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DANIELA ARAÚJO DA SILVA

DIÁSPORA BORUM:

Índios Krenak no Estado de São Paulo (1937-2008)

ASSIS
2009
2

DANIELA ARAÚJO DA SILVA

DIÁSPORA BORUM:

Índios Krenak no Estado de São Paulo (1937-2008)

Dissertação apresentada à Faculdade de


Ciências e Letras de Assis – UNESP –
Universidade Estadual Paulista para a obtenção
do título de Mestre em História (Área de
Conhecimento: História e Sociedade)

Orientador: Paulo José Brando Santilli.

ASSIS
2009
3

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Silva, Daniela Araújo da


S586d DIÁSPORA BORUM : Índios Krenak no Estado de São
Paulo (1937 – 2008) / Daniela Araújo da Silva.
Assis : [s.n.], 2009.
191 f. : il.

Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual


Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, 2009.

1. Índios Krenak. 2. Índios da América do Sul - Brasil.


3. Migração de povos. I. Título. II. Autor.

CDD 980.3
4

Dedicatória

À memória de minha mãe


5

Agradecimentos

Foi o compartilhar histórias que permitiu que eu escrevesse tais páginas. Não é a única
versão, nem a verdade absoluta. É o fruto de um tempo e do diálogo que pude estabelecer
com os Krenak, moradores de Vanuíre. Tenho certeza que nomes deixaram de ser por mim
registrados nesta folha ainda branca, mas quantos sorrisos e olhos curiosos eu pude ver me
observando enquanto eu esperava observá-los. De alguns, obtive bem mais que um aceno, um
sorriso. Houve aqueles que me abriram suas casas e o baú de suas memórias. Minha eterna
gratidão a: Maria Helena Numiak Cecílio Damaceno, João Borun Batista de Oliveira, Mário
Tepó Cecílio Damaceno, Maria Aparecida Conechú Damaceno, Antonio Cecílio Damaceno,
Maria Aparecida Caiuá Damaceno, Mariana Cecílio Damaceno, Gracina Umbelina, Tiago
Umbelina, Jovelina Damaceno, Jandira Umbelina Jorge, Antonio Jorge, Luzia Conechú Vara,
Edmar Adílson, Norma Barbosa, Nayara Barbosa, Aline Damaceno Cotuí, Lidiane
Damaceno, Diego Barbosa. No P.I Krenak agradeço ao casal Santa e Nirildo, que tão
gentilmente me receberam e me abrigaram em sua casa.
Aos professores Niminon Pinheiro, Célia Camargo, Wilton Silva e Hélio Rebelo, pela
contribuição dada para minha formação e, em especial, ao meu orientador Paulo Santilli.
Lembro da alegria que senti, ainda no 1º ano de graduação, ao descobrir o que fazia um
antropólogo, e o melhor, que esse “estudava índio”.
Antes de me descobrir pesquisadora, sonhei em ser professora de História. Esse sonho
me levou até Assis, cidade que me presenteou com grandes companheiros. André Luiz
Gonzaga que dividiu comigo a dor e a alegria dos primeiros dias de Moradia Estudantil.
Andréa de Luca, por sua imensa generosidade, pessoa de luz, exemplo para mim. Antônio
Yoshimatsu, pela mão amiga em todos os momentos que precisei. Larissa Fumes, por dividir
comigo os sentimentos mais profundos. Maria Clara, companheira nos intensos períodos de
estudo. Danilo, pela alegria e as aulas de Francês. Bel, pela perseverança e coragem. Em
especial, ao César Doriguelo que, com toda sua erudição, me auxiliou quando o mestrado era
apenas um sonho e à Rita de Cássia, sem a qual eu não teria suportado a solidão da escrita.
Antes de me imaginar professora eu fui criança, e agradeço àqueles que estão comigo
desde o início: Neide da Silva, Sônia Maria da Silva, Antônio Carlos da Silva e Nilson Santos
da Silva.
6

Olhando o futuro o vejo. Toda a minha gratidão ao Thiago, companheiro sempre.


Quantas viagens até Vanuíre, quanto barro na estrada, quantas quentinhas no mercado
Avenida de Tupã.
Muito obrigada!
7

Resumo
Esta dissertação tem como propósito uma reconstituição da trajetória dos índios Krenak desde
o Vale do rio Doce, no Estado de Minas Gerais, para a Área Indígena Vanuíre, no Estado de
São Paulo, imposta pelo Serviço de Proteção aos Índios. O desterro constituiu uma prática
sistemática imposta pelo SPI a diversos povos indígenas com vistas a implementar a
colonização e a exploração econômica de seus territórios de ocupação tradicional. O presente
texto busca reconstituir a trajetória específica de um grupo apartado do povo Krenak a partir
da memória oral transmitida no contexto do convívio e partilha territorial com um grupo
local, os Kaingang, e de registros documentais arquivados no Museu do Índio. Através da
coleta e da análise de narrativas, trata-se de interpretar os possíveis sentidos conferidos pelos
Krenak à reelaboração da própria identidade étnica, referenciada ao contexto e, marcado por
sua conversão ao pentecostalismo.

Palavras Chave: Krenak, memória, dispersão, indígenas, identidade, etnicidade,


pentecostalismo, Vanuíre.
8

Abstract

This dissertation has the purpose of rebuilding the process of Krenak Indians migration from
Vale do Rio Doce, Minas Gerais state, to Vanuíre, an Indigenous Area in São Paulo state.
Such process was supported by the Indian Protection Service. The exile was a systematic
practice imposed by the SPI to different indigenous peoples in order to implement the
colonization and economic exploitation of their areas of traditional occupation. This text
seeks to reconstitute the trajectory of a specific group of Indians throughout their oral memory
which was transmitted during the experience lived with other Indigenous local groups, the
Kaingang. Through the analysis of the narratives, it interprets the possible meanings given by
the Krenaks to the elaboration of an ethnic identity, understood here in the context of their
conversion to pentecostalism.

Keywords: Krenak, memory, exile, indigenous, identity, etnicity, pentecostalim, Vanuíre.


9

Lista de Abreviaturas

P.I - Posto Indígena


S.P.I - Serviço de Proteção ao Índio
S.P.I.L.T.N - Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
GRIN - Guarda Rural Indígena
GT - Grupo de Trabalho
CCB - Congregação Cristã do Brasil
CEDEFES - Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva
10

Sumário:

Considerações Iniciais...............................................................................................................12

Capítulo 1 - Breve Histórico: Os últimos Botocudos do Leste.............................................22

1.1-Os Krenak e a política indigenista do período republicano................................................31


1.2- Concentração e dispersão: os dois lados do processo de territorialização vivido
pelos índios Krenak...................................................................................................................34
1.3 - Atração: concentrados no Posto do Eme....................................................................... .34
1.4 - A dispersão do povo Krenak: a ida para o Posto Engenheiro Mariano de Oliveira.........41
1.5 Reformatório Agrícola Krenak: os Krenak sob vigilância..................................................49
1.6 - O desterro continua: os índios na Fazenda Guarani.........................................................54
1.7- Produção bibliográfica: os índios Krenak observados......................................................62

Capítulo 2 - A manifestação e reconstrução da identidade Krenak em Vanuíre...............75


Vanuíre: os índios Krenak em território paulista......................................................................76

2.1 - A identidade étnica: os Krenak na diáspora .....................................................................92

Capítulo 3: A inserção da Congregação Cristã do Brasil na aldeia Vanuíre..........,.......113


A identidade religiosa em Vanuíre..........................................................................................114

3.1 - A Congregação Cristã do Brasil.....................................................................................123

3.2 - A Igreja Congregação Cristã na aldeia Índia Vanuíre....................................................124

3.3 - O início da conversão.....................................................................................................132


3.4 - Os Krenak e o Sobrenatural............................................................................................148
3.5 - As condutas na Congregação Cristã...............................................................................157
3.6 - Vanuíre Futebol Clube....................................................................................................160

Conclusão................................................................................................................................164
11

Fontes......................................................................................................................................169
Notas bibliográficas................................................................................................................170
Anexo......................................................................................................................................177
Alguns dados quantitativos sobre a escolha religiosa na aldeia Vanuíre................................178
Acervo fotográfico..................................................................................................................187
12

Considerações iniciais

A presente dissertação1 tem como propósito uma reconstituição da trajetória de


migração dos índios Krenak do Vale do Rio Doce, no Estado de Minas Gerais, que são
levados para a Área Indígena Vanuíre, no Estado de São Paulo, pelo Serviço de Proteção aos
Índios no século XX. Buscamos também interpretar os possíveis sentidos conferidos pelos
Krenak á reelaboração da própria identidade étnica, referenciada ao contexto em que foram
inseridos, marcado pela conversão ao pentecostalismo.
Os Krenak, povo de filiação linguística Borum, pertencente ao tronco Macro-Jê. São
apontados como os últimos Botocudos, grupo extenso que habitava a Mata Atlântica no Baixo
Recôncavo Baiano, deslocando-se, para os Estados atuais de Minas Gerais e Espírito Santo.
Designados “Botocudos”, sobre eles incidiram as práticas mais violentas, concebidas pelo
Estado, desde o período colonial: alvo de uma “guerra ofensiva”, declarada por D. João VI em
pleno século XIX, de chacinas perpetradas por particulares, ao longo de décadas consecutivas,
de desterros, banimentos e trabalhos forçados, impostos pelo próprio órgão indigenista oficial,
ainda na segunda metade do século XX.
A formação e a consolidação do Estado Brasileiro resultam dos processos de conquista
de território, da expansão de suas fronteiras. No entanto, essa conduta territorial,2 entra em
choque com grupos sociais que possuem dinâmicas diferentes. Os povos indígenas aparecem
como obstáculo diante dos projetos de expansão nacional, sua incorporação e controle a
solução para o problema. Para tanto, iniciou-se o que podemos definir como processo de
desterritorialização, ou seja, a reorganização dos povos indígenas em terras circunscritas pelo
Estado.3
Nos estudos realizados sobre os povos indígenas do nordeste brasileiro, João Pacheco
de Oliveira nos mostra que os processos de territorialização vivenciados por essa população,
durante o período colonial, foi diferente do gerado no século XX, pela política indigenista
atual. Enquanto nas Missões havia o pressuposto da homogeneização que, por meio da
catequese e da rotina de trabalho, deveria integrá-los ao restante da população. Com a criação

1
O texto foi revisado de acordo com as novas normas ortográficas de 2009.
2
Termo utilizado por Paul Little.
3
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e
fluxos culturais. Mana 4(1), 1998, p. 47-78.
13

dos Postos Indígenas, o processo de assimilação foi abandonado, passando o progresso


material a ser uma tarefa apenas dos não índios. 4
Assim como os índios do Nordeste, os Krenak foram submetidos a um longo processo
de desterritorialização. Os conflitos territoriais são uma constante na trajetória histórica vivida
por eles. A invasão dos colonizadores em seus territórios gerou enfrentamentos violentos,
deslocamentos, reagrupamentos. Considerando apenas a história mais atual do grupo em
questão, só no século XX eles viveram várias imposições de desterro. O primeiro deles
começa com a atuação do SPI, órgão indigenista republicano, responsável pela pacificação e
incorporação dos índios à sociedade nacional. O contato com os funcionários do órgão gerou,
num primeiro momento, o deslocamento das terras do Espírito Santo, para o vale do Eme, em
Minas Gerais. Depois, foram concentrados próximos ao Posto estabelecido pelo SPI, sob a
vigilância constante de um chefe de posto, responsável por impor os novos limites territoriais.

Se, antes, os povos indígenas ocupavam grandes porções de terras, foram sendo, ao
longo da história reunidos em parcelas bastante reduzidas. No início da República, o Governo
Federal criou as Terras Indígenas, mas elas só passaram por um processo de demarcação com
o consentimento das outras esferas políticas, estaduais e municipais. Essa dependência gerou
novos parcelamentos, titulações sendo oferecidas a terceiros. No caso especifico dos índios
Krenak, o SPI não foi capaz de assegurar a ocupação efetiva do território indígena; mesmo
após a demarcação, interesses outros, que não o do grupo indígena, forçaram os índios Krenak
a viver um outro processo de territorialização. Antes agrupados, os índios passariam a viver o
desterro e, com ele, a pulverização: Vanuíre, Bananal, Maxacalis, Fazenda Guarani, entre
outros destinos.

Se considerarmos a acepção de território, conforme tematizada na literatura


antropológica, do espaço em que é feito o investimento simbólico por um povo, poderemos
constatar que a política indigenista da República criou terras, desconsiderando
territorialidades. Ao transferir seus nativos, depois de décadas de ocupação, não os estavam
privando apenas das condições de sobrevivência ali encontradas, mas de outras formas de
vida, como as tradições, suas crenças nos seres sobrenaturais, o convívio com os parentes.

4
Ibidem, p. 57.
14

A prática da transferência condiz, perfeitamente, com a lógica da política indigenista.


O índio, visto como grupo social diferenciado, foi pensado em vias de desaparecimento;
consequentemente, não havia lugar para o uso que eles faziam da terra enquanto território.
Esses novos destinos que foram impostos com os desterros, eram, na verdade, o lugar
nenhum. Se todos seriam incorporados, qual a diferença entre Vanuíre, Krenak ou Maxacalis,
uma vez que em todas as áreas indígenas estariam inseridos na mesma dinâmica de trabalho
voltada para a produção agrícola, para o uso individual da terra, para o emprego da mão-de-
obra nas fazendas vizinhas?
Embora o vínculo com o território seja profundo, a identidade de um grupo se
manifesta além dos limites territoriais antes estabelecidos. A vinda dos índios para o Posto
Indígena Vanuíre, não foi capaz de apagar o sentimento de pertença étnica. A identidade
étnica que os define como índios Krenak não pode ser pensada como uma essência ou
substância; ela é construída e reconstruída frente a um contexto. Sobre isso escreve João
Pacheco:

A etnicidade supõe, necessariamente, uma trajetória (que é histórica e


determinada por múltiplos fatores) e uma origem (que é uma experiência
primária, individual, mas que também está traduzida em saberes e narrativas
aos quais vem a se acoplar). O que seria próprio das identidades étnicas é
que nelas a atualização histórica não anula o sentimento de referência à
origem, mas até mesmo o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa
contradição que decorre a força política e emocional da etnicidade.5

Dessa maneira, a identidade Krenak, manifestada em Vanuíre, só pode ser observada


dentro de espaços temporais. A incorporação de novas crenças, sua ressignificação ou o
abandono de outras, é uma resposta à conjuntura, na qual estão inseridos. E, embora os
processos de territorialização sejam imposições exógenas, os índios não só reconstruíram a
identidade na diáspora, como deram significados próprios a essa trajetória de mudança. Hoje,
convertidos, os índios são conscientes da violência com que agiram os funcionários
responsáveis pela sua “proteção”, mas também dão à mudança um caráter divino: Deus
desejou que vivessem junto aos Kaingang. A constante atualização histórica, também neste
caso, não apagou a referência à terra de origem, às crenças anteriores à conversão ao
pentecostalismo.
5
OLIVEIRA, João Pacheco de. Op. cit, p. 64.
15

As fontes e o caminho metodológico

Não deixando de considerar a violência com que se deu o encontro entre os índios
Krenak e as frentes de expansão colonizadora, não faremos uso de uma imagem tantas vezes
apresentada: passivos, subjugados, dominados, vencidos. Buscamos nos aproximar da visão
do grupo sobre os fatos, valorizando, neste caso, as estratégias de sobrevivência criadas por
eles. Seja ao abordarmos a questão da identidade étnica ou a inserção do pentecostalismo na
Aldeia Vanuíre, essa é sempre uma história de acomodações, de acordos, de alianças. Mesmo
nas apropriações simbólicas feitas por eles, existe o espaço para a reformulação, para a
adaptação. Essa leitura não poderia ser feita sem o uso da fonte oral e dos procedimentos da
história oral. Recorrendo aos trabalhos da memória, valorizamos a vivência e a percepção que
esses agentes sociais têm sobre o meio em que estão inseridos.
No desenvolvimento do nosso trabalho, optamos por dois tipos de entrevistas: as
temáticas e as histórias de vida. Alberti esclarece quanto às diferenças:

As entrevistas temáticas são aquelas que versam prioritariamente sobre a


participação do entrevistado no tema escolhido, enquanto as de história de
vida têm como centro de interesse o próprio indivíduo na história, incluindo
a sua história desde a infância até o momento em que fala, passando pelos
diversos acontecimentos e conjunturas que presenciou, ou de que se
interou. Pode-se dizer que a entrevista de história de vida contém em seu
interior, diversas entrevistas temáticas, já que, ao longo da narrativa da
trajetória de vida, os temas relevantes para a pesquisa são aprofundados.
(...) Apesar dessas diferenças, ambos os tipos de entrevista de história oral
pressupõem a relação com o método biográfico: seja concentrando-se sobre
um tema, seja debruçando-se sobre um indivíduo e aos cortes temáticos
efetuados em sua trajetória, a entrevista terá como eixo a biografia do
entrevistado, sua vivencia e sua experiência. As entrevistas temáticas são
aquelas que versam prioritariamente sobre a participação do entrevistado no
tema escolhido, enquanto as de história de vida têm como centro de
interesse o próprio indivíduo na história, incluindo a sua. 6

Como a pesquisadora nos informa nos dois procedimentos, é a partir de sua vivência
que o entrevistado fala. Para a escrita do primeiro capítulo, colhemos histórias de vida;
interessava-nos conhecer como foi sua trajetória até Vanuíre, quais os motivos de estarem ali,

6
ALBERTI, Verena. Manual de história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 37.
16

quais os sentimentos gerados pelo desterro. E, sendo a história de vida um conjunto de


temáticas, chegávamos à convivência entre eles e os Kaingang, relação discutida no 2º
capítulo. Já no 3º capítulo tínhamos uma temática mais definida, de maneira que, ao
iniciarmos a entrevista o depoente era informado de que falaríamos sobre as crenças, sobre a
religião. Nas entrevistas de história de vida, não havia interrupções, tendo algumas durado
longas horas. Já nas entrevistas temáticas, íamos direcionando o assunto para aquilo que
desejávamos saber, mas respeitando a privacidade do entrevistado sobre o queria narrar.
Segundo Thompson:

Há algumas qualidades essenciais que o entrevistador bem-sucedido deve


possuir: interesse e respeito pelos outros como pessoas e flexibilidade nas
reações em relação a eles; capacidade de demonstrar compreensão e
simpatia pela opinião deles; e, acima de tudo, disposição para ficar calado e
escutar.7

Buscamos entrevistar pessoas de faixas etárias diferentes, para perceber, nesse caso,
como a memória é transmitida e elaborada entre as gerações. Quando possível, entrevistamos
gerações de uma mesma família, o que nos foi útil para a compreensão da maneira pela qual
as identidades foram sendo construídas. Um exemplo é a família Damaceno, cuja matriarca,
Dona Jovelina, durante muito tempo negou-se a falar do “tempo dos antigos”. A história de
violência vivida pelo seu povo tinha lhe ensinado que o melhor era o silêncio. Os filhos
nascidos em Minas Gerais e crescidos em Vanuíre participaram da luta pela retomada de suas
terras na década de 80, descobriram a importância da identidade como uma arma política
fundamental na luta pelos seus direitos. A chegada, em 1991, do casal João Borum e Maria
Helena Damaceno, filha de Dona Jovelina, foi fundamental no “resgate” dessa identidade.
João diz, orgulhoso, que não tinha intenção de ficar, era apenas uma visita, mas permaneceu,
incumbido que fora de ensinar aos demais a arte do artesanato, que já não era praticada na
aldeia. Juntos, Maria Helena, seu irmão Mário, João Borum, a comunidade de Vanuíre, Icatu
e Araribá se uniram em volta do projeto intitulado por eles de “Resgate Cultural”.
Em Vanuíre os índios começaram a coletar informações dos mais velhos, que
resistiam. As idas para Minas Gerais também foram importantes neste reafirmar-se. João

7
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Trad. Lolio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Paz e Terra,
1991, p. 254.
17

Borum e Mário Tepó construíram, em Vanuíre, a imagem do Ynhom-Quinhom, um totem


adorado pelo povo Krenak. Na cabana, as crianças eram levadas para cantar, dançar, ouvir
histórias dos “antigos”. Nessa terceira geração, os netos de Dona Jovelina, cresceram, ao
mesmo tempo em que tal identidade ia sendo fortalecida.
Sabemos que não se encerra na coleta e transcrição das entrevistas o trabalho do
pesquisador, é necessário pensar esse material. Nessa tarefa foi essencial a leitura dos
trabalhos de Maurice Halbwachs,8 Eclea Bosi9 e Michael Pollak10, pelos quais pudemos
compreender de maneira mais clara a matéria-prima da história oral: a memória. Tanto Bosi
quanto Pollak reconhecem a contribuição de Halbwachs nos estudos da memória. Para o
autor, a memória individual existe a partir de uma memória coletiva, posto que as lembranças
de um indivíduo são constituídas dentro de um grupo. Assim, idéias, sentimentos e angústias
que consideramos como nossas, foram inspiradas pelo grupo a que pertencemos.
Pollak, ao questionar sobre os elementos constitutivos da memória, individual ou
coletiva, responde:

Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em


segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos por
tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade á
qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa
nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo
que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se
participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos
por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro de
espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que,
por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um
fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão
forte que podemos falar em uma memória herdada.11

O pesquisador, por vezes, espera uma coerência que não encontra nos relatos. No
início do trabalho, víamos com certa estranheza esse entrelaçar da memória individual e do
grupo. Ouvindo as pessoas, descobríamos que a trajetória contada por um membro da família
A, na verdade, tinha sido vivenciada pela família B. Nesse caso, aquilo que ele viveu e o que
foi vivido pelos outros, são partes de uma única história, a história de seu povo.
8
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990.
9
BOSI, Eclea. Memória e Sociedade. Lembrança de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
10
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. IN: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.10, 1992:
200-212.
11
Ibidem, p. 201.
18

Quanto ao tempo-espaço, geralmente nos situavam dizendo: “no tempo do mato”, “no
tempo dos antigos”, “lá no Krenak”. Mas também é verdade que nos falam desse tempo com
uma riqueza de detalhes, relatando cheiros e cores, que fazem parecer terem vivido naquela
época. Esse viver por tabela pode ser notado, quando os mais jovens descrevem o Rio Watu12,
falam da beleza, da imensidão do rio, da quantidade de peixes, ainda que nunca tivessem
estado lá.
Halbwachs também nos diz que essas lembranças, adquiridas a partir do convívio com
o grupo, podem ser simuladas ou construídas, já que “a lembrança é, em larga medida, uma
reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente e, além disso,
preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora
manifestou-se já bem alterada.”13 Ao reler nosso material coletado, sabíamos que ele não nos
levaria ao passado, assim como ele havia sido. Quando um depoente recorre à memória para
lembrar os primeiros anos em Vanuíre, essa imagem primeira já não é “pura”, ela é um
balanço de tudo o que ele viveu desde então. Com a idéia do que se tem no presente é que ele
foi buscar o passado, pois “a memória é um fenômeno construído”.
Não entramos aqui na questão da subjetividade das fontes orais já tão discutida. No
entanto, gostaríamos de lembrar que, além delas, tivemos como fonte os Diários de Posto e os
documentos produzidos pelos funcionários do SPI e da Funai. Neste caso, tanto as fontes
escritas quantos as orais carregam subjetividade. Se o relato oral é fruto da experiência do
depoente, a documentação escrita também carrega a subjetividade de quem a produziu, ainda
que de forma não consciente. A criticidade e atenção na análise das fontes, foi nossa intenção,
tanto nos documentos escritos quanto nos orais.
Fomos a campo, não apenas para realizar as entrevistas, mas porque se fazia
necessário apreender na realidade estudada as relações estabelecidas pelos índios Krenak com
as demais etnias e com a sociedade envolvente. Foi o “estar lá” que nos possibilitou perceber
a adscrição, a maneira como eles construíam os sinais diacríticos tão importantes no
fortalecimento de sua identidade étnica.
A primeira ida à aldeia, aconteceu em 2005, ainda como aluna da Graduação. Naquela
ocasião, sabia muito pouco da realidade vivida em Vanuíre. A primeira pessoa que procurei

12
Os índios chamam o Rio Doce de Watu, rio largo na língua Borum.
13
HALBWACHS. Op.cit., p. 71.
19

na área foi o cacique Gerson Cecilio Damaceno, já orientada por uma pesquisadora
experiente. Perguntei a um senhor de terno e Bíblia na mão sobre o cacique, quando me disse
que eu estava falando com ele. Foi com estranheza que ouvi que podia entrar, mas que ele
tinha naquele momento que se dirigir a um culto fora da aldeia. Ainda seguindo as orientações
da pesquisadora, dirigi-me à irmã do cacique, Maria Helena Cecilio Damaceno. Lembro-me
de que, na ocasião, eu não tinha um gravador, nem ao menos um caderno de registros, minha
intenção primeira fora apenas conseguir uma autorização. Mas, depois de ouvir sobre minhas
intenções, ela me mostrou a árvore junto à qual poderíamos realizar, naquela ocasião, a
entrevista. Eu não havia cogitado a idéia de já iniciar a pesquisa e, sem condições de fazê-la,
naquele momento, por falta de material adequado, agradeci e respondi apenas que voltaria.
Os textos que eu havia lido sobre a relação entre entrevistado e entrevistador, sobre o
papel dominante que exerce o pesquisador, não se adequavam antes mesmo de eu ter iniciado
a tal prática. Mas aquela primeira visita me ajudou a perceber quem eram e como viviam os
índios que eu desejava registrar. Há muito tempo os índios de Vanuíre estabelecem relações
com os não índios, seja no trabalho fora da reserva, no campo de futebol, que recebe tantos
outros times, nas igrejas que existem na área. Eles podiam ser “surpresa” para mim, não eu
para eles. Quantas vezes aquela cena tinha se repetido, quantas vezes um pesquisador teria ido
até lá “estudá-los”? A entrada de pesquisadores nas áreas indígenas é frequente, em algumas
ainda maior dada à facilidade com que têm acesso à área. Em quantos trabalhos acadêmicos
dessa natureza, está registrada a insatisfação demonstrada pelos índios em receber tantos
pesquisadores, sem nada verem de retorno? Certa vez um índio Kaingang me disse em tom
agressivo: “Enquanto vocês caminham com esses caderninhos, nós estamos aqui ilhados”.
Nada lhe respondi, sabia muito bem das limitações de um trabalho acadêmico frente às
necessidades reais do grupo estudado.
É importante lembrar que, embora nem todos os pesquisadores assumam esse
compromisso, o trabalho muitas vezes retorna à aldeia. O acesso a outras fontes faz com que o
pesquisador registre passagens da história do seu povo que os índios desconhecem, e as
mesmas passam a ser incorporadas por eles, sendo comum que nos deem informações, assim
como foi escrito por tal pesquisadora.
Um pouco diferente dos textos acadêmicos, mas que demonstra, além da apropriação
do texto escrito, os conflitos que podem gerar trabalhos que usam depoimentos, é a história do
20

livro didático redigido por Geralda Chaves Soares, “Os Boruns do Watu”14. Os índios não
compareceram no dia do lançamento do livro, porque não concordavam quanto à sua autoria;
afinal tinha sido escrito com os seus depoimentos, com a sabedoria do seu povo. Mais tarde,
eles se dirigiram até a sede do CEDEFES, levando com eles um grande número de
exemplares. Ainda hoje, esse livro é um importante referencial e, mais do que um recurso
didático usado pelos professores indígenas, há o orgulho de verem registrada naquelas
páginas a sua história. Em Minas Gerais, ouvi uma jovem Krenak dizer que queria muito ter
um exemplar, enquanto sua prima de Vanuíre disse que não daria o seu a ninguém, que o
guardava embaixo do colchão.
Quanto ao nosso trabalho, os índios Krenak de Vanuíre mostraram-se bastante
dispostos a contar, a mostrar, sendo eu até mesmo avisada, por telefone, quando havia
alguma ocasião especial. Na frente da igreja, uma índia Krenak me apresentou a sua tia:
“Você não conhece ela? Ela está escrevendo a história de nós Krenak.” Grande
responsabilidade o trabalho do historiador do presente, segundo Chartier: “ é um encontro
com seres de carne e osso que são contemporâneos daquele que lhes narra as vidas”. 15

A divisão dos capítulos

O trabalho foi dividido em três partes. O primeiro capítulo é uma tentativa de


reconstrução da trajetória do povo Krenak, possibilitando o conhecimento das várias formas
de dominação e exploração do território indígena. Privilegiamos três momentos, em especial,
em razão de estarem marcados na memória coletiva, sendo eles: a transferência para o Posto
Engenheiro Mariano de Oliveira, a ida para a “Fazenda Guarani” e a chegada em Vanuíre.
Nesse capítulo, buscamos demonstrar não só as práticas de dominação exercida pelo não
índio, mas a resistência indígena frente a essas ações, força que possibilitou o retorno às terras
“tradicionais”, mesmo depois de uma trajetória marcada por desterros e dispersões. É essa a

14
SOARES, Geralda Chaves. Os Borun do Watu: os índios do Rio Doce. Contagem: Cedefes, 1992, p. 85.
15
CHARTIER, Roger. A visão do historiador modernista. In.: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO,
Janaína (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2001, p. 216.
21

mesma força que liga todos os “parentes” as terras “originárias”, estando eles longe ou perto
do Watu.
No segundo capítulo, partimos da trajetória individual do índio João Umbelina,
primeiro Krenak que viveu em Vanuíre, tendo antes ficado recluso na Colônia Penal de Icatú
no período de 1937 a 1945. Buscando apreender as relações internas, estabelecidas dentro do
Posto Indígena, desde sua chegada em Vanuíre até o período mais atual. Nesse, voltamos
nosso olhar para a relação entre os Krenak e os demais grupos que compõem a aldeia,
sobretudo os Kaingang, na tentativa de perceber em que ambiente e condições se manifesta
esse “eu” Krenak no interior do Posto Indígena.
No terceiro capítulo, nos dedicamos ao estudo da conversão dos índios Krenak ao
pentecostalismo. Em que contexto essa igreja foi construída e quais as suas implicações nas
relações entre índios convertidos e não convertidos. Buscamos, também, perceber o diálogo
entre o “antigo” e o “novo” universo religioso, nas adaptações e releituras, feitas a partir da
vivencia religiosa na Congregação Cristã do Brasil.
Quanto à grafia, respeitamos a escrita dos autores. No entanto, quando falávamos sem
fazer uma referência direta a tal autor, adotamos a utilizada pela pesquisadora Maria Hilda
Baqueiro Paraíso. Essa escolha se deu primeiro pela necessidade, já que um único nome foi
escrito de diversas formas, mas também por ela ter produzido muitos trabalhos sobre o povo
em questão.
22

CAPÍTULO 1 - Breve Histórico: os últimos Botocudos do Leste

Muin à direita: grande chefe Krenak.


Fonte: www.socioambiental.org.br
23

Os Krenak, habitantes das margens do Rio Doce, são apontados como os últimos
integrantes de um extenso grupo que outrora habitou a Mata Atlântica, concentrando-se nos
atuais Estados da Bahia, de Minas Gerais e do Espírito Santo. Também conhecidos como
Botocudos, receberam essa denominação genérica e depreciativa dos portugueses que
identificavam, dessa maneira, os grupos indígenas que faziam uso de botoques auriculares e
labiais16. A família linguística Botocudo (Borum), pertence ao tronco Macro-Jê, estando
dividida entre os dialetos Krekmum, Naknanuk, Djiporok, Pojitxpa, Bakuen, Krenak e
Nakrehé.17
Os Botocudos eram chamados de Aimorés pelos índios Tupi,18 com os quais
mantinham relação hostil. O termo Aimoré deriva da palavra tupi – amoré –, que significa
“gente diversa”.19 Aparecem com essa denominação, já no século XVI, quando ocorreram as
primeiras “entradas” no interior do território, em busca de ouro e pedras preciosas. Em 1555,
adentrando a Bahia, a expedição chefiada por Francisco Bruzza de Spinoza contou ter
encontrado os Aimorés entre os rios Jequitinhonha e Pardo. Em 1577, os Aimorés foram
localizados nas imediações do Rio Doce, Minas Gerais, pela entrada de Salvador Corrêa de
Sá.20 Cronistas como Gabriel Soares de Souza e Pero de Magalhães Gândavo descrevem
incursões belicosas, realizadas pelos índios, às capitanias de Porto Seguro, Ilhéus e Espírito
Santo. Ambos enfatizaram o caráter violento e animalesco dessa população21.
No século XVII, o termo Guerén, Gren ou Kren também seria utilizado para designá-
los. O termo Kren significa cabeça, uma possível autodenominação do grupo.22 Nesse mesmo
século XVII, as “entradas” foram substituídas pelas “bandeiras”, cujo objetivo era o mesmo –
extrair metais preciosos. Diante do interesse em estender a colonização ao interior da Bahia,

16
Receberam esta denominação os índios que habitavam uma extensa faixa do interior do leste e sul brasileiro.
Entre eles, os Xokleng e os Kaingang que hoje ocupam territórios nos Estados de São Paulo, Santa Catarina e
Paraná.
17
RODRIGUES apud ARAÚJO, Benedita Aparecida Chavedar. Análise Do Worterbuch Der Botokudensprache.
Dissertação de Mestrado. Unicamp, Campinas, 1992, p.5.
18
Estamos utilizando um termo genérico para designar os índios que viviam no litoral, em oposição aos
Aimorés, índios do “sertão”.
19
RUGENDAS, João Maurício. Viagem Pitoresca através do Brasil. São Paulo, Trad. Sergio Milliet. 8º ed. Ed.
Itatiai. Limitada. Edusp, Vol.II, 1979.
20
EMMERICH, Charlotte; & MONTSERRAT, Ruth. Sobre os Aimorés, Krens e Botocudos. Notas
Lingüísticas. Boletim do Museu do Índio, Antropologia 3. Rio de Janeiro: FUNAI, 1975, p.5.
21
MARCATTO, Sônia. A. A repressão aos Botocudos em Minas Gerais. Boletim do Museu do Índio: Etno-
história 1. Rio de Janeiro: FUNAI, 1979, p.4.
22
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Krenak do Rio Doce, a Pacificação, o Aldeamento e a Luta pela Terra.
IN: Revista de Filosofia e das Ciências Humanas. Bahia, N. 2, 1991.
24

intensificou-se o contato com grupos indígenas naquele território. Para efetuá-la, a estratégia
implementada pelo Estado foi a atração e o aldeamento dos indígenas. Contatos foram
estabelecidos entre os jesuítas e os Aimorés em toda a costa da Bahia até o Espírito Santo,
datando de 1602 a primeira notícia de aldeamento dos Aimorés, uma ação do jesuíta Domingo
Rodrigues. Os índios foram aldeados na Ilha de Itaparica, mas doenças infecto-contagiosas
causaram a morte de parte da população e a fuga dos demais, período em que as “bandeiras”
continuaram a dispersar a população indígena.
A violência com que esteve pautada a colonização, segundo a etno-historiadora Sônia
Marcatto, ocasionou, na segunda metade do século XVII, o deslocamento dos índios
Botocudos para o sertão dos rios Pardo, Mucuri, Jequitinhonha e Doce23. Já a também
historiadora Maria Hilda Paraíso, aponta que essa descida se deu mais tardiamente pelos
Botocudos, os quais fugiam dos contatos e conflitos vividos nas capitanias de Ilhéus e Porto
Seguro. Em 1736, pesquisas foram feitas no São Mateus24 e no Rio Doce, tendo o
encarregado João da Silva Guimarães encontrado, naquela região, os Kumanaxó, Punxó,
Goakines, Maxakali, Purixú e Malali. Novas “entradas” em direção ao vale do Rio Doce
encontraram os “Puri, Malali e Panhame, o que indica claramente que os grupos Gren ou
Botocudos, ainda não se localizavam naquela região...” 25
No século XVIII, intensificou-se a exploração de minas de ouro na capitania de Minas
Gerais e, enquanto novas pesquisas buscavam outras áreas de mineração, a Coroa Portuguesa
tentava conter os extravios do minério, nas áreas já ocupadas:

Aos poucos, a legislação restritiva de acesso ás minas formou uma área de


circulação restrita ou proibida na qual ficavam vedadas novas conquistas,
circulação, abertura de caminhos e estradas e colonização, a qual foi
denominada, para efeito de análise, de Zona Tampão. 26

23
MARCATTO, Sônia. Op. cit.; p. 5.
24
Segundo Paraíso, até o século XIX confundiu-se a Bacia do Mucuri com a de São Matheus, devido a
proximidade e o pouco conhecimento que tinham da região. Portanto lê-se Mucuri.
25
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O Tempo da Dor e do Trabalho: A conquista dos territórios nos sertões do
leste. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 1978, p. 91.
26
Ibidem, p. 85.
25

A “Zona Tampão”, também chamada pelo historiador Haruf Espindola de “áreas


proibidas” 27, tinha como limite a noroeste o vale do Rio São Francisco, ao norte, a margem
direita do Rio das Contas (Bahia) e ao sul, o curso médio do Rio Doce. A área tornou-se
refúgio dos indígenas, que se mantiveram distantes dos colonizadores e de seus projetos de
expansão.
Imagens estereotipadas acerca da população indígena são comuns, desde o início da
colonização: os Tupis, índios que viviam no litoral, com os quais os portugueses
estabeleceram laços de convivência, eram vistos como menos ferozes que os índios do sertão,
chamados Tapuias, de quem foram construídas as imagens mais negativas: selvagens,
inferiores, comedores de carne humana.28 No século XVIII, o sertão era, ainda, uma região
desconhecida e as imagens sobre a população indígena que o habitava prevaleciam. Com a
decretação da “Zona Tampão” essa imagem negativa dos índios do sertão, interessava, pois
também serviria como barreira aos intrusos.
Entretanto, na segunda metade do século XVIII, com a falência da mineração, a
colônia entrou em crise, já que a economia naquele período girava em torno do ouro e do
diamante. A saída encontrada foi estimular as capitanias a diversificarem suas atividades
econômicas, implementando a agricultura e a pecuária. Buscaram fazer da antiga “Zona
Tampão” uma área habitável e rentável para a colônia e, consequentemente, para a metrópole
portuguesa, transformando a capitania de Minas Gerais no centro desse processo de
“desenvolvimento”. 29
A imagem construída das populações indígenas habitantes daquelas regiões adquiriu
relevância naquele momento, uma vez que era necessário povoar uma área, dita estar
infestada de “feras”. Na transição da economia, o Rio Doce ocupava um lugar central, suas
águas levariam, até o litoral do Espírito Santo, os produtos que deveriam ser exportados.
Entretanto, no século XIX, tornou-se consenso entre os Governadores das capitanias, a ideia
de que a presença dos índios Botocudos era um obstáculo tanto à navegação do Rio Doce,
quanto ao povoamento da região do sertão30.

27
ESPINDOLA, Haruf Salmem. Sertão do rio Doce. Bauru/SP: EDUSC, 2005.
28
AMANTINO, Márcia. O Mundo das Feras: Os moradores do Sertão Oeste de Minas Gerais- século XVIII.
Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2001.
29
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. A tempo da dor. .., Op. cit.
30
Ibidem.
26

Em resposta a uma consulta da Coroa sobre a navegação fluvial do Rio Doce e sobre
os índios Botocudos, Ataíde e Mello, Governador da capitania de Minas Gerais, questionava
se haveria outro meio de domar os Botocudos, que não o uso da força.31 Assim como no
Espírito Santo, o Governador Albuquerque Tovar, afirmou que, contra a resistência botocuda,
a única forma de vencê-los seria tirá-los de seus territórios, até serem extintos.32 Se, até então,
o Estado havia adotado uma guerra defensiva que consistia em expedições de represálias as
incursões indígenas, optaram, naquele momento, por uma guerra ofensiva, visando à sua
escravização e ao seu extermínio. Um momento decisivo dessa política aconteceu com a Carta
Régia, de 13 de maio de 1808, na qual Dom João VI, declarava que:

(...) desde o momento em que receberdes esta Minha Carta Regia, deveis
considerar como principiada contra esses índios Antropophagos huma
guerra offensiva, que continuareis sempre em todos os annos nas Estações
seccas e que não terá fim, sinão quando tiverdes a felicidade de vos
senhorear das suas Habitações e de os capacitar da Superioridade das
Minhas Reaes Armas de maneira tal, que movidos do justo terror das
mesmas peção a Paz, e sujeitando-se ao doce jugo das Leis, e promettendo
viver em Sociedade, possão vir a ser Vassalos úteis como já são as
immensas Variedades de Índios, que nestes Meos vastos Estados do Brazil
se achão aldeados(...).33

Em seu texto, Dom João fundamentava a guerra, afirmando serem aqueles índios
antropófagos, que assassinavam “os Portugueses e os Índios mansos por meio de feridas, de
que sorvem depois o sangue, ora dilacerando os corpos, e comendo seus restos”.34 Para
controlar tão “terríveis” criaturas, estabeleceu a Criação da Junta da Conquista e Civilização
dos Índios e Navegação do Rio Doce:

Ordeno-vos que façais distribuir em seis Distritos, ou partes todo o território


infestado pelos índios Botocudos, nomeando seis commandantes destes
terrenos, a quem ficará encarregada maneira, que lhe parecer mais profícua,
a Guerra Offensiva, que lhe convem fazer aos índios Botocudos; e estes
Commandantes, que terão as Patentes, e os soldos de Alferes agregados ao
Regimento de Cavalaria de Minas Geraes, que logo lhe mandarei passar
com os vencimentos de soldo dessa nomeação, serão por agora Antonio

31
ATAIDE E MELLO apud PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. A tempo da dor. .., Op. cit., p.180.
32
TOVAR MANOEL apud ESPINDOLA, Haruf Salmem. Op.cit.; p.321.
33
CARTA Régia de 13 de maio de 1808. Revista do Arquivo Público Mineiro. Minas Gerais, ano XVIII, 1913,
p.54.
34
Ibidem, p.53.
27

Rodrigues Taborda já Alferes; João Monte da Fonseca; José Caetano da


Fonseca; Lisardo da Fonseca; João da Fonseca; Januário Vieira Braga;
morador na Pomba, e se denominarão commandantes da primeira, segunda,
terceira, quarta, quinta, e sexta Divisão do rio Doce.” 35

Seis divisões e vários quartéis foram construídos ao longo do Rio Doce, e ainda no
mesmo ano, o Governador da capitania de Minas Gerais foi orientado para que construíssem
as divisões próximas aos aldeamentos, pois isso daria segurança aos novos colonizadores que
chegassem à região. Na tentativa de fixar homens no interior do Brasil, Dom João VI iniciou
uma política de colonização, baseada em concessões territoriais e incentivos, em detrimento
dos indígenas que habitavam a região dos vales dos rios Doce e Jequitinhonha. Cabia aos
comandantes das divisões o poder de guerrear, exterminar e empregar o trabalho indígena a
seu favor, por dez anos, ou enquanto continuassem ferozes. A etno-historiadora Sônia
Marcatto, nos mostra o quão subjetivas eram tais considerações, podendo os comandantes
escravizar os indígenas por quanto tempo quisessem, alegando, para isso, a continuação da
“incivilidade” do índio.36
Os aldeamentos correspondiam a pequenas porções de terra, asseguradas aos índios.
Sabemos, no entanto, que a medida não impediu os colonos de avançarem sobre as terras. Os
documentos escritos por Guido Marlière, que trabalhou entre os Botocudos nos anos de 1813
a 1829, chegando a ser nomeado Diretor de Índios de Minas Gerais, atentam para a força
exercida pelos colonos:

Há 13 annos que grito aos sucessivos governos, contra os matadores,


opressores e invasores das terras dos Índios nunca obtive se não respostas
evasivas, Devassas de encomenda, que não se verificarão, Ordens que
ficarão sem execução e promessas do Regulamento e Direções q’. nunca me
vierão: Não se enforcou hum só matador de Índios; não se castigou a
opressão; não se restituio hum palmo de terras. 37

Os colonos, respaldados pelas Leis Joaninas, cometeram nesse período inúmeras


atrocidades, organizando “bandeiras” contra os Botocudos, destruindo aldeias, fazendo reféns.
A oficialização da escravização e do extermínio dos índios “bravios” vigorou até o ano de

35
Ibidem, p.54
36
MARCATTO, Sônia. Op.cit.
37
MARLIÈRE apud OILIAM, José. Os Brancos Matam a Obra de Marlière. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais. Minas Gerais, Volume. IV, 1957, p. 18.
28

1831, quando a Lei de 27 de outubro, daquele mesmo ano, aboliu Cartas Régias de 1808,
estabelecendo a liberdade dos índios e os equiparando aos órfãos, determinando Juízes de
Órfãos com o dever de protegê-los contra abusos, assim como administrar seus bens.38
A medida seguinte, pautada no Ato Adicional de 1834, foi a incorporação dos índios à
civilização e à catequese, sob a responsabilidade das Assembleias Legislativas Provinciais,
antes subordinadas à Assembleia Geral Legislativa e ao Imperador. Com a descentralização,
as províncias tomaram, rapidamente, medidas contra os indígenas, tais como a extinção de
suas vilas e expedições ofensivas39contra eles. Mas foi no dia 24 de julho de 1845, com o
“Regulamento acerca das Missões de catequese e civilização dos índios”, que a política
indigenista do Império estabeleceu suas linhas básicas, diretrizes voltadas para toda a
população indígena. De acordo com as disposições desse Decreto, ficaria mantida a prática
dos aldeamentos, com a catequese sob a responsabilidade dos capuchinhos italianos. Ficou
proibida a prática da transferência, ao mesmo tempo em que tornava obrigatória a
remuneração ao trabalhador indígena. O Regulamento estimulava também, os casamentos
interétnicos e o alistamento militar aos que estivessem em condições de prestar o serviço40.
A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 – Lei de Terras – associada ao Decreto, anterior,
legitima o poder do Estado sobre as terras. A Lei determina a demarcação das terras
devolutas, classificando-as como as que estão fora do domínio particular ou de uso público. A
partir de então, só se adquirem terras por meio da compra, as que não possuíssem registros
deveriam ser leiloadas. Em 21 de outubro do mesmo ano, mandam incorporar aos nacionais as
terras dos índios que não viviam mais aldeados; dessa forma, muitos daqueles que não eram
mais considerados “selvagens”, devido ao seu contato com os “civilizados”, tiveram suas
terras tomadas e leiloadas.41
A Lei de Terras estabelecia parâmetros para “medir” a indianidade. Revoga o direito à
terra aos índios inseridos na sociedade envolvente, mantendo o mesmo direito aos
considerados “selvagens” que se encontravam aldeados. Sônia Marcatto tem razão quando
afirma terem sido menos violentas as diretrizes adotadas no período regencial, embora não

38
ARNAUD, Expedito. A Legislação Indígena No Período Imperial. IN: Informativo FUNAI, Ano IV N 14, p.
65.
39
CUNHA, Maria Manuela Carneiro. “Política indígenista no século XIX.” In: CUNHA, Maria Manuela
Carneiro da. (org). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Fapesp/SMC/CIA das Letras, 1992, p.137.
40
ARNAUD, Expedito Op. cit., p. 65.
41
VALADÃO, Virginia. Marcos. Senhores destas terras: Os povos indígenas no Brasil: da Colônia aos nossos
dias. São Paulo: Atual, 1991, p. 36.
29

menos preocupantes. A extinção física, permitida por Dom João VI, foi substituída pela
extinção étnica nos anos seguintes. Vemos isso, claramente, no sistema de aldeamento, que é
pensado como uma transição para a assimilação dessa população. O aldeamento de Nossa
Senhora da Imaculada Conceição do Itambacuri, construído em 1873, sob a direção dos Freis
Serafim de Gorizia e Ângelo Sassoferrato, é um bom exemplo desse plano de assimilação.42
Para eles, o sucesso da catequese dependia da convivência com os civilizados, como vemos
na narração de Frei Ângelo:

Frei Serafim se convenceu logo de que não se devia formar dos indígenas
um povo á parte, separado do nacional civilizado, porque isso prejudicaria o
fim que nós e também o Governo tínhamos em mira.
Por isso abriu logo escolas para ambos os povos, misturando-os como se
formassem um só. Demais disso promoveu casamentos entre ambos, por
considerar ser este o único meio capaz de assimilar a pura raça indígena:
isto foi reconhecido pelo próprio Governo. 43

O aldeamento de Itambacuri, em Minas Gerais é um importante exemplo da política de


controle sobre os índios, no século XIX. As práticas adotadas para esse intuito foram os
casamentos miscigenados, a implantação de escola, a catequese, a dedicação à agricultura,
entre outros. Práticas que deveriam ter como consequência o abandono à poligamia, ao
nomadismo, à caça, ou seja, às práticas “incivilizadas”, típicas dos grupos indígenas.
O apostolado de Frei Serafim e Frei Ângelo compreendia a região das florestas dos
rios Mucuri, Jequitinhonha, Doce e São Mateus, onde havia várias tribos da nação Botocuda.
Os primeiros índios encontrados são os índios do Potão, “mansos” que os ajudaram a escolher
o lugar para o aldeamento. Mais tarde, foi até os missionários o capitão Pahóc, chefe dos
Crakeatan, Mucuri e Nhanhan, o mesmo Pahóc chefe de uma população que se encontrava
dividida em pontos estratégicos para melhor defender-se do inimigo.44 O faccionalismo grupal
registrado por Frei Ângelo é uma tendência dos grupos Jê, que se desmembram em pequenos
bandos. Outra característica dos índios Botocudos é a denominação, de acordo com a

42
A catequese foi entregue aos missionários sob a condição de cumprirem o projeto já estipulado pelo governo,
diferentes dos jesuítas expulsos em 1759, que se recusaram a aceitar os casamentos interétnicos e a incorporação
dos indígenas como súditos da Coroa.
43
PALAZZOLO, Jacinto de. Nas Selvas Do Mucuri do Rio Doce. São Paulo: Companhia Editora Nacional 1952,
p. 92.
44
Ibidem, p. 81.
30

toponímia ou o nome do chefe, mas como nenhuma das partes adotou o nome do chefe Pahóc,
é mais provável que os nomes façam referência ao lugar em que estavam estabelecidas.
Os religiosos conseguiram reunir no aldeamento de Itambacuri diversos grupos:
Kracatãs, Cujan, Jerunhim, Nerinhim, Hen, Jakjat, Rimré, Kremum, Nhamnham, Camri,
Pamacgirum, Ponchão, Pmac e Nác-Reé. A manutenção do aldeamento era precária, o pedido
de verbas ao Governo uma constante, os responsáveis queixavam-se de não ter estrutura para
receber os indígenas, muito acostumados aos presentes. Também por esse motivo, os freis
explicavam o aldeamento tardio dos Crecmuns e os Crechés, mais conhecidos como Pojichás.
Esses eram os mais temidos Botocudos do vale do Mucuri, tendo o aldeamento do Itambacuri
sido criado, exatamente, para aldear sua população. No entanto, mesmo quando aldeados, os
Pojichás nunca estiveram integrados, de fato, pois ainda insistiam em não abandonar antigos
hábitos, como o da caçada nas florestas, enquanto os freis tentavam impor a eles o trabalho
nas lavouras, dando-lhes as ferramentas necessárias.45 O fato é que, no século XX, os Pojichás
se encontravam nas matas, e inúmeras são as notícias de suas incursões contra os não índios.46
Progressivamente, os aldeamentos foram sendo abandonados e, cada vez que isso
acontecia, a população restante era mandada para outro aldeamento, até que esse também
fosse extinto. No final do século XIX, com os aldeamentos fechados, as terras indígenas
leiloadas, os índios encontravam-se dispersados. Como registrou Ehreinreich, em 1884, o
território botocudo naquele momento estava bastante reduzido, tendo a população concentrada
entre os rios Doce, Mucuri, Suaçui Grande e São Mateus.47 Mas “... Botocudos não
contactados ainda percorriam as matas do Rio Doce, principalmente a área limítrofe entre
Minas Gerais e Espírito Santo.” 48
Começamos, no século XIX49, a conhecer as autodenominações dos subgrupos
Botocudos que, então, entram em cena: Crecmum, Nacnenuc, Nakrehé, Gut-Krak, Potixá,
Krenak, Minajirum, entre outros50. Botocudos que, resistindo às guerras justas, à captura dos

45
Id.
46
SOARES, Geralda Chaves. Op.cit., p.84.
47
PARAÍSO, Maria Hilda. “Os Botocudos e sua Trajetória Histórica” In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (org).
Historia dos Índios no Brasil. São Paulo: Fapesp/SMC/CIA das Letras, 1992, p. 420.
48
MARCATTO, Sônia. Op.cit., p. 6.
49
A partir da viagem de Wied-Neuwied (1815), outros como Spix e Martius (1817), Saint- Hilaire (1817) e
Johann Morutz Rugendas (1821) forneceram notícias sobre os Botocudos.
50
EMMERICH, Charlotte & MONTSERRAT, Ruth. Op.cit.
31

colonizadores, ao longo processo missionário e às disputas com tribos inimigas, conseguiram


chegar ao século XX.

1.1-Os Krenak e a política indigenista do período republicano

O processo econômico vivido no país ocasionou, no século XX, um choque entre os


envolvidos nessa expansão econômica e os indígenas que habitavam áreas de interesse para o
desenvolvimento do capitalismo. Durante os 20 primeiros anos da República, houve omissão
do Estado, não existindo nenhuma legislação específica de proteção aos índios, mas o
extermínio que vinha sendo praticado foi criticado por setores liberais da sociedade, que viam
nos índios futuros trabalhadores nacionais.
A proposta de uma orientação leiga e uma forte ação do Estado foi colocada em
prática com a criação/instituição do SPILTN. Em 20 de junho de 1910, ficando estabelecida,
com o Decreto 8.072, a criação do “Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos
Trabalhadores Nacionais”, pelo Presidente Nilo Peçanha. A este Serviço cabia oferecer
proteção ao índio e à sua terra, assim como a função de criar centros agrícolas destinados ao
trabalho de nacionais, em sua maioria, ex-escravos 51.
O SPI estava pautado em ideias evolucionista, os índios passariam por estágios, até
que fossem totalmente integrados à sociedade brasileira. O indígena continua a ser pensado
como aquele que será incorporado, fadado ao desaparecimento enquanto grupo diferenciado.
O interesse do Governo na criação do órgão demonstra prioridades/estratégias para a
expansão da colonização nos territórios ocupados, promovendo a incorporação do indígena à
sociedade regional, enquanto força de trabalho52.
A região entre o sul da Bahia, norte do Espírito Santo e arredores do Rio Doce, em
Minas Gerais, tornou-se palco de atuação do órgão indigenista diante da necessidade de aldear
grupos indígenas que resistiam violentamente à invasão de seus territórios. Em 1905, tivemos
o ataque dos Pojixá aos trabalhadores da Estrada de Ferro Bahia-Minas e, em 1909, o mesmo
grupo atacou família de lavradores. Em resposta a esses ataques, a imprensa se posiciona:

51
Não é nosso objetivo se aprofundar sobre a criação e gestão do SPI, para isso existem trabalhos gabaritados
como o de Antonio Carlos Souza Lima e Mauro José Gagliardi.
52
GAGLIARDI, José Mauro. Op.cit.
32

Ainda há pouco tempo o governo ordenou ao então delegado de polícia


daqui, que organizasse uma expedição para prender e afugentar êsses
selvagens, acudindo por êsse meio as reclamações que lhe chegaram e aos
pedidos de providencias contra os ataques deles. A diligência se realizou e
conta que a escolta, tendo ao cabo de cinco dias de internação na mata
encontrado alguns deles, fez fogo sobre os que ali estavam, tendo morrido
alguns e fugido aos outros.53

A matéria segue, com o jornalista questionando a eficácia de tais expedições, já que:

A cada assalto que recebem das expedições contra êles organizadas,


respondem os bugres com novos e traiçoeiros ataques, para realizá-los
deixando apenas que passe algum tempo, de maneira a acharem mais
desprevenidas e incautas as suas vítimas. Os nossos selvagens são
visceralmente vingativos e perversos... 54

O jornal Mucuri, de agosto de 1905, classifica como atos traiçoeiros o ataque ou


contra-ataque praticado pelos indígenas, enquanto que as represálias são descritas como
medidas para o bem da tranquilidade pública. De maneira bastante clara, a imprensa noticia
posições contrárias à permanência dos indígenas, chegando a sugerir que “a providência a ser
tomada contra eles deve ser ou seu total aniquilamento, matando-os e aprisionando-os o que é
muito desumano e difícil, ou, mais uma vez, tentar-se a catequese”.55
O Governo Federal ofereceu concessão a várias empresas particulares para a
construção das estradas férreas. A Companhia Estrada de Ferro Vitória a Minas, fundada em
1901, pelos engenheiros João Teixeira Soares e Pedro Nolasco Pereira da Cunha, foi a
responsável pela construção da Vitória-Minas. De um lado, estavam indígenas e do outro
operários e engenheiros, estes na construção do “progresso”. A ferrovia escoaria a produção
de uma região para outra, possibilitando, na ótica dos envolvidos, o “desenvolvimento” da
nação:

A navegação do Rio Doce era quimera. Só a estrada de ferro solucionaria o


problema de transporte. Só ela era capaz de lograr a conquista para a
civilização da vasta região ainda habitada pelos indígenas.56

53
MARCATTO, Sônia. Op. cit., p.15.
54
Ibidem, p. 16.
55
ALMEIDA, Ceciliano de Abreu. O Desbravamento das Selvas do Rio Doce. Rio de Janeiro: José Olimpio
Editora, 1959, p.81.
56
Ibidem, p. 139.
33

Para dar segurança aos operários e facilitar a construção das ferrovias Bahia-Minas e
Vitória-Minas, foram criados na Bahia os Postos de Atração do Ermida: um às margens do
Jequitinhonha, outro no Rio Pepinuque; No Espírito Santo, dois às margens do Rio Pancas, e
outro no Rio Doce, em Minas Gerais, para os índios Krenak, aldeamento do Rio Eme57. Se o
aldeamento era descrito pelo órgão como meio de proteger os indígenas, a sua prática resultou
em contaminação por doenças infecto-contagiosas, para grande parte da população neles
reunida. O sarampo, por exemplo, nos anos de 1920, levou à morte, mais de duas centenas de
Botocudos do Posto de Pancas.58 Conforme aconteciam as baixas da população, o SPI ia
transferindo os sobreviventes e, aos poucos, extinguia os postos, até restar apenas o do Rio
Eme, destinado aos Krenak, passando a chamar-se Posto Guido Marlière.59
Os temíveis Pojixás, aldeados em Itambacuri, eram formados pelos Crecmun e pelos
Creché. Dos Crecmun teriam se originado os Gut-Krak, os quais, por sua vez, deram origem
ao grupo Krenak.60 Os Gut-Krak, vivam na região do Rio Pancas, liderados pelo chefe
Tetchuk; no momento em que foi estabelecido o contato com o SPI, parte do grupo se
mostrou descontente com a aproximação, preferindo refugiar-se nas matas das cabeceiras do
Córrego Eme. Esse cisma deu início ao grupo Krenak, já que o grupo descontente tinha a
liderança de um chefe do mesmo nome. 61 No entanto, para o etnógrafo Manizer, o cisma não
se deu pela insatisfação em relação ao contato; o motivo teria sido um crime cometido por um
homem liderado pelo chefe Krenak, o que fez com que não pudessem mais viver com Tetchuk
e seus seguidores.62
Enquanto Tetchuk e seu bando eram aldeados no Posto de Pancas, seu irmão Krenak
continuou a recusar contato com não índios, cabendo a seu filho Muin a aproximação com os
agentes do SPI. Naquele momento, a responsabilidade sobre esses índios já havia sido
passada para a Inspetoria do Espírito Santo, cabendo a ela o controle sobre os dois Estados. O
Posto de Pancas, no Espírito Santo, deveria ser um local de convergência, para onde seriam
levados grupos residentes nos outros postos; o próprio Posto do Rio Eme, instalado em 1913,

57
O Rio Doce encontra-se a margem direita do Posto Indígena Krenak, enquanto o Rio Eme corta internamente a
área indígena.
58
MARCATTO, Sônia. Op. cit., p. 23.
59
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Botocudos..., Op. cit., p. 420.
60
BAETA, Alenice; MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. A Serra da Onça e os índios do Rio Doce: uma
perspectiva etnoarqueológica e Patrimonial. IN: Habitus. Goiânia, V.5, N.1, 2007, p.41.
61
SOARES, Geralda Chaves. Op. cit., p.85.
62
MANIZER apud PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Krenak do Rio..., Op. cit., p.12.
34

era considerado como transitório. Os Krenak, mais tarde, seriam transferidos para o P.I de
Pancas, mas Muin foi determinante na permanência do grupo nas margens do Rio Doce. “Os
Crenaques não aceitam de nenhum modo a mudança para o Pancas, o seu Capitão Muin até
chega a deitar-se fingindo doente, quando se fala em Pancas. Essa determinação inabalável foi
a responsável pela criação de um Posto nas matas de Minas.” 63

1.2- Concentração e dispersão: os dois lados do processo de


territorialização vivido pelos índios Krenak.

O processo de territorialização vivido pelos índios Krenak, a partir da gestão do SPI,


foi marcado pela alternância entre movimentos de concentração e dispersão da população.
Sabemos que o trabalho do SPI estava voltado para a concentração da população indígena, a
fixação em uma terra sob controle estatizado para a liberação das outras de interesse das
empresas privadas. Os Krenak, inicialmente atraídos, vivenciaram, posteriormente, um
intenso período de dispersão, uma vez que o Serviço não conseguiu assegurar, mesmo após a
demarcação, aquela pequena porção territorial para onde os levaram no início do século XX.

1-3. Atração: concentrados no Posto do Eme

Vimos que, inicialmente, o líder Krenak não aceitou tal contato, e refugiou-se nas
matas, nas margens do Rio Doce, em Minas Gerais. Próximo a esse refúgio dos Krenak,
estava sendo construída a Colônia Bueno Brandão, para receber trabalhadores nacionais,
gerando conflito entre os índios que habitavam as adjacências do Rio Eme e os envolvidos
naquela construção. Para mantê-los distantes não só desses nacionais, mas dos envolvidos na
Construção da Ferrovia Vitória-Minas, foi instalado o Posto de Atração do Eme, em 1913. O
local do Posto no vale do Rio Eme, afluente do Rio Doce, foi escolhido, pois ali se
encontravam várias aldeias dos Krenak: a aldeia Praia da Gata, Quati-Quati e o Quijeme-
Brek, também conhecida como Kuparak.64 O chefe do Posto, Cândido de Freitas Chaves, foi o

63
ESTIGARRIBIA, Antonio. Trecho de um relatório apresentado pelo inspetor Antonio Estigarribia á Diretoria
do SPI no ano de 1912 relativamente aos índios do rio Doce. IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do
Espírito Santo, vol. VII, Imprensa Oficial do Espírito Santo, Vitória, 1934, p.16.
64
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Krenak do Rio...,Op.cit., p. 13.
35

funcionário responsável pelos primeiros contatos, frustrados, inicialmente, com a recusa do


líder Krenak, conseguindo depois êxito, com a aproximação de Muin.
Negando a transferência para o Posto de Pancas, os Krenak mantiveram-se nas
margens do Rio Doce. Foi, exatamente, na localização reivindicada por Muin que o Estado de
Minas iniciou, em 1918 a demarcação de uma área de 2 mil hectares, os quais em 1920,
foram ampliados 4 mil , pela Assembléia Legislativa do Estado. No entanto, tal medida só se
efetivou em 1927, após o massacre da aldeia Kuparak, onde viviam indivíduos Krenak e
Nakrehé, os quais haviam preferido manter-se distantes da sede do Posto. Após o massacre,
os sobreviventes Nakrehé retornaram para o Etwet65 e os Krenak deslocaram-se para o Rio
Eme, juntando-se aos outros.66 Sobre a emboscada que ocorreu na aldeia Kuparak em 1923,
encontramos: 67

Simulando conciliarem-se com os índios, os posseiros, a pretexto de


festejarem acontecimento convidam a tribo para beber garapa na posse de
um deles. E quando os silvícolas se encontram, alegres e confiantes,
concentrados na aberta, em torno de engenho de cana, irrompeu das matas
circundantes cerrado tiroteio, que os exterminou em sua quase totalidade.
Apenas o chefe da tribo e cerca de duas dezenas conseguiram salvar-se,
correndo a refugiar-se na mata. As crianças, que ainda sobreviviam no
regaço das mães tombadas sem vida, foram mortas e foiçadas...68

Samuel Lobo, Inspetor do SPI, relata sobre o ocorrido de 1923:

Este viu-se infelizmente muitíssimo abalado na sua vida administrativa


devido aos últimos acontecimentos de 31 de janeiro de 1923, que arrebatou
a população indígena em 9 Krenak, e promoveu a retirada temporária de
algumas famílias Nac-nerehé que habitavam no Etuêt e por mim foram
localizados no posto.
Os primeiros crenaques, apesar de ainda no estado de semi-civilizados,
vieram rapidamente depois do insulto que receberam, confiantes na
administração, envez de se enternarem nas matas como era natural,
colocaram-se sob nossa proteção.69

65
Os Nakrehé estavam ali pois sua aldeia tinha sido extinta, depois do ocorrido eles retornam para o Etwet.
66
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Botocudos..., Op.cit., p. 420-421.
67
Nesta emboscada os colonos ferem Krembá, um líder Krenak.
68
PEQUENO, Waldemar. Município e Comarca de Aimorés- Sua história. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais, V 11, 1964, p. 341.
69
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 12/2/1924. Relatório referente ao
ano de 1923.
36

O massacre foi chamado pelo Inspetor de insulto; e, depois de “insultados” os índios


teriam recorrido ao Posto, “confiantes” na proteção oferecida pelo Serviço. Ao mesmo tempo
em que o Inspetor narra o “grande feito” de ter conquistado a confiança dos índios, mostra o
quão falha era a proteção oferecida a eles:

Essa questão para a qual sempre chamei a atenção da diretoria e do


governo mineiro teve devido descuido das autoridades locaes, o desenlace
que previ mas que devido factores da minha autoridade e a falta de
coordenação das nossas leis não pude impedir.” (...)Foram vitimados pelos
intrusos nove índios sendo 3 homens: Tchom-jum, Maquetar e Nhat; 2
mulheres: Uen e Jamal; 4 creanças: Juc- pen, Boorim-(Osoria), Neroy e
Jarem ( Maria Arnald). Foram feridos gravimente o índio Nanhique e sem
gravidade Jactanan, Jucchat, Jueromô, Antonio, Nam-niqué e Krembá. 70

O texto acima está inserido em um tópico denominado “intrusos”, e é exatamente


sobre a presença deles que o Inspetor afirma ter avisado as autoridades. Os assassinos
estavam entre os colonos que, sem a autorização do SPI, se fixaram no Posto, população
crescente na área indígena:

A civilizada compõem-se de invazores que se apropriando das terras ao


longo das margens do rio Eme ali se localizaram-se apesar dos editais
afixados pelo fiscal de terras e matas Sr. D. Horacio de Araújo Freitas
(anexo n 5) prohibindo se estabelessecem em terrenos reservados ao
patrimônio indígena. Estes compõem-se actualmente de 20 famílias
perfazendo 82 pessoas, entre homens, mulheres e crianças.71

Além dos invasores, o Posto ainda mantém, com licença da Inspetoria mais 3 famílias,
as primeiras a arrendarem as terras. Em 1921, o número de não índios no aldeamento já era
bastante superior ao da população indígena, formada, nesse período, por “11 homens, 13
72
mulheres e 15 crianças dos dois sexos” , diferença que, dois anos depois era
consideravelmente maior:

A população civilizada compõem na sede da família dos funcionários e


trabalhadores empregados no posto, e na zona rural pelas famílias de

70
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 12/2/1924. Relatório referente ao
ano de 1923.
71
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 27/01/1922.
72
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 27/01/1922.
37

collonos allemães, austríacos e nacionais que se estabeleceram de acordo


com as disposições em vigor no patrimônio, e de intrusos que se localizam
indevidamente no Valle do Rio Eme calculados hoje por mais de 70
famílias. 73

Havia outra razão pela qual ocorriam baixas na população indígena, enquanto o
número de “civilizados” no Posto crescia. No ano de 1921, apareceu no relatório uma
epidemia de sarampo, antecedida por uma gripe que teria feito vítimas. A saúde dos Krenak
era uma questão tão preocupante que foi ressaltada pelo Inspetor:

É lamentável a impressão que tive ao visitá-los pois ainda guardava a


impressão que deles tinha quando em fins de1918, começo de 1919, fui
procurá-los a 11 léguas no interior das mattas, homens fortes nunca tinham
sofrido quaisquer moléstia de certa importância, nem siquer atacados do
empaludismo, tão generalizado no vale do Rio Doce e seus afluentes, por
constituir a região que escolheram para seu habitat uma das raras excepçoes
quanto ao clima.74

Como vimos, a expropriação do território Krenak iniciou-se cedo e perdurou por


longas décadas. No relatório, escrito por Vicente de Paula Vasconcelos, Coronel Diretor do
SPI, encontramos:

Nesta área encontram-se muitos rendeiros, condição em que foram


transformados os invasores, para conciliar os interesses deles com os índios
donos das terras. Os remanescentes dos Aimorés são poucos, dos quais no
posto se encontram 63.75

Se, em 1924, o Inspetor Samuel Lobo afirmou ter levado ao conhecimento da


Diretoria do SPI a necessidade da retirada desses invasores, nada se fez a respeito. A única
medida tomada foi a de transformá-los em arrendatários. A relação entre esses e o SPI era
tensa, os arrendatários reclamam do valor pago pelo arrendamento e mostram-se interessados
na reversão da doação das terras aos índios, doação essa dependente de uma demarcação que
ocorreria bastante tardiamente, uma vez que a Assembléia Legislativa determinou, em 1920, a

73
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 12/2/ 1924.
74
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 27/01/1922.
75
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 340. 28/02/1942. Relatório anual das
atividades desenvolvidas durante o ano de 1942.
38

ampliação para 4 mil hectares e, vinte anos depois, ainda se esperava por ela: “Foi concluída a
medição da área concedida pelo Governo do Estado de Minas Gerais dependente ainda da
aprovação deste governo. Dita área atingiu a 4. 756 hectares.”76
A área indígena sempre sofreu a interferência dos colonos arrendatários, dos
fazendeiros vizinhos, mas os conflitos se acirram após a descoberta de jazidas ricas em mica.
Nos relatórios administrativos do SPI encontramos as primeiras notas acerca das jazidas:

Pelo oficio no 333-s/1 de 1º de outubro de 1940 esta Diretoria aduzindo os


respectivos motivos, vos solicitou, na forma do art. 12 do Código de Minas,
a necessária autorização para que este Serviço possa pesquisar a jazida de
mica e seus associados, existentes nas terras pertencentes ao patrimônio dos
índios Crenaques, em que se acha estabelecido o Posto “Guido Marliére”
deste Serviço, no município de Resplendor do Estado de Minas Gerais.77

De acordo com a documentação do SPI, a jazida foi encontrada pelo encarregado do


Posto, Telésforo Martins Fontes que, comunicando à Diretoria do Serviço, iniciou, em
seguida, a extração do minério, quando foi interrompido pelo fiscal do Departamento de
Produção Mineral, Sr. Alberto Dias.78 A interdição foi criticada pelo Diretor do SPI, Cel.
Vicente de Paulo Teixeira da Fonseca Vasconcelos, pois, estando a jazida em terra indígena,
sob domínio da União, acreditava não ser necessária autorização alguma para sua extração.
Porém, durante os anos de 1940 e 1941 vários foram os ofícios endereçados ao Ministro da
Agricultura e ao Diretor do Departamento Nacional de Proteção Mineral, reivindicando,
exatamente, a autorização para a pesquisa e extração do minério pelo SPI.79
O Diretor do SPI mostrava-se preocupado, não só em conseguir a autorização, mas em
ter exclusividade na exploração, já que aparecia um segundo interessado. Em 1940, o
arrendatário Júlio Gregório Soares dirigiu-se ao Ministro da Agricultura, para a concessão da
autorização, afirmando que, com o conhecimento do encarregado, teria pesquisado e
descoberto a tal mina, mas que:

ao constatar a descoberta e quando se preparava para a fazer conhecida


deste Ministério com surpresa sua, a jazida ocupada por outrem, exatamente
por quem devia zelar pela integridade, mesmo porque é um funcionário

76
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 340. 28/02/1942.
77
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 380. 06/ 03/ 1941.
78
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro. Filme 381. 14/02/1940.
79
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro. Filme 340. 28/02/1942.
39

federal é o Snr. Telesforo Fontes; que o citado encarregado tem


(...)quantidade de mica dali e vende-a clandestinamente em Conselheiro
Pena prejudicando não só o peticionário como também o Fisco.80

No dia 26 de Agosto de 1940, em um relatório enviado ao Diretor do SPI, o


encarregado se defende das acusações do arrendatário. Segundo ele, antes da interdição por
ordem do fiscal, havia contratado o Sr. Aurélio Bonetti, especialista em mineração,
prometendo como pagamento pelo serviço prestado “algumas arrobas da malacacheta bruta
retirada das camadas descontinuas da referida mina”. Afirma que não houve “venda
clandestina”, apenas custeamento dos “trabalhos iniciais de escavação com os próprios
recursos da mina.” 81
Em 9 de maio de 1941, temos a resposta do Diretor do Departamento de Produção
Mineral ao Ministro da Agricultura:

Não havendo disposição da lei que permita, como também não há que
proíbe o Governo pesquisar ou lavrar jazida mineral diretamente, ocorre que
o SPI, repartição do Ministério da Agricultura, acha conveniente explorar
ele mesmo os depósitos de mica e pedras coradas, existente no posto Guido
Marlière no vale do rio doce Estado de Minas Gerais, porque:
1)a- a terra pertence aos índios crenak;
2) a gestão dos bens dos mesmos índios cabe ao mesmo serviço
Em face de que nada tem a objetar esse departamento a que a exploração do
faça e está mesmo disposto a prestar sua assistência técnica e colaboração
ao SPI nos estudos e aproveitamento econômico da área interessada.82

Como vimos na documentação acima apresentada, a descoberta da mina de mica na


terra indígena ocorreu no ano de 1940, a autorização para a pesquisa saiu em 1941; no
entanto, a exploração não teria sido iniciada antes de 1951. De 1955, há vários recibos de
pagamentos, feitos ao P.I pela Extratora de Minérios do Vale Rio Doce. Entre 21 e 31 de
agosto do mesmo ano, mais de 70 quilos do minério foram extraídos, ficando o P.I com 10%
do valor do produto.83

80
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro. Filme 381. 04/5/ 1940.
81
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 381. 26/8/ 1940.
82
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 340. 23/2/1942. Relatório referente as
atividades do ano de 1941
83
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme: 161. 31/08/ 1955.
40

A descoberta da mina nas terras do P.I Guido Marlière foi determinante na história de
dispersão vivida pelos Krenak. No entanto, segundo o antropólogo José Gabriel Correa:

Parece claro que a existência/exploração da mina de mica é subvalorizada


nas análises sobre a trajetória dos Krenak, muito provavelmente pelos
trabalhos datarem a descoberta da mina no ano de 1955, e por isso verem a
disputa por exploração como algo recente e de menor importância.84

De fato, nos textos produzidos sobre o processo histórico vivido pelos índios Krenak,
a mina de mica aparece como um problema a partir da década de 50. Em “Os Borun do
Watu”, está anotado:

Década de 50. Novo ataque dos arrendatários.


È descoberta uma mina de mica no centro da Reserva. E começa um novo
momento dos arrendatários, comandados por um capitão reformado do
Exército- Arlindo. Querem que o governo anule a doação de terras da área
Krenak. Que o Estado lhes dê a doação de terras da área Krenak. Que o
Estado lhes dê os títulos da terra. A terra ganha valor e a violência
85
aumenta.

Maria Hilda Baqueiro é ainda mais precisa:

Em 1955, com a descoberta de uma mina de mica na área central da


Reserva Indígena, a disputa assumiu proporções maiores e a pressão dos
arrendatários para que se desse à reversão da doação da área Krenak
assumiu contornos jurídicos. 86

Não acreditamos que as análises feitas sobre o processo histórico dos índios Krenak
deem à exploração do minério uma menor importância. Mas, sem dúvida, não se pode
desconsiderar o período anterior a 1955, pelos ataques que culminaram com a transferência
dos índios em 1957, pois fora uma “guerra” anunciada. Na década de 40 e início da década de
50, os arrendatários não só pressionavam para que as terras ocupadas por eles fossem
regularizadas, como reivindicavam o direito de explorar os bens nelas existentes: a mica e a
madeira.

84
CORREA, José Gabriel Silveira. Política Indigenista, Tutela e Deslocamento de Populações: A Trajetória
Histórica dos Krenak Sob a Gestão Do Serviço de Proteção Aos Índios. Arquivos do Museu Nacional, Rio de
Janeiro, V.6, n.2, Abr/Jun, 2003, p. 97.
85
SOARES, Geralda C. Op.cit., p. 31.
86
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Botocudos...; Op.cit., p. 421
41

1.4 A dispersão do povo Krenak: a ida para o Posto Engenheiro Mariano de


Oliveira

O desterro constituiu uma prática sistemática, imposta pelo SPI a diversos povos
indígenas, com vistas a implementar a colonização e a exploração econômica de seus
territórios de ocupação tradicional. As migrações sofridas pelos índios Krenak foram várias,
ao longo da história, mas as idas para o Posto Engenheiro Mariano e, mais tarde, para a
Fazenda Guarani são marcantes, devido à violência com que ocorreram. Os índios foram
obrigados a retirar-se, deixando suas roças, seu rio, suas terras.
Para entendermos a situação que culminou neste primeiro desterro, é necessário
lembrar que a posse do território estava quase em sua totalidade nas mãos dos arrendatários,
como nos mostra o documento redigido pelo Inspetor Francisco Sampaio:

Essa reserva indígena encontra-se hoje, sob o domínio dos arrendatários das
suas terras. A princípio foram feitos arrendamentos das terras mais distantes
da sede do Posto, e depois foram se aproximando da mesma, até ao ponto
de reduzir a um 20 hectares a área que ainda se encontra sob seu poder.
Tornou-se assim a reserva indígena, em labirinto de pequenos sítios, que os
ocupantes munidos de contratos, defendem com unhas e dentes, em razão
dos trabalhos e benfeitorias neles existentes, que vale na época atual,
algumas centenas de milhares de cruzeiros.87

No momento em que Inspetor escreve o documento, os Krenak viviam no Posto Guido


Marliére, mas Sampaio faz referencia a um outro relatório, apresentado em outubro de 1955,
onde declara que já naquela data o Posto “deixou praticamente de existir.” 88
Se, em 1954, o SPI entrou com um protesto judicial contra os arrendatários, anos mais
tarde, por meio de uma operação irregular, transferiu para a Polícia Florestal de Minas Gerais
as terras ocupadas pelos índios, deslocando-os para o Posto onde residia o povo Maxakali. Tal
transferência ainda seria justificada, surpreendentemente, por uma bomba que teria sido
jogada na casa do chefe do Posto Indígena, Sr. Américo Antunes Siqueira, pelos índios
Krenak, residentes no Posto.
È evidente que a transferência se deu com o aval dos responsáveis pelo Posto. No
entanto, o documento escrito pelo Inspetor Erico Sampaio e assinado também pelo Chefe da

87
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio: Filme 190. 28/03/1957.
88
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio: Filme 190. 28/03/1957.
42

I.R.4, Raimundo Dantas Carneiro, mostra estarem conscientes da não culpabilidade dos
índios, mas sim de envolvimento daqueles que tinham total interesse naquela transferência:

(...) foi aberto inquérito a respeito e logo paralisado, pela simples razão, de
se supor envolvimento na trama um oficial do exército. Vê-se claramente,
que não houve interesse no prosseguimento do inquérito. 89

O oficial do exército citado no documento é o Capitão Pinheiro, que mantinha relações


com os arrendatários, tendo iguais interesses na anulação do título de doação das terras aos
indígenas. Esse mesmo Capitão é hoje um fazendeiro que tem se apossado, fraudulentamente,
das terras dos índios Maxakali. 90
Erico Sampaio insiste no desinteresse em que tiveram em esclarecer o caso do
atentado, descrevendo dois outros fatos ocorridos de mesma natureza:

O agente Manuel, ao tempo em que foi Encarregado do referido Posto,


recebeu de tocaia, dentro do povoado de Crenaque, em plena luz do dia, um
tiro de espingarda de chumbo nas costas. Quase morre, e ninguém ficou
sabendo quem foi o autor. Passado algum tempo, um senhor que trabalhava
para o posto, foi em noite, surpreendido dentro do quarto em que dormia
com sua mulher, por indivíduo que atirava sobre a cama em que se
encontrava. A mulher teve morte instantânea e ele baleado na perna. Houve
inquérito mas nada se apurou a respeito. Diante destes fatos descobrir agora,
por intermédio de inquérito, quem dinamitou o Posto, penso que o resultado
seria nulo, continuando o caso dentro do mistério que o envolve.91

Fica perceptível o nível de violência com que agiam os interessados na desocupação


do Posto Indígena Guido Marlière, o que poderia levar a crer que o atentado à bomba foi mais
uma dessas práticas de intimidação. Na data em que foi escrito o texto acima, isso já pareceu
bastante claro para os funcionários, mas o fato é que estiveram de acordo com a transferência,
o que facilmente se explica, em razão do envolvimento entre funcionários e arrendatários.
Segundo Geralda Soares, em “Os Borun do Watu”, em 1958 os Krenak foram levados
para o Posto Engenheiro Mariano de Oliveira; mas, de acordo com a documentação

89
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 28/03/1957.
90
MISSAGIA DE MATTOS, Izabel . Borum, Bugre, Kraí: Constituição social da identidade e memória étnica
dos Krenak. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 96.
91
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 28/03/1957.
43

administrativa do SPI no dia 2 de dezembro de 1957, chegaram à cidade de Maxakalis, com


destino ao P.I, 52 índios. Esse deslocamento ocorreu nas condições abaixo descritas:

(...) conseguimos chegar na cidade de Machacalis, as 2 horas e, 25 minutos


da tarde, após a minha chegada, procurei imediatamente a hospedagem do
Dr. Lincoln, conforme estava assinado no bilhete, mas, encontrei apenas os
índios e disseram-me que quem veio conduzindo em um caminhão do
Departamento Florestal tinha sido o Sr. Américo Jorge e, não o dr. Lincoln e,
que o dr. Américo já tinha seguido para Águas Formosas, afim de tomar o
avião e, que o mesmo havia deixado uma carta mas, que não deixou recurso
para terminar o transporte dos 52 índios incluindo crianças, 3 velhas e, 1
aleijado. Recebi a referida carta, esperando que fosse pelo menos instruções
autorizando-me o que eu poderia fazer, no entanto, era apenas um M/m
expedido pelo sr. Lincon Chefe da S.O.A. comunicando-me a transferência
dos índios do P.I.N. Guido Marlière para o P.I.N Mariano de Oliveira” e,
dizendo que eu comunicasse a V.S além dos 52 índios conforme foi
explicado, ficaram mais 10 n P.I.N Guido Marlière, para vir no próximo mês
de janeiro...92

Quem redigiu o documento acima foi o encarregado substituto do Posto Indígena


Engenheiro Mariano de Oliveira, José Silveira de Souza, o mesmo que, após receber a
informação, se dirigiu ao encontro dos Krenak, na cidade de Maxakalis. Chegando à cidade
encontrou os índios Krenak sozinhos, sem condições financeiras de seguirem viagem. No
momento do encontro, tanto o senhor Lincoln quanto o encarregado do Posto que os havia
conduzido em um caminhão do Departamento Florestal, não se encontravam mais no local.
Fica clara, na leitura dos documentos administrativos, a azáfama com que ocorreu a
transferência, não tendo sido avisado, com antecedência, aos responsáveis do Posto
Engenheiro Mariano de Oliveira sobre a ida dos índios Krenak, e nem mesmo ao Chefe da
Inspetoria de que faziam parte. Tal situação coloca em questão o efetivo controle do órgão
sobre seus PIs, diante da atrocidade, incúria, cumplicidade e conivência, que parece, pelo
menos neste caso, terem tido os funcionários da área indígena, no destino do povo Krenak.
O encarregado do Posto Engenheiro Mariano mostrou-se surpreso com a chegada dos
índios, demonstrando a ausência de um planejamento. Entretanto, a possibilidade daquela
transferência já tenha sido apontada:

92
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 5/12/1957
44

As plantas respectivas já foram elaboradas conforme tive ocasião de


apreciá-las, gentilmente cedidas pelos engenheiros acima citados, que se
mostram bastante interessados em preparar o processo para o
encaminhamento a Câmara Estadual, para aprovação. Segundo declararam,
vão alegar em favor dos índios a perda da área do P.I Guido Marlière,
ficando os remanescentes dos Krenak sem terras para morarem, e que
possivelmente serão transferidos para o P.I. Mariano de Oliveira, pelo SPI.
Ditos remanescentes são calculados em 30 índios, conforme informou-me o
capitão Esperemdeus, que, estão jogados a própria sorte, explorados pelos
civilizados. Assim sendo, ficará uma medida de 15 hectares para cada índio(
inclusive Krenakes) o que será a exposição de motivos para a justificação,
junto a câmara.93

O documento acima é um relatório da viagem feita pelo servidor técnico de Motores,


Augusto de Souza Leão. Ele contém, além das medidas dos dois aldeamentos que ficavam
subordinados ao Posto Engenheiro Mariano, o aldeamento do Pradinho e o de Água Boa e a
ampliação de 284 hectares para o assentamento dos índios Krenak. Esse documento é anterior
à chegada dos índios ao P.I Engenheiro Mariano, o que coloca em dúvida a surpresa
demonstrada pelo funcionário em relação àquela transferência.
O fato é que, no momento da chegada, o local não estava preparado, a alimentação
deixada pelo encarregado do Posto Guido Marlière não era suficiente para alimentar a
população:

Problemas dos índios procedentes do P.I.N Guido Marlière. Tenho lutado


com dificuldades para atender as diásporas dos referidos índios. Uma vez
que não tenho recursos para mantê-los. Querem eles um fornecimento
integral. Disseram-me que após a transferência deles do P.I.N Guido
Marlière para o “Engenheiro Mariano de Oliveira” o Sr, Américo
funcionário do SPI havia prometido a eles, que o serviço iria fornecê-los de
roupas, ferramentas e gêneros alimentícios, até que as lavouras produzem.
Diante dessa promessa, fui forçado a comprar a credito, 12 foices de
gêneros alimentícios.94

Os índios saíram do “Krenak” 95 pelo uso da violência e pela promessa de que teriam
boas condições no Posto Engenheiro Mariano, até que pudessem retornar às suas terras de
origem. Vimos que o funcionário declarou dificuldade em mantê-los, mas a situação descrita
ganha proporções dramáticas na voz dos Krenak que, diretamente, a vivenciaram:

93
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 07/ 1957.
94
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 161. 02/ 1958.
95
Como já dissemos, inicialmente posto de Atração do Rio Eme, depois foi chamado de Guido Marlière, hoje
Posto Indígena Krenak. È muito comum os índios dizerem “lá no Krenak”, “vamos no Krenak”.
45

Papai ficou. Nós foi tudo pra Maxakali. A criação nós deu quase tudo. Luiz
tinha umas cabeças de animal. Umas vaquinhas, quase tudo deu. Quando
chegou lá, até muié morreu lá. Chegou adoeceu. Morreu Eugenio de
Mariazinha. Que lá é frio. Morreu Chica. O filho de Chica morreu. Morreu
adulto. Dois filho de Pedrim. Morreu a mãe. Morreu a irmã. Seu Juca levou
nós tudo pra lá. A gente era pequeno. Tinha um velho todo aleijado, que
levou nós dentro da cangaia. Boto dentro do balaio. Carregava lá pra aldeia.
Ai nós era pequeno. 96

Ou ainda:

Lá não dava pra nós plantar. Aí meu pai pegou um pedaço de arroz, na
meia, com um home de nome Rosildo. Meu pai plantou. Nós foi morar
numa casinha de capim. Tinha uma baratinha que comia a gente feito cão!
Comia a gente feito sarna. Elas ficava no capim.97

Além do estado sanitário crítico, das más condições de alimentação e moradia, havia
um outro problema que preocupava o encarregado no momento em que levava os Krenak para
o Posto Engenheiro Mariano de Oliveira: a convivência forçada entre as etnias. Vejamos:

Nota-se que não é, conveniente que eles fiquem juntos do aldeamento dos
Maxacalis, uma vez que em anos antecedentes a tribo dos índios maxacalis,
encontraram com os índios da tribo de Crenaque e, tiveram um
desentendimento, havendo grande relações , inclusive enlace matrimonial,
mas depois tiveram um desentendimento, havendo grande conflito, de
ambas partes morreram um grande numero de índios, prevendo isso, com
facilidade que temos, poderemos localizá-los em separados, Além disso, os
índios Procedentes do P.I.N Guido Marlière, são acompanhados de maus
exemplos, os quais não existem na tribo Maxacalis, assim como os jogos de
baralho, buzos, bebidas alcoólicas e outras, isto e os Maxacalis são também
muito dedicados a bebida alcoólicas, mas, venho sempre enfrentando
camlanhas contra os negociantes do local, afim deles não fornecer esta tão
inútil mercadoria... 98

Essa passagem é bastante elucidativa, porque deixa evidente a consciência dos


funcionários em relação aos problemas que podem ser causados com essa prática tão utilizada
pelo SPI: a manutenção de espaços comuns para etnias diferenciadas. A rivalidade entre os
subgrupos Botocudos e os índios Maxakali acontece desde os tempos coloniais, quando os

96
Júlia Krenak apud SOARES, Geralda Chaves, Op.cit., p. 132.
97
Sônia Krenak apud SOARES, Geralda Chaves, Op.cit., p. 132.
98
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Filme 190. 05/12/1957.
46

segundos foram utilizados pelos colonizadores na repressão contra os Botocudos. Segundo


Marcatto:

Logo os indígenas em Minas Gerais foram divididos segundo a ótica do


colonizador, em recuperáveis e irrecuperáveis. No primeiro caso contavam-
se aqueles que tinham perdido sua natural agressividade, substituindo-a por
atitudes de conformismo e inércia. Isso ocorreu com frequência, com os
Maxacali, foram utilizados na repressão aos Botocudos rebeldes. È sabida a
história de que os Maxacali levaram para suas aldeias no Jequitinhonha
Botocudos como escravos, após choques bem sucedidos entre índios e
99
civilizados.

É interessante perceber que o chefe do posto, ao descrever os problemas causados pela


convivência comum, parece reproduzir o discurso colonial,100 quando atribui aos Krenak
(Botocudos) comportamentos negativos, ausentes nos Maxacali, embora reconhecendo que
ambos os grupos fazem uso de bebidas alcoólicas.
O encarregado José Silveira, que se mostrava preocupado com o convívio dos Krenak
e Maxacali, meses depois informava ao Inspetor Francisco Sampaio o quão amistosa estava
sendo a convivência entre eles:

Segundo informações do auxiliar de Sertão José Silveira de Souza, foram


ditos índios fraternalmente recebidos pelos índios maxacalis, senhores das
terras e, por estes obsequiados com mandiocas e batatas nos primeiros dias.
Vivem em plena paz com os locais e estão satisfeitos.101

No entanto, tal satisfação pode ser questionada, se seguimos com a leitura do mesmo
documento escrito pelo Inspetor:

Como, porém nem sempre todos pensam pela mesma forma, um grupo
alegando falta de peixe que tinha com abundância no rio Doce e diferença
de dialeto, insistia em se transferir para São Paulo.102

99
MARCATTO, Sônia. Op. cit., p. 27.
100
No início do período Colonial é marcante a divisão estabelecida pela Coroa entre índios “amigos” e
“inimigos”. Na Capitânia de Minas Gerais visualizamos essa diferenciação, tivemos práticas de extermínio
voltadas aos índios chamados Botocudos, mais arredios e resistentes ao contato, enquanto a incorporação e
desterritorialização dos índios que aceitavam o contato com a Coroa. Os índios Maxakali, por exemplo, se
unindo aos brancos, eram transferidos e incorporados aos soldados na luta contra os Botocudos.
101
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 161. 30/09/1958.
102
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 161. 30/09/1958.
47

E continua contando:
Quando cheguei a dita cidade em viagem para o Posto, o grupo
composto de Antonio Felix, mulher e 2 filhos; Euclides, 1 filho, avó, uma tia
e 4 filhos e finalmente Jacob Josué com uma filha, 15 pessoas ao todo,
viajou na véspera da minha chegada com destino ignorado.103

Na leitura dos depoimentos reunidos no livro “Os Borun do Watu” foi possível
identificar o grupo citado pelo Inspetor:
Quem ia guiando nós. Nós ia mais o Félix, pai de Laurita. Nóis tudo tava
pequeno. Era miudinha. Antes, quando nos cheguemos lá nas águas
formosas, fiquemos lá onde eles carrega negócio de tropeiro. Fiquemos
noutra rua, tinha um sobrado lá. Fiquei trabalhando. Os índios trabalhava na
serraria pra comer. Eles arrumaram a casa e nós fiquemos uns tempos lá.
Enjoaram de trabalhar. Viemos embora! Uma moça pôs nós dentro do trole.
Nóis vinha para Valadares. No outro dia...nóis a pé traveis. Arranjemo um
carro no caminho. Cheguemos lá de noite ( Valadares). A policia veio
buscar nós. Botou nós no Batalhão. Nós dormino. Polícia falou: Vou levar
vocês para Belo Horizonte! E arrumou passagem. Laurita tava doente.104

Se, como relata o Inspetor o destino era ignorado, foi descoberto a tempo de a polícia
impedir que os índios retornassem às suas terras tradicionais. Segundo Laurita Felix, eles
seguiram para São Paulo, mas por imposição do SPI:

Nós foi para São Paulo. O homem (do SPI) falou assim: Uai! Como é que
vocês vai lá pra São Paulo? Nós não vai pra São Paulo! A senhora vai pra
onde nós mandar. O homem queimou porque minha mãe tinha respondido.
A Sônia aqui vai pra casa do pai dela. Deu dinheiro mãe, deu dinheiro pai.
Mandou nós dentro do carro. Nós nem sabia pra onde ia. Ocêis vai
perguntando aos guarda. E deu uma escrita pra nós entregar onde chegar.
Eu tava com oito anos. Tava doente.105

Do grupo que falamos acima, todos retornaram para o P.I Krenak, guiados, dessa
feita, por Laurita Felix e não mais por seu pai que se encontrava já bastante desorientado em
razão do exílio sofrido. Assim como esse grupo, outros Krenak tiveram seu destino desviado
quando tentaram retornar para suas terras, como a própria família Damaceno, hoje a maior de
Vanuíre, que tinha como destino Ilha do Bananal:

103
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 161. 30/09/1958.
104
Júlia Krenak apud SOARES, Geralda Chaves. Op.cit., p. 135.
105
Laurita Felix apud SOARES, Geralda. Op.cit: 136. Do grupo guiado por Antônio Felix, pelo menos duas
pessoas não são levadas para Vanuíre. Sônia Krenak e seu irmão insistem em ir ao encontro do pai que havia
ficado no “Krenak”.
48

Então, daquela aldeia nós fomos para outra aldeia divisa com a Bahia que se
chama Maxakali, é a cidade ali próxima. Lá em Maxakalis nós ficamos ali
por alguns uns anos. Nós com a nossa família e os povos Krenak nós saímos
num pau de arara de Krenak para essa outra aldeia na divisa com a Bahia. E
chegando lá, permanecemos naquele lugar por um bastante, é, uns 5, 6 anos,
mais ou menos. E dali seguimos, pra ir para Ilha do Bananal, nós fomos para
a Ilha do Bananal. Até que foi uns dos nossos parentes Krenak, eles foram e
permanecem lá, mas nós num. Eu mesmo não tenho sabido da notícia dos
que estão lá, porque é um lugar muito longe.106

Segundo o Sr. Antônio, o grupo que tinha como destino a Ilha do Bananal ficou,
primeiramente, alojado em Brasília; de lá uns seguiram e outros esperaram o próximo avião.
Antes que a segunda parte seguisse para Bananal, os primeiros já estavam de volta. Quando se
encontram:

Eles falaram: e lá não é um lugar muito bom parente, pra vocês ir pra lá, e
de lá nós estamos voltando. Ficou alguns lá, ficou o meu, é, que se chama
Luiz Umbelino, que ele era chefe, trabalhava de chefe, ele ficou lá, ele e a
família dele. Ficou Sebastião Pedro(...) ele também ficou, ficou também
uma velhinha, bastante velhinha, qui o nome(...) eu não sei se o nome ou se
era o apelido, mas que nós conhecia ela por J, ela também ficou, não teve
condição de voltar. Ai nós falamos: Então nós não vamos para lá, pedimos
para que nós voltasse pra de onde que eles tiraram nós, e eles pegaram e
falaram: Então falaram então, vocês vão voltar para aldeia da divisa da
Bahia, onde ôces tavão. Daquilo nós viemos, mas chegando no meio da
viagem meu pai falou, acho que nós vamos desce, vamos até a aldeia do
Krenak, vamos voltar para nossa terra, quem sabe um dia Deus pode, possa
nos ajudar que aquela terra pode ser resgatada para nós outra vez ,enquanto
isso nós vamos morando nas ilhas, porque as ilhas ta lá, nós podemos
continuar morando ali, fazemos nossos ranchos e vivemos de pesca.. Então,
os demais aceitaram, e nós descemos para lá. Chegando lá fiquemos dentro
de uma ilha por muitos tempo, e nada da terra se resgata aquela terra
novamente pra nós, então como eles tinham tomado permaneceram com
eles.107

Vimos que, por meio de uma operação irregular, o SPI transferiu as terras dos índios
Krenak sob sua responsabilidade para o Serviço Florestal, desterrando essa população,
impondo-lhes um novo destino. Várias razões são apontadas pelos Krenak para não se
106
Entrevista concedida dia 22 de abril de 2007. Seu Antonio Damaceno é morador de Vanuíre, dono de uma
fala mansa e de uma hospitalidade ímpar. Emocionou-se bastante ao lembrar da trajetória de seu povo e da de
sua família. Ele se define como um “menino sem infância”, irmão mais velho de uma família de 9 filhos, teve o
pai morto em um acidente na Estrada de Ferro Vitória-Minas, passando a assumir grande responsabilidade.
107
Idem.
49

adaptarem nas terras dos Maxakali: a falta de alimentação, moradia, diferença climática, a
hostilidade dos Maxakali, além de razões afetivas, como a ligação aos lugares onde estavam
enterrados os seus mortos.
Os Krenak foram planejando o caminho de volta, muitos tiveram seus planos
frustrados pelo SPI, como foi o caso dos índios levados a São Paulo e para a Ilha do Bananal.
Mas por não aceitarem permanecer no Posto Engenheiro Mariano, alguns ficaram nas aldeias
estipuladas pelo SPI, até que pudessem retornar. Outros, no entanto, nunca fizeram o caminho
de volta.
Como já dissemos, a ida para o Posto Engenheiro Mariano é uma forte lembrança na
memória dos índios Krenak. Memória que aproxima os Krenak que residem hoje em Minas
Gerais, de todos os outros que tomaram caminhos diferentes. É a história de todos os parentes,
como inúmeras vezes declarou Mário Tepó Damaceno108.

1.5- Reformatório Agrícola Krenak: os Krenak sob vigilância.

As famílias que, do P.I Engenheiro Mariano, retornaram para o Guido Marlière


encontraram-no abandonado pelo Serviço, ocupado por particulares e sob o controle da
Polícia Florestal. O SPI só retornou à área em 1966 e durante todo esse período, os índios não
receberam nenhum tipo de auxílio oficial. Naquele momento, as denúncias quanto à má
administração do SPI eram numerosas, culminando com a extinção do órgão indigenista no
ano seguinte. Com a criação da FUNAI, em 1967, esperava-se recuperar a imagem de uma
política indigenista protetora dos povos indígenas, política essa bastante desgastada com a
divulgação das denúncias de corrupção funcional e genocídio.
Foi delegada ao Governo do Estado de Minas Gerais a função de proteger e assistir os
índios ali localizados, sendo a Policia Militar o órgão escolhido para tal. Na direção do P.I
Guido Marlière estava o Capitão Pinheiro, grande articulador de dois projetos implementados
no território dos índios Krenak: a Guarda Rural Indígena e o Reformatório Agrícola Krenak.
A Guarda Rural Indígena recebeu 90 índios, entre Karajá, Xerente e Krahó. Esses
índios eram escolhidos pela capacidade de liderança e melhores condições físicas, e o

108
Morador de Vanuíre, casado com uma índia Kaingang e pai de três crianças nascidas em Vanuíre.
50

treinamento oferecido a eles incluía manejo de armas e montaria. De acordo com Pinheiro,
tais índios, treinados pelos oficiais da Policia Militar, voltariam a seus postos de origem,
capazes de auxiliar no combate às invasões, assim como na manutenção da ordem interna.109
A GRIN antecedeu o funcionamento do Reformatório Agrícola Indígena, que
funcionou na área entre os anos de 1969 e 1972. Ambos não diferem quanto à tentativa de
manter o controle nos postos indígenas, seja transformado os índios em “guardas” vigilantes
dos demais, ou afastando do P.I de origem, aquele que, na ótica do Serviço, tinha um
comportamento inadequado. O Reformatório recebeu índios de várias regiões do país, e o
período de reclusão deveria dar conta de transformar esses índios e livrá-los de maus hábitos
como a vadiagem, o uso de bebidas, roubos. A rotina rígida, as punições diante do não
cumprimento das atividades, foram os meios escolhidos para essa “recuperação”:

Os presos considerados perigosos, que estivessem de “castigo” ou que se


recusassem a prestar serviços, trabalhavam e eram trancados, recebendo
alimentação dentro das celas quando não iam para a “solitária”, onde
110
passavam a pão e água.”

O Posto Indígena foi transformado em Presídio, e os índios Krenak que insistiram em


retornar à área foram submetidos ao mesmo regime de vigilância e punição que os índios
tidos como “criminosos”.
Assim, vejamos:

Senhor chefe: Em resposta a seu oficio de no 26/69 de 27.10.69, determino


seja feita uma diligência a fim de localizar o índio Augusto Paulino, da tribo
Crenak e reconduzi-lo á aldeia de origem.
Como é conhecido de todos que para se ausentar da comunidade tribal, é
necessário autorização da chefia desta Ajudância, o referido índio deverá
passar uns dias no dormitório de segurança.111

Ou ainda:
Comunico-vos dia 03.07.71 ás dez horas VG índias VG Laurita VG Luzia e
Sebastiana VG seguiram expresso Resplendor VG fim de fazer compras VG
regressando mesmo dia VG dezoito e quarenta horas VG porém Sebastiana

109
MISSÁGIA DE MATTOS, Izabel. Borum...; Op. cit., p. 104
110
ANTONIO, Jonas Dias Filho. O Outro Aprendizado: a história do Presídio entre os Krenak. Trabalho de
Conclusão de Curso. Universidade Federal da Bahia, 1990, p. 78.
111
Serviço de Proteção ao Índio. Museu do Índio. Filme 307. 06/11/1969.
51

chegou completamente embriagada VG sendo recolhida ao xadrez VG onde


permanecerá até vossa deliberação PT.
Durante o dia está sendo colocada á fazer vários trabalhos domésticos e á
noite é recolhido ao xadrez PT. As vossas considerações e providências PT
SDS.112

Augusto Paulino e Sebastiana, hoje falecidos, são índios Krenak que retornaram para
suas terras depois do desterro sofrido em 1957. Sebastiana, além da ida para o P.I Engenheiro
Mariano, foi obrigada a seguir para São Paulo. Tão prisioneiros quanto os demais, eram
punidos com o trabalho sem remuneração ou mesmo com a restrição total da liberdade por
infringirem regras estabelecidas e fiscalizadas com rigor dentro do Reformatório. Tal controle
fica evidenciado, também, nos depoimentos dos índios que vivenciaram aquele período:

Eu mesmo fiquei dezessete dias preso só porque estava jogando sinuquinha,


aí eles me prenderam dezessete dias, ameaçou de bater. Se a gente
conversasse na língua eles achavam ruim, falavam que estava falando deles,
era um trem danado. Se vinha do outro lado ( do rio, no povoado), eles
olhava se o cara tinha bebido pinga. Se tinha bebido, era levado preso. João
meu irmão ficou 9 meses preso por causa da pinga, qualquer coisinha eles
tocava na cadeia, ficava preso de noite e de dia e ainda tinha que trabalhar.
Você não ganhava nada, capinando, plantando roça pra eles, para polícia
florestal, plantava horta pra eles. Todo preso tinha que trabalhar tanto de
noite quanto de dia, trabalho de fazer horta, canavial e a polícia ficava ali
sempre vigiando, ficava sentado o dia inteiro, se não trabalhasse, apanhava.
Teve uma vez que eles prenderam um índio Guajajara e aí mandaram os
índios tomar banho. De lá eles resolveram fugir, aí deram uns tiros de
metralhadora, eu não sei se mataram eles porque até hoje eu não vi um
deles, não. Um eles pegaram e o outro sumiu. O que eles pegaram
arrebentaram ele no pau até o cara ficar mole no chão, depois tacaram na
cadeia. 113

A fala é de Nego, irmão de Augusto Paulino e João Borum, citado no depoimento. A


violência extrema relatada, embora não registrada na documentação, não foi uma ação
isolada, de acordo com os índios. Além da prática do jogo, que ocasionou na prisão de Nego,
João Borum mencionou outros comportamentos tidos pelos funcionários como falta grave,
entre eles: o uso da língua114, a pesca, a bebida e a falta de vestimentas. Um dos únicos

112
Serviço de Proteção ao Índio. Museu do Índio: Filme 306. 05/07/1971.
113
Apud MISSÁGIA DE MATTOS, Izabel. Borum...; Op. cit., p. 106.
114
A imposição do uso do Português foi justificada pela Policia Militar pela facilidade que o uso da língua
nativa traria para organizarem motins contra a ordem já estabelecida.
52

moradores de Vanuíre, que se encontrava no P.I durante o funcionamento do Reformatório,


chegou a trabalhar na GRIN. Além dele, outros Krenak trabalharam no Reformatório, muitas
vezes sem a remuneração prometida. Além da falta de pagamento, os índios Krenak
reclamavam de “que os presos tinham comida, roupa115 e médico, e eles não recebiam
nenhum tipo de assistência”. 116
O maior número de “internados” no Reformatório eram índios do Mato Grosso do Sul,
uma região marcada por disputas entre índios e fazendeiros locais. Esses atritos geravam os
“crimes” punidos naquele local.117 Além dos delitos claramente registrados, existiam reclusos
que não haviam cometido “crime” algum, mas por se indisporem com os funcionários ou por
não se mostrarem passivos diante dos problemas envolvendo suas terras, acabavam sendo
transferidos.118 Com isso, percebemos que a maior função do Reformatório era mesmo manter
o controle dos postos, apaziguar conflitos entre os índios e os arrendatários de terras. A
FUNAI buscava resolver um problema que não fora sanado pelo antigo SPI. Qual tratamento
dar aos índios que não aceitavam o esbulho de suas terras? Aos índios que não obedeciam às
ordens estabelecidas pelo Serviço?
A saída encontrada para o velho problema, também não era nova. Durante a gestão do
SPI, havia projetos para criação de presídios para índios, além da manutenção efetiva de pelo
menos um deles. O Posto Indígena Icatu, em São Paulo, funcionou como uma Colônia Penal.
“Na falta de estabelecimento próprio foi o Posto de Icatu provisoriamente considerado Posto
Correcional, de acordo com a 1º do artigo 28 da Lei 5.484, de 27-6-1928.”119
Icatu também recebeu índios de várias etnias, vindos de diferentes postos. Na
documentação referente ao funcionamento da Colônia Penal, as condenações não são
informações registradas de maneira clara, muitas são justificadas apenas como práticas de
“distúrbios”. Também não parece existir uma “pena” pré-estabelecida. Um documento do
Posto Indígena de Icatu, datado de 1948, relata a permanência sob o regime de reclusão de 6
índios, sendo eles: 3 Caiuá, 2 Terena e 1 Cadiueu. Pode-se notar que os índios haviam entrado
115
Existia um fardamento para os internados, na chegada recebiam “ duas (02) calças de brim zuarte; duas (02)
camisas de brim zuarte; dois (02) casquetes de brim zuarte; uma (01) calça de tergal; uma (01) camiseta branca;
um (01) par de meias; um (01) par de sapatos e um par de sandálias havaianas.” Apud: ANTONIO, Jonas Dias
Filho. Op. cit., p. 92.
116
Ibidem, p. 97.
117
CORRÊA, José Gabriel Silveira. Formas de Gestão de Crimes entre Populações Indígenas: Ação Estatal e a
Criação do Reformatório Agrícola Krenak, p. 06. O texto não foi publicado, disponível na Internet.
118
ANTONIO, Jonas Dias Filho. Op. cit., p. 88.
119
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio: Filme 016 A. s/ data.
53

recentemente no posto, um deles no mesmo mês em que o documento foi produzido. Ainda
assim, o Inspetor Erico Sampaio, registrou a vontade de retornarem às terras de origem
afirmando que, pela disciplina e dedicação ao trabalho, tais índios deveriam ser beneficiados
pelo indulto como réus primários.120
Exatamente com a prática da transferência, afastando o índio “problema” do posto de
origem é que se inicia a história dos índios Krenak, em Vanuíre:

O mestiço João Umbelina, procede do Posto Indígena “Guido Marliére,


Estado de Minas Gerais; Deu entrada neste P.I em Janeiro de 1937, ficando
internado até 1945, data em que teve livramento, por ordem do então chefe,
Cel. Nicolau Bueno Horta Barbosa. Desse ano, passou a residir no Posto
Indígena de Vanuíre.121

Acusado de um crime grave, João Umbelina passou oito anos sob esse regime. A
disciplina e a disposição para o trabalho eram cobradas pelos funcionários. João Umbelina
mostrava-se bastante disposto ao trabalho, mas, como notamos na leitura dos relatórios e
diários do Posto, o índio continuou resistente às normas ditadas pelo SPI , mesmo nos anos
de reclusão.122 Segundo informantes em Vanuíre, João Umbelina não aceitava ordens, nas
palavras da Krenak Lia, era “um que lutava pelo direito dos índios”.
Ao construir um Reformatório nas terras do Posto Indígena Guido Marlière, estariam
sob controle os conflitos entre índios e arrendatários, tão constantes naquelas terras. Com a
transferência dos índios para o PI Engenheiro Mariano, os posseiros não apenas ali
permaneceram, como aumentaram sua área de ocupação. Os índios Krenak que retornaram,
dividiram espaço com arrendatários e “internados”; no entanto, vivendo sob a vigilância
intensa já demonstrada, não existia espaço para indignação e revolta, as quais eram punidas
com rigidez e violência.
Pelo exposto, questões discutidas pelo antropólogo José Gabriel Correa, parecem-nos
bastante pertinentes:

Assim a presença dos índios Krenak vivendo sobre o mesmo regime de


controle dentro da área do Reformatório, longe da estranheza gerada á
primeira vista, exemplifica que o controle cotidiano não se limitava aos

120
Idem.
121
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 07. 5/12/1948
122
Apresentaremos mais detalhadamente a trajetória de João Umbelina no capítulo seguinte.
54

índios criminosos. Também nos faz pensar, até que ponto a gestão cotidiana
dos postos indígenas, diferia do Reformatório, com alguns índios sendo
punidos e recuperados e todos sendo educados para a civilização.123

O Reformatório funcionou nas terras dos índios Krenak até 1972, quando a estrutura
do presídio ali construído foi transferida para a Fazenda Guarani. Os índios Krenak foram
novamente desterrados, exatamente para o novo endereço do mesmo empreendimento
carcerário já deles conhecido. O desterro, a vigilância e a punição não haviam chegado ao
fim.

1.6- O desterro continua: os índios na Fazenda Guarani.

Em 1971, a FUNAI ganhou, na Justiça, a reintegração de posse das terras do Posto


Guido Marlière que estavam sob o domínio dos arrendatários, ficando determinado que eles
deixassem a área num período máximo de 15 dias. Entretanto, um acordo entre o Governo de
Minas e a FUNAI, permitiu a permuta do território Krenak pela Fazenda Guarani, esta doada
ao órgão tutelar pelo Estado. Dessa maneira, mesmo obtendo ganho de causa, a FUNAI os
transferiu, sem comunicar aos índios o resultado judicial. Acerca do ocorrido, Hiram Firmino
da Revista Comércio e Indústria de 1981, escreveu o seguinte artigo:

Em dezembro de 1972, o cel. Bandeira de Mello, da Funai, representado


pelo Capitão M.S.P e o Governador de Minas, Rondon Pacheco, trocaram a
área do Rio Doce, a esta altura apenas 13 alqueires, pela Fazenda Guarani.
Em março de 1970 a Funai entrou com “ação de reintegração de posse” para
reaver a área do Posto, invadida por fazendeiros. Foi dado um prazo de 30
dias para a retirada. Os ocupantes contrataram o advogado Alexandre de
Alencar, de Resplendor, para defendê-los perante a Funai.
Foi elaborado um memorial enviado ao Presidente Médici, alegando haver
um direito de posse dos invasores, por estarem aí há 50 anos (o documento
de demarcação datado de 1920 é claro quanto á inexistência desses
ocupantes), que estes eram trabalhadores, contribuindo para o progresso,
etc. Alegava também a inexistência de índios na área a não ser dois velhos,
Jacó (falecido na Fazenda Guarani) e Sebastiana (ainda viva).
Em maio de 1970 a Secretaria particular da Presidência, Sérgio Médici,
mandou sustar a ação de despejo sob a alegação de que a doação do Estado
á União “objetiva a fundação de colônias destinada aos índios Krenaks e
Pojixás, ora extintos.”

123
CORRÊA, José Gabriel Silveira. Formas..., Op.cit., p. 10.
55

Tanto a ação da Funai, quanto o processo do Sr. Alexandre, objetivavam


uma situação que justificasse aos invasores e a própria Funai a transferência
dos indígenas da área, solucionando tranqüilamente o “problema social dos
colonos que não teriam para onde ir.”
Desta forma, iniciaram-se os entendimentos para a troca da Região
Krenaque por uma área do Parque Florestal de Coronel Fabriciano. Segundo
o General Bandeira Mello, devido a “dificuldade que estariam surgindo”
estes entendimentos foram sustados e a área do Parque substituída pela
Fazenda Guarani, no município de Carmésia, de propriedade da PMMG.
O representante da FUNAI havia mantido entendimento também com o
secretário da Agricultura Alisson Paulinelli e com o Comandante da PM. Ele
disse, na época, porém, que ambos estavam de acordo.
A Fazenda Guarani, porém, era economicamente improdutiva, ao contrário
da “área do Rio Doce, fértil, rica em minérios e pesca abundante.”
“A tramitação foi toda feita sem o conhecimento dos índios Krenak,
interessados diretos na questão. Segundo a Lei n 5.875, de 16/5/72, foi
legalizada a doação da Fazenda Guarani á FUNAI e não os índios. O Capitão
M.S.P., Chefe da Ajudância Minas-Bahia, declarou que a transferência do
Posto Krenak para a Fazenda Guarani “foi efetuada de acordo com a
programação aprovada pela Presidência da Funai, transcorrendo sem
qualquer problema...124

Mais uma vez na história da atuação indigenista, promovendo a dispersão Krenak, fica
evidente a aliança entre o órgão tutelar e os poderes locais. Com a transferência dos índios, o
órgão tutelar facilitou a exploração econômica da área, beneficiando fazendeiros, que há
muito haviam invadido aquelas terras, dando como justificativa para tal feito a explicação:

Com essa doação, a FUNAI soluciona em definitivo, o antigo problema


entre posseiros e remanescentes Krenac, que também irão para a Fazenda
Guarani, contribuindo ao mesmo tempo para a evolução gradual do estágio
de desenvolvimento sócio-econômico e cultural do índio que já mantém
125
contato permanente com a sociedade envolvente.

Desconhecendo o resultado da causa judicial, os índios foram levados à força para a


Fazenda Guarani e, mais uma vez, ficando sob as imposições do órgão tutelar. Lá
encontraram um território de solo pobre e sem rios, estando sujeitos à falta de alimentação, ao
frio e às doenças. Somado a esse quadro, temos em funcionamento na Fazenda Guarani uma
Colônia Penal Indígena (1972-1974), obrigando-os, novamente, a viver sob regime de
reclusão.

124
Apud: SOARES, Geralda Chaves, p. 143.
125
MARCATTO, Sônia. Op. cit., p. 37.
56

A pesquisadora Maria Sônia Marcatto iniciou seu trabalho de campo em 1977, período
em que os Krenak se encontravam exilados na Fazenda Guarani. Ela observou um outro
problema, gerado com a transferência: o convívio forçado entre diferentes etnias estava
provocando hostilidades entre os grupos, como nos mostra o depoimento abaixo:

Nóis veio aqui conversar com tupiniquim amigo. Meu povo pediu eu vir
aqui dizer todo mundo não acostuma Fazenda Guarani. Terra não é boa,
muito frio. O segundo capitão morreu lá, cascavel mordeu ele (...)
Tupiniquim muito bom. Não é igual a Krenaque. Krenaque diz que lá não é
nosso lugar. Eles rouba animal, depois diz que é Guarani. Eles quase matar
meu irmão João, dar pontapé nele. Krenaque não gosta de nóis. Dizer que a
fazenda é deles. Para eles tem tudo. Mesa, cama, casa bonitinha. Para nóis
casa de pau-a-pique. Coronel não quer que ajudem Guarani.126

Os Guaranis chegaram em 1974, encontrando os Krenak já instalados. O fato de terem


chegado primeiro à Fazenda Guarani, talvez tenha feito com que os Krenak enxergassem os
outros como intrusos. No entanto, as regalias denunciadas pelo índio Guarani não
correspondem à memória dos índios Krenak acerca dessa permanência:

Nós não tinha recursos pra manter a família. Lá não tem serviço. Era na
base da banana cozida com sal. As famílias doentes e chefe não se
incomodava. Quando levava o doente para a cidade, o enfermeiro da
FUNAI cobrava. Nós não tinha dinheiro e ficava em precisão. Como viver
lá. Dr. Adhemar apoiou nós voltar pro Krenak. A Guarani não era nossa.
Nós decidimos voltar pro nosso lugar.127

Se, aos demais moradores, os Krenak se diziam donos da “Fazenda” como afirma o
índio Guarani, os depoimentos a que tivemos acesso nos mostram o quão forte era o
sentimento de não pertencimento, sentimento vivenciado também pelos Krenak de Vanuíre,
segundo Sônia Marcatto:

(...) tivemos notícia da existência de cinco (5) Krenak adultos trabalhando


em Resplendor, MG., ao passo que vinte e dois (22) deles haviam
abandonado o grupo e se dirigido para o PI Vanuíre ( Município de Tupã,
SP.) onde, não se integrando nem sendo aceitos pelos Kaingang, assumiram

126
Ibidem, p. 38.
127
COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. Índios direitos históricos. Cadernos da Comissão Pró-Índio n. III, CPI-SP, São
Paulo, 1982. p. 58.
57

comportamento anti-social e passaram a ser repelidos. Até janeiro de 1978 a


comunidade Krenak em Guarani esperava ansiosa o retorno do grupo”.128

Os Krenak que foram transferidos para São Paulo vivenciaram uma situação diversa
dos que estavam na Fazenda Guarani, passando a viver em uma terra tradicionalmente de
ocupação Kaingang, sendo eles os intrusos. Embora os Krenak de Vanuíre resistam em falar
dos atritos iniciais, acabam relatando as dificuldades na convivência, como nesse depoimento
do cacique Gerson Cecílio Damaceno:

E outra, nós enfrentou uma dificuldade grande também, nós tá numa terra
que não é da nossa origem. Agora depois, hoje(...) e até hoje nós tem um
pouco, ainda leva um pouco meio chatiado: “Ah, porque vocês é Krenak,
você não é daqui”. Mas acabou muito, porque a gente já casou com
Kaingang e os filhos são todos daqui, todo mundo já conhece, já tem mais
saber mais como é que a gente é, mas no começo foi difícil.129

No trabalho de campo, Marcatto assistiu à espera dos Krenak pelo retorno dos índios
residentes em Vanuíre; as diásporas ocorridas não colocaram fim à teia que os une. Idas e
voltas são uma constante, como nos mostra o documento abaixo:

O índio Antonio Jorge, residente no posto Indígena Vanuíre, município de


Tupã- SP. Está autorizado para viajar á Fazenda Guarani município de
Carmésia Minas Gerais, por via férrea ou rodoviária, fim visitar parentes.
Devendo, as despesas com o deslocamento serem de sua inteira
responsabilidade, outrossim o seu retorno fica marcado para o dia
14(quatorze) corrente.
Posto Indígena Vanuíre, 08 de agosto de 1979.130

Ou ainda:

O índio José Manoel de Souza Filho está autorizado por esta chefia a
deslocar do PI. Vanuíre com destino a Fazenda Guarani, no município de
Ferros em Minas Gerais, viajando por via férrea ou rodoviária, devendo

128
MARCATTO, Sônia.Op. cit., p. 36.
129
Gerson Cecílio Damaceno é o cacique de Vanuíre. Concedeu-nos a entrevista no dia 22/ 04/ 2007,
conversamos por duas horas. Aceitei, nesse mesmo dia, o convite para participar do culto da Igreja Congregação
Cristã do Brasil.
130
Fundação Nacional do Índio. 08/08/79. Documentação armazenada no Museu Índia Vanuíre, na cidade de
Tupã, São Paulo.
58

retornar até o dia 28.12.78; as despesas com o deslocamento correrão por


sua conta. 131
PI. Vanuíre, 17 de dezembro de 1978.

Chama-nos a atenção o controle em que vivia essa população, tendo a necessidade de


uma autorização para a saída, com uma data de retorno já estipulada. Um exemplo
interessante é uma outra viagem também feita à Fazenda Guarani, pelo morador de Vanuíre,
Antonio Jorge:

O índio Antonio Jorge, chegou a esta Fazenda no dia 10/08/ 79, pelo ônibus
das 12, 30 hs e regressou á Belo Horizonte no dia 11/08/79, no ônibus das
7, 30, tendo pernoitado com seu filho Sebastião Jorge nesta Fazenda.
Carmésia, 11 de agosto de 1979.132

A carta é assinada pelo administrador da Colônia Agrícola Fazenda Guarani que


registra detalhes da viagem, mostrando a intensa vigilância que havia sobre os índios.
Considerada a incapacidade relativa133, fazia-se necessário um tutor e, nesse caso o próprio
Estado. Aos encarregados dos postos, que mantinham uma relação direta com esses índios,
cabia orientá-los, por exemplo, intermediando as relações comerciais entre índios e não
índios. Dentro dessa ótica da “tutela orfanológica”, estava inserida a restrição do ir e vir dos
indígenas.
Sabemos que as despesas pagas com a viagem de Vanuíre até a Fazenda Guarani eram
de responsabilidade dos índios. Analisando os Diários do Posto Vanuíre, vemos que a
remuneração dos índios se fazia pelos seguintes trabalhos: serviços remunerados dentro da
aldeia, venda dos produtos plantados em suas roças individuais ou trabalho como boia-fria
nas fazendas vizinhas.
Em uma conversa com o Krenak Antonio Jorge, foi dito que não faltava trabalho em
Vanuíre, pois eram muitas as plantações de algodão, milho, amendoim. Segundo ele, as

131
Fundação Nacional do Índio. 17/10/1978.
132
Fundação Nacional do Índio. 11/08/1979.
133
No Código Civil de 1916, a tutela recebeu novo reforço. No artigo 6º, esse código estabelece que: São incapazes,
relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:
I - os maiores de dezesseis e os menores de vinte um anos;
II - os pródigos;
III - os silvícolas;
Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos a regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à
medida que se forem adaptando à civilização do país (art. 6º do Código Civil de 1916).
59

mesmas oportunidades não eram encontradas nas terras mineiras, onde só se vivia de pesca134.
Hoje, seu Antonio analisa de forma positiva a vinda para Vanuíre, mas foi sua mulher, Jandira
Umbelina, a grande responsável por aquela decisão. Nascida da união entre um Krenak com
uma Kaingang, Jandira acompanhou a família em sua viagem para Minas Gerais, mas
desejava voltar para o lugar que, segundo ela, era a sua terra. Mesmo depois de casar com o
índio Antonio Jorge, originário das novas terras, Jandira não desistiu de retornar e, como me
disse, ela viria mesmo sem o marido.135
É notável o sentimento de pertencimento territorial, a origem é uma constante
referência mesmo para aqueles que foram deslocados a décadas. Esse mesmo sentimento faria
com que o grupo estabelecido na Fazenda Guarani planejasse o caminho de volta. Em 1980,
26 dos 46 Krenak retornaram para as terras do Guido Marlière, fixando-se em 68,25 hectares,
onde estava instalado o Patronato São Vicente de Paula, o qual fora abandonado, em 1978,
por causa da enchente do Rio Doce.136
A carta escrita pelo cacique José Alfredo às entidades de apoio, retrata as condições
em que viviam os Krenak que fizeram o retorno:

Em maio de 1980 nós voltamos para o Krenak.


Nós encontramos os gados dos fazendeiros e do patronato então nós tiramos
o gado patronato para fora e estamos trabalhando na terra. E o ano passado
a FUNAI passou o trator na terra só no pedaço que tava na mão do
patronato. Então a terra era pequena, nós entramos na área que os
fazendeiros ocupa e fizemos roças e casa. Como os nosso parente estão
chegando de volta, a área está ficando muito pequena para nós. Nós estamos
entrando mais para dentro da terra que é nossa e os fazendeiros fala que é
deles.
Os fazendeiros foram na justiça e estão incriminando nós. Nós temos
documento da nossa terra e sabemos que as terras são nossas e onde morou
nossos parentes. Em 1972 nós ganhamos a terra na justiça e não deram
razão para nós e tiraram nós e jogaram na rua.
Tiraram nós com a polícia, preso, amarrado, como se fosse uns porcos.
Agora os fazendeiros foram na justiça e a FUNAI por causa disto quer que
nós trabalha só num pedacinho que tava com os patronato. Este pedacinho é
muito pouco e não está dando para nós.137

134
Em 1955, o Sr. Antônio Jorge chega com a família, exatamente a data em que ações dos arrendatários
dificultam as condições de vida dos índios.
135
Conversei com o casal Antonio Jorge e Jandira Umbelina no dia 22/07/07. Era clara a insatisfação de Dona
Jandira com a conversa, sobretudo quando falávamos de seu pai João Umbelina.
136
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Botocudos..., Op. cit., p. 422.
137
José Alfredo de Oliveira apud SOARES, Geralda Chaves. Op. cit., p. 153.
60

A terra arada pela FUNAI não era suficiente para o número de Krenak que retornaram
à área, de maneira que os índios recorreram às entidades, na tentativa de conseguir 3 juntas de
bois para que eles mesmos pudessem arar as terras que achassem necessárias. João Alfredo,
culpa a FUNAI de temer os fazendeiros e de manter relações com eles, afirmando, também,
que não ficariam esperando a FUNAI, “Nós mesmo podemos trabalhar pela nossa conta
própria e cuidar das coisas que é nossa.” 138
A relação de dependência alimentada pelo Serviço, fez com que, durante sua gestão
(SPI e FUNAI), os índios recorressem ao chefe do posto, diante das necessidades. Vistos
como incapazes, tiveram a interferência de um funcionário não índio nas relações
estabelecidas com a sociedade envolvente e, mesmo, dentro da aldeia. Entretanto, vemos no
trecho anterior a tentativa de cortar o cordão que os liga à FUNAI, diante da constatação de
que a mesma atende a interesses que não os seus.
Os índios Krenak que continuaram na Fazenda Guarani tinham como representantes
Augusto Paulino e Adão Luiz Viana139, que diziam ser impedidos pelos funcionários da
FUNAI, de voltar para o P.I Krenak.140 Enquanto isso, índios espalhados em diferentes
lugares iniciavam o caminho de volta, incluindo os de Vanuíre:

É, a nossa vinda lá do Krenak, o nosso povo esparramou pra vários lugares


do Brasil, Estados, né? Devido nossa terra, o massacre foi muito grande, foi
morte, em cima de morte. Então, nosso povo fugia para não morrer, ai
tomaram toda nossa terra, deixaram nós sem nada. Ai foi uma luta, com
tempo a gente foi se formando, fomos pegando umas idéias da Funai daqui
do Estado de São Paulo, e nós fomos reivindicar as terras lá do Krenak, lá
no norte de Minas mais os parentes que fico lá. E nós aqui, mesmo aqui no
Estado de São Paulo, nós ia para lá. A gente foi na briga em 81, a gente foi
pra lá, foi 25 índios Krenak para Brasília pra reivindicar a terra de
Krenak.141

Nem todos voltaram com o intuito de permanecer na área, mas o sentimento de


pertencimento extrapola a localização espacial, fazendo com que a luta seja deles, enquanto
índios Krenak, o que nos faz refletir conforme Oliveira que:

138
Idem.
139
Augusto Paulino era irmão do atual cacique João Alfredo. Era conhecido por ser caráter combativo, foi
morto.
140
COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO - índios direitos históricos, Cadernos da Comissão Pró-Índio n. III, CPI-SP, São
Paulo, 1982, p. 57.
141
Sr. Gerson Cecílio Damaceno, entrevista concedida dia 22/0 4/ 2007.
61

Reduzir o fenômeno étnico a sua dimensão territorial é um equívoco, pois


as lutas comuns e os rituais partilhados podem ser suficientes para dar
aquelas identidades uma grande importância normativa, afetiva e valorativa,
criando condições de possibilidade para que surja em torno daqueles
sujeitos históricos uma “comunidade imaginada”.142

Em 1984, foi reconhecido o direito indígena sobre aquelas terras, mas ainda assim, os
índios continuaram a ser despejados pelos fazendeiros. Na tentativa de retomar o controle das
terras, em 1988, chegam a Vanuíre, Dejanira Krenak e Lírio Guarani, pedindo que os índios
retornassem. Mário Tepó Damaceno, professor da aldeia, lembra que foram feitas várias
reuniões em sua casa, até que decidiram fazer a viagem. O grupo era formado por ele, seus
irmãos Gerson, Maria Helena, Cleusa, Zezão, conjuges e filhos. Mário fez o trajeto de
caminhão, com as bagagens, enquanto os demais seguiram de ônibus. Ele nos fala da
dificuldade da viagem, do frio que passou durante os cinco dias na estrada. Também nos falou
da satisfação em retornar para o Posto Indígena Krenak, mesmo sem a mulher, Maria
Aparecida Conechú Damaceno, índia Kaingang que resistiu, inicialmente, em sair do lugar
em que fora criada.
Foi um período muito difícil, segundo Maria Helena Damaceno. Na época, os
fazendeiros se encontravam na área indígena. A Krenak lembra com pesar das noites que
passava na casa de madeira sem nenhuma segurança, temendo a invasão de pistoleiros que
circulavam a área. Lá, Maria Helena uniu-se ao Krenak João Borum Batista de Oliveira. Em
1991 o casal retorna a Vanuíre, Lia viera visitar sua mãe e irmãos que permaneceram em
Vanuíre. O casal chegou numa data próxima ao Dia do Índio, a mãe de Lia sugeriu a João que
fizesse artesanatos para vender, pois os Kaingang já tinham perdido essa prática e não
ofereciam nada aos visitantes que vinham conhecer a aldeia naquela data. Os Kaingang
insistiram para que João Borum permanecesse na aldeia e ensinasse a arte aos demais e, a
partir de então, eles moram em Vanuíre.
Os desterros sofridos têm uma força que aproxima e distancia os Krenak de Vanuíre
dos demais. Algumas dispersões foram irreversíveis, alguns “parentes” se perderam, outros
constituíram laços que impossibilitam a vivência no Posto Indígena Krenak, como explica seu
Antônio Damaceno:

142
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo, 1968, p. 211.
62

E nós aqui, permanecemos aqui, porque eu me casei com uma índia


Kaingang, os meus filhos tem sangue Kaingang e Krenak. Então se eu for
me imbora pra lá, a minha esposa não vai querer ir porque ela é Kaingang e
assim por diante. O meu irmão que é o Gerson também é casado com uma
Kaingang, o meu irmão Mário também é casado com uma Kaingang, então
nós se misturemos. A triba, os Krenak casou tudo com Kaingang, então,
ficou meio difícil essa parte porque se eu sou Krenak eu vou para lá, a
minha esposa é Kaingang não vai querer me acompanhar, então fica difícil,
permanecer aqui, ficar junto com a minha família, essa é a história que eu
tenho para contar.143

A permanência em Vanuíre forjou um novo sistema social, a adaptação ao novo


contexto engendrado por questões como a adequação a um novo território, relações
interétnicas e a conversão ao pentecostalismo, as quais evidenciam mudanças de valores. O
“ser” Krenak passa por definições, já que, como afirma Manuela Carneiro da Cunha: a
“Identidade é constituída de forma situacional, ou seja, ela constitui uma resposta política a
uma conjuntura com outras identidades em jogo, com as quais formam um sistema”.144
Não obstante, para além das redefinições, a lembrança coletiva dessa mesma trajetória
de desterro, espoliação e violência os une àqueles que permanecem nas terras de origem. A
transferência para São Paulo não foi capaz de apagar a consciência de pertencerem a um
território, a um grupo étnico específico.

1.7 Produção bibliográfica: os índios Krenak observados

Hoje, há um consenso na literatura antropológica e historiográfica quanto ao vínculo


cultural e linguístico dos povos indígenas que, em diferentes períodos da história, foram
designados de Aimorés, Guerén e Botocudos. Os registros documentais disponíveis permitem
afirmar que os chamados Botocudos, no século XVIII, na área dos atuais Estados de Minas
Gerais e Espírito Santo, são descendentes dos grupos designados Aimorés, pelos cronistas no
século XVI, e que, desde então, vieram se deslocando a partir do atual sertão baiano, na
direção sul, tanto em razão de sua mobilidade própria como por serem repelidos por frentes de

143
Entrevista cedida pelo Sr. Antonio Cecílio Damaceno. 22/04/ 2007.
144
CUNHA, Manuela Carneiro da (org). Negros Estrangeiros: os escravos libertos e sua volta á África. São
Paulo: Editora: Brasiliense, 1985, p. 206.
63

expansão colonizadora. No século XVI, várias são as referências aos Aimorés; no século
XVII, o termo mais usado é Guerén e, a partir do século XVIII, cessam as referências aos
Aimorés e aos Guerén, e passa a ser adotado o etnônimo Botocudo na designação aos povos
indígenas, habitantes da região. No século XIX, os viajantes puderam observar mais
atentamente essa população e perceber que havia, entre o que genericamente eles designaram
de Botocudos, inúmeras divisões, cada subgrupo com uma denominação própria. Entre os que
mais detalhadamente descreveram a organização social dos Botocudos, no referido período,
destacam-se: Maximiliano Wied-Niuwied (1815)145, J.B. Spix e C.F.P. Martius (1817)146 e
Auguste de Saint-Hilaire (1817).147
Considerando a patente continuidade histórica entre os Krenak e os Botocudos,
trataremos de referenciar neste trabalho os registros historiográficos atinentes aos Krenak,
produzidos a partir do século XX, por memorialistas, antropólogos, etnólogos e linguistas,
considerando a sua pertinência para uma reconstituição documental do processo de
territorialização desse grupo étnico.

Os registros do século XX
Antes de discorrer a respeito das principais referências sobre o grupo em questão,
148
parece-nos pertinente, citar o trabalho intitulado “Sobre os Aimorés, Krens e Botocudos” .
As linguistas analisaram 28 vocabulários botocudos, coletados entre os séculos XIX e XX,
buscando comprovar um vínculo linguístico entre os Aimorés, os Krens e os Botocudos. Com
esse intuito, as autoras analisaram itens lexicais e características formais da língua. Um dos
exemplos dessa ligação é a utilização, tanto pelos chamados Aimorés, quanto pelos Guerén,
do termo Crenton, que significa “gente de cabelo feio”.
Também com base nos vocabulários coletados pelos viajantes, elas perceberam que
havia duas formas para designar o grupo, sendo usado Guerén ou Gren. Essa alternância é
encontrada na língua Botocuda, a palavra formiga pode ser dita prik ou pirik. Embora
reconheçam o quão limitado são os dados linguísticos até o século XIX, consideram que os

145
WIED-NEUWIED, Maxilimialiano de. Viagem ao Brasil nos anos de 1815 e 1817. 2º ed. São Paulo, 1958.
146
SPIX & MARTIUS. Viagem pelo Brasil 1817-1820. São Paulo, Tradução Lúcia Furquim Lahmeyer. 3º ed.
Edições Melhoramentos IHGB/ Instituto Nacional do Livro, vol.II, 1976.
147
SAINT-HILAIRE, Augusto de. Viagem pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Geraes. São Paulo,
Nacional, 1938.
148
EMMERICH, Charlotte & Ruth Monserrat. Op. cit.
64

encontrados são suficientes para confirmar o elo entre aqueles que habitaram as orlas da
Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo. Concluindo, os diversos subgrupos Botocudos, falavam
uma mesma língua, ainda que com pequenas variantes.
A primeira referência ao grupo Krenak data de 1905, feita pelo memorialista e
engenheiro Ceciliano Abel de Almeida.149 Encarregado da construção da Estrada de Ferro
Vitória Minas, o funcionário discorre sobre a importância da ferrovia, que traria a
“civilização” para aquele território ainda pouco conhecido pelo homem branco. Com a
construção, chegaram a essa região os funcionários da EFVM. Vários seriam os conflitos
envolvendo índios e os trabalhadores da estrada de ferro, justificando, alguns anos mais tarde,
a instalação de uma Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios, naquela região.
De 1911, temos o artigo de Hermann Von Ihering que apresenta os dados colhidos
pelo viajante Walter Garbe, em sua visita aos Botocudos do Rio Doce, no ano de 1909. Não
se trata de uma análise interpretativa, ele apenas descreve aspectos físicos, alguns costumes, a
cultura material. Mas é bastante interessante, na medida em que ele nos apresenta grupos de
localidades distintas, mas caracterizados todos como Botocudos, sendo possível, na leitura,
identificar aspectos comuns a todos os subgrupos, ao mesmo tempo em que vemos costumes
usados por uns, já sendo abandonados por outros, como é o caso do uso do botoque.
Os três grupos distintos de Botocudos, observados por ele foram esses:

Os Minhagiruns do Rio Panca, affluente do Rio Doce, na visinhança de


Collatina;
Os “Botocudos de Natividade de Manhaçú”, junto da barra do Rio
Manhaçú, na fronteira dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo;
Os “Botocudos de Lapa” no Estado de Minas, que moram a uma distancia
de 60-70 kls. Do Manhaçu, rio acima. Segundo o sr. W. Garbe, o nome dos
indígenas do Manhaçu e de Lapa seria o Gutu-Krak. São provavelmente os
mesmos que Ehrenreich denomina Takruk-Krak.150

O viajante classifica tanto os índios de Manhaçu quanto os da Lapa de Gutu-Krak, mas


mostra que eles viviam em localidades distantes, tendo cada um o seu chefe; os de Manhaçu,
chefiados pelo índio Tijuque e os da Lapa, pelo capitão Crenac. Sobre essa divisão dos Gutu-
Krak apontada por Garbe, encontramos maiores informações:

149
ALMEIDA, Ceciliano Abel de Almeida. Op.cit.
150
IHERING, Hermam Von. Os Botocudos do Rio Doce. Revista Do Museu Paulista. São Paulo, n 8, 1911, p.
39.
65

Desde muito que a tribu Gutecrac cindiu-se em dois grupos rivais e


inimigos: o dos Gutecracs propriamente ditos, chefiados por Tetchuc e dos
Crenacs. Dessa cisão resultaram lutas que terminaram pela completa derrota
e fuga de Tetchuc. Seu povo, ficou ao que diz, dividido em dois grupos: um
que o acompanha e ao outro que fugiu em direção oposta, ficando os
Crenacs encravados entre os dois151.

Essa informação é valiosa para o estudo sobre os Krenak, por referenciar o surgimento
do grupo Krenak após a cisão, por evidenciar a associação do nome do chefe ao grupo, uma
característica comum aos subgrupos Botocudos, assim como, por explicar a relação
conflituosa entre os Krenak (Gut-Krak do Rio Doce) e os índios do P.I de Pancas, para onde
foram levados os seguidores de Tijuque.
Garber observou que o uso do botoque ainda era bastante difundido entre os
Botocudos da Lapa, ou seja, entre os Krenak. Os homens os usavam nas orelhas, enquanto
que as mulheres os usavam mais nos “beiços”. Já na tribo de Manhaçu, apenas as mulheres os
usavam, não mais os homens. Eram discos bastante leves e brancos, apenas o tiravam quando
imaginavam não estarem sendo observados. Garber conseguiu que as mulheres removessem
os auriculares, mas elas resistiram à retirada dos botoques labiais, e quando uma o fez, foi
escarnecida pelas demais.
De acordo com as informações de Garber, todos os Botocudos encontrados por ele
eram nômades, vivendo nas margens do Rio Doce apenas quando as águas estavam baixas.
Tinham casas bastante simples, feitas com folhas de palmeira, a alimentação consistindo,
basicamente, da caça e da pesca, além de frutas, larvas e mel. No que diz respeito a armas, o
texto nos mostra que não produziam outras além de arcos e flechas, embora já tivessem
recebido dos não índios, machados, facas, facões e anzóis. Na verdade, o contato de tribos
Botocudas com as armas dos brancos é bastante antigo, Marlière já adotava a prática de
oferecer aos chefes facas e espingardas, pois, alimentando a superioridade dos chefes, dava ao
bando a sensação de um controle interno, da manutenção de sua já conhecida organização.152
A flauta foi o único instrumento musical que o pesquisador observou entre os índios,
os quais tinham, também, o hábito de dançar e cantar, práticas que o viajante considerou

151
ESTIGARRIBIA, Antonio. Op.cit.
152
OILIAM, José. Indígenas De Minas Gerais. Belo Horizonte, 1965, p. 117.
66

monótonas. A mesma opinião sobre o canto teve Manizer (1914/1915)153 que, ao contrário de
Garber, não encontrou entre os índios do Rio Doce nenhum instrumento. A voz e os
movimentos dos pés os substituíam, tornando as músicas, também, na sua opinião,
monótonas.
Em 1934154, temos a publicação de informações interessantes do Inspetor do Serviço
de Proteção aos Índios, Antonio Estigarribia. Nela há o trecho de um relatório entregue à
Diretoria, referente ao ano de 1912, além de novas considerações escritas em 1921, destinadas
ao professor colaborador do I.H.G.E.S. Estigarribia é um funcionário do S.P.I e fala como tal,
mostrando-se focado na ação “civilizadora”. Para ele, estavam em diferentes estágios o índio
aldeado e aquele que permanecia nas matas. A prática da agricultura aparece no texto como
um sinal de evolução, um passo dado para que esses índios fossem incorporados ao restante
da sociedade nacional. Ele não acreditava que os costumes indígenas permanecessem por
muito tempo, enquanto as características físicas e morais demorariam mais para desaparecer.
Estigarribia teve um permanente contato com os índios do P.I de Pancas e do Rio
Eme, chamando estes de Crenacs e aqueles de Gutecrac. No relatório de 1912, apresenta
costumes, crenças, aspectos da cultura material, além de um vocabulário colhido entre os
Krenak, sendo possível percebermos a proximidade entre os dois grupos, seja na língua que
era compreendida por todos, seja no seu universo simbólico, considerado pelo Inspetor um
conjunto de superstições e lendas.
Em 1912, encontravam-se já no Posto do Eme, em Resplendor, 73 índios Krenak e,
segundo os próprios índios, havia muitos outros na mata, que viriam na próxima descida. A
dificuldade para atraí-los foi grande, dada à negativa dos índios ao contato, atacando diante
das tentativas de aproximação. Essa dificuldade na relação com os índios Krenak se manteve,
mesmo com a fixação de parte deles no aldeamento. Diferente de outros grupos com que
Estigarribia teve contato, os Krenak revoltavam-se com facilidade, reclamando de qualquer
pedido negado.
A vestimenta, em 1912, era apenas uma tanga usada pelos homens, já que as mulheres
andavam nuas. Essas, segundo o autor, andavam com os pés para dentro, na tentativa de
esconder os órgãos genitais; diferentemente de outras Botocudas, preocupavam-se com a

153
MANIZER apud OILIAM, José. Op. cit. p. 73.
154
ESTIGARRIBIA, Antonio. Op.cit.
67

nudez. Quanto à prática sexual, eles não tinham pudor algum, o ato sexual ocorria em espaços
comuns, sem que chamasse a atenção dos demais.155
A poligamia era um privilégio dos chefes. O chefe Krenak tinha cinco mulheres, uma
delas era uma menina, da qual ele completaria a criação. Muin, filho do índio Krenak,
também um chefe importante do grupo, tinha três esposas. Não havia nenhuma grande
cerimônia de casamento, apenas um pedido aos pais, o que também não era uma regra. Às
mulheres cabiam as tarefas mais pesadas, sendo comuns ocorrências de maus tratos, com
homens agredindo suas esposas. Entretanto, Estigarribia pôde notar que as mulheres,
geralmente com mais idade, exerciam liderança, sendo ouvidas pelos chefes que acatavam
suas opiniões.
Ainda sobre Muin, Estigarribia o define como sendo o chefe geral da tribo, a quem
todos, inclusive seu pai, ouvia. A tentativa de transferi-los para o Posto de Pancas foi
frustrada, os próprios funcionários temiam possíveis conflitos entre os grupos, mas insistiam
na sua transferência. Sabemos que, fixados em Pancas, estavam os Gut-Krak que, após a
cisão, tinham se transformado em inimigos dos Krenak e, possivelmente por essa causa, a
negativa do chefe Muin, recusando-se a morar junto a um grupo inimigo. Assim, o SPI teve
que dispor de verba para a criação de um P.I nas matas de Resplendor, e estabelecer acordos
com a empresa que havia adquirido, do Governo de Minas Gerais, a concessão daquela área
para criação de núcleos e usinas de açúcar.
Se, em 1912, Estigarribia definiu os índios Krenak como os mais atrasados do grupo
Gutcrak, em 1921 ele afirmava que os índios, de forma geral, já se encontravam mais
“civilizados”, ou seja, já haviam adotado práticas e costumes dos não índios. Os índios
naquela data, mesmo as mulheres, agora usavam roupas, encontravam-se assentados e haviam
adotado a prática do cultivo de alimentos. Como funcionário do Serviço, Estigarribia
evidenciava o caráter salvacionista do SPI, que deu àqueles homens que, até 1911, viviam nas
matas com fome e em constantes conflitos com os civilizados, a possibilidade de viverem em
paz. Afinal, conseguira mantê-los aldeados, protegidos dos não índios, e a quem tinham
ensinado a agricultura e tantos outros “bons costumes”, como uso de vestimentas.

155
Na viagem que fizemos a Minas Gerais (2008), os índios Krenak falaram sobre o comportamento dos índios
Maxakali que viveram naquela aldeia. O despudor dos Maxakali, que segundo eles, praticam relações sexuais
na frente de todos, seja na aldeia ou na cidade, os deixavam bastante espantados.
68

Entre 1914 e 1926, importantes etnografias sobre os Krenak foram escritas, das quais
destacamos duas. A de Sylvio Froes Abreu e a Henri Henrikhovitch Manizer (1914/1915) que
passou seis meses entre os índios de Pancas e os Krenak do Rio Doce e escreveu o mais
detalhado estudo sobre a organização social dos Krenak. O texto não foi traduzido para o
português e se encontra no Museu Nacional do Rio de Janeiro, de onde não pode ser retirado.
Embora não tenhamos lido no original, acompanhamos partes do texto do etnógrafo em vários
trabalhos, partes foram traduzidas e incorporadas ao trabalho “Borum, Bugre, Kraí:
Constituição social da identidade e memória étnica Krenak”, escrito por Missagia.156 Manizer,
coletou dados quanto ao universo mítico, analisou o sistema de parentesco, a relação entre a
disposição das casas e as relações de poder, entre outros aspectos.
Em 1926, durante sua pesquisa in loco, Abreu157 visitou os Krenak aldeados no P.I
Guido Marlière, de quem descreveu costumes, cultura material, expressões artísticas. Na
leitura do texto de Abreu, chama-nos atenção a facilidade com que parece obter os dados da
pesquisa, mostrando os índios já bastante adaptados ao convívio com os não índios. Segundo
o autor, para os Krenak a humanidade era dividida em dois grupos: os boruns e os carahys.
Esses, os homens brancos, os civilizados, não índios; aqueles, todos os indígenas e os
“civilizados” com características físicas próximas às suas, como é o caso dos asiáticos.
O grupo dos caray também sofria uma divisão, sendo formado pelos caray-lehée e os
caray-ton, os bons e os maus, respectivamente. Dos caray-lehée conheciam apenas os
viajantes e os funcionários do SPI, todos os outros eram tratados com desconfiança. Desta
forma, Abreu ressalta que os índios viam de forma positiva a convivência com os
funcionários do SPI, sentindo-se protegidos pelo chefe do posto, recorrendo a ele com
frequência. Entretanto, o texto também fala na desconfiança do líder Juquinót que, assim
como o chefe do posto, registrava, à sua maneira, os dias de trabalho dos índios, na tentativa
de não ser enganado pelos funcionários.
O texto nos mostra que os Krenak se fixavam à margem esquerda do Rio Doce,
ficando a administração do Posto Guido Marliére e a Estrada de Ferro Vitória-Minas na outra
margem. Quando os índios queriam adquirir produtos dos não índios, iam eles até a margem

156
MISSAGIA DE MATTOS. Borum..., Op. cit.
157
ABREU, Sylvio Fróes. Os Ìndios Crenaques: Botocudos do Rio Doce em 1926. Revista do Museu Paulista,
XVI, São Paulo, 1929.
69

direita. O Rio Doce, nesse caso, constituía uma barreira entre eles os “civilizados”, embora
outros não índios já explorassem os recursos do posto com permissão do S.P.I:

Na época da nossa visita ao posto Guido Marlière, um explorador de madeiras


tinha contractado a colheita de peroba das mattas do patrimônio indígena, e
para o serviço ali mantinha um certo numero de bois.158

Além de não índios que entravam no posto, os Krenak mantinham contato com eles
quando iam à cidade de Resplendor para fazer compras, ou quando levavam seus arcos e
flechas para serem comprados pelos passageiros da estrada de ferro. O comércio já era a única
razão pela qual se fabricavam tais peças, pois, vivendo de agricultura, agora já não as
utilizavam cotidianamente e, mesmo para a caça, já preferiam o uso das armas de fogo.
Dezessete anos depois da visita de Garber, Abreu encontra o botoque quase em
desuso, apenas duas mulheres e um homem os usavam. Ele atribui a isso tanto aos
ensinamentos dos funcionários do SPI, como à vontade do índio em adotar costumes dos
brancos. Nas suas palavras: “alliam o uso de botoque ao da gravata e do colete.”159.
Em 1926, havia apenas 22 índios Krenak no Posto Guido Marlière, sendo chefiados
pelo líder Juquinót, sucessor de Muin. A poligamia não era mais privilégio do chefe, além
dele outros homens possuíam duas ou até três esposas. As mulheres viúvas podiam ter novas
relações e seus filhos do antigo relacionamento eram criados pelo novo companheiro. A
adoção dos órfãos parecia uma prática comum, o índio Krembá, por exemplo, além do seu
filho cuidava de mais cinco menores órfãos.
A imposição dos agentes do SPI, o contato com a sociedade envolvente, causara
mudanças na organização social, nos costumes desse grupo indígena. Com isso, Abreu
escreve, motivado pela certeza de que está diante dos últimos Krenak, “os últimos que
nasceram e attingiram a edade adulta em plena vida errante pela selva”. Os mais jovens, já
educados sob o regime do órgão indigenista, terão dos antigos o sangue e alguns costumes
que também desaparecerão com o tempo. Na sua visão, a incorporação de novos valores e
práticas colocaria essa população a caminho da extinção, já que não seriam mais “os
selvagens”.

158
Ibidem, p. 572.
159
Ibidem, p. 573.
70

Em 1939, esteve no Posto Guido Marlière, Curt Nimuendajú.160 Segundo ele, ali
estavam reunidos os últimos Botocudos, aqueles que, resistindo aos conflitos constantes,
acabaram pacificados pelos SPI. Ao todo, 68 indígenas, sendo que destes, 50 eram índios
Nakrehé, transferidos do Manhuaçu. Ele cita como informantes Raulino, da tribo Minyã-
Yirúgn, antes localizada no Rio Pancas e Hamálat, da tribo Nakpie, que antes vivia nas
margens do Rio Doce, acima da fronteira de Minas. O etnógrafo nos apresenta informações
preciosas quanto ao universo religioso desses índios, sendo possível perceber quão pequenas
eram as variações entre os diversos subgrupos Botocudos que neste momento habitavam o P.I
Guido Marlière.
Acreditavam na existência de espíritos que povoam o céu, chamados de Tokón,
invisíveis aos homens comuns. Apenas os escolhidos pelos espíritos Marét podiam manter
contato com eles. Sobre os espíritos Marét, os informantes de Nimuendaju divergiam quanto à
sua forma e tamanho, mas estavam de acordo quanto à morada e a bondade destes para com
os homens escolhidos por eles, oferecendo o que lhes solicitam.
Yikégn é traduzida pela palavra “forte”, no sentido de sobrenatural. Ser Yikégn foi
uma característica comum a todos os chefes Botocudos, mas nem todos os Yikégn tornaram-
se chefes. A essas pessoas são dados poderes como o contato com os Marét e a capacidade de
transformar a si e aos outros. Raulino e Hamálat contam de homens que se transformaram em
águias, que transformaram os outros em macacos.
A alma que cada pessoa possuía recebiam o nome de Nakandyún e, embora uma única
pessoa pudesse ter cinco ou seis almas, apenas uma delas habitava o corpo. Essa Nakandyún
podia abandonar o corpo por algum tempo, mas sua perda definitiva causava doenças. Os
Botocudos temem ao que chamam de Nandyón, que são fantasmas formados dos ossos dos
mortos. Os Marét cuidavam para que não voltassem à Terra, mas esses encontros ocorriam,
sendo necessário que o vivo tentasse matá-lo para que não morresse em razão do encontro.
Esse mesmo medo é descrito por Estigarribia, pelo espírito que ele denomina de Natchon.
Para afastá-los os índios davam tiros e também pintavam paus ao redor das suas casas.

160
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mitos indígenas inéditos na obra de Curt Nimuendaju.
Rio de Janeiro, SPHAN: Fundação Pró-Memória, n.21, 1986.
71

Uma outra forma tomada pela alma dos mortos era a de uma onça magra, que aparecia
aos homens desafiando-os, podendo até comê-los. Garber (1909) afirma que os corpos dos
mortos eram queimados, pois acreditavam que se não fossem enterrados ou queimados
poderiam transformar-se em animais, particularmente em onças. Estigarribia (1912) escreveu
que o medo da “onça das almas” impedia Crenacs e Gutcracs de saírem durante a noite.
Além das etnografias aqui citadas, trabalhos mais atualizados nos foram úteis para a
compreensão do povo estudado. De 1979, temos o artigo “A repressão contra os Botocudos
em Minas Gerais”, escrito pela antropóloga Sônia Marcatto.161 O artigo traça o processo
histórico vivido pelos índios Botocudos, entre 1808 e 1978. Em 1978, segundo ela, os
Botocudos eram representados pelos índios Krenak, tendo todos os outros grupos sido dados
como extintos. Além de uma compilação bibliográfica sobre os Krenak, Marcatto nos oferece
informações mais atualizadas sobre o grupo. A autora os define como índios integrados, que
quase nada conservavam dos costumes originais. Contraditoriamente, a mesma autora escreve
sobre a resistência da tradição oral e do dialeto, traços diacríticos, fortes o bastante para
diferenciá-los dentre outros grupos indígenas e a sociedade regional.
Na década de 1990, trabalhos de conclusão de curso e dissertações terão os Krenak
como objeto de pesquisa. Em 1990, temos o trabalho de conclusão de curso de Núbia
Guimarães: “Quem são os filhos e Netos do capitão Krenak?,” 162orientado pela historiadora
Maria Hilda Baqueiro Paraíso. Guimarães faz um estudo sobre a manipulação étnica, as
identidades assumidas no P.I Krenak. Com base em entrevistas realizadas com os moradores,
mais as informações contidas nos estudos etnográficos realizados na área, a pesquisadora faz
um levantamento genealógico, chegando a uma hipótese quanto aos descendentes diretos do
capitão Krenak. As informações apresentadas nesta pesquisa foram bastante exploradas no 2º
capítulo, de maneira que não faremos neste momento uma apresentação prolongada.
De 1992, a dissertação de mestrado da linguista Benedita Araújo163 consiste em um
estudo filológico a partir de dados colhidos no Wortebuch der Botokudensprache, um
vocabulário extenso da língua falada por um subgrupo Botocudo, os Naknanuk. Para isso, a

161
MARCATTO, Sônia. Op.cit.
162
GUIMARAES, Núbia Maria C. Quem são os filhos e netos do Capitão Krenak?: Um estudo sobre
manipulação étnica e a árdua trajetória dos Botocudos do Rio Doce. Trabalho de Conclusão de Curso.
Universidade Federal da Bahia. 1990.
163
ARAÚJO, Benedita Aparecida Chavedar. Op.cit.
72

pesquisadora utiliza outros vocabulários Naknanuk e a língua Botocuda, atualmente falada,


Krenak/Nakrehé.
Buscando contribuir para o conhecimento da família linguística Botocudo, ainda tão
pouco conhecida, a pesquisadora realizou o trabalho de campo entre os anos de 1981 e 1984,
tanto no P.I Krenak, quanto em Vanuíre. A primeira visita que fez aos Krenak de Minas
ocorreu em 1981, quando a língua materna já ocupava uma condição minoritária, sendo
substituída pelo Português, falado mesmo dentro da aldeia. Entretanto, aproximadamente 10
pessoas, na maioria mulheres, todas da mesma faixa etária, entre 40 e 50 anos, faziam uso da
língua, ainda que em apenas algumas situações.
Em Vanuíre, nesse mesmo ano, a pesquisadora gravou entrevista com três falantes:
dois eram os índios José Anato e Jovelina Cecílio Damaceno, além de uma mulher branca,
Maria Teresa Adilsa.164 Ao retornar à área em janeiro de 1982, a pesquisadora concluiu que
apenas dois índios e uma índia, todos com mais de 50 anos, tinham o domínio passivo da
língua. Mesmo palavras do cotidiano, como nome de partes do corpo ou elementos da
natureza, já eram lembradas por eles com dificuldade. Mas a autora faz a seguinte observação:

Foi possível observar que no P.I Vanuíre os índios não querem esquecer a
língua materna, mas pouco a usam, pois alegam que não podem fazê-lo
porque vivem em terra Kaingang. Ao lado deste impasse, está a tristeza e a
saudade, pois falar sobre a língua e falar na língua materna fez com que se
lembrassem de fatos ocorridos no passado165

Ela pode observar que, embora nas duas aldeias o uso da língua não fosse mais
utilizado para a comunicação, ela era uma marca étnica valorizada. Uma marca que, na sua
opinião, em Vanuíre, seria ainda mais difícil de manter. Afirmou também que “língua em
processo de extinção” poderia ser “recuperada” com a ajuda de lingüistas e antropólogos.
É interessante lembrar que, em 1981, parte dos Krenak havia retornado às suas terras
de origem, depois de um longo período fora da área. Nesse ano, quando a linguista esteve no
posto, ainda dividiam seu território com fazendeiros que se recusavam a sair do local,
alegando, entre outras coisas, não haver mais índios entre eles. Nesse contexto, a língua

164
Ibidem, p. 19. Maria Teresa é uma não-índia, que cresceu no Rio Doce. Era casada com Jacó Costa, na época
já falecido. Segundo hipóteses levantadas Jacó era filho de Muin, neto do capitão Krenak. Edmar Adílson um
dos filhos de Jacó é morador de Vanuíre.
165
ARAÚJO, Benedita Aparecida. Op.cit., p. 30.
73

tornou-se um fator de identidade. E os índios, mesmo com as limitações que a realidade


histórica lhes impunha, mostravam-se interessados na manutenção da língua materna.
Em 1996, temos a dissertação também de mestrado de Luana Lazzeri Arantes.166 Ela
faz um estudo sobre a sociabilidade Borum, que foi marcada ao longo da história por relações
hostis, seja “na forma de guerra, do faccionalismo, dos conflitos e cisões.” Além de discutir a
belicosidade Borum, tão recorrente na historiografia, ela analisa as relações internas
estabelecidas entre os Borum do P.I Krenak, chegando à conclusão de que as relações hostis
ainda constituíam o principal modo de sociabilidade Borum, com a relação social criada na
desavença. Em seu trabalho, opta por utilizar a categoria Borum para designar os índios que
hoje vivem à beira do Rio Doce, já que a categoria Krenak, designa apenas um dos subgrupos.
Nesse mesmo ano de 1996, temos a defesa de mais uma dissertação de mestrado,
realizada no P.I Krenak. “Borum, Bugre,Kraí: uma constituição social da identidade e
memória étnica Krenak” foi uma leitura fundamental para a escrita de nossa própria pesquisa.
O trabalho pensa a identificação étnica em confronto com a sociedade nacional. De
conhecimento do “ser” Krenak nas terras de origem, pudemos compreender melhor a
reelaboração da identidade Krenak, em Vanuíre. Assim como o trabalho “Quem são os filhos
e Netos do capitão Krenak?”, “Borum, Bugre, Kraí” foi bastante utilizado por nós durante a
escrita do texto.
“A Serra da Onça e os índios do Rio Doce” é um artigo escrito a duas mãos pela
antropóloga Izabel Missagia Mattos e a arqueóloga Alenice Motta Baeta.167 O texto nos
mostra a relação simbólica que os Krenak têm com os sítios arqueológicos do médio Rio
Doce, especialmente dois deles, a Serra da Onça e a do Boiadeiro. Esses sítios estão
localizados na margem direita do Rio Doce, lado oposto ao aldeamento. Embora, legalmente,
eles não façam parte de nenhuma propriedade privada, encontram-se dentro delas, exigindo
dos indígenas que adentrem locais com porteiras e cadeado, e precisem de autorização dos
proprietários rurais.
Os Krenak atribuem a estes sítios um caráter “encantado”, onde habitam seres
sobrenaturais componentes na cosmologia Krenak. A Serra da Onça, Takrukkrak na língua
Borum (pedra grande), é uma referência na cosmologia, na história do contato com os não

166
ARANTES, Luana Lazzeri. Diferenças Indissolúveis: um estudo sobre a sociabilidade Borum. Dissertação
de Mestrado. Universidade de Brasília. 2006.
167
BAETA, Alenice; MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Op. cit.
74

índios, possuindo, assim, um importante valor na construção da identidade étnica. Várias são
as histórias contadas pelos índios sobre a Serra da Onça, passeios feitos com os pais durante a
infância, do refúgio buscado pelos índios naquelas pedras.
Na Serra da Onça, em 1998, foi criado o Parque Estadual dos Sete Salões, ficando o
Instituto Estadual de Florestas responsável por sua implantação e administração. O projeto foi
interrompido, uma vez que os Krenak reivindicaram esse espaço. No momento da escrita do
referido artigo, havia um processo na Justiça Federal, faltando aos índios trabalhos que
comprovem a ligação do grupo com esse território. O próprio artigo apresenta dados que
buscam comprovar essa ocupação imemorial. No texto de Ihering, são citados os Botocudos
da Lapa, também chamados de Gut-Krak. Esse grupo estava dividido entre os de Manhuaçu
chefiados pelo Tijuque e os da Lapa por Crenac. Segundo o artigo, o único local do Médio
Rio Doce, onde, acima do Manhuaçu se encontram afloramentos rochosos com cavernas e
lapas, é a Serra da Onça, que na língua Borum, significa Takrukkrak ou Grukrak.
Conclui-se que, “o território cultural Krenak expande em muito os limites jurídicos da
atual área demarcada, abrangendo localidades que há décadas não são mais freqüentados pela
168
comunidade Krenak (...)”.
Sobretudo, nas etnografias do início do século XX os índios Krenak parecem estar
fadados ao desaparecimento, pois, uma vez incorporados à sociedade envolvente,
desapareceriam enquanto grupo indígena. São usadas palavras como desaparecimento,
assimilação, extinção. O contato, realmente, se intensificou, o botoque foi abandonado, mas
eles ainda são os Krenak, assim se veem e assim querem ser vistos pelos demais.

168
Ibidem, p. 53.
75

Capítulo 2

A manifestação e reconstrução da identidade Krenak em Vanuíre

Me dá sua mão?
Sua mão é branca. Nóis é preto, porque nóis é
índio.

Assim me disse a pequena Ana de 5 anos, enquanto


caminhávamos pela aldeia.
76

Vanuíre: os índios Krenak em território paulista

A expansão da produção cafeeira, o desenvolvimento da pecuária e das novas linhas


férreas intensificaram, no início do século XX, os conflitos entre índios e não índios. Naquele
momento, tanto os Krenak, em Minas Gerais, como os índios Kaingang, em São Paulo,
assistiam à entrada crescente de brancos em seus territórios, assim como viram a construção
das Estradas de Ferro Vitória-Minas e Noroeste do Brasil devassando os últimos refúgios
dessas populações, que travavam intensas batalhas pela proteção de suas terras.
Para liberar os espaços antes ocupados pelos indígenas, o SPI mantinha o controle
sobre essas populações, com a criação dos postos, para concentrá-los em pequenas áreas. Os
Kaingang, de São Paulo e os Krenak, de Minas Gerais seriam uns dos primeiros grupos a
vivenciar as práticas do recém-fundado Serviço de Proteção ao Índio. Em 1911, já havia, no
Oeste Paulista, uma equipe responsável para “atrair e pacificar” os índios Kaingang e, com
esse intuito, fundaram o acampamento do Ribeirão dos Patos, mais tarde chamado de “Vila
169
Kaingang”. A atração não foi imediata, as relações até então estabelecidas com os “fok”
foram marcadas pela violência, o que mantinha os Kaingang bastante desconfiados quanto às
intenções dos funcionários do SPI. Segundo estes, a presença da índia Vanuíre170 foi
determinante para que os índios aceitassem a aproximação, sendo ela a grande mediadora
entre os indígenas e os funcionários do SPI.171
A tendência ao faccionalismo observada entre os subgrupos Botocudos, também é
notada entre os Kaingang. Grupos diferentes, cada qual liderado por um cacique,
aproximaram-se do acampamento do Ribeirão dos Patos, assumindo posturas divergentes
quanto ao convívio com os não índios. Enquanto alguns grupos viviam na “Vila Kaingang”,
outros permaneciam fixados a uma certa distância do acampamento, ainda que o visitando
frequentemente. 172

169
Nome dado pelos índios Kaingang para o “branco”.
170
Assim a índia Vanuíre foi descrita: “Dentre êles, chamou-lhes atenção uma índia Vanuíre, que a esse tempo
já era mulher madura e mal falava o português. Tinha entre os seus a curiosa função de rapsoda, cabendo-lhes
relatar, periodicamente, em contos e cantos, as estórias, lendas e tradições da tribo. Dotada de grande
sensibilidade e sinceridade, desgostosa com as guerras inúteis que seus irmãos travavam com os brancos, dispôs-
se a colaborar com o esforço de pacificação.” Revista do Arquivo Municipal. VCL XXXI 1970, p.173.
171
PINHEIRO, Niminon. Vanuíre: Conquista, Colonização e Indigenismo: Oeste Paulista, 1912-1967. Tese de
Doutorado. Assis, Unesp, 1999.
172
Idem.
77

A área do Ribeirão dos Patos, até então habitada por facções Kaingang, era uma terra
fértil, muito propícia ao plantio do café. Em 1916, um acordo entre fazendeiros locais e o SPI,
culminou com a transferência dos Kaingang para o P.I Icatu. A ação não era de desejo dos
índios e nem mesmo do encarregado do Posto, Bandeira de Mello, figura fundamental no
processo de atração e acomodação dos índios na “Vila Kaingang”. Poucos foram efetivamente
transferidos, tendo alguns sucumbido antes, devido às epidemias. Outros optaram por retornar
às matas. Essa pequena população levada ao P.I de Icatu sofreu uma divisão, visto que grupos
diferentes foram forçados ao convívio comum. No mesmo ano, foi criado o Posto Indígena de
Vanuíre, separando, dessa maneira, os grupos rivais.173
A atuação do SPI, no Espírito Santo e na região do Rio Doce, em Minas Gerais, não se
diferencia quanto às práticas e aos objetivos vistos acima. Para que colonos e funcionários da
estrada de ferro pudessem continuar suas atividades, três postos seriam construídos nos dois
Estados. Se, em São Paulo, a índia Vanuíre foi de extrema importância para o projeto de
atração, em Minas, o diálogo entre os funcionários e os índios que seguiram o “capitão”
Krenak foi estabelecido através do seu filho, Muin. Foi ele quem determinou onde o Posto de
Atração deveria ser construído e, mais tarde, fez pressão para que o grupo não fosse
transferido para o Posto de Pancas, como já havia estabelecido o SPI.
Segundo Estigarribia, nessa ocasião, o grupo liderado por Krenak já havia sofrido uma
nova cisão. Seu cunhado Orimã culpava-o pela morte da irmã, esposa do “capitão” Krenak,
formando, a partir daí, seu próprio bando. Quanto à aproximação com os não índios, os
grupos também mantinham posições contrárias. Muin como já dissemos, mantinha uma
relação muito próxima, seguido por parte do grupo. Seu pai, embora convivesse com os
funcionários, mantinha-se mais distante, na Aldeia Bonita, enquanto Orimã o cunhado de
Krenak, negava-se a qualquer aproximação.174
A Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios em Minas Gerais foi criada em 1910.
Em 1913, foi instalado o Posto de Atração do Rio Eme, exatamente no local onde o grupo do
“capitão” Krenak havia se refugiado. Epidemias como a varíola, em postos da mesma
Inspetoria, transferiram vários índios para o Posto do Eme. Mesmo grupos rivais, como o do
dissidente Orimã, dividiram o espaço com os seguidores de Krenak e Muin.

173
Ibidem.
174
ESTIGARRIBIA apud PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Krenak do Rio...; Op. cit., p. 14.
78

Como vemos, as práticas do Serviço correspondiam às necessidades da sociedade


envolvente, no que dizia respeito aos seus projetos de desenvolvimento. Com esse intuito, os
índios foram cercados em pequenas glebas, não respeitando as divisões grupais anteriores ao
contato e as que se deram a partir e em razão dele.
Os dois grupos que tiveram contato com a sociedade foram vítimas da violência, da
desapropriação de suas terras, da exploração da mão-de-obra. Mas os Krenak, em
consequência do contato, vivenciaram inúmeras situações de dispersão que os levaram para
Vanuíre, em São Paulo, para a Fazenda Guarani e Maxakalis, em Minas Gerais; para a Ilha do
Bananal em Goiás, em Cachoeirinha, no Mato Grosso e também para terras dos índios Fulniô,
no Pernambuco.175 Sabemos que ainda permanecem famílias Krenak em algumas das
localidades citadas; outros, entretanto, retornaram para as terras originárias.
Vanuíre, migração que por ora nos interessa, é a localidade onde está concentrado um
grande número de Krenak, os quais criaram laços capazes de mantê-los na aldeia, até os dias
de hoje. Como já dissemos, data de 1937, a chegada em São Paulo do primeiro índio Krenak
que vivera em Vanuíre – João Umbelina176, ele seguiu para o Posto Indígena de Icatu, onde
cumpriu pena até o ano de 1945. No entanto, na leitura da documentação, vemos que ele não
foi o único “Aimoré” a cumprir pena no Reformatório de Icatu:

Foi constituído para o estabelecimento dos caingangues do chefe Vaiun que,


tendo morrido, foi substituído pelo chefe Careg, como o de Vanuíre para o
chefe Charin, cuja hostilidade recíproca, latente e periódica, aconselha que
vivessem separados.
Além dos caingangues, estão recolhidos a esse Posto, alguns índios do
Paraná, Minas e de Espírito Santo, por motivo de crimes praticados em suas
terras.
Na falta de estabelecimento próprio foi o Posto de Icatú provisoriamente
considerado Posto Correcional, de acordo com o 1º do artigo 28 da lei
5.484, de 27-6-1928.
Os índios de Minas ai recolhidos eram meninos quando como inspetor
naquele Estado, entrei em contato com a tribus Aimorés, a que pertencem.
Visitava-os, então freqüentemente e morei mesmo entre eles, acompanhado
de minha Esposa e meu filho, que tinha os indiozinhos como seus
companheiros de brinquedos.177

175
COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. Op. cit.p.58
176
Tivemos acesso a um recenseamento feito em Vanuíre no ano de 1947, ele mostra que na ocasião João
Umbelina tinha 34 anos. Quando chegou em Icatu, em 1937, era então, um jovem de 24 anos de idade.
177
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 016. s/d.
79

O trecho acima é parte de uma carta assinada pelo então, Chefe da 2º Seção do SPI,
Antonio Martins Estigarribia, que fora Inspetor do Estado de Minas Gerais. A carta narra sua
visita aos Postos de Icatu, Vanuíre e Araribá. Ela não está datada, mas certamente foi escrita
entre 1940 e 1942, já que, além de encontrar o índio Pom-Pom com vida, ele fala de recursos
financeiros de 1940. Um outro documento nos ajudou a situá-la no tempo:

2º- 31-3-1942, atacado da mesma doença do progenitor, índio Pompom,


falecido de uma infecção pulmonar, faleceu o menino Júlio Rosa, filho
daquele índio e da índia Laporte.178

Estigarribia também escreve sobre a razão da reclusão em Icatu dos índios de Minas
Gerais e Espírito Santo:

O crime dos que vieram do rio Doce prende-se a um acontecimento ainda


do tempo da minha primeira inspetoria no Estado do Espírito Santo e Minas
Gerais.
Feita a atração dos crenaques, o Governo mineiro contratou com um Sr.
Coronel Pimentel, cavalheiro aliás bondoso com os índios, a abertura de
uma colônia na margem Norte do rio Doce. Um pequeno grupo desses
índios, sob a direção de um chefe a quem chamavam Lima, não quis
aproximar-se e fez um ou dois ataques a “ Colônia”.
Pedi, então, ao chefe de mais influencia- o índio Muin-que conseguisse do
Lima que não repetisse os ataques. De fato, eles não se repetiram, mas o
índio Lima e o seu grupo desapareceram.
Tempos depois vim a saber que salvo as mulheres e crianças, os demais
tinham sido mortos pelos mandatários de Muin. As crianças masculinas,
aparentadas do dito capitão Lima, que era Gutcrac, tornaram-se homens
julgaram-se na obrigação de vingá-lo. E mataram o índio que praticará
aquela morte. Foi a explicação que me deram agora.. Seu regresso ao Posto
do Eme, onde existem índios Crenaques, poderá ser lhe fatal, porque, como
se sabe, o índio tem boa memória e mais tarde ou mais cedo, vinga-se. 179

Esse trecho nos parece importante, uma vez que demonstra a irresponsabilidade com
que agiam funcionários do SPI, ao desconsiderarem os conflitos existentes entre os grupos. Os
Aimorés ou Botocudos como foram chamados, foram pintados na história de vermelho
sangue, descritos como ferozes assassinos. Será que Estigarribia acreditava, realmente, que
Muin deteria, de maneira pacífica, as investidas de Lima e seu bando?

178
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 07. 12/01/1943.
179
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: 016. s/d.
80

Na leitura das folhas de pagamento e recenseamento do Posto de Icatu, encontramos


os nomes de Jucuate e Tenuque, além da filiação e posto de origem. Os dois eram irmão,
filhos de Batum e Gipocani, vindos do Posto de Pancas. Em uma folha de pagamento
referente ao mês de Dezembro de 1941,180 o nome dos irmãos aparece junto ao de João
Umbelina. Certamente, além do índio Pom-Pom citado por Estigarribia, são também estes os
“Gutcrac” de que ele fez menção na carta. A citação abaixo confirma a origem dos irmãos
Jucuate e Tenuque:

(...) as mulheres idosas têm ascendência e dominam a tribo, através dos


chefes que só fazem o que elas querem. A mãe de Muin entre os Krenak;
Gipokrane181 entre os Gut-Krak e Benedita entre os mansos do Rio Doce. 182

Jucuate e Tenuque eram filhos de Gipokrane, uma Gut-Krak de Pancas. Como já


dissemos, os Gut-Krak, liderados por Tetchuk, foram viver no P.I de Pancas, no Espírito
Santo, enquanto a outra parte Gut- Krak, liderada pelo índio Krenak, refugiou-se nas matas
mineiras. Não sabemos se Lima foi sucessor de Tetchuk, ou se os Gut-Krak do Espírito Santo
já haviam sofrido uma nova dissidência. Mas o fato é que os Gut-Krak de Pancas eram
inimigos do grupo que habitava o Eme, desde a primeira dissidência envolvendo os irmãos
Tetchuk e Krenak. Quando Estigarribia pediu a Muin que fizesse Lima parar suas investidas
contra o Posto de Atração, reacendeu um conflito que já existia. Sob o bando de Lima,
encontramos:

Havia no grupo dos Krenaks, originalmente homogêneos, elementos de


outra etnia: era o viúvo Klinianik, solitário, cuja cabana era sempre feita
atrás da fila comum, a 20 passos na floresta e outros dois jovens. Estes
últimos eram filhos do Capitão Lima que vivia em algum lugar da floresta.
Eles foram tirados do pai pelos Krenaks em represálias, pois ele estava
zangado com os índios; a situação deles era servil; (...) eram vistos se
encarregar dos utensílios e dos filhos de Muin; o mais velho, entretanto,
183
casou-se e ficou um pouco emancipado.

Muin ordenou a ação que, mais tarde, foi vingada pelos Gut-Krak, de Pancas. Com a
extinção do Posto de Pancas, em 1940, os índios foram levados para o Posto Guido Marliére,
180
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme: 07. 10/1941
181
Grifo nosso.
182
PARAÍSO apud MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op.cit., p. 142.
183
MANIZER apud MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op. cit., p.161.
81

onde viviam os Krenak. Isso explica a transferência para Icatu desses índios, cuja presença no
Guido Marliére certamente geraria uma nova onda de violência. Ao que tudo indica, Jucuate,
Tenuque, e mesmo o índio Pom-Pom, não estavam internados pelo crime que praticaram,
pois, assim como disse Estigarribia, isso havia ocorrido já há muito tempo. O que os mantinha
em Icatu, era o fato de não poderem retornar para as terras de origem, uma vez, que o P.I onde
viviam tinha sido extinto e no Posto Guido Marliére existia o problema já relatado.
Diferente de Jucuate e Tenuque, a origem de João Umbelina é o Posto Guido Marliére,
antigo Posto do Eme, o que nos faz concluir que a permanência de João Umbelina em Icatu
nada tinha a ver com o motivo que levara os índios de Pancas para o mesmo P.I. De acordo
com a documentação, João Umbelina, que havia cometido um crime grave, mas diferente dos
outros, podia retornar para o Guido Marliére, o que realmente fez mais tarde.
Em 1951,184quando João Umbelina já tinha cumprido sua pena e se mudado com a
família para Vanuíre, os índios Jucuate e Tenuque ainda permaneciam em Icatu. Na ocasião,
Jucuate tinha 61 anos, Tenuque 59, e ambos permaneciam solteiros. Esses homens passaram a
vida longe dos seus, chegaram a uma idade avançada sem ter uma companheira. De repente, o
lugar em que viviam não existia mais e o lugar encontrado pelo SPI era bem distante do
ambiente em que haviam crescido.
Na ocasião da visita de Estigarribia, os índios sob “tratamento” no Posto Icatu,
recebiam pagamento pelos serviços prestados, assim como os demais. Mas a localização de
suas casas demonstra existir uma diferenciação entre eles: de um lado ficavam os Kaingang e,
do outro lado, os Kaingang casados com os Krenak e as demais etnias:

Foram feitas com os recursos dos dois adiantamentos de 1940, três casas do
material para os índios, estando em construção uma quarta. São de cinco
cômodos e duas varandas abertas, elevando-se o seu custo a cerca de
4:500$00 cada uma. Ficam do lado do norte e ali moram só caingangues.
Do lado oposto foram concertadas e postas como novas 4 casas de madeira
de lei, com cinco cômodos cada uma, e está em acabamento uma quinta nas
mesmas condições, orçada em 2:200$000. Ali moram os Aimorés casados
com Caingangues, e alguns outros índios.”185

184
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme: 07. 1951
185
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 016. s:d. Grifo nosso.
82

No Icatu, várias etnias estavam reunidas em uma mesma área, grupos de costumes,
crenças e origem bastante diferentes; não se tratava de uma prática isolada e despretensiosa, a
própria vinda dos Terenas para Icatu e Vanuíre corresponde a esse projeto do SPI:

A inspetoria mandou vir de Mato Grosso alguns índios Terenos, excellentes


vaqueiros e os alojou em Icatú e Vanuíre para servirem de mestres aos
caingangans, medida que será ampliada se a experiência der, como é de
esperar, bom resultado.
Os terenos são também bons artificies dos officios comuns, o que
certamente será de muito proveito para os seus irmãos caingangues, cujo
atrazo é ainda grande.186

Esperava-se que os índios “desordeiros” aprendessem, no convívio com os “ordeiros”.


A menos que os funcionários temessem maus exemplos dos “internados”, a separação
espacial vista anteriormente, não corresponde à lógica do SPI, para quem ao contrário, seria
ideal o convívio forçado. Tendo o SPI estabelecido ou não a separação, o que achamos pouco
provável, os índios dispuseram-se separadamente, de maneira que as índias casadas com
“Aimorés” estavam agora do outro lado.
A trajetória de João Umbelina, inicialmente em Icatu e mais tarde em Vanuíre
interessa-nos, não só por ter sido ele o primeiro Krenak de que temos notícia, em São Paulo,
mas também porque, ao acompanhar sua vida, acompanhamos o cotidiano de um índio
transferido, a rotina existente nos postos, as relações entre os índios e os funcionários, entre os
índios e sociedade regional e o convívio entre as etnias residentes nos postos.
João Umbelina chegou em 1937, cumprindo oito anos de reclusão no Posto de Icatu,
local em que conheceu a índia Kaingang, Cotú, nascendo dessa união: Antônio, Jandira,
Rosalina, Ilda e Jacira, que faleceu em Icatu meses depois do nascimento. Na seção de
ocorrências lemos:

Nascimentos: Ocorreu durante o ano quatro nascimentos:


18-02-1942, Jacira Revanherig, filha do índio Crenaque João Umbelina e da índia
Caingang Cotú.

Falecimento:
21-11-1942, atacada de desenteria, faleceu a pequena Jacira Revanhering, filha do
índio Crenaque João Umbelina e da índia Caingang Cotú. Após tratamento rigoroso

186
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 340. Relatório referente ao ano de
1929.
83

pelo Dr. Jorge Xavier de Almeida entrou em franco restabelecimento, infelizmente por
ignorância da própria mãe, foi lhes dado caldo de cana, que a fez recair não havendo
possibilidade de salvação.187

Os “Aimorés” viviam próximos uns dos outros, acompanhados das esposas Kaingang.
Sob reclusão, realizavam uma série de atividades ligadas à lavoura e à criação animal. João
Umbelina recebia pelos trabalhos constantes realizados no P.I de Icatu, aparecendo seu nome
em várias folhas de pagamento:188
Em 1945, com o término da reclusão, João passou a viver em Vanuíre, com toda a
família:
Chegaram ás 14 horas nêste Posto os seguintes índios: João Umbelino, da
tribu Crenaque, sua mulher, índia Caingang, de nome Cutú e duas filhas
menores, sendo uma de 5 anos e outra de 6 mezes, de nomes Jandira e
Rosalina, respectivamente, que vieram do posto de Icatú, afim de fazer roça
nêste P.I.189

Na leitura dos diários do Posto de Vanuíre, notamos a grande integração que havia
entre os moradores dos dois postos, sendo comum o deslocamento das famílias entre as duas
áreas, como lemos abaixo:

Chegou de Icatú, as 16 horas, o índio Nilo acompanhado de sua família,


composta de 4 pessoas, isto é, sua mulher, duas filhas pequenas e sua sogra,
sendo que esta veio a passeio e o casal para trabalhar no Posto.”190

Ou ainda:

Segue com a família para o Icatú, afim de visitar parente que se encontra
doente, o índio Francisco Paraná com sua família.”191

A área do Posto de Vanuíre – que hoje corresponde a 706 hectares –, era superior à de
Icatu. No início da década de 40, escreve Estigarribia sobre Vanuíre: “Existem apenas 28,
caingangs, mas o Posto constitue excelente reserva para mais umas 20 famílias de índios a

187
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 07.
188
Pinheiro, na leitura da documentação do SPI acompanhou o cotidiano de alguns internados, buscando saber
se os mesmos recebiam salário. Ela cita o índio Euclides que veio para Vanuíre em 1949, e embora tenha
realizado trabalhos, seu nome não consta em nenhuma folha de pagamento. PINHEIRO, Niminon S. Op. cit.,
p.233.
189
Diário de Posto. Vanuíre. 3/10/ 1945.
190
Diário de Posto. Vanuíre. 6/09/ 1945.
191
Diário de Posto. Vanuíre. 9/10/ 1945.
84

192
quem venha a faltar em outra parte”. Segundo Pinheiro, a população de Vanuíre foi
pequena desde o início, um quadro que se manteve nas décadas seguintes, variando entre 25 e
50 pessoas.193 Tanto Icatu como Vanuíre foram gerenciados pela Inspetoria Regional 5 (IR),
tinham ambos a mesma coordenação, que parecia facilitar esse caminhar entre os postos.
Talvez o pequeno número de habitantes em Vanuíre, acomodados em uma área maior, tivesse
oferecido, na ocasião, melhores condições para o índio João Umbelina “fazer roça”.
Na década de 40, quando João Umbelina chegou em Vanuíre, a economia era
diversificada. No posto plantava arroz, milho, feijão, entre outros gêneros. Criava bovinos,
ovinos e suínos. Arrendava áreas para pasto, além da extração da madeira. Parte desta verba
ficava sob o poder do encarregado do posto, enquanto parte dos valores eram encaminhados
até Icatu e entregues ao Inspetor Erico Sampaio, como vemos:

Regressou de Icatú, ás 15 horas o civilizado Antonio Serra, que entregou ao


encarregado deste Posto um recibo da importância de Cr$ 5.000,00 assinado
pelo Sr.Inspetor Erico Sampaio, referente a pagamento de madeira deste P.I,
feito pelo Sr.Manoel Pereira Isidro.
Entregou também a importância de Cr$ 2.920,00 enviada pelo mesmo
Sr.Inspetor, destinada a aquisição de arame e grampos para a cerca. 194

A extração de madeira era intensa, vários são os registros dessa atividade. Quanto à
“roça” do posto, ela era voltada para a venda, mas também se faziam trocas com a população
vizinha, distribuindo o restante entre os índios. No entanto, a responsabilidade em prover a
família vinha do próprio índio, compromisso cobrado com rigidez pelos encarregados, os
quais impunham ao índio uma rotina de trabalho nas lavouras:

Foram corridas todas as roças dos índios, achando-se toda a plantação em


bom estado, com exessão de uma parte de arroz pertencente ao índio Lacri,
que se encontra bastante suja e praquejada. Foi recomendado ao referido
índio a necessidade de capinar a sua roça, pois contando que mesmo com
um filho já homem em sua companhia e também com o auxílio de sua
mulher não havia nenhum motivo para deixar sua roça.195

192
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: 016. s/d. Explicamos acima como chegamos
a data aproximada da escrita da carta, entre 1940 e 1942.
193
PINHEIRO, Niminon S. Op. cit., p. 197.
194
Diário de Posto. Vanuíre. 18/03/ 1945.
195
Diário de Posto. Vanuíre. 28/10/ 1943.
85

Vanuíre funcionava, em 1945, com um encarregado, dois auxiliares e um índio


aprendiz, todos sob a orientação constante do Inspetor Erico Sampaio. O funcionário índio
tinha como incumbência levar e trazer documentos de Icatu, cuidar da criação de animais, dos
serviços do “terreiro”. Além dele, outros índios eram contratados, mas como diaristas.
Ganhava-se pela abertura de picadas, pela extração das árvores, pelo trabalho na lavoura do
posto. Evidentemente, era uma remuneração irrisória196, e paga com o lucro obtido em
atividades que geravam o empobrecimento da terra, como a extração de madeira e o aluguel
do pasto. Dessa maneira, os índios perdiam duplamente, com a exploração do trabalho e a
devastação de suas terras.
No entanto, mesmo inseridos neste regime de obrigações e vigilância os índios
reagiam, alguns reclamavam do baixo pagamento:

Compareceu nêste posto ás 6 horas o aprendiz índio Canuto, que


interrogado pelo encarregado do P.I declarou não mais desejar trabalhar nas
funções de ap.indio, alegando ser pequena a remuneração de Cr$ 100,00
mensais, tendo por isso sido dispensado desse serviço.
Em substituição ao índio Canuto apresentou-se expontaneamente, hoje pela
manhã, o dito “gorducho” que foi aceito pela enc. do Posto.197

Canuto, citado no texto acima, foi substituto de um outro aprendiz que também não
parecia muito satisfeito com a função:

Foi afastado do serviço o aprendiz índio Francisco Iaiatí, por vir o referido
trabalhando com má vontade, descuidando completamente da criação,
apezar de todos os conselhos e agrados que lhes foram dados. Foi dirigido
ao Sr. Diretor da I.R.5, nesta data o ofício n. 3, comunicando o fato e
pedindo substituição do aprendiz índio em questão, sendo também
cientificado o P.I Icatú.198

Havia, também, a possibilidade de trabalhar fora do posto indígena, mas comparando


os valores recebidos, vemos que a diária paga pelos fazendeiros vizinhos era exatamente a

196
Pinheiro, comparou o valor da diária paga em 1949 ao Sr.Nilo com o preço da creolina. O índio recebeu
25,00, quando preço da unidade era de 22,00o. PINHEIRO, Niminon S. Op. cit., p. 233.
197
Diário de Posto.Vanuíre. 13/03/ 1944. Curioso, que mesmo após o pedido de “demissão” Canuto continua a
exercer a função levando até Erico Sampaio as folhas do pagamento mensal e do ponto pessoal. Enquanto
“gorducho”, junto com Francisco Paraná e Dotí iniciam suas colheitas de arroz.
198
Diário de Posto.Vanuíre. 28/10/1943.
86

mesma paga pelo P.I, Cr$14,00.199 É nas relações comerciais estabelecidas entre os índios e
os fazendeiros vizinhos, que notamos a postura dos funcionários do S.P.I, enquanto tutores:

O índio Dotí adquiriu do Sr. Bruno Zoner um porco para engorda, pela
quantia de Cr$ 100,00, tendo o negócio sido feito na presença do enc. Do
Posto.200

Ou ainda:

O Sr. Raimundo Gomes, residente no “Saltinho”, pagou aos índios, na


presença do agente deste Posto, as importâncias abaixo, pelos serviços
prestados pelos mesmos em derrubada de mato.201

O projeto do SPI, de transformar os índios em trabalhadores rurais, estava em ação. Os


funcionários falavam em responsabilidade, em compromisso, com aqueles que não pareciam
adaptar-se à rotina. Na leitura dos documentos, vemos em funcionamento atividades
rentáveis, supervisionadas por funcionários bastante interessados nas sacas, nas cabeças de
gado. Todo esse “desenvolvimento” contrastava com as condições em que viviam esses
índios. Entre 1943 e 1945, vários são os registros de índios debilitados, doentes, que tinham
como diagnóstico uma gripe, mas que chegavam a óbito. Também doenças como malária,
sarampo e anemia, causavam baixas na população. Na assistência dada ao doente, podemos
ter dimensão da precariedade em que os índios viviam. Quando doentes, recebiam do
encarregado produtos de primeira necessidade, o que nos leva a crer que a família, muitas
vezes, não conseguia prover nem o básico para sua alimentação:

Continua peorando de saúde a menina Rosalina, filha do índio João


Umbelina, á qual está sendo fornecido, além dos remédios necessários,
leite, maisena, chá e açúcar também.202

A dieta alimentar dos índios era muito pobre e, ainda que o posto possuísse dezenas de
cabeças de gado, não vemos qualquer referência ao consumo de leite ou de carne. Apenas no

199
Valor pago no ano de 1945.
200
Diário de Posto.Vanuíre. 24/05/ 1944
201
Diário de Posto.Vanuíre. 19/06/1944
202
Diário de Posto.Vanuíre. 14 /10/ 1945
87

Dia do Índio é que se fazia um churrasco, prática que perdura até os dias atuais. A falta de
nutrientes é registrada no próprio diário do Posto de Vanuíre:

Faleceu na cidade de Herculânea, ás 10,30 horas o índio Zeca, de 12 anos,


filho do índio “gorducho” e que se achava naquela localidade em
companhia do encarregado deste Posto e de seu pae, para fins de tratamento
de saúde.
Conforme declaração do médico local, Dr. Sebastião Mesquita, o
mencionado menino morreu em conseqüência de anemia profunda,
ocasionado por amarelão e outras verminoses, agravada ainda mais pelo
grande abatimento físico produzido pelo sarampo sofrido ultimamente pelo
referido menino, moléstia esta característica desta zona, onde a escassez de
frutas e a pobreza do solo em matérias orgânicas indispensáveis a saúde
umana, seifa (sic) anualmente grande porcentagem de crianças.203

Como vimos, as condições são precárias. Além de conviver com as doenças, os índios
viram ceifada a liberdade em caminhar pelas matas, em realizar atividades como a caça e a
pesca quando bem quisessem. Estavam “presos” a uma rotina de trabalho, controlados em
cada saída e em cada chegada. Eram levados para Icatu, quando envolvidos em discussões,
em brigas, onde permaneciam cumprindo medida disciplinar. Uns se adaptavam com mais
facilidade que os outros ao trabalho nas lavouras; alguns nomes aparecem, com frequência,
relacionados ao plantio e às colheitas, enquanto outros registros se referem a famílias que
nada colheram.
O Krenak João Umbelina chegou a Vanuíre com a família dia 03/10/1945, mas seu
filho Antônio de oito anos permaneceu em Icatu até o dia 7 do mesmo mês. Nos primeiros
dias da família em Vanuíre, descobriu-se que a menina Rosalina estava com coqueluche. João
Umbelina deslocou-se até Juliana em busca de remédios. Ainda com a criança doente, João
dedicava-se ao trabalho na lavoura, sendo vários os registros das atividades realizadas por ele:

Os índios Dotí, Gorducho, João Umbelino, índias Parané, Candire, Rosaria,


Mulata, Parane e Vacacrí, continuaram a capina de suas roças.204

Ou ainda:

O índio Crenac João Umbelino iniciou sua colheita de arroz, tendo batido 3
sacos, dos quais foram vendidos 2 ao Sr. João Nave pelo preço corrente de

203
Diário de Posto. Vanuíre. 22/02/ 1943.
204
Diário de Posto. Vanuíre,18/10/ 1945.
88

Cr.$50,00 o saco, comprando com o produto os artigos de que se tinha


necessidade.205

A família faz constantes viagens a passeio para Icatu, lá permanecendo, algumas


vezes, por um tempo maior o filho Antônio. João Umbelina parecia bem adaptado à rotina de
trabalho, mas fazia uso de bebidas alcoólicas, regularmente. Há alguns registros de brigas
graves, com feridos, em ele estava envolvido. Sobre seu comportamento lemos abaixo:

Comunico-vos que, quando procedia de Tupã completamente embriagado o


mestiço João Umbelino, atirou-se da Jardineira, ficando levemente ferido,
apesar de tratado com paciência o mesmo revoltou-se com os passageiros
tentando agredi-los, isso por terem os referidos passageiros reprovado seu
gesto.
A tempos vem o mesmo cometendo toda a sorte de arruaças, ora é tentando
invadir as vendas para obter bebidas, ora provocando civilizados que se
negam a pagar-lhes bebidas, criando com isso um clima de insegurança
entre os civilizados, pois vive proclamando( ...) já recebi várias queixas
sobre o mesmo tendo comunicado a essa chefia os atos de gravidades, e
como referido mestiço nada sofreu até hoje já circula entre os civilizados
que eu não quero tomar providencias.
Ainda hoje fui cientificado que um grupo de civilizados residentes nas
mediações do Posto irão a Tupã afim de se comunicarem com as suas
autoridades que se dirijam a quem de direito afim de por cobro as suas
arruaças.
Ao meu ver o caso criado pelo índio Juca, nada mais é do que o exemplo
que vem dando João Umbelina, pois como é de vosso conhecimento é o
caingang, um índio de bom comportamento e bastante disciplinado.
Solicito pois que essa chefia a saída desse elemento que está se tornando dia
a dia intolerável, criando para os próprios Caingangs um clima de despreso
pois dia virá em que ninguém mais os quererão nem mais para trabalhar
pois ficarão com receio de que algo venha a suceder. 206

Quem assina o memorando acima é Itamar Simões que, na ocasião, era Inspetor
Auxiliar de Vanuíre. Itamar é lembrado, ainda hoje, pelos índios de Vanuíre, como um chefe,
capaz de vender a eles o que deveria ser dado, obrigando-os a trabalharem na lavoura de
segunda a sexta em troca de alimentos. Falam também em uma espécie de cadeia, onde
ficavam presos os índios que bebiam, que não faziam as atividades exigidas pelo chefe de
posto. Foram os índios que, revoltosos com a ação de Itamar, colocaram a “prisão” abaixo.

205
Diário de Posto. Vanuíre. 22/03/ 1946.
206
Serviço de Proteção do Índio. Museu do Índio: Filme 016. 5/08/1949
89

Itamar passou muito tempo trabalhando em Vanuíre, e os Damaceno, que chegaram em 1964,
lembram do dia em que o chefe de posto saiu algemado do P.I pelos policias.
Itamar já havia enviado, em maio de 1948, um ofício ao Chefe Substituto da I.R,
solicitando dele instruções que pudessem resolver o problema207. Reclamava, na ocasião, de
um “civilizado” o Sr. Pedro Dellvalle que fornecia bebidas alcoólicas aos índios, tendo João
Umbelina como freguês assíduo. Dellvalle respondeu, ao então encarregado do posto, que
pagava seus impostos e que o Serviço não podia proibi-lo de vender bebidas. O filho do
comerciante também causava problemas, tendo invadido a aldeia para pegar a porca de uma
índia como pagamento das bebidas compradas por ela. O problema não eram os índios que
consumiam as bebidas, mas o “civilizado” que as vendia a eles. Itamar esperava das
autoridades uma medida contra o Sr. Dellvalle.
Não sabemos ao certo se foi por vontade própria, mas em 1953 seguiu o índio João
Umbelina para o Posto Guido Marliére. O delito cometido quando jovem foi resolvido com a
transferência. E, agora, diante do comportamento do índio, o Serviço apoiou uma nova
transferência. A família de Umbelina retornou para Vanuíre dois anos após a viagem:

Procedente do P.I Guido Marliére, chegaram a este Posto os índios Antonio


Jorge e sua família, também com o fim de fixar residência neste Posto a
índia Cotú Umbelino e seus 3 filhos.208

João Umbelina não acompanhou a família. Segundo depoimentos da filha Jandira, o


pai os teria deixado lá e desaparecido. Em Minas Gerais, ela se casara com o Krenak Antonio
Jorge e retornou para Vanuíre, junto com o esposo, a mãe e os irmãos. Isso explica a
identidade Kaingang assumida pela índia. Como ela mesma diz: “Não sou Krenak, sou
Kaingang”.
O retorno de João aconteceu um pouco mais tarde:

Procedente do Posto Guido Marliére chegou a este Posto o índio João


Umbelino que aqui já havia residido, aqui fixado residência novamente de
ordem do S.r, Chefe da Ajudância. 209

207
Serviço de Proteção do Índio. Museu do Índio: Filme 016. 02/05/1948
208
Serviço de Proteção do Índio. Museu do Índio: Filme 016. 02/08/1955
209
Serviço de Proteção do Índio. Museu do Índio: filme: 016. 02/05/1956.
90

No documento acima não há nenhum registro sobre uma possível companheira, talvez
ela tivesse vindo em uma outra ocasião. O fato, é que João Umbelina teve uma segunda
esposa, Dona Gracina Umbelina. Veio de Minas para Vanuíre, onde permanece até hoje com
os filhos de sua relação com João Umbelina. Ela e Dona Jovelina Damaceno, são as mais
idosas Krenak que vivem em Vanuíre.210
Em uma conversa com Dona Gracina em sua casa, estavam presentes três filhos. Um
deles, Tiago Umbelina, nos responde se o pai era mesmo do Posto Indígena Krenak:

Ele era, mais não acostumava. Antigamente ele andava de aldeia por aldeia.
Ficava igual um andarilho andando, andando, aldeia por aldeia. Eles vieram
a pé de lá de Krenak até aqui. È mole é? Vir a pé de lá aqui, aqui é longe,
vir a pé de lá aqui. Antigamente veio a mãe da Lia, a mãe da Lia que veio, o
Antonio Jorge, vieram tudo a pé. 211

Dona Gracinda também nos fala do marido:

Eu sou de Minas. Depois, o meu marido andava aqui, né? Não gostava de
lá, gostava mais daqui, ai nos mudemo pra cá. Até hoje, morreu, eu tô
aqui.212

Vemos no depoimento de Tiago que as recordações são coletivas, a história da sua


família se confunde com a de outros Krenak. Mas, talvez, fazer referência a outras histórias
seja uma maneira de não aprofundar os comentários sobre a vida de seu pai. Em nenhum
momento, eles se referem à prisão, aos conflitos vividos por João Umbelina. Dona Gracina
não diz por que o marido veio para Vanuíre, diz apenas que ele gostava dali, que os pais
haviam morrido e que o marido tinha se “criado” em Vanuíre, por isso estava acostumado
com essa terra. A grande queixa de Dona Gracina é não ter visto o corpo do marido:

210
Gracinda é uma senhora adorável. Bastante atenta mostrou-se receosa quando seu filho Tiago pediu que ela
falasse na “linguagem” para eu “guardar”. Disse que os estudantes ganham dinheiro, e só falaria se pagasse. Mas
como o assunto não era a “linguagem”, ela conversou bastante, contou-me rindo de quando os índios antigos
encontraram um homem negro: “Os índios antigos lá no Krenak, nunca viu nêgo preto, né? Juntou lá , pegou,
levou lá, que tá sujo. Levou lá na areia, ariou ele até sair sangue”. Em uma outra ocasião, a encontrei quando
voltava da casa de Dona Jovelina. Saia longa, pés descalços, uma bolsa pendura e um pedaço de madeira que lhe
servia de apoio. Acredito que ela não tenha se recordado do dia em que estive na sua casa, mas me contou de
onde vinha e perguntou se eu estava passeando.
211
Entrevista concedida dia 20/07/08.
212
Entrevista concedida dia 20/07/08.
91

G: Morreu em São Paulo. Nós nem viu a morte dele. Esse aqui era deste
tamanho, aquela ali também era desse tamainho. Ela chorava: Mãe, quer
meu pai. Eu falava pra ela: Seu pai virou bicho. Ai ela parou de falar.
P: Ele foi trabalhar em São Paulo?
G:Não, ele tava doente. Operou ele, ai morreu.
P:Foi se tratar.
G:De lá mesmo ficou. 213

Sobre a morte de João Umbelina, escreve Álvaro Villas Boas, Chefe da Ajudância de
Bauru, ao Chefe de Vanuíre, Antonio Alves de Menezes:

Com relação ao falecimento do índio João Umbelino, ocorrido no último


sábado á noite e já comunicado á V.Sa. e á família por via telegráfica, devo
acrescentar o seguinte:
o tumor operado anteriormente apresentou recidiva e foi considerado
incurável devido á localização. Se o paciente tivesse permanecido no Posto,
sua morte seria extremamente dolorosa, o que não aconteceu no Hospital
onde naturalmente existem recursos especiais- anestesia completa,
sonoríferos (sic) de alto poder, respiração artificial etc; Todos os
documentos e pertences do falecido serão encaminhados á Chefia do PI pata
serem entregues á família mediante recibo;
Na mesma ocasião será comunicado o local exato de sepultamento
(Cemitério São Pedro, Vila Alpina, nesta Capital)214

Como nos falou Dona Gracina, João morreu em São Paulo e lá foi sepultado. Ainda
que o chefe comunicasse o local de sepultamento, sabemos as dificuldades que os parentes
teriam para dirigir-se até lá, além do que, em momento algum, o documento falasse dessa
possibilidade. Ainda que se dirigissem para São Paulo, João já estaria enterrado. A dor de
Dona Gracina está em não ter podido acompanhar o enterro, em não ver o corpo do marido.
As viagens de João Umbelina não terminaram quando ele retornou para Vanuíre no
ano de 1956. Já estava casado com Dona Gracina, e foram morar com os filhos, no Mato
Grosso do Sul:

Ele foi até em Mato Grosso, morou em Mato Grosso do Sul. Lado lá de
Cuiabá, Miranda. Já ouviu falar? Cachoeirinha, aldeia Terena, ele morou
lá. Nós morou lá também, sai daqui foi com 7 anos pra lá, pra Mato Grosso.
Quando eu voltei eu tinha 26 anos, eu cresci lá em Mato Grosso. Ai eu vim
embora pra cá, ai eu casei.

213
Entrevista concedida dia 20/07/08.
214
Fundação Nacional do Índio. 28/01/1975. Documento armazenado no Museu Índia Vanuíre, Tupã.
92

E eles vieram...Eu fiquei sozinho pra lá, solteiro e eu gostava de bagunça,


fiquei lá. Ai eu...morava com uns amigos. Acostumado, jogava bola,
dançava baile lá. Ai eu vim embora pra cá, ai ela foi me buscar. Eu fiquei
com dó dela e vim embora. E tô até hoje aqui, vai fazer 15 anos.215

João Umbelina foi um dos índios que o Serviço deveria transformar em trabalhador
rural produtivo, que contribuísse para o “progresso”. Para aqueles índios que não se
adequassem, que praticassem ações anormais aos olhos dos “civilizados”, o SPI criou as
Colônias Penais. Por essa razão, João Umbelina veio do Guido Marliére cumprir sua pena em
Icatu. Vivendo em Icatu, mais tarde em Vanuíre, João Umbelina tornou-se um “trabalhador”,
com atividades determinadas, pagamento e até férias. Mas, além do trabalho, o não índio
também lhe apresentou o álcool. Nas palavras de sua filha Jandira: “Eles amansam o índio
com cachaça, depois quer tirar a cachaça do índio”. A bebida faria de João Umbelina
novamente um problema para o Serviço, e a saída pareceu ser mesmo o retorno para Minas
Gerais. Assim, o índio João fez o caminho de volta, mas retornou anos depois, vivendo em
Vanuíre e no P.I Cachoeirinha.
A palavra Krekmum216 (aquele que vai e volta) parece definir este índio Krenak. João
Umbelina viveu ora em Minas, ora em São Paulo, um pouco no Mato Grosso. Viveu aquela
mesma trajetória de deslocamentos, tão presente na história de seu povo. Ao casar-se com a
índia Caingang Cotú e transferir-se para Vanuíre, deu início à história dos Krenak em
Vanuíre, dos Kaikren217, dos Borum longe do Watu.

2.1- A identidade étnica: os Krenak na diáspora

Também é nosso objetivo pensar a identidade Krenak na diáspora, voltando nosso


olhar para as relações interétnicas, sobretudo com os índios Kaingang, com quem os Krenak
têm estabelecido intenso convívio, por meio do matrimônio. Conhecer como essa identidade
se manifesta em um contexto que não o de origem nos possibilita perceber, também, os laços
étnicos que ligam os Krenak de Vanuíre, com os que se mantêm nas terras “originárias”.

215
Tiago Umbelina. 20/07/2008
216
Palavra Borum usada para definir um andarilho.
217
Maria Helena, moradora de Vanuíre, me disse que quando buscavam o nome para a Associação criada na
aldeia, chegaram a conclusão que o nome deveria lembrar as duas etnias. Dessa necessidade, nasce a Kaikren.
93

Há toda uma produção teórica acerca da identidade étnica que nos permitiu pensar
este caso específico e, por essa razão, julgamos necessário uma breve apresentação das
contribuições dadas por cientistas sociais para a melhor compreensão do assunto em questão.
Para a literatura antropológica, as identidades não são categorias ontológicas, imutáveis. Ela é
pensada dentro de um contexto capaz de determinar qual identidade será vestida ou descartada
pelo grupo. Ainda no século XX, influenciados pelo modelo evolucionista do século XIX, os
trabalhos acadêmicos utilizaram conceitos como “assimilação” e “aculturação”, que denotam
a transitoriedade da figura indígena que, em contato com a sociedade envolvente, estaria
fadada ao desaparecimento, pois não apresentariam uma identidade especifica.
É de 1973 o Estatuto do Índio que define como indígena “todo indivíduo de origem e
ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo
étnico cujas características o distinguem da sociedade nacional”. Percebemos que a identidade
indígena nesse caso não depende apenas da auto-identificação; a identidade é vista como algo
tocável, visível. Na leitura do artigo 231, da Constituição Brasileira de 1988, vemos que não
são mais estabelecidos critérios de identificação. A Constituição diz apenas em reconhecer
“aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Em 2004, tivemos a promulgação da
Convenção 169 da OIT, que estabelece como critério fundamental à auto-identificação, o
sentir-se indígena como definidor da identidade. Nesse sentido, a legislação também
caminhou para o reconhecimento dessa identidade, como algo mutável, incluindo, então,
aqueles grupos de pouca distinção cultural.
Nas décadas de 50 e 60, do século XX, estudiosos refletiam sobre os encontros entre
diferentes grupos no cenário brasileiro. Os estudos focavam sua atenção no aspecto cultural; a
leitura de Barth contribuiu para as discussões que já se faziam no nosso país sobre a
temática.218 O autor em questão desloca a definição de grupo étnico como “unidade portadora
de cultura” para um “tipo organizacional”. O partilhar, a autodenominação e atribuição dada
pelos outros, seriam suficientes para formar o grupo em seu sentido de organização, não
sendo, nesse caso, o aspecto cultural determinante na definição de um grupo étnico. 219

218
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Op.cit.
219
BARTH apud OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Op. cit., p.176.
94

Roberto Cardoso de Oliveira criou, em 1962, o conceito de fricção interétnica,


elaborado especificamente para pensar a relação de contato entre os índios e a sociedade
envolvente, enfatizando o caráter conflituoso desse contato, marcado pela sujeição-
dominação. Nas palavras de João Pacheco:

A própria escolha do termo fricção já indicaria a preocupação do autor em


salientar como componentes estruturais do contato o conflito e a interação
continuada. Ao banir de seu discurso imagens como a de “transmissão”,
“adoção”, “assimilação” ou “incorporação”; Cardoso de Oliveira chama a
atenção não para os aspectos culturais, mas para as relações sociais que são
ai constituídas.”220

A fricção interétnica também é pensada entre etnias indígenas, também neste contexto
assumem uma identidade contrastiva que atualiza a sua identidade étnica, ou seja, também
nesse espaço aparece o “eu” e o “nós”. A vivência em um contexto multiétnico não foi uma
realidade imposta apenas ao Krenak que viveram em Vanuíre; desterros anteriores já haviam
forçado a convivência com os Maxakali e com os índios Guarani, entre outros. Mas há um
dado também bastante interessante para a discussão que pretendemos, que é a convivência
comum de diferentes subgrupos Botocudos. Entre 1918 e 1923 foram levados para viver entre
os Krenak, os Nakrehé. Mais tarde, com a extinção do Posto de Pancas, em 1940, chegam os
Gout-tkrak, os Mina-jirún, outros Nakrehé e Naknenuk.221 Dessa forma, são os Krenak de
hoje um rearranjo dos Gut-Krak, Minãjirun, Nakrehé e Naknenuk.
Diante de pesquisadores, representantes do Governo e a sociedade envolvente em
geral, a identidade Krenak é assumida por todos – ser descendente direto do cacique Krenak
garante a eles o domínio daquele território. Como nos mostra Brandão:

Como processo (identificação) e produto (identidade) de um trabalho


cultural de grupos sociais que resulta na adscrição [no registro] de
significados de diferenciação social, étnica, etc., identidades podem ser
geradas preservadas, extintas, transformadas, dependendo não tanto de uma
voluntária vontade simbólica do grupo, mas das atribuições pelas quais
passa na realização cotidiana de sua própria historia. Atribuições que nos
casos descritos aqui como base aos que serão descritos a seguir, vão da
defesa de um território físico, político de assentamento, vida e trabalho do

220
OLIVEIRA, João Pacheco. “O nosso governo”. Os Ticuna e o regime tutelar. São Paulo: Marco Zero, 1998.
p.45.
221
GUIMARÃES, Núbia Maria C. Op.cit., p. 54.
95

grupo, até a auto-atribuição de um lugar simbólico do grupo, no território de


nomes e significados com que lê se localiza entre outros.222

Neste caso, a adscrição adotada é o “nós” Krenak , frente ao “eles” não indios, os
Krenak reconhecem força na unidade. Roberto Cardoso de Oliveira apresenta-nos o caso da
família Tikuna que, mesmo fugindo às estruturas da própria organização social, define como
sendo Tikuna duas crianças de mãe Tikuna e pai não índio, ainda que a definição da
identidade se dê pela linha paterna. Em ambos os casos, vemos a busca pela homogeneização
étnica, que não se dá, como colocou Brandão, por uma “voluntária vontade simbólica do
grupo”. Segundo Roberto Cardoso, essa é mais uma pressão que a sociedade nacional exerce
sob os indígenas, embora possa ser uma pressão positiva, uma vez que contribui para o
fortalecimento da identidade étnica.223 Esse ativamento da identidade é visto entre os Krenak
de Minas Gerais, onde o conhecimento da genealogia do grupo, a confecção de adornos e o
domínio da língua são altamente valorizados.
A mesma homogeneidade étnica apresentada aos de “fora”, não é vivenciada dentro do
território indígena. De acordo com Missagia, três são os subgrupos existentes dentro da
aldeia: os Butkrak do Rio Eme, Nakréhé-hé de João Pinto (se localizavam próximos a
Conselheiro Pena) e Nakréhé-hé de Itueta (P.I Pancas).224 A disposição das casas no P.I foi
analisada por pesquisadores que buscavam compreender a organização social do grupo. Nos
trabalhos a que tivemos acesso, a organização espacial encontra correspondência na divisão
grupal, apontada por Missagia.
Como descreve Arantes:

Os líderes principais de cada um dos grupos estão vinculados a um dos


subgrupos de origem. O agrupamento “1”, o Povo da Dejanira, é composto
por maioria Gut-Krak do Eme, tal como o agrupamento “2”, liderados por
sua prima cruzada Laurita. Já o agrupamento “3”, o Povo do Nego, é
chefiado pelo cacique e tem maioria Nakrehé-hé de João Pinto. Por fim, o
agrupamento “4” liderados pela mais velha de Joaquim Grande, Maria
Sônia é de origem Nakrehé de Itueta225.

222
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e etnia: Construção da pessoa e resistência. São Paulo, Brasiliense:
1986. p. 111.
223
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Op.cit.
224
MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op.cit. Segundo Missagia, na ocasião do trabalho de campo
havia uma única índia cuja descendência era Minãgirum, sendo esta filha de mãe Miñagirum e pai Nakhré-hé de
Itueta.
225
ARANTES. Op.cit., p. 103.
96

No entanto, embora Arantes reconheça a relação que existe entre o modo de


agrupamento atual e o antigo, faz ressalvas à análise de Missagia, que sustenta serem as
facções existentes resultado de disputas e alianças estabelecidas pelos ancestrais dos
subgrupos. De acordo com Arantes, essas divisões ainda orientam as relações existentes na
área, mas afirma haver outras formas de agrupamentos.226
Segundo Missagia, a área estava dividida em duas facções, sendo que a facção Butkrak
ocupava o Sul e os Nakrehé-hé o norte da área. Os maiores conflitos eram mantidos entre os
Butkrak e os Nakreré-hé de João Pinto, não havendo, pelo que observou, nenhuma união
matrimonial entre aqueles dois grupos. Entre Butkrak e os Nakrehé-hé de Itueta, a relação foi
marcada pela violência, mas os subgrupos uniram-se por meio do matrimônio. A pesquisadora
notou, no entanto, que havia, entre os jovens desses subgrupos, uma certa resistência em
relação ao casamento.227 Já entre os Nakrehé-hé, de Itueta e os de João Pinto, a relação era
mais leve, mas os jovens também se mostravam resistentes quanto a encontrar um
companheiro no outro grupo.
O etnólogo Manizer cita Touk, uma mulher do grupo de Késuk, na ocasião, uma das
esposas de Muin. Tésuk, é o mesmo Tetchuc, irmão de Krenak, citado por Estigarribia.
“Grupo inimigo do capitão Krenak desde a cisão. (...) Touk deve ter-se tornado uma das
esposas de Muin, possibilitando aos Krenak o estabelecimento de outras uniões matrimoniais
com indivíduos de sua etnia – que, parece ser a que originou o grupo Nakréhé-hé de
Itueta”.228
Se o casamento de Muin com Tun aproximou os subgrupos, a morte de um importante
líder Krenak, praticada por um indivíduo Nakrehé-hé, causara o seu inverso. Segundo uma
índia Butkrak, o líder Krenak morto, era contrário à união com os Nakrehé-hé.229

226
Arantes faz uma análise mais completa da organização espacial existente no P.I Krenak. Ela aponta três
modelos de agrupamentos. O primeiro, divide as casas em três grupos, relativo ao grupo de origem: Nakrehé de
Itueta, Nakrehé de João Pinto e Gutkrak do Eme. O segundo em três pólos: pólo do Eme, polo do cacique, polo
da Barca. Essa divisão foi criada pela Funasa para melhor atender os índios, hoje mesmo na escola os
professores usam esse modelo de divisão. O terceiro, diz respeito ao arranjo que ela presenciou durante a
pesquisa. Este último, com quatro divisões, foi feito com base nas atuais lideranças. Uma divisão a mais, pois os
Butkrak tinham se dividido, em razão de uma briga entre duas primas.
227
Trabalho de campo realizado entre abril de 1992 e abril de 1994.
228
MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op. cit., p.141.
229
Idem.
97

Essa divisão entre os subgrupos e as intermediações de matrimônio é notada pelos


índios, como vemos abaixo:

Casamento daqui de cima com alguém de baixo, não, acabou, mas não é só
por causa da divisão, eu não sei, acho que o pessoal daqui de cima talvez
não tem muito a ver com o pessoal de baixo, ficam brigando, e também lá
em baixo fica mais perto das meninas encontrarem com os meninos, os
rapazes, por isso que eu acho que sai mais casamento entre eles lá e aqui em
cima, não, porque o M. casou com a B. então é coisa de família (de cima).
Você pode ver, lá acaba ficando na mesma família.
Eu acho que é Nakrehé-hé e Krenak, mas era uma aldeia só, porém
Nakrehé-hé, quando houve a guerra- são histórias- então eles se afastaram e
o Krenak persistiu, ficou no lugar por isso, mas como o pessoal se afastou
por causa das guerras, foi assim que surgiu outro nome.
Mesmo não querendo dizer, ás vezes as pessoas falam: “aqui não tem
divisão, todo mundo é unido, a R. mesmo acha ruim quando fala em
divisão, ela gosta de mostrar que todo mundo está unido, mas quando muda
alguém lá de baixo, tipo assim, a M. mudou agora, eu acho que está até
mudando, porque de primeiro era aquela divisão, ninguém daqui ia lá, nem
os de lá vinha pra cá. Até que agora estão se unindo, indo um na casa do
outro...” .230

Na ocasião do trabalho de campo realizado por Missagia no Posto Indígena Krenak


(1992 a 1994), continuava como cacique um Nakrehé-hé de João Pinto, o Nego, que assumira
a liderança do grupo, ainda quando estavam na Fazenda Guarani. No entanto, era Laurita
Felix (Butkrak) quem tomava as decisões políticas, mas, como mulher, não podia representá-
los fora da aldeia. Os Butkrak nunca aceitaram Nego, esperavam que um Butkrak assumisse
aquela liderança.
Sobre a divisão que há na aldeia, escreve Paraíso:

Desde o momento de seu aldeamento, os Krenak sedentarizaram-se, porém


continuaram a organizar-se em termos de aliança política e solidariedade
econômica em famílias extensas. Devido ás constantes transferências e
dispersões do grupo, sua organização dual, com metade exogâmica e
matrilocal, encontram-se adaptadas ás reais condições históricas e arranjos
necessários á reprodução do grupo. Assim sendo, a poligamia dos chefes não
mais existe, mas a poligamia em série é uma característica marcante do grupo.
Os casamentos dão-se predominantemente entre as famílias existentes de
forma exogâmica: os Isidoro Krenak; Felix Viana; Cecílio Damasceno;
Imbelina e Souza.231

230
Ibidem, p. 146.
231
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro.Os Botocudos do Rio..., Op.cit., p.426.
98

De acordo com Guimarães, os casamentos entre as famílias possibilitaram uma relação


mais amistosa, mas não foram capazes de pôr fim ao conflito. Em 1989, quando realizou seu
trabalho de campo, a área já estava dividida em duas partes, como mais tarde observou
Missagia. Localizados ao sul, estavam as famílias Isidoro Krenak, Felix Viana, Manuel de
Souza e Vieira Graças, quase todas as que apoiavam a Butkrak Laurita Felix. Por sua vez, ao
norte, as famílias Imbelina (Batista de Oliveira e Policarpo dos Reis) e Cecílio Damaceno,
que apoiavam José Alfredo de Oliveira, um Nakrehé-hé, de João Pinto.
Guimarães traça a genealogia do grupo, chegando à conclusão de que são poucos os
descendentes diretos do líder Krenak. E levanta a hipótese de que Waldemar Adílson e seus
irmãos possuam essa ancestralidade:

Capitão Muin, nesta época, tinha 3 mulheres (Mancan, Nhá e Jucuhy).


Tchonudjum, que era considerado outra liderança do grupo, cf. Simões (1924).
Tinha duas mulheres (Ecuan e Nangmeik). Em 1926, Juquinhot (irmão de
Muin) desempenhava as atividades cacicais, ocupando a posição de Muin. Ele
tinha 3 mulheres ( Mariana, Maria e Jucuhy) e criava Jacob, que era filho
desta última com um índio que já havia morrido. Provavelmente, este índio era
o “capitão” Muin, se considerarmos: a prática de adoção de órfãos entre os
parentes, a terminologia de parentesco que classifica igualmente pai e irmão
do pai com uma designação similar e o seu casamento com Jucuhy.232

Seguindo a linha sucessória das lideranças, aparecem os nomes de Krenak, Muin,


233
Juquinhot, Jacob, Joaquim Grande e José Alfredo. Entretanto, com a morte de Jacob, seu
234
filho Waldemar deveria ter assumido, mas era muito jovem e, na ocasião, morava em
Vanuíre. Assumiu, então, Joaquim Grande (Nakrehé-hé) e com sua morte, José Alfredo
(Nakrehé-hé).235
No ano de 1989, Waldemar já estava na área indígena Krenak, disposto a ocupar o
posto de chefia; morava próximo a Laurita Felix, opondo-se a João Alfredo. Nessa ocasião,
integrantes da família Damaceno, que vivia em Vanuíre, haviam retornado às terras de origem

232
GUIMARÃES, Núbia Maria C. Op cit., p. 56.
233
Curioso que Guimarães não tenha incluído Krembá, como chefe Krenak.
234
Guimarães aponta Waldemar como neto de Muin e bisneto de Krenak, mas diz que ele é filho de Pac. O que
não condiz com os relatos ouvidos em Vanuíre. Waldemar é filho de Jacó, índio que acaba morrendo de tristeza
na Fazenda Guarani, durante o exílio sofrido pelos Krenak.
235
GUIMARÃES, Núbia Maria C. Op.cit., p. 63.
99

com o intuito de reaver o espaço que ainda estava tomado pelos fazendeiros. A localização
das famílias vindas de Vanuíre nos interessa bastante, uma vez que possibilita perceber as
alianças estabelecidas nessa volta. Analisando o croqui da área indígena, vemos que os irmãos
Damaceno estão todos fixados ao norte, juntos a José Alfredo. A única exceção é Cleusa
Cecílio Damaceno, casada com José Manuel de Souza, cuja família apoiava Laurita Felix.
Sobre isso diz Guimarães:

A família Manuel de Souza (composta por José Manuel de Souza e Cleusa


Cecílio Damasceno) está morando com Laurita (casa anexa, no 5),
possivelmente por dois motivos: falta de espaço e necessidade de estabelecer
aliança com representantes de uma das famílias opositoras ( Cecílio
Damasceno) a esta índia. 236

Três dos irmãos Damaceno retornam para Vanuíre, dois deles casaram-se com índias
Kaingang, enquanto Maria Helena Cecílio Damaceno se uniu a João Batista de Oliveira,
irmão do cacique José Alfredo. Dos irmãos que permaneceram em Minas, José Cecílio
Damaceno contraiu matrimônio com Milda Umbelina237.Cleuza Cecílio Damaceno ficou
viúva, casando-se mais tarde com um não indio. A única união dos Cecílio Damaceno com os
Felix foi o casamento de Carlos com uma das filhas de Laurita. 238
Na ocasião de nossa viagem,239 Cleuza Cecílio Damaceno não morava mais tão
próxima a Laurita, mas ainda vivia no lugar denominado de Barra do Eme. Ela nos contou
que, ao unir-se a um não índio foi proibida de morar na aldeia, mudando-se para Vitória.
Laurita Felix, no entanto, depois de reaverem as terras, disse à Cleuza que ela podia voltar. Já
José Cecílio Damaceno (Zezão) mora em um ponto denominado Porto da Barca. Ele tem dois
filhos casados com os filhos de Laurita Felix.
Acompanhando os Krenak de Vanuíre até Minas Gerais, percebemos que havia um
distanciamento entre a família Damaceno e Laurita Felix. Durante uma visita frustrada a José
Cecílio Damaceno (Zezão), passamos pela casa de Laurita que se estava no quintal. Os irmãos

236
Ibidem, p. 66.
237
Filha de dona Gracina Umbelina e João Umbelina.
238
Carlos nasceu em Vanuíre, é filho da Dona Jovelina com um Kaingang. Ele conheceu a esposa em Minas
Gerais, uma das filhas de Laurita Felix. Ele era tratorista da FUNAI e acabou morrendo em um acidente de
trabalho.
239
Saímos de Vanuíre com destino ao P.I Krenak dia 27/07/2008. O motorista não índio (“crente”), 14 índios
adultos, mais 5 crianças.
100

não foram cumprimentá-la, comportamento bastante diferente do que presenciamos quando


encontraram outros “parentes”. Não sabemos precisar o início desse afastamento entre as
famílias Felix e Damaceno, mas é importante lembrar que as duas migraram para Vanuíre,
sendo que os Felix retornam à área. Esse é um ponto de grande diferenciação entre eles; os
que permanecem na área reivindicam direitos que acreditam não se estenderem aos demais.
O motivo da viagem que eles fizeram até Minas, oportunidade em que os
acompanhamos, era rever uma índia que se encontrava doente, e também reivindicar a
indenização que deverá ser paga os índios pela Hidrelétrica de Aimorés.240 A aldeia, naquela
ocasião, comportava quatro caciques: Randon (filho da Laurita),241 João Alfredo (Nego),
Leomir (filho da Cleuza Cecílio Damaceno) e Zoim. Eles mostravam-se divididos quanto à
indenização se estender ou não aos índios de Vanuíre. Havia um grupo que compartilhava da
idéia de que a indenização deveria ser paga apenas aos que moram na parte sul, já que,
vivendo próximo ao rio, seriam os prejudicados com o seu transbordamento.
Os Butkrak moram de frente para o Rio Doce, direito reivindicado por ser o habitat
original de seus ancestrais. Na Barra do Eme como é chamada, foi construído o primeiro
Posto de Atração do Rio Eme, no início do contato. É nessa parte do Watu que podemos ver
as ilhas, tão lembradas pelos Krenak. Além desse ponto, o Porto da Barca também fica de
frente para o Rio Doce, local em que, em 1981, ficaram as famílias que retornaram à área
indígena, com o intuito de reaver as terras. Acomodados nessa pequena área de 68,25
hectares, os índios conviveram com fazendeiros e bugreiros que queriam vê-los longe dali. No
local, ainda podemos encontrar as ruínas do antigo Reformatório Krenak que, na década de
80, já estava desativado, servindo de escola para as crianças. Além dos dois pontos, existe um
terceiro, bem distante, longe do Rio Watu, local onde vivem em maior número os Nakreré,
inclusive o cacique José Alfredo.242
Vimos que os Butkrak usam da genealogia, para reivindicar posições dentro da área
indígena. Guimarães acredita que Waldemar e seus irmãos sejam netos do capitão Krenak,
uns dos poucos que possuem essa descendência direta, isso, considerando Jacó, como filho de

240
A construção da Hidrelétrica de Aimorés é um empreendimento da Companhia Energética de Minas Gerais
(Cemig) e Cia. Vale do Rio Doce, o aproveitamento do potencial hidrelétrico do médio Rio Doce, já causa
danos ambientais, afetando diretamente ao povo Krenak.
241
Waldemar Adílson não conseguiu se estabelecer como cacique, tendo o filho de Laurita assumido a liderança
Butkrak.
242
ARANTES, Luana Lazzeri. Op.cit.
101

Muin. Sabemos que Jacó e Sebastiana, mãe de Laurita, foram criados como irmãos. Mas,
enquanto Jacó foi criado por Juquinót, Sebastiana era uma das órfãs criadas por Krembá,
antecessor de Juquinot na liderança.243 No entanto, ainda que os dois reivindiquem a
identidade Butkrak – a descendência direta ao “capitão” –, Laurita é filha de mãe Krenak (do
Rio Doce) e pai Nakrehé de Itueto, enquanto Waldemar é filho de pai Krenak (do Rio Doce)
e mãe não índia. Assim, ainda que descendam ambos do líder Krenak, a identidade acionada é
a que traz mais beneficio, e desse modo o fazem todos os índios Borum, ao assumir a
identidade Krenak.
Em Vanuíre, as afiliações a subgrupos não são utilizadas, todos assumem a mesma
identidade Krenak. Quando questionados sobre as divisões existentes na aldeia de Minas,
dizem que foi uma medida de proteção, pois, estando uns ao sul e outros ao norte, toda a área
estaria protegida de possíveis invasões. Quando questionamos sobre os diferentes subgrupos
existentes no P.I Krenak, obtivemos a seguinte resposta de João Batista de Oliveira:
Esse grupo era porque...sabedoria do índio, né? Porque o branco matou
muito Krenak, muitos. Tinha 5 mil índios Krenak, matou quase tudo, o
grupo tava acabando, ficou 20 índio. E ai ele falou assim: “Nós vamos
dividir, cada uma tribo, cada um índio tem um nome de uma tribo. Ai veio:
Butkrak, Naknenuk, Kuparak, Minãjirum, e foi pondo. Ai, quando as
pessoas brancas chegava: Cabo já os índios. Ainda tem índio ainda? Tem.
Tem? Tem Butkrak, tem Minãjirum, tem...tem Kuparak. E onde que é isso?
Ah, lá embaixo”. Ai eles ia, né? Pra ver se era só um índio. Se o branco ia
pra lá, esses índios daqui, já comunicava todos os outros, juntava todos os
outros, sentava: “Tá vindo ai, conheço ele”. Corria tudo pra lá, chegava lá: “
È ainda tem bastante índio, ainda.” Mas não era, não tinha muito, só tinha
só 20 índios. Mas ele dividiu pra pode enganar branco.244

Segundo o Sr. João, os índios formavam um só grupo. Nomes diferentes foram criados
para dar a impressão de que eram muitos, assim os brancos os temeriam e os deixariam em
paz. A história contada por ele não faz referência a genealogias, nem a grupos de diferentes
origens. Quando novamente insistimos sobre uma possível diferença entre Nakrehé e Gut-
Krak , ele nos disse:

Nóis daqui é o mesmo de lá, nós que veio pra cá. Quando eu vim, é como
eu falei, aqui não tinha artesanato, nóis foi fazer. Então, a língua é uma só,

243
ABREU, Syvio Fróes. Op. cit., p. 577.
244
Entrevista concedida em Vanuíre, em 18/10/2008
102

não fala outra coisa. Fala assim, o mesmo grupo, uma coisa só. Que na
verdade não era Krenak. Krenak era um nome que tava faltando em
uma...foi pondo nome e faltava uma pra ter nome, né? Então, tinha uma
índia barrigudona, tava pra ganhar neném, ai tava caçando nome pra botar
no outro grupo, caçando nome. Ai, aquela índia ficou de cocorado, que
ganhava neném de cocorado. Ai rapidinho ela tava ganhando neném,
neném. Ia cair e bater com a cabeça no chão, na terra, ai o índio gritou: kruk
kren no nak, kruk kren no nak, neném vai bater a cabeça no chão. Ai ele
ficou, kruk kren no nak, quer dizer, kren a cabeça, né? Nak a terra, kren-
nak. Ai o branco já falou, Krenak, índio Krenak. Nóis é kren nak, kren no
nak. Cabeça na terra. Ai ficou o nome do outro grupo que faltava, que dizer,
aquela índia ganhando neném foi um grupo que surgiu o nome do grupo.
Kren no Nak, Nakre-hé, quer dizer, terra boa.245

O surgimento do nome Krenak, segundo ele, nasceu da mesma necessidade que fez
surgir Butkrak, Naknenuk, Kuparak, Minãjirum. È curioso que o Sr. João não faça nenhuma
referência ao líder Krenak, ao falar da origem do nome, quando toda a bibliografia sobre o
grupo afirma que os Krenak assim foram chamados por serem liderados por um índio do
mesmo nome. No livro didático produzido por índios Krenak que vivem em Minas, lemos
sobre a origem do nome:
Krenak é o nome tradicional que usamos, antes de cantar.
Significa cabeça na terra. Colocamos a cabeça sobre a terra por um minuto,
em seguida, dançamos.
Há muitos anos atrás, quando eu não existia, os mais velhos contaram uma
história para minha mãe, e minha mãe me contou.
Havia um casal de índios passando por um caminho, de repente, a índia
passou mal, para dar a luz uma criança. O índio colocou a índia sobre o
barranco deitada e saiu correndo desesperado, pedindo ajuda aos "KRAI".
Ele não sabia falar português.
Nesta época, havia uma porção de homens trabalhando na companhia,
construindo a estrada de ferro de Vitória a Minas, eles vieram correndo e
começaram a fazer o parto. De repente a criança sai e bate a cabeça na terra.
O índio desesperado grita:
— AGRANA TONDONE KREN NO NAK! (O bebê bateu a cabeça na
terra!)
O homem mandou o índio repetir o que ele tinha falado, o índio repete:
— AGRANA TONDONE KREN NO NAK! (O bebê bateu a cabeça na
terra!)
O homem juntou as duas palavras e disse:
— Esta estação terá o nome Krenak.
E ficou para sempre o nome Krenak. Esta história foi contada para os mais
velhos, dos mais velhos contada para os mais novos, dos mais novos
contada para os mais jovens.

245
Idem.
103

Assim ela é passada, por cada geração. Esta história nunca morrerá.246

Também nessa história não se estabelece uma relação entre o nome Krenak e o líder
do povo. Em comum, há o fato de o não índio ter ouvido kren no nak e nomeado, na primeira
história os índios, e na segunda a estação de trem, lembrando que, no trecho da ferrovia que
corta a aldeia, há uma estação de nome Krenak. É importante frisar que o nome foi dado pelos
brancos, sendo Borum a autodenominação – uma identidade comum a todos os índios Krenak,
ainda hoje, descendentes ou não do “capitão”. Ser Borum está além das divisões já
apresentadas, divisões que, segundo o Sr. João foram criadas por sabedoria do índio.
Perguntamos também para Maria Helena Cecílio Damaceno sobre a divisão entre os
subgrupos:
É da divisão que quer saber? A divisão, eles são todos é Krenak. No
começo do nosso povo, nosso povo não era conhecido como Krenak, nosso
povo era conhecido como Botocudo. Ai quando chegava os fazendeiros pra
tomar terra, naquela época já tinha matado vários índios, né? Mataram
muitos índios, então se tornou pouquinhas pessoas. Ai, falou assim: “Pra
não tomar todas as terras que nós tem, tentaram matar nós, nós vai dividir
em grupo”. Só que ai eles foram pra, pra bem assim distanciado um do
outro pra segurar aquela terra, no meio vamos dividir em grupo. Você fica
aqui, outro fica ali. Era bem pouquinho, já era bem pouquinho, tinha outro
pouquinho ali. Ai os fazendeiros chegaram para tomar as terras deles, ai eles
quando os fazendeiros chegarem pra tomar a terra pergunta: “Tem muito
índio ai? Vocês fala tem bastante índio. Você é que grupo? Sou Nakreré. E
você? Sou Minagirum. E você? Butkrak. E você? Krenak.” Então, cada
parte montou, mas todos Botocudos, né? Ai foi que, foi que, foi assim. Foi
que, ai que quando eles chegaram sai um índio pra fora: “Tem muito índio
ai? Tem. Que tribo que você é?”, eles falavam.247

Se a categoria Krenak, nas terras originárias, passa pela genealogia, dando espaço para
diferenciações entre os descendentes ou não do líder Krenak, em Vanuíre, a mesma categoria
é assumida de forma coesa, fechada. Todos os nascidos em Minas, seus filhos, netos, são
todos Krenak. Ou, pelo menos, todos podem manifestar essa identidade.248 O contraste, nesse
caso, é vivido em relação à outra identidade – a Kaingang.
Segundo, Manuela Carneiro da Cunha:
A cultura original de um grupo étnico na diáspora ou em situações de

246
Conne Panda- ríthioc Krenak: coisa tudo na língua Krenak. Belo Horizonte/ Brasília: SEE/MG/ MEC-
Unesco. 1997, p.13.
247
Entrevista concedida dia 18/10/2008
248
Desenvolverei essa idéia no desenrolar do presente capítulo.
104

intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire


uma nova função, essencial e que se acrescenta ás outras, enquanto se
torna cultura de contraste. Este novo princípio que a subtende, a do
contraste, determina vários processos. A cultura tende ao menos
tempo a se acentuar, tornando-se mais visível, e a simplificar e
enrijecer, reduzindo-se a um número de traços que se tornam
diacríticos.”249

A diáspora, nesse caso, não só foi capaz de reafirmar a identidade em contraste com a
Kaingang, mas possibilitou a manutenção de traços diacríticos que os favorecessem. No lugar
da genealogia, foi valorizada a língua, o panteão religioso, a dança; traços bastante similares
entre todos os subgrupos Borum. Como já dissemos, a origem é um grande referencial, as
viagens são constantes e, mesmo aqueles que nunca estiveram em Minas, falam do Watu, do
Rio Eme, dos Sete Salões, comprovando o seu pertencimento.
Sabemos que, inicialmente, a manifestação da identidade Krenak em Vanuíre gerava
conflitos. Estavam em uma terra que não a sua de origem e foram vistos pelos Kaingang como
“intrusos”, os de “fora”. O casamento fora evitado, estereótipos depreciativos foram criados,
dificultando a união. Além disso, o medo de que os Krenak retornassem às suas terras
“originárias”, levando a esposa Kaingang, fez com que os pais fossem contrários aos enlaces.
Ouvimos de uma Kaingang, casada com Krenak, que os pais não concordavam com o
casamento; diziam que quando viam os filhos namorando um não índio sabiam que eles iriam
embora, mas era mais difícil ainda ver os filhos casando com índio e, mesmo assim, morando
fora da aldeia. Mas, os matrimônios aconteceram, o que fez amenizar as diferenças e dar
início a uma geração denominada de “misturados”, tendo uma grande parte dos moradores de
Vanuíre nascido desse tipo de união.
A união interétnica é vista hoje como ideal, não importa se descendem de grupos
diferentes, “se tem sangue de índio é tudo índio”. Isso assegura o direito à terra e mantém os
não índios fora da aldeia. Em razão dessa preocupação, casamentos entre índios e não índios
obriga o casal a viver fora do Posto Indígena. Há alguns anos, tal restrição afetava apenas as
mulheres. Hoje, qualquer casamento nessas condições, resulta na saída do índio, independente
do sexo. A razão nos é explicada por uma índia casada com não índio que permaneceu na
aldeia:

249
CUNHA, Manuela Carneiro da (org). Etnicidade: da cultura residual mas irredutível. In: Antropologia do Brasil:
mito, história, etnicidade. São Paulo: Ed, Brasiliense, 1986, p. 99.
105

Eles sempre falavam que não podia, que branco não podia ficar na aldeia.
Porque eles têm medo, assim porque eles fala que branco é um pouco
ambicioso, vai querer muita roça, a mais, né? Mais do que eles têm direito.
Mais assim, eu ficava chateada com isso, mais agora não.250

Devido à restrição, os moradores de Vanuíre buscam um parceiro índio, não


importando, como já dissemos, a etnia à qual pertença o pretendente. As relações
matrimoniais se estabelecem, inclusive, entre os dois Postos, Vanuíre e Krenak, sendo
possível que índios Kaingang busquem esposas no P.I Krenak, enquanto índios Krenak
encontrem esposas em Vanuíre. Durante nossa viagem ao P.I Krenak, conhecemos duas
jovens, nascidas em Vanuíre, que passaram a viver em Minas Gerais depois de se casarem.
Uma delas se casou com o primo, filho da irmã de sua mãe. Norma, mãe de Nayara, que tem
outro filho também casado com uma sobrinha. Quando falávamos sobre casamento, Norma
fez o seguinte comentário:

N: Eles, é... eles falava assim, aqui o chefe da FUNAI sempre deu conselho
pros índios não mistura senão ia acabar, ia acabando a raça, né? O interesse
deles é índio com índio. Hoje eu sei como é importante, tem que se casá
mesmo porque tá acabando. Hoje meus filhos tudo são casados com índio,
eles tem filhos...eles são legítimo mesmo. Eu tenho uma filha, meus filhos
eles se interessaram pra parente, né? Primo.
P: Não há problema serem primos?
N: Não, eles antigamente falava que saia defeituoso, mas graças a Deus, não
saiu não. Eles fala que não pode misturar parente com parente que nasce
defeituoso, mas graças a Deus tá tudo perfeito.251

Essa índia se casou com um não índio, tendo que morar fora da aldeia. Mas foi feito
um acordo de que o casal ficaria enquanto seu pai, que já estava bastante doente, estivesse
vivo. Fora da aldeia ela foi morar em outro Estado, vivendo com dificuldades:

Um lugar onde pra tudo precisa ter dinheiro. É era duro, hein (risadas).
Tudo que coisa é comprado. Aqui não, a gente planta, algum vizinho dá, e
lá não. Não dá nada de graça, a vida é mais difícil.252

250
Entrevista concedida pela Senhora Norma Barbosa. 20/07/08
251
Ibidem.
252
Ib.
106

De uma forma geral, os índios sabem das dificuldades que encontram fora da aldeia,
vista como um lugar seguro e, para manter o controle sobre ela, é ideal que se casem entre si.
O sistema de parentesco de ambas as etnias foi se adaