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CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação
Entre os moçambicanos 28
Câmara Brasileira do Livro, SP
5. Estórias de Moçambique
"Cais-do-Sodré" 135
143
1
João Dias - "Godido" 143 Apresentação:
Luís Bernardo
Orlando Mendes -
Honwana -
Portagem
"Nhinguitimo" 147
161
uma antologia de
Carneiro Gonçalves - "MaJidza" 169 africanos para brasileiros
6. Cronologia histórico-literária 171
Informação histórico-literária 176 Os livros têm seu destií1O.Como sem registro público, ou no aban-
tudo. dono e esquecimento até 1975, o
Quando um llvro é concebido, ano primeiro de Angola, Cabo
assim como um filho, fica nas Verde e Moçambique, entre os
sombras de seu primeiro mistério, .outros povos libertados.
o mistério do que virá a ser. Ul- O destino das literaturas afri-
trapassado este, restará o outro, canas ficou, por isso, definitiva-
até o fim: o mistério de cada su- mente ligado às antologias. Nes-
cessivo dia desconhecido de sua sas duras décadas, e onde calha-
peregrinação pelo mundo. ram, as antologias foram a via
Os livros dos escritores africa- possível para o trânsito e a reu-
nos modernos - cuidamos aqui nião dos clãs literários da Africa
de angolanos, cabo-verdianos e no penoso caminho de firmarem
moçambicanos, desde a geração sua identidade e de definirem seu
de 1930 - já têm hoje seu tra- lugar no mapa da literatura uni-
jeto inaugural descoberto. Todo versal.
o mundo acabou por conhecê-lo. Como tantas outras que a pre-
Cerados no espaço ou no tem- cederam, quem sabe esta nova an-
po da Africa colonial, quase sem- tologia de prosadores angolanos,
pre viveram sua primeira infân- cabo-verdianos e moçambicanos,
cia como os filhos proibidos: às cuidadosamente preparada para
escondidas, na marginalidade. O os brasileiros, estará cumprindo
grosso deles inscreveu seu "gêne- mais uma parte do vaticínio que
sis" entre memórias do cárcere, cercou seu nascimento.
do exílio, das guerras coloniais. Que possa, então, abreviar o
Os primeiros passos foram difi- caminho dessas literaturas, para
cultados. Pouco alcançaram. Até circulação entre todos nós, que,
os anos 60, uma ou outra edição, do lado de cá do Atlântico, pelas
quando houve, sem os alardes e o teias caprichosas da História, aca-
alcance de praxe. Não fossem as bamos por ter "um pouco" (ou
antologias e muita escrita estaria muito?) "de Africa por dentro".
2
As "ignoradas" angolana, a cabo-verdiana e a
moçambicana? Quantas ou quais
I, oi Manuel Ferreira, incansá- as informações, no espaço dispu-
1'1'1 divulgador das literaturas afri- tado de uma antologia, seriam su-
IIIIU/'\' de língua portuguesa,
(/\' chamou de "literaturas ignora-
quem ficientes para entender essas mes-
mas literaturas no contexto histó- Três literaturas
d,H",
li verdade é que entre nós, pa-
rico, cultural, ideológico de que
são parte? Qualquer decisão em distintas
torno dessas questões traz insatis-
l('fl/CS tão próximos, os escritores
fação, já que toda escolha, por
africanos também não são menos
definição, é redutiva. Em todo
desconhecidos e esta antologia, a
caso, os dados de ordem geral,
exemplo de suas antecessoras, tem
ao informarem, anteciparão, em
11 missão de tornar-se uma opor- A segunda classe seria a das
menor ou maior parte, as razões Velhos tempos:
/unidade de fazê-los conhecidos, estórias verdadeiras ou tidas como
flOr um conjunto de textos que,
de ordem estética ou cultural, his- literatura tradicional
tórico-literária ou ideológica que tal. Chamadas maka, tanto eram
da melhor maneira possível, os de finalidade útil, para instruir e
orientaram a seleção dos autores Quando se quer pegar o fio da
apresente, através de sua prosa prevenir, como também lúdica
e textos. Muitos outros que já prosa de ficção angolana, cabo-
de ficção. para lazer ou prazer. '
se notabilizaram ainda desta vez -verdiana ou moçambicana, onde
Não é projeto fácil de realizar. não chegarão aos leitores. Por é que se vai buscar as pontas do Outra classe seria a das ma-
A s dificuldades são óbvias: quan- fatalidade de seus limites, esta re- seu princípio? -lunda (ou mi-sendu), nas quais
/al' ou quais obras seriam adequa- colha não os pôde abranger. Que os feitos da nação ou tribo eram
As nações de Angola, Cabo
das a caracterizar essas literatu- não falte, num futuro breve, sua transmitidos entre velhos e an-
Verde e Moçambique eram origi-
ras, especificamente a literatura hora e vez. ciãos, de uma geração a outra,
nariamente ágrafas, não tinham
na forma de um segredo de Es-
escrita, embora houvessem culti-
tado, só em partes revelado fora
vado uma literatura oral. Como
desse estrito círculo de compe-
revelariam pesquisadores dessa
tência e autoridade.
literatura, ela foi praticada em
diversas modalidades. Basta lem- Os provérbios, que freqüente-
brar que Héli Chatelain, missio- mente são a síntese de uma estó-
nário suíço que chegou a Angola ria, comporiam a quarta classe.
em 1885 e que se dedicou a reco- Conhecidos como ji-sabu em
lher e estuMr a literatura oral de quimbundo, representam a filoso-
outros povos africanos, chegou a fia da nação ou tribo, no que
definir seis categorias nas quais a toca a seus costumes e tradições.
literatura oral angolana se apre- Mas há, ainda, a quinta e sexta
sentava. classes: a da poesia e música, que
Propôs Chatelain que a primei- aparecem juntas, em canções cha-
ra seria a das estórias de ficção, madas mi-embu, com vários esti-
denominadas mi-soso em quim- los, desde o épico até o dramá-
bunda, estórias que pendem para tico; e a das adivinhas, ji-non-
o maravilhoso, o fantástico, o ex- gongo, que tanto se destinavam a
cepcional. As fábulas aí também entreter quanto a incitar a inteli-
caheriam. gência e a memória.
M THnS 1.1nmATURAS DISTINTAS OUTROS TEMPOS: LITERATURA COLONIAL 9
/\'IIC/uanlo Chatelain publica, Além dos contos, Parsons jun- vividas e transmitidas". Dessa for- não só na historiografia, nas crô-
('/1/ /894, cinqüenta contos popu- tou uma série de provérbios, dita- ma, a literatura oral, por si, de- nicas, como na poésia, nos depoi-
larcs de Angola, o angolano Os- dos e adivinhas. moliria o pensamento hoje descar- mentos científicos e religiosos da-
('(lI' Ribas edita, entre 1961 e Ferreira faz ainda menção às tado de que as sociedades africa- vam seu testemunho ou impres-
./964, três volumes, respectiva- dezenas de contos da Guiné, reco- nas seriam estáticas, não passíveis sões sobre a Africa "bárbara",
mente: 26 contos, mais quinhen- lhidos em português, dando rele- de evolução. exótica, a que os levara a expan-
tos provérbios; a psicologia dos vo à contribuição do guineense No elenco da literatura oral, são ultramarina. Entre outros es-
nomes, comidas, bebidas, des- Marcelino Marques de Barros para Orlando Mendes inclui também os critores da expansão, citam-se:
déns, passatempos; finalmente, esse fim. provérbios e as adivinhas, a cujas Gomes Eanes de Zurara, João de
adivinhas, canções, súplicas, pran- Da literatura oral moçambicana finalidades próprias acrescenta as Barros, Diogo do Couto, Fernão
tos por morte e instantâneos da nos dá conta Orlando Mendes, características que tinham em co- Mendes Pinto, Damião de Góis,
vida africana, não sem antes lembrar que as re- mum: um repositório da "filosofia Garcia de Orta, Duarte Pacheco
Esses dados são indício do rico colhas estiveram a cargo de estran- de experiências acumuladas e dia- Pereira.
palrimônio oral que ainda falta geiros que nem sempre a have- léticas do quotidiano". Mas os ecos das descobertas
recuperar, trazendo outros ele- riam compreendido no tocante à Em quaisquer modalidades, sua alcançam também a poesia do
mentos para sua devida avaliação. "verdade histórica de que a tradi- importância no prazer e no conví- Cancioneiro e chegam até a de
Quanto a essa questão em Cabo ção era veículo e as realizações vio não excluiria a de suas fun- Camões, com passagem pelo tea-
Verde, Manuel Ferreira, incansá- dramáticas do povo". ções que, antes exercidas sobre a tro de Gil Vicente.
vel colecionador, historiador e Orlando Mendes considera a sociedade e' estrutura de poder
ensaísta no campo das literaturas literatura africana em suas múlti- feudais, deslocaram-se para as
africanas de língua portuguesa, plas manifestações, desde histórias correspondentes do sistema de Outros tempos:
referiu-se à sua quantidade e va- de acontecimentos, que interpre- ocupação colonial. literatura colonial
riedade, em contraposição à "ma- tariam conjunturas específicas ou Se já não existia uma escrita
gra" coleta que desse patrimônio genéricas, até lendas e fábulas, entre esses africanos, o coloniza-
se tem feito, citando a de Elsie O desenvolvimento cultural no
que testemunham as experiências dor português também não fez interior das colônias africanas de-
Clews Parsons, reunida em dois ancestrais do conhecimento feito por dar-lhes logo o código grafa-
volumes. morou para receber os influxos
da prática vivida, "do domínio do de sua língua, da língua que de fora. Basta lembrar que os
Publicada pela primeira vez nos imperfeito da Natureza com que lhes levava de empréstimo. portugueses iniciaram a rota da
Estados Unidos, em 1923, a cole- se estava em permanente luta e Africa no século XV, mas, apesar
ção da investigadora norte-ameri- A história da colonização por-
das relações mutáveis dos homens de medidas isoladas anteriores
cana reúne 133 contos, em duas tuguesa revela que do século XVI
com a Natureza e entre si". Com por parte da Metrópole, na área
versões, crioulo e inglês. Os con- ao século XIX uma fração insig-
isso, Mendes assinala o caráter do ensino, só a partir do século
los foram recolhidos de imigrantes evolutivo dessa literatura, em opo- nificante da população negra che-
XIX é que sua influência se fez
do arquipélago de Cabo Verde, sição ao conceito equivocado de gara a ler e a escrever. E as
sentir ponderavelmente.
nos Estados Unidos, em 1916- que ela se repetia e firmava-se estatísticas de Angola, Guiné-Bis-
sau, Moçambique, São Tomé e Quanto a' Cabo Verde, o mes-
-1917. A colecionadora observou sobre formas cristalizadas.
