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Revista África e Africanidades - Ano IV - n.

14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

MOÇAMBIQUE HOJE:
antologia da novíssima poesia moçambicana
Alex Dau - Andes Chivangue - Armando Artur - Chagas Levene -
Domi Chirongo - Manecas Cândido - Mbate Pedro - Rinkel -
Rogério Manjate - Sangare Okapi - Tânia Tomé

Ilustrações
João Paulo Quehá

Fotografias
Tomás Cumbana

Organização
Ricardo Riso

Agosto de 2011

1
Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

ÍNDICE
Palavras Iniciais - Nágila Oliveira dos Santos 3
Apresentação - Ricardo Riso 4

POETAS
Alex Dau 6
Andes Chivangue 14
Armando Artur 23
Chagas Levene 27
Domi Chirongo 36
Manecas Cândido 47
Mbate Pedro 56
Rinkel 66
Rogério Manjate 75
Sangare Okapi 95
Tânia Tomé 105

ENTREVISTA
Domi Chirongo 113

ILUSTRADOR
João Paulo Quehá 115

FOTÓGRAFO
Tomás Cumbana 115

ORGANIZADOR
Ricardo Riso 116

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Palavras Iniciais

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Apresentação
A presente antologia pretende contribuir para melhor divulgação de jovens poetas moçambicanos
entre o público brasileiro, ainda de exposição discreta por aqui. Nascidos no decorrer da década de 1970,
esses escritores começam a publicar em suportes como revistas e jornais de Moçambique nos anos 1990,
somente oferecendo a estampa do livro aos seus textos já no primeiro decênio deste século, embora em
tiragens reduzidas que evidenciam os problemas da estrutura editorial do país, por conseguinte, dificultam
o acesso a essas obras, principalmente para os estrangeiros. O único poeta que não se enquadra nessa
geração é Armando Artur, representante da geração Charrua que não possui maior divulgação no Brasil e
se trata de uma escolha pessoal e da admiração poética do organizador que aqui escreve.
Motivado por conhecer esses novos autores e ter contato direto com alguns aqui presentes, decidi
investir no projeto desta antologia para apresentar uma pequena amostragem do atual panorama da poesia
moçambicana. Trata-se de uma excelente oportunidade para sentir como os poetas procuram retrabalhar
temáticas típicas da tradição poética do país em novas propostas estético-formais, mostrando que a tensão
entre o tradicional e as vanguardas contemporâneas revela o vigor do momento poético do país, ora por
uma intensa metapoética, ora pelo erotismo e por um lirismo afetuoso, às vezes o surrealismo marca
presença, assim como a indignação com os problemas sociais e os descaminhos políticos da nação.
Quanto à forma, apenas para citar alguns exemplos, esses poetas navegam pela poesia em prosa, ou pela
versificação livre em versos curtos e rápidos poemas, ou em versos e poemas longos, para além de
experiências com o concretismo, ainda que tímidas. Para os habituados à poesia moçambicana, referências
a poetas como José Craveirinha, Rui Knopfli e nomes mais recentes como Luís Carlos Patraquim e
Eduardo White, principalmente este, são inspiradores para a maioria dos jovens. E em razão do raro
contato com esses poetas, ao final foi inserida uma entrevista que fiz com o poeta Domi Chirongo.
Sendo assim, é gratificante perceber os sopros estimulantes de renovação que esses poetas estão
oferecendo à poesia moçambicana. Alguns ainda com certa timidez; outros, mais ousados, radicalizam
suas propostas, mostram intenso labor, rigor, método, criatividade para desbravar imagens inusitadas e
impactantes revelando que para essa geração a literatura em Moçambique está longe de morrer, mas que se
encontra em processo de busca por uma palavra depurada e de melhor resultado estético, afastando-se de
soluções fáceis e outras vulgaridades.
Encerro com os meus agradecimentos à Profª Nágila Oliveira Santos, idealizadora da revista
África e Africanidades, que desde o primeiro contato se mostrou sensível à proposta da antologia; aos
poetas amigos Manecas Cândido e Domi Chirongo, pela disponibilidade e constante apoio nas
correspondências eletrônicas para realização desta antologia, como também de igual importância o Lucílio
Manjate. Meu sincero agradecimento a todos os participantes – Alex Dau, Andes Chivangue, Armando
Artur, Chagas Levene, Mbate Pedro, Rinkel, Rogério Manjate, Sangare Okapi e Tânia Tomé por
acreditarem neste projeto. Agradecimento especial ao João Paulo Quehá por ceder suas imagens para
ilustrar a antologia e ao Tomás Cumbana, responsável por fotografá-las.
Ricardo Riso

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ALEX DAU
Alex Dau é pseudônimo de Paulo Alexandre Dauto da
Conceição.

Publicou os seus primeiros poemas no semanário ―domingo‖ e


mais tarde veio adotar o gênero prosa onde publicou diversos
contos na revista ―Tempo‖ e nos semanários ―Savana‖,
―Zambeze‖ e ultimamente no suplemento cultural do jornal
―notícias‖.

Frequentou o curso de Literatura Portuguesa ministrado pela


Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane em parceria com a Embaixada de
Portugal em Moçambique. Mais tarde cursou Literatura Africana promovida pela mesma
Universidade.

Em 2009 lança sob chancela da Associação dos Escritores Moçambicanos sua primeira obra
literária intitulada ―Reclusos do Tempo‖. Em 2010 participa numa antologia em sueco de contos
moçambicanos.

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Sedução

Enleas-me com o teu olhar


com o teu sorriso impões teu charme
fico sem jeito
então solicito
Teu amor
Não!
dizes simplesmente
crias então
este tormento inexoravel
que vive dentro de mim
sim esta paixão incompreendida
devasta minha tolerancia
depois surge a revolta
para contigo
e para com os desculpados.

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Dupla Solidão

Com a noite
partilho a solidão
e busco-me na imensidão
do céu negro
onde as estrelas
me negam seu brilho

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Terra e Criançãs

Oh terra!
escutai a voz suave
dos teus naturais
vozes de crianças
puras e inocentes
como pássaros
sussurrando entre arvores
na praça do desespero
Oh terra!
escutai brandos contactos
entre o desespero e a esperança
música de presença mortal
de crianças angustiadas

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Nhambaro1

Dançam!
derramam suor alegre
suor de cachaça
que transborda
de poros negros
Se dançam?
dançam nhambaro¹
e como donos da terra
descrevem alegria
na areia de matequenha

1
Nhambaro: Dança tradicional de Quelimane – Zambézia, centro de Moçambique.

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Nicoadala

Não há primavera
nem Outono
o inverno morreu
mesmo antes de nascer
sobreviveu a cacimba
que dá frescura
as manhãs e animo aos homens
de mãos calejadas
que constroem canteiros de mandioca
em Nicoadala

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Licuári

As águas soterram-se
no intimo da terra
o milho murchou
em Licuári
morreu o cântico dos pardais
os milhafres já não voam
na clandestinidade
porque os pintos
Já não piam

Orgasmo aéreo
O orgasmo dos pássaros
é aéreo
e levita em cada ramo morto
da floresta incendiada do interior

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ANDES CHIVANGUE
Andes Adriano Chivangue nasceu a 21 de novembro de 1979, em Xai-
Xai, Moçambique. De 1998 a 2002 foi editor da revista literária Xitende.
Dentre vários, ganhou o prêmio revelação Rui de Noronha, na categoria
de conto, com o título ―A Febre dos Deuses‖, em 2001. Tem textos
publicados em diversas revistas e antologias. Estudou Relações
Internacionais e Diplomacia.

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Se espetares os dedos nos olhos

Se espetares os dedos nos olhos


E os arrancares, na doçura da raiva que te envelhece,
verás a fotografia embranquecer do outro lado das chamas,
a tua amada a comer o colchão molhado de sonhos
e o céu a arder na face granular do desejo.

Se fizeres sangrar os lábios com um estilete


absorverás finalmente o recado dos deuses –
a eternidade escondida no cesto de roupa suja
onde vomitaste a noite. E como Rimbaud
juntarás o céu e o mar nas fissuras da pele
até o sangue irrigar a tempestade na alma.

Sente. Estás a sentir? Agora?


O enlace maternal do jazz no improviso do sono,
o ruído na tumba donde um pé se enrosca à busca de calor?
Sentes como a cidade morre no teu corpo?

Não. Terias de ser uma pedra


para que a semente tremesse ante a boca da terra.
Mas tu não compreendes isto de atear fogo à memória,
que se reate a avidez das mãos na prenhe argila do poema.
Entretanto, se deixares um canteiro de lírios
crescer nas encostas do teu coração
e os olhos embaciarem-se na seiva nocturna
poderás, enfim, enxergar a fotografia,
a criança raquítica que te abandonou no desespero.

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Tempo difícil este

Tempo difícil este


em que as gaivotas entram boca dentro
e adejam uma dúvida vespertina.

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Fujamos destas linhas

Fujamos destas linhas,


avancemos para uma terra mais sóbria e luminosa
onde o céu seja prenhe de vagalumes
e uma praia cheia de cardumes alimente enciclopédias,
sentidos renovados e semoventes
cuja substância absorverei esperançoso
de no fim sussurrar, pela sombra do desejo,
ao pé de ti, a magia do mundo,
entregando-te a arca com a sabedoria de Deus,
a arca que com as pedras e a sua música infinita
polvilha o meu rosto de terra,
até a lebre em ti se confundir comigo
e os dois podermos finalmente atravessar a eternidade
nessa vastidão de rosas e água
que adoça os corações na polpa da maçã.

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Um olhar semeado no pântano

A tua boca congelada no chão das palavras faz germinar espinhos na língua devorada por
nenúfares outrora ávidos de sol no quintal de mar que foste um dia. É dessa forma que a fala se
prende no musgo dos teus pulmões, e tu cresces, ergues as hastes da tua fúria no lodo agarrado
aos teus dentes donde roseiras brotam em riste à procura dum pântano onde semear um olhar,
um desejo puro de morrer, uma queimadura de amor cicatrizada nos lábios, uma aurora brilhante
em teus seios. Meu corpo de rosas procura-te na multidão de pensamentos adormecidos na
paixão do rouxinol que parte num voo oblíquo e se espeta no navio entre os meus dedos.

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As minhas mãos resvalam sobre a cidade

As minhas mãos resvalam sobre a cidade


adormecida que no teu corpo vela estrelas que às vezes
se precipitam no abismo das taças que soluçam a morte
das crisálidas, as que no imo da noite, roçadas pelo
vento, emitem sons duma flauta a chorar pelo seu dono.

Com o olhar preso às luzes dessa cidade


agarro-me a um arbusto
enquanto milhares de formigas devoram meu ânus,
e o cheiro das minhas tripas,
ou,
o musgo que cresce entre os meus dentes
me liberta do fogo que me teve sempre prisioneiro de ti.

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As rosas

As rosas
Se esmagadas contra a palma da mão,
Surpreendem-nos com o cheiro inebriante
De moça virgem que muito cedo
Vê a sua saia incendiada.

As rosas,
Umas vezes transformam-se em vento,
Outras, derramam as pétalas na vertigem da cidade
Quando as pedras
Aquecem a pele dos amantes fortuitos.

Tão luminosas e perenes as rosas...

Todas as noites amo uma,


Aperto-a contra o coração
E o meu sange nela se mistura.

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Auto comiseração

Este corpo que deram o nome de Andes,


Com dois olhos, braços, pernas,
Um ânus, pénis, naris…
Tudo isto que vêem
São despojos de um incêndio
Há muito extinto…
Estas carnes que envelhecem precocemente
Do cansaço dos dias,
Da alma chamuscada,
Este pedaço de gente
Que se recusa a manter-se vivo…
Este… que vos apresento,
Pobre e infame alma,
Quase gente,
Este pouco…ínfimo…
Menor que um bacilo...
Eu reconheço. E aqui diante de vós
Reduzo-me ao meu estatuto de verme.
Mas antes que me esmaguem,
Permitam-me pedir-vos que
Depois queimem os despojos deste monte de merda.
É que cremado, pelo menos não haverá memória
De tamanho engano.

(Lisboa, Maio – 2011)

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ARMANDO ARTUR
Armando Artur nasceu a 28 de Dezembro de 1962 na província da
Zambézia, Moçambique. Iniciou a sua atividade literária em 1980. Faz
parte da Geração Charrua. Foi Secretário-Geral da Associação dos
Escritores Moçambicanos (AEMO). É membro fundador da
Associação Pan-africana de Escritores (PAWA), da qual é Presidente
para Moçambique. Desempenha, igualmente, as funções de Vice-
Presidente do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa (FBLP), cargo
que ocupa desde a morte do poeta José Craveirinha. Publicou Espelho
dos Dias (1986), O Hábito das Manhãs (1990), Estrangeiros de Nós
Próprios (1996), Os Dias em Riste (2002), A Quintessência do Ser (2004), No Coração da Noite
(2007). Possui obra dispersa em revistas literárias, livros didáticos, antologias e jornais nacionais e
outras obras traduzidas e publicadas no estrangeiro. É Prêmio Consagração Rui de Noronha –
FUNDAC (2002) e Prêmio Nacional de Literatura José Craveirinha (2003/2004).

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Múmia
(Museu egípcio de Berlim)

Silêncio prozóico
Num acórdão sinistro.
Ritmo prosódico
Num compasso de sistro.

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Quando a pátria que é nossa

Quando a pátria que é nossa


É assim esgravatada e repilhada
Até aos limites do seu interior
Por gente nossa e despudorada

Quando a pátria que é nossa


É assim regateada ao preço da gula
E ganância, por gente que até jurou
Defendê-la com bravura e valentia

Quando a pátria que é nossa


É assim extorquida e ameaçada
Por gente sem dó e auto-esconjurada
E que não olha a meios senão a fins

Quando a pátria que é nossa


É assim leiloada em praças obscuras
À taxa diária do sangue, suor e lágrimas
De milhões de braços, e uma só força
Por gente ilustre e de colarinho branco

Quando a pátria que é nossa


É assim assaltada pelos flancos da sua
Beleza e contornos da sua geografia
Por gente que é forasteira de si própria

Quando a pátria que é nossa


É assim deixada à deriva e ao relento
E à mercê dos párias do nosso maior
Descontentamento colectivo

Quando a pátria que é nossa


É assim atraiçoada por essa gente sem
Nome, que se aliança com mercadores
De insónias e arautos do caos e do mal

Em troca do fútil e do asco

Todo silêncio e todo exílio serão


Sempre iguais a pátria que é nossa.

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CHAGAS LEVENE
Chagas Levene nasceu no distrito costeiro de Angoche, província Nampula em
1971.
Tem licenciatura em Relações Internacionais e Diplomacia.

Foi jornalista e professor e trabalha como consultor e pesquisador.

É autor do livro de poemas ―tatuagens de estrelas‖ editado em 2008 pela


Ndjira. No prelo, também pela Ndjira, ―Porto das Luzes‖. Tem poemas
publicados em Moçambique nos jornais Domingo, Savana, o Universitário e
Lua Nova; nas revistas Tempo e Oásis, no folheto Português em cordel entre outras publicações.

Em Portugal consta da antologia ―Encontro com Escritores‖. No Canadá publicou na revista de


poesia ―Éloisis‖. No Brasil publicou na revista Poesia Sempre e ―Teia Literária‖. Na Inglaterra
consta da antologia ―Charrua and beyond‖.

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Inventar um passo de dança

Dizem-me que te preocupas comigo Confesso que continuo


A escrever poemas Mas não penso em publicar livros
Estou apenas a exercitar-me Como um bêbado vulgar
Que procura inventar Um passo de dança
Segurado a um candeeiro De iluminação

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Tatuar teu corpo de estrelas

Debaixo do cajueiro Nenhum beijo acontecia


Enquanto a chuva cantava As folhas acenavam
Batidas pelo vento
Fugiste foste ao encontro da chuva correste
Como se a falta de estrelas te enlouquecesse
Ias ao encontro de que sonhos?

Ou era mesmo a chuva A bater com sua dança no asfalto


E a saltar Que te entusiasmava?
Tuas tranças voaram Acariciadas pela chuva
Recordo ao tirares a blusa A flor dos teus seios
O perfume que te envolvia Ou era o desejo que ardia em mim?
Disse que teu sorriso brilhava mais que o canto das estrelas
Ao teu corpo eu só queria tatuar de estrelas

E mandaste-me passear

Expus meus sonhos Na balança dos teus desejos


Eu só queria viajar Na aerodinâmica dos teus beijos
E agora ando ando ando atrás de algo
Que só existe na minha imaginação

Se vieres agora Com o coro das tuas seduções


Não me entrego não Dou-te como flor um abraço
Digo-te que não voltes nunca
Pois compreendi a beleza de um cacto no deserto
Repara bem que tem flor e até sombra

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Nestas coisas de fumo e sexo

Ao Augusto Tembe

Nestas coisas de fumo e sexo estamos fartos até à medula


E esforçados acocoramo-nos nas esquinas
Pensando bantas pernas esbeltas ao vento
E alguns carros poderem ser nossos
As mãos calejadas de nada abraçam o vento
Hirtos caminhamos sonâmbulos
Em que canto fica o porto de destino?

Esvoaçamos em saias mais uma vez


e pensamo-nos Lordes da rua
Fingimos sentimentos de algibeira
Enquanto um profundo cola bem fundo mas não revelado
Pensamos amanhã será o dia será o dia melhor
A revelação se consumará

As balalaicas e safaris são agora smokings


Às vinte e trinta pensamos numa telenovela

Somos como nos fizemos ou quiseram-nos assim?

À noite embriagamo-nos e dormimos bebés

Ter coragem é olhar para os problemas e procurar soluções


Gesticulamos sorrindo pensamo-nos anónimos
Algures uma estatística fala sem sorrisos
Com gatos ronronando em telhados de zinco
pensamos em algo diferente
Amarrotamos pétalas já murchas de ódio
e já não há parietais na cidade onde agacharmo-nos

Com gatos ronronando em telhados de vidro


mulheres espreitam-nos cautelosas
e quando sabem de nossos olhares
rebentam em gargalhadas
com as veias querendo-se mais perto da epiderme

Gesticulamos ainda e com os dentes à mostra


A impotência de ver e consentir leva-nos à cegueira de ver e consentir
Com a cacimba rasgando a pele persistem alguns erectos
Com o céu se prolongando manto azul perguntam
em que canto fica o porto de destino ?
Nestas coisas de fumo e sexo estamos fartos até à medula

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Vários braços tem o poema

As cidades já as quiseste tuas


agora choras de velas nuas

Veste-te como puderes Zézinha


retoca-te antes maquilha-te a rua quer-te invulgar
desculpa os versos do tempo que se foram
os meus inventados nas cacimbas estão por aí

Olhos meigos em rostos show off à laia de gaita


batom vermelho passado nos lábios

Amo-te na cama
na rua silenciosa
e por entre os versos que conheces como os teus vestidos

danças e tua silhueta recortada em papel


em direcção ao vento ao nada

teus olhos estendidos à lua enquanto despes a capulana


não partilhas os sonhos e os versos sufocam
tens-te em conta pelo que vales
as mãos textura de desejo em tatuagens do momento
teu corpo despido
um poema antigo

Tens o teu sorriso teus sonhos antigos


aconchegados nos braços de um poema
Vários braços tem o poema hoje escolheu-me a mim
ser seu amante
acariciá-la de encontro ao papel Falá-la docemente ternamente dizer
Poesia
Amo-te pelos instantes sempre renovados diferentes

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Desta cidade vou partir esticado num caixão

Desta cidade vou partir esticado num caixão


Até ao crematório Com um facho do sol a
gritar em minhas mãos Rasgo a noite das
tuas dúvidas Enquanto meus lábios rebeldes
Colhem a seara dos teus beijos
E já não há taças de prata em praças abandonadas
Entrego-me ao teu farto corpo nu e despenteamos o passado
Olhando incrédulos para os bolorentos livros de poesia
Nas portas da memória sentamo-nos Enquanto pontapeados cães
Na estrada dançam latindo em nossos pés
Poemas antigos Em cidades velhas arruinadas
E as hienas com que nos açoitam virão como
O bocejo e surpresa dos cigarros partidos nos bolsos
Coçamos os cabelos com os sons que amordaçam a noite
E explodem cortinados de estrelas em chamas em tuas mãos

Tarda a questão que me trouxe aqui Cruzas depois as pernas


E ajeitas a capulana aos quadradinhos com fachos de sol
Esbeltos
Como as manhãs que se derretem aos teus pés
No teu silêncio pirilampo afogamo-nos Como o mar ensurdecedor na praia
Enquanto o vento norte explode na tua blusa
E vem o barco sem regresso cianeto
E agora porquê não gritar com o chicote de estrelas
Antes que as gaivotas voem para longe?
Longe longe do teu decote em u?
Antes que se afundem em poemas canibais?
Resta-te a ilha da Islândia lá onde lavas os cabelos
Pesadelos da noite com uma faca partida na mão

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Minha aurora

Mudei. Mas minha angústia continua a seguir-me pelas paredes


como se houvesse um Picasso por pintar,

Diriges o teu olhar ao cadafalso da minha infância minha aurora


minha gravata que levo a passear-me pelos alegres bailes
da minha tristeza

Por mais que me barrique por trás de prolongados cigarros


como as pétalas que cortam os caminhos que partilho
com as rameiras da estrada,
o perfume dos bocejos da minha alegria
São a canção com que entristeço o meu futuro
por não te procurar no incêndio dos poemas

Dizes que finjo que tenho um brilho maior que das estrelas.
Hoje ainda podes olhar-me
podes pontapear os poemas que te escrevi
podes pedir meu coração aos teus pés
como se acendesses uma vela
com as roupas de Carnaval com que finjo minha felicidade

Minhas chamas minhas lágrimas o Niagara em teu coração

Como se ouvisse Adama Drama tocar ―talking drum‖


Ou as notas finais de ―Blue Monk‖ agarro-me à janela
Arrasto-me no rasto da poeira dos teus passos
descontroladamente abano minhas mãos
e outra vez coloco um comício de poemas aos teus pés

O que me alegra é ver-te a despir o vestido


Como se pousasses o violino ao lado do piano,
E me pedisses que pintasse Jazz em poemas

Troco a minha angústia com a calma com que despes o vestido

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Liberdade

Cordas lembram forcas e não navios.


Navios baloiçam como bandeiras e enforcados,
mas só os navios voam após as tempestades

Todos navios levam nomes como todos seres humanos.


Navios são baptizados como alguns seres humanos.
Navios são amarrados às vezes à terra
como muitos homens que não têm a liberdade dos navios
que voam após as tempestades e não são enforcados!

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DOMI CHIRONGO
Domi Chirongo é um terráqueo que nasceu poeta e escritor. Teve uma
infância repleta de viagens com a família, pelas diferentes províncias de
Moçambique.

É licenciado em Psicologia e Pedagogia e Pós-Graduado em Saúde


Pública. Tem colaboração dispersa em vários órgãos de informação
nacional e estrangeira, tendo publicado em 2005 o romance
―XIDAMBANE – Um Pequeno Africano Vítima das Cheias‖.

Em 2010 foi galardoado com o prémio literário ―10 de Novembro‖,


edição 2010 dedicado a poesia.

Fez parte de todos os elencos Diretivos da SOMAS (Sociedade Moçambicana dos Autores), e faz
parte do Corpo Diretivo da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO).

Com efeito, Domi Chirongo é um dos mais destacados escritores da ―2ª República de
Moçambique‖, posterior aos Acordos Gerais de Paz. A sua presença tem sido constante na
apresentação de obras literárias, mesas redondas, conferências, entre outros eventos literários de
intervenção social.

Em Moçambique é também colunista do Jornal Magazine Independente.

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Atiro-me

Deixa-me ser teu griot


nessa terra estranha
onde T.S. Eliot
governa

Patético
nesta estrada
tudo quero dar
e matar-te de amor

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Tua ...

Tua é a alma iluminando meus tristes caminhos. Não. Não posso ser inimigo dessa alma
escondida em ti. Abre-te. É no teu corpo descoberto, onde encontro o indicador da felicidade.
Por isso, sob o pretexto de combater o stress, tomei a forte decisão de entregar-te o coração.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

S/T

Estas são as cores do coração corajoso tropeçado em ti Pese embora ignores a essência delas Vale
a pena chamar-te à razão Mais uma vez.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Palhotamento

As crianças gritam
- Dinheiro não traz felicidade.
Eu acrescento
- Imagine a falta dele!
Se hoje sem grana
está difícil ter esposa
padrinho então, nem digo!
Como enfrentar o futuro
assim sozinho?
Desafortunado da humanidade
e da celestialidade,
caminho determinado, envergonhado
apenas com um pau erecto
apenas com um pau preto erecto
que desconsegue ser pão
mandioca então, nem falo
qual apresentação
qual lobolo
qual casamento
qual lua de mel?
Se depois de todo stress
tudo sabe a sal.
Neste arremesso tenho o merecido, sei
minhoca permaneço, mamba não.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

2011

Quando tudo parecia perdido


encontrei sentido
em Muenhe Mucuro
santuário muçulmano
mais moçambicano
que religioso
agora sinto-me naparama
nada me atrapalha
já sei que o Hussein
de Sadam
é o mesmo de Obama
e este rima com Osama

Quando tudo parecia perdido


encontrei sentido
em Muenhe Mucuro
prevejo, vejo, prevejo
um tirano por ser atirado
para bem longe...
agora vejo, prevejo, vejo.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

A bomba arrabentou

1. Em pleno Fevereiro estamos aqui no quintal de Goa.


Preparados para preencher a nossa lagoa
interior, para o agrado das lombrigas.
Ao lado um bom técnico passa às pressas,
a passa que ninguém consome some no clariar
Clariar diurno. Diurno clariar.
Amendoím vem embarcado numa peneira transportada por uma donzela acesa. Ninfeta,
presumimos! Ninfeta não cessa...

Na verdade, já viveu intensamente todos os ismos imagináveis e inimagináveis.


Aves viriam, se fosse o quarto de qualquer Outubro, mas é Fevereiro. Sem aves!
E no quarto um obtuso, de mente castrada, predisposto a fazer-se à estrada.
Na cela que dá acesso a uma lanterna acesa.
Cigarros no chão.
Isqueiro no bolso.
Cinzeiro na mesa.
Um cão,
na cadeira, querendo conversar.
Uma cadela de mini-saia
e pernas cruzadas!
Tipo rapariga do grande cruzeiro...
Ainda assim, dizem-nos que não chegamos ao inferno!

Talvez seja longe, não sabemos. Quem vai lutar?


Quem vai lutar para saber?
Felicidade também falta. Latas não há para chutar.
Chupamos o lixo que as encobre.
Cobre, prata, platina, ouro na avenida do herói.
Dois bandidos armados abatidos. Quem foram, quem foi?
Tiros à luz do dia. Jazz, blues se fechando,
acompanhando o fecho do jornal ou do evangelho.
Velhos são os pulmões.
Vai. Mais um duplo, com rodelas de limão. Limões
e muito gelo, para esfriar a mente. Esfregar as tripas.
A sangue frio idealizamos um best-seller cinematográfico,
intitulado ―Este País não é para Jovens‖...Hmmm, parece-nos pouco original.
Que tal ―Este País é para Corruptos‖? Agora melhora. Agora melhorou.

―Edjé, edjê, a bomba arrabentou,


mamã não está
papá não está

Edjé, edjê, a bomba arrabentou,


mamã não está
papá também não‖

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

2. Mas há corruptos pequenos e há os grandes, assim se definiu.


Nós acrescentamos: há corruptos anti-patriotas
e há os patriotas não idiotas.
Falemos dos primeiros: fundos e mundos, imundos.
Império de mansões, fantasmas inquilinos.
Aliás, o resultado já sabemos: mansões transformadas em esplanadas
Esplanadas de rapidinha. Esplanadas de rapidinha.
O velho guarda, coitado, já não tem o fundo de maneio,
nem o extra proveniente do desvio
do material de construção (destruição humana).
O que se podia esperar? Prospera. Espera o tempo esperto que não vem.
Vai o futuro no horizonte ardente. Cante aí, bué Buarque:

―...Cantando e sambando na lama de sapato branco, glorioso


Um grande artista tem que dar lição
Quase rodando, caindo de boca
Mas com um pouco de imaginação
Sambando na lama sem tocar o chão...‖

3. Se os olhos falassem! Se o corpo da ninfeta gritasse! Se a estrada escutasse! Se a longa


lagoa secasse! E se Goa fechasse?

―Pai Nosso que estais nos céus, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja
feita a vossa vontade...‖,

blá, blá, blá. Esquecemos a oração.


Oração que se vende no poente.
Do outro lado do passeio.
Deste lado, ostracizados, voamos sentados.
E quando as pálpebras se embriagam. Escutamos aplausos.
Já não há lados. Apenas seios ansiados,
traseiro feminino almejado, face desimportada. Basta que a porta se abra...

4. Com efeito, imaginamos que haja outros pescadores.


Há outros pecadores
saboreando apetitosos nacos de porco,
logo com aquele feijão preto,
bem defronte da mesquita!
Isshh! Cheira a ―S‖. Não a ―S‖ de suruma, mas de selvajaria.
Bem que rima com cervejaria.
―Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que fazem‖ – Cai a frase aos pingos.
E se o vento soprasse, donde viria?
Se no rio os crocodilos apaziguam os passarinhos.

5. Quem nos dera sermos homens invisíveis, talvez fossemos invencíveis.


Tal remoínho incompreendido. Sim, incompreendido.
Incompreendido porque quando a poeira assentou, menino
Bem assentada, Gimo não estava mais na terra remando contra a maré.

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Octávio também abandonou a terra do rapé


Terra das encomendas. Medalhas. Metralhadoras. Mísseis invisíveis.
Nós aqui. Envolvidos até aos dentes. Mesmo sem benesses, cá estamos pela nação...
Esta é a nossa razão.

