence ao universo da acrobacia e os demais que envolvem objetos pertencem ao com a tranca. Se tivesse mais pessoas aqui a gente poderia até
universo do malabarismo. No entanto, não é muito difícil encontrar quem faça mistu- treinar umas coisas assim, diferentes. Mas, aí acaba limitando
ras e combinações juntando as duas modalidades num mesmo número. O que torna um pouco. De qualquer forma conforme o tempo vai passando a
uma modalidade mista e de precisão extrema, neste caso. gente vai introduzindo, mostrando como é, e o interesse vai sur-
Segundo o professor, difícil mesmo na cidade do Rio era encontrar profissionais da gindo”. (Thaís Caroline)
modalidade:
Concordo plenamente com Thaís, dessa diversidade de formas e práticas do anti-
“Você sabe quantos artistas profissionais de circo estão traba- podismo que promovem intercâmbios pode surgir trabalhos muito inventivos e inte-
lhando com tranca agora no Rio de Janeiro? Um tá no circo dos ressantes. Por outro lado, é bom lembrar também de outros alunos formados pela Es-
Sonhos, tem o Ricardo que vai viajar com o Up Leon, tem a Olga cola que ainda atuam neste aparelho, como a Roberta Justen, o Anderson, o Khaynã e
e tem o Alex que é um padre franciscano que foi aluno do meu pai por último, o Alberto, que se apresentou na Noite Clássicos dos Tradicionais durante
aqui. Nas missas de domingo ele faz tranca no altar para os fiéis o Festival Mundial de Circo do Rio de Janeiro em 2014.
dele (...) Ninguém tá fazendo esse número não. É mais fácil fazer Expandindo mais um pouco o alcance geográfico e temporal encontra-se o inesque-
uma lira e um tecido do que fazer isso aí. Sabe quantos aéreos na cível Don Ramón, um dos mais importantes artistas de circo no Brasil. Ramón Fer-
prova de amanhã? Todos! 17 aéreos!” ( Pirajá) roni, argentino de nascimento teve e tem grande destaque por ter sido responsável
pelo projeto e criação de praticamente todos seus aparelhos de antipodismo: cilindro,
Pirajá na época estava indignado com certo desinteresse da maioria dos alunos carta de baralho, dado barril, caixa com bastão de fogo para malabarismo. Com eles
pela Tranca, pelo Icários e pela Acrobacia de Solo. O fato é que a Tranca, por exem- nas décadas de 30 a 80, apresentou-se em quase todos os grandes circos brasileiros
plo, apresenta especificidades que a tornam de difícil execução e criação, ainda mais, (Thianny, Orlando Orfei, Garcia, etc.) e, também, Europa, Ásia e Caribe.
considerando o curto tempo existente entre uma avaliação e outra. O estudante mes- Na atualidade, temos nomes como Amanda Jardim, Duo Black Diamonds da
mo que intensamente dedicado ao trabalho com a Tranca não consegue montar um Etiópia, Tamara Putsanova, Marylou, Esterina, Miss Paty, Yasmin dell’acqua, Sti-
número tão rápido quanto é possível em alguns aéreos - desde que a pessoa já tenha liana Tomova, Lioudmila Vassilenko, Stefania Gottani, Sarah Nelly, Caroline Nie-
força e flexibilidade, coordenação motora. A Tranca é um tipo de malabares que para man, Rhodes Dumas, Les Castors (relógio gigante), Ángel Vivas Ayala (trancas),
a pessoa ter fluência tem que dedicar muito tempo. Orlene Gentile (mesa, jarros e tapetes), Jann Navratil, Sirle (trancas de fogo e bo-
las), Stefania Iarz (lenços e bolas), Selina Bogino (bolas), Ulrike Storch (charuto,
80 http://commons.wikimedia.org/wiki/Trachtenbuch_des_Christoph_Weiditz
81 SATTERFIELD, Andrea McKenzie. The Assimilation of the Marvelous Other: Reading Christoph Weiditz’s Tracht- aro e guarda chuva) e Nelli Kujansivu (bolas). Estas duas últimas, apresentam uma
enbuch (1529) as an Ethnographic Document. Department of Art /College of Visual and Performing Arts/ University of linguagem diferenciada dos demais em termos de teatralidade e uma proposta mais
South Florida. 2007.
82 REVOLLEDO, Julio. La fabulosa historia del circo en Mexico. Ciudad del Mexico: Conaculta y Escenología, 2004.
experimental de cena. Entre as incríveis chinesas destacam-se figuras consagradas

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE ANTIPODISMO COM TRANCA

como Wang Fei, Wang Hong, Lu Ping e Ling. Enfim, o antipodismo tem uma lingua- de tubo tigre (PVC, ). Tem tubo tigre dessa grossura (faz o gesto
gem mais tradicional e outra que busca diálogos diferentes com a dança, o teatro, a com as mãos). Aí você manda cortar as rodinhas de madeira. Três
contorção e outras modalidades do circo. rodinhas. Uma coloca no meio e bate quatro preguinhos para ela
Nos séculos XIX e XX trupes e artistas viajaram bastante e com grande sucesso não correr e reforçar o meio. As outras duas, uma em cada ponta,
levando a arte do antipodismo. Esses sãos os casos da trupe japonesa Ninonjin (som- depois forra para ensaiar. Não precisa nem daquela alma (bastão
brinhas, barris), Emilia Roses, Pertois (Le célèbre equilibriste de pied), Ergot e King roliço no tamanho do comprimento ) porque o PVC é mais resisten-
Luis (combinava a tranca com o colchinete suspenso no alto de uma percha), o mara- te. Ela assim pequenininha não quebra tanto. Mede por volta de
vilhoso japonês Aryama, a Royal Japanese Troupe e o macaco Consul Patsy (tranca). um metro. Dá para ensaiar bem para caramba”. (Pirajá)
Entre os circos europeus, o Sarrasani e o Strassburger merecem ser lembrados. O
Festival de Circo de Monte Carlo em suas várias edições foi um palco onde brilharam
grandes antipodistas do mundo inteiro. Na Europa, o antipodismo tem sido tradicio- Nos dois casos, seja de PVC ou papelão duro, os corpos cilíndricos recebem várias
nalmente uma modalidade mais ligada ao gênero feminino. Embora, vez ou outra camadas de cobertura de jornal, papel picado, emborrachado, E.V.A, como o charuto
apareçam artistas do sexo masculino que alteram esta constante. Nas Américas, os em destaque na foto:
representantes masculinos não são maioria, mas um dos antipodistas mais famosos
foi o Professor Risley, (que havia aprendido a técnica do Icários quando se mudou
para o Japão e a divulgou para os quatro ventos). 84 “A primeira tranca que eu botei nos pés foi
de madeira. Super pesada! Depois peguei a
de PVC um pouco mais leve. Agora essa da-
qui (de papelão duro) é boa, mas pra equilí-
Uma breve visão sobre os Aparelhos e Equipamentos brio não é tão boa. Por que as mais pesadas
A Escola Nacional de Circo oferece aparelhos que a grande maioria de pessoas não caem nos pés e firmam, já as leves não. Pra
conhecia antes de passar por ali. Seja pelo fato de ter professores tradicionais com equilíbrio a leve é pior. Faço um pouquinho
uma ampla bagagem circense, ou seja, pelo fato de receber muitas pessoas vindas de com bolas e pretendo experimentar outras
fora trazendo coisas novas de companhias e de escolas do Brasil, da América Latina e coisas depois”. (Manu)
de outras partes do mundo. O fato é que a ENC possibilita o acesso à prática, estudo
e pesquisa dos mais diversos aparelhos na modalidade do Antipodismo. Querendo ou
não, este é um espaço incrível que você tem para treinar com professores incríveis e As diferentes Trancas apresentam suas vantagens e
pessoas incríveis que chegam de todos os lados para trocar e somar experiências. desvantagens. As trancas mais leves quando são lança-
das para ficarem equilibradas costumam quicar, o que
dificulta a fluidez do movimento. Para cada tipo espe-
TRANCA
Tranca do ponto de vista da Manu. cializado de técnica como o malabarismo de lançamen-
Foto: Cláudio Santos em 14//07/2014.
A Tranca, também conhecida pelo nome de “Charuto”, é um tubo oco de madeira to ou de contato há um aparelho que atende melhor.
fina, compensado, PVC, papelão duro, entre outros materiais que mede em média de Portanto, não existe uma tranca que seja boa para tudo o tempo todo. Dependendo do
1 a 2 metros de comprimento. Sua circunferência varia entre 80 a 200 mm. A Tranca uso que se pretende fazer o que é ruim para uns pode ser bom para outros. Há que se
mais utilizada pelas alunas nas aulas é a Tranca de papelão duro. Pirajá explica como considerar também as singularidades de cada pessoa.
trabalham ela e a de PVC:

“Dá para desamassar esses charutos de papelão grosso. Põe ele BARRIL (Barrica)
deitado pega uma tábua e vai batendo com o martelo do outro lado Pirajá conta a história que seu pai encontrou um barril de vime numa loja de
e chegando ele no lugar. Mas não é só deixar no prumo. Tem que móveis usados quando estava buscando objetos cenográficos para uma peça de cir-
forrar muito bem pra proteger e não amassar de novo. Sabe onde co-teatro. A peça retratava a casa de um médico. Ele comprou duas mobílias. Uma
acha muito isso daqui? Na Rua da Alfândega. Casas de couro. Isso envernizada e a outra de vime:
serve para as fábricas enrolarem napa, couro, plástico que vão ven- “Aí, papai quando olhou assim e viu um barril de vime com aque-
der para as lojas. Depois que vendem os artigos eles jogam esses la tampa para por roupa suja no banheiro. Papai olhou e disse:
tubos fora. Você pode fazer tanto de papelão assim, como pode fazer - Puxa vida, que barril legal que dá pro Pirajá ensaiar. Trouxe
para o circo, ponteou a tampa e forrou de papel e pano. Ih, eu en-
83 Informações obtidas nos dados fornecidos pela Exposição “Don Ramón: Vida e Obra nas Artes Circenses”. saiei muitos anos, levizinho, caía na cabeça e não machucava.
http://www.fef.unicamp.br/fef/sites/uploads/circus/sicirco-2014-exposicao-ramon-ferroni.pdf
84 SCHODT, Frederik L. Professor Risley and the Imperial Japanese Troupe: New York: NYU Press. 2012.
Era uma beleza!” (Pirajá)

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE ANTIPODISMO COM TRANCA

No acervo de aparelhos da Escola, tem um barril de vime, um barril de madeira e mais diversos objetos com peso, forma, volume e aspectos variados: bolas, charutões,
vários charutos de diferentes tamanhos. Aparelhos deixados por alunos já formados barris, mesas, cruzes de Malta, cartas de baralhos e relógio redondos gigantes, pianos
ou feitos nas oficinas da Instituição. Trancas vindas do Paraná e feitas de madeira e até mesmo elefantes de vime.
compensada super fina e bastante leve. O barril de madeira tem uma alma no meio Nas apresentações nos circos e teatros geralmente esse assento horizontal é sus-
(madeira no eixo longitudinal). Neste tipo de barril a roda do meio tem que ser em penso por uma plataforma de quatro pernas para garantir uma maior visibilidade
meia lua, corta no meio um quadrado onde passa a alma encaixando para ele não para o grande público. Nem sempre foi assim. Ainda não se sabe quem desenvolveu
desmontar no meio. As das pontas são redondas e é onde bate os pregos no meio para o colchinete.
travar a alma. A cobertura do barril é com o tradicional papel holográfico também Na ENC havia vários modelos e tamanhos de colchin. A maioria foi feita nas ofi-
bastante usado em claves. Foi feita pela Nayonara (ex-aluna) que comprou o papel na cinas da Instituição. O da cor vermelha, por exemplo, tem 1m (um metro) de compri-
Rua da Alfândega. mento, 37 cm de largura, 47 cm de altura na parte mais alta (madeira) e 50 cm (com a
Como já foi dito, e não custa nada reforçar, o comprimento, peso e espessura dos espuma), 12 cm de altura na parte mais baixa (encosto dos ombros e trapézios), 33 cm
aparelhos de antipodismo variam conforme o tipo de uso, o que se busca, quem está de diâmetro (encosto). A cobertura da estrutura de madeira é feita com uma camada
praticando, qual é o objetivo, etc. Há prós e contras que são justificados a partir do de espuma de 03 cm de espessura e um forro de napa (ou similares como courino) que
perfil do praticante e do seu interesse. Além disso, tem as imposições econômicas, é fixado com percevejos e fitas. No acervo tinha um colchin que o Gato Escobar doou
como é de se esperar em se tratando da nossa realidade histórica: para a Escola. Era coberto por outro tipo de forro.
Concordo com o Pirajá quando afirma que este é um equipamento facílimo de
“Antigamente, a tranca tradicional ou era pequena ou uma dessa fazer. Na Escola travei contato com um modelo que foi projetado para viagens,
e meia. Mas aí a necessidade faz o sapo pular. Como aqui os pois ele é desmontável. Além de leve, fica bastante compacto em termos de volu-
alunos não tem carro pra fazer show começaram a diminuir para me. Este colchin possui três partes: 1) Estrutura retangular: 90 cm de comprimen-
poder entrar no ônibus. Eu adotei essa ideia: o que se faz com to, 32 cm de largura, 32 cm de altura (parede de 1,5 cm de espessura); 2) encosto;
grande faz com a pequena a mesma coisa. Tanto que depois eles 32 cm de largura, 69 cm nas laterais e 65 no centro (comprimento), são 09 ripas de
começaram a diminuir, a diminuir, só tá essa aqui que é a maior”. 3 cm de largura (parede de cm de espessura), há um espaço entre uma ripa e outra
(Pirajá) de até uns 0,5 cm. 3) apoio para os ombros; (21 cm de diâmetro), 10 cm de altura;
02 parafusos de 13 cm comprimento, duas arruelas de aço, duas porcas borboletas.
As condições objetivas das quais as pessoas não podem escapar (plano da neces- O ângulo do encosto das costas de uma extremidade à outra é de 45º de inclinação.
sidade) fazem com que seja preciso usar a criatividade para inventar uma série de A estrutura de madeira é envernizada e aparente. Só existe uma cobertura no
astúcias, táticas de sobrevivência e adaptações para continuar perpetuando certas encosto das costas e nas travas dos ombros.
práticas artísticas. A vida apressada e apertada das grandes cidades como o Rio de
Janeiro apresenta algumas dificuldades, mas que não são totalmente restritivas. En-
fim, como aponta o professor, o importante é continuar mantendo acesa a chama do
Antipodismo. Face as adversidades as pessoas podem criar vários tipos de aparelhos,
com cadeiras, mesas, escadas, etc. Não precisa ser igual ao que era feito no passado.
A inventividade é que mantém a coisa viva. Como disse o Pirajá no dia 09 de abril de
2014, durante a nossa visita ao acervo da ENC:

“Vai da criação, das ideias e do que o camarada quer fazer! Não


tem limite. Você só escuta falar. Ótimo! E eu apoio tudo isso. Nes-
se ponto eu não sou quadrado não. A minha época foi uma, a
época deles é outra. O negócio é não parar de fazer. Antigamente a
banda de circo tocava hoje é som eletrônico. E aí? Não deixa de
ser circo”. (Pirajá)

COLCHIN
Nos últimos dois séculos no Ocidente, (as) os antipodistas passaram a utilizar um
aparelho chamado de colchinete ou simplesmente, colchin. Sobre ele, na posição hori-
zontal a (o) malabarista deitada (o) encaixa sua bacia, costas, ombros e pescoço. Com
o colchinete houve um aumento da estabilidade do tronco para a projeção no ar dos

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE VIDA ARTÍSTICA E FORMAÇÃO
“tinham muitos aventureiros que chegavam nas cidades, e ao in-
VIDA ARTÍSTICA E FORMAÇÃO vés de evoluir o circo, jogava o circo lá embaixo. Deixava aquela
má fama. Eu brigava muito com isso. Eu falava para os prefeitos:
- Os dedos das mãos não são iguais! Se o senhor não me liberar a
No período do trabalho de campo, o Professor Pirajá85 tinha setenta e sete anos
praça pra eu trabalhar o senhor não vai saber quem é a minha
de vida e setenta e um de profissão. Não foi por acaso que ele estreou no picadeiro
família. Quem sou eu. Aí eu passei a usar carta de recomenda-
aos seis anos de vida. Pirajá é bastante versátil. Pau para toda obra. Ele nasceu
ção. Eu tenho várias cartas”. (Pirajá)
numa família circense itinerante e tem muita história para contar:

“Eu sou da quarta geração circense. Veio o


meu bisavô, veio o meu avô, veio o meu pai,
e veio a minha geração, que é a quarta. A
quinta geração dos meus filhos e dos meus
sobrinhos não optaram pelo circo embora
tenham nascido debaixo de lona. Eu tive
um circo em sociedade com meus irmãos. 35
anos de empresa. Nós somos cinco irmãos.
Todos os cinco casados com moças de cidade
e que não tinham nada de origem de circo.
Então, vieram os filhos. Minha esposa e mi-
nhas cunhadas não descuidaram dos ensi-
namentos dos filhos. Foram sendo transfe- Família Azevedo. Número da Ponte Primeira lona e trailer da sociedade entre os irmãos. S/d . S/a.
ridos de um colégio para o outro no Brasil”. Humana. Augusto, Conhita, Franck,
(Pirajá) Afonso, Orlando, Anapuru (20/08/1938. Os filhos de Pirajá e dos irmãos não só nasceram debaixo da lona como passavam
o Natal no circo com os funcionários. No feriado de Ano Novo iam visitar os avós e pa-
O professor veterano contou que o seu bisavô era engenheiro e veio de Portugal rentes que moravam em residências fixas em cidades espalhadas pelo país. Pirajá su-
para abrir estradas no nordeste. Que ele já fazia ginástica olímpica e gostava muito gere que estas visitas na adolescência influenciaram-nos a deixarem a vida nômade:
de circo em Portugal. Chegou a Alagoas e conheceu uma aramista circense. A partir
daí ele abandonou a engenharia e começou tudo. Ele casou com a sua bisavó. Veio a “eles vinham com a cabecinha mudada de não querer fazer mais
prole. Ele teve muitos filhos. circo. Dizem que não tem, mas ainda existe muita descriminação”.
Esses filhos casaram... (Pirajá)
Historicamente, as principais modalidades da
Família Azevedo foram a Acrobacia de Solo, o Equi- Então, ele e seu irmão mais velho reuniram-se
librismo, Arames e Jogos Icários. Nesse circo tinha com os outros três irmãos e desfizeram a sociedade.
uma tradição muito interessante. Todo dia de São Venderam o circo. O mesmo circo em que haviam
Cosme e Damião tinha ao menos um espetáculo trabalhado tão duro para melhorar ano após ano.
aberto e gratuito para a criançada da cidade onde Transformando ele de uma estrutura de madeira
estivessem. Isso porque o irmão caçula do Pirajá ha- para ferragem. Eles mesmos haviam feito as jaulas,
via feito esta promessa para conseguir comprar o aparelhos lanchonete, bilheteria e até trailers. Os
circo. animais eles doaram mos para o zoológico e cada
Pirajá lembra que na época que teve um circo e irmão foi para junto do seu sogro. Foram para Cam-
viajava pelo interior ele tinha sido um empresário pos, Juiz de Fora e Teresópolis. Um foi trabalhar
que havia “brigado” com muitos prefeitos, padres como caminhoneiro, outro montou uma oficina me-
católicos e pastores de igreja evangélica. Isto por- cânica, teve um que montou uma serralheria. Ele,
que, segundo ele: Pirajá, foi o único felizardo que foi para a cidade do
Agostinho Bastos como palhaço
Desaperta. Pai de Pirajá. s/d
Rio de Janeiro e que manteve-se ligado a este mun-
do apresentando-se nos mais diversos lugares como
85 O nome Pirajá significa na língua tupi um lugar de abundância de peixes como um viveiro (pira-ya). Seus irmãos
também receberam nomes indígenas.
Pirajá com 14 anos em: O céu uniu dois
corações. Circo Real Palácio.. s/d
boates do Rio na praça Mauá e em Copacabana, na

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE VIDA ARTÍSTICA E FORMAÇÃO

baixada fluminense, Guanabara, Pavuna, Anchieta e Realengo. Outra maneira de vida de circo. Seu lema era: “De um trailer para de baixo da lona. De baixo da lona
continuar no mundo do circo depois disso, foi através do trabalho como professor em pra o trailer”.
ONG’s e, sobretudo, na Escola nacional de Circo, onde já lecionava há dezessete anos.
Mas, antes de ter o circo junto com os irmãos ele trabalhou muito tempo no Circo
Garcia e em grandes empresas circenses na época como Circo Prancovich e Circo Oli-
mecha, entre outras.
Como foi o aprendizado do professor? Quem lhe ensinou os diversos truques e
exercícios? Quais foram seus caminhos?

“Na infância eu entrei pela primeira no picadeiro com meu pai com
a idade de 06 anos. Eu aos cinco anos eu já treinava com o meu
pai. Então, eu era o aparelho dele. É um número de origem ja-
ponesa. Ele deitava, ficava com os pés pra cima, me colocava nos
pés, eu fazia várias posições, parecia uma bolinha nos pés dele. A
minha estreia foi em Minas Gerais, em Mariana. Meu pai entrava
de palhaço com aquela roupa folgada e eu entrava dentro da cal-
ça dele. Então ele entrava, cumprimentava a plateia, deitava, colo-
cava as pernas pra cima. Os funcionários colocavam os aparelhos,
a tranca, a barrica. Ele jogava. Eu deitadinho. Ninguém me vendo.
Quando ele lançava o aparelho para o empregado e ele levantava
pra cumprimentar a plateia, aí que ele abria o paletó, tirava eu das
calças dele. Aquilo ali já era um sucesso! O povo caía na risa- Pirajá aterrissando no ombro de seu pai Agostinho Bastos portando dois volantes
da. Eles não sabiam que tinha uma criança nas calcas dele. Ele me após salto na Báscula. S/d na 2ª altura. S/d
tirava, eu cumprimentava a plateia. Aí eu já ia sentar nos pés dele Aí um belo dia foi chamado no Sindicato dos Artistas pela Rosa Maria Murtinho.
e ele ia fazer os truques que antes ele tinha feito com os aparelhos Ela o convidou para dar uma oficina para a primeira turma da Malhação da TV Glo-
nos pés. A minha estreia foi uma coisa muito interessante. Assim bo. Foi aí que começaram a descobrir o lado professor do Pirajá. Até então, ele havia
que eu cumprimentei foi uma salva de palmas maravilhosa! Aí o ensinado somente os seus irmãos mais novos o que havia aprendido com o pai de uma
pessoal da primeira fila de cadeira começaram a jogar moedas. maneira informal. Posteriormente, trabalhou por quatro anos num projeto de circo
Aí ele olhou pra mim e falou: - Tá vendo como você agradou? Estão social no Caju com 80 crianças de rua ou em situação de vulnerabilidade social:
jogando até moedas! Aí eu perguntei: - Pai, eu posso pegar? Pode?
Aí eu peguei o chapéu de palha dele e comecei a pegar o dinheiro. “E foi um trabalho MARAVILHOSO! Ali eu já comecei a fazer as
Paralisou o número só pra pegar o dinheiro. Só depois de muito claves de garrafa pet. Bolinhas feitas de serragem com meias. A
tempo que eu fui saber que foi ele que tinha dado as moedas pra verba ainda não tinha entrado. A gente tinha que mostrar alguma
plateia me incentivar a ser artista de circo. (risos) E de lá pra cá coisa filmada para os patrocinadores. Foi a maior experiência que
eu não parei mais. Até hoje estou trabalhando com muito amor a eu tive na minha vida. Por que eu fui lidar com um público com-
arte que eu faço”. (Pirajá) pletamente diferente do que eu conhecia. Aí eu comecei a dar uma
de psicólogo, sem ter estudado. Por que vem as crianças proble-
Pirajá teve como principal professor o seu próprio pai, o senhor Agostinho, tam- máticas, crianças brigando com o pai, querendo sair de casa, crian-
bém professor da ENC nos anos 80 e 90. O mestre aprendeu com outro mestre a arte ças vindo armado. Eu falava com eles, dava conselhos, e daqui a
do volante na modalidade dos Jogos Icários. Isto começou desde muito cedo, algo co- pouco ele tirava a faca e me entregava a faca de presente: - Olha,
mum em várias tradições pelo mundo. o senhor guarda essa faca pro senhor, de presente. Daqui a pouco
A tática do pai do professor para “enfeitiçá-lo” com a magia do circo é de uma as- vinha uma que saiu de casa pra querer vir morar comigo porque
túcia impressionante. Funcionou tão bem que o efeito foi permanente. Embora, isso o pai batia muito nela. Aí eu falava: - Calma! Tá entendendo?”
não tenha livrado o mestre de passar por situações complicadas. Pois, quando foi ( Pirajá)
para o Rio, depois de vender o circo, passou por um dilema muito grande, porque sua
vida era o circo. Ele havia se casado dentro de uma lona. Quando venderam o circo Após esta transformadora experiência de alguns anos com esta realidade so-
cada um dos irmãos já tinha uma casa na cidade dos seus sogros. Pirajá só tinha o cial e cultural tão sofrida materialmente falando, ele foi contratado pela Escola Na-
terreno que era ao lado da casa da sua sogra. Mas ele jamais pensava em parar sua cional de Circo, onde trabalhou com jovens e adultos com condições de vidas as mais
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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE VIDA ARTÍSTICA E FORMAÇÃO

diversas. Quando comprou o seu primeiro caminhão ele ajudava nas mudanças dos diagonais frontais e traseiras buscando o equilíbrio tornando trazer o charuto para o
circos de colegas que encontrava no Café dos Artistas. Na Escola ao longo destes qua- centro. O objetivo é desenvolver condições de buscar a tranca recupendo da estabili-
se 20 anos de uma versátil docência passou por várias modalidades como Acrobacia dade quando estiver jogando de “ponta a ponta” (de uma extremidade para a outra).
de Solo, Trampolim, Báscula, Icários, Duo Acrobático, Dândis, Tranca, entre outros.
6º Educativo: Equilibra a tranca na vertical com um pé e depois com o outro. O
pé que não estiver sustentando o aparelho faz ponta e a perna fica esticada paralela
a outra perna. Compasso binário.
O Saber das Aulas
Após realizar estes seis exercícios, o passo seguinte é desenvolver todos eles
Uma das características notadas na aula do Pirajá foi o vasto, diria quase inesgo- num andamento cada vez mais rápido. Isto para aprender desde cedo que a veloci-
tável repertório de truques que ele ensina para suas alunas. Seria demasiadamente dade é um dos principais elementos estéticos desta modalidade. Geralmente, quanto
extenso descrever todos. mais rápido, mais impressionante e espetacular é a performance.
De grão em grão a galinha enche o papo. Nesses mais de quatro meses muita Depois que a(o) aluna(o) realiza esta base em andamentos rápidos (120 bati-
coisa aconteceu. Foi de encher os olhos. Através da observação participante e da das por minuto) conseguirá maior êxito em executar os cinco seguintes truques para
preciosa ajuda do professor e das alunas, sistematizamos um série de educativos iniciantes:
para a iniciação na Tranca. Esta é a base. O fundamento que deve estar no come- 1º - Gira três vezes no pé com a tranca na posição horizontal, joga para as mãos e
ço do aprendizado. O ritmo estrutura todos estes movimentos. Tudo é feito com os também gira três vezes e lança para os pés novamente. O importante é manter o fluxo
tempos. O professor conta os tempos 1 - 2 enquanto a aluna executa o exercício. São do andamento. Compasso ternário.
compassos binários e quartenários. Os movimentos são marcados nas cabeças dos
tempos, constituindo-se muitas vezes em acentos. 2º - Com a tranca na posição horizontal inclina os pés para frente até chegar num
ângulo próximo a 45º, estende os pés fazendo ponta de modo que a tranca escorra so-
1º Educativo: equilibra-se o charuto na horizontal com as pernas esticadas, fle- bre as pernas até ser aparada pelas mãos na altura do quadril. Em seguida, empurra
xiona os joelhos descendo-os em direção a um dos ombros, depois estende as pernas a tranca com as mãos para voltar com as pernas inicialmente numa posição mais
novamente e flexiona os joelhos em direção ao outro ombro. Alternam-se os ombros horizontal e quando o aparelho chega nas canelas (tíbias) levanta as pernas fazendo
por quatro vezes. Para que haja fluência é necessário estar atento aos movimentos com que a tranca seja projetada para o alto e depois equilibrada com as solas dos dois
laterais de quadril. O objetivo é manter o equilíbrio numa posição em que o charuto pés. Deve-se tomar cuidado para no momento de voltar a tranca para os pés não pro-
fica nas diagonais quando estão em baixo; jetá-la muito para o alto. Recomeça e repete até conseguir maior fluência.

2º Educativo: (“chutinho”) com as pernas esticadas e equilibrando o charuto


na horizontal, flexiona um pouco os joelhos e estica com o vigor necessário para a 3º - Partindo da posição inicial da tranca (aparelho na posição horizontal apoiado
tranca sair dos pés uns 30 cm rumo ao alto. Faz umas oito vezes. Quando o charuto nas solas dos pés, pernas esticadas em 90º) inicia-se os giros no eixo ântero-posterior
toca novamente os pés flexionam-se os joelhos de modo a amortecer o aparelho e esta- colocando-se a tranca travada entre a sola do pé esquerdo e o peito do pé direito atra-
bilizá-lo. “Você dá o chutinho no charuto para cima. Pra começar se adaptando para vés das forças contrários dos pés, onde o esquerdo empurra em direção ao céu e o di-
os Icários para quando o volante bater no pé do portô não ter o choque e não machucar reito empurra em direção ao solo. Nesse momento inicial os joelhos estão flexionados
os rins”. (Pirajá) e a tranca no plano baixo. Na medida em que a perna esquerda vai sendo esticada o
pé direito acompanha o movimento da tranca passando para baixo dela enquanto o
3º Educativo: dos pés na horizontal o charuto é jogado para as mãos e das mãos outro que já estava em cima volta rapidamente para equilibrá-la na posição inicial e
lança-se o charuto para os pés com as pernas no eixo vertical (90º). Repete isso oito recomeçar o movimento. Isso cria uma força que faz o aparelho girar no sentido horá-
vezes. rio usando apenas o contato dos pés. Para fazer no sentido anti-horário é só inverter
a posições dos pés e seus movimentos. Esse giro tem semelhanças com o movimento
4º Educativo: (“pedalando”) Com o charuto perpendicular ao solo desliza-se os da acrobacia de solo chamado estrela ou pantana. Isso porque o giro mantém contato
pés para frente e para trás de forma a fazer o aparelho girar em seu próprio eixo com um apoio (no caso, os pés) e por ser lateral. A rapidez é alcançada através de um
horizontal. Os pés tocam suavemente de forma a dar impulso e velocidade aos giros. paciente treino de repetição, concentração e ritmo.

5º Educativo: Coloca-se o charuto em pé (vertical) nas mãos dobra os joelhos até


encostarem no tronco e de modo a posicionar os pés por baixo do aparelho. Em segui- 4º - Mortal lateral: No caso do charuto ou tranca partindo da posição horizontal
da, estica-se as pernas com o aparelho na vertical bem devagar. Daí em diante des- é possível o mortal lateral (no eixo ântero-posterior) com semelhanças com o salto
loca-se o aparelho do centro (90º) para baixo/trás/frente/lado esquerdo/lado direito/ árabe feito por acrobatas no solo. Nesse truque como se pode deduzir do próprio nome

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE VIDA ARTÍSTICA E FORMAÇÃO

não há contato do aparelho com nenhuma base no momento do giro. Os movimentos que era uma modalidade. Eu pensei que a guri botou as bolas
saem da posição inicial no momento em que um dos pés empurra bruscamente ( num nos pés e ficou tentando. Nossa isso é uma matéria, uma modali-
pisão com a sola dos pés ). Como é feito fora do eixo central em uma das laterais de dade. Desde o primeiro instante eu sabia que eu ia querer fazer.
equilíbrio, isso faz com que o aparelho gire no ar e seja aparado pelos dois pés que se Vou fazer tranca! Vou fazer tranca!” (Manoela)
abaixam no momento do chute.
De fato, a relação com a tranca não foi passageira. Mas, pretendia abraçar como a
“o chute tem que ser mais próximo de uma das pontas, porque se sua modalidade? Fez três provas de tranca e uma apresentação. Com dois meses de
fizer no meio não vai girar.” (Manu) aula ela já fez a primeira prova. Isso demonstra um grande envolvimento com este
tipo tão peculiar de malabarismo. Quando o trabalho de campo começou não fazia
5º - Meio mortal para posição vertical: O procedimento é praticamente o mes- nem um ano que ela estava praticando. Não é um aparelho que permite demonstrar
mo que o do mortal lateral com as diferenças que a força aplica no chutinho é um uma grande evolução em pouco tempo:
pouco menor e que apenas a perna que vai receber a tranca no pé que se flexiona
mais. O encaixe do aparelho no pé se dá numa posição baixa em que os joelhos estão “Eu sei como é muito difícil. As pessoas que estão olhando não
semiflexionados. imaginam o quanto a gente rala pra aquele truquinho que não
dá efeito, sair. Na hora do nervoso, meu Deus, você coloca aquela
Devagar se vai ao longe. Durante este trabalho de campo pude observar como a bola no pé e ela fica sem peso. É compensador, mas se tu erra você
aluna Manu aperfeiçoou a alternância do equilíbrio da tranca na posição vertical tem que cumprimentar o público com aquela cara de pau! Querer
passando de um pé para outro. Fez isso inúmeras vezes. Repetia dia após dia. Per- que eles me aplaudam por algo que eu não to satisfeita. É foda! É
manecia uns 15 segundos equilibrando em cada. O pé que não estava equilibrando muita cara de pau. Faz parte. Normal. Uma hora perde, mas
o aparelho ficava em posição de ponta e a perna outra hora tem que sair”. (Thaís) 86
toda esticada num ângulo de 90°. Nesse exercício
ela segurava a traseira do colchin de ambos os la- No começo do aprendizado da tranca os músculos dos trapézios ficam doendo em
dos. Depois de equilibrar no pé direito ela fez meio função do contato com as travas do colchinete. Mesmo que sejam acolchoadas isso
giro lateral (no sentido anti-horário). Ela recebia acontece até o corpo se acostumar. O aprendizado é mais longo. A tranca é um ma-
a tranca na posição vertical nos dois pés juntos. labares. No cotidiano a gente não usa os pés para quase nada se comparado ao uso
Manu também treinou esse truque por algum tem- que se faz das mãos. Além disso, tem a mudança de perspectiva. A malabarista vê o
po. Em seguida, fez vários giros do aparelho na po- aparelho de baixo para cima, com outra sensação de profundidade que a oferecida no
sição horizontal, voltava a equilibrá-lo na posição dia a dia nas mais diversas atividades.
vertical com os dois pés e após com apenas um pé. Talvez, por isso muitas vezes as pessoas em geral não compreendem o grau de
Outro truque realizado foi equilibrar com um dos dificuldade do número. Pirajá ensinava sempre que o artista circense tem que estar
pés a tranca em pé e movimentá-la de modo que atento a isso e saber como dialogar com o universo da plateia. Estabelecer empatia,
fizesse meio giro para frente quicando no outro identificação, ganhar o público através da expressão e da comunicação artística. A
pé e voltando para o pé que estava equilibrando questão também está em como organizar o número de forma a não tornar nenhum
antes. O professor fez algumas observações sobre dos truques muito repetitivo ou cansativo. Interessante ver a humildade da aluna em
estes e outros truques e no final diz que ela estava reconhecer que existem dias em que também “se perde”. Demonstra capacidade de
indo bem, que só precisava continuar treinando e reconhecer os próprios limites e ao mesmo tempo ensina que é na luta, na prática que
Manu recebendo instruções.
ensaiando sempre. Foto: Cláudio A. dos Santos. 14/03/2014
se pode ganhar. Se não insistir, se não perseverar é impossível conseguir uma satisfa-
Manoela não conhecia a tranca antes de estu- ção técnica mais plena com este aparelho. Este é um dos fascínios desta modalidade.
dar na ENC. Ela chegou na turma da Bolsa para Formação em Artes Circenses de Observei neste tempo que pude ficar ali acompanhando as aulas, como a aluna
2012. Ela é do Rio Grande do Sul. O que explica o seu repentino interesse? Segun- Thaís foi desenvolvendo a jogada da Tranca na posição vertical de uma ponta para
do suas próprias palavras: a outra ponta. Primeiro, ela equilibrava com os dois pés e depois dava um pequeno
chute na extremidade da tranca de modo que ela fizesse o meio giro. Às vezes, a força
“Aqui (na ENC) tinha o Khainã, um guri do Rio Grande do Sul era muita e o giro saía muito rápido sendo difícil dominar o equilíbrio na chegada.
que fazia. A gente sempre ficava conversando, né? Daí eu vi ele Pirajá falou para ela fazer com mais leveza e suavidade. Ela concordou. Tentou
fazer e achei muito massa. Ele disse: Vem aqui e faz depois da mais algumas vezes e depois manipulou o aparelho com as mãos por entre as pernas
aula. Acabava as cinco horas e daí eu ficava treinando com demonstrando um bom alongamento. Fez o meio giro da tranca na posição vertical
ele. Só que eu não conseguia nada. Eu nem sabia. Eu vi o vídeo de
86 Após se formar na ENC Thays foi contratada com o número de Força Capilar por um dos maiores circos chineses, onde
uma guria fazendo com bola e achei o máximo, mas não sabia trabalha neste junho de 2016.

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE VIDA ARTÍSTICA E FORMAÇÃO

para a posição horizontal. Girou várias vezes na posição horizontal e depois fez o se relaciona com uma tática para melhorar seu treinamento em termos de concen-
lançamento para as mãos que também continuavam girando a tranca na posição ho- tração. Ela fica mais atenta porque a modalidade permite um “isolamento” suficiente
rizontal e no sentido anti-horário. Fez o lançamento do aparelho das mãos para os para fazer convergir sua dedicação e trabalho no processo de ensino/aprendizagem.
pés sem perder o fluxo dos giros, voltou a manipulá-lo girando por entre as pernas. A parte dos equilíbrios é onde tinha mais dificuldade. Sua rotina de treinamento
Lançou das mãos para os pés e fez a tranca ficar girando no eixo sagital várias vezes se constituía de duas aulas (dois horários) da grade formal de Tranca na Escola. Tam-
como um barril. bém praticava pelo menos um pouco nos fins de semana em casa quando não estava
Lançamento dos pés para as mãos em giros voltando para os pés, quicando nas ca- trabalhando. Tentava não parar por mais de uma semana. Sabia que depois de estar
nelas (tíbia e fíbula), indo para os pés, quicando nas canelas e voltando para as mãos. cinco, seis dias sem treinar a pessoa sente uma diferença. Tem certo estranhamento.
Fez esse truque mais algumas vezes. Lançamento das mãos para um pé com a tranca Dizia que a (o) antipodista tem que praticar diariamente. Assim ele alcança resulta-
na posição vertical. Praticou até o fim do horário da aula. dos impressionantes e a evolução é muito mais rápida. Quando tinha que faltar ela
Thaís é de Foz do Iguaçu. Conheceu o circo em Londrina através de seu irmão. Fez tentava compensar treinando um pouco a mais fora do horário da aula.
malabares em sinais de trânsito. Estudou na Escola de Circo de Londrina onde co- Ela normalmente antes de começar a fazer os exercícios/truques fazia um breve
nheceu futuros colegas da ENC como o David Santos e o Alisson Almeida. Fazia Edu- aquecimento e depois alongamentos básicos:
cação Física na UEL. Não chegou concluir a faculdade. É da turma da Bolsa de 2011.
Depois se tornou aluna regular do Curso Técnico mantendo sempre o treinamento e “Tento dar uns piquezinhos para aquecer. Eu sempre faço pelo
o aprendizado nas aulas de Tranca. De onde vem o fascínio? menos o espacate. Quando mais alongado e esticado você esti-
ver deitado a técnica é mais limpa. Dar uma aquecida com o
aparelho: levantar, equilibrar, girar. Acordar os músculos que
estiverem dormindo. Nessa posição deitada exige uma flexibili-
dade maior”. (Thaís)

Durante a última semana de março, Manu e Thaís trabalharam individual-


mente o Antipodismo usando bolas. Praticaram vários exercícios/truques diferentes.
Primeiro: posição deitada da(o) antipodista com duas bolas nas mãos e uma no pé
direito. Joga a bola da mão direita no pé esquerdo. Empurra a bola do pé direito para
a mão esquerda. Joga a bola da mão esquerda para o pé direito. Empurra a bola do
pé esquerdo para a mão direita. Recomeça o ciclo. A espetacularidade desse truque
está, sobretudo, na sua velocidade. Parece que quanto mais rápido mais atraente fica.
Segundo: bola em cada pé e uma na mão. Primeiro joga a bola que está na mão
para os pés pela parte da frente das pernas e quase ao chegar às bolas que estão nos
pés são empurradas levemente pelas laterais e são pegas pelas mãos, uma de cada
lado.
Terceiro exercício/truque (“chuveiro”): duas bolas nas mãos e uma no pé,
joga a bola da mão direita para os pés, quase ao chegar com uma leve inclinação la-
Thaís sol no Lançamento do Edital Cultura/Diversidade com a Mini. Marta Suplicy. 07/08 /2014. Foto: Cláudio.
teral aberta do pé esquerdo faz a bola escorrer para ser pega na mão esquerda que
enquanto isso passou a bola que estava nela para a mão direita recomeçar o ciclo por
“Na ENC eu conheci o Antipodismo, que é uma modalidade que duas vezes e depois recomeça no sentido horário fazendo três vezes também.
eu amo de paixão, onde eu vi que eu servia para alguma Quarto: uma bola nos pés e duas bolas nas mãos, diminui o grau de 90° para uns
coisa no Circo, porque até então eu não conseguia me achar. A 45° deixando a bola escorrer entre as duas pernas juntas, joga a bola da mão direita
primeira pessoa que eu vi foi a Roberta Justen quando parti- para os pés, deixa a bola escorrer novamente e agora joga a bola com a mão esquerda.
cipei da Formatura dela como barreira na época em que cheguei Reinicia o ciclo.
pra bolsa. Nossa! Eu me apaixonei! Eu já gostava de malabares. Quinto: duas bolas nas mãos e uma no pé, deixa a bola do pé cair na mão esquerda
Quando vi eu disse: Gente é isso que eu preciso fazer!” (Thaís) que enquanto isso joga a bola que estava nela cruzando para o lado direito e a bola
que estava na mão direita para a esquerda. É uma cascata com as mãos estando na
Ela se considerava com certo problema de concentração. Segundo ela própria, nas posição deitada de costas usando as bolas como malabares.
outras modalidades qualquer coisa que ela começava a conversar tirava o seu foco. Sexto: joga a bola da mão direita passando por cima da bola que vem da esquerda
No Antipodismo como ela ficava deitada olhando só para tranca na sua frente não era para mão direita, joga essa bola que veio da mão esquerda para o pé enquanto desliza
qualquer coisa mais que a deixava dispersa. Assim, a escolha pelo aparelho também essa bola pelo lado esquerdo. A bola que antes estava na mão esquerda é passada

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE VIDA ARTÍSTICA E FORMAÇÃO

para a mão direita um pouco antes de receber a bola que vem do pé. É importante velocidade que vai aumentando com os giros. Não precisa traba-
manter o mesmo andamento durante a realização do exercício. Depois faz do lado lhar com os pés é só aparar o aparelho”. (Pirajá)
contrário.
Estes exercícios apresentam dificuldade por envolverem uma coordenação motora O professor faz demonstrações com gestos enquanto Manu está com a tranca
apurada e precisão de vários movimentos em perfeita sincronia. São para um nível no pé pontuando os diferentes ângulos e posições a tranca deveria ou não estar. Isto
mais avançado. As malabaristas têm que pensar e agir com as mãos e pés ao mesmo é, na horizontal e centralizada em relação a posição dos pés.
tempo. Ao todo são quatro elementos (dois pares) que a pessoa precisa estar atenta Ela queria fazer esses quiques e depois equilibrar a tranca na vertical só com um
a cada um deles. Atenção e coordenação. Com treino qualquer pessoa, em potencial, pé. Ele continuava dando indicações precisas para ajustar os movimentos:
consegue fazer.
Interessante notar que as alunas quando vão se levantar do colchinete pegam um “Capricha, que esse número está em extinção que nem o mico
impulso levando as pernas, primeiro para trás e só depois pra frente. Isso faz com que leão dourado. Esse número tá sumindo (...).Conseguiu, mas con-
subam sem dificuldades, já que o quadril fica mais alto do que os ombros. Quer dizer, seguiu mal. Marcou duas. Tenta marcar três (...). Pernas para trás
sem esse impulso, a subida se torna bem mais difícil e exige bem mais da musculatu- é em direção aos pés e pernas para frente em direção a cabeça (...).
ra abdominal. Não seja covarde e não vai pensando na segunda não. Sai reti-
Além deste universo empírico da prática, as alunas e o professor também pesqui- nha. Segue a onda caralho! Que covardia é essa? Você tem tudo
sam em livros, em textos, vídeos da Internet também. Estão sintonizados com sua pra fazer (Após a aluna tentar o truque com sucesso). Olha aí, tá
época. Falaram-me de um antipodista que usava um piano de malabares, de outra vendo como faz? Não sai do esquadro. Joga alinhado. Não deixa
que usava um cabo de vassoura com umas cestinhas e as bolinhas iam quicando e as pernas irem para frente. Muita força agora. Tem que vir retinha
caindo dentro das cestinhas. Lembraram dos orientais, principalmente dos chineses fazendo o esquadro com as pernas” (Pirajá)
e dos seus dificílimos números como o que colocam uma pessoa na terceira altura fa-
zendo tranca com um barril. Manu trata com uma boa dose de humor situações como Logo após, o próprio professor estava inspirado e fez vários truques no aparelho
estas: demonstrando um pouco do brilho de outrora. Mas, não demorou muito, pois recla-
mou que seus pés estavam ficando dormentes e que no dia anterior no ônibus quando
“Tem loucura demais. Mas tu olha os vídeos e num sabe se te dá estava indo embora teve duas cãibras nas pernas.
ânimo ou desânimo, assim, porque são umas coisas bizarras. Mas, o que pensam as alunas sobre os métodos de aula, didáticas, enfim, o processo
Você imagina que a pessoa já nasceu com as trancas nos pés, de ensino/aprendizagem com o Pirajá?
praticamente”. (Manu)
“O Pirajá foi meu professor durante todo o tempo. A Roberta me
Durante as primeiras semanas de abril, volta e meia podia-se ver o Pirajá prati- deu muitos toques. O Alexis cubano também me ajudou. Mas, foi
cando o Antipodismo com a Tranca. O Grêmio da Escola estava organizando um espe- o Pirajá mesmo é que teve a paciência de Jó para conseguir ter a
táculo na época onde os professores seriam os artistas principais das apresentações (a perseverança de falar: - Thaís continua! Você vai conseguir. É di-
apresentação acabou não acontecendo). Em alguns dias Pirajá conseguia recuperar fícil mesmo. Ele é um ótimo professor e eu tenho muito prazer e
um pouco do brilho que tivera na modalidade, mas em outros, às vezes, sentia o orgulho de ter o Pirajá ao meu lado me ensinando, me ajudando e
peso dos anos. Reclamava principalmente de dores nas costas e de falta de reflexo: me dando força na vida. Acho que o mais importante que ele faz
“Ô decepção !” (Pirajá). Manu acompanhava e torcia para ele acertar cada truque. é isso. Ele sabe que a gente falta, ele sabe que a gente tem os pro-
Buscava o charuto quando caía no chão. Estimulava o velho mestre a continuar ten- blemas, mas ele tem a gente como alguém da família dele. Digo
tando. O inseparável amigo e também professor na ENC Téco (Walter Carlo) o incen- isso, pelas coisas que ele fala, pelos toques que ele passa. Eu fico
tivava bastante. Para todos que passavam por ali era um prazer vê-lo treinando. muito feliz pelo professor que eu tenho antes de qualquer coisa.
Num dia destes, Manu estava aprendendo com o Pirajá como fazer três e quatro Ele é muito atencioso. Ele usa bastante educativos, técnicas que
giros de 360º seguidos, um após o outro quicando com a perna esquerda no centro do ele aprendeu com o pai dele, né? Acho que é isso, ele tenta passar
charuto e dobrando a outra perna para não atrapalhar e no final recebendo com os do jeito dele com bastante técnica de anos de trabalho.” (Thaís)
dois pés.
Ao lado, Pirajá fazia observações durante a execução do exercício e nas pausas “Foi ótimo! Ele é atencioso, tem muita paciência, está sempre
quando o aparelho caía no chão: ali dando força e quando a gente quer desanimar ele não deixa:
- sem essa, vai lá, faz, você não é menos que ninguém. Se outros con-
“Lento, bem lentinho. Agora subiu demais. Nessa sequencia você seguem porque tu não consegue? Pode ficar bravo, mas não é um
joga a primeira e já na segunda você já não precisa bater com bravo que faz você desanimar. Muita atenção, olha e corrige cada
força, é só tocar, só encostar o pé, se não vai passar. Já tem uma coisinha que ta fazendo de errado”. (Manu)

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

As alunas são unânimes em pontuar qualidades como atenção, paciência e genero- para o corpo e para mente. A quantidade de concentração necessária torna esta mo-
sidade. Para elas o significado é de gratidão. Pirajá é um professor intenso, rigoroso dalidade uma forma de meditação. Não é por acaso que é praticada por monges bu-
e ao mesmo tempo bem humorado. É um bom exemplo de como a vivência de anos no distas na Ásia. Fisicamente, é uma incrível demonstração de força, precisão, controle
circo pode contribuir para sínteses e processos de ensino e aprendizagem que ressal- e consciência corporal.87
tem a dimensão do afeto, do envolvimento emotivo e existencial. Algo próximo de uma Historicamente, as pessoas amam estar de cabeça para baixo. Existe um grande
relação familiar mesmo. prazer em ser capaz de equilibrar com o exclusivo apoio das mãos. Autoconfiança
Pois, no caso, o professor a princípio, traz visões de mundo e perspectivas diferen- em exercer controle sobre o próprio corpo que vence os tempos. A Parada de mãos é
tes deste universo escolar com muro, horário de começar e terminar a aula. As alunas uma das mais fascinantes atividades corporais conhecidas pela humanidade. Não se
não dormem, acordam, viajam ou apresentam espetáculo quase toda noite como na sabe quando a primeira pessoa a executou. Como a maioria das artes do circo, seus
sua formação em família. Ele aprendeu com o pai, tios, avós. Elas não são suas filhas, primórdios estão perdidos há milhares e milhares de anos atrás na ancestralidade
sobrinhas ou netas. Ele está ensinando para o filho de um sapateiro, médico, profes- mais remota. Tradições se desenvolveram em muitas regiões do mundo, pelas mais
sor, advogado, enfim, gente que não é artista de circo. variadas razões. Mas, independente da época, é ponto pacífico que o perfeito domínio
Diante disso, o professor conseguiu repensar em grande parte as diferenças, espe- do equilíbrio em posição invertida exigiu muito treinamento.
cificidades e significados de cada tipo de processo pedagógico. Mas, ainda é um modo Nas Américas, existem registros de paradistas de mãos nos murais de Bonampak
diversificado para ele, de mudança e transformação, que talvez não conseguisse dar com diversas posições das pernas com uma ou ambas as pernas dobradas ou formando
conta totalmente. a figura de um diamante com os pés juntos.88 Na Grécia antiga, as Paradas de mão, o
Entretanto, mesmo isso talvez seja bom, pois traz o calor da emoção, da me- equilíbrio mão a mão, os números de força, e o contorcionismo eram modalidades am-
mória, da lembrança de um saber oral mesmo que reinventado na relação com os plamente praticadas. Existem vestígios de mulheres acrobatas executando ações de
alunos. Pirajá ensinava contando os seus já famigerados “causos”, as hilariantes extrema habilidade. Da China antiga, existem imagens da dinastia Han, inscritas em
e às vezes tristonhas peripécias por quais passou fazendo circo pelo país. Foram pedras e tijolos, que mostram acrobacias como a Parada de mãos em uma única mão
inúmeras as narrações em que ele interpretava os diferentes personagens com sobre um alto mastro e Paradas com as duas mãos sobre uma corda bamba.89 Mas, o
técnicas de palhaços. registro mais antigo encontrado no mundo inteiro até hoje pertence ao Brasil. Alice
Viveiros de Castro divulgou a descoberta de pinturas rupestres da Pedra Furada e da
Toca do Pajeú no Parque Nacional Serra da Capivara mostrando cenas de acrobacias
que envolvem Paradas de mãos há pelo menos 27 mil anos atrás (!).90
Hoje em dia não é muito diferente, é só olhar as crianças nos playgrounds e parqui-

PARADAS nhos, jovens e adultos nas praias e clubes, campos e quadras. A Parada de mãos está
nas atividades esportivas como os saltos ornamentais, ginástica acrobática, ginástica
artística, cheerleading, nas artes como o teatro físico e a dança, inclusive, na dança de
–Equilíbrio no Mundo de Cabeça para Baixo- rua fortemente acrobática e em vários fenômenos culturais, como a Capoeira Angola,
o Kung Fu, a Yoga e o Parkour. Sem dúvida, a Parada de mãos é prazerosa de fazer
As aulas da disciplina Paradas aconteceram no meio do pátio da Escola. Normal-
e suficientemente impressionante para atrair a atenção. Na realidade, até outros
mente, ao lado, das aulas de aéreos e do treinamento de malabarismo. Assim como as
animais fazem paradas de mãos como os pandas machos, que as usam para cortejar
outras aulas, é de regime semestral e teve carga horária total de 116 horas. Observei
as potenciais parceiras. Existem outros... 91
várias turmas do professor Edson Silva, entre fevereiro e agosto de 2014. Assim, tive
Voltando ao ambiente da Escola após esta breve introdução, é preciso que se
contato com o processo de ensino/aprendizagem de diversos alunos em níveis técnicos
diga que no turno da manhã, no terceiro tempo, Andrea Satie Nohara, Ayla Taynã,
diferentes, o que propiciou por sua vez, um conhecimento mais completo das didáticas
Carla de Albuquerque, Dailson Queiroz Lima, Edivaldo da Silva, Fredys Martinez,
e recursos usados pelo mestre.
Hector Antônio Marrache, Jennifer Gerchenson, Leonardo Ramos, Letícia Ramos,
A Parada de mãos é um dos exercícios básicos mais importantes para a acroba-
Thiago Pereira, foram os alunos regularmente matriculados. Monitoria do Thiago
cia no circo. Ela é encontrada nas mais diferentes modalidades como Canastilha,
Correa, o Índio.
Duo Acrobático, Mão a Mão, Acrobacia de Solo, Arame, Acrobacia coletiva, Rola rola,
No primeiro tempo do turno da tarde, Alisson de Almeida, Ana Julia Moro, Andrea
Trapézio, etc. As pessoas que queiram aprimorar tem que treinar todos os dias e de
Satie Nohara, Brunna Mayernyik, Cesar Augusto de Paula, Cesar Augusto Rodri-
diversas formas. Um bom domínio é essencial para aproveitar todas as possibilidades
gues, Felipe de Abreu, Gladys R. do Espírito Santo, Rafael Eckert, Rafael Souza,
de desenvolvimento motor que ela oferece.
Apesar das muitas variações de posições e nomes existentes mundo afora, a para-
87 MARMERSTEIN, Yuri & MCCREADY, Fiona. Balancing the Equation. L A: Kindle Edition. 2015.
da de mãos é basicamente a ação de manter o corpo equilibrando nas mãos, invertido 88 REVOLLEDO, Julio. La fabulosa historia del circo en Mexico. Ciudad del Mexico: Conaculta y Escenología, 2004. 89
e na posição vertical de uma forma estável e controlada. É o primeiro e talvez o mais Ver: http://kaleidoscope.cultural-china.com/en/141Kaleidoscope6520.html
90 VIVEIROS DE CASTRO , Alice. “ Acrobatas da Serra da Capivara – 27.000 anos de proezas e equilíbrios circen-
importante fundamento para ensinar o corpo a lidar com as diferenças de gravidade, ses”.2009 -Bolsa de Pesquisa Funarte/Prêmio Carequinha 2008. In: http// bloguinhojuriti.blogspot.com.br/
além de ser a base para outros movimentos. É uma prática extremamente benéfica 91 BROWN, Augustus. Why Pandas Do Handstands: And Other Curious Truths About Animals. L A: Paperback.2010.

230 231
ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

Vanessa Lopes Aguiar, Yasmin Ferreira da Silva e Nicole Rodrigues tiveram aulas Na foto anterior podemos ver como é montado o set, isto é, a organização espacial
durante o semestre. dos equipamentos e aparelhos utilizados em aula. Colchões sarnegie para alonga-
Os objetivos da disciplina dialogaram com os diferentes níveis técnicos dos alu- mentos, duas faixas de carpete cinza escuro, de aproximadamente 2m por 8m, banco
nos. Desse modo, foram desde realizar paradas de mãos lançadas com impulso e/ou sueco, mesa de paradas ao fundo, baú de madeira ao fundo, encostado na parede e
à força com estabilidade até executar Parada de cabeça sem apoio das mãos, realizar suspenso por duas cadeiras, onde ficam as peças da bengala e outros acessórios, a
paradas à força sobre diversos aparelhos e posições, executar Parada de cabeça em barra paralela, placas de EVA e sistema de lonja. A disposição dos colchões e das
diferentes aparelhos ou manipulando objetos. Isto significa que os alunos da Escola banquilhas com bengalas, evidentemente muda, dependendo da necessidade do mo-
têm condições de aperfeiçoar os fundamentos desta modalidade num percurso que mento. Às vezes, acrescentam-se colchões gordos em certos exercícios.
leva a proezas de maestria. O Prof. Silva ensina na Parada estendida a técnica baseada no alinhamento.
Relacionado ao aprendizado mais iniciante foi ministrado um conteúdo programá- Mas reconhece que pelo mundo afora também existem outras técnicas diferentes
tico constituído por Paradas de mãos lançadas em diferentes posições dos membros como, por exemplo, a dos chineses, em que o paradista enverga um pouco a coluna
inferiores: estendida, na parede, agrupada, em espacate, carpada. Paradas de mão passando da linha central e flexiona o pescoço levantando a cabeça. Segundo o pro-
lançadas sobre aparelhos (banquilha, bancos, cadeiras, mesa). Paradas de cotovelo fessor, nesta técnica é mais difícil desequilibrar para frente. “Tem uma coisa de você
em diferentes posições: espacate, envergada, carpada, agrupada, estendida. Prancha conseguir travar o corpo um pouco melhor”. Por isso, que quando as pessoas fazem
de cotovelo (“crocodilo”). Paradas de cabeça com apoio de uma das mãos. Paradas de números de altura (sobre escadas ou pirâmides humanas) muitas vezes elas se apro-
cabeça sem o apoio das mãos. Paradas de cabeça com tempo máximo sem apoio. priam dessa técnica de Parada de mãos. E é isso! Ele não ensina assim. Ele ensina
Quanto ao aprendizado que vai do nível iniciante ao intermediário, foram pra- a técnica mais atual, reta, formando uma linha perpendicular ao solo, alinhando os
ticadas paradas de mão lançadas em envergada e em abdução sobre a bengala. braços com os ombros e com contração isométrica dos vários músculos do corpo. Con-
Paradas de mão com subida na força em diferentes posições dos membros inferio- sidera que este posicionamento possibilita um maior tempo de resistência na Parada
res: em abdução, espacate, envergado, carpado, agrupado, estendido. Prancha de pelo praticante. Mas entende que existem muitas vertentes e a gente não pode fechar
cotovelos à frente. os olhos só para uma única forma.92
O aprendizado avançado englobou paradas de uma só mão com subida à força em De qualquer forma, considera importante ter um ponto de referência visual para
diferentes posições dos membros inferiores: em abdução, espacate, envergado, carpa- se olhar fixamente. Os ajustes do equilíbrio são realizados com pequenas pressões dos
do, agrupado, estendido, bem como, sequencias com desenvolvimento de variações e dedos no solo ou nos aparelhos, sem alterar o alinhamento do corpo. É preciso alinhar
um final. Prancha facial (maltesa e polinete). Paradas de cabeça em diferentes posi- os ombros sem que aumente a curvatura lombar (projetando o peito para frente). Ao
ções e movimentos dos membros superiores e inferiores. Paradas de cabeça manipu- mesmo tempo deve-se arquear o tronco ligeiramente para frente - colocando o esterno
lando diferentes objetos: giros na catraca, jogando malabares com bolinhas, rodando para dentro – e eliminar a curvatura da região lombar. Esta posição totalmente reta
ou girando aros ou fitas com as mãos ou pés. Paradas de cabeça em diferentes apare- do corpo é extremamente antinatural e carece de muita repetição e certa flexibilidade
lhos: catraca, trapézio enquanto se manipula objetos. articular nos ombros para ser alcançada.
Além das paradas individuais, existiram muitos exercícios que envolveram para- Além da Parada estendida, os alunos praticam uma série de outras figuras, como
das como mão a mão deitado e em pé, no joelho, no peito do pé, de pé sobre as mãos poderá ser percebido nas fotos que compõem este texto.
do portô, cabeça com cabeça. Portagens verticais e lançamentos: raché com parada,
raché de volta de mão para a parada, estafa em pé com mortal a frente, mortal atrás
e mortal atrás com queda em gancho.

Andrea Satie realiza uma Parada de mãos com Andrea executa uma Parada de mãos no
espacate de joelhos semiflexionados (stag). chão conhecida como Passet (passê) .

92 PAULINETTI , P. & JONES, Robert. The True Art and Science of Hand Balancing. Paperback. 2012.
Este livro mostra como usar a curvatura para trás (envergada) a fim de facilitar o equilíbrio. É uma obra que reflete o pen-
Sala de aula no pátio. Foto: Cláudio A. Santos.. 2014. samento da década de 1940, mas ainda é um exemplo da diversidade sobre o assunto.
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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

“O que me levou ao circo foi uma coisa meio mágica. Eu estava


indo para a escola estudar com minha pasta e passei em Bonsu-
cesso onde eu morava e vi uma lona montada num terreno. Era
o circo. Quando eu olhei pela cerca do circo eu vi um cara em
cima de oito rola rolas. Uma coisa fantástica! O cara se equili-
brando. Eu não entendia como o cara não caía de cima daqueles
rola rolas. O nome dele é Marco Martinelli. Até hoje me lembro
do nome dele. Depois se tornou um grande amigo. O corpo dele se
equilibrava de um jeito que mesmo indo pra lá e pra cá, pra frente e
pra trás ele tava ali em cima. O cara não caiu! Eu fui embora es-
tudar pensando naquilo. Aí entrei na sala de aula, tava escrevendo
e tal e sempre pensando naquilo. Como é que pode, né? Uma coisa
incrível? Como que aquele cara conseguiu fazer aquilo? Entendeu?
E depois que terminou a aula eu voltei pelo mesmo caminho e quan-
do eu olhei pela cortina do circo tinha um outro cara treinando. Na
época, ele era conhecido como Joãozinho das Paradas. Eu vi
o cara num braço só lá girando com o aro na bengala, dois aros
Alisson executando na bengala Parada com Andrea performando uma Parada chamada escorpião
uma mão com espacate lateral (side split). (arched scorpion). na mão, bola no pé. Eu fiquei encantando! Como é que esses
Nesta posição os dois pés juntos descem na Cabeça. caras conseguem fazer isso. Como é que ele não cai dali e tal. Eu
fui pra casa pensando nisso. Cheguei em casa, deitei no sofá. E
continuei pensando. Meu irmão como tinha mania de ir pra Co-
pacabana ganhar um dinheirinho dos gringos, e tal. Meu irmão
tinha oito anos de idade e já saltava bem (Beto). Aí ele encontrou
um domador de ursos do Tihany que estava lá no calçadão de
Copacabana e viu ele saltar. Gostou e deu um cartãozinho pra
ele do circo Tihany. Ele chegou em casa com aquele cartãozinho e
minha mãe falou: - Ih, teu irmão arrumou emprego no circo (fala
com voz fina). Mas só que ele é muito novinho, quem quer levar ele?
Quando eu escutei aquilo eu juntei tudo na minha cabeça. Eu jun-
tei o equilibrista com o paradista. Aí eu disse: - Eu! Eu quero levar
ele pro circo! Fui aí que começou, né? Eu levei ele ali na praça
onze, conversei com o secretário do Tihany. E ele falou: O menino
tem muito o que aprender e aí enviou a gente aqui pra Escola
de Circo. Assim, começou minha trajetória no circo”. (Edson Silva)

A partir dessa entrada no circo com pitada da magia e do fantástico, Edson Silva
trabalhou duro e suou a camisa como aluno da Escola. Segundo ele, como praticamen-
te todos os professores da ENC entendiam de Parada de mãos, todos os ensinaram.
Cada um ensinava um pouquinho: Assim, Silva não pode dizer que teve um único
Índio executando a Parada Beija-flor. Usa apenas uma mão. Foto: Cláudio Santos. 2014.
professor de paradas. Recebeu orientação de praticamente todos. Fez um estágio na
Sem dúvida, a variedade imensa de técnicas e posições estáticas, das quais estas, França pela Escola. Trabalhou no Cirque Frattelini durante três meses. Depois, foi
são apenas algumas amostras, só foi possível graças a formação do professor e suas para o antológico Festival Mondial du Cirque de Demain.
experiências na vida artística. O acrobata e paradista Edson Silva, de 50 anos na Na época em que começou a fazer paradas, em sua opinião, as duas maiores refe-
época, é artista formado na primeira turma da ENC. Sua experiência como aluno foi rências no Brasil, eram o Joy, que fazia o truque da “Parada com um dedo” e o Juani-
muito boa porque ele já tinha uma base dada pela capoeira, tinha muita flexibilidade to, também conhecido como Joãozinho, que tinha uma perna mais fina do que a outra.
e força. Para ele não foi tão difícil a entrada no mundo circo. Mas, de onde vem este Silva os viu em São Paulo, o Joãozinho viu no Circo Bartholo e o Joy no Circo Garcia:
fascínio? Como ele se interessou por esta arte?
Quem responde é o próprio. Com a palavra, Silva: “Eram excelentes. Aquela bengala que tá ali foi de um deles. (ele

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

pega a bengala na caixa e me mostra). Essa bengala aqui tem 150 Após tantas transformações em sua vida, não é de se estranhar a importância que
anos! Eles rodavam o aro aqui. (ele mostra que tem uma saliência dê para a arte:
há uns 10 cm dos tacos). Isso é um truque pra não cair. Isso eu não
me desfaço nunca. Teve uma historiadora de Porto Alegre que “Olha, o circo na minha vida eu acho que foi, eu posso definir as-
queria me comprar essa bengala de qualquer jeito. Eu nem quis sim, foi uma realização profissional e como cidadão também.
saber o quanto ela ia oferecer. Pra não me tentar, né? (risos)” Porque através do circo eu consegui ser muito respeitado, como sou
(Edson Silva) até hoje. O circo me deu muita coisa boa, entendeu? O circo me deu
dois filhos. Eu casei dentro do circo. Amor, dinheiro, fama, li-
Desde Martell que parava de mãos e “dançava com as pontas dos dedos”; Ernesto berdade... viajei muito. Então, pra mim o circo é tudo. O circo é
Lenardo (das welfphanomen) que parava de cabeças e tocava um piano de costas, praticamente a minha vida. Eu não consigo viver sem o circo”.
isto é, sem ver as teclas; o Trio Jurgens (que fazia paradas sobre bolas equilibradas (Edson Silva)
em barras russas), os Escamillos (especialistas em fazer cabeça a cabeça andando
no arame alto); a Max Welson Truppe, a dupla Braun & Braun, os Les Wilking; Quando fala que casou dentro do circo, isto não é uma metáfora ou figura de lin-
Knie, Joy e Unus (com a “Parada de um dedo”), Van de Velde & Co. passando por guagem. O professor de fato, casou-se sob a lona da Escola Nacional de Circo. Esse
Andrey Mantchev, Oleg Izossimov, Elayne Kramer, Pinito del Oro, Melanie Chy, sentimento de gratidão à ancestral arte é um ensinamento a parte. Mais do que uma
Svetlana Gololobova, Olga Pikrienko’s, Vladislav Khvostik, Ricardo Sosa, Andrey profissão, uma opção existencial. Há alguns anos, juntamente com o acrobata vetera-
Katkov, o mundo do paradismo sempre foi muito rico, intenso e diversificado nas no Leon Schlosser de 80 anos, percorre vários programas televisivos e faz trabalhos
técnicas apresentadas. 93 de publicidade, com a dupla O Tempo. Volta e meia viajam para os mais diversos
Silva é professor da Escola Nacional de Circo desde 1987. Isto não o impediu de lugares apresentando o seu número de Duo Acrobático que incorpora elementos tea-
fazer parte do Ringling Bros Circus, em Dallas, nos Estados Unidos, de trabalhar em trais e poéticos. Silva é um excelente portô. Trabalhou muito nesta área. Sabe como
circos na Alemanha, Itália e no Linnanmaki Park, na Finlândia, além de participar poucos sobre este fascinante ofício:
em diversos festivais na França e na Suécia.94
Dirigiu um espetáculo com artistas de rua na Inglaterra, sobre os 500 anos do Bra- “Meu irmão já me salvou muitas vezes. Ele me salvou uma vez
sil. Também dirigiu um espetáculo no Rock in Rio com o Marcos Frota, entre outros. que eu estava caindo de cabeça pra baixo, ele deu um tapa pra
Experiências como estas possibilitaram uma visão total do espetáculo, ao envolve- completar o movimento e eu caí em pé no chão. Fez muito isso de
rem conhecimentos e pesquisas em termos de figurinos, sonoplastia, iluminação, etc. me segurar. Tomou muita porrada minha também. Eu já que-
Também o ensinaram que existem diferentes formas de encenar que dependem do brei o nariz dele uma vez treinando dupla pirueta na Canasti-
lugar, do ambiente, do horário que vai ser apresentado, entre outros. lha. Não tinha uma técnica muito boa e eu subi, fiz assim com o
braço e acertei o nariz dele. E ele resistiu a dor mesmo, me pegou,
me catou no ar e só depois que ele foi botar a mão no nariz. Quer
dizer, ele tá apto a vencer a dor dele pra completar aquilo que
ele tem que fazer pra só depois reagir a uma coisa que é um instin-
to natural. Foi até o fim. Foi considerado muitas vezes o homem
rede aqui da Escola. Muita gente foi salva por ele também. Teve
um adágio que ele fez aqui na Escola com a Angela Cerícola, a es-
cada dela quebrou no dia do show e ela foi pra banquilha, olha a
loucura, ela se jogou da banquilha do trapézio nas mãos deles.
O Silva e o Léo seguraram a onda e pegaram ela. Foi muita con-
fiança no portô. Muita confiança mesmo. O Silva transmite isso.
Sempre que precisava tirar um truque novo e tirar a lonja eles
chamavam o Silva pra estar no meio dos cuidadores aqui da
Escola. Era o Silva, o Michael, o Ricardão. Teve uma leva muito
boa de portores nessa época”. (Beto Silva)

93 No estreia do Gran Circo Alaska em 2014 em Sevilha, na Espanha, pude presenciar uma parada de mãos feita por uma
criança, por uma menina com uns 9 anos de idade no topo de uma escada de 20 degraus equilibrada com os pés por uma
adolescente deitada em seu colchinete.
94 Craques do Circo estarão em Porto Alegre ministrando oficinas no Festival de Circo
Silva se apresentando espetacularmente. Reprodução Internet. In http://www.jornaldacapital.com.br/2011/noticias/noticias_detalhes.php?idn=4052.

236 237
ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

Tive o privilégio de presenciar a força e vigor do professor Edson, bem como, a preensão. Os exercícios diferem-se conforme o estágio de desenvolvimento. Vão des-
grande inteligência corporal nos inúmeros ensaios que acompanhei da exemplar de descer dos tacos, afastando-os, um de cada vez, até empilhar vários tacos (no
dupla. Um pouco da preciosa técnica dos dois pode ser vista, na foto seguinte: caso, os tacos planos) sem descer da Parada.
A forma inclinada ajuda a evitar o excesso de tensão e dores nos punhos. Por
permitir ser segurado nas laterais aumenta a força de aderência com o aperto dos
dedos. Não é adequado para o empilhamento. Construção em madeira sólida com
dimensões aproximadas entre 06 e 09 cm de largura, 08 a 10 de comprimento e de
07 a 03 cm de profundidade, na variação da parte mais alta e a mais baixa. Os dife-
rentes tamanhos servem para a maioria dos tamanhos de mãos.
Como diz o Silva, assim como cada pé tem um número de calçado, com os tacos
das bengalas é a mesma coisa. O tamanho, altura, largura e comprimento vão de-
pender do tamanho das mãos do paradista. Nas aulas, os alunos buscam montar as
bengalas ou escolher os tacos, considerando isso. Mas, nem sempre é possível face
às circunstâncias do momento.
Geralmente, quando as pessoas ficam de Parada de mãos no chão durante muito
tempo elas jogam quase todo o peso do corpo na região da articulação dos punhos.
As mãos e os punhos não foram feitos para ficarem sustentando e equilibrando todo
o peso do corpo. Ela foi feita para tarefas mais leves. Mas, se as pessoas querem
Dupla O Tempo na comemoração dos 32 anos da ENC.
Foto: Cláudio A. Santos. 13/05/2014 fazer Parada de mãos elas têm que adaptar os meios e as formas para ocorrerem o
mínimo de lesões. Cada um tem que encontrar o seu próprio jeito respeitando suas
Leon Schlosser, o parceiro de Silva, aos 81 anos de vida, tem 66 no picadeiro. Co-
especificidades corporais. Às vezes, quando o paradista começa a sentir dores de-
meçou a carreira aos 15, no tradicional Circo Olimecha, no Rio de Janeiro. Ao longo
pois de fazer Parada no chão durante muito tempo só aí ele parte para os taquinhos.
da vida, mudou apenas a companhia, mas sempre trabalhando com a arte circense.
Mais abaixo da imagem na foto anterior, percebe-se uma bengala com o sistema
Integrou a trupe da Família Ozon, do Atlântico, de Átila Ribeiro, do mexicano Da-
de rotação das hastes baseado na catraca e desenvolvido pelo próprio Silva. É um
nilo Stevanovich e de Alberico Cajueiro, entre outras. Recentemente, maio de 2016
sistema de catraca de pião de bicicleta, ele só vai, não volta. É coisa antiga. Ele fez
esteve adoentado por conta da febre Chikungunya. Esperamos que volte ao picadeiro
há uns vinte cinco anos atrás. Ele considera muito seguro, pois é um sistema que
o quanto antes para continuar a inspirar acrobatas a não desistir do bom combate.
permite a desmontagem completa e, portanto, a manutenção preventiva. O taco é
parafusado numa pequena haste de aço inox e encaixado numa haste maior que tem
a catraca alojada numa estrutura em sua extremidade superior.
O taco gira no sentido horário. As bases são em aço em inox porque o aço não en-
ferruja como o ferro. Além disso, o aço não apresenta pequenas fissuras como certos
Uma breve visão sobre os aparelhos e equipamentos do Paradismo objetos de alumínio quando caem ou sofrem pancadas duras. O aparelho com seus
mais de vinte anos comprova a resistência, durabilidade e qualidade do material.
Durante as aulas foram utilizados aparelhos como uma seção do plinto, barra Os tacos das bengalas também podem ser maiores ou menores, mais largos ou
paralela, banco, entre outros, como ferramentas didáticas para ampliar a bagagem estreitos dependendo da anatomia do paradista, bem como, do uso que vai ser feito.
motora e conhecimentos de parada dos alunos. Além deles, usaram os tradicionais A priori, não tem nenhum modelo que seja melhor do que o outro. O taco retangular
tacos de madeira, banquilhas (mesinhas), banquilhas com bengalas (hastes de me- com mesma altura na parte dianteira e traseira é apropriado para quem tem pouca
tal), blocos roliços de madeira, caixas de madeira, mesa de paradas, escada de pa- força, não tem dor nos punhos e tem bastante flexibilidade. São tacos mais largos,
radas, cadeiras, trapézio Washington, lonjas, colchões gordos, sarnegie, placas de grossos na altura e sem caimento nenhum.
emborrachado, entre outros. Na aula usaram de três a quatro banquilhas, isto é, estas plataformas retangu-
Os tacos retangulares com inclinação podem lares com alturas e larguras diferentes que permitem acoplar as bengalas vistas
ser vistos na parte superior do lado direito, na na foto acima. Apenas uma delas é almofadada em vermelho com as estruturas
imagem. Veem-se as hastes, bengalas (mãos tubulares são cobertas por uma película prateada. Tem cinco encaixes em pino para
jota). O treino com os tacos foi realizado por as hastes das bengalas. Isto permite várias combinações possíveis, inclusive para a
alunos de todos os níveis. Ele era mais indicado Parada de cabeças. Ela tem 45 cm de altura. Esta e outra são do Silva, as demais
também para quem tinha lesões no punho. Pois, pertencem ao acervo da Escola. O professor descreve o exercício mostrado na foto:
a prática no taco inclinado minimiza a tensão
no alongamento do punho e melhora a força de
Baú dos acessórios da Parada.
Foto: Cláudio A. Santos. 2014.
238 239
ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

“O mesmo que a gente fez no chão vai isto é, naquelas que encaixam na plataforma há o sistema de pinos cônicos e na outra
fazer na banquilha, tá? Porque é que eu extremidade ficam os tacos. Todos são retangulares. O sistema de encaixe através
coloquei três banquilhas de alturas dife- de pinos cônicos permite montagem e desmontagem rápidas. Também é bem seguro,
rentes? Pelo seguinte: se você não conseguir garantindo um travamento pelo próprio peso do paradista sobre o aparelho.
fazer naquela (alta), nem naquela (média),
faz naquela (mais baixa). Começou fazer
bem naquela (mais baixa), vai para aque-
la (média). O objetivo é chegar na mais
alta. Depois dela a gente vai pra onde?
A gente vai pra bengala ou então sobe na
Parada já em cima da própria banquilha.
Vai dificultando as coisas”. (Silva)

Assim, na medida em que desenvolviam as con-


dições necessárias, os alunos praticavam subir na
Banquilhas de diferentes alturas. Parada grupada passando por todas as banquilhas,
Foto: Cláudio. 2014. em suas diferentes alturas. A mais baixa delas tinha
apenas 08 cm de altura. Essa variação na elevação da superfície plana das platafor-
mas permitiu o aprendizado de ajustes no impulso para a Parada que prepararam
para a subida na bengala. As mais baixas foram mais fáceis para os alunos consegui-
rem realizar o exercício. Elas também são mais portáteis, isto é, são transportadas de
um modo menos trabalhoso.
Nesta foto, vemos o pro- Rafael Eckert subindo na escada. Foto: CAS. 2014. Helder praticando no bloco de madeira. Foto: CAS. 2014.
fessor auxiliando manual- No método gradual e progressivo de aprendizagem, uma coisa puxa a outra. De-
mente a aluna Maria Clara, pois que o aluno parou de mão na bengala e domina várias transições e posições,
na subida para a Parada de o professor estimula-o a buscar novas superfícies e aparelhos para praticar. Além
mãos na bengala. Internacio- desses vistos nas fotos, utilizaram também a estrutura de uma caixa de som sem
nalmente, este tipo de benga- os alto falantes. Ela é para um nível mais avançado, pois ela apresenta uma grande
la é conhecida como russian instabilidade. É treinar parar em lugares instáveis como preparação para outras pos-
hand balancing canes, ou sibilidades como parar na mão de um portô. Da mesma forma, não é uma coisa firme
bengalas russas de Parada e estável como na bengala.
de mão. Cabe notar a dife- Segundo Silva:
rença em relação à técnica
chinesa que utiliza um mode- “Você tem que descobrir vários jeitos de ficar de cabeça para
lo de plataforma que lembra baixo. Como é que a gente vai achar esses jeitos? Parando no chão,
um pequeno cavalete. Note parando na banquilha, parando na bengala. Eu vou trazer para
na foto como a aluna utiliza cá umas cadeiras para diferenciar”. (Silva)
a cadeira como um auxílio Diferentes educativos. Foto: Cláudio A. Santos. 2014.
no processo para facilitar a
aprendizagem. Do lado esquerdo, a aluna Sofia pratica a subida na banquilha Nas três fotos anteriores, o leitor pode ver um pouco da versatilidade da perfor-
usando placas de E.V.A. para diminuir a distancia entre os planos. mance do processo de ensino e aprendizagem desta disciplina. Nesta ultima foto,
A inclinação do taco retangular diminui no sentido dos punhos para os dedos. com a torre enorme de cadeiras nota-se um cuidado muito importante percebido nas
O taco da bengala, diferentemente do taco no chão, permite que o polegar e os outros aulas. Estou falando do uso da lonja de um ponto, cinto que está em volta da cintura
dedos se dobrem sobre a borda, de modo a aumentar consideravelmente a pressão da da aluna Alice Tibery e está ligado a uma corda que sobe verticalmente passando
pegada. por uma roldana presa ao teto e chega às mãos do professor que no caso de um dese-
As bengalas são constituídas de hastes tubulares em metal de aço inoxidável quilíbrio da aluna, puxando e soltando a corda, controla a altura e assim, é capaz de
polido, 5/8 (as mais finas são maciças e as com maior diâmetro são ocas). Elas permi- amortecer a aterrissagem sustentando-a no ar e descendo devagar, evitando a queda
tem encaixes de várias alturas (no caso, até 5 alturas). Na extremidade das ponteiras, no solo. Um recurso muito importante para o ganho gradual de confiança e perícia na

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

execução de exercícios que envolvem risco de vida. O pano não pode ficar frouxo. Vão abrindo esse tecido e subindo ele um pouco. Em
Além da Parada de mão, os alunos aprendem técnicas da Parada de cabeça. seguida, os alunos soltam as duas mãos e contam apenas com os leves toques dos
Confira alguns detalhes técnicos nas fotos a seguir: dedos do professor para ajudá-los no equilíbrio.
Numa dessas aulas, após explicar a teoria do giro na cabeça, ele pegou a haste
com o giro e instalou na banquilha. Logo em seguida, demonstrou na prática como
é que se faz o giro apoiado apenas no topo da cabeça. Ele fez o giro completo. Em
certos momentos buscava o equilíbrio movimentando predominantemente as per-
nas e em outras vezes, usava os braços. Em certos instantes, usava pernas e braços
simultaneamente. A demonstração causou admiração em muitos que assistiram e
ficaram impressionados com a dificuldade de girar. Alguns nunca tinham visto al-
guém fazendo isso ao vivo. A Andrea Nohara disse sentir certa aflição diante do fato
de todo peso ficar sustentado na cabeça e pescoço. O professor ainda demonstrou
mais umas três vezes, depois falou que não praticava esse truque há muito tempo,
há mais de dez anos e que não poderia abusar porque se não a dor no pescoço no dia
seguinte era certa. Olha, isso é muito tempo mesmo. Ele se saiu muitíssimo bem.

Fazendo os preparativos. Foto: CAS. 2014. Luiza iniciando a prática. Foto: CAS. 2014.
Na foto à esquerda, vê-se o professor preparando a banquilha para receber a
Parada de cabeça, colocando a rodilha ao centro e o tecido dourado para auxiliar
os alunos nos momentos de desequilíbrio. Inicialmente coloca-se cada uma das
mãos de cada lado da banquilha e o topo da cabeça na rodilha que está no centro
da plataforma. Sobe as pernas lentamente de forma agrupada, depois estica as
pernas em cima e abre as pernas descendo-as até os 90°.
O mestre falava para a Luiza, que aparece na foto à direita, em 22 de julho de 2014:

“Não deixa o peso cair nem pra frente e nem pra trás. Deixa ele
no meio. Fica aí um tempo. Fecha as pernas em cima, engrupa
e desce. Tem que ficar no meio termo, entre lá e cá”. (Silva)

No início do treinamento da Parada de cabeça, Edson Silva recomenda que a


pessoa faça cinco paradas de 20 segundos alternadas com alongamentos. Poste-
riormente, diminui progressivamente o número de vezes e se aumenta a quanti-
dade de tempo. Segundo ele, tem que tomar cuidado para não aparecer uma dor
no pescoço que trava os movimentos um pouco. Por isso, é necessário a prática Leandro se apresentando no Trapézio Washington Foto: CAS. 2014.
cotidiana para o corpo se acostumar. Fazer sempre e com humildade sem querer Silva ensina os alunos interessados na Parada de cabeça no Trapézio Washin-
queimar etapas. Deve-se evitar praticar durante um tempo excessivo e prejudicial gton. Na foto, pode ser vista uma pequena base arredondada no centro da barra
à saúde. e sobre a qual Leandro realiza uma Parada de cabeça com as pernas afastadas.
Os passos seguintes são ficar só com as pontas dos dedos do lado da cabeça; Note com as cordas de sustentação são mais finas que as do Trapézio fixo e do Tra-
depois apoia com os polegares sobre a plataforma e depois segura nas pernas da pézio em balanço. Isso porque nesta técnica as cordas não são usadas isoladamen-
banquilha (nesse momento o peso todo do corpo está sobre o pescoço); em seguida te para sustentar o peso. O professor lembrava que o balanço do trapézio ajuda a
fica com as pontas dos dedos nas pernas da banquilha. Então, a pessoa vai sen- manter o equilíbrio ao contrário do que a maioria dos leigos pensa.
tindo o equilíbrio e sente puxar para frente e para trás. Sempre com o abdômen Em suma, os aparelhos são capazes de dar uma nova dimensão para o equi-
contraído, como se tivesse levando um soco no estômago. Aí a coluna vai para líbrio da Parada de mãos ou de cabeça. As cadeiras, bancos, mesas, barras para-
o lugar que ela deve ficar. No próximo passo, os alunos se equilibram usando lelas, tacos, caixas são os mais usados pela maioria dos alunos. Além do aspecto
as duas extremidades de um pequeno tecido amarrado nas pernas da banquilha didático de experimentar em diferentes superfícies, tais aparelhos aumentam a
(vide foto). A falta de estabilidade aí é que vai fazer o aprendiz buscar o equilíbrio. visibilidade e a sensação de risco da atividade.

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

No início e no final das aulas, geralmente os alunos fazem vários exercícios de


EQUILÍBRIOS ETNOGRÁFICOS DAS AULAS alongamento que possuem uma funcionalidade específica para o trabalho desen-
volvido nas paradas de mãos. Dentre eles, pode-se citar: o alongamento em que a
Durante os mais de sete meses de observação participante pude constatar que o pessoa fica deitada de bruços e passa um dos braços transversalmente por baixo
professor trabalhou vários métodos de ensino. Entre eles, me lembro do gradual e pro- do tronco na altura do peitoral e ao mesmo tempo coloca as pernas no formato do
gressivo, em que iniciava a aula com exercícios simples e acrescentava movimentos diamante (losango) buscando encostar todas as suas partes no chão; a pessoa fica
mais complexos e difíceis conforme o aluno fosse assimilando a sequencia, que depois de joelhos num ângulo de 90º e encostando o peito do pé no chão estende os bra-
era repetida algumas vezes. Isto pode ser constatado neste trecho de seu depoimento: ços e o tronco para frente buscando encostar a maior do tórax e abdômen no chão
enquanto uma segunda pessoa pressiona a cervical e depois a coluna lombar para
“Depois, que faz a Parada na bengala direitinho, desce segurando baixo ajudando na extensão.
o movimento, desce bem lento e passa para o esquadro. Em segui- Para o professor:
da, passa a perna direita para fora da bengala direita e vai para
a prancha de um lado e depois do outro. Porque desperdiçar? “Se você não forçar e não sentir dor não melhora. Aí não adian-
Vamos fazer outra coisa. Sempre que consegue fazer uma coisa ta nada só ficar sentado no chão abrindo a perna. Tem que doer.
bem você já busca emendar com outra coisa”. (Edson Silva) Tem que abrir as pernas e forçar. Tem a hora certa pra fazer
alongamento. Tem a hora certa para ralar pesado”. (Silva)
Notei que este método despertava nos estudantes uma motivação e atenção ele-
vada por ser um trabalho que exigia memorização dos movimentos novos que depois Na Parada de mãos, o alongamento é fundamental.95 Pois, muitas vezes quando
deveriam ser repetidos numa sequencia estruturada com um percurso definido. o aluno não consegue alinhar a Parada de mãos é porque falta algum alongamento,
Além deste, vi aplicar o método por série, que consistia no aluno efetuar três ou principalmente o do ombro. Para fazer paradas de mãos na técnica alinhada o aluno
mais séries do mesmo exercício, intercalando com o descanso ativo, que visasse outro tem que ter trabalhado o seu corpo suficientemente para estar de fato apto a exe-
agrupamento muscular, dando assim, tempo para que o músculo trabalhado se recu- cutá-la. Se não tem flexibilidade de ombro fica difícil colocá-lo no lugar certo, isto é
perasse. Outro método utilizado no processo foi o método circuitado, com exercícios “crescer o ombro” fica impossível. Quem não possui a amplitude nessa articulação
em estações com intervalos. Respeitava-se a individualidade biológica do aluno. sente muitas dores e fica numa situação bem desconfortável:
Via de regra as aulas foram divididas em três momentos básicos. No início, um
aquecimento rápido e um alongamento, com duração entre 5 a 15 minutos - movi- “Mas, o que é o encaixadinho para um cara todo duro? É o in-
mentos de soltura abrangendo articulações e grandes agrupamentos musculares. O ferno, é o terror! Ele não tem flexibilidade para crescer o corpo
objetivo era o alongamento e o aquecimento gradual e a preparação para a segun- dele, para colocar a cabeça dele no lugar. Aí tem que amassar, tem
da fase de exercícios no solo ou nos aparelhos, que durava de 20 40 minutos. Seu que amolecer para você chegar lá bem, entendeu? Tudo depende
objetivo era o aprendizado de técnicas e figuras do paradismo. A terceira fase era de ter esse alongamento. O artista de circo é um contorcionista,
o desaquecimento ou relaxamento, com duração de 2 a 5 minutos. Trabalhavam você tem que trabalhar músculo que nunca trabalhou para chegar
exercícios de alongamento e flexibilidade para não encurtar os músculos e remover no lugar certo. Isso não deixa de ser uma contorção”. (Silva)
o ácido lático do organismo.
Nas aulas, os alunos trabalham o desenvolvimento progressivo da força e da re-
sistência. Parte-se do pressuposto que se a pessoa tem muita resistência ela também
tem força. Destaca-se a busca para conseguir aumentar o tempo de equilíbrio nos apa-
relhos ou no chão dentro da técnica preestabelecida. Considera-se o melhor caminho
a prática global do exercício. Silva acredita que a musculação na academia pode ser
um perigo para o paradista na medida em que para ficar forte perdem o alongamento,
reduzindo a amplitude do movimento. Em sua opinião, ajuda de um lado e “ferra do
outro”. Assim, recomenda seus alunos a “malhar ficando de cabeça para baixo” um
minuto, dois, três, quatro minutos. Diz que isso gera tanto força, quanto resistência.
Depois de ganhar força e flexibilidade, o aluno aprende técnicas básicas para sair
da Parada de mãos, em caso de desequilíbrio em direção às costas, como a “rondada”.
Esta é a maneira mais fácil e mais utilizada, pois, serve tanto para o solo quanto para
aparelhos. No dia 31 de julho, Silva falava com a Karina Bredariol:

95 Nas aulas que acompanhamos de Paradas de mão na Carampa em Madri e na Fratellini em Paris, pude observar tam-
Thiago (“Índio”) alongando os ombros. Fotos: CAS.2014. Gladys alongando a coluna. bém que em certo momento há ênfase nos alongamentos, principalmente de punhos, ombros, coluna e pernas.

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

“Fica com medo não. Pode jogar mais. Se passar ou desequilibrar juntas. O paradista olha para os joelhos. Na subida para a Parada, o mestre ensina
pra frente o seu corpo vira automaticamente. Já é da gente virar levantar o quadril bem alto e só depois as pernas saem do chão. Quando sobe a pessoa
o nosso corpo, sabia? Olha como ele vira sozinho. Começa a cair vai lá na pontinha do pé para subir. Na descida, primeiro vão os pés em baixo para
ele vira. Na descida vai fechar a perna em cima e passar do eixo. depois descer o quadril. Isso difere da técnica em que as pessoas descem a Parada
Às vezes, porque a coluna enverga. As duas mãos ficam nos tacos e engrupada em prancha. Na técnica ensinada pelo Silva, a cabeça e o pescoço na hora
gira o quadril. As mãos saem porque o corpo rodou. É como uma de descer continuam alinhados com os braços e ombros. Aconselhava deixar os pés
rondada. Não pode botar o bumbum para fora porque é perigoso descerem próximo das mãos com bastante ponta de pé. Na descida as escápulas não
cair de costas. Para aprender a parar de mão tem que aprender ficam afundadas. Deixa o bumbum lá em cima e desce só o joelho e depois os pés. O
a cair. Você aprendendo a cair... pronto. Vai! Mas, não adianta peito não pode ser projetado na frente.
fazer a rondada antes de cair”. (Silva) Na Parada afastada, também há uma leve projeção da coluna lombar para trás
(sela). Os joelhos ficam voltados para baixo, para o chão. O Índio a faz alternando as
Quando há o desequilíbrio irreversível a pessoa faz o meio giro do quadril e tron- mãos. Fica um tempo apoiado em uma das mãos e depois vai para a outra.
co para um dos lados tocando o solo com os dois pés juntos ou um após o outro. Na Para quem está aprendendo a Parada de mãos é melhor a pessoa descer quando
parada de mãos feita diretamente na superfície o aluno aprende também a fazer o desequilibra do que manter o equilíbrio andando com as mãos. A razão para isso é
rolamento (“cambotinha”) após o desequilíbrio. Mesmo os que têm boa flexibilidade simples. Caminhar nas mãos é realmente mais fácil de fazer do que parar no mesmo
de coluna, raramente utilizam a ponte nos casos de instabilidade total. lugar. Isso é porque o aprendiz pode andar em qualquer direção para pegar o seu
Quando sentia que o aluno estava com medo de passar Silva colocava um colchão equilíbrio. No entanto, se sempre contar com isso, então nunca pode aprender a ficar
gordo para o praticante se sentir mais seguro. Aí ele falava para o aluno jogar para parado:
passar. Isto era uma forma didática para o aluno perder o medo. Às vezes, brincava:
“Você costuma andar e nunca parar. Porque ao invés de bus-
“Agora passa menos, né? Pelo amor de Deus, não exagera também! car o equilíbrio você anda. Mas, você tem que buscar equilíbrio
(risos) Você vai chegar num meio termo aí e é só você trabalhar e não andar. Depois que já aprendeu é outra coisa. Aí pode!”
em cima dele”. (Silva) (Luiza Fernandes)

Pude comprovar que a maioria dos educativos foi bastante eficaz. Funcionava. O Tem aluno que quando chega na Escola para de mãos fora do alinhamento, mas
aluno melhorava seu desempenho. Essa didática de jogar para passar deu certo no consegue. A Escola vai alinhando estas pessoas que aprenderam na marra, a maio-
caso da Luiza, da Karina e da Maria Clara, durante as aulas. Tinham força, mas ria é autodidata. Geralmente não conseguem fazer a Parada grupada (engrupada).
faltava a decisão, a atitude de ir que foi estimulada pela segurança do colchão e pelas Para o Silva, fazer a Parada engrupada é uma didática da Parada estendida. Você
falas do professor. tem que parar engrupado para desenrolar e parar esticado. Essa é a subida preferida
Para o aprendizado da prancha com uma mão na bengala (“crocodilo”) Silva dele para ensinar para o iniciante. Embora, também ensine outras formas de subida
usa a didática de manter a banquilha com duas hastes os tacos apontando para um como no impulso com a perna esticada e depois lançando a outra, a subida a força no
lado e uma haste com o taco apontando transversalmente, para facilitar o apoio na esquadro afastado, etc.
hora do desequilíbrio. Além disso, serve também para desenvolver a Parada na ca- Depois que os alunos conseguem parar de mão no chão e nos tacos, o professor
deira e ir para a posição do crocodilo (prancha de cotovelo com uma mão só). considera vital experimentar a Parada em planos mais altos. Se continuar só no chão
Nesta prancha, a mão que sustenta fica na posição transversal em relação não vai desenvolver as perícias para a subida na bengala com banquilha, por exem-
ao corpo. O cotovelo se encaixa no osso da crista ilíaca análoga. O importante é que plo. A subida no início pode ser lançando as pernas. Lançou, ficou, desceu. Não é a
no momento que coloca o peso no braço e fica na horizontal se contraia os glúteos, ou mesma coisa que no chão. É totalmente diferente. Para subir a explosão do impulso
como diz o mestre “coloque o bumbum para dentro. Tem que encaixar o bumbum”: tem que ser bem maior do que no mesmo nível dos pés. O mestre ensina subir lan-
çando e engrupando, no início. Não tem aquela coisa de que quanto mais alto tem que
“Não solta da outra bengala ainda não. Fica segurando aí. Cres- vir mais de longe. Com as mãos nos tacos você pode lançar. Dali mesmo. Só não pode
ce essas pernas pra cima. Aí elas ficam mais leves, não pesam e arquear o tronco quando subir se não neutraliza a energia cinética do impulso vindo
ficam mais fácil. Aí é só equilíbrio. Se você relaxa dói pra ca- dos pés.
ramba. Se você esticar e fazer realmente uma prancha com o seu No átimo do instante de subir no aparelho o aluno deve jogar o peso para realmen-
corpo não vai doer”. (Silva) te ficar com o tronco alinhado em cima dos braços. Para alguns, a maior dificuldade é
a falta de decisão de ir para fazer, de acreditar que é possível jogando-se o necessário
Na posição da Parada grupada o eixo passa no centro do corpo. A coluna lom- para o equilíbrio acontecer.
bar fica um pouco selada e os fêmures ficam perpendiculares ao tronco formando As anotações no diário de campo me lembram de que em dezessete de março de
um ângulo de 90º. Os pés e dedos ficam estendidos, fazendo ponta. As pernas ficam 2014, como em outras aulas, os alunos faziam sequencias na barra paralela com pe-

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

sos nos tornozelos: sustentavam o corpo na vertical apoiando as mãos em cada uma desse e do outro lado. Teve dificuldade no crocodilo feito com base na mão esquerda
das barras e com os braços esticados, depois iam para o carpado com os pés juntos e e desceu do aparelho rindo bastante. Um tempo depois foi a vez da Letícia Ramos,
depois com os pés afastados, agrupavam e depois esticavam no carpado com os pés da Vanessa Costa e do Helder Vilela experimentarem variações na Parada de mãos
juntos e desciam até a posição inicial para recomeçar tudo de novo. simultaneamente. Mostraram como a mesa apresentava diversas possibilidades de
Em outra parte do pátio, Rafael Eckert experimentava unir a Parada de mãos na combinação e de composição visual.
bengala com o Antipodismo. Ele treinava subir na escada de paradas com um tubo
cilíndrico de PVC reforçado usando apenas os pés. Logo em seguida equilibrava-o
nos pés e girava-o sobre o eixo horizontal e depois vertical. Esse número apresenta
grande dificuldade. O “charuto” media entre um metro e um metro e meio de com-
primento. O Adailson subia à força e com o corpo estendido na bengala. Tal forma
apresenta um grau de dificuldade maior por requerer mais força isométrica e depois
para elevar o corpo ao esticar os braços. Depois de treinar a Parada com Antipodismo
Rafael e Alisson praticaram a subida para a Parada com um mão sobre a cabeça do
base de duas maneiras diferentes pela frente (pé com mão) e um por trás (posição da
segunda altura com os pés nos ombros).

Da esq. para a dir. Helder, Letícia e Vanessa fazendo as paradas.Foto: CAS. 2014.

Do lado o Silva ajudava o Leonardo (Léo) a montar a sequência de sua futura pro-
va. Ele subia na Parada sobre a superfície da banquilha sem as bengalas. Logo depois
juntava as pernas e ficava nessa figura um tempo. Seguindo as instruções do profes-
sor ele começou a realizar quiques (pequenos pulos) apoiado apenas na mão direita.
Ao todo fez seis e depois desequilibrou e desceu controladamente. O Silva disse para
ele ir na frente e respirar enquanto instalava bengalas. O que ele fez com prontidão.
Subiu a parada nas bengalas posicionando as pernas abertas e os pés em ponta. Fe-
chou as pernas e depois desceu em esquadro pulando por entre as bengalas. A seguir
Alisson indo para a Parada com uma mão sobre a cabeça do Rafael. Foto: CAS. 2014.
colocou a segunda altura de bengalas e subiu no impulso colocando o peso bem em
cima das bengalas. Tirou a mão esquerda e ficou apoiado só na mão direita. Desceu
Em 02 de abril de 2014, Felipe de Abreu, Valdirene (Dira), uma polonesa (que me no esquadro. O Silva lembrou que depois do esquadro ele deveria fazer a prancha
escapa o nome) treinavam paradas. Felipe tentava parar na bengala com as pernas (crocodilo). Na sua primeira tentativa teve dificuldade em esticar o corpo o braço que
abertas e subir à força. Dira experimentava diferentes posições das pernas curvando fica na frente e fazer ponta nos pés. Depois tentou novamente e teve mais sucesso.
a coluna, ora faz movimentos que tendiam a Parada mexicana e ora a Parada do es- Passou pelas bengalas em esquadro e desceu pela frente do aparelho. Deu mais uma
corpião. O Índio, instrutor sempre solícito e generoso apoiava as pernas da polonesa respirada e depois montou e ficou de pé, levantou os braços e ficou se equilibrando
e tentava corrigir alguns desvios do alinhamento. nos tacos da segunda altura. Subiu na Parada. O professor falou com ele para esticar
No dia 03 de abril, começaram para alguns alunos os treinamentos e ensaios na mais os braços, pois estavam um pouco semiflexionados. Falou para fechar as pernas
mesa de paradas. No início, Silva montou 03 pares de bengalas, sendo um no centro e e descer bem devagar. O aluno desceu para trás e o professor avisou que ele tem que
os outros dois pares nas extremidades laterais. A mesa é composta por uma estrutura descer pela frente. Foi bastante enfático sobre isso. Logo em seguida falou para o Léo
metálica de ferro e uma superfície de compensado de 2 cm de espessura. Felipe foi que ele deveria repetir essa sequência inúmeras vezes.: “fazer direto e toda a hora”.
um dos primeiros que se aventurou nesse aparelho. Foi observado atentamente pela Depois em tom de brincadeira disse que ia arrumar uma menina bem bonita pra ser
Vanessa. Ele subiu à força com as pernas afastadas, depois fez o pino vertical (com a partner dele. Ficaram rindo por um tempo.
as pernas fechadas), desceu no esquadro com as pernas juntas por dentro do par de No dia 17 de março, Ana Julia Moro deitou-se de bruços no chão apoiando as mãos
bengalas, depois passou a perna direita por fora da bengala direita e fez o crocodilo na frente dos ombros e esticou os braços (posição do cachorro na Yoga), o Alisson pe-
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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

gou um dos seus braços por vez e puxou levemente para trás. Assim a coluna de Julia inclinados para o lado da mão que está sustentando o peso do corpo. No caso, das
foi arqueando progressivamente até chegar num ponto em que ficou estática por al- paradas com uma mão.
guns segundos e depois voltou lentamente. Depois, o monitor das disciplinas, o Thia- A Vanessa também treinava algumas variações de Parada de mãos na terceira
go (Índio) aplicou várias didáticas para a Ana Júlia como fazer a Parada de costas e altura: fazia com as pernas afastadas e juntas alternando as mãos, primeiro com a
de frente para a parede, alongamentos para os ombros com um bastão, alongamento esquerda e depois com a direta. Diferentemente, da Andrea Satie que subia na força
dos cotovelos, entre outros. a Vanessa nesse dia estava treinando subir com impulso. Na descida ela marcava um
No dia 08 de maio, sob a orientação do Silva, a aluna argentina Jennifer Gerschen- esquadro. A sequencia que ela estava treinando era a seguinte: subia com as pernas
son praticou nas bengalas o truque de fazer a prancha em uma mão e depois na outra. afastadas usando o impulso, depois ia para a figura do beija-flor apoiando com a mão
Sem dúvida, que este é um exercício que assim como os outros exige muita força e con- direita, logo em seguida variava para a Parada afastada lateral apoiando na mão
centração. Depois dele, Jennifer foi aprender a Parada na bengala usando ao invés do esquerda.
chão uma banquilha com altura por volta de uns 40 cm de altura como base. Dessa A Dira estava fazendo Parada com as pernas abertas e depois com as pernas juntas
forma, aumentou o controle do impulso necessário para o alinhamento do tronco, om- na bengala. O Silva perguntou: “Viu?” Ela respondeu: “ - Sim, mas eu tenho medo”.
bros e braços com as bengalas. Essa é uma técnica didática que facilita o aprendizado Ele a corrigiu em pé mostrando como estava ficando o posicionamento do pescoço com
além de diminuir impactos nas articulações dos tornozelos e joelhos nas descidas do a face do rosto voltada para o chão e colocou seus braços passando paralelos às ore-
aparelho. Os educativos como estes que buscam alternativas para melhorar o ensino lhas. Antes estavam alinhados com o queixo dela. Fez isso movimentando os braços
são fundamentais no processo educacional. e cabeça da aluna para que ela entendesse melhor a partir de uma percepção interna
A aluna conseguia subir e permanecer na Parada de mãos sobre as bengalas da postura em que deveria ficar. É interessante notar como esse posicionamento não
por um tempo bom e depois ia transferindo o peso do corpo para a mão direita e é válido para todas as variações de paradas, como a mexicana e o escorpião. O expe-
aos poucos movimentando a mão esquerda até tirar as pontas dos dedos dos tacos riente mestre pediu para ela fazer novamente e dessa vez ela fez melhor, pois, entrou
e perder o equilíbrio. Fazia uma pequena pausa para respirar e depois repetia o mais com a cabeça. É isso aí!
exercício. O professor estimulava a aluna a ficar por mais tempo usando palavras De acordo com Alice Tibery Rende:
de incentivo: “- Isso! É isso aí! Muito bom!”
Numa das pausas, ela perguntou se deveria se inclinar o tronco em direção do bra- “Eu aprendi a fazer Parada envergada. A Parada esticada eu
ço que sustenta o peso e ele falou que se ela fizesse isso ela cairia e que na verdade, o caio porque eu começo a envergar. É falta de força para manter
os ombros e o pescoço encaixados. Porque na envergada você dei-
que ela tinha que fazer era crescer o ombro do braço usado na Parada. Isto é, estender
xa a barriga cair, faz o contrapeso e fica. Nessa, quando tem que
a articulação do ombro empurrando-o para cima. O outro braço que não vai suportar o fazer todas as forças, começa a falhar e eu fico querendo envergar e
peso fica mais curto e a pessoa pode controlar melhor o equilíbrio. Nesse movimento, viro. Pra mim é mais difícil. Na envergada eu quase não faço força.
o ombro que faz a força fica mais próximo da cabeça em termos de alinhamento. No Fico tranquila. É bem essa do contrapeso. A Parada esticada é
aprendizado da Parada de mão com um braço apenas, os alunos antes fazem exercí- o empilhamento dos ossos. Tudo certinho. Mas, essa do eixo é força
cios com os tacos e transferindo parte do peso para uma das mãos. também. Mais difícil.”. (Alice Rende)
Nesse mesma aula, a Andrea Satie Nohara treinou a Parada de mãos na terceira
altura sem o uso de lonja. A terceira altura é quando se encaixam as três hastes de Uma postura corretamente alinhada permite futuros avanços na posição, tal como
aço inox uma sobre a outra. Para subir no topo do aparelho ela apoia as duas mãos o início do trabalho de Parada de mãos com uma mão. É “empilhamento dos ossos”
nos dois tacos da terceira altura e escora o peso do corpo com o pé no taco direito da porque a pesso deve manter os tornozelos em cima dos joelhos, joelhos em cima do
primeira altura e usa ele para elevar o corpo e fazer a base para o pé esquerdo no quadril, quadril em cima dos ombros, ombros em cima de cotovelos e cotovelos em
taco esquerdo a sua frente. Faz a mesma coisa para subir nos tacos da segunda al- cima de punhos. Se estão alinhados formando um único bloco, além da estética har-
tura e na terceira ela coloca o pé direito apoiando no taco direito onde já estava sua moniosa de movimento, o alinhamento postural implica numa melhor economia de
mão e usa esse apoio do pé como base para subir à força o corpo e ficar na vertical de energia, o que facilita a permanência por mais tempo na posição. Mas como Alice
cabeça para baixo. Para isso, ela usa a perna esquerda esticada para trás como um pontua, essa postura não é fácil de ser alcançada, ela depende de força e se relaciona
contrapeso até o momento que abre as duas pernas no espacate frontal e subir intei- em outros níveis como a própria postura da pessoa em pé. Quando Alice fala que “é
ramente. No início, ela teve uma certa dificuldade pra conseguir. Antes de começar a falta de força para manter os ombros e o pescoço encaixados”. Penso que ela está se
subir o Silva colocou um colchão na frente do aparelho e assim como o monitor Thiago referindo a fraqueza dos músculos das costas e trapézio.
(Índio) ficou próximo fazendo a segurança caso ela desequilibrasse, já que ela não No dia 22 de julho, Edson Silva passava algumas instruções para Alice melhorar a
estava usando lonja. Depois, foi a vez do Índio que fez a Parada na terceira altura técnica da Parada estendida:
primeiramente com as duas mãos e depois alternou ficando um tempo na direita e
“Você tá caindo porque você tá buscando equilíbrio com a cintura.
depois na esquerda. Nessas variações de mãos ele permaneceu o tempo todo com as
Você sobe super bem, mas, quando chega lá em cima, ao invés de
pernas afastadas em espacate frontal. É interessante observar que para encontrar o crescer e esticar você dá uma soltada na cintura. Trava a cintura”.
seu eixo de equilíbrio e centro de gravidade o tronco e as pernas ficam ligeiramente (Silva)

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ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

Para ajudar a aluna a manter uma postura correta na Parada de mãos estendida, Suas aulas foram repletas de informações valiosas, com didáticas fáceis de enten-
Silva dá pequenos toques para alinhar os três segmentos separados nas articu- der, exercícios graduais. Lembro-me com saudades e gratidão por todos. Além das
lações da cintura e nos ombros. O peso do corpo deve estar distribuído no meio das variações de paradas de mão relatadas existiram várias outras como a conhecida
palmas das mãos. Os toques do professor ou do monitor ajudam a não selar ou dobrar “Pistola” (é aquela que você entra na lateral com os cotovelos ou só de lado mesmo),
muito a coluna para trás. As pernas e os pés têm muita influência na beleza do movi- “Sapinho” (posição dos joelhos afastados e os dedos dos pés juntos formando um losan-
mento, as pernas devem estar completamente esticadas e os pés fazendo pontas. Pés go ou diamante com as pernas, conhecida em alguns lugares como “Borboletinha”), a
juntos e pernas alongadas e retas são bases para outras posições. “Mexicana” (envergada com ênfase no ombro e as pernas esticadas projetadas para
Os toques externos ajudam a ampliar a consciência corporal ao indicar quando o frente da cabeça), a “Quebrada” (quando vai se para os lados como as bandeiras late-
equilíbrio começa a cair. Esta informação treina a reconhecer onde o ponto de equilí- rais invertidas). Tem muitas variações que muitas vezes são pequenos detalhes. Ge-
brio. Existem pesquisas que investigaram como estes leves toques reduzem a oscila- ralmente, as mudanças partem de uma base como, por exemplo, a posição estendida
ção postural na Parada de mãos. Os resultados geralmente salientam a primazia da permite várias combinações, assim como as quebradas (laterais).
informação sensorial na manutenção da Parada.96 A ENC tem um histórico de bons paradistas. Na turma que entrou em 2015 já
O professor gosta bastante do ditado “água mole em pedra dura tanto bate até que se destacam alguns. Nos últimos anos formou paradistas como o Helder, o Índio, o
fura”. Ele considera a insistência, a perseverança, a teimosia em continuar prati- Rafael, o David Santos, a Vanessa, o Alisson, a Andrea Satie, o Dirceu, só para lem-
cando como uma virtude importante no aprendizado. Acha que esse ditado é perfeito brar-se dos relativamente recentes.
para a gente do circo. Mas, como o professor era visto pelos seus alunos, na época?
Filmando as mãos do paradista Helder em zoom, pude perceber como o equilíbrio
na Parada de mãos na bengala depende bastante de pequenos ajustes que são feitos a “A aula do Silva é muito boa, porque ele também tem uma outra
partir de pequenos movimentos das mãos nos tacos, principalmente lateralmente na bagagem, ele vem de uma outra geração, ele vem com outros
região do polegar, já que os demais dedos ficam mais firmes. detalhes, no mesmo truque. Mesmo truque sendo feito de outra
O professor fazia testes para ver se o aluno estava apto a fazer determinado exer- forma, mas na cabeça sabe? Mentalmente. E o Silva já vem dando
cício e também para resolver os bloqueios e ajudar o aluno a superar medos. Ia co- uma outra direção e complementando”. (Andrea)
mendo pelas beiradas, de mansinho e gradativamente até o ponto. Ia reduzindo a
participação dele para equilibrar o aluno aos poucos e de forma segura. A fala da Andrea é bastante representativa. Os artistas formados pela ENC quan-
Silva gosta que as descidas da bengala sejam leves e controladas. Nada de cair do voltam ali sempre o abraçam bem afetivamente e se referem a ele com muito res-
pesado na banquilha ou no chão. Geralmente, recomenda aos alunos para fazerem peito e admiração. É visto como um grande mestre. Pelo que observei neste período
um esquadro. Durante o período pude presenciar processos de ensino e aprendiza- percebi que o Silva é um professor calmo, muito preciso e está sempre apto a modi-
gem bem diversos, como o equilíbrio com uma das mãos e os dedos da outra, exercí- ficar a técnica dele em prol do desenvolvimento do aluno. Tem como característica
cios como caminhar com os pés na Parada, cruzar as pernas, balançar as pernas de explicar o exercício nos mínimos detalhes na medida em que o aluno vai avançando
um lado para o outro como numa dança, exercícios para bandeiras (paradas de mão na execução. Parece que ele se aperfeiçoa a partir do tempo. Ele aprendeu Parada de
laterais), quiques, pequenos saltos usando as duas ou uma mão no solo (repulsão do mãos toda envergada, no entanto, ele ensina a técnica atual e que está mais em voga
ombro). Os trocos (saltos em Parada com uma mão de um taco ou de uma bengala no mundo. Ele tem bastante carinho com os limites da pessoa. Não estimula a pessoa
para outra). Mas, antes destes, existem educativos mais iniciais como andar em linha a ficar forçando a barra. Ele transmite confiança, por isso ele é tão querido pelos alu-
reta, andar em zig e zag, etc. Lembro dos exercícios da banquilha para as bengalas. nos. Ele tem amor para passar a técnica para os alunos e está se aprimorando nisso
Os alunos faziam a subida carpada aberta com impulso até chegar no eixo e depois também.
voltavam para a banquilha. Repetiam isso várias vezes para ter mais controle no A postura dialética de estar sempre pronto para aprender é bastante interessante.
momento da subida. Na sua fala, podem-se encontrar algumas evidências sobre o que pensa e sente sobre
De acordo com Edson Silva, uma das coisas importantes na Parada de mãos: ofício do professor:

“é respirar, respirar normalmente e descansar fazendo as po- “O professor... Tem uma coisa muito boa que acontece com a gente.
sições. A respiração ajuda muito. Vocês tem que aprender a descan- Sabe o que é? O professor tá sempre aprendendo. Sempre que en-
sar de cabeça para baixo. Dá para fazer isso. Fez a prancha com tra o aluno por aquele portão ali, por mais que queiram aprender,
um braço pra descansar o outro. Entra em esquadro e sobe. Tem sempre traz alguma coisa pra gente. Sempre ensina alguma coi-
que aprender a descansar e respirar fazendo o movimento”. (Silva) sa pra gente. O professor recebe informação toda hora. Chega
um da América, chega outro da Europa, chega um da China. Eu vi
fulano fazer aquilo. A gente vai aprendendo. É um aprendizado
do dia-a-dia”. (Edson Silva)
96 G. CROIX, L. LEJEUNE , D.I. ANDERSON , R. THOUVARECQ. “Light fingertip contact on thigh facilitates handstand
balance in gymnasts”. In: Psychology of Sport and Exercise 11 (2010)

252 253
ETNOGRAFIA DA PERFORMANCE PARADAS

Isto não é demagogia, é fato. Percebi como esta é uma postura de alguém com
bastante curiosidade de aprender e com muita vitalidade. O que por sua vez torna “Antigamente, a gente tinha muita gente querendo aprender,
possível ensinar como a criação de oportunidades para a construção dos saberes, re- mas não tinha tanta base. Hoje em dia você tem gente aí cheio de
presentando um processo de formação, na qual o educando se torna sujeito de seu base, mas querem fazer coisas fáceis, moleza. Não quer pegar
conhecimento, porém, ambas as partes desse processo passam por um aprendizado. mesmo no pesado. Não sabem eles que o artista de ponta é aquele
Silva está bastante antenado com as facilidades de pesquisa proporcionadas pela que faz dificuldade, que faz coisas bonitas que quase ninguém
internet. Mostra vídeos de truques novos e tradicionais fazendo do ensino momentos faz (...). Tem poucos paradistas aqui de cabeça. Na minha família
que divulga conhecimentos obtidos em estudos. Este professor enquanto ensina conti- todos paravam de cabeça: Beto, Carlin, Eliane e eu. Os quatro ir-
nua buscando, em movimento. Educa e se educa. Pesquisa para conhecer o que ainda mãos paravam super bem de cabeça no trapézio e no chão. Porque
não conhece e para comunicar o novo. a gente ralava. O professor era danado. O pescoço tá doendo?
Sua fala é bastante clara quanto ao respeito que possui aos saberes dos alunos. Ele Alonga, faz uns exercícios e vamos ensaiar mais em cima dessa
reconhece os conhecimentos diversos que eles trazem das suas diferentes realidades. dorzinha aí que daqui a pouco ela vai embora!” (Edson Silva)

“Eu por ter passado também pela fase de aluno na Escola fica mais O professor dizia que a dor era normal, pois, aquela é uma prática antinatural. As
fácil, né? Porque eu me vejo também como aluno. Na verdade, pessoas usam as mãos para outras atividades cotidianamente e não para colocar o
no circo, a gente nasce e morre aprendendo. Então, as pessoas peso do corpo sobre elas. Admirava as alunas e alunos que deram a volta por cima em
entram na Escola e por mais que eu tenha muita coisa pra ensinar, suas lesões. Que se machucaram, mas buscaram um bom tratamento de reabilitação
eles me passam muita coisa” (Silva) e voltam a fazer o que gostam. Geralmente, Silva é bem humorado e gosta de fazer
piadas de quase tudo, inclusive colocando apelidos engraçados nos alunos.
Isso me lembra do pensamento de Paulo Freire sobre a Pedagogia da Autono- Para concluir esta parte, é importante que se diga que Silva consegue aliar como
mia, quando afirma que não há docência sem discência. Quer dizer, as duas se poucos, a profissão de professor na ENC e ser um artista circense atuante, com várias
explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças, não se reduzem à condição de apresentações, nos mais diversos lugares do país e algumas vezes no exterior. Edson
objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao Silva é um acrobata. De certa forma, é uma forte inspiração para os alunos porque
aprender.97 O professor em questão, acredita muito na importância do aluno saber não é um professor que só fala, mas que vai lá e faz. Também não é do tipo “faça o
ensinar o que aprendeu. Parece que para ele é como se só existisse ensino quando que eu falo e não o que eu faço”. Ele sabe que as palavras às quais falta corporeidade
este resulta num aprendizado em que o aluno se tornou capaz de recriar ou refazer do exemplo quase nada valem. É preciso uma prática testemunhal que confirme o
o ensinado, ou seja, em que o que foi ensinado foi realmente aprendido pelo aluno. que se diz.
Talvez por estes aspectos e por seu próprio exemplo de vida, Silva consegue exer-
cer autoridade sem ser autoritário. O que não o impede de chamar a atenção dos alu-
nos quando ao invés de estarem aquecendo, alongando ou treinando estão sentados
só conversando ou observando:“ E você? Não vai parar de mão, não? Vamos aquecer
minha filha, vamos lá!”Ele age como um desafiador, um instigador, inquieto, rigo-
rosamente curioso, humilde e persistente. Segundo ele a aula é sagrada. A aula não
pode parar. Dizia que em seu tempo de aluno fazia aula todo dia. Sábado e domingo
quando a Escola estava fechada ele ia pra cidade universitária fazer Parada de mão.
Entretanto, sabe perfeitamente que “tem hora que é só descansando”. Sabe que é pre-
ciso dar um tempo para recuperar. (quando não rende) Que descanso na hora certa
também é treino.
Mesmo quando o Silva estabelecia estações básicas para os alunos e pedia para
fazerem sequencias e exercícios específicos, como por exemplo, a prancha 3x de cada
lado. Ainda assim, na maioria das vezes fazia o acompanhamento individual de cada
aluno procurando saber também um pouco sobre o seu histórico de vida. Em alguns
casos, ele dava uma “desempenada na pessoa” recomendando exercícios para um tra-
balho individual de preparação e organização corporal fora das aulas.
A sensibilidade dele em reconhecer quando o aluno tem limitações médicas prove-
nientes de lesões no momento, não o impede de cobrar grande entrega e dedicação dos
que estiverem plenamente aptos fisicamente:
97 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. Silva portando seu irmão Beto no cabeça com cabeça.
Foto: CAS. 2014.
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SOB O SIGNO DA
MUDANÇA
SOB O SIGNO DA MUDANÇA Buscando as chaves...

Buscando as Chaves que abrem país inteiro, então a primeira sensação que a gente tem é que tá
num lugar que acolhe as pessoas do país inteiro. Como Escola Na-
cional esse é um fundamento que eu imagino que seja básico, e era
os Segredos do Coração funcional naquele momento, ele pelo menos agregava essas pessoas,
davam acesso à essas pessoas. Por exemplo, neguinho do Acre, que
não tinha acesso à Escola Nacional, a partir do edital consegue
Agora, vamos discutir algumas mudanças em curso na ENC. Para isso, realiza-se chegar na Escola. Eu entendo a bolsa como espaço de nacionali-
inicialmente, um breve histórico do Curso de Formação e análise de alguns tópicos zação da Escola, tornou a Escola Nacional nacional, antes ela
dele, do Curso Técnico anterior e do atual, aprovado há quase um ano, juntamente era só nacional carioca”. (Alexandre Santos)
com o novo Projeto Pedagógico, em vigor.
Em anos anteriores, a Fundação Nacional de Artes lançou quatro editais: Bol- No que diz respeito mais especificamente à turma que entrou em 2013 é impor-
sa Funarte para Formação em Artes Circenses.98 A primeira relação dos candidatos tante lembrar que foram concedidas 50 (cinquenta) bolsas durante o período de 10
aprovados foi divulgada em 10 de julho de 2010. Com o objetivo de democratizar o (dez) meses, não consecutivos, isto é, a bolsa não cobriu os períodos de recesso/férias
acesso ao conhecimento do universo das Artes do Circo, nessa primeira edição não existentes entre os meses de agosto de 2013 a julho de 2014.
foram aceitas inscrições de candidatos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e Cada aluno desta turma para estar ali teve que cumprir várias tarefas burocrá-
ao todo foram selecionados 15 (quinze) proponentes. Cada um deles recebeu a bolsa- ticas, técnicas, artísticas e organizacionais. Teve que encaminhar um projeto em 1
-auxílio no valor de R$ 20 mil. Nos anos de 2011 e 2012 a Funarte dobrou o número (uma) via encadernada, em envelope único composto por vários documentos : formu-
e ofereceu 30 bolsas. Foram distribuídas seis bolsas para cada uma das cinco regiões lário de inscrição devidamente preenchido e assinado pelo candidato; uma foto 3 x
do País em cada edição do Edital. 4, recente; cópia autenticada da carteira de identidade; currículo do candidato; DVD
Segundo documentos da Fundação Nacional de Artes: contendo gravação em vídeo das habilidades específicas descritos no Anexo 1; cópia
autenticada do comprovante de residência.
“Antes dessa iniciativa, o custo de vida dificultava a presença As habilidades específicas que são demonstradas no vídeo referem-se a exercícios
de alunos de outras regiões do país na Escola Nacional de Cir- físicos diversos. Partindo da posição em pé fizeram demonstrações de rolamento para
co, centro de formação mantido pela instituição que, em 2015, frente e para trás) pantana (estrela), pirueta (giro de 360 graus sobre o eixo longitudi-
completou 33 anos. A bolsa de estudos visava também atender a nal do corpo), equilíbrio na trave - deslocamento sobre uma trave com quatro metros,
demanda de jovens circenses ávidos por um espaço gratuito de malabarismo com três bolinhas (cascata). Também realizaram exercícios de força e
pesquisa e compartilhamento de informações sobre circo resistência física como o de esforço específico (barra fixa / flexão abdominal) e exercí-
em que pudessem dedicar-se com exclusividade ao desenvolvi- cios de flexibilidade - espacate, flexão de tronco e envergada (ponte).
mento artístico acompanhando as constantes mudanças nos di- Além desta parte em que tiveram que demonstrar que possuíam condições técnicas
ferentes segmentos de atuação das Artes do Circo”. (grifos meus) de realizar o aprendizado proposto pela ENC eles tiveram oportunidade de colocar
suas habilidades artísticas através da apresentação em vídeo de uma performance
Estas bolsas seguramente contribuíram para ampliar a formação em artes circen- individual que abarcou a leitura de texto dramático, coreografia ou número circense
ses no Brasil. Jovens das diferentes regiões do país que não teriam condições econô- com duração de até 5 minutos (executado em plano aberto).
micas para arcar com os gastos da estadia no Rio de Janeiro puderam ter a chance, o De acordo com a Nota técnica Bolsa Formação Artes Circenses – 2013-2014/1:
direito de ter acesso as aulas e ao conhecimento produzido na Escola Nacional de Cir-
co. Isto implicou num maior alcance da Funarte em termos de promover uma maior “Para essa análise, a comissão levou em consideração a postura e
descentralização de suas ações, fornecendo bases para uma formação de qualidade. condições físicas do candidato na execução dos exercícios propostos,
Cabe lembrar que a bolsa individual no valor total de R$ 20.000,000 (vinte mil observando aspectos ligados à resistência, flexibilidade, equilíbrio,
reais) foi concedida somente a brasileiros natos ou naturalizados (pessoa física), com coordenação motora, agilidade, criatividade e performance cênica.
idade mínima de 18 (dezoito) anos e idade máxima de 25 (vinte e cinco) anos. Em Vale ressaltar que o candidato deveria obter no mínimo 70% (se-
suma, o fato é que nestes quatro editais a iniciativa atendeu por volta de 125 artistas tenta por cento) de pontuação na prova de habilidades específicas,
circenses de 17 estados, incluindo todas as regiões do Brasil. afim de ser aprovado no processo”.99
Na turma anterior (2012), Alexandre Santos foi um dos bolsistas. Veja como ele
expõe na fala a seguir dimensões consideráveis que confirmam o que vem sendo dito: No geral, os projetos inscritos foram avaliados em 4 (quatro) etapas: 1) Habilitação
dos projetos; 2) Avaliação e Seleção: realizada pela Comissão de Seleção, nomeada
“A experiência da bolsa foi muito rica, primeiro porque a bolsa pelo Presidente da Funarte 3) Demonstração de habilidades específicas - avaliação,
te possibilita que você entre em contato com gente que faz circo no sob coordenação da Comissão de Seleção, 4) Análise documental para elaboração do
98 FUNARTE. BRASIL. Preâmbulo do Edital Bolsa Funarte para Formação em Artes do Circo 2015. Rio de Janeiro. 2015 99 FUNARTE/BRASIL. Nota técnica Bolsa Formação Artes Circenses. Rio de Janeiro, 2013.

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SOB O SIGNO DA MUDANÇA Buscando as chaves...

contrato e início do curso: após a publicação do resultado final no Diário Oficial da Acredito, que a fala a seguir, do experiente Marcos Teixeira é bastante significati-
União, o selecionado teve que entregar a documentação complementar. va em termos de um balanço geral, destas edições:
A demonstração de habilidades específicas na Escola teve como objetivo comprovar
se os candidatos eram realmente capazes de realizar os exercícios apresentados no “Acho que é uma ideia muito boa do Zezo. As pessoas vivem dizendo que a
vídeo. As despesas com o deslocamento do candidato de sua residência até a cidade ENC é uma escola do Rio de Janeiro. De fato, é difícil, uma pessoa vir
do Rio de Janeiro/RJ, como também sua hospedagem durante o período da demons- do Acre e fazer o curso durante três anos e meio. Mas isso aconteceria em
tração presencial para comprovação das habilidades específicas, correram por conta qualquer estado. Vai ser a mesma coisa. Então, atendendo esta solicitação
do próprio candidato. de uma escola em cada estado do Brasil, uma coisa impossível, óbvio, a
O curso, em turno integral, de segunda-feira a sexta-feira, no horário de 8 h às 17 gente não pode ter 27 escolas de circo, a gente não dá conta nem de uma. Vai
h formalmente teve início às 8:00 horas do dia 05/08/2013. Os bolsistas tiveram como dar conta de 27? Então, você democratiza o acesso trazendo as pessoas e
obrigações básicas ter rendimento igual ou superior a 70% (setenta por cento) de dando uma bolsa. É bacana! A ideia é boa”. (Marcos Teixeira)
aproveitamento, bem como, encaminhar a cada bimestre um relatório de atividades
com prestação de contas mensal dos recursos recebidos e manter frequência mínima Como já foi mencionado, o Curso de Formação Básica, tinha duração de dez meses,
de 75% (setenta e cinco por cento) no semestre letivo. Aqueles que foram avaliados não consecutivos, o que virava um ano na prática. Os alunos tinham em torno de
com rendimento inferior ou tiveram uma porcentagem menor de frequência que a três meses de matérias básicas e obrigatórias como o arame, solo, trapézio simples e
estabelecida foram desligados do curso. malabarismo. Depois eles passavam para uma parte que era eletiva e que durava em
A Comissão de Seleção composta interdisciplinarmente por Carlos Vianna (Pre- torno de uns três meses. No ano de 2014 houve ma modificação em relação aos anos
sidente da Comissão) Albener Amos de Moura (Professor de teatro), Edson Pereira anteriores, pois a direção da ENC estabeleceu que duas disciplinas seriam escolhidas
da Silva (Professor de circo), Alex Rodrigues Machado (Professor de circo), Juliano pelos professores e não pelos alunos.
Salomão Malheiros de Oliveira (Professor de Educação Física) analisou 119 (cento Segundo Carlos Vianna, hoje Coordenador (Diretor) da ENC:
e dezenove) inscrições dos candidatos. Segundo o Edital as vagas deveriam ter sido
distribuídas da seguinte forma: 10 (dez) para a Região Norte; 10 (dez) para a Região
“A gente observou que o fato de ser um período de tempo curto o aluno não
Nordeste; 10 (dez) para a Região Centro-Oeste; 10 (dez) para a Região Sudeste e 10
tinha o conhecimento corporal e entrava em uma modalidade pra qual ele
(dez) para a Região Sul.
não tinha nenhuma aptidão. Então, a gente decidiu que pelo menos para a
No entanto, não foi isso o que aconteceu de fato. Os motivos que justificam a mu-
metade da carga horária deles, uma orientação pra desenvolvimento de
dança podem ser encontrados no texto da Comissão de Seleção - Nota técnica Bolsa
técnicas circenses”. (Carlos)
Formação Artes Circenses:
Nesse caso, alguns professores puderam também indicar alguns alunos para a mo-
“O resultado desta avaliação permitiu a seguinte configuração:
dalidade na qual eles teriam uma maior aptidão na visão dos docentes. No final, os
Na Região Norte contabilizou 06 (seis) inscrições, onde foram
estudantes tiveram um período de cerca de um mês para elaboração do espetáculo de
selecionados 03 (três) candidatos e não houve suplentes para essa
formatura. Esta foi a última avaliação deles (e será analisada na parte dedicada aos
região; Na Região Centro-Oeste contabilizou 17 (dezessete) ins-
espetáculos). O Curso Básico na verdade foi um curso que tinha as mesmas etapas do
crições, onde foram selecionados 10 (dez) candidatos e não houve
antigo Curso Técnico, mas com um tempo de execução bem mais curto.
suplentes para essa região; Na Região Nordeste contabilizou 24
(vinte e quatro) inscrições, foram selecionados 08 (oito) candida- No que se refere à avaliação dos alunos é importante que se diga que eles recebiam
tos e não houve suplentes para essa região; Na Região Sul con- uma nota de 0 a 10. Ela levava em conta para prova a sequencia técnica desenvol-
tabilizou 16 (dezesseis) inscrições e foram selecionados 08 (oito) vida, a postura corporal do aluno, a adequação da música, os elementos cênicos que
candidatos e não houve suplentes para essa região; Na Região ele utilizava para elaborar o número e o desenvolvimento artístico como um todo. O
Sudeste, em virtude de não haver preenchimento de todas as va- aluno também tinha uma nota de cada professor no qual ele estava matriculado na
gas nas regiões Norte, Nordeste e Sul, pelo fato de que alguns grade horária que era uma nota pelo desenvolvimento na aula. Teoricamente, levava
candidatos não atingiram 70% (setenta por cento) de pontuação, em conta o desenvolvimento técnico dele da maneira como tecnicamente ele começou
conforme o Item 10.2 do Edital, a Comissão decidiu ampliar o a aula e da maneira como ele fez o ciclo de aulas. A participação dele com o grupo, a
quadro de selecionados da Região Sudeste por ter sido a região de frequência, a assiduidade do aluno, a postura do aluno em relação ao professor.
maior número de inscritos, tendo totalizado um número pratica- Assim, a avaliação buscava avaliar o aluno num processo e não só como no re-
mente igual a soma dos inscritos nas outras regiões. Esta região sultado de suas provas. Desse modo, é uma avaliação mais orgânica, pois levava em
contabilizou 59 (cinqüenta e nove) inscrições e foram selecionados conta uma gama maior de aspectos:
21 (vinte e um) candidatos, todos com nota final acima de 80%(oi-
tenta por cento) de aproveitamento e 13 (treze) suplentes.”100 100 FUNARTE/BRASIL. Nota técnica Bolsa Formação Artes Circenses. Rio de Janeiro, 2013.

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SOB O SIGNO DA MUDANÇA Buscando as chaves...

“Foi uma modificação implantada nos últimos anos aqui, para elaboração do espetáculo de formatura. Nesse período, eles ficavam dedicados
também. O aluno anteriormente só tinha uma nota de prova e ao processo de criação, produção e execução do espetáculo de formatura. Essa era a
a nota final dele. Então, mesmo um bom aluno que tivesse pro- conclusão de curso.
blema no momento da prova ele era prejudicado. Então, hoje
a gente tem uma avaliação que leva melhor em conta o ciclo da GRADE DE HORÁRIO DO 10 SEMESTRE DE 2014_ESCOLA NACIONAL DE CIRCO
formação do aluno”. (Carlos Vianna) PROFESSOR ALEX
HORÁRIO
ALEXIS ANGELA SOUTO EDSON
SILVA
JULIANA LATUR MARCE-
LINTON
PIRAJÁ WALTER

TECIDO X X
SOLO
X X ARAME X TRANCA MALABARES
Entretanto, nem todos os professores faziam isso de fato. O quadro de docentes
08:15/ 09:25 CORDA 2º PERÍODO MONOCICLO

era muito diversificado. Professores que tiveram uma formação de circo tradicional. 09:26/09:36 INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO

Professores que são ex-alunos da Escola. Professores que vinham de outros espaços CAMA
X
TRAPÉZIO
09:37/10:47 X X X ARAME
X BOLA MALABARES
de formação. Frente a essa diversidade, dificilmente conseguiam estabelecer que to-
SIMPLES ELÁSTICA
2º PERÍODO
LIRA TRAPÉZIO
dos os professores realizasseem essa avaliação processual. Nas reuniões de trabalho
TECIDO DUO
10:48/11:58 QUADRANTE ARAME SOLO PARADAS LIRA DUPLA EM BALANÇO FAIXA ACROBÁTICO MALABARES
CORDA FAIXA
organizadas pela Coordenação Pedagógica buscava-se pelo menos que o processo de 11:59/13:14 ALMOÇO ALMOÇO ALMOÇO ALMOÇO ALMOÇO ALMOÇO ALMOÇO ALMOÇO ALMOÇO ALMOÇO
avaliação, fosse, no mínimo, coerente. Nessas reuniões todos os professores partici-
pavam. Isso era muito importante porque todos os docentes podiam contribuir na
TECIDO TRAPÉZIO SOLO PARADAS LIRA TRAPÉZIO FAIXA BOLA MONOCICLO
13:15/14:25 MASTRO
CORDA IND. SIMPLES LIRA DUPLA EM BALANÇO ICARIUS MALABARES
discussão sobre os alunos. X TRAPÉZIO
X
X ADAGIO
X X
14:26/15:36 ARAME DUO
QUADRANTE
Não havia nenhum tipo de avaliação formal das aulas dos professores. Somente
PAIS DE DEUX TRIPÉZIO ACROBÁTICO

os professores que eram servidores públicos tinham a avaliação regular que era 15:37/15:47 INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO INTERVALO

feita de uma maneira geral. Os professores terceirizados não tinham nenhum tipo X
TRAPÉZIO
X X X
X PARADAS TRAPÉZIO 1PT
15:48/16:58 CANASTILHA SIMPLES BÁSCULA
estruturado de avaliação.
FAIXA

São inúmeros os autores que ressaltam a importância da avaliação no processo


educativo porque ele costuma ser o momento decisivo da vida escolar. Nesse sentido, Nesta formação, já se destacava o compromisso da Escola com a cidadania, em
“devemos perceber que uma avaliação eficiente, que pretenda ser também um mo- primeiro lugar. Segundo o Art. 40º do Regulamento Interno Da Escola Nacional De
mento de aprendizagem, precisa acontecer permanentemente durante todo o processo Circo, o Curso Regular Técnico de Artes Circenses tinha como objetivos específicos:
educativo e de maneira mais específica, no mínimo, abrangendo três aspectos: o aluno,
o professor, o contexto.” 101 “Formar o artista circense, comprometido com a cidadania, atra-
Analisar como era o aluno no início do processo e como ele se encontra no fim em vés do domínio de habilidades em técnicas circenses, capacitando-o
relação ao conteúdo é essencial para que ele possa prosseguir no processo. Mas tam- para a elaboração e execução de números, montagem dos equi-
bém é importante alguma avaliação do professor vinculada ao desempenho efetivo pamentos necessários à execução de seus números com excelência
realizado no processo, bem como, a avaliação do contexto, vinculada às condições e segurança, a organização do espaço cênico circense, o domínio
concretas de efetivação das aulas e do curso em geral. Quando a ENC conseguir ava- dos fatores técnicos que interferem na realização de espetáculos e a
liar pelo menos esses aspectos terá a probabilidade menor de errar ou ser injusta de disponibilidade de trabalhar em grupo”.102 (grifos meus)
algum modo com os alunos, visto que ainda é o professor (mesmo que de forma coleti-
va) em última instância que acaba tendo a responsabilidade e o poder.de decidir se o
aluno continua ou não o seu processo de aprendizado.
O Curso Regular Técnico em Artes Circenses em vigor anteriormente durava
três anos e meio. A sua organização curricular obedecia a três etapas de aprendiza-
gem: os módulos básico, profissional e formativo.
O primeiro ano era um tempo em que obrigatoriamente todos os alunos parti-
cipavam das aulas de trapézio simples, acrobacia de solo e malabarismo. A partir
daí eles faziam uma avaliação. Essa avaliação de final de ano era eliminatória. Só
permaneciam no curso aqueles alunos que durante este ano demonstraram alcan-
çar os objetivos propostos. Em seguida, eles passavam para uma etapa do curso que
era eletiva. Então dentro das matérias oferecidas na Escola, os alunos escolhiam as
matérias que eles iam querer desenvolver (vide a grade de horários). Assim, começa-
vam o treinamento específico nestas modalidades por mais dois anos. Ao final desse
tempo eles passavam por uma avaliação e depois tinham um semestre inteiro voltado
Espetáculo INVERSUS (David e Helder) . Foto: Cláudio Alberto 20 /12/2013.
101 MELO, Alessandro de. Fundamentos da Didática: Curitiba, Ipbex, 2008, p.83. 102 REGULAMENTO INTERNO DA ESCOLA NACIONAL DE CIRCO (em vigor até 2015)

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SOB O SIGNO DA MUDANÇA Buscando as chaves...

A cidadania, embora seja um conceito advindo da Grécia clássica (séc. V A.C), pelo Carlos Vianna, pelo Bruno Gawryszewski e pela professora de dança Janaína
onde significava a possibilidade real de intervenção dos indivíduos (de sexo mas- Guerreiro. Eles elaboraram todo o planejamento do decorrer do semestre letivo. Os
culino e proprietários) na constituição da polis, no projeto burguês de educação re- semestres letivos na verdade duravam quatro meses. Faziam o planejamento
sumiu-se durante um bom tempo em formar indivíduos adaptados às necessidades preliminar de tudo o que iria acontecer na época das aulas, preparavam o calen-
produtivas e sociais da sociedade capitalista. Entretanto, a perspectiva apresenta- dário escolar com as atividades que iria ocorrer durante o ano. Quando o semestre
da pelo documento transcende esta ótica redutora (de “cidadão produtivo, eleitor e se iniciava faziam o acompanhamento das atividades. O Bruno estava mais voltado
cumpridor das leis”) para uma visão transformadora da realidade através da parti- para a melhoria da biblioteca da Escola, para a parte de pesquisas e coordenação de
cipação crítica dos alunos. estágios. A Janaína estava atuando na área das oficinas e seminários contínuos ofe-
A Instituição já previa um reconhecido papel pedagógico da obra de arte cênica recidos na ENC. O Carlos atuava nas aulas dos dois cursos. Nesse sentido, ele ficava
circense na organização e eficiência no ensino: mais no dia a dia das aulas. Nessa parte da coordenação pedagógica propriamente
dita. Também ajudava na parte administrativa dando suporte para o diretor no que
“Art. 98º - Os espetáculos e apresentações oficiais da ENC são con- ele precisava.
siderados atividades obrigatórias para alunos e professores. A Os professores colaboraram na conservação do material didático, inclusive mobi-
Escola se compromete em divulgar um cronograma de eventos e a liário e equipamentos, especialmente os que estavam sobre suas responsabilidades,
avisar aos alunos com, no mínimo, uma semana de antecedência”. bem como, participaram das reuniões, conselhos de classe, ministraram aulas, ofi-
cinas e organizaram, orientavam e/ou dirigiam montagens artísticas. Entre o corpo
Esta obrigatoriedade se referia tanto ao Técnico, quanto ao Básico. Mostra como docente e demais funcionários prevaleciam o espírito de equipe e de colaboração (com
a dimensão artística não era um mero apêndice na formação. Pelo contrário, foi poucas exceções).
uma dimensão estruturante do processo de ensino/aprendizagem. Esteve presente Este é um tempo de transição. Mas, em 2014 administrativamente, a Escola
também nas avaliações em finais de período e em montagens feitas para a comuni- estava estruturada em direção, coordenação pedagógica, secretaria escolar, ser-
dade externa. viços técnicos e auxiliares da administração (que envolviam o departamento de
O último espetáculo de formatura recursos humanos, tesouraria, contabilidade, manutenção, os serviços gerais e
apresentado em dezembro de 2015 guarda do patrimônio e estavam sob a responsabilidade da Funarte, segundo nor-
teve no elenco doze alunos: Alisson mas próprias). O (a) diretor (a) (hoje coordenador ou coordenadora) da ENC era (e
Almeida, Ana Julia Moro, Ashley ainda é) nomeado (a) pela Funarte.
Bravo, Carla Albuquerque, César Durante este período observado, pude notar os esforços da direção da Escola em
Augusto, Isan Vicencio, Jana Serrat, vários aspectos, principalmente na busca de ampliar o diálogo com os alunos e fun-
Jennifer Gerschenson, Jenny Cebal- cionários da Escola:
los, Júlia Guerra, Murilo Hernandes
e Wallace Ruan. Bruma Saboya foi a “eu tenho tentado dialogar muito com os alunos, com os pro-
professora orientadora da montagem. fessores, com os profissionais daqui, para ver o que é que eles
Segundo informações da divul- querem que melhore. Eu não tenho a pretensão de achar que eu
gação: por estar nesta área do circo já alguns anos, conhecer o circo pelo
Brasil como um todo, de achar que eu sozinho vou dou conta de
“Em uma criação autoges- dizer o que é bom ou o que é ruim para esta Escola. Não me sinto
tionada, a turma de forman- capaz de fazer isto, eu preciso desta parceria. E esta parceria tem
dos 2015 traz ao picadeiro o uma característica do circo de uma maneira geral. O trapezista
cotidiano de uma improvável só se lança nas alturas porque sabe que do outro lado vai ter uma
família. Divertido e ao mes- pessoa para pegá-lo do outro lado. É preciso uma confiança cega
mo tempo intenso, o espetá- para se fazer isto. Eu gostaria que um dia a gente tivesse essa
culo mergulha fundo na in- confiança nas pessoas todas aqui”. (Marcos Teixeira)
timidade e individualidade
de cada artista. Partimos, De fato, pude constatar a partir da participação em várias reuniões que algumas
demos à luz”. coisas estavam sendo bem discutidas. Prevalecia uma ideia de debate e não de hierar-
quia absoluta. Penso que este ainda é um processo demorado, pois se relaciona com
Na Coordenação Pedagógica du- uma sociedade mais ampla de muita exclusão política e de pouca participação direta
rante o ano anterior, em 2014, houve das pessoas nas decisões que envolvem suas vidas (autogestão). Por isso, é uma mu-
o trabalho de uma equipe composta dança um pouco mais lenta. Também é uma ruptura com a característica, geralmente
Cartaz do espetáculo Parto. Fonte: http://www.funarte.gov.br/enc.

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SOB O SIGNO DA MUDANÇA Buscando as chaves...

do circo de lona, do dono do circo ser o grande responsável por tudo. Isto é, uma espé- bastante diversificado. Eles tinham objetivos diferentes. Tinha aluno que ia para a
cie de imperador que manda e desmanda. Instaura-se a busca por uma gestão mais Escola buscando obter conhecimentos para fortalecer o projeto de circo social na cida-
democrática e republicana na definição dos rumos. de dele. Outro aluno que queria ser um artista de alta performance para se apresen-
Além de cumprir funções estatutárias como representar a Instituição nas ativida- tar em companhias mundo afora. Alguns alunos que queriam montar uma trupe para
des externas e perante as autoridades públicas, bem como, promover atividades ex- trabalhar somente pelo Brasil. Enfim, estes eram apenas alguns dos vários objetivos
traclasse, o diretor Marcos Teixeira em 2014, também coordenou processos seletivos, que levavam os estudantes para aquele espaço. A direção da ENC procurava dialogar
assinou toda a documentação e buscou intervir na orientação pedagógica geral da e abarcar essas diferenças, mas a Escola possuía um perfil hegemônico de formação.
Escola, com a colaboração da Equipe Pedagógica. O ex-aluno e professor efetivo da Escola, Alex Machado, traz evidências da varie-
Trabalharam em sintonia para pensar e estabelecer medidas que visassem à me- dade de objetivos por parte dos alunos e ao mesmo tempo da predominância de um
lhoria dos cursos e atividades pedagógicas. Esta equipe acompanhavam o desen- perfil por parte da instituição.
volvimento do ensino e a atividade docente dos professores através de um contato
permanente com eles. Assim, a Coordenação pedagógica buscou favorecer a constru- “A Escola tem perfil, e isso é uma briga muito grande com os alu-
ção de um ambiente democrático e participativo, onde se incentivasse a produção do nos, porque os alunos chegam na Escola e querem impor seus per-
conhecimento por parte da comunidade escolar, promovendo mudanças atitudinais, fis pessoais à instituição. Eles não entendem que a Instituição tem
procedimentais e conceituais nos indivíduos. Isto é, uma peça fundamental no espa- um caráter específico e tem que de fato dar uma homogeneizada.
ço escolar, pois buscou integrar os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem Em nenhuma outra escola você chega e ela atende as individuali-
mantendo as relações interpessoais de maneira saudável, valorizando a formação do dades daqueles alunos, a Escola tem perfil, caráter, que quer for-
professor e desenvolvendo habilidades para lidar com as diferenças. mar alunos com aquele perfil. Bom, ruim, atrasado, novo, isso é
Na Secretaria Escolar, fazia-se toda a escrituração escolar, arquivo, fichário, pre- da instituição. Eu não vejo problema nenhum em alguém ir pra
paração de correspondência e assinatura de documentos que digam respeito à vida escola de dança clássica, escola que dura nove anos, ‘ah porque eu
escolar do aluno. A ENC ofereceu nesse período de uma maneira um tanto conturba- não gosto de clássico, eu não quero aprender clássico, quero fazer
da (por vários motivos, desde desvios de função até mortes, doenças, etc) os serviços contemporâneo’, então vá aprender, vá fazer Angel, vá fazer em
de apoio e atendimento psicológico, assistência social, fisioterapia, educação física, outro lugar. Lá naquele lugar tem perfil, se adeque ao perfil ou
capatazia e de manutenção e criação de aparelhos circenses e outros equipamentos na então procure outro. Os alunos entram e as vezes ficam dando mur-
oficina. Os serviços gerais, de guarda e vigilância e de fornecimento de alimentação ro em ponta de faca”. (Alex Machado)
eram todos terceirizados, seguindo os trâmites de contratação da Funarte.
Os alunos do Curso Técnico e os do Básico só podiam se ausentar da Escola no tér- Por um lado a Escola esteve aberta para as demandas do momento. Ela não pôde
mino das aulas, podendo somente sair antes do horário previsto mediante autorização ficar hermeticamente fechada, ela não pôde ficar cega às demandas dos alunos. Ela
da coordenação pedagógica. Os alunos do Curso Técnico podiam fazer aulas no turno buscou estar dialogando. Mas isso não impediu de na prática ter um perfil específico
da manhã e/ou no turno da tarde. Os alunos do Básico faziam de manhã e a tarde. com ênfase na dimensão técnica da formação do profissional de circo.
Mas todos eles tinham direitos ao processo de nivelamento, efetivação, trancamento De fato, tentar dar conta de tudo é muito difícil, praticamente impossível. Mas, a
e exclusão da matrícula, sistema de aprovação determinação da média semestral, ao direção e a coordenação pedagógica estiveram em movimento buscando alternativas
sistema de dependência. Todos tiveram o direito de receber a Carteira de Estudante, e diálogos com vários setores da sociedade. Pois, segundo Marcos Teixeira:
acesso aos espaços pedagógicos sob a orientação de pessoal responsável pelo setor,
receber almoço e uso do “escaninho” (armário individual), quando disponível. “Essa discussão tem que ser ampla. A Escola é nacional. A gente
Não foi permitida a permanência de alunos em horários e espaços pedagógicos de tem que saber a realidade do Brasil como um todo. Saber pra quem
disciplinas que não estavam em suas respectivas grades de inscrição, bem como, na a gente tá formando. A gente quer profissionais pra sair do Brasil?
Sala de Treinamento Físico, nos horários de aulas regulares. Os professores solicita- A gente tá formando profissionais pra continuar no Brasil? Ou a
vam que durante as atividades didáticas, os alunos não usassem piercings, óculos, gente tá formando profissionais para serem novos formadores?
brincos, cordões, pulseiras, anéis, telefones, aparelho de som portátil ou mascassem Enfim, esta discussão tem que ser feita, a gente já tá atrasado nela”
chicletes, por questões óbvias de segurança. No entanto, alguns alunos burlavam es- (Marcos)
tas normas, como é comum em qualquer escola.
O material didático (liras, trapézios, colchinetes, etc) era guardado no depósito de São questões como estas que foram levantadas em reuniões e debates mostram
material - localizado ao lado esquerdo do vestiário feminino. Esse material só podia como a Instituição buscou pensar o mundo atual e futuro e nas possibilidades de in-
ser retirado, para aulas pelos professores ou com sua autorização ou da Direção e da serção de seus alunos no mundo profissional, no processo de criação do novo curso téc-
Coordenação pedagógica. nico. Na época da entrevista já havia uma mudança em andamento que era também
Apesar do estabelecimento por parte da ENC de um nível técnico de flexibili- uma transformação na própria visão de que aprender circo não é apenas treinar e
dade, vigor físico, coordenação motora, entre outros, o fato é que o perfil do aluno era repetir. Ao longo do tempo a ENC tem ampliado seus conteúdos curriculares ligados

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a estudos sobre corpo e sociedade, participação política, além de outros conhecimen- técnico). O processo seletivo também ficou mais complexo, pois além de envolver
tos técnicos relacionados ao mundo do espetáculo. as provas já existentes anteriormente de prática de habilidades circenses para
Em suma, em, 2014, a Escola ofereceu apenas os seguintes cursos: 1) Básico em execução de exercícios básicos e de aptidão física, a fim de mensurar qualidades
Artes Circenses: 10 meses não-consecutivos, 2) Técnico em Artes Circenses: 07 se- físicas básicas, foram incluídas uma avaliação da performance em artes cênicas
mestres (3 anos e meio). Nestes cursos proporcionou a vivência e o aprofundamento dos candidatos, bem como, a análise de seu projeto artístico. Vale lembrar que não
técnico nas mais variadas modalidades que compõe as artes circenses. foram estabelecidos limites mínimos ou máximos de idade para ingresso dos
Assim, no ano de 2014 a ENC diferentemente dos anos anteriores não abriu vagas alunos. O que por sua vez, representa uma proposta bem mais democrática e em
para novos bolsistas, nem para os alunos do Curso Básico ou de Reciclagem. Os mo- sintonia com a realidade contemporânea.
tivos para isto se ligam ao fato de que no final do segundo semestre de 2013 a ENC No novo Projeto Pedagógico a organização curricular do curso é composta por qua-
chegou a um quantitativo de alunos que ela não conseguia atender a contento. Uma tro semestres com 700 horas cada um ao invés das etapas de aprendizagem do projeto
média de 130 a 150 alunos para um corpo docente de dez professores. Ainda que nem anterior constituída pelos Módulos Básico (700 horas em 200 dias letivos), Profis-
todos os docentes tivessem o mesmo número de alunos, era complicado atender satis- sional (700 horas em 200 dias letivos), Formativo (1200 horas em 200 dias letivos) e
fatoriamente os discentes em todas as modalidades. Estágio Profissional ( 150 horas). Em termos de quantidade da carga horária houve
Segundo o diretor em 2014: o aumento de 200 horas. Assim, se antes eram necessárias 2.600 horas para o aluno
cumprir, agora são 2.800 horas no total. Outra diferença é que antes ele tinha sete
“Esse ano a primeira coisa que eu fiz foi: não vai entrar mais semestres e agora tem apenas quatro. Isso significa que o aluno vai ter aulas tanto
nenhum aluno na escola. Esse ano ninguém entra! A gente em pri- na parte da manhã quanto na parte da tarde. Isto é, um curso é integral. Antes era
meiro lugar tem que resolver os problemas da Escola. Pensar a apenas em um dos turnos.
formação e criar parâmetros para a escola. Por mais interessante Os Diplomas emitidos pela ENC, atualmente são reconhecidos formalmente pelo
e democrático que seja a entrada dos bolsistas”. (Marcos Teixeira) Ministério da Educação, como sendo equivalente ao Ensino Técnico Profissionali-
zante do Ensino Médio. Com o convênio firmado com o IFRJ – Instituto Federal de
De acordo com as evidências expostas na fala do Marcos Teixeira, a decisão de sus- Educação, Ciência e Tecnologia, finalmente a ENC conseguiu o direito de expedir
pender a entrada de qualquer aluno novo se articulou com a busca de levar adiante diplomas reconhecidos oficialmente pelo Ministério da Educação, no qual constarão
o processo de reflexão sobre os rumos da Escola, o reconhecimento pelo MEC através também as assinaturas do Reitor do IFRJ e da Presidência da Funarte.
da parceria com o IFRJ e a criação do novo curso técnico. Houve um entendimento Talvez, uma das mudanças mais significativas na dimensão artística e pedagógica
que era preciso interromper o fluxo da entrada de alunos para os funcionários terem da formação do aluno tenha sido a criação de uma nova disciplina chamada Projeto
um tempo de se rearticular e conseguir atender a contento a partir do próximo ano de Pesquisa Circense. Finalmente, a Escola abre espaço na sua grade curricular para
a demanda de pessoas que queriam entrar como alunos na Escola. Da maneira como um tempo dedicado à pesquisa no âmbito das artes do circo que não seja no período
estava indo, estava muito difícil para o professor dar conta da grande quantidade de da produção dos espetáculos. É o reconhecimento da importância da análise da di-
alunos. Determinadas disciplinas que exigiam um refinamento e um olhar mais cui- versidade dos processos criativos na produção artística circense contemporânea, bem
dadoso estavam sendo prejudicadas na sua qualidade. Então a direção da instituição como, um respaldo e um estímulo aos processos de criação artística anteriores ao
tomou essa decisão considerada como impopular na época de dar reduzir a quantida- momento de conclusão do curso.
de de alunos. Nesse sentido, no Projeto Pedagógico recentemente aprovado considera se um as-
Nesta perspectiva, o ano de 2014 entrou para a história como um ano de profundas pecto importante, “em nosso curso a necessidade de verificar o resultado da apren-
transformações para a ENC na sua busca de superar seus próprios limites e melho- dizagem, na realização de um ato de desempenho de uma técnica artística, o que
rar cada vez mais. Foi proposto pela Direção e a Coordenação Pedagógica e aprovado nos obriga a uma análise constante da participação do aluno em um número ou
pelos professores, alunos e convidados externos o novo Projeto Pedagógico que entrou espetáculo”. (grifos meus).104 Isto significando na prática que os “alunos do 2º período
em vigor em 2015 e implicou em várias mudanças das quais algumas são discutidas terão como parte de sua avaliação, obrigatoriamente, prova prática, que consiste na
aqui a seguir. apresentação da criação de um número individual em disciplina de sua escolha”.105
No Projeto Pedagógico anterior entre os requisitos de acesso ao Curso Técnico Os do 3º período serão avaliados em sua participação em um número coletivo. Sendo
em Artes Circenses era obrigatório ter a idade mínima de 14 anos, estar cursando que o “desenvolvimento Artístico com peso equivalente a 1/3 da Nota da Prova”. 106
concomitantemente o ensino médio ou tê-lo concluído além de demonstrar, através Quer dizer, a criação da nova disciplina foi uma forma também de tentar respon-
de prova prática, aptidão física e boa capacidade de coordenação neuromuscular que der satisfatoriamente a estas exigências avaliativas. Pois, é fundamental oferecer
permitam o pleno desenvolvimento biopsicossocial e aprendizado das diferentes mo- ao aluno essas horas semanalmente para ele pesquisar (experimentar) a modalidade
dalidades circenses. que vai fazer a avaliação. Isso sem dúvida nenhuma irá contribuir para a construção
A nova proposta aprovada, ao invés, de um requisito etário para inscrição dos 103 As comparações e discussões têm como fontes evidentemente os textos dos dois Projetos Pedagógicos em
candidatos estabelece a condição do aluno já ter concluído o ensino médio (pois, questão. Foram gentilmente disponibilizados por Bruno Gawryzeski e Carlos Vianna.
a certificação do Ensino Médio é condição necessária para a obtenção do diploma de 104 P.15 PLANO DE CURSO DA ESCOLA NACIONAL DE CIRCO. FUNARTE-MINC, 2014.
105 e 106 Idem.

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de um número artístico mais consistente, embasado e criativo, evitando-se assim a De fato, é vital a mudança que possibilitou aos alunos terem acesso durante todos
correria e a improvisação que normalmente acontecem nos finais de semestre. Além os dois anos do curso a uma bolsa no valor de 2500 reais mensais. A realidade da bol-
disso, possibilita uma formação que estimula uma maior autonomia e responsabili- sa é motivo de alegria para muitos alunos do Brasil e mundo afora.
dade do aluno. Com certeza algo que está em consonância com o próprio Projeto Pe- Afinal, o estudante conseguir receber um suporte financeiro para poder desenvol-
dagógico da ENC: “Conhecer, criar, inventar e reinventar processos, formas, técnicas, ver o seu curso representa um enorme ganho em termos de possibilidade de dedicação
materiais e valores estéticos na concepção, produção e performance artística”. e envolvimento. Essa oportunidade permite muitas vezes que ele tenha uma melhor
Outra vantagem é que não deixa apenas para a grade horária do quarto período qualidade de vida e que inclusive posse ate investir em figurinos, objetos de cena e
este tempo de criação/experimentação/investigação na formação discente, possibili- aparelhos circenses. Para os que não têm outras fontes de renda e vem de outras
tando que ele treine e exercite esta práxis anteriormente e tenha condições de atingir cidades é uma maneira de se estabilizar financeiramente. O aluno recebe o dinheiro
melhores resultados na última montagem. para poder se dedicar integralmente. Nas montagens coletivas a bolsa pode facilitar
Também houve outra mudança nessa mesma perspectiva com o significativo a coesão do grupo ao não haver obrigação dos alunos estarem em outros lugares para
aumento da quantidade de horas para as disciplinas de dança e de teatro na conseguir dinheiro pra sobreviver. A verba disponibilizada ajudar a resolver esse
estrutura curricular. Passaram de 70 horas para 141 horas, ou seja, um pouco mais problema constante.
do que o dobro do tempo dedicado a este tipo de formação tão importante para o O número de 60 alunos que entraram neste processo seletivo, apesar de não ser
aluno no mundo contemporâneo face às transformações ocorridas na linguagem pequeno, também não prejudica os processos de ensino-aprendizagem, face a contra-
circense nas últimas décadas. tação dos professores efetivos e outros temporários. Talvez a Escola tenha mais fle-
Estas alterações repercutem em outras esferas da criação artística e formação xibilidade ao longo dos anos para fazer os ajustes necessários em virtude de uma re-
técnica dos alunos. Oxalá sejam na perspectiva apontada por Donald Lehn: lação professor /aluno que atenda as especificidades das modalidades circenses (pois,
a quantidade de alunos varia de acordo com a modalidade), compreendendo que as
“Está funcionando uma filosofia que consegue gerar com su- vezes um grande número de alunos acaba sendo prejudicial a uma boa formação téc-
cesso aventureiros, pensadores que empurram a linguagem do nica (tempo no aparelho, atenção do professor, etc).
circo, que empurram a capacidade expressiva do circo para Pelo que está expresso nos dois projetos pedagógicos analisados, e, sobretudo, na
novos lugares. Isso é precioso! (...) Está numa Escola, arrisca- praxis observada nesse período compreende-se que a formação na ENC não se re-
-se, atreva-se, erre, fracassa, porque aqui você pode. É a hora! sume apenas em preparar os alunos para se inserir no mercado de trabalho. Sua
Acho que é um equívoco o aluno pensar em sair de uma escola formação vai muito além de uma mera reprodução das relações sociais capitalistas.
com um produto pronto para o mercado. Com estas outras expe- Diferentemente, de uma formação alienante, como o próprio processo de trabalho na
riências, ele conhece ferramentas que vão lhe permitir ser me- nossa sociedade, o aluno tem acesso a uma formação que prima pela versatilidade no
lhor criador depois”. (Donald B. Lehn) aprendizado das modalidades e pela busca da totalidade. Outra evidência que com-
prova essas afirmações é o aumento considerável das horas de pesquisa e trabalho in-
Felizmente as mudanças na Escola Nacional de Circo não pararam na grade telectual do aluno, impedindo assim que se estabeleça a divisão intelectual e manual
curricular ou na quantidade de horas dada a outras artes, como já vimos. O depoi- do trabalho que tantos prejuízos traz para a educação plena dos sentidos.
mento do Demitri Manaf que concluiu o curso em 2014 é importante para entender Isso mostra como a Escola não está fora das correlações de forças que estão em
um pouco melhor alguns significados: disputa na sociedade mais ampla. Como importante mediadora na prática social a
educação escolar é palco das disputas de projetos de hegemonia, que visam ou a su-
“Você entra no curso com horário integral de ensino: das oito as pressão das desigualdades ou a sua manutenção.108
cinco da tarde. Quem precisa se manter precisa arranjar um ho- Não diria que a formação também seja a busca de transformar os alunos nos cons-
rário alternativo pra trabalhar, né? Pra poder se sustentar. E aí, trutores de uma nova sociedade mais justa, livre e igualitária. Na Escola a dimen-
durante o processo todo do curso você vai levando a vida assim. são política não tem esse nível de engajamento, isso fica restrito a algumas pessoas.
Aí quando você chega no último momento, no último ano teu, que Como diz a sabedoria popular: nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Vamos de vagar
é o ano de formatura. É um ano que você precisa montar um espe- com o andor que o santo é de barro. Em suma, a Escola não é uma ilha da revolução
táculo coletivo. Eu tenho visto aí 20 pessoas, cada um com seu ho- cercada pelo oceano do conservadorismo. Entretanto, percebemos que a formação da
rário, cada um com suas obrigações, você precisa reunir esse grupo ENC pela própria especificidade do saber-fazer circense (disciplina, união, atenção,
todo pra fazer um espetáculo. Acaba que você fica mais do que resistência a dor, generosidade, entrega, etc) supera as dimensões mais alienantes de
o seu horário de aula integral aqui dentro desse processo. uma educação tecnicista reificadora.
Trabalhando o teu próprio número. Trabalhando as cenas coleti- Nesta perspectiva, é fundamental que neste processo a Instituição não exagere na
vas. Trabalhando no número dos outros, ajudando na montagem, dose de treinamento e repetição das aulas. Isto gera muitas lesões que poderiam ser
no figurino, enfim, é um processo que demanda muito tempo,
é um processo que demanda muito esforço”. 107 (Demitri) 107 Entrevista anteriormente citada.
108 SAVIANI, D. Escola e Democracia. São Paulo, Cortez, 1984. p.18.

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evitadas quando se parte do princípio que a melhor maneira de se formar o aluno é Para o palhaço, malabarista e ex-professor do CNAC, Tim Roberts: o aluno deve
através do treino inteligente. pensar mais também, além de treinar, deve estudar sua própria movimentação e suas
Segundo, Tim Roberts, em entrevista concedida no National Centre for Circus dificuldades, refletir sobre suas criações, e se empenhar para criar algo próprio, uma
Arts, do qual era diretor há 12 anos , na cidade de Londres – Reino Unido: pesquisa pessoal, para além da repetição da técnica.
A pedagogia observada no período pesquisado constatou que os conhecimentos
“é o tipo de treino é elaborado para que o aluno não lide dia- apresentados pelos professores não estão desvinculados dos problemas relativos ao
riamente com um desgaste físico excessivo, evitando possíveis sentido e aos fins do próprio ensino-aprendizagem, assim como, do contexto histórico.
lesões. Os alunos treinam demais! Existe uma cobrança muito As didáticas observadas não são do tipo que considera como relevantes apenas e tão
grande em cima do estudante circense, principalmente no que somente os meios e as técnicas (o como fazer os truques e movimentos). Quer dizer,
diz respeito à execução técnica, e, isso tem como conseqüência o não impera unicamente a lógica de que se o professor for bem-sucedido no uso desses
elevado número de lesões. Eu não vejo na escola o processo de meios e técnicas, o sucesso do processo educativo estará garantido.
formação total do artista, assim como um médico recém Com relação ao tecnicismo na educação, afirma Saviani: “a partir do pressuposto
formado não está apto a realizar uma cirurgia no cérebro, não da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e
dá para exigir que o aluno saia da escola um grande circense, produtividade, essa pedagogia advoga a reordenação do processo educativo de manei-
com habilidades teatrais e de dança, algo que hoje também ra e torná-lo objetivo e operacional”.109
é cobrado do artista de circo. Isto é algo que vai se consolidan- Na ENC ao contrário dessa visão que enxerga apenas a eficiência operacional, exis-
do ao longo da sua carreira, de anos de atuação”. (Tim Roberts) te bastante subjetividade nas relações entre professores e alunos até pelas próprias
especificidades do processo de ensino e aprendizagem do circo que exigem um contato
É interessante observar que os próprios alunos já exercem muita pressão sobre corporal, uma atenção em relação aos riscos de acidentes, entre outros cuidados.
si mesmos. Sempre se cobrando, se exigindo. Precisam cumprir prova e uma série Isso não coaduna com qualquer tipo de “neutralidade”, pois, há muito envolvimen-
de tarefas colocadas pela Escola. Mas, é preciso encontrar um equilíbrio para não to e paixão que nessa lógica da técnica atrapalhariam a “eficiência” e a “racionalida-
sobrecarregá-los com demasiadas atividades, deixando também um tempo livre para de”. Nessa Escola a ênfase não está na organização racional dos meios em detrimento
descansarem. No caso da ENC, também penso que os “alunos treinam demais”. dos sujeitos principais da educação: o professor e o aluno. Eles não são meros executores
Acredito que é importante fazer recessos em alguns períodos para que os corpos te- de um processo cuja concepção, planejamento e coordenação ficam fora do seu controle
nham um tempo mínimo para restabelecerem. Não adianta forçar demais e lesionar e atuação. Eles também são sujeitos de sua história na Instituição. Eles podem intervir
os alunos. Descanso também é treino. Quando o aluno lesiona como a Escola lida com e participar das definições dos rumos futuros a ser tomados.
isso? Há um apoio médico, fisoterapêutico e psicológico para ajudar a pessoa a lidar Um dos maiores acertos da Escola Nacional de Circo é saber que para ser bom se
melhor com essa lesão? Isso aí é uma questão muito difícil. Geralmente, a Escola não deve exigir muito esforço, muita dedicação e muito trabalho duro. A disciplina e o pró-
te provê isso, mas poderia fazer um acompanhamento ou contar com um assessora- prio ambiente da Escola possibilita um notório desenvolvimento técnico dos alunos nas
mento quanto a saúde dos professores e alunos. mais diferentes modalidades circenses. É realmente digno de nota o avanço conseguido
Extrapolando para o universo do mercado de trabalho e para a ginástica competi- às vezes em pouco tempo. Mostra que o processo de ensino-aprendizagem na dimensão
tiva, Demitri coloca o dedo na ferida: técnica é um sucesso. A superação dos limites e a descoberta da potencialidade levam
os alunos a um estado propício de trabalho corporal. Isso atua no psicológico do aluno.
“O artista de circo é quase que descartável nesse ponto. A gente Se sente mais confiante e motivado.
vê o exemplo ai das pessoas que se lesionam e acabam morren- E por falar nisso aborda-se a seguir os processos de ensino-aprendizagem em quatro
do durante a carreira. A gente tem aí alguns exemplos. Nesse disciplinas oferecidas pela Escola no primeiro semestre de 2014.
processo de descartabilidade do artista e do atleta. Você vê
os ginastas como é que funciona. Gasta, gasta, gasta até a hora
que não serve mais. É jogado de escanteio. Então essa é uma
questão bastante delicada”. (Demitri Manaf)

Diante das adversidades nas várias situações é fundamental administrar a pres-


são garantindo que as pessoas se cuidem, não pequem pelo treino em excesso cum-
pram as exigências sem a sensação de estar sendo explorado, sugado, usado. Como
um todo e não só os artistas e alunos precisam desse equilíbri, desse respeito, dessa
harmonia. Lidar com uma lesão sem se abater, é muito difícil. Sei do que estou falan-
do. Parece que o mundo acabou. Mas a vida segue que nem um rio contornando as
montanhas para chegar ao mar. 109 Idem, p. 15.