Príncipe mostravam 95% de anal- mo Manuel Ferreira repassa a in-
que a maior parte dos contos tem O Escritor refere-se, ainda, a formação segundo a qual, entre
origem européia e muito prova- uma linha da oralidade constituí- fabetos entre a população nacio-
1853 e 1892, fundaram-se na
velmente narrados como em Por- da de contos, fábulas e lenrias, nal ao tempo da guerra de liber- Praia desde 1858 treze associa-
tURal;outros, ainda que de prove- povoados de animais das flores- tação que há poucos anos lhes ções recreativas e culturais, como
fll~ncla européia, aclimataram-se tas, dos elementos da Natureza, deu autonomia política. a Sociedade de Gabinete de Lite-
ao contexto islenho ou africano; dos "espíritos e símbolos do A produção literária restringiu- ratura (1860) e a Associação
finalmente, há os que são inteira- sobrenatural, da sociedade, dos -se, então, à literatura de viagens. Literária Grêmio Cabo-verdiano
m~nte africanos. antepassados, das transformações Eram os próprios portugueses que, (1880).
10 TRI\S LITERATURAS DISTINTAS
TEMPOS NOVOS: EM DIREÇÃO DE... 11
A,lwin(lla, ainda, que, por essa além de advogado e "personagem Troni explora a desadaptação século XIX, no bojo desse surto
altura, se cria a imprensa de An- política de pouco agrado do go- remanescente no procedimento da de jornalismo, lançaram-se os fun-
gola e Moçambique e que aí se dá verno", em Luanda, foi deputado personagem transplantada, bem damentos para as modernas lite-
um notável surto de jornalismo. eleito para representar Angola como os comportamentos coleti- raturas africanas de língua portu-
Aparecem os primeiros periódi- junto às cortes portuguesas. Mar- vos onde a colisão de culturas guesa.
cos, como A Aurora (1856), A cou presença na literatura como deixa espaços de desgaste ou ins-
Civilização da África Portuguesa precursor da prosa moderna em Como em Angola e em Cabo
taura os do sincretismo. Assim Verde, a imprensa moçambicana
(1866), O Eco de Angola (1881), Angola, com a noveleta Nga Mu- é o rito das missas de "réquiem"
O Futuro de Angola (1882), O turi (Senhora viúva). Publicada também se instala nesse período,
mestiçado pelo toque festivo das mais precisamente em 1854, quan-
Farol do Povo (1883), O Serão em folhetins na imprensa de Lis- cerimônias locais nessas ocasiões,
(1886), A Civilização da África boa em 1882, só reaparece em do se inicia, então, o Boletim Ofi-
assim como as "sembas" (umbiga- cial. Em 1869 surge o primeiro
Portuguesa (1886), O Arauto Afri- 1973, ou seja, quase um século das), nas comemorações pelo ani-
cano (1889), Ensaios Literários depois, edição que veio, então, periódico moçambicano, O Pro-
versário do óbito. gresso, e despontam páginas ou
(1891), Luz e Crença (1902- possibilitar o acesso do grande
Nga Muturi tem sido conside- seções literárias e de artes na im-
-1903). Colaborou para O Fa- público leitor de hoje.
rol do Povo e O Arauto Africano
rada precursora pela sensibilidade prensa. Precursores de periodici-
A noveleta de Troni faz a es- voltada já para os dados do mun- dade semanal foram O Africano
Joaquim Dias Cordeiro, que já tória de uma menina, negra fula,
então exortava os filhos do país do africano "nessa época recua- (1877), O Vigilante (1882), Cla-
que, de escrava (buxila) e con- da". mor Africano (1892).
a desenvolverem a literatura nas- cubina de comerciante branco,
cente. passa à condição Nga Muturi, Em Cabo Verde tem-se notícia
com a morte deste. Depois dos de uma obra em prosa, O escravo,
Muitos jornais surgem e, em-
bora a maior parte tivesse curta primeiros acontecimentos, "numas de José Evaristo de Almeida, da Tempos novos:
duração, até o final do século já terras muito longe", onde se lo- qual haveria um único exemplar em direção de uma
se enumeravam 46 deles, os quais caliza seu povo, os demais irão conhecido, em mãos de seus des- literatura nacional
ocorrer na cidade de Luanda, cendentes, em Cabo Verde. A
contaram com a participação de
para a qual é trazida. narrativa giraria em torno de A virada do século já é mar-
europeus e de africanos.
acontecimentos ocorridos na pri- cada pelos movimentos da "Ne-
A dois jornalistas da época Como num rito de passagem, meira metade do século passado,
cabe especial menção: Pedro Félix ela se despede de seus hábitos gritude" e as questões africanas
na ilha de Santiago, com perso-
Machado e Alfredo Troni, porque clânicos, desfazendo-se do pen- nagens idealizadas ao gosto do alcançam o estágio de polêmica
cultivaram também a prosa de teado e das vestes de sua longa Romantismo, movimento literário em foros internacionais.
ficção. Pedro Machado escreveu viagem de entrega. E, assim, en- ainda em voga na época. Como Em 1905, no Manifesto saído
um romance, Scenas d'África, volve-se num processo progressi- o nome indica, a estória versa do movimento de Niágara, procla-
cuja primeira edição deu-se em vo de antropofagia cultural, na sobre o tema da escravidão, res- ma-se a "igualdade absoluta entre
folhetim na Gazeta de Portugal, medida em que vai sendo cultural- saltando-se o ponto de vista abo- todos os cidadãos brancos e ne-
sendo reeditado em 1882. mente tragada pelo homem-civili- licionista do narrador e sua pers- gros". Entre suas ressonâncias,
Alfredo Troni, que nasceu em zação branca que se atravessa no pectiva direcionada para a valo- surge, em 1910, a NACP (As-
Coimbra mas passou a maior par- seu caminho. A estória assinala rização do homem africano. sociação Nacional para o Progres-
te da sua vida em Luanda, onde os lances da assimilação que aca- Recentemente localizaram-se ou- so das Pessoas de Cor), que deu
morreu em 1904, fundou e dirigiu bam por levar Nga Muturi a rezar tros textos até então esquecidos, base ao "Black Renaissance", con-
() Jornal de Luanda (1878), Mu- em mbundu, a achar que a terra demonstrando-se a existência de gregando intelectuais' e políticos
kuarimi (1888?) e Os Concelhos do rei de Portugal, "Muene Putu", uma prosa colonial cabo-verdiana negros, que se constituíram numa
de Leste (1891). Troni, que fora é muito melhor que o mato, a mais encorpada a ser conhecida. pujante geração de lutadores em
contemporâneo de Eça de Quei- pagar seus impostos e viver de Os dados referidos vêm mos- defesa dos direitos do homem dt
rál' na Universidade de Coimbra, juros ... trar como na segunda metade do cor.