6. Só aquela mãe sabe com quantas quecas se traz queques à mesa.


Esquerda, direita. Direita, esquerda. Gelatina. Cobardia. Vadia. Diva.
Se Anabela é poema. Luísa é poesia.
E por falar nisso falemos de Igualdade,
escrita algures na nossa Constituição.
Questionemos o prémio do Governo.
Observemos muito bem para o patrono
de cada uma das áreas.
Enxerguemos...e quando um louco
repete ―a Sul do Save, nada de novo‖
ainda nos zangamos! Então mostremos.
Mostremos quantos de origem asiática,
desta vez, foram alistados para o exército.
Mostremos quantos de origem europeia foram apresentados
nos mídia como corruptos.
Mostremos a razão da Constituição. Mostremos agora.

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Cabeça do velho

Quem diz quenguelequeze


está nesta catequeze
e de certeza me quer
reconhecer
neste bantu chão batucado
timbilado, apitado, delirado
exorcizado em paz
no círculo da hasteada Kalachi
Silêncio. Chiu! Chiu! Chiu!
Sim, assim vai meu mundo
e se realmente quiseres
falar sobre mim
não te esqueças
daqueles dias de criança
dança nyau ao ritmo de Mashonguezy
lá no centro do universo
atulelé, hé, hé, hé
atulelé, hé, hé
atulelé, hé, hé, hé
atulelé, hé, hé
dança nyau ao ritmo de Mashonguezy
lá no centro do universo
onde reina a raínha Chivangila
mais revolucionária que Che Guevara
lembre-te. Aqui a gente cresce
misturando vacinas
e não se precisa vaticinar tanto
para entender a razão da mistura
pierre cardin com as missangas da tia...
é a linhagem chá da panela
desmarginalizada no grito mozáfono. Siavuma.

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MANECAS CÂNDIDO
Manecas Cândido nasceu a 1 de Julho de 1979 em Quelimane,
Província da Zambézia. Publicou O Sentido das Metáforas (2007),
obra premiada com o Prêmio revelação FUNDAC (2005); co-
organizou a obra Memorial 25 Anos AEMO (2007), assim como as
coletâneas de novos autores: Esperança e Certeza I, II (2006 e
2008), editadas pela Associação dos Escritores Moçambicanos e Da
Astúcia à Vingança do Coelho (2009), editada pela Associação Pan-
Africana dos Escritores - Maputo.
É membro efetivo da Associação dos Escritores Moçambicanos
(AEMO), e tem poesia dispersa em jornais moçambicanos.
Atualmente é docente na Universidade Pedagógica (UP), Delegação de Nampula, e Mestrando
em Educação e Ensino de Biologia na Universidade Pedagógica - Delegação da Beira.

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Cicatriz de infância

Há vila cicatrizada no âmago.


Os destroços trazem à memória
veredas da minha infância

onde o vento num estio de voz


enumera amigos
e as fraternas cavalgadas de meninice
que, até então, a chuva não apaga
os sinais viris das longínquas
tardes de domingo

onde o entardecer
era o bater exausto das nossas veias
até o dispersar da lua.

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Manhã

O dia acre
uiva prantos de angústia
caminho pela rua à procura de túneis
deparo-me com o céu;
a viver a fome.

As melindrosas lágrimas não disfarçam


cheias de desalento, de desencanto
como uma crosta corroída pelo tédio.

Toda a dor submerge


como uma bala
nas entranhas.

E como exaurir as angústias?


Ou florescer
como manhãs de rosas?

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Hidrografia

O rio vai errante


a cheirar candura virgindade
nas tépidas cascatas do corpo.

E
nós
dormimos a ânsia
a ouvir barulho de baldes de água.

Estranhamente,
o Zambeze palmilha ternura,
a geografia do corpo.

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Contingência

A vida arde
e a água impregnada no meu coração
é ténue.

Não sufoca
a tamanha dor.

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Coqueiral da Zambézia

Minha terra é riqueza


de um mar de palmares
verde chá
reverberando lindos campos.
À noite navegamos a dança do nhambaro
até ao ébrio da nossa alegria.

Ao nascer do sol, o suor, bago do milho maduro


cultiva horizontes de mãos futuras
e em uníssono, pés descalços,
calcorreamos caminhos
que se propõem.

a meta da nossa terra


revigorando a certeza do manhã.

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Granel de Chókwé

O sol devolve ermo as senhoras


extravasadas de alegria
como flores ao rubro
ateadas as águas do Limpopo.

Regressam cantando pelos carreiros


o brotar do milho.
Prodigamente o verde anuncia:
não rebenta gangrena de fome.

A voz transvaza a terra


reacendendo a esperança.

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XXVII

Todos os dias
escuto a voz da brisa
no balbuciar suave das acácias.

Todos os dias oiço a música das folhas


que o vento transmite
ao ritmo prodigioso do batuque.

Todos os dias oiço a canção


de uma folha caída.

(in O sentido das metáforas)

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MBATE PEDRO
Mbate Pedro, nasceu em 1978 na Cidade de Maputo, capital de
Moçambique. Desde muito cedo interessou-se pela literatura, tendo, no
entanto, iniciado o seu percurso na década de 90. Participou em vários
movimentos literários surgidos na cidade de Maputo. É membro da
Associação dos Escritores Moçambicanos e da União Mundial dos
Escritores Médicos. Colabora na revista brasileira de literaturas africanas
Sarará. Publicou "O Mel Amargo" (2006) e "Minarete de Medos e Outros
Poemas" (2009). É licenciado em Medicina pela Universidade Eduardo
Mondlane

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1.

Este poema
é um disfarce,
um modo despercebido
de furar a segurança
apertadíssima
do idioma e da gramática
do teu corpo.

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80.

O fim
é um meio
de atingir
outro fim
p’ra outro meio
de conseguir
mais um fim
de mais um meio.

O Jornal do opressor
nas mãos do negro
é um meio
de mantê-lo desinformado.

Mas o jornal do opressor


no bairro da minha avó,
nas mãos da minha avó,
na casa de banho da minha avó,
é um fim poderoso
de manter até as suas partes íntimas
higienicamente informadas,
repito:
até as suas partes íntimas,
higienicamente informadas.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Aqui um poeta dinamita-se

aqui
um poema faz-se de um grito
agoirento na voragem dos dias
da inglória dos pássaros
da palavra arrombada do insulto fácil
com um búzio com uma revolta
com os mártires de mahlazine
da frustração de um beijo
entre os trôpegos amantes
da ressaca do timbauene
com o forrobodó dos roquetes
com a sacanagem de um paiol
no cu deflagrado de um vagalume

aqui
um poema nasce
de um par de cornos
na cabeça dos mochos
de uma tusa reprimida
na rua de bagamoio
da resignação da naúsea
do arroto das granadas
com a água estagnada
da inspiração estagnada
do preço do pão não estagnado
com o cuspo das formigas
com a tirania de um obus

aqui um poeta dinamita-se

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

No cu dos tiranos enfatados

uns coleccionam
dívidas mágoas ressacas
pernas estropiadas jardins
de osso nas frontes
dores de cotovelo às carradas
armários com dores implumes
toneladas de livros medíocres
ciúmes de uma vírgula ou até
a naúsea do vómito

outros coleccionam
meia dúzia de garinas
crisântemos margaridas toupeiras
no ânus baboseiras merdas
medos porradas traições
agressões o sexo a despropósito álgida
a noite de um putedo sem chama

há os que coleccionam a madrugada


entre as pernas arqueadas abrigos
no chão da memória esconderijos
ao relento da alma a ausência
de um beijo melancolias estilhaços
e há também quem coleccione disfarces
no torpor da mentira

amada
quem colecciona o pudor do nu
no cu dos tiranos enfatados?

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Minarete de medos

assomei-me do seu delicado corpo


como quem de madrugada
s’abeira da casa da vizinha
– dá licenca! dá licenca! – sussurei-lhe ao ouvido
mordiscando a ténue cartilagem
ela fez um minkulungwana e embrenhou-se no meu corpo
eu chorava copiosamente
olhou fixamente para mim e perguntou-me:
– por que chorais meu poeta? quais são os teus medos?
– zelendisse, os meus medos são os teus medos...
– respondi pressuroso - a geografia dos meus medos
é limitada (em toda a sua extensão)
pela angústia do meu povo - acrescentei
tenho medo por exemplo de amanhã despertar
com os dedos das mãos amputados
sem que antes te escreva um último poema
tenho medo ainda
de que o cirurgião suture a minha boca
nas vésperas do nosso matrimónio
tenho medo de um desses dias
abrir a necrologia do jornal e ver
todos os meus leitores mortos
ou os meus poetas predilectos amortalhados
numa vala comum abarrotada de incultos
de que os meus poemas sejam roubados e vendidos
à bagatela na candonga dos dumbas
também tenho medo
tenho medo que de madrugada coloquem joelhos
na minha inexorável consciência
para me arrastarem aos seus pés
assim como também tenho medo
que coloquem sovacos nos meus neurónios
para os distrairem em cócegas
na excitação das noites tenho medo
de dizer adeus quando te vejo partir
para o regaço das minhas imponderáveis coxas
no rumor do escuro tenho medo
de descobrir ao despires-te
que afinal és um poema por acabar
também tenho medo que os nossos filhos
nasçam com rabo de poeta ou que
um paiol de palavras rebente dentro da minha poesia
tenho medo que no próximo censo
me registem como um refugiado
acampado no arraial da palavra
uma bela manhã do primeiro dia do mês de abril

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

tenho medo que me digam muito sinceramente


que malhazine nunca existiu
a montante do sangue que corre
nas veias do meu povo
tenho medo que edifiquem uma mphanda nkuwa
ou que floresçam nenúfares
no pântano das minhas lágrimas
ou então que uma nuvem vermelha
vomite perdigotos de sangue
no meu belo rosto
tenho medo que hoje os meus
efémeros adversários na linha de combate
sejam surdos
como também tenho medo
que na sua prosápia ditatorial
me impeçam de ter medo (deles)
oh meu amor
como me amedronto
à ideia de que a kalash a chorar
revele os nomes dos meus assassinos
e tenho medo de que uma bela tarde de domingo
quem te venha anunciar a minha morte
seja o meu companheiro de luta
a quem mutilaram as cordas vocais
tenho medo que de tanto passar o tempo
a desbravar a terra sedenta do teu corpo
não me reste um bocadinho de tempo para morrer
assim como receio que afoguem
as minhas glândulas lacrimais
para que não possa chorar
o inteiro catálogo de angústias do Sangare
tenho medo enfim que antes que me dêem
o definitivo tiro nas têmporas
me ensurdeçam e em seguida vociferem
no meu ouvido esquerdo as últimas palavras:
mbate morremos de medo de ti!
por fim ela desembrenhou-se e beijou-me
o coracão das coxas em seguida despiu-se
e no meu ouvido esquerdo disse áfona:
– não tenhas medo meu amor!
os teus medos são os meus medos

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Deserção poética

já não cai a poesia nos livros


como o jambalau no teu corpo
meu amor
trepamos a árvore
na faina da palavra madura
e cresce-nos entre os dedos
o hálito verde das letras

na escuridão da leitura
quem despirá o leitor?