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SOB O SIGNO DA MUDANÇA ESPIRAL E DIALÉTICA
Outra coisa que tava no projeto da Escola e não foi realizado, foi
ESPIRAL E DIALÉTICA a parte de alojamentos, né? Tava no projeto inicial da escola. Era
pra ter alojamento aqui. Isso seria uma das coisas que facilita-
Como vimos, a ENC está no olho do furacão de um tempo de muitas transforma- ria o processo de aprendizagem aqui. A galera se tivesse condições
ções. Recentemente os aparelhos da academia que estavam enferrujados, tortos e até de se alojar na Escola economizaria com transporte, com moradia
destruídos foram substituídos por outros, novinhos em folha e de uma qualidade mui- e alimentação. Isso pelo menos já funcionaria bastante. Espaço
to boa. O que antes tinha uma aparência sucateada agora tem uma imagem atraente. tem. Eu não sei porque nunca foi realizado o alojamento. A gente
Hoje em dia a biblioteca acrescida do setor de memória e pesquisa está muito melhor já teria condições de ter (...). O circo sempre foi produzido dessa
organizada e com uma exposição de objetos muito interessantes. Estes são apenas maneira: nas coxas, improvisando, na gambiarra, do jeito que
alguns exemplos de como com boa vontade e empenho para melhorar, a Escola pode tem. Tá na hora de reverter esse olhar. As coisas têm que ser feitas
estar se aperfeiçoando sempre. Afinal, a autossuperação, o desafio e o risco fazem com precisão, com planejamento”. (Demitri)
parte do ethos circense. Superar desafios é condição básica para uma pessoa de circo.
Analogamente aos avanços do universo a Instituição está em movimento. Princi- “Infelizmente a morte precoce do nosso companheiro Wilson Go-
palmente, na perspectiva de corrigir algumas falhas, ajustar certas medidas, esta- mes nos leva a refletir e agir em relação às condições de tra-
belecer novas metas. Este processo é infinito. Não dá pra ficar totalmente satisfeito. balho dos artistas circenses brasileiros. Nada trará nosso AMI-
Quem está completamente satisfeito se não está morto, está moribundo. GO de volta, porém sua perda significa o inicio de uma LUTA e
Abaixo, seguem algumas opiniões de membros da direção, professores, artistas a possibilidade concreta de mudar essa situação para no mínimo
formados pela ENC do que mais precisa ser melhorado: tentar evitar outras perdas. (...)A Escola Nacional de Circo for-
ma muitos artistas circenses. E por isso tem a responsabilidade
“Eu acho que a gente tem muito que avançar em termos de equi- de colocar no mercado não apenas um artista capacitado tecnica-
pamentos, tá? A gente não tem todos os equipamentos que a gen- mente, e sim um profissional com instrução e entendimento TO-
te precisa. Todas as áreas: pra treino, pra segurança, pra área TAL sobre seu ofício. É preciso incluir na grade curricular, ou
administrativa e pessoal também. A gente têm buracos na nossa como atividade obrigatória e complementar, como na Semana de
equipe que a gente precisa preencher”. (Carlos Vianna) Estudos Integrados informações sobre: Segurança no Trabalho
do Circense. É importante a criação de um MANUAL INTERNO
“Uma Escola dessa grandiosidade tem que ter um setor de dentro da ENC com normas técnicas pra que todo aluno tenha esse
fisioterapia funcionando muito bem. Mas, falta profissional. conhecimento e possa exigir o cumprimento ao ingressar no merca-
Não tem funcionado muito. Agora abriu concurso público e do de trabalho. ” (Trecho da ATA da Reunião realizada em 02/06/2014
espero que entre uma galera boa. Espero!” (Olavo Rocha) na ENC sobre SEGURANÇA NO TRABALHO DOS CIRCENSES).110

“Por que é que a gente não oferece um curso de capacitação Estas são aspirações legítimas não apenas de indivíduos isolados, mas represen-
para os profissionais que estão aqui? Eu tenho que me reatua- tam anseios semelhantes de uma coletividade, como pode ser visto claramente no
lizar todos os dias como malabarista por que o meu professor não último trecho. Wilson Gomes, um jovem de 28 anos que teria um futuro brilhante foi
pode ter a mesma oportunidade? Por que não se paga uma via- o primeiro aluno formado pela Escola que se tem notícia, a morrer em decorrência de
gem pra ele ir a Rússia pra ele ver como é o treinamento dos ficar gravemente ferido em um acidente de trabalho. Will, como era carinhosamente
russos ou então pra França, ou pra ele pesquisar uma lingua- chamado pelos amigos, caiu de uma altura de aproximadamente oito metros, enquan-
gem, uma estética pra além do circo tradicional?” (Davi Ferreira) to fazia um salto num número de Maca Russa e morreu dois dias depois, no dia 20 de
maio de 2014, de uma parada cardio respiratória em consequência do traumatismo
“Dentro do projeto da construção da Escola já tinha algumas coisas craniano. Fui ao velório. Foi muito triste.
voltadas pra sustentabilidade. Mas pode ir muito além. Qual- Parece que está em andamento um convênio da ENC com o Departamento de Edu-
quer construção moderna tem que levar em conta esses critérios cação da UNICAMP, na figura do professor e pesquisador Marco Bortoleto que visa
de sustentabilidade, hoje em dia. A Escola poderia voltar o olhar justamente ampliar a cultura da segurança nas atividades da Escola. Deve-se evitar
um pouco mais pra isso. Hoje em dia há tanto acesso a tecnologias a todo custo, outras dores e danos. Nossa Arte é arriscada? Sim. Mas fatal, não! Isso
renováveis. (...) Já teve o espaço de horta aqui na Escola. Alguns foi ressaltado na ata da reunião.
anos atrás antes da Escola ser reconstruída. Já houve uma horta As melhorias em termos de novos equipamentos, aprimorar a sustentabilidade
aqui. Então, eu acho isso bacana. A compostagem de alimentos. (compostagem e horta, entre outras iniciativas), construção dos alojamentos são ex-
Como aqui produz lixo diariamente, você conseguir fazer o ciclo postas claramente pelos depoimentos. Mas, além destes aspectos alguns pontos a ser
encerrar aqui mesmo. Tem bastante área gramada pra se utilizar. melhor trabalhados se referem por exemplo, aos materiais antigos da Escola, masta-

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SOB O SIGNO DA MUDANÇA ESPIRAL E DIALÉTICA

réus, lona, madeira, antigos aparelhos que ficaram largados ao tempo, se deterioran- Um aspecto que merece ser mencionado diz respeito às mudanças nas dimensões
do e estragando durante este período. Sendo que poderiam ser reutilizados e estar da subjetividade:
se transformando em novos aparelhos, como foi no caso do Mastro Coreano feito na
Escola com o empenho do professor Alexis Gonzales. Parece que este foi um costume “Eu acho que a nossa turma que entrou em 2003 foi uma das
herdado do espaço da Leopoldina. últimas turmas de um processo que a Escola veio de se descoleti-
A oficina podia estar produzindo e funcionando melhor ainda. A conservação e re- vizar, se eu posso dizer isso, sabe? Eu acho que antigamente, pelo o
posição do material de treino, colchões, lonjas, aparelhos também que ser ampliada. que eu vejo dos alunos que vieram antes de mim, eles falavam que
No espaço interno da lona quando chovia teoricamente o piso deveria ter um caimen- era muito ainda uma estrutura de família, por ser uma Escola
to para água escorrer para fora. E o que acontecia? A água escorria pra dentro e alaga mais tradicional, os professores passavam muito isso pros alu-
o piso onde também ficam o motor de içamento, cabos de aço, estacas, espias. Tudo nos de um cuidar do outro. Ainda existe esta filosofia na Escola,
enchia d’água na época que eu fiz o trabalho de campo. Material que não é para ficar mas está bem mais defasada do que era antigamente. (...). Gente,
molhado como as cordas, ficava ensopado. E aí, para tentar sanar isso, antes tinha não vamos individualizar a coisa. Porque circo é família, circo é
sido construído um murinho de uns 20 cm de altura, uma fiada de tijolo em volta, só união, circo é trupe”. (Celso José)
que a água continuava entrando e isso criava uma dificuldade ainda maior para tirar
a água de dentro. Para piorar, teve vez que a água entrou e se acumulou debaixo do Esta “descoletivização” aconteceu por diversos fatores, motivos e razões. Vão desde
picadeiro onde fica o fosso do tumbling ou do power trekking. Proliferaram mosquitos aspectos específicos e idiossincráticos da Escola até mais amplos como mudanças no
e insetos debaixo da lona. Em tempos de Zica, isto é impraticável. capitalismo e o aumento do individualismo como modo de vida na sociedade contem-
A construção em alvenaria projetada para ser a cabine técnica podia ter esta uti- porânea. Em certos ambientes cada vez mais as pessoas se confinam aos seus restri-
lização. Ela oferece as condições para uso. Falta é provê-la com as mesas de som e tos espaços privados, incapazes de realmente interagirem com os outros e, portanto,
de luz, bem como aparelhagem e materiais básicos (caixas de som ativas, microfo- de criar uma experiência partilhada.
nes, cabos, pedestais, refletores e projetores de luz, hacks de dimmers, cabeamento) Outro ponto a se destacar na fala de Celso é o “cuidar um do outro”. Pois, esta era
para as mais diferentes experiências sonoras e de iluminação no contexto de aulas, uma habilidade vital aprendida pelos alunos da primeira turma. Nesta ajuda manual
pesquisas e apresentações. Se a Escola tiver este material de qualidade não precisa
é importante antecipar possíveis problemas e estar pronto para lidar com eles, bem
ficar esperando verbas ou a boa vontade para conseguir por ocasião de espetáculos de
como, ter uma atitude de atenção constante, força suficiente, experiência e, acima de
formatura, como foi o caso do espetáculo InVersus.
tudo, demonstrar envolvimento com o colega e com o que está sendo feito. Isso não
Com os efeitos do El niño cada vez mais presentes, a cidade do Rio de Janeiro tem
combina com a atitude de alguém centrado apenas em si mesmo.
registrado altas temperaturas com recordes anuais. A cidade maravilhosa é também
uma cidade sangue quente. Rio 40 graus, lembra? O problema é que parte das disci-
“Cara eu acho que o circo é assim, né? Eles tratam a gente como
plinas é ministrada sob a lona azul da Escola durante o dia, na parte da manhã e à
família. Os nossos velhinhos tão dentro de nossa família. É
tarde e a lona não conta com um sistema de refrigeração. Mesmo com o pano de roda
levantado a lona intensifica bastante o calor. Fica abafado. A sensação é bem difícil um envolvimento emocional com os nossos mestres. Ensinaram
de suportar para quem não está acostumado. Com o tempo o couro vai ficando grosso. como ensinaram os seus filhos. Dando xingo, safanão. (...) Você
Mas, é um forno. Uma tenda do suor. A questão é que a temperatura corporal tende sempre fica num vínculo emotivo mesmo de família” (Celso José)
a aumentar quando se pratica exercícios físicos. E quanto maior o calor do ambiente,
mais a temperatura se eleva o que aumenta também a quantidade de suor e, conse- Esta fala do Celso traduz certa visão bastante presente na Escola sobre o perío-
quentemente, o risco de desidratação por parte das pessoas. do histórico inicial. Note que há neste trecho uma identificação em certos níveis da
Considerando que o tipo de atividade física não é dos mais leves ou moderados própria arte circense aprendida com o “vínculo emotivo” da família. Que por sua vez,
é muito importante que a Escola solucione este problema de forma a não expor sua está centrado no afeto como elemento agregador. Através das relações de afeto, por
comunidade a um calor acima dos limites de tolerância previstos em lei e, sobretudo, vezes, diretas e bruscas como o “xingo e o safanão”, os professores assumiram não
não causar nenhum tipo de dano à saúde do aluno e mesmo do professor, durante a só a proteção física ou psicológica dos alunos, mas também a responsabilidade na
sua vida laboral. 111 formação do caráter, de educar para os desafios da vida, de perpetuar valores éticos
e morais a formação da pessoa. Enfim, da construção do ser. Não é voltar no tempo,
110 Compareceram sete pessoas nesse primeiro encontro: Cinthia Nunes, Aline Figueiredo, Roberto Pereira da Silva, Bruma
Saboya, Wilma Maria da Silva, Fernanda Costa Mattos e Márcio Vesoli.
mas reconhecer o que do passado deve ser preservado.
111 A Portaria NR-15, Anexo 03, do Ministério do Trabalho e Emprego estabelece que níveis de temperatura acima de Agora um aspecto bastante objetivo e concreto durante estes anos: é possível pen-
26,7o IBUTG (índice usado para avaliação da exposição ao calor) são considerados insalubres. Não é permitido o tra- sar em uma autonomia financeira-administrativa da ENC em relação a Funarte? Isto
balho sem a adoção de medida adequada de controle acima de 30,0o. Não há equipamento de proteção individual capaz
de eliminar o calor. A aferição da insalubridade do ambiente de trabalho deve ser feita à luz do que preconiza o art. 189 é, a Escola, por exemplo, poder decidir financeiramente sobre questões específicas
da CLT. Com emperaturas acima dos 36°C, o exercício físico só deveria ser feito se houvesse atenção a certos cuidados. dela? Seria este um tipo de calcanhar de Aquiles da Instituição?
Beber água é extremamente importante. Quem se exercita nestas condições e não se hidrata corre o risco de passar mal
durante a atividade. Dor de cabeça, tonturas, náuseas são os sintomas mais frequentes.

276 277
SOB O SIGNO DA MUDANÇA ESPIRAL E DIALÉTICA

“O fato da gente não ter um orçamento estabelecido pro ano “A alimentação é mais uma licitação da Funarte. A Escola não tem
onde a gente pode fazer planejamentos e estabelecer metas... um pacote. É claro que isto é possível de ser feito. Mas, isso não
é muito complicado! A gente tenta prever de maneira a adquirir temos a priori. Eu preciso de um montante por mês para tocar a
algumas coisas antes, fazendo algumas ações de previsão. Tipo: lá Escola. Mas isso não temos a priori”. (Marcos Teixeira)
na frente vou precisar de um profissional pra isso. Então a gente
tenta pedir às vezes com um ano de antecedência porque tem Pela fala do Marcos nota-se que lutar por um “pacote” ou um “montante por mês”
um tempo pra aquisição e contratação da administração pública não é como dar murros em ponta de faca ou pregar no deserto. É algo plausível e
que é um tempo considerável. Um tempo longo. Então, é essa a di- possível. Entretanto, da época em que esta entrevista foi dada e hoje muitas coisas
ficuldade: a gente tem sempre que antecipar. Mas, antecipando a mudaram um pouco. O mar não está para peixe. Parece que hoje em dia, depois da
gente nem sempre acerta no alvo. Às vezes, a gente poderia ter extinção e “volta” do Ministério da Cultura o orçamento da Funarte (mais do que nun-
uma medida mais rápida com recursos disponíveis na mão que ca) não é suficiente sequer para gerir a Funarte, em suas ações mais básicas. Tanto é
atenderiam melhor a nossa demanda.” (Carlos Vianna) assim que alguns editais têm vindo do Fundo Nacional de Cultura ou vem de estatais
ou alguma empresa privada via lei Rouanet. Então, seria uma situação cômica se não
“Do ponto de vista pedagógico a gente não sofre nenhum tipo de fosse trágica. Mas é um governo federal disponibilizando dinheiro para a sociedade
ingerência ou coação. A gente não tem é a possibilidade de pla- que ele próprio capta pra fazer as ações dele mesmo. É isso o que acontece. Aliás, isto
nejar o ano escolar do ponto de vista financeiro. Isso é um já acontece alguns anos só que era mais restrito. Por exemplo, quando o governo lan-
problema. Todo ano a gente entra sem saber se vai ter orçamen- çou o Prêmio Carequinha com recursos da Caixa Econômica Federal via lei Rouanet,
to para fazer a formatura dos alunos. Pra fazer a semana de ofi- ele tirou do mercado de mecenato seis milhões de reais, para que o próprio governo
cinas (Semana de Artes Integradas) na Escola. Ainda que a gente federal se autossustentasse. Um contrassenso. O pior cego é o q ue não quer ver.
não seja uma unidade orçamentária a gente não tem a mínima
segurança que as coisas vão acontecer dentro da Escola do ponto
de vista financeiro. A gente não sabe se vai poder ter dinheiro
pra comprar material. Isso é um suplício. Aquela coisa de
passar o pires e aproveitar as oportunidades. A diretoria executi-
va diz que tem um dinheiro aí, faz o projeto, manda e vamos ten-
tar, sabe? Eu não tenho vontade de ser o diretor de uma Escola
assim, que tem que trabalhar desse jeito. Me parece muito des-
gastante (pausa) continuar dessa forma é não entender o que é
que a Escola precisa e a Funarte precisa acordar para isso
porque eu já estou aqui há oito anos e continua a mesma coisa. É
sempre limitado o alcance daquilo que a gente pode fazer. En-
tão, isso me parece muito ruim!” (Bruno Gawryzewski)

De fato, a Funarte não tem separado, a princípio, os recursos específicos para a


Escola Nacional de Circo, no sentido de rubricas ou dotações orçamentárias definias.
Como que é que isto funciona? Os funcionários são pagos pela Funarte, inclusive, os
terceirizados, obviamente. Mas isso não está num pacote: Escola Nacional de Circo. A
Escola é considerada genericamente dentro do orçamento da Funarte como mais um
espaço da Funarte, sendo que ainda assim (para piorar um pouco) ela não tem, por
exemplo, editais e verbas para sua ocupação como outros espaços da Funarte.
A Escola não tem uma verba separada para as suas questões específicas. O que
sem dúvida cria muitos obstáculos, tensões e desgastes desnecessários. Deveria ser
cré com crê e lé com lé. Para cada um, uma coisa. Cada qual com cada qual. Com a
conquista da autonomia financeira através da criação de uma dotação/unidade orça-
mentária a Escola evitaria estes problemas e poderia desenvolver um planejamento
mais eficaz, bem como, promover a real valorização dos seus educadores, sobretudo,
os terceirizados e em desvio de função.

278 279
SOB O SIGNO DA MUDANÇA CONCLUSÕES

fáceis para cada um se atentando para a diversidade.

CONCLUSÕES Nesse sentido, alcançar que o aluno apreenda (e não só aprenda) aquilo que está
executando permite que ele reúna maiores condições de utilizar esse conhecimento
em outras situações similares, e esse é, sem dúvida, um grande objetivo a ser atingi-
- Em movimento como o Universo- do. Pois, se ele consegue transferir, recriar, reinventar ou adaptar o que aprendeu,
isso se configura numa aprendizagem realmente consistente e duradoura, pois o edu-
cando demonstra que assimilou o conhecimento transmitido numa perspectiva mais
“Bom dia a todos, venho-vos falar sobre o circo. ampla.
O circo não tem tempo, não tem idade, É interessante como o aluno parecer ter uma vivência bem mais prazerosa quando
fala a linguagem transparente dos sonhos, realiza um exercício ou qualquer outra atividade que possua sentidos concretos para
abre as portas do país onde encontra a infância adorme- ele. A partir dessa relação mais íntima com os significados para quem executa, alcan-
cida e a esperança pousa suavemente na superfície das ça-se um prazer, uma sensação boa e estimulante no que se está fazendo, o que por
coisas. sua vez, torna o processo mais envolvente e interessado na busca do aprimoramento
E é como um grande luminoso meteoro que rasga o espaço permanente. Sabe-se que se a “atividade proposta for desafiante à capacidade do ser
humano, isso poderá estimulá-lo a buscar sua própria superação. O interesse em fazer
guiado por uma estrela.
mais, em participar com maior eficácia, está atrelado ao desafio proposto à minha
Tem a força de um gigante e coração de cigano!” potencialidade.” 112
(Leon Schlosser) A ajuda foi mais um dos recursos utilizados pelos professores para facilitar o
aprendizado e/ou como medida de proteção. Embora, eles não fizessem isso muito,
Até aqui espero ter pintado o nosso quadro com pinceladas bem nítidas. Deixei porque o restante dos praticantes ficaria sem atenção, principalmente os iniciantes -
claros os rastros do movimento. Busquei analisar de que modo a Escola contribuiu isso porque ao empregar esse recurso, nosso campo de visão do ambiente fica restrito
e contribuiu em suas diferentes formas de atuação (aulas, espetáculos, cursos de ao espaço em que estamos realizando a ajuda.
extensão, etc.) nas diferentes gestões de sua diretoria, para dar maior abrangência e Fazer a segurança, “cuidar” e ajudar o colega na execução dos exercícios acrobáti-
vitalidade ao ensino e pesquisa do circo. cos são habilidades vitais aprendidas pelos alunos. Uma ação em que duas ou mais
A conclusão óbvia é que a ENC é um divisor de águas na história do circo brasi- pessoas estão envolvidas em um trabalho coordenado para realizar exercícios, figu-
leiro. Um antes e um depois. Ela é filha única de mãe solteira. Algo raro, incomum. ras e movimentos. Nesta ajuda manual é importante antecipar possíveis problemas
Afinal, representa um inconteste salto qualitativo do circo brasileiro ao conseguir e estar pronto para lidar com eles, bem como, ter uma atitude de atenção constante,
gerir contradições internas e articular a partir de suas bases, uma escola represen- força suficiente, experiência e, acima de tudo, demonstrar envolvimento. De acordo
tativa e que desenvolveu diversos trabalhos, auxiliando-os com materiais, fazendo o com Gerling “a ajuda manual e a proteção são pré-requisitos decisivos para o sucesso
trabalho de articulação. Como foi mostrado no decorrer do trabalho, a Escola trouxe na acrobacia, cujo objetivo é facilitar a aprendizagem do movimento e reduzir os pos-
uma série de vantagens para a atividade circense em escala internacional. Além da síveis medos”.113
soma de conhecimentos, possibilitou a maior rapidez e amplitude na divulgação dos Na etnografia das aulas constatei que é também importante saber como e quando
conhecimentos, incentivou e apoiou pessoas e grupos, promoveu a pesquisa do circo, de fato esta ajuda deve ser utilizada. Em geral, se é uma assistência leve que permi-
despertou a sociedade brasileira para esta arte. ta ao praticante sentir o movimento e a melhor a forma da posição e concentrar-se
Percebi nesta etnografia na ENC que nas quatro aulas (e mesmo nos espetácu- em um aspecto da habilidade, esta ajuda manual será um recurso de aprendizagem
los) os alunos não aprendem da mesma forma. Enquanto alguns aprendem melhor oportuno para variadas situações, inclusive as mais avançadas que envolvem movi-
a partir de explicações, discutindo as etapas do movimento, outros aprendem mais mentos sutis e finos.
facilmente quando veem a demonstração do exercício em vídeo ou ao vivo, existem É preciso aprender a dosar a força bruta e usar a quantidade necessária em movi-
aqueles que aprendem fazendo, experimentando as dificuldades, sensações e medos mentos como puxar, agarrar e empurrar. A quantidade de força empregada na ajuda
daquele exercício novo. depende do objetivo da habilidade e do esforço do aluno. Em todo caso, para os menos
Portanto, não foi possível extrair o “método singular”, a “melhor forma” ou a “úni- experientes, é melhor pecar pelo excesso do que pela falta. A quantidade de força em-
ca maneira correta” de ensinar da ENC. Mas, consegui perceber como é importante pregada na ajuda deve diminuir à medida que a performance for melhorando.
que o professor conheça bem cada aluno e crie maneiras diferentes no processo de Na ação didática de cuidar de alguém em um movimento está inerente a responsa-
ensino/aprendizagem, nunca usando sempre o mesmo caminho. O professor tem que bilidade por esta pessoa que aceitou a ajuda porque tem uma certa confiança. Envol-
adaptar ou mesmo mudar as didáticas para alcançar todos ou a maior parte dos ve uma atitude de espera e de prontidão para atuar efetivamente quando surge um
alunos. As rotas para que vários alunos possam ter acesso ao conhecimento não são problema durante a realização do movimento. Em casos de emergência, serve para
idênticas. Por isso, é preciso conhecer melhor as vivências e histórias dos alunos para prevenir acidentes. Para ser um “bom cuidador” na ENC é indispensável um bom con-
ensinar algo que eles não sabem fazer e desenvolver capacidades esquecidas pelas dicionamento físico e coordenação motora. Esta é uma atividade que exige força e agi-
suas dificuldades. Isto é, buscar ensinar a partir dos caminhos mais acessíveis e
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SOB O SIGNO DA MUDANÇA CONCLUSÕES

lidade (e em alguns casos, peso e altura). É necessário conhecimento sobre a técnica ao vivo para os alunos.
de modo a compreender as características dos movimentos, os problemas que podem Essas demonstrações geralmente deviam apresentar a forma correta de execução.
surgir, saber estabelecer a melhor pegada, o posicionamento correto, entre outros. Mas, nem sempre. De qualquer forma, vale o ditado que a imagem vale mais do que
Além da ajuda manual, os professores, com exceção do Pirajá, utilizaram a ajuda mil palavras. Nada mais claro para o aluno do que ver exatamente a ação que se es-
mecânica com o emprego das lonjas. Além de ajudar na preparação do aluno do pon- pera que ele realize. Há evidências que as demonstrações foram eficazes, pois a par-
to de vista físico e emocional, esse recurso facilitou a aprendizagem da habilidade e tir delas os alunos puderam analisar tanto os erros cometidos quanto às estratégias
diminuiu a possibilidade de lesões. A maioria dos professores respeitou a progressão empregadas para corrigir tais erros, descartando-se as estratégias ruins e indo direto
do grau de dificuldade e risco dos exercícios e atividades, de modo a desenvolver a para as mais eficientes.
autoconfiança dos alunos. Seguindo-se uma progressão adequada para cada aluno, A instrução oral muito raramente foi empregada de forma única, particularmente
provavelmente o fator risco associado a ela diminuiu bastante. Assim, os professores quando se tratava de uma habilidade complexa, possuindo vários componentes a se-
foram os principais responsáveis pela segurança dos alunos nas salas de aulas, pátio rem controlados de forma conjugada. No entanto, seu uso apresentou vantagens em
ou picadeiro. Seguiram princípios de segurança como supervisão das atividades, das relação ao uso exclusivo da informação visual. A primeira delas é que a instrução ver-
condições adequadas dos aparelhos, cabos e amarras, bem como, de outras variáveis. bal por ser mais vaga por natureza, deixando em aberto como determinadas partes do
As aterrissagens foram um dos movimentos mais frequentes no ensino das dis- movimento devem ser feitas, permitiu uma margem de liberdade para realizar uma
ciplinas. Sabe-se que muitos acidentes têm como causa aterrissagens mal fina- variedade de possibilidades, diferentemente da demonstração visual que estabeleceu
lizadas. Talvez por isso, os professores observados geralmente ensinaram a téc- exatamente a ação que ele deveria reproduzir.
nica para “sair ou cair” antes do aluno aprender o movimento. Em alguns casos, Outra característica da instrução verbal foi que ela, em alguns casos, pôde ser
criaram um repertório de aterrisagens com o intuito de prepará-los para qual- oferecida de forma simultânea com a realização da tarefa. Isso foi possível em habi-
quer eventualidade. Os alunos quando perdem o controle do movimento em algum lidades motoras de duração relativamente longa e quando o aluno possuía recursos
momento ao invés de pousarem sobre os dois pés (quando é o caso), caem sobre atencionais disponíveis para transferir o foco de atenção do movimento para as infor-
diferentes partes do corpo, vindos de diferentes alturas e ângulos. A ideia é que mações do professor. Nesses casos, a instrução não possuiu um caráter informacio-
antes de colocar uma pessoa numa situação, deve-se ensiná-la como sair dela com nal, mas de orientação da atenção seletiva para um determinado aspecto da ação no
segurança. Na Parada de mãos, antes de ficar nessa posição, o aluno aprende, por momento apropriado. As dicas verbais antes e enquanto o aluno tentava realizar os
exemplo, várias formas de aterrisar como rolar, fazer a “rondada” (virar para o movimentos ajudaram muito no processo de aprendizado.
lado com um quarto de giro sobre o eixo longitudinal). A instrução oral também teve a vantagem de permitir um recorte ou delimita-
O aprendizado na habilidade de aterrissar foi obtido trabalhando-se as diversas ção de partes da tarefa para as quais se desejava que a atenção fosse direcionada.
variações como partir de alturas diferentes, utilizar os mais diversos equipamentos, A experiência demonstrou a relevância das orientações verbais mesmo quando se
vir de movimentos diferentes (saltos, giros, rotações, etc.) aterrissarem em superfí- ofereceu uma demonstração visual, orientando o foco de atenção daqueles que rece-
cies variadas (colchões macios e rígidos, piso, etc.), para os diferentes sentidos (para biam a instrução.
as frentes, para o lado, para trás). Essa variedade garante um repertório motor mais A instrução tátil foi usada raramente e em algumas situações específicas em que
amplo, além da familiaridade com as mais variadas possibilidades de quedas e tipos os alunos não conseguiam realizar o movimento ou existia algum risco maior à in-
de imprevistos. Além disso, fizeram recomendações básicas como evitar a flexão acen- tegridade física do executante. Nesses casos, o movimento foi feito de forma mais
tuada dos joelhos, isto é, ultrapassar os 90º, pois o peso da parte superior do corpo é passiva. O problema é que quando uma ação é feita de forma auxiliada só se provê o
multiplicado várias vezes, o que pode provocar lesões na articulação dos joelhos. praticante com informações sensoriais relacionadas ao movimento, sem que ele obte-
Mas, quais foram as outras variáveis instrucionais? Isto é, as diferentes maneiras nha com isso a capacidade de ativar as unidades de controle responsáveis por aquela
de se ensinar uma ação a ser executada? Qual a via sensorial que os professores usa- ação. À primeira vista, pode parecer que o modo de adquirir e de aperfeiçoar uma
ram para se comunicar com os alunos no momento de ensinar movimentos e truques habilidade é único, ou seja, praticar e praticar exaustivamente a ação até que ela
novos? Comunicaram por meio das vias visual, auditiva e tátil? A instrução geral- seja executada com maestria. No entanto, na Escola está acontecendo uma mudança
mente foi feita através da demonstração da habilidade, da explicação verbal ou rea- dessa mentalidade. Pois, ao longo dos anos perceberam que a estratégia específica de
lizada com auxílio físico durante a execução da ação? Quais dessas vias foram mais prática faz bastante diferença no resultado final obtido, ou mesmo no tempo gasto
eficazes e pertinentes a cada etapa do processo de ensino-aprendizagem? para se atingir certo nível de desempenho desejado.
Os professores em questão, não empregaram imagens estáticas, tais como figuras Uma tática muitas vezes usada foi a de dividir ou decupar os truques e movimen-
de livros, ou mesmo dinâmicas em filmagens como alternativas para informar o aluno tos em partes elementares ou básicas para sua prática. Assim, depois essas partes
sobre o exercício a ser aprendido. Não precisaram. Geralmente os demonstraram eles eram reunidas a partir de um treinamento específico dos diversos elementos que
mesmos ou então solicitaram que algum aluno ou monitor realizasse os movimentos compunham o exercício. Esse foi um procedimento comum, mas não foi utilizado como
uma panaceia (solução) para todas as formas de aprendizagem e de todas as modali-
112 NISTA-PICCOLO, Vilma. “Pedagogia da Ginástica Artística”. In: NUNOMURA, Myrian & NISTA-PICCOLO, Vilma L. dades. Isso variou de acordo com a especificidade da arte trabalhada.
Compreendendo a Ginástica Artística. São Paulo: Phorte, 2005. p. 35. 1998, p.12.
113 GERLING, I. E. Teaching Children’s Gymnastics: spotting and securing. Oxford: Meyer & Meyer Sport, 1998, p. 12. Existem vantagens em praticar mentalmente os truques e figuras treinados?

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SOB O SIGNO DA MUDANÇA CONCLUSÕES

É melhor praticar cada modalidade em bloco ou intercalar a prática com outras sua performance artística.
modalidades? Na Escola não há defesa apaixonada de uma aprendizagem das habi- Como treinam bastante, os alunos sabem perfeitamente que quando se para de
lidades motoras feita através da forma decupada, anteriormente descrita e nem da treinar ou diminui muito a frequência, o condicionamento físico diminui e retorna à
prática da habilidade como ela deveria ser desempenhada na realidade, sem simpli- condição anterior ao período de treinamento. A hipertrofia muscular, a flexibilidade
ficação alguma. Não há um consenso sobre isso. Alguns usam, dependendo do caso, nas articulações, a força, a agilidade são perdidas ou diminuídas se o treinamento for
uma combinação destes métodos. Não percebi em ninguém a crença dogmática de interrompido por um período de tempo.
que apenas uma das formas de ensinar seja a correta ou a única válida para todos No processo de aprendizado foi fundamental manter a paciência e seguir algum
os estudantes. planejamento. A falta, assim como o excesso de treinamento, não acarretaram bene-
Na ENC o processo de ensino-aprendizagem formal nas salas de aula está calca- fícios ao praticante. Sempre progressivo e contínuo. Mas, nem sempre o aumento do
do na prática de forma concentrada ou em bloco. Isto significa que durante as aulas desempenho se encontrou baseado muito mais na melhoria da qualidade do que no
pratica-se basicamente uma tarefa antes de se passar à prática da tarefa seguinte. aumento da quantidade de treinamento.
Esse procedimento tem a vantagem de se poder analisar os resultados das tentativas Em atividades como as estudadas, todos estão sujeitos a quedas, contusões, fra-
e buscar extrair dessa avaliação o aperfeiçoamento nas tentativas posteriores. turas, luxações, torções, por estarem expostos a situações que envolvem este risco
Às vezes, a participação de um professor fornecendo um retorno ao aluno, foi fun- de acidente, além das situações imprevisíveis. Assim, neste período pude presenciar
damental para que ele conseguisse melhorar os movimentos. Pois, em alguns casos lesões as como entorses, tendinites, bursites e luxações... Nesse caso específico, nem
ficava muito difícil observar o próprio desempenho durante o momento de execução. sempre foram tomados os necessários cuidados (por parte de professores e alunos)
Diferentemente da instrução, este tipo de retorno se constituiu em uma informa- para que essas luxações não acontecessem, como maior ênfase no preparo da muscu-
ção sobre uma ação já realizada enquanto a instrução prepara o indivíduo para a latura de apoio, o cuidado com o número de repetições executadas no treinamento,
execução de uma tarefa. Outra função foi motivar os alunos. Em certas situações o bem como, a execução de determinada acrobacia somente quando o aluno apresentas-
fundamental foi estimular e encorajar o aluno a confiar na sua capacidade, pois, se suficiente domínio/condição corporal.
os erros já haviam sido identificados. Na ENC, inclusive existe o uso em algumas Notei como o treinamento de força é importante tanto para o desenvolvimento
aulas como Parada de mãos, Canastilha e Duo acrobático do feedback visual, pois da força propriamente dita, como também para o aperfeiçoamento da potência e da
costumam filmar as execuções em câmeras e celulares e depois comentá-las colocan- resistência muscular. Ter força e potência permitem ao aluno a execução de movi-
do-as em câmera lenta se for necessário. As evidências demonstraram que essa tem mentos complexos e a tomada das difíceis posições corporais requeridas nos diversos
sido uma forma bastante efetiva de retorno para o aluno, pois combina, elementos aparelhos. A resistência muscular é fundamental para manter a qualidade dos inú-
visuais e auditivos. meros elementos executados durante as aulas, provas e apresentações. Sem um grau
Observando as várias aulas compreendi que cada aluno em sua individualidade in- satisfatório de desenvolvimento de força não é possível uma boa aprendizagem e um
transferível possui traços e características pessoais que estabeleceram ritmos e graus aperfeiçoamento dos movimentos acrobáticos.
de adaptação próprios durante o treinamento do processo de ensino-aprendizagem. Nas aulas pesquisadas, a importância da flexibilidade das articulações, tendões
Assim, os estudantes apresentaram avanços e dificuldades de adaptação a exercícios e músculos é inquestionável. É considerada uma capacidade motora extremamente
diferentes. Não aprenderam da mesma forma e na mesma velocidade, mesmo que relevante e que proporciona vantagens marcantes para o rendimento e para demons-
seguindo as mesmas orientações e diretrizes. Os níveis de adaptação não foram os trar a técnica da execução e a qualidade dos movimentos. Geralmente os exercícios de
mesmos. Isso leva a ressaltar a importância do professor conhecer o aluno técnica e flexibilidade são feitos quando os músculos já estão aquecidos.
psicologicamente para elaborar aulas que levem em conta características, desejos e O processo na ENC geralmente é progressivo, uma vez que a meta inicial tenha
necessidades específicas de cada aluno. sido cumprida, passa-se para a próxima, num caminho de refinamento da ação mo-
De forma geral os professores observados defendem que apesar de ser importante tora. Depois que a estrutura global da habilidade já foi aprendida, o passo seguinte é
que o aluno faça outras atividades para a criação de uma base de treinamento, é fun- desenvolvimento de detalhes, tais como expressividade, postura, amplitude, leveza,
damental que ele dedique mais tempo a modalidade específica que ele está envolvido finalização dos movimentos, entre outros.
no momento. Acreditam que o desempenho no aparelho circense está diretamente O tipo de instrução varia conforme o estágio de aprendizagem do exercício ou da
ligado ao treinamento específico da modalidade. Sem este treino o desenvolvimento habilidade do aluno. Os professores sabem que encher o aluno com muitas informa-
é limitado. Por isso, enfatizam o uso da força, do equilíbrio, da coordenação motora ções sobre o movimento que irá executar, desde os mais variados aspectos da ação,
específicas para o tipo, intensidade, frequência e volume das modalidades treinadas. gerais e específicos não é muito eficaz – sobretudo, considerando-se que nesses tipos
Estes quatro professores tem em comum a busca da contínua expansão dos hori- de aprendizados mais físicos há limitações no processamento de informações. Como
zontes dos alunos. Eles aumentam ou modificam a carga de treinamento progressi- na prática inicial de um truque novo grande parte do controle deve ser consciente e
vamente com o objetivo de que os alunos continuem experimentando adaptações em com grande aporte de atenção no momento de realização dos movimentos, é impor-
direção a um aumento do rendimento. Colocam os alunos expostos a cargas de trei- tante que não exista vários aspectos da ação. Pois, nestes momentos de aprendizado
namento superiores ao estímulo que estão acostumados porque sabem que manter o de novos movimentos, mesmo uma pessoa experiente só consegue se concentrar em
mesmo programa e volume de treinamento não proporcionam ganhos adicionais na apenas alguns aspectos ( e esses saem melhores), outros ficam horríveis. A capacida-

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SOB O SIGNO DA MUDANÇA CONCLUSÕES

de de alternar o foco de atenção está limitada pela demanda de atenção de cada com- Quando se consegue realizar a façanha, a sensação é simplesmente sublime. Sen-
ponente do ato motor. Os professores escolheram nessas aulas quais aspectos eram te-se algo glorificante em ter conseguido. A satisfação é tão impressionante que ne-
os mais importantes para quem estava aprendendo, focando nisto e restringindo as nhum sofrimento consegue ofuscá-la. Desse modo, aprende-se que para conquistar
informações sobre tais escolhas. algo que valha a pena na vida deve-se fazer um esforço extraordinário. O que vale a
Mesmo a visceral entrega dos alunos ao que é ensinado de uma maneira mais pena exige entrega, dedicação, responsabilidade e muita... disciplina.
tradicional não gera uma perda da personalidade. Afinal as técnicas corporais não Devagar, devagar, devagarinho! Em outras palavras, a dor também tem sua fun-
estão fechadas para o devir. Cada turma é uma oportunidade nova para os profes- ção, e, portanto, não deve simplesmente ser ignorada. Pois, para esta forma de ver a
sores refinarem detalhes, já que a performance do professor é desenvolvida de uma vida e o mundo, nem tudo o que faz sentir dor é necessariamente ruim, uma vez que
maneira processual e permanente ao longo de vidas inteiras. Este é o elemento faz com que a própria felicidade de conseguir superar a dificuldade em realizar a ati-
chave para a qualidade das contribuições pessoais. Criam suas atuações fundamen- vidade tenha mais sentido. Até a dor cumpre seu papel. “Dói, mas é bom”.
tadas na tradição aliadas ao aproveitamento dos recursos individuais e na continui- Assim, no âmago desta relação com o aprendizado está também a noção de que a
dade através dos anos. dificuldade é normal é que não devemos desistir quando a encontramos. O desafio é
Em termos gerais, na Escola prevalece o respeito ao fato de que cada indivíduo reagir e buscar sobrepor ao que impede de conseguir realizar a performance desejada
ter um ritmo, um vigor e habilidades particulares, próprios do seu ser, cujo desem- mantendo sempre aceso o fogo dos desejos e vontades. Nesse sentido, entende-se que
penho está subordinado a aspectos de ordem física e psicológica. Desse modo, não é a atuação dos alunos e professores da ENC envolve uma percepção muito mais ampla
hegemônica a tentativa de uniformização autoritária do tipo militar em que todos são do que a busca da técnica. Sendo dessa forma um envolvimento que procura abarcar
obrigados a serem iguais na aparência externa e na capacidade corporal. a vida em sua totalidade.
Além disso, estes aspectos tradicionais da metodologia de ensino da Escola só Aspectos e princípios aparentemente simples, como estes, podem contribuir
sobreviveram até hoje porque não excluíram os que não se “encaixavam” perfeita- para as reflexões sobre didáticas, pedagogias e metodologias de ensino das moda-
mente nos moldes. lidades e técnicas circenses de uma forma geral, bem como, para ampliar a noção
A habilidade não verbal é requisito básico para o trabalho do artista circense. Com do trabalho do artista cênico através da versatilidade e interdisciplinaridade dos
exceção dos mestres de pista, palhaços e alguns tipos de mágicos que fazem uso da saberes circenses.
fala, em geral os artistas comunicam-se através de seus movimentos e habilidades Na ENC, historicamente a ênfase recai na transmissão do conhecimento, que
corporais. A gestualidade cumpre o papel de comunicar sentidos que escapam ao lé- tem como centro a figura do professor. Com a abertura para a pesquisa, há uma
xico das palavras. Os movimentos mesmo sem o uso de palavras são capazes de criar valorização da experiência vivenciada pelo aluno, levando em conta as diferenças in-
sentimentos, ideias, sensações, emoções, etc. dividuais. O método é o elemento unificador e sistematizador do processo de ensino,
O corpo é usado multidimensionalmente e ao mesmo tempo integralmente. Nas determinando o tipo de relação a ser estabelecida entre professor e alunos, tal orien-
paradas de mãos em alguns momentos o corpo é um único bloco. É um corpo sem “pe- tação envolve uma concepção de ser humano e de mundo. Técnicas são instâncias
cado”. É, sobretudo, um corpo aceito e tratado com respeito e afeto. intermediárias, componentes operacionais da proposta metodológica. O professor ao
A própria aprendizagem é pela via corporal. Os gestos dos professores muitas ve- usar certa técnica para desenvolver o processo de ensino, não está trazendo para a
zes pontuam e guiam os movimentos nos malabarismos e nas acrobacias. O corpo é sua sala de aula apenas uma técnica, mas toda uma teoria que a sustenta, vinculada
um elemento fundamental do aprendizado em praticamente todas as circunstâncias.
a uma visão de homem e de mundo que responde a interesses de classes. Da parte dos
Enfim, o corpo nessa perpectiva não é o escravo e a alma o senhor. O corpo e alma
professores não há uma preocupação em especificar o ideário pedagógico, os pressu-
(enquanto subjetividade) formam uma unidade indissolúvel sem o estabelecimento
postos subjacentes às diferentes metodologias, embora estes apareçam nos métodos e
de uma hierarquia.
técnicas que nelas tiveram origem.
As pedagogias nas aulas surgem e são geradas principalmente na prática. No seu
O caráter “nacional” da ENC engloba alunos das mais variadas regiões que bus-
dia-a-dia se constrói também uma didática na prática. Nelas estão os germes de teo-
cam a reconhecida qualidade do ensino oferecido pela Instituição. Mas, isso não signi-
rias. Os professores criam novas condições mais pertinentes ao aprendizado dos seus
fica que o que seja ensinado nela seja “superior” ao que é ensinado nas várias outras
alunos, contudo, falta mais tempo e espaço para refletirem com seus colegas sobre a
escolas de circo brasileiras, somente pelo fato de estar na cidade do Rio de Janeiro,
experiência pedagógica de cada um.
por exemplo. Aqui não se pretende de modo nenhum supervalorizar qualquer região
Alerta geral! O esforço para concluir todas as etapas da formação é de fato, imenso.
hegemônica (ou capitais em detrimento de cidades interioranas), pois, isto seria um
Alguns passam por momentos difíceis. Acreditam enfrentar dificuldades que pare-
empecilho que dificultaria imensamente o aprendizado com o pluralismo e a diversi-
cem insuperáveis. Não há caminho fácil, não há truques ou atalhos. O desempenho
exige muito dos músculos e nervos. Há dor nos pés, na coluna, as bolhas e calos nos dade de nossas diferentes escolas de circos.
dedos sempre aparecem. Sente-se vontade de desistir. Você vá escutando. A valorização da própria cultura local ou regional não pode
Mas estes momentos devem ser aceitos por quem busca a felicidade de chegar significar o fechamento da porta para o que pode ser aprendido com pessoas de outros
até o final sem fraquejar. São vistos como um desafio a ser vencido. Nesse sentido, lugares, sejam de onde forem. Uma coisa não deve excluir a outra. Felizmente, a arte,
os reveses e percalços são necessários, pois superar os limites é um dos ensina- o pensamento, a luta de classes, a cultura enfim, não tiveram e nem têm fronteiras.
mentos da ENC. Como pôde ser visto em vários momentos a forte presença da emoção mostra que

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SOB O SIGNO DA MUDANÇA CONCLUSÕES

a sensibilidade tem importância para a formação. A intensa carga emocional está do chamado “novo circo”. Mas, isso não impediu que posteriormente esta influência
presente na maior parte dos eventos. Aliás, em se tratando de ENC, quase tudo pode acontecesse e fosse recíproca.
ter o poder de comover, de mostrar um caminho onde a vida é mais real e faz mais Segundo Tinhorão, o circo é o “primeiro veículo de diversão de massa do mundo
sentido. Isto pode ser percebido facilmente pelo grau de entrega e desprendimento moderno”, bem como, “a mais surpreendente summa de todas as artes dirigidas ao
demonstrado. Além disso, as pessoas dão um grande valor aos momentos passados gosto popular desde a Antiguidade”.115 Mas, estudando a ENC percebi que na realida-
ali. As atividades são sinceramente sentidas e vivenciadas e não feitas como ativi- de, não existe o Circo. Existem circos. Pensar como se existisse um único Circo, seria
dades ordinárias. Participar desta família é contrair uma obrigação com a intenção desconsiderar a própria história e sua complexidade. Seria como se existisse uma “es-
de respeitá-la com zelo e dedicação íntima. Está no campo dos afetos, sentimentos e sência” do Circo que pairasse acima das mudanças ocorridas ao longo do tempo. Isto
venerações. é, uma ideia cristalizada, uma forma congelada e fixa, um modelo ideal, um símbolo
Mas, é no mínimo curiso como de um modo geral, o que se evidencia em boa parte puro, absoluto e universal imune à história e ao fato de que a própria VIDA é movi-
dos escritos dos filósofos da Grécia antiga até a modernidade, é uma concepção disso- mento, transformação, metamorfose. A própria concepção que temos de circo é algo
ciada, na qual a razão quase sempre tem status superior aos sentimentos. Aristóte- que também existe como parte dessas mudanças. É uma construção social, política,
les, numa perspectiva claramente dualista, reiterava que os sentimentos residem no econômica, cultural e, portanto, histórica.
coração e que o cérebro tem a missão de esfriar o coração e os sentimentos nele locali- As ARTES DO CIRCO são mais interessantes e significativas quando vistas em
zados. Kant, destacando a supremacia da razão, construiu uma perspectiva negativa sua pluralidade de linguagens, propostas e tipos. Pois, o assim chamado “circo so-
das emoções e dos sentimentos. cial”, ou o “circo tradicional”, ou ainda o “circo novo” ou “circo contemporâneo”, por
Como é que a gente não pode explicar essas coisas? Este dualismo é um dos maio- exemplo, são práticas bem distintas em termos de público, espaços e inserção social.
res equívocos presentes na maioria das dimensões da vida contemporânea. Acredi- Na medida em que possuem suas próprias contradições, vantagens e desvantagens,
ta-se que apenas o pensamento leve o sujeito a atitudes racionais e inteligentes, cujo ficar fazendo comparações valorativas sobre fenômenos distintos ou criar oposições
expoente máximo é o pensamento científico e lógico-matemático. maniqueístas entre elas é forjar um falso e estéril problema.
Mas, a práxis da ENC expõe em vários aspectos, uma superação desse tipo de Da discussão nasce a sabedoria. Chegaremos a um maior conhecimento sobre este
ruptura clássica. Mesmo que inconscientemente, questiona este e outros dualismos universo em contínua expansão, sobretudo, através da promoção do permanente de-
estabelecidos no mundo científico e escolar, que separa cognição e afetividade, razão bate teórico-metodológico e o aperfeiçoamento das estratégias em uso no ensino da
e emoção. Acredito que a história da própria Escola (com sua ênfase no coletivo da arte, bem como, de um maior rigor na pesquisa.
“família”) levou a uma visão mais unitária em que estes, assim como outros, domínios As performances dos processos de ensino/aprendizagem nas aulas e espetáculos
não são indistintos. As características da arte também colaboram para uma forma foram concebidas como experiências culturais onde estavam presentes os comporta-
de percepção totalizante. Estes foram apenas dois exemplos que superam o dualismo mentos duplamente exercidos ou comportamentos restaurados. De acordo com Sche-
bipartido do pensamento cartesiano e maniqueísta, onde tudo tem que ser dominado chner, são “as ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar, que têm
por princípios absolutos e opostos. Sendo assim, não há a violência cognitiva a que que repetir e ensaiar”.116 Ações como as artísticas, pedagógicas, rituais e cotidianas
fomos habituados desde crianças, onde cada vez mais, especializam-se os conheci- que requerem habilidade e perícia. Está claro que foram ações que exigiram muito
mentos, fatiando os saberes e impossibilitando o diálogo com uma razão mais aberta treino e esforço consciente.
e não fragmentada. O apressado come cru. Tive que me dedicar pacientemente e respeitar o tempo
Ermínia Silva e vários pesquisadores ressaltam que o advento das escolas de circo necessário de efetivação desta pesquisa que combinou as contribuições do circo, do
no mundo, assim como no Brasil, é o fato realmente novo na história dessa arte, teatro, da dança, da música, da antropologia, da pedagogia, da sociologia, da histó-
considerando, sobretudo, que até então os saberes do circo eram passados tradicio- ria, da iluminação, (entre outras), usando lentes inter e transdisciplinares para se
nalmente dentro do circo, de geração para geração. Os circos de lona eram as escolas debruçar sobre um conjunto de ações e processos. Escrever é uma luta. Em estudos
permanentes e itinerantes que formavam os novos circenses. 114 como este que envolvem a noção de performance abre-se um espaço entre a ação e a
Mas, no caso da ENC, penso que devemos relativizar um pouco alguns aspectos. análise para superar a oposição binária e dicotômica entre teoria e prática. Tal es-
Pois, ela não deve simplesmente ser colocada no movimento de renovação da arte paço é constituído, sobretudo, pelo necessário diálogo onde a teoria ajuda a pensar a
circense conhecido como “novo circo” sem perceber algumas singularidades. Pelas cir- prática e a prática a repensar a teoria através da discussão de evidências analisadas
cunstâncias históricas e até mesmo por questões específicas a ENC é contemporânea criticamente. Escrever requer acima de tudo humildade e humor.
ao surgimento da maior parte das escolas de circo no mundo. Mas, ela é criada com a Empreender tal trabalho implicou em abordar as ações em sua relação com o ex-
marca de uma estética e linguagem próprias. Seus espetáculos não eram estrutura- terior, isto é, com a história. Pois, caso contrário haveria um perigo permanente de
dos a partir de um enredo ou introduziram inovadoras experiências tecnológicas com perceber o fenômeno em si, isto é, fechado sobre si mesmo, onde o desdobramento de
uma estética vanguardista. Portanto, apesar de representar um fato histórico real- tal perspectiva poderia levar a perder justamente uma dos aspectos mais importan-
mente novo, nem por isto, compartilhava nestes primeiros anos do ideário elementar tes, os seus significados culturais.
114 SILVA, Erminia – “Histórias do aqui e agora - cabaré e a teatralidade circense”. 115 TINHORÃO, José R. “Circo brasileiro, local do Universal”. Cultura Popular - Temas e Questões. Editora 34:São Paulo.
In: www.portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/download/5213/3763 2001. p. 37.
116 SCHECHNER, Richard.“O que é Performance” In: Revista O Percevejo. Rio de Janeiro: PPGT-UNIRIO. Ano 11,
n. 12. 2003. p. 27.
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SOB O SIGNO DA MUDANÇA CONCLUSÕES

Tal parte, aliada a fase da alquimia da escrita foi como é natural, a mais demo- riqueza humana, fazendo de sua atividade um fim e um meio, simultaneamente.
rada. Pois, conseguir estabelecer reflexões considerando toda a multiplicidade e di- Durante a história do Ocidente, os artistas se viram quase sempre obrigados a
versidade de fontes documentais colhidas (entrevistas, filmagens, fotos, programas, conjugar a necessidade de assegurar sua existência material com o exercício de sua
artigos, etc) é um trabalho lento, árduo sem deixar de ser prazeroso. A semente é liberdade criadora. Nessa tensão estabelecida a conjugação foi via de regra bastante
plantada, mas leva um tempo para virar árvore. Tem que cuidar cotidianamente. Não problemática. É ponto pacífico que historicamente não houve no Brasil uma partici-
é da noite para o dia. pação do Estado a promoção de alternativas concretas de valorização dos trabalhado-
É sempre bom lembrar, que apesar da perspectiva totalizante, não procurei, dizer res do setor artístico e cultural.
tudo sobre a realidade da ENC, mas descrever e explicar o que nela tenha conside- No discurso material e concreto dos espetáculos muito do que aparece separado em
rado mais vital. A abordagem adotada pretendeu refletir e indagar não apenas sobre outros campos (como a ciência e a filosofia) aparece junto e misturado. Nesse aspecto,
as conquistas e triunfos da Escola, mas também sobre suas dificuldades, conflitos, a arte possui mais condições de reatar o singular e o universal, o particular e o geral.
refluxos e limites. Acredito que assim, posso contribuir para a construção de um co- Testemunhei nos espetáculos, como as artes do circo tem o poder de arrebatar as
nhecimento crítico e, sobretudo, subsidiar ações transformadoras no presente/futuro. pessoas colocando-as frente a frente com algo espantoso e admirável - tornando-as
Mas por favor, não espere exaustividade na análise do material. Ele é compatível com mais próximas do universo infinito. Da sensação de que estão realmente vivas e que
o tempo dado a ela. É inútil plantar um jequitibá na esperança de ter, em breve, o isto vale muito a pena. Os espetáculos ofereceram a dádiva generosa de um prazer
abrigo de suas folhas. cultural de riqueza inesgotável para quem teve acesso a eles. Em suas formas in-
Num esforço de síntese, posso dizer que foram essas as reflexões básicas que me trínsecas de expressão transfiguraram a realidade desequilibrando o instituído e o
orientaram e um pouco dos procedimentos teórico-metodológicos fundamentais toma- estabelecido, retirando movimentos do contexto costumeiro e colocando-os em outra
dos durante todo o trabalho desses mais de três anos de pesquisa. realidade.
Frente a um contexto histórico mais amplo em que a ênfase tem sido toda canaliza- Trabalharam com o lúdico e possivelmente foram para alguns espectadores, como
da para a produtividade, a eficiência, a disciplina e a relação entre o tempo e a rique- refúgios de prazer e significados num mundo árido. Instauraram um universo para o
za. A opção por valorizar a arte foi uma forma de definir a ENC não só pela eficiência qual foi possível embarcar, evadir, fugindo das asperezas de um cotidiano cinzento e
desta “ralação” de trabalho duro, mas também, pela fruição, divertimento e prazer desfrutar das delícias próprias das emoções despertadas pelo circo.
que gera. Afinal, o PRAZER é a água que move o moinho. Há prazer na própria rea-
lização do movimento físico. Existe prazer em aprender, em assistir as apresentações Ei você, que chegou até aqui.
dos colegas, em ensinar, em criar. Sem o prazer de fazer, de se apresentar fica difícil
o público ter prazer em assistir. O prazer não pode ser considerado um insulto, algo
Espero que tenha gostado de nossa aventura.
que deve ser evitado ou um luxo dispensável numa Escola, com uma vida feita de Tinha só um pouquinho de histórias para contar sobre estes
obrigações. O prazer é um direito que não existe isolado de tudo mais, é parte de um seres que ao seu modo único também velam pelo júbilo do planeta.
processo. Segundo Tiger: “o prazer surge das raízes mais profundas do ser humano.
Sua busca é incessante, inventiva e vigorosa. Deve, portanto ser respeitado tanto pela
força que representa quanto como um fato inalienável das questões humanas”.117
No caso específico da Escola Nacional de Circo pude constatar como a arte pode
ser a expressão da própria vida. Sim! Não pode ser reduzida a conceitos. Embora,
não dispense a beleza, não se resume a ela. Por isso, os espetáculos analisados não
foram vistos como meros reflexos do real ou da vida. Eles são tratados como algo
mais do que isso. São percebidos em sua realidade de arte, de obra de ficção. Uma
forma especial de conhecimento e um modo de vida. Qualquer que seja a sua refe-
rência a uma realidade exterior ou interior já existente, a obra artística é, antes
de mais nada, uma criação do homem, uma nova realidade. O homem, se afirma,
transformando a realidade, humanizando-a, e a arte com seus produtos satisfaz
esta necessidade de humanização. A arte responde à necessidade humana de ex-
teriorizar-se, de marcar com seu timbre as coisas exteriores, de dar seu próprio e
insubstituível testemunho. 118
Estes artistas com estes trabalhos responderam também a uma necessidade in-
terna. Sua atividade não obedeceu à uma determinação que lhe fosse estranha,
imposta de fora. Diferentemente, satisfez a necessidade interior de explicitar sua
117 TIGER, Leonel. A busca do prazer. Rio de Janeiro: Objetiva, 1993. p. 242.
118 VÁSQUES, Adolfo Sanchez. As Idéias Estéticas de Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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Fascínio Circense Cláudio Alberto dos Santos

REFERÊNCIAS
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Fascínio Circense Cláudio Alberto dos Santos

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33) Creso Filho (coreografo do espetáculo Cabaret)
34) Walter Ariel Zanetti (formado em 1986. Único aluno estrangeiro da primeira turma. )
35) Ellen Dias Pátsavas (formada em 1986. )
Sites/vídeos 36) Raquel Rache (artista circense formada em 1986/ diretora da Cia ARCHAOS/CREAC);
http://vejario.abril.com.br/edicao-da-semana/selecao-escola-nacional-circo-rj-739895.shtml 37) Donald B. Lehn (diretor da Carampa e presidente da FEDEC – Federação Europeia das Escolas Profissionais de Circo);
http://farm3.staticflickr.com/2299/2299138533_29bfb597bd.jpg 38) Bruno Carneiro (artista circense formado na ENC e artista residente no CREAC);
http://en.wikipedia.org/wiki/Archaos 39) Tim Roberts (diretor do National Centre for Circus Arts e vice-presidente da FEDEC).
ttps://en.wikipedia.org/wiki/Fanfare_Cioc%C4%83rlia 40) Luiza Fernandes (artista circense formada no Curso básico em 2014);
http://fr.wikipedia.org/wiki/Tissu_aerien 41) Fernando Félix (artista circense formado no Curso básico em 2014);
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Este livro foi composto nas fontes
Century Schoolbook, Caviar Dreams e Helvetica
e foi impresso em Couche Fosco Importado 115g
na Rona Editora.
Belo Hoizonte, Novembro de 2016

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