ENTRE OS ANGOLANOS 13
12 TR~S LITERATURAS DISTINTAS
Nessa altura, a revista The za-se em Paris, em torno da re- diz Henrique Guerra no prefácio desemaranhar-se o principal. Tem-
Crisis propõe-se a despertar a vista estudantil Légitime Défense da última edição, O segredo da -se, assim, uma reminiscência do
consciência para "o grande pro- e, em 1934, ao redor de outra, morta ocupa todo um vazio lite- gosto pelas adivinhas a que se
blema do século - a questão da L'Étudiant Nair, editada por Aimé rário, como ponte entre duas ge- referem os conhecedores dos há-
cor". Cesaire, Léopold Sédar Senghor rações de escritores preocupados bitos populares de tradição ango-
e Léon Damas. com a revitalização angolana, duas lana. Na pródiga imaginação do
Todo o projeto, que se deno-
gerações que se representavam an- Autor, elas permitem criar situa-
minou "Pan-africanismo", não se Mais uma revista, Présence
i, teriormente por Cordeiro da Mata ções engenhosas, em que cada
confinava ao âmbito dos ameri- Africaine (1947-1968), e a Antho-
e posteriormente por Castro So- enigma funciona como uma espé-
canos. Estendia-se às reivindica- logie de La Nouvelle Poésie Negre
romenho. cie de adivinha para movimentar
ções dos negros onde quer que et Malgache (1948), organizada
Segundo as palavras da "Adver- uma microestória no conjunto da
fosse. Seus reflexos chegam a por Senghor e prefaciada por Sar-
tência", do próprio Assis Júnior, macroestória. Surpreendentemen-
Portugal, onde se funda, em 1912, tre, com toda sua polêmica, e es-
a obra seria oferecida à leitura de te, o mistério, cifrado num código
a "Junta de Defesa dos Direitos ses movimentos - do "Pan-afri-
todos aqueles "pretos e brancos" simbólico, começa a rarefazer-se
de África", que continua mais canismo" e da "Negritude" -
que se "interessam pelo conheci- por tradução para outro código
tarde na Liga Africana. logravam carrear consideráveis
mento das coisas da terra. " A mais permeável, menos vago. É
Em 1919 realiza-se o I Con- proveitos à causa africana.
vida do angolense que a civiliza- o caso dos sonhos, que irão pro-
gresso do "Pan-africanismo", em ção totalmente não obliterou - liferar como formas cifradas de
Paris. É quando se dá a Confe- aquela civilização que se lhe im- outros tantos mistérios a coloca-
rência da Paz, ocasião oportuna Entre os angolanos pôs mais por sugestão e medo do rem-se e desvendarem-se progres-
para se reivindicar a decisão do que por persuasão e raciocínio -, sivamente. Dessa forma, as tradu-
destino da África para os africa- Embora no século passado co- vivendo ao seu modo e educan- ções para diferentes códigos nas
nos. meçassem a surgir condições para do-se consoante os recursos ao micro estórias promovem uma rea-
Na literatura, ao projeto huma- a criação das modernas literaturas seu alcance ... " firmação de mensagens que se ilu-
nista-universalista do "Pan-africa- nacionais, os resultados pouco ul- Assis Júnior cria, assim, uma minam reciprocamente, deixando,
nismo" correspondeu o da "Afri- trapassaram o aparecimento de atmosfera de tensa expectativa em cada tradução, um saldo reve-
can Personality", na busca de de- publicações esparsas em jornais e antes de relatar os fatos, aliciando lador, de resposta a algum "por
terminar uma identidade coletiva revistas. o leitor como se fossem verídicos quê?", em função do qual as mi-
do africano, vítima da dispersão Daí a razão da importância his- e como se o Escritor não tivesse cro e macroestórias se organizam.
pelo mundo. Obras dessa linha tórico-literária que teve para An- resistido a revelá-los, porque cons- As incógnitas das estórias va-
de afirmação da personalidade gola a obra de autoria de Antônio tituiriam "um forte apoio para a lem, pois, como adivinhas que as
negra começam a aparecer, como de Assis Júnior, O segredo da formação da história das coisas, impulsionam a abrir alternativas
o romance Batouala (1921), do morta, romance de costumes an- ainda mal conhecidas, e das pes- para um desfecho. A moral que
martiniquenho René Maron, fun- golanos, publicada em 1929 nos soas que, com poder e mereci- delas procede vai ter respaldo nos
cionário da administração fran- folhetins do jornal A Vanguarda, mento, nasceram, passaram e vi- provérbios. São tantos que, jun-
cesa no hoje império Centro-afri- de Luanda, e reeditada em livro, veram" em sua terra. tos, fazem um pano de amostras
cano, onde a alma negra se des- em 1935, pela tipografia A Lusi- A crítica enfatizou, nesse livro, do adagiário local. E, se as adi-
vela. Divulga-se a música negra tana, também em Luanda. sua "forte angolanidade". De vinhas apelam para o lúdico, para
- o jazz, os blues espirituaIs - Esse romance tornou-se um fato, essa angolanidade mostra-se o jogo das descobertas, os pro-
e os escritores negros norte-ame- marco notável no encaminhamen- logo na concepção do romance. vérbios solicitam a reflexão, uma
ricanos chamam a atenção geral to da literatura angolana para sua Alguns ou vários mistérios fazem avaliação, uma dedução.
para a causa que defendem. identidade nacional. o tecido narrativo. Para desven- Na rede da estória, tecida pelo
Na década de 30 o movimento Escrito, então, no período que dar o maior deles, o segredo da impulso dos enigmas e sustentada
dll ItNegritude" - de que Ba- vai de 1910 a 1940, de "quase morta, há que decifrar outros nos pilares ideológicos dos pro-
tuuala fora um marco - organi- não-literatura" em Angola, como (entrelaçados ou subsidiários) até vérbios, a mística e a História se
14 TRÊS LITERATURAS DISTINTAS ENTRE OS ANGOLANOS 15
conjugam para que o romance Os lundas de quem Soromenho africano a perder seu sistema de À Antologia se segue a revista
totalize um painel. Aí se recupera tratou são vistos até a crise que organização com o auxílio dos Mensagem (1951-1952), onde co-
a vida colonial ao tempo do flo- os abalaria, já mal com os deuses, próprios angolanos que fazem o laboraram escritores que se torna-
rescimento de uma faixa de afri- enquanto outra tribo, a dos quio- jogo do colonizador, atuando co- ram grandes nomes da literatura
canos assimilados que constitui- cos, chegava à supremacia sobre mo cipaios e capitas. angolana: Agostinho Neto, Alda
riam, pelos fins do século XIX, eles, como se vê em A morte da A força agônica das tribos, já Lara, Antero Abreu, Antônio Car-
uma pequena burguesia ao lado chota. minadas por dentro e por fora, se doso, Antônio Jacinto, Mário An-
da burguesia compradora ou in- Dessa convivência e aprendiza- reduz à luta isolada do negro pela tônio, Mário de Andrade, Óscar
termediária, localizadas sobretudo do no sertão angolano, surgem as terra, in extremis: em seu reduto Ribas, Viriato da Cruz e até mo-
nas povoações ao longo do rio primeiras narrações de Sorome- final, o último soba, Xá-Macuari, çambicanos, como o poeta José
Kuanza. Por aí se dera a pene- nho, Lendas negras, Nhári; o dra- suicida-se para escapar à caçada Craveirinha, além de portugueses
tração e colonização portuguesas. ma da gente negra, Rajada e dos brancos, e seus poucos fiéis radicados em Angola. Os objeti-
Nesse romance de Assis Júnior, outras histórias e Calenga. liderados o sepultam, incendeiam vos da revista centravam-se na
ditos, diálogos ou manifestações Aos contos e novelas seguem-se as palhoças da aldeia, para depois busca da redefinição e valorização
espontâneas das personagens já os romances, Noite de angústia, passarem a vau o rio Luita e se- dos dados básicos de caracteriza-
aparecem em quimbundo. A lín- Homens sem caminho, Terra mor- guirem o destiná de nômades. ção nacional. Os escritores pro-
gua local passa, pois, a ser mais ta, Viragem, A chaga. Quem os punham-se à alfabetização e me-
A partir de então, o conflito
uma senha da identidade nacional percorre atravessa uma terra em entre brancos e negros, coloniza- lhoria das condições culturais do
que a obra assinala. transe, desde a tensão interna do dores e colonizados de seus dois operário, a diversificadas ativida-
Mas outro escritor apareceria primeiro, ainda entre lundas. Tra- últimos romances aprofunda-se na des no setor da cultura nacional.
para fazer a ponte de acesso à ta-se de um crime de morte por sondagem dos sofrimentos impos- Cultura (lI) (1957-1961) é ou-
moderna prosa de ficção angola- feitiçaria e conseqüente punição, tos ao povo angolano, e, com A tra revista a juntar os escritores,
na. Trata-se de Fernando M on- que vão dar a medida do rigor chaga, na luxúria dos brancos, de alguns já militantes em Mensagem.
teiro de Castro Soromenho (1910- dos códigos de bravura e honra, quem as negras e as mulatas são Em Cultura (lI) levantava-se a
-1968). Natural de Moçambique, de coragem e lealdade, pelos quais vítimas indefesas. questão cultural em suas vincula-
Castro Soromenho fez-se angola- eles mantiveram, outrora, suas Ao longo da obra de Sorome- ções com os problemas sócio-eco-
no de vivência. Filho de um alto forças de coesão. nômicos de Angola, de forma que
nho depara-se, pois, com a ima-
funcionário da administração co- No segundo romance, a deca- se considerava a ação cultural
gem de inocência do mundo afri-
lonial, transfere-se para Angola, dência dos lundas se acentua em "defeituosa" enquanto tais proble-
cano que se vai desfigurando, no
onde mais tarde, em vez de as- seus confrontos com os quiocos, mas não se resolvessem. Aí se
quadro de uma experiência de ca- agruparam Agostinho Neto, An-
pirar a um posto de localização com o saldo negativo dos temores
privilegiada, opta por instalar-se tiveiro, como um inferno existen- tero Abreu, Mário Lopes Guerra
pelas ameaças que então os cer-
na Lunda, a nordeste de Angola. cial do homem negro. (Benúdia), Carlos Ervedosa, Costa
cam.
Aí trabalhou como funcionário, Por volta dos anos 40 os escri- Andrade (Angolano Andrade ou
Já em Terra morta se faz a
mas alternava essa tarefa com a imagem da Angola sujeita ao pro- tores africanos de língua portu- Africano Paiva), Luandino Vieira,
peregrinação pelas aldeias negras, grama chamado "indigenato", con- guesa começam a se organizar à Óscar Ribas.
nas quais pôde observar costumes, vertendo o homem angolano de volta de canais de divulgação, es- Outras revistas circularam, co-
recolher informações. Nesse trato membro de uma comunidade en- pecialmente as revistas. mo a Mensagem (1949), da Casa
com os negros que devia recen- tendida como "primitiva" à con- Em Angola, com o impulso do dos Estudantes do Império, em
sear, entendeu a situação que os dição de assimilado pela cultura "Movimento dos Jovens Intelec- Lisboa, por onde passaram gran-
angustiava e não tardou que sua do colonizador, proposta como tuais de Angola" e com a ban- des escritores africanos que parti-
simpatia e adesão fosse por eles, "civilizada" . deira de "Vamos Descobrir An- cipavam dos movimentos de liber-
então miseráveis e oprimidos, cuja Assiste-se, assim, a um proje- gola" surge a Antologia dos novos tação das colônias portuguesas da
causa não mais abandonou. to visando destribalizar, levar o poetas de Angola (1950). África.
16 TRÊS LITERATURAS DISTINTAS
ENTRE OS ANGOLANOS 17
As idéias da "Negritude", trans- ou explicitamente remete a uma de preto - e Neto, em troca, en- guerra de libertação, sobretudo o
postas nas vozes de Senghor e comparação. É o que Neto vai viou-lhe uma cópia de Náusea. dos momentos da conspiração an-
Césaire, dos escritores negros explorar. No confronto do mar ticolonialista, preâmbulo da luta
norte-americanos Richard Wright, Como Neto, Antônio Jacinto
ali/agora, com o mar além/pre- (Orlando Távora) faz com Vôvô armada que a partir daí se desen-
Countee Cullen e Langston térito, a memória estabelece as cadearia. São horas de terrores,
Hughes, do cubano Nicolas Guil- Bartolomeu um relato linear, cujo
relações conseqüentes do espaço- atrativo está na própria singeleza em que as etapas da resistência se
lén, então ganham terreno e im- -tempo. O contraste mar versus organizam e nas quais o êxito ou
pressionam os da África Portu- de sua concepção, desde as per-
interior resulta em paralelos so- sonagens até o conflito em torno malogro de cada passo dado em
guesa, envolvendo nomes como o ciais: de um lado, a miserabilidade segredo torna-se uma questão de
do angolano Mário de Andrade das questões primárias, mas, por
conhecida dos musseques, sempre isso mesmo, básicas à sobrevivên- vida ou morte; são horas de temo-
e do são-tomense Francisco José recuados; de outro, a prosperida- res, quando a desconfiança gene-
Cia.
Tenreiro. de dos lugares amenos, do litoral,
Sobre o Bartolomeu dessa es- ricamente instalada lança confu-
A partir dos anos 60 vêm os que os turistas da vida acabam sões e dúvidas entre todos; são
tempos de mais aguda repressão, por ocupar. Nesses paralelos so- tória, assim como sobre outros
vavôs e vavós tão presentes na horas de tremores, quando a dela-
e, além dos escritores já citados, ciais cruzam-se também os parale- ção precipita os exílios e torturas
ligam-se a essa geração: Ernesto los do tempo. O presente do mar, literatura de Angola, recaem a es-
tima e o apreço 'das novas gera- de que é exemplar A vida verda-
Lara Filho, Henrique Guerra (An- do mar que se atualiza, remete ao deira de Domingos Xavier e "O
diki), Arthur Maurício Pestana passado de onde emergem as man- ções. O respeito aos velhos, típico
fato completo de Lucas Matesso".
dos Santos (Pepetela), Jofre Ro- chas da História, da diáspora e da tradição africana, não impede,
entretanto, que no conto de An- O espaço das estórias de Luan-
cha, Jorge Macedo, Arnaldo San- escravidão africanas, que se pro-
jetam no ali e agora da revisita- tônio Jacinto se delegue à juven- dino é, por excelência, o dos mus-
tos, Manuel dos Santos Lima,
Agostinho Mendes de Carvalho ção desse nhô João simbólico, tude o papel de rompimento com seques, bairros proletários fora do
(Uanhenga Xitu), Manuel Paca- por isso mesmo irremediavelmente um estado de coisas ou de espírito perímetro urbanizado da cidade.
vira, Carlos Gouveia, Bobela Mot- comprometida. que tem de ser superado em favor Sem as condições mínimas de sa-
ta, Manuel Rui. de novas perspectivas de futuro. lubridade ou conforto, tornam-se,
Em sua esporádica passagem É a ideologia da resistência que
Quanto aos prosadores desta pela prosa, Neto dá-nos uma obra portanto, indicadores da faixa so-
já se insinua. Ainda que aí se cial mais discriminada ou desfa-
Antologia, Agostinho Neto foi so- com um enredo sem complicações. trate de resistência diante das for-
bretudo um poeta. Com Náusea, Chamado conto, mas quase crô- vorecida, de que é muito típica
ças brutas da Natureza, é preciso sua gente, retratada desde os pri-
conto publicado em 1952 na re- nica, o texto manifesta menos a sobrepô-la à interpretação fatalista
vista Mensagem, Neto faz sua intenção de relatar um aconteci- meiros contos, os de A cidade e
da sorte do negro e aos sentimen-
incursão na prosa, com rápidas mento do que a necessidade de a infância e de Luuanda, até os
tos de inferioridade que compro-
pinceladas de um retrato ango- exteriorizar um estado de ânimo, metem sua autoconfiança e deli- últimos, de Macandumba e de
lano, e, como em seus poemas, as uma disposição íntima da perso- beração. Laurentino Dona Antónia de Sou-
figuras humanas preenchem espa- nagem, tal como se daria na poe- za Neto e eu, assim como nas nar-
ços de admiração e ternura. Além sia, o que confirma, assim, a vo- E, ao abordar a literatura da
rativas Nós, os do Mukulusu, e
do anônimo individual ou coleti- cação de poeta. resistência, outro prosador toma
João Vêncio e seus amores.
vo, seus versos povoam-se de ima- vulto: é José Mateus Vieira da
Nas páginas que precedem o Graça, que se fez conhecido com Esse é um espaço de amplo
gens fraternas, como as de família prefácio à segunda edição de Náu- o pseudônimo de José Luandino espectro para a aprendizagem da
ou do "Mussunda amigo". sea, outro escritor, também poeta, Vieira. Sua já extensa produção vida - a infância que se recons-
Esse exercício na prosa se pro:- Antônio Jacinto, refere-se à cor- literária conta com edições tanto titui do nevoeiro da memória e
cessa com o tema do mar, o mar respondência mantida com Neto: em português como em traduções por isso mesmo se traduz meta-
revisitado. A repetição de uma Jacinto remetera-lhe uma cópia nas línguas de vários países. foricamente no texto mais ambí-
experiência - no caso a experiên- de seu conto, Vôvô Bartolomeu guo, mais opaco, de Luandino
O tempo histórico recoberto
cia vivida com o mar - implícita - que então se denominava Sorte pela ficção de Luandino é o da Vieira, No antigamente na vida
ENTRE OS ANGOLANOS 19
18 TRÊS LITERATURAS DISTINTAS
reencontro da identidade cultural táveis decorrências economzco- ciado da vida", em sua participa- Gabriel Mariano, cujos contos fo-
de seu país, delinear o perfil psi- -financeiras para Cabo Verde, ou ção, portanto, com as associações ram reunidos no volume Vida e
cológico de seu povo. São os tem- de referência cultural e simbólica operárias que então se formam. morte de João Cabafume.
pos de influência do Modernismo como a morna, típico gênero de A té que se torne "professor de Nas estórias de Gabriel Ma-
brasileiro que, pela afinidade de música popular, ou o farol do posto", vive aí a euforia da che- riano o espaço e o tempo preen-
causa, empolgaria os escritores Ilhéu dos Pássaros, marco espa- gada dos navios e a disforia da chem-se com personagens que vi-
cabo-verdianos. cial e temporal na paisagem. decadência do porto, as festas tí- vem as agruras de um quotidiano
No segundo número de Clari- Caberá, depois, a Baltasar Lo- picas com a morna, o jazz-blue, repassado de problemas velhos, de
dade, aparece um excerto do conto pes rasgar caminho para o roman- a valsa brasileira, ou os ritos do soluções preteridas, que criam as
"O galo que cantou na baía", ce de Cabo Verde, com Chiqui- sincretismo religioso. tensões características às quais se
considerado o primeiro texto de nho, publicado em 1947. Trata-se Os acordes de fim de história fez referência.
ficção da moderna literatura de da história de uma típica família são os da vida adulta de Chiqui- No caso de "O rapaz doente",
Cabo Verde, mais tarde republi- cabo-verdiana, centrada na perso- nho, na bonança das chuvas e nas desnuda-se o ângulo do emigrado
cado numa coletânea de contos, nagem que lhe dá nome e a relata agruras do estio. para São Tomé, tão freqüente
que receberia o prêmio Fernão retrospectivamente. O pai, emi- Como na literatura nordestina também na literatura angolana,
Mendes Pinto. grado para os Estados Unidos na brasileira, tem-se o quadro sinis- com as implicações que Gabriel
Em torno de um caso de con- grande seca de 1915, deixa à mãe tro dos retirantes pela perspectiva Mariano aqui explora: as do tra-
trabando de algumas garrafas de as funções de condutor da famí- da insolvência, no contexto agra- balho forçado na época colonial
aguardente e dos passageiros do lia, como era então freqüente nas vado pelas exíguas probabilidades e o conseqüente corte precoce de
barco que fazia o transporte, Ma- Ilhas. das Ilhas. São, pois, os tempos vidas, que aproxima seus heróis
nuel Lopes não escreve apenas Dessa forma, enquanto a me- de tentação da terra-longe que anônimos de outros da epopéia do
uma estória cheia de emoções, mória do contador recupera desde vem com o cheiro do mundo nos trabalho braçal dos operários do
que culmina no mau sucesso dos sua vida de menino em Santiago navios e toma corpo na conjun- mundo.
contrabandistas porque um galo até a de mestre-escola que, à ma- tura da crise, e os de Chiquinho Esses motivos se retomariam
inoportuno cantou na baía, mas neira do pai, acaba também dei- emigrante, na cadeia de exílios pelo grupo de escritores que cola-
com os pobres agentes da peri- xando Cabo Verde, a prática do em que se amarram sucessivas ge- boram em outro periódico, Certe-
pécia cria um espaço de ca- dia-a-dia se reconstitui. Dos tem- rações da família cabo-verdiana. za, alguns anos depois, em 1944.
tálise para os grandes motivos pos da infância vem a casa mater- É entre eles que se incluem Ma-
Inspirado nos versos de batu-
da literatura cabo-verdiana dessa na, com o patrimônio de hábitos que da ilha de Santiago - "O nuel Ferreira e Orlanda Amarilis.
época. Assim é a dialética do domésticos cabo-verdianos, o cam- Corpo que é escravo, vai; o cora- Era a década de eclosão do
ir/ficar, permanecer nas ilhas ou po com as práticas agrícolas ca- ção que é livre, fica ... " -, o movimento neo-realista em Portu-
emigrar. Dividido, portanto, entre racteristicamente locais, a escola, romance de Baltasar Lopes é um gal, cujos reflexos chegavam a
o apelo profundo de suas raízes e ainda com a tradição européia da marco decisivo no direcionamento Cabo Verde. Assim, embora o
a perspectiva de libertar-se das palmatória. da literatura cabo-verdiana ao seu programa em torno da cabo-ver-
poucas ou nenhuma alternativa de Com tudo isso, a grande apren- futuro nacional. dianidade se preservasse, tratava-
trabalho, dos problemas da seca, dizagem: do ritmo da vida cabo- A seca, a fome e a emigração, -se de um etnocentrismo já menos
das lestadas, da miséria enfim, -verdiana marcado pelos compas- que massacram minorias desprivi- inclinado a definir a identidade
vê-se o cabo-verdiano diante de sos da chuva e da seca. legiadas do mundo, atravessam as nacional do que os conflitos so-
sua mais dramática necessidade páginas dos prosadores que se li- ciais do Arquipélago.
Na adolescência são seus tem-
de opção. pos de estudante, na ilha de São garam direta ou indiretamente ao Nesse contexto está Manuel
Chegam à prosa cabo-verdiana Vicente, de contatos mais freqüen- grupo de Claridade, como as do Ferreira, português de nacionali-
motivos como a decadência do tes com o mundo exterior. É onde próprio Manuel Lopes de Os flage- dade, mas também cabo-verdiano
porlo de São Vicente, substituído se organiza o grupo cultural da lados do vento leste, ou as de nar- por afinidades eletivas. Tendo
p"los de outros países, com inevi- mocidade das escolas "não-divor- rativas como "O rapaz doente", de contribuído para a ficção neo-
26 TRM LITERATURAS DISTINTAS
ENTRE os CABO-VERDIANOS 27
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das fraquezas dos poderosos, per- cessos de escrita. Há espaço para
siste em avaliar sobretudo as suas, o tema da guerra, cujo quotidiano
numa visão pessimista e pouco de previsibilidades e surpresas aí
pragmática que lhe agrava todas vem à baila, assim como para o
as dificuldades.
Por isso seu problema não é
das aventuras passionais ou até
destas com as do próprio homem- Estórias de Angola
apenas vencer os obstáculos ex- -escritor. E ficam sobras para o
ternos, mas absorver seus pró- questionamento de realidade e
prios componentes étnicos, o "eu" fantasia, de realidade do sonho e
branco e o negro, que ele reite- sonho da realidade.
radamente vê distinto~ e antagô- "Malidza", por ser uma das
nicos. duas lendas que precedem os con-
Assim, são necessárias muitas tos, escapa das motivações novas;
aventuras até que, em sua per- contudo, já pelo lugar que o ALFREDO TRONI
sonalidade, a consciência dura- Autor lhe destinou no conjunto,
mente experimentada vislumbre a formaliza a religação com o pa- Nasceu em Coimbra, em 1845. Viveu grande parte de sua vida em
Angola. Faleceu em Luanda. em 1904. Jornalista, colaborou em diversos
síntese. trimônio tradicional moçambica- jornais e publicou em capítulos, no Diário da Manhã, a noveleta Nga Muturt.
Carneiro Gonçalves, em seus no, o qual, por sua vez, no que posteriormente editada em volume. em 1882.
Contos e lendas, republicados em toca a amores contrariados por
1980, apresenta uma versão atua- impedimentos da ordem social,
lizada de transfusão de culturas, entra em sintonia com as fontes
de permuta de parâmetros histó- temáticas universais. Por ora,
ricos e culturais, que ele dramati- mais fecunda na poesia que na
za em seu conto "A guerra dos
cem anos", ou dos desajustes en-
prosa, a literatura moçambicana
de expressão portuguesa, escrita
Nga Muturr
tre atos e conceitos em contextos numa língua que já não coincide
ético-sociais de convenções cul- com a falada em Angola, no Bra- I
sil ou em Portugal, começa tam-
turais diferentes, como transpare-
bém a ensaiar seus passos no sen- Nga Ndreza (nome que tem na sociedade de Luanda, uma socie-
ce em "A lua do advogado". tido de definir-se como instru- dade onde só avultam os panos, sim, mas que guarda um certo número
Mas essa coleção de contos ca- mento de comunicação de outra de conveniências) afirma que é livre, que foi criada em Novo Redondo,
racteriza-se pela heterogeneidade cultura emergente que é. e pertenceu à família de F ... ; e, quando muito, cala-se quando lhe
perguntam se é buxila.
Também ninguém faz questão disso já. E que a fizesse! Ela, à
força de afirmar que não foi escrava, esqueceu-se de [não] ter sido
sempre livre. E contudo quando se senta à porta da casa com a face
fincada entre os joelhos apertados pelos braços seguros pelas mãos
enclavinhadas, nas noites de luar quentes e sossegadas, e cujo silêncio
é só quebrado a espaços pelo seco bater, na areia da rua, dos pés
dos gingamba que carregam uma machila, ou pelos gritos estridentes
das molecas da vizinhança que apregoam ruidosas banzo - ni massa
* Reproduzido de TRONI, Alfredo. Nga Mullai. Lisboa, Ed. 70, 1973. p. 31-64.