às vezes acontece um poeta


trepar o chão
no encalço da palavra insurrecta
soterrada com os livros adormecida

quem beijará a palavra vagabunda


no bolso dos infaustos?

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Lianas do medo

não deixes que a liana do medo


te entardeça os sonhos
urge que te dispas e caminhes nua
trajando somente tangas de argúcia
e fiapos de astúcia
faz-te ao medo
mulher
como a nuvem à trovoada
faz-te aos homens merdosos
como a reatada memória do teu belo
rosto se atira às suas incipientes rugas

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RINKEL
Rinkel é o pseudónimo de Márcia dos Santos. Moçambicana,
nasceu no dia 10 de Maio de 1977. Reside em Maputo, mas as suas
raízes são da província de Inhambane. É funcionária da Autoridade
Tributária de Moçambique e Mestrada em Linguística Aplicada
pela Universidade de Queensland, Austrália. Tem dois livros de
poesia publicados ―Almas Gémeas‖ de 1998 e ―Revelações‖ de
2006, ambos pela Associação dos Escritores Moçambicanos.

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Maresia

a maresia
não sabia
que nela nadaria
e que nela ficar queria

eu queria e ela não sabia


dela eu não sairia

por mim
nela ficaria
e nunca sairia

a maresia
em sua correria
na orla me encontraria

e quem quiser se ria


pois eu teimaria
em uma cantoria

na maresia
eu nela ficaria
e ela nunca saberia
que foi obra de feitiçaria

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Não contes a ninguém

não contes dos meus encantos


nem das vezes que eu caio em prantos

não contes dos meus desejos e da minha estonteante curva


nem das nossas longas noites regadas a champanhe e uva

não contes das noites que finjo de donzela


nem daquelas que sou fogosa e bela

não contes das algemas que usas para me dominar


e eu não contarei o que faço para te ouvir gritar

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Sinto-me livre

Final de Primavera
Uma tarde de sol

Ao atravessar a estrada
Desvio-me dos carros

Lá vou descendo as escadas


Em direcção ao mar

Piso os mesmo degraus


Que tantas outras pessoas já pisaram

Tropeço e continuo o caminho….

Ponho os pés na areia da praia


Respiro profundamente
E sinto-me livre

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O cúmplice

No fervor das palavras gemidas


O calor dos corpos suados

O silêncio como cúmplice....

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Ares paradisíacos

Mar
Areia
Sol

E palmeiras ondulantes na brisa marítima


Queixam-se das areias que fogem das suas raízes
Águas salgadas que esbofeteiam seus pés.

Num paraíso perdido


As palmeiras curvam-se para o mar
Respeitam a sua força, seu corpo húmido, molhado.

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Minha filhinha

Outubro trouxe consigo


O calor da primavera africana
As chuvas amenas ao final da tarde
E o teu pequeno abraço
"Xiwanana xanga"

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Chuva no campo

A chuva cai
E o pingar se ouve
Nos telhados de colmo
Cujo barulho embala
Idodos e crianças

As mulheres pisam na areia molhada


Esperançadas
Pelas maçarocas que vão colher
Pelo amendoim que irão pilar

A chuva cai
E as esperanças renascem

As mulheres agora molhadas


Banhadas pelas gotas
Caídas do céu
Saboreiam as lágrimas de alegria

E as palhotas se lavam da poeira acumulada


Tomam um banho divino
Com a chuva que cai

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

ROGÉRIO MANJATE
Rogério Manjate nasceu em Abril de 1972, em Maputo, no bairro da
Malanga, onde cresceu e vive.

É ator de teatro, no grupo de Teatro Mutumbela Gogo, desde 1992;


sendo que em 91, começou no grupo Mbeu, e trabalhou em ambos
grupos até 1995. Além disso, é estudante de Agronomia na UEM.

Em 2001 publicou o livro de contos »Amor Silvestre« – Ed. Ndjira


(Prêmio Literário TDM 2001 – Conto) e em 2000 fez a seleção dos
textos do livro, »Colectânea Breve de Literatura Moçambicana« – Ed. Projecto Identidades e
Gesto Cooperativa Cultural – Porto. Em breve publicará seu primeiro livro infanto-juvenil: »Casa
em Flor« (Prêmio de Literatura para Crianças do FBLP 2002).

É membro da AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos) e tem colaborado em jornais e


revistas com contos e poemas.

Como jornalista é o responsável e editor da Revista Literária Maderazinco, na Internet —


www.maderazinco.tropical.co.mz

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Sonhos Maduros
Em vez de juízo final a mim me preocupa
o sonho final
João Cabral de Melo Neto

Desde que fugi do coração


onde sempre me escondi
durmo na fruteira
na esperança de sonhos maduros.

Eu ali na fruteira
em cima da mesa – como direi – a mesma
mesa onde a fome do mundo gira
e eu em cima dela vestido de noite:
dois olhos abertos a estrelarem a fruteira de vidro
sobre uma toalha branca bordada de florinhas vermelhas
azuis e verdes a ponto cruz e nódoas de mathapa e vinho

e a fazer o centro da mesa mais centro


da toalha com cheiro a lavado sobressai uma flor vermelha e azul com o gineceu violado pelos
ratos e repete-me incansavelmente aos gritos a sua trágica história
......................................................
ao meu lado a banana dorme tranquilamente dentro das maçãs e ressona paralém do medo
escuro

e nisso cheira a goiabas vermelhas


(o escuro cheira a goiabas
por entre a expansão do medo)
......................................................
e eis que chega a faca
fareja paralém do cheiro a goiabas vermelhas
rompe o medo escuro e passa
de arrepio a arrepio do silêncio se move
ah a faca! sinto-a, fria como gelo

e eu ali
fruta calada sentada na soleira de
uma noite dentro de outra noite de olhos abertos sobre os meus nem adivinho os ácidos e os
açúcares que laboram a química do sonho, o mesmo que torna redondos a fruta e o mundo!
Ah, a faca!....................................................
atalaia-me por dentro e por fora dessa noite
onde apodreço de olhos abertos
gira sobre o meu medo:
serrilha a minha esperança

o tempo que me resta olha para o relógio na parede:


envergonham-se as horas:
despromove-se o futuro à lembrança.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Sem vontade nenhuma de sentar-se


a ansiedade faz curvas e borbulhas na espera

mas as minhas mãos estão vazias


coisas vadias anunciam-se-me
padeço do desencontro dos gestos
e me assalta o medo de ficar sem posição
(mesmo para a fotografia)

não é a ansiedade
que a mim não incomoda
senão deitava fora a expectativa
esta maquineta sem ponteiros que
não se deve enferrujar cá dentro:
quero-me flor na memória

espero sentado dentro da minha


própria sombra e redondeza:
é perene o meu compromisso com a esperança:
imenso é o verde que faz um coração.
– como direi? – por exemplo,
o poeta olha o passarinho
por dentro de seu canto:
era uma vez
um passarinho que tanto cantou
até inventar uma floresta
quando o poeta chegou
ao meio da floresta
tinha suor, flores, frutos
e grãos de sol no coração
de tanto olhar o passarinho
por dentro de seu canto.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Eu vestido de homem na paisagem

Espalho a lua na palhota


amarro o vento na canção
deito wuputsu
mato cabrito mais galinha
rezo mil avós nossos
phàhlo teu nome Mandlate

Eu estava em casa debaixo


da minha copa de lembranças
à espera conforme árvore
aguarda vez na paisagem.

A casa – como direi –


uma casa raiz do céu
lá se entende com as chuvas
de janeiro e fevereiro
enquanto dorme incólume
sob o manto da cacimba
de julho e agosto
seus sonhos adivinham o primeiro raio de sol
que atravessa a treva da madrugada
e borbulham a alegria no telhado de zinco
donde bebe o primeiro pássaro.

Oh casa
as estórias que somos
as canções silvestres que se sucedem
nas bocas igualmente silvestres
as danças que nos habitam
são amor do mesmo tambor
e convocam a lua das noites magníficas:
amarramos capulanas
e sentamo-nos no chão em flor
abraçados à mesma fogueira
que destila as velhas karinganas:
pequenas sementes rebentam no coração
a pureza.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Eu, eu era a casa semeada no alto da paisagem


em cujas paredes um silêncio abrupto
compõe a memória:
quatro cadeiras bem comportadas
enfiadas em baixo da mesa
cansadas da mesa que chora jantares
os bordados de flores na toalha sobre a mesa
insistindo em serem flores ainda que a toalha
seja esgarçada e com nódoas
garfos e facas riscando os pratos e nisso
o tempo suspenso na sede olá moringa!
a moringa pronta e fora do naperon
porém os copos na cristaleira
só pedem vinho com azeitonas
nos intervalos dos rastos
da voz da minha mãe na cozinha ralhando
com carapaus e repolhos
mandioca e farinha de milho
antes que o meu pai:
quero comer quero dormir!
num sopro que apaga os sonhos dela
de batata frita e guisado de frango na panela
mas sem extinguir os milagres
que lhe brotam das mãos:
à mesa, rosas para a família inteira jantar:
rosas colhidas na sua capulana que sonha rosas.

Quem às mãos da mamana Celina olha


não vê os mistérios:
à chaleira se olha por dentro
fora impera o feitiço preto da lenha.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Na minha copa de lembranças


à espera conforme árvore
eu, eu casa em flor
papel carvão e água inicial para poema
mas antes do crepúsculo
entrou janela adentro a borracha
e surpreendeu-me a treva do esquecimento:

a manhã ficou pendurada no horizonte sem estilo


fazconta deus de pernas abertas:
a paisagem era apenas essa janela
escancarada para dentro do destino parado
desistindo de ser futuro; e os caminhos
do poema recolheram-se na hesitação:
dei comigo
sentado atrás de mim próprio a violar rosas
quando o que eu queria mesmo
era deixar o dia possuir-me inteiro
dentro das suas rutilantes manhãs e tardes
de crepúsculos vermelhos paralém
do mistério da doçura da fruta madura.

Pela cabeça passou-me o repente das coisas


e tive a mais funda certeza dos limites da alegria.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

(Dos limites da alegria)

Eu, vestido de homem na paisagem:


poeira estrada fim e luz:
estou inutilmente
diante do espelho
que bebeu o sol todo
e explica ao silêncio
na minha face baldia
que serei apenas sombra
torta que o chão rejeitará
na sua flor de areia vermelha.

*
As palavras que me apetecem ser
na língua em que sou poema
não fazem milagres:
se o passado é bastante
à escuridão não basta um pirilampo!

a língua lambe a paisagem para


ver o futuro que se reclina no espelho:
o palimpsesto refulge tremendamente:
a hesitação e o esquecimento
espreitam-me para dentro da cabeça
e desorganizam-me o jardim
(o medo precipita-se para dentro do sonho)

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Como lágrima que sai à busca da sua dor


ensaio a travessia do espelho
como quem diz ―foda-se, Sésamo!‖:
às portas do abismo
o sangue luz e salta às golfadas:
iishii! a vertigem rói o futuro
sentadamente cansado
e o vento entra e habitua-se:

no meio do redemoinho de reflexos


vuslumbro uma multidão de rostos
e o meu chapéu apenas
com o eco da minha cabeça
chama-me gritando o meu nome
tamanho assombro fere-me os olhos:
o poema tem o silêncio preso
na garganta degolada
e a treva esguicha.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Da ferida sangrenta do espelho


irrompe a morte
e sem reflexos senta-se nas dobras da noite:
olha-me por onde os relâmpagos de pânico
dilaceram o céu da minha cabeça
o sono deita raízes tremendas pelos olhos
se durmo o sonho transmuta as flores da memória
em noites profundamente:

rostos, rostos e rostos


rostos antigos que os vejo meus,
meu próprio rosto transformado
nas suas caretas:
terríveis sorrisos e gargalhadas
e prantos dentro do meu rosto
perdido no reflexo de um outro
que não conheço e me torce o nariz
sem que o terror multiplicado nos espelhos
o impeça

quando eu
só me queria flor na memória.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Dia e noite
a morte abre uma palavra nova
nas raízes da multidão para respirar
uma respiração tremenda
cujo hálito embacia o céu da tarde na Malanga

gestos avariados brotam a cada palavra nova


o tempo vaza do espaço e a esperança desiste:
das paredes de silêncio da casa em flor
brota uma enxurrada de mortos e esbarra
no espelho diante de outro espelho:

da transfusão de imagens
o relâmpago dilacera a treva:
um grito dentro de outro grito
e eles morrem outra vez agarrados à ausência
um outro tempo dentro do mesmo tempo
que não faz com que seja no
vo, nem velho, nem o mesmo.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

os espelhos revelam a morte:


noites inteiras engolfadas
dentro de um pirilampo
derramam na paisagem

o esquecimento tropeça na luz dos milagres


e traveste deus em poema:
os mortos em chamas dançam sem
levantar os pés de um medo que os chora.

atordoado
o passado foge milímetro a milímetro
qual cometa com uma labareda no rabo
planando torto sobre os telhados de zinco.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Céu da tarde na Malanga

Contanto que viva de janelas abertas


para que me avive a luz
e de livros abertos
para que aconteça o amor
quando o passado se move
abre a ferida abrupta da emoção:

o céu da tarde na Malanga espreita


de dentro do bolso do calção caqui azul onde o guardo à mistura com estrelinhas de sal para as
mangas verdes e dois berlindes para desafiar o Manuelito:
depara-se com a nuvem do meu queixume
e o chão entrevê tudo o resto:

ti’Abdul dando de comer aos xiricos na gaiola e querendo na mão outros dois saltitando e
trinando nos galhos da mafurreira que não saltita não trina mas voa na vontade de pássaro que se
anuncia nos quadris das meninas mulheres com latas e bilhas de água na cabeça porque o vento
festeja na roda das saias
as meninas mulheres nem em sonhos sabem dos xiricos na mão vazia do ti’Abdul dois olhos
voando
o olho não sabe pegar no que vê nem mesmo o dos meninos espreitando pelas frestas do caniço
e buracos do zinco às mulheres que tomam banho e baixam a mesma mão da carícia e lavram os
tufos enormes entre as pernas sem que os meninos adivinhem o mundo que lá começa e lá se
perde.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Do mundo que lá começa e se perde não sabem


os xiricos que enfiaram o ti’Abdul na gaiola
nem os pombos do Mateteu nos telhados de zinco
muito menos a mbila-mbilana debicando a papaia

sequer adivinham para que serve a flor vermelha no par de coxas da Teresana no tanque atrás da
loja do Muchina que lhe paga com um quilo de arroz e feijão e litro de óleo
atrás da cantina no tanque

mas os meninos que espreitam pelas frestas de caniço e buracos de zinco castanho de tão podre
sabem com certeza para que serve o quilo de arroz e feijão e litro de óleo
não no tanque
no estômago
porque onde era fome
nasceu uma flor.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

dentro do céu da tarde na Malanga


o chão brinca de pensar
e quer ser pássaro:
no espanto do dedo
que o aponta aéreo
enovela-se a eternidade:
o céu fica tonto
a paisagem voa torta

e nisso vêm em fila as formigas


irritadas com a brincadeira do chão
e arrastam-lhe os pensamentos
por onde devia ser um buraco:
tudo se despenha:

a paisagem despeja-se do céu


o céu resvala da vertigem
o chão adia-se no pássaro
o pássaro despenca da eternidade
a eternidade apodrece na tontura
da reza da beata na capela

e o dedo desaponta-se!

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(ps para um céu no bolso)

É só não olhar com força para o princípio das coisas


por exemplo o mar
ele tem por hábito o além
se olhas com força ao mar
aleijas o azul e sangra o voo das gaivotas!
o que farás com o vento que morde a tarde?
em que ovo guardarás a sua vertigem?

dói o horizonte quando se evade dos olhos

e nisso, do buraco dos teus olhos


saem em fila as formigas
irritadas com a falta de humor
e arrastam-te a vertigem
para fora da paisagem da brincadeira

e tudo se despenha para o mundo


que lá começa e se perde.

(ps para Teresena)

quando
o vento está
de coração aberto
voo antigos
desenhados no teu corpo
germinam fogo.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

De mim ao gesto: além

(...) e desde aí eu sofro, ignorante, ignorante da minha fatalidade; ignorante se sou o julgado ou o cúmplice, de não saber do
que sofro, sofro de não saber qual é a ferida que você me faz e por onde escorre o meu sangue.
Bernard-Marie Koltès

(Vida diversa)

Minha vida
diversa é redonda
não carece de virar
todo lado é destino

um minuto passa
outro olha
outro ainda sorri
porém no canto
um certo minuto
parado me espera
como olho de boi
atrás da carroça.

E desde aí eu sofro...

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

O seu futuro já! deixe de ser longe...


sugeriu-me a vereda
mas preveniu-me a lesma:
o futuro morre para trás...

vagabundo
os meus pensamentos
fazem-se nos meus pés:
sou o futuro que o rasto in-augura:
caminho na linha do horizonte
por onde um deus torto
escreverá certo
a minha vida incerta
repleta de paisagens

com a minha mão vazia


agarro a linha do horizonte
e nos olhos nela estendidos entro:
espreito um pouco melhor o mundo:
sente-se o cheiro verde do mato
onde não há mato há gente
não há flores e borboletas no meio do caminho
há pedras na gente que flori
nas capulanas com flores e borboletas
há pedras de gente fora das capulanas
que dançam nos estendais.

Eu trago longas geografias nos pés:


entro na matéria dos sonhos para descansar
sonho para dentro da memória
de homens mulheres e objectos
e vaticino-lhes alegrias ferozes
embora ao lado da pureza
a fome.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

(vida inversa)

da minha vida inversa


todo lado é destino

céu?
sou uma pedra em flor
tenho o céu na ponta do dedo
eu existo em silêncio
na treva da palavra
na garganta do poeta
à espera da centelha

no instante da explosão azul


passam voando os meus mortos cheios de céu
para o espanto do chão
tonto de pássaros

chão dentro da vertigem


sou eu passando, somos nós
os mortos em flor passando
céu dentro de outro céu
e o arco-íris imitando o espanto nos olhos

porque os dois olhos arco-riscam o céu


sem entenderem o espectáculo:
duas a duas
as mãos amarram o espanto na reza
na esperança de um milagre ou da apocalipse

céu...
tenho-o na ponta do dedo
e a mim não falta chão:
minha vida redonda:
todo destino!

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Epílogo para as fantasias do poeta na fruteira com grãos de sol no coração de tanto olhar
o passarinho que tanto cantou até inventá-lo na esperança de sonhos maduros:

Quando no peito do poeta


o passarinho cansado do seu canto
pressente a vertigem do esquecimento
a esperança vira saudade

as luzes do poema sangram:


no breu a entrelinha chora
em línguas estrangeiras palavras infinitas

da cacofonia a palavra fogo


se materializa
o canto do passarinho arde:
das cinzas nasce uma flor
de onde se abre um novo passarinho
de cujo canto tudo se reinventa.

O poeta acorda no meio do ninho


sem que a faca desconfie
que quando a manhã nasce
é ela que gorjeia:
num momento de desassossego
olha a pureza no coração do poeta:
um sonho maduro.

(O outro quando dormiu numa fruteira sonhou fome)

O resto é a luz (sol)


que guarda no orvalho
o segredo da conquista do fogo
....................................................
a casa – como vês – sugada pelo céu
sobrevoa a tarde já torta nos telhados da Malanga
enquanto isso
as suas raízes tremendas penetram o futuro
onde vestido de homem aguardo vez na paisagem

e ali onde eu era uma sombra torta


nasce um boi alado à frente da carroça!

Transmuto-me em flor na memória.

FIM

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SANGARE OKAPI
Bacharel em Ensino de Português. Membro efetivo e de
direção da Associação dos Escritores Moçambicanos. Poeta.
Publicou, em 2005, ―Inventário de Angústias ou Apoetose do
Nada‖ e em 2007 ―Mesmos Barcos ou Poemas de Revisitação
do Corpo‖. Está representado na revista brasileira ―Poesia
Sempre‖ (2007). Co-produziu e encenou a peça ―Pereto de
Onti‖, distinguida com mérito no Festival Regional de Teatro
Amador Zona Sul, organizado pela Casa da Cultura do Alto-
Maé (1996). Em 2007, participou, em representação de
Moçambique, no XII Festival de Poesia de Havana, dedicado
a África e Caraíbas. Prêmio Revelação de Poesia AEMO/ICA
(2004) e Menção Honrosa do Prêmio Revelação Rui de
Noronha/FUNDAC (2002).
Foto de Aurélio Furdela.

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Bêbado de sal e sol. Absorto, como uma vela amarrada ao vento

Bêbado de sal e sol. Absorto, como uma vela amarrada ao vento,


tropeço nos cacos rubis que das índias sobram no chão e
vazio de mar e búzios na garganta
alguma canção mo

to
na reinvento
de longe. Peregrino das redes os barcos contemplo,

entontecido pelo cheiro nauseabundo do peixe esfumado,


que se levanta pelo litoral.

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Vontade de mar na língua

Vontade de mar na língua,


argila,
ilha...

Nu e vazio regresso pelo túnel da memória


(alguma rede ou algum anzol do chão cavado)! Que recordações
para o
futuro!...
Ancorado na distância, agora acredito que só o tempo é Allah,
o grande...
Oh! Aqui não há cais que aporte este caos de viver sempre
na nostalgia!

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Fortaleza
Para G. S.

Tijolo cremado
de sol

vem o vento
com sal

ao mar
dizer baixinho
poesia,

concha que na noite


sentinela jaz
com baluartes,
ameaçando o luar.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Língua: ilha ou corpo?


Para V. L. com o mar.

A língua
é o pão que fermento
os dias todos.

Com ela (re)invento,


meço outros ângulos
do sentimento.

Sílaba
a sílaba.

rebusco outro sentimento,


alguma coisa
adjacente
e a emoção que não míngua,

por isso, nela.

Eis o que sou: ilha


ou corpo cercado
de gente
por todos os lados.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Mossuril
mínima elegia ao R. K.

Fechada
toda de agrura,

alguma
amargura
em si trancada,

todo o amor
e mar

é sal e lágrima
no poema.

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Vulva uva
Ao Guita Jr.
à pretexto de Vilankhulo by Night

nenhum som me é oco.

Todo o fonema
nele contido

sabe a coco,
lanho, que no escroto se
faz sura.

Ó, minha vulva uva,


no ângulo da noite!

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Cardume de beijos

Teu corpo tem litoral


e mangal.

A brisa, que
da boca escapa
alguma linhagem
marinha
e
oral, me devolve
o cardume de beijos.

102
Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Não sei que manifesta sensação se me apodera, agora

Não sei que manifesta sensação se me apodera, agora. Falta o fogo que queima. O lume que
aquece. O calor. Contudo, gosto desta forma natural da água à nossa volta, ver crescer até tarde.
De outra forma, não poderia viver. Por isso, reinvento-te no meu poema como em Gizé, o
antílope na argila. E não me canso. Repito, apenas: esquece o tempo. O tempo. A razão. Apaga a
cicatriz na epiderme e um escorpião com os dentes esmaga. Leva na boca, ensangüentada, uma
alga verde, verde o sonho da criança que não sonhou para viver. Como um barco, sem porto,
eriça sensível vela do corpo e, frágil, o coração nos sirva de bússola:

os remos dispensa,
temos as mãos
para a navegação.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

TÂNIA TOMÉ
Tânia Tomé (www.taniatome.com), de 29 anos é de Moçambique,
é cantora, compositora, poetisa, declamadora e apresentadora de
espectáculos e televisão. Licenciada em Economia, e pós-graduada
em Auditoria e Controle Gestão, exerce atualmente a sua função de
chefe de crédito e mitigação de riscos em instituição financeira.
Produziu e realizou o primeiro DVD de poesia em Moçambique.
Criou e fundou o conceito e movimento denominado Showesia-
espectáculo de poesia (www.showesia.com)
É presidente da Associação Showesia com objetivos culturais e de
caráter sócio-humanitário, e diretora do Festival Internacional
Showesia.
Representou Moçambique e os Países de Expressão Portuguesa no
Festival Internacional Poetry Africa em 2009, Festival Cup Of
Cultures 2010 (Alemanha Berlin), Festival SADC (Botwana),
Festival Medellin (Colômbia), entre outros variados festivais.
Conta já com vários prêmios internacionais, com destaque para Prêmio Acadêmico da Fundação
Mário Soares (presidente de Portugal), Prêmio Festival da Canção (Porto, Portugal), Prêmio
Soundcity Music Award (África), Prêmio de Música da Organização Mundial de Saúde, Prêmio
de Poesia Millenium Bim.
Lançou em Maio de 2010 em Moçambique seu livro de poesia ―Agarra-me o Sol por Trás‖, que é
uma das referências bibliográficas da Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Finais de 2010 a editora brasileira Escrituras lançou o livro ―Agarra-me
o Sol por trás (e outros escritos & melodias)‖ com prefácio do Brasileiro Floriano Martins e
pintura de Eduardo Eloy.
Faz parte da Antologia World Poetry Almanac 2009 (com 190 poetas do mundo oriundos de 100
países) representando Moçambique e os Palop, e faz parte da Antologia THE BILINGUAL
ANTHOLOGY ON AFRICAN POETRY EM CHINES, lançada em Shangai, China.
Participa do primeiro ano de comemoração de Celebração da Língua e Cultura Portuguesa da
CPLP em Moçambique, ao lado de Mia Couto e Calane da Silva.
É membro da Associação dos Escritores Moçambicanos, da Associação dos Músicos
Moçambicanos, da Associação dos Poetas del Mundo e membro correspondente da Academia
Rio-Grandina de Letras do Brasil.

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Sonhamando

No osso das palavras


tem loucos
multiplicando as janelas
E eu engoli um piano
E dentro de mim cantam lírios
E a aurora borbulha violenta
E espalha-se pelos meus nervos
Ai que sabor doce amargo
tão estranho,
Ahyoeh!

Digito inteiro o som das rosas


e onde sou vermelha
uma asa cede-me a loucura
e a noite me engole nesse desespero alucinante
amplio-me
sou última gota no teu corpo de vinho
Ahyoeh!

E quantas bocas me pertencem?


Quantos rios me atravessam? Quantos olhos navego?
E onde estou eu, nas partes todas de mim?
E com qual delas te amo?
No revérbero da guitarra de Baden Powel?
E quantas vezes te amo na metade de mim?
E quantas vezes te bebi
neste poema que ainda não escrevi?
Ahyoeh!

Oh amor engoli-te um piano


e nasceu-me uma aurora
bem na rosácea deste poema
Exactamente aqui, nesta sílaba,
agorinha mesmo, onde suo enluarada
um saxofone prende-se à minha garganta
Ahyoeh!

Respiro Coltrane na minha cama


Nua e sem pétalas, nua
de mim, ou de nós, amor,
diz-me onde cabem os ossos das palavras que te dou?
Onde cabem as duas corcundas de mel
que me descubro
nos teus olhos,
nas tuas mãos que me embriagam
do cóccix ao céu?
Onde cabem amor?
Onde cabem?
Onde?
Ahyoeh!

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Showesia - poema vivo

Queda-se o corpo neste poema


Uma entrega, entrega-se toda
com um desígnio imenso da semente na flor
despindo os versos um a um no centro deste poema

E onde o som nasce, cresce uma palavra devorando lentamente


as metáforas num gesto iniciado de luz e vida
Existe um tortuoso labirinto por entre as sílabas cheio de lustre
por onde brotam os rios e os lábios no mesmo momento de partida

Amá-las bem depressa, bem devagarinho deve ser o caminho


E a pontuação se eleva na subtileza dos versos,
da métrica, da rima, no âmago do silêncio
E há um desejo insano de desfigurar a branca página,
Com cor do olhar que percorre intenso para o outro lado do espelho
onde o mundo acontece sua estrela bailante

E dentro das palavras há melodia,


dependurando-se sobre as arestas do verso
e dançando os murmúrios constantes do voo das aves

E o poema ganha rosto:


uma árvore cheia de cabelos ao vento como teias da aranha,
onde nos pés das raízes habitam os sarcófagos diversos no húmus da loucura
E onde as mãos de asas são janelas,
por onde as pupilas escancaram o mundo entre os dedos

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Selvame

Estrelas no chão
deitadas de ventre

Rio incestuoso
onde a noite
tem caroço

Incêndios

Não me salves,
selva-me!

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Rio

Me ancoraste
exactamente aqui
onde te rio.

Ri comigo
meu amor,

como se amplia
o cais.

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Abismo sol adentro

Agarra-me
o sol
por trás.

Escuta no vento
a tua mão
secreta.

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Húmus

Por
sobre
a paisagem
macua da infância
um beijo vagaroso
encaracola a memória.

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Meu Moçambique

Minha África suburbana.


