Você está na página 1de 13

QUILOMBO QUINGOMA 1

Fascículo Nova Cartografia Social do Nordeste


Quilombo Quingoma
A coleção Nova Cartografia Social do Nordeste
compreende um conjunto de trabalhos que regis-
tram mobilizações de Povos e Comunidades Tra-
TERRITÓRIO: HERANÇA ANCESTRAL
Número 3 | Ano 2022 dicionais do Nordeste em torno da construção de
conhecimentos que possibilitem dar visibilidade
aos seus modos de vida, com destaque para con-
Expediente flitos que enfrentam e suas demandas aos poderes Nossa vida aqui era viver de roça, plantar roça, fazia beiju, tinha casa
Periodicidade: Irregular | Idioma: Português públicos. Refletem não somente a diversidade so- de farinha, fazia farinha, tinha o rio ali que pescava, mas hoje o rio ali não
cial e a gama de pontos de vista e suas respectivas
Editorial práticas, mas, sobretudo, situações de conflito e
presta mais, tá poluído… e era por aí a vida dos meus parentes e nossa família
NEA Nova Cartografia Social / UFRB conhecimentos intrínsecos aos processos reais e às era toda assim, trabalhou muito, vivia de fazer carvão, cortar lenha. Naquele
realidades localizadas.
tempo passava pão nas padarias de lenha, o forno era de lenha e era assim.
Coordenação Geral
Franklin Plessmann de Carvalho, Juracy Participantes da Oficina (2018) A gente andava muito de pé, de balaio na cabeça ia pra feira de São
Marques e Vânia Fialho Altamira Pereira, Ana Lúcia Santos Silva (Dona Ana), Joaquim, que naquele tempo era Água de Menino, não era São Joaquim. Nois
Ariele Dias, Eloides N. Santana, Evanildes (Eva), Eva-
Coordenação da Pesquisa nildes Santos da Cruz, Gildete Melo Basília Bispo dos
dormia de porta aberta, era mato de um lado, mato de outro e nois dizia as-
Érica Oliveira Figueira Santos (Detinha), Iraci Conceição, Joseane Conceição sim, deixa a porta ai aberta. Nada incomodava.
dos Santos, Joselia Reis, Luís Eduardo Melo, Raquel Nasci aqui, vivi aqui e vou morrer aqui.
Fotografias Conceição Pereira (Dona Raquel), Rejane Pereira
Érica Oliveira Figueira e Mirna Wabi-Sabi Rodrigues, Rosemeire Nascimento dos Santos, Seu Eu me considero como quilombola, ser quilombola é pessoa que tem sua
Bernardo, Tim e Valdileine Santos de Melo. liberdade, se tiver sua roça vai desfrutar o que quer, vai plantar o que quer. Eu
Elaboração do Mapa
Érica Oliveira Figueira e Paula Regina de
me considero muito quilombola, quero que meus netos se considerem, meus
Contribuições
Oliveira Cordeiro Aéllio Pereira Nunes, Balbina de Melo (Chierau), Do- filhos, se considerem. Que nois foi nascido e criado aqui, pai, mãe, avó, avô.
mingos de Melo (Pedinho), Fabiane, Fernando de Minha avó morreu com 120 anos, conheci minha bisavô.
Digramação e Projeto Gráfico Melo, Maria São Pedro (Dona Areia) e Wilian Pereira
Ana Paula Silva de Arruda de Jesus (Lula).
(Dona Iraci)

Agradecimentos
CONTATO Christina Schade, Fábio J. M. de Lima, Maria Teresa
Gomes do Espírito Santo, Mariana Balen Fernandes,
Divulgação: NEA Nova Cartografia Social/ Mirna Wabi-Sabi, Paula Regina de Oliveira Cordeiro,
UFRB Paula Adelaide Mattos Moreira e Raue - Residência
Endereço: Centro de Formação de Profes- em Arquitetura, Urbanismo e Engenharia (UFBA).
sores - Avenida Nestor de Melo Pita, 535
- Centro, Amargosa/BA, 45300-000 Associação Quilombola Kingongo do
Contato: ncsqne.ufrb@gmail.com Quilombo Kingoma
(71) 93311353 | (71) 88344414
instagram: @quingomaquilombo

Ficha catalográfica elaborada por Rosiane Pereira Lima - CRB 11/963

N935 Nova cartografia social do Nordeste / Quilombo Quingoma / N. 3 (Jun. 2022) /


Coord. da pesquisa: Érica Oliveira Figueira, Cruz das Almas: EDUFRB, 2022.

Irregular
Coordenação geral: Franklin Plessmann de Carvalho, Juracy Marques e Vânia
Fialho.
22 p.

ISSN 2763-7174

1. Territórios tradicionais. 2. Quilombos 3. Impactos da expansão urbana. I. Tí-


tulo.

CDU 39:304
QUILOMBO QUINGOMA 3
Eu me lembro assim vagamente,
assim 30 anos pra cá, aqui ainda era
um paraíso, como a gente vivia, sem
preocupação, sem violência, e na épo-
ca a gente não tinha água (encanada),
não tinha luz, não tinha nada. As nos-
sas casinhas aqui era umas em fachi-
nada de palha, outros de taipa.
Começando ali do Maxxi, o Mi-
nando, que vinha assim, tudo aquilo
ali a gente andava, a gente tirava o
nosso sustento dali para cá não tinha
dono, não tinha ninguém. Era gente
aqui dentro, era minha família, era mi-
nha mãe, minha avó, meu bisavô, meu
tataravô, era aqui dentro, ninguém co-
nhecia Quingoma.
(Dona Raquel) Aqui foi o primeiro núcleo de re- bola de Itapuã, com o quilombo de
sistência quilombola de 1569, quando onde é hoje Cajazeiras e com o quilom-
Nasci no Quingoma de Dentro, o povo Bantu veio pra cá se refugiar. bo lá de Pernambués. E aí quando o
aqui tudo era mato, minha mãe deu a Era uma mata fechada, o povo veio povo daqui ficou sabendo do levante,
dor no dia de São Pedro, ela saiu sem porque ali era uma área plana, mas o povo daqui foi pra ajudar os Malês,
dor, deu vontade de comer feijão de tem declives que dá pro rio, então eles aí o povo daqui correu, as mulheres,
corda na casa de um homem pra lá ficavam ali, construíram uma fortale- as crianças e os feridos por aqui onde
de Areia Branca descendo o Cobocó. za ali dentro e tinha acesso pro rio pra é o encontro das águas hoje, pelo rio
Ela diz quando botou o pé deu a dor. pescar. E era essa área ali de trás, área Joanes. Eles vieram passaram por Por-
Voltou, chegou no caminho, entrou onde hoje tem o rio Cabuçu. Passavam tão, ficaram escondidos uns dias lá na
aqui com uma parteira e me teve ali por um túnel que eles cavaram num fonte das Pedras, um lugar que tem
mesmo. Diz que a Jararacuçu que foi buraco de sucuri pra dar acesso ao rio. umas grutas. Trouxeram o povo pra cá
minha parteira. O quilombo ficou de 1569 a 1893 sem e ficaram de 1814 até 1893 quando o
Vendia beiju, mangaba, coco, ser encontrado. Eles conseguiam uten- povo foi massacrado pelos fazendeiros
banana... tudo... manga, jaca, e eu saía sílios de fora, atacavam as caravanas da região. Famílias fugiram pra Por-
daqui era com balaio na cabeça pra de Garcia d’Ávila, pegava utensílios pra tão, Capelão, Areia Branca, Cassange,
Itapuã e esse carrinho do lado. Eu criei levar pra dentro, soltava os índios, sol- Barro Duro, foram se espalhando. Eles
meus filhos foi com balaio na cabeça, tava os negros que vinha, levava pra preferiram sair separadamente para
era enxada, capinando a roça dos ou- dentro do quilombo. não serem todo mundo pego. Teve um
tros. A casa de farinha era de meu tio, No levante do Joanes teve com o grupo que ficou aqui, que foi a família
mas morreu, acabou tudo. povo daqui, sabemos que eles tinham de Rejane.
(Maria São Pedro, Dona Areia) ligação, se comunicavam com quilom- (Dona Ana)

4 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE QUILOMBO QUINGOMA 5


OS CONFLITOS E DENÚNCIAS
A CONSTRUÇÃO DA VIA METROPOLITANA
Primeiro descobrimos os pi- pública com a Bahia Norte e defen-
quetes dentro da mata fechada, por- soria pela estrada. Quando chegou
que tem caçador aqui, tem rezadeira. lá que a gente foi descobrir que era
Quando foi um mês depois veio uns um projeto desde 2009 na gestão de
homens armados dizendo que esta- Wagner, que era para desafogar o
vam fazendo um processo demarca- trânsito de Lauro de Freitas, Estrada
ção do governo. Quando foi 15 dias, do Coco, que até então em 2009 a co-
na mata do lado onde eu estava, eles munidade Quingoma não seria cer-
tocaram fogo, era a mata que a gente tificada (só foi certificada em 2013),
retirava a palha pra cobrir as casas... que agora teria que fazer essa via e Eu acho que tem uns 15 a 20 anos que a última casa de palha caiu e em
jaqueira, mangueira, tudo mesmo. Aí o único local que poderia essa via ser 2015 teve um incêndio criminoso da Bahia Norte, quando a gente foi perguntar o
a gente foi e denunciou... 13 de maio feita era o Quingoma. que houve, eu até tenho fotos inclusive, eles falaram que deveria ser alguém que
de 2015 teve a primeira audiência (Rejane) passou fumando. Então a primeira perda da gente aqui em relação a essa estra-
da, em relação a tudo, foi o cultivo das palmeiras imperial. Por que além da gente
tirar pra cobrir a casa, a gente tirava o coco, comia o coco, fazia a lã também do
Hoje a gente não faz um projeto, eles já trazem um projeto feito.
coco. Então até hoje a gente só está perdendo, a gente não está ganhando nada.
(Dona Raquel) Muitos dizem que é progresso, mas não é progresso porque como ela (Dona Ira-
ci) disse, antigamente a gente tinha a nossa liberdade de sair, vou comer caju,
tirar o caju, vamos achar castanha, bora caçar ali que a cotia comeu ali, o tatu
comeu ali, então a gente já sabia o caminho. Tá dando camarão no rio, desce
todo mundo pro jereré, marisca todo mundo, volta faz moqueca, faz tudo. Hoje
a gente não tem isso, primeiro eles privatizaram o rio, o rio que ainda resta, tem
uma família de gaúchos, que fecharam o rio, passaram cercas. O rio que ainda
resta, não é mais rio, é um córrego que eles passaram uma canaleta. O que não
existe mais eles enterraram, assorearam, então assim, nossa vida sempre foi o
cultivo, o plantio, a liberdade. Sem essas ferramentas, que é nosso, que a nature-
za nos deu, a gente vai viver de quê pelo amor de deus? Muitos deles, os jovens na
maioria das vezes, acham que o progresso, o asfalto... mas a gente, digo por mim
tenho 33 anos, Ira 67 anos, como que a gente vai viver esse progresso se a gente
não vai nem usufruir dele. Quando a gente quer nossa paz, tranquilidade, ver o
galo cantar, pra gente saber, olha o galo cantou de madrugada já é 12 horas da
noite. Tudo a gente sabe, qual é a lua pra plantar.
(Rejane)