Eu sei-me Moçambique,
cisterna no pecúlio dos deuses.
Um Zambeze inteiro escala a língua
escorre-me pelas pernas
ramifica nos canhoneiros,
laça os peixes inquietos nas sementes
engolfa-se nos mpipis bêbados nas timbilas.
Eu sei-me Moçambique,
no cume das árvores, na sede incontinente
da minha falange, do Rovuma ao Incomati,
no xigubo terrestre dos pés descalços
e em todos os tambores que surdem
das mãos coloridas nos braços em chaga.

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Revista África e Africanidades - Ano IV - n. 14 – Agosto 2011 – ISSN 1983-2354

Entrevista: Domi Chirongo

Ricardo Riso – O que é a poesia para você?

Domi Chirongo – Hoje ocorre-me dizer que poesia é o diálogo mais íntimo traduzido na
palavra. É estética, mas também temática. É arte do coração que transcende a razão. É ascensão
para o estágio da liberdade. É o mais erudito desafio a morte. Acho que é isso.

RR – Como se dá a criação poética em você?

Domi Chirongo – A criação poética nasce em mim a partir das vivências que vou tendo no
quotidiano, associado a alguns momentos marcantes das histórias que leio ou oiço dos outros,
principalmente dos habitantes do meu meio circundante. Na verdade, acho que ela brota
naturalmente e me obriga a registá-la.

RR – Como foi o seu primeiro contato com a literatura?

Domi Chirongo – Foi através do canto. Em menino o meu desejo foi sempre escrever letras que
fossem entoadas, cantadas e actuassem no povo ao qual estava (e estou) inserido. Como o passar
do tempo comecei a ser confrontado com outras realidades e quando dei por mim já estava nas
leituras e na poesia! Portanto, respondendo directamente a sua pergunta, diria que o meu
primeiro contacto foi harmonioso, ritmado e melódico. E é por isso que ainda estou na poesia e
espero estar para sempre.

RR – Quais escritores influenciaram a sua formação e como esses escritores o motivaram a escrever?

Domi Chirongo – Há tantos. Neste momento lembro-me, por exemplo, de Langston Hughes,
Claude Mckay, Alice Walker, Maya Angelou, Paul Laurence Dunbar, Léopold Sédar Senghor,
Aimé Césaire, Léon Damas, Pablo Neruda, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa,
T.S. Eliot, Victor Hugo, etc. Esses escritores motivaram-me a escrever, pois a dado passo
comecei a notar a falta de qualquer coisa. Um certo vazio. Não sei bem qual, mas me achava
escolhido para preencher esse vazio. Penso que isso foi decisivo e crucial para me incentivar a
continuar a escrever.

RR – Como é a relação da sua geração com as gerações de escritores anteriores, como Charrua, assim como nomes
históricos que participaram do processo de independência do país?

Domi Chirongo – A relação é boa e salutar. Comungamos os mesmos espaços literários e há


respeito e consideração. E mais, alguns de nós somos literalmente filhos dessas figuras históricas
que participaram do processo da independência de Moçambique. Se há brigas? Sim, às vezes há,
mas domésticas. De família literária moçambicana.

RR – Como o senhor percebe o panorama literário moçambicano contemporâneo, considerando novos aspectos
estético-formais e inovações temáticas em diálogo ou em confronto com a tradição literária do país, aqui me referindo
a nomes como José Craveirinha, Rui Knopfli, Mia Couto, Luís Carlos Patraquim e Eduardo White?

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Domi Chirongo – O panorama literário moçambicano contemporâneo está a acontecer com


maior riqueza em termos estético-formais, pois verifica-se maior versatilidade nesse âmbito, e o
mesmo sucede na temática. Em outras palavras, hoje encontramos escritores que aceitam e
dialogam com a tradição literária, outros olham para ela e rejeitam-na e há ainda os que
simplesmente a ignoram! Interessante este tempo de Moçambique actual! Contudo, tenho a
percepção que a poesia performativa tem maior domínio no espaço moçambicano, evidenciando
temas nas áreas de direitos humanos, democracia, paz, amor, luta, luto, justiça, nacionalismo,
entre outros.

RR – Hoje é mais fácil fazer literatura em Moçambique? Como o senhor percebe o mercado editorial e a formação
de um público-leitor?

Domi Chirongo – Acho ser mais difícil! Hoje o custo de vida está elevadíssimo para muitos e
poucos têm acesso a recursos. E esses poucos, por sinal alfabetizados, têm muito pouco interesse
pela literatura por várias razões. Uma delas prende-se com a ideia segundo a qual "a literatura não
dá dinheiro"!

Dai termos um mercado editorial afectado e fragilizado, comparativamente a outros países.

Em consequência, é quase heresia falar em público-leitor em Moçambique! Há instantes em que


tenho a sensação de haver mais escritores que leitores da literatura moçambicana. A sério.

RR – Como o senhor sente a relação entre os países de língua portuguesa, tanto no plano de política cultural entre
os governos quanto no plano literário por parte dos escritores e pesquisadores?

Domi Chirongo – Quanto à política cultural dos países de língua oficial portuguesa, se há
alguma, não se entende e não se sente. Entretanto, a relação no plano literário por parte dos
escritores e pesquisadores é boa, mas poderia ser melhor se houvesse mais apoios de entidades
competentes.

RR – Para finalizar, uma mensagem para o público brasileiro e espaço livre para suas considerações finais.

Domi Chirongo – Para finalizar gostaria de deixar o meu apreço e Khanimambo ao povo
brasileiro pelo estabelecimento da ponte da solidariedade afectuosa. O meu singelo apelo para o
consumo da novíssima poesia moçambicana, pois é maning nice.

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ILUSTRAÇÕES DE
João Paulo Quehá
João Paulo Quehá. Nasceu em Maputo no ano de 1975. Iniciou a
carreira artística em 1991 no atelier do pintor Tinga. Concluiu o 5º
ano de Gráficas na Escola de Artes Visuais em 1998. Participou de
diversas exposições coletivas de pintura em Moçambique e na Suíça.
Tem obras em coleções particulares em Moçambique e outros nove
países.

Prêmios: 1º Prêmio de Pintura no Concurso Descoberta; 2º Prêmio


de Pintura no concurso Instituto Camões; Menção honrosa no
MUSART; 1º Prêmio no Concurso Reconstrução no MUSART.

FOTOGRAFIAS DE:
Tomás Cumbana
Tomás Cumbana. Nascido em Maputo, Moçambique, onde vive e
trabalha como fotógrafo freelancer, fez o curso de fotografia no Centro
de Documentação e Formação Fotográfica em Maputo, quando
trabalhava como impressor fotográfico no mini laboratório a cores na
mesma cidade, no início foi atraído para fotográfica pela fotografia
artística, que o levou a várias experiências do trabalho de gênero. Como
impressor fotográfico processou (revelou e imprimiu) trabalhos de
vários fotógrafos de renomes nacionais e estrangeiros, fato que lhe
conferiu uma visão ampla de fotografia.

Assuntos contemporâneos que afetam o mundo, a forma como soluciona-los e o que o concentra
nos seus trabalhos actualmente, alargando mais os meios que usa para o vídeo.
Já expôs em Moçambique e fora, e os seus trabalhos são publicados em jornais e revistas pelo
mundo.

O seu trabalho pode ser visto no www.tomascumbana.com

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ORGANIZADOR
Ricardo Riso
Ricardo Riso é o pseudônimo de Ricardo Silva Ramos de Souza,
nascido a 10/04/1974, no Rio de Janeiro – Brasil, graduado em
Letras pela Universidade Estácio de Sá; concluiu (ouvinte) a pós-
graduação lato sensu em História, Cultura e Literaturas Africanas e
Afro- brasileiras da Universidade Castelo Branco; colaborador da
seção de crítica literária do periódico científico ―África e
Africanidades‖ – www.africaeafricanidades.com.br – (ISSN 1983-
2354); autor do blog ―Riso – Sonhos não envelhecem‖ –
http://ricardoriso.blogspot.com. Desde outubro de 2009 colabora
com resenhas literárias para o semanário cabo-verdiano ―A Nação‖; é titular da coluna
―LiterÁfricas‖ - http://literaciaricardoriso.blogspot.com/, de ―Literacia Revista Cultural‖ –
ttp://www.aliteracia.blogspot.com/.

Organizou ―Cabo Verde: Antologia de Poesia Contemporânea‖ com a participação de treze


poetas cabo-verdianos e publicada na Revista ―África e Africanidades‖, nº 13 – Maio/2011, Ano
IV.

Para além da atividade crítica, preocupa-se com o acesso do público brasileiro aos livros dos
autores africanos de língua portuguesa. Dentro desse objetivo, concretizou parcerias com as
editoras Artiletra (Cabo Verde), União dos Escritores Angolanos e escritores como António de
Névada (Cabo Verde) e Zaida Sanches (Cabo Verde), e hoje seus livros são encontrados para
venda na Kitabu – Livraria Negra, no Rio de Janeiro. Na mesma livraria, organizou lançamentos
de livros de João Tala (Angola) e Tânia Tomé (Moçambique).

Fez texto de aba de capa de ―Li Cores & Ad Vinhos‖, livro de poesia do cabo-verdiano Filinto
Elísio publicado pela Letras Várias (Lisboa, Portugal) em 2009; Prefácio de ―Contos de Basileia‖,
livro de contos do cabo-verdiano Tchalé Figueira publicado pela Dada Editora (Praia, Cabo
Verde) em 2011; Texto de contracapa de ―Midju di Fogo – Azágua e outras memórias de Cabo
Verde‖, livro de poesia infanto-juvenil do cabo-verdiano Pedro Matos publicado pela Nandyala
Editora (Belo Horizonte, Brasil) em 2011; e Prefácio de ―As Mãos do Tempo‖, livro de poesia do
angolano Nok Nogueira a ser publicado pela União dos Escritores Angolanos (Luanda, Angola)
em 2011.

Na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa apresentou comunicações em congressos


e seminários, e ministrou palestras em instituições como UFRJ, UNESA, FERLAGOS e Colégio
Pedro II.

E-mail: risoatelie@gmail.com

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