6 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE QUILOMBO QUINGOMA 7


Onde a rodovia passou, no OS CONDOMÍNIOS, O DESMATAMENTO,
fundo de pai Emanoel, tinha uma ja-
ATERROS, POLUIÇÃO DOS RIOS E
queira centenária que foi cortada…
derrubou gameleiras, inclusive uns
NASCENTES E CENTRAL DE PODAS
dos filhos do pai de santo do terrei-
ro deles entrou em depressão por
A roça não igual não se o… desse
causa disso daí. E eles entraram na
o povo ainda tava vivendo era da roça,
mata armados dando tiro que até
porque eu vou dizer a você tudo o que a
pai Emanuel ficou com síndrome do gente compra hoje é tudo com agrotóxico
pânico e se mudou pra Capelão. Foi e você vê que a gente planta um material
um terrorismo bravo aí. e mesmo que ele não venha preparado
Nessa área onde construíram que a semente ela não vem boa mas
a via tinha pântano, tinha rio, a nas- quando você plantou e tirou a semente
cente acabou, eles aterraram, aqui a dali aquela outra que vem ela já é na-
estrada está. O povo pescava, pega- tural. Se todo mundo plantasse como se
va muito pitu, tinha muito jacaré do plantava antigamente a coisa era outra.
papo amarelo, traíra. Eles comiam Se o camarada compra uma galinha é
e vendiam na feira de São Joaquim. criada a fundo de remédio e antigamen-
Tinha tanta água que pensamos em te não. Se todo mundo criasse aí todo
Não é a via, é o que eles mundo ia viver daqui, será que ia preci-
fazer uma barragem pra criar peixe,
querem fazer com a faixa de sar comprar na CEASA pra vender aqui?
acabou essa possibilidade se o quan-
domínio da via, eles querem Não tinha aqui o porquê eu tô querendo
titativo de água se reduziu a uma
boca de lobo e aterrou as nascentes. construir em cima do território. fazer isso aqui. Aqui tem alguns que faz,
(Rejane) meu sobrinho mesmo gosta de roça. Hoje
Tinha uma nascente que a gente pe-
que tá tudo mudando. Tão mudando
gava limpa pra beber, muita gente
tudo, acabando com os matos, acaban-
se manteve com a água daqui, que Olha nossas estradas como que
do com tudo, mas antigamente aqui era
a Embasa não tinha chegado aqui, a está, olha a via que eles estão fazendo,
bom de se viver, a gente passava sema-
gente descia pra lavar roupa, pra pe- por que não olhou pra gente? Essa é a
nas e semanas na casa de farinha, mas
gar água pra beber, pra tudo. dor de muitos quingomeiros quilombo- depois deixaram de plantar mandioca e
Toda essa área aqui era agri- las daqui de dentro. Eles se diz prote- passaram a plantar só aipinzinho, mas
cultura: aipim, árvores frutíferas, hor- ger o povo, que proteção nós está ten- era bom demais. A gente caçava tatu,
taliças, a rodovia veio, cortou tudo, do? Nenhuma! Quem é nascido aqui paca, cutia, ouriço cacheiro, tamanduá.
abriu no meio, a maioria das pessoas dentro, quem é filho daqui de dentro, Eu acho que vai ficar pior do que o que
ficaram com uma área muito reduzi- sabe toda a história daqui de dentro. A era, porque com essa pista aí muita gente
da e outras foram embora, outras fo- gente olha, a gente vê, enfrenta, e onde tá dizendo aí que vai melhorar por uma
ram obrigadas a sair também. vem os bacanas de lá pra cá. parte, agora por outra…
(Dona Ana) (Dona Raquel) (Domingos de Melo, Pedinho)

8 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE QUILOMBO QUINGOMA 9


(…) acho que tá completando 10 Antigamente a gente tinha mata
nascentes, o Cabuçu acabou, a Água ali, podia fazer o que a gente queria e
Fria acabou, a fonte do Ouro acabou, o hoje em dia não tem mais isso, des-
rio Tomé acabou, pra onde que a gen- mataram tudo, estão acabando com
te vai? Eles tão prejudicando a gente, tudo, as nascentes, então nós não tem
hoje mesmo não tem água, a gente teve mais acesso a essas coisas. Pra poder
água em novembro, aí ficou o princípio, dizer aos nossos netos: “ói a gente vi-
o resto de novembro, dezembro, janei- veu isso aqui e vocês vão viver a mes-
ro, fevereiro e março sem cair água. ma coisa”, mas hoje em dia eles não
Chorando a gente levantava, ia 2, 3 ho- vevem mais o que a gente viveu, é tudo
ras da manhã, que embaixo a gente des- cercado, tudo roçado, cada qual o seu
colava o tubo, para chorar aquela água dono, eles não vão invadir o território
pra gente pegar pra beber, e onde eles dos outros, nós não vamos deixar.
estão massacrando os quilombolas e aí.
(Dona Raquel) (Dona Iraci)

Já tem muitos lugares que foram


devastados, tem lugar que a gente pro-
cura e não acha (plantas medicinais).
Tem folhas que só surgem em determi-
Cresceu mais o lugar por causa das obras que construiu, obra do nadas épocas, elas não tem o tempo
lado, obra do outro, a gente não tem mais a liberdade que tinha todo. Tem folhas que é só do inverno,
tem folhas que é só do verão, tem folhas
antigamente. Por que vai apertando o lugar, vai apertando o lu-
que é só na primavera que você conse-
gar e a gente vai viver como? gue e tem folhas que é só no outono.
(Dona Iraci) Então tem essas questões e tem lugares
que a gente vai procurar e já não tem
A mãe da gente aqui era o rio, bom demais, agora acabou tudo. Já mais porque está muito devastado. Pra
era o Aguinha Limpa, tinha umas nem tenho coragem de chegar na bei- você ir pro mato, tem muita área restri-
pedras, a gente ia, descia lá, mer- rada que o fedor sobe. Quando dava ta agora, se chegar perto eles querem
gulhava lá e pegava cada robalo, só uma chuva isso aí enchia de uma me matar, ameaça. Eles têm sítios, têm
você vendo os tipos de peixe que a maneira que só vendo. Aí na gestão fazendas, têm os aras deles, têm muita
gente pegava lá na Pedra, hoje em dela, quando ela entrou essa Moema coisa e aí não deixa mais entrar. No rio
dia ninguém pode ir mais. Hoje em aí que fizeram uma limpeza, a água mesmo, privatizou o rio e ninguém mais
dia tá morto, porque depois que en- descia direto e não tinha mais aque- pode passar pelo rio, nem pescar, nem
trou Leão, o Prefeito, jogaram esgoto la enchente brava, agora ouvir dizer mais nada. A comunidade perdeu a sua
dentro do rio... depois que construí- que já tá tendo lá na Caixa d’Água pesca, a sua caça. Um a via aterrou e a
ram vários condomínios. Era robalo, aquela enchente brava. outra, a área está restrita.
tainha, carapeta, camarão, pitu, era (Domingos de Melo, Pedinho) (Dona Ana)

10 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE QUILOMBO QUINGOMA 11


12 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE QUILOMBO QUINGOMA 13
Empresários vieram pra cá, pegou Porque eles tão fazendo isso, porque
um monte de terras, começou a apossar o governo, o Estado não tá olhando pra
das terras, e tão construindo fazendinhas aí gente, porque se eles tivessem olhando pra
o sitiamentos que ele comprou fica dividido gente, pra comunidade quilombola, antes
por cores, de vermelho, amarelo, azul e cada de fazer a via, eles tinham dado nosso tí-
uma dessas cores tem uma metragem de tulo, tinha dado nossa demarcação. Agora
terra que ele vai vendendo individualmente, todo mundo se diz dono. Como é que uma
são lotes que ele tá vendendo. Além disso ele comunidade quilombola estar satisfeita
soterrou um monte de nascente. (Rejane) com essas atitudes?
Meu pai não tem problema de
Conflito condomínio Campos Verde pressão alta, não tem problema de
fechou acesso. (Tim) stress, não tem problema de nada, o que
tá acontecendo com ele é a idade. E hoje
Fechou a via mais antiga, que dava como a gente vê a ganância dos poderes
acesso a antiga favela que agora é Primei- públicos que querem tomar isso aqui a
ra Quingoma com a Caixa d’Água, que nem qualquer custo.
fizeram com a gente de Portão. Os condo- A gente tivemos uma reunião com
alguém, não vou dar o nome, mas ela dis-
mínios vem pra fechar acesso. O condomí-
se que vinha a melhorar mas tinha árvo-
nio Encontro com as Águas fechou nosso
res que poderiam ser derrubadas, e ela
acesso, nosso diálogo era Quingoma de
disse que não poderia se fazer uma ome-
Fora - Portão, atravessava o rio Ipitanga
lete sem quebrar os ovos, a gente disse
e já estava em Portão, pra fazer a troca,
sim, é justo, fazer o omelete sem quebrar
pra fazer o comércio, pra visitar as famí-
os ovos. Mas pra onde vai o omelete? Vai
lias. De repente surgiu os condomínios e a
pra gente aqui quingomeiro? O que vem
gente não tem mais. (Rejane)
pra gente é a casca, não é o omelete, en-
tão foi isso que marcou também na mi-
A gente pescava e tomava banho ali
nha mente e coração. A gente tem aquela
no rio (Rio do Tanque). (Tim)
gameleira, a gente tem a pitanga, tinha
aqui o brejo, que no verão a gente pega-
Ali no Brejinho? Ali era nossa praia,
va camarão, pegava traíra, hoje não tem
e sentava e arriava o balaio, era lugar de
mais. Aí eles dizem que a gente não pode
descanso, da luta, da feira. (Dona Raquel) botar o sentimento da gente não, a gente
não pode contar uma história se não falar
E depois futuramente era ponto de do sentimento da gente. Então hoje a gen-
tirar lama do sapato. (Tim) te vê a situação que tá. A ambição deles
pelo capital é o que eles querem da gente.
Rio do tanque está poluidíssimo!
(Rejane) (Dona Raquel)

14 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE QUILOMBO QUINGOMA 15


BAIRRO NOVO E AMEAÇA DO POVO QUILOMBOLA A comunidade aqui está refém, (…) onde tem as famílias
eles estão segurando mesmo, porque quilombolas, e aqui no Pandei-
a intenção é acabar com o Quingo-
rão que eles querem desalojar,
Em 98 a gente sofria muitas per- matava cachorro. Isso porque não é de ma de Dentro e a iniciativa privada
eles querem fazer uma portaria
seguições por causa do (condomínio) En- agora que a gente vive sofrendo. Agora tomar conta de tudo. Eles estão con-
vencendo as pessoas que é melhor desse condomínio.
contro das Águas, onde nós moramos é que virou do público ficou mais efetivo
elas saírem e receber indenização, (Dona Ana)
alto, então Encontro das Águas é baixo. depois do reconhecimento da comuni-
A visão dos moradores do condomínio dade com certificado e tudo mais. Agora porque vão tirar eles de qualquer jei-
to… pra tirar eles da resistência, da Eles querem tirar a gente da-
abre a porta do fundo ou da frente, de- piorou, assim, o que que eles vão fazer,
luta, pra depois levarem eles pra mo- qui, e a gente daqui vai pra onde? Pra
pende como fica a casa dele, dá pro lado não é só a construção desse bairro, é a
rar perto de um presídio, que é uma lugar nenhum. E aí eu vejo como eles
dos pobres, que somos nós, que estamos retirada, eu creio, que 80% da família
área desvalorizada. Por que quem querem, eles não querem mais que mi-
em cima, então eles começaram a per- aqui do Quingoma de Dentro.
quer morar perto de um presídio? nha família cresça, e diminua cada vez
seguir, derrubava casa, fazia miséria, (Rejane)
Nessa área do bairro novo mais porque se a gente ficar com pou-
tem muitas árvores centenárias que ca terra meus filhos não vão poder me
vão pro chão. Tem jaqueiras, game- dá neto, meus netos não vão poder me
leiras, plantas que o pessoal plantou dar um tataraneto, por quê? Porque
pra sobreviver, pra subsistência, ro- não tem onde morar. Se antes a gente
ças, tem tudo aqui nesse lugar. Tem tinha essa liberdade e por que hoje a
moradores antigos. Inclusive eles gente não tem? Eles não querem dar
queriam destruir uma rua lá da área essa liberdade para a gente.
de Rejane, pra desapropriar as famí- (Dona Raquel)
lias que tão lá há séculos pra fazer
ligação com esse bairro novo e com
a rodovia também. Esse bairro quer
toda a área do entorno, vai tirar o
Pandeirão para fazer uma portaria
pra esse bairro novo, e aí vem mais
coisas pra desalojar.

(Dona Ana)

A vila do Pandeirão foi consti- aqui. Foi Pandeirão que as pessoas Tem um tal de chamado bairro
tuída pela luta e resistência do povo mais ajudaram no processo de luta, novo, que é tudo mata densa
daqui do Quingoma de Dentro e eles nas caminhadas, no enfrentamento de
ainda que a gente faz uso pra
querem acabar com essa vila. A maior tudo… que se tornou uma vila histórica
parte das casinhas no PNHR (Progra- por causa da luta de resistência e da
culto religioso, pra retirada das
ma Nacional de Habitação Rural) que tomada de espaço nosso. ervas medicinais.
a gente conseguiu estão concentradas (Dona Ana) (Rejane)

16 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE QUILOMBO QUINGOMA 17


O EXTRATIVISMO E O SAGRADO
Tudo onde é a parte onde eles vão construir equipamentos
comunitários, que eles dizem que é para o bairro novo, é onde
tem maior concentração de folhas sagradas.
(Dona Ana)

A gente se utiliza das águas, das folhas, da lua, da questão da natureza


mesmo, de ir no mato e pegar as folhas que precisa pra fazer... e eu nas minhas
sessões eu pego a folha do mato pra passar o banho, as maracas dos caboclos,
que é feito de cabaça, tudo isso é usado como elementos de cura. Hoje por con-
ta das igrejas evangélicas muita gente não vem, as vezes até vem escondido
ou com medo por causa do pastor que diz que é coisa do diabo, mas algumas
Perto da minha área, de um de velho, cidreira, mastruz, cana de
pessoas ainda vem perguntar: ”Dona Ana, o que é bom pra isso e isso?”. Eu digo
lado, de outro tem barbatimão, vão macaco, araçá do mato, esse tipo de
faça assim e assim, eu ensino, vai no rio ou vai no mar... na contação de história
tirar porque vai passar um acesso pro planta está espalhado pelo território,
a gente também utiliza pra contar as folhas pra que servem, o bem que faz.
asfalto, acabou barbatimão da gente, mas aqui nessa área de caça e pesca,
(Dona Ana)
que a gente vai aqui no fundo e lasca era tudo mata fechada.
pra fazer um banho, pra fazer uma Antes tinha de monte a candeia
infusão, pra sarar pereba, pra sarar branca, o barbatimão, amescla mas
o útero e não tem como. Barbatimão hoje esta raro, cana de macaco está
é umas das fontes de renda da comu- raro, dá mais em área alagadiça mas
nidade. As sementes que a gente con- eles estão acabando com essas áreas
segue pra fazer artesanato, o olho de tá ficando extinta a vassourinha, o in-
boi, que é uma planta que a gente tira gazeiro estão sumindo, o ingá mirim e
tanto pro sagrado, tanto pra fazer ar- o de metro, todos os dois são usados no
tesanato, a semente da sucupira tanto sagrado só que estão sumindo dão nas
pra fazer remédio como artesanato beiras dos rios as amesclas, tinha muito
também, a palha do licuri pra fazer na área onde passou a rodovia, cabô.
vassoura, o coquinho pra fazer óleo O caju, a mangaba, o licuri, o
de coco, fazer a moqueca, pra fazer dendê, tudo isso pra comer e vender
cocada e pra fazer o cordãozinho. na feira onde você vende e onde a gen-
Tem gente que vende na feira a puba, te entra pra pegar os produtos que a
o beiju e as folhas do sagrado, ainda gente precisa tanto pra subsistência
tem muita gente que vai na mata pra quanto pra vender. Pra pegar tatu, pra
colher e vender. Capim santo, aroeira, vender ou pra comer também.
espinho cheiroso, barbatimão, canela (Dona Ana)

18 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE QUILOMBO QUINGOMA 19


O “PROGRESSO” NÃO É O FUTURO QUE QUEREMOS Meu pai nunca teve oportunida-
de, minha mãe nunca teve oportunida-
de, ninguém, ninguém aqui, é o nosso
sustento, a nossa farinha, a nossa car-
Se você ver nossa casa e tudo na beira da estrada, porque na realida- ne era tirada tudo daqui de dentro de
de nosso costume era tudo ficar ali no terreiro, contando história, fazendo e Quingoma. Então isso aqui foi passado
acontecendo. Nós não estamos preparados para esse progresso. Não é o que de geração pra geração.
a gente sonhou para nossa terra querida o jeito que tá. Queremos uma forma Antes aqui dentro tudo era plan-
estruturada no nosso ponto de vista e não no ponto de vista capitalista. Que a tado, o que imaginasse aqui dentro
gente possa ter nossas casas, que a gente possa criar nossos cachorros, nos- nois tinha. Aqui mesmo embaixo a gen-
sas galinhas. Esse progresso não veio pra nos beneficiar em nada. Os outros te pescava, pegava camarão, chegava
acham que veio trazer emprego, que emprego é esse? É um emprego de des- aqui assava ele na brasa, fazia o fogo,
valorização, que você vai continuar limpando chão? Se vem tanto empreen- ia pro rio de noite. Era uma coisa que a
dimento pra terra, porque não valorizar a mão de obra local, vão capacitar gente não dependia de comprar lá fora
os adolescentes, os jovens para poder estar ocupando cargo diferente? Não um tomate, imagina uma cebola.
cargo pra estar varrendo rua e limpando. Já que invadiu nosso território, tem Eles só querem tirar da gente,
que dar um tratamento diferenciado pra gente que tá aqui e a gente não vê agora vir pra gente, não tá vindo nada,
nada, eles só querem tirar, tirar, tirar. só destruição.
(Rejane) (Dona Raquel)

Meus netos não têm acesso al-


gumas coisas que pode ter, que nem a
gente tinha liberdade de viver à vonta-
de, brincar, fazer as coisas que a gente
fazia, não vão ter mais a vida que a
gente tinha, né? Eles pode ter melhoria
nos estudos, em alguma coisa, mas so-
bre o que a gente tinha antes eles não
vão ter mais esse acesso.
(Dona Iraci)

As pessoas não percebem que


eles não estão incluso nesse
“progresso” que vai vir aí.
O ideal é o território que a
gente consiga sobreviver, só
isso mais nada.
(Rejane)

20 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE QUILOMBO QUINGOMA 21


LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Campinho de futebol, próximo à Casa do Camba. (FIGUEIRA, 2019)


Figuras 02 a 05: Grafite no território do Quilombo Quingoma. Trabalho de Campo
RAUE, 2018. (FIGUEIRA, 2018); Igreja São José. (FIGUEIRA, 2019); Seu Bernardo (WA-
BI-SABI, 2018); Casa do Samba. (FIGUEIRA, 2019)
Figura 06: Mapa criado durante as oficinas. Trabalho de campo do RAUE. (FIGUEI-
RA, 2018)
Figura 07: Passeio para ver intervenções da Via no território quilombola. Trabalho
de campo RAUE. (FIGUEIRA, 2018)
Figura 08: Procurando vestígios do rio que passava aí antes das obras da Via me-
Moro há 10 anos e amo a co- a gente criou um projeto do quintal tropolitana. Trabalho de campo RAUE. (FIGUEIRA, 2018)
munidade, sou apaixonada, me rece- produtivo que é piscicultura, cotoni- Figura 09: Condomínio avançando nas matas do Território do Quilombo Quingo-
beram muito bem. E depois da luta cultura, ovinicultura. Tem a parte de ma. Trabalho de campo RAUE. (FIGUEIRA, 2018)
deles que eu vi, que é um quilombo hortaliça, vem a parte de cozinha co- Figuras 10 a 13: Construção parada do Programa Minha Casa, Minha Vida Rural;
que tem que ser merecido e respeitado munitária, aqui teve quatro casas de Condomínios recentes no território quilombola; Obra do Hospital Metropolitano;
acho que tem que levantar novamente farinha, o pessoal conhece a história Lixão antes de ser aterrado. (FIGUEIRA, 2018)
a agricultura da comunidade porque da fabricação da casa da farinha, mui- Figura 14: Quilombo Quingoma. (FIGUEIRA, 2018)
o pessoal daqui vendia nas feiras de ta mandioca. Então a comunidade me- Figura 15: Palmeiras do Território Quilombola. (FIGUEIRA, 2018)
Itapuã, nordeste de Amaralina, tinha rece resgatar a cultura local. Resgatar Figura 16: Desenhos feitos por quilombolas de árvores presentes nas matas do
muita produção só que ninguém nun- o merecimento das pessoas que viviam território. (FIGUEIRA, 2018)
ca deu valor. Eles que tem área ainda disso, o pessoal chegou aqui desmatou Figura 17: Feira Local com produtos feitos no Quilombo Quingoma. (FIGUEIRA, 2018)
querem resgatar a agricultura familiar tudo, tirou os rios, a parte imobiliária Figura 18: Oficina com crianças para trabalho da RAUE. (FIGUEIRA, 2018)
da comunidade e do município, que tá querendo crescer, a gente não quer Figura 19: Dona Ana mostrando plantas mais importantes no seu quintal mas que
Lauro de Freitas nunca teve oportu- isso, a gente tem áreas, a gente quer estão presentes também nas matas do território. (WABI-SABI, 2018)
nidade, nunca se interessaram pelos produzir, a gente tem produção, a gen- Figura 20: Dona Iraci. (FIGUEIRA, 2019)
agricultores familiares do município te quer o respeito da parte agrícola. Figuras 21 a 24: Dona Areia e Pedinho (FIGUEIRA, 2019); Sambadeiras de Areia
e muito menos do Quingoma. Então (Fabiane) Branca em evento na Casa do Samba; Desenho feito por criança quilombola; Ofici-
na do fascículo. (FIGUEIRA, 2018)
Figura 25: Manifestação no Quilombo Quingoma pela Titulação. (FIGUEIRA, 2018)
Figuras 26 e 27: Manifestação no CAB - Centro Administrativo da Bahia; Represen-
tação terreiro ecumênico feita por quilombola. (FIGUEIRA, 2018)

O trabalho de campo apresentado foi iniciado e desenvolvido pela autora durante


a Residência, o qual deram continuidade durante a realização da cartilha para a Nova Car-
tografia, unindo as entrevistas com as fotos e parte do mapeamento realizado em 2018
durante a Especialização em Assistência Técnica em Habitação e Direito a Cidade, na Facul-
dade de Arquitetura da UFBA. A especialização é referenciada como Residência em Arqui-
tetura, Urbanismo e Engenharia, citada com a sigla Raue nessa publicação.

Para mais informações consultar: http://www.residencia-aue.ufba.br


22 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE
24 FASCÍCULO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DO NORDESTE

Você também pode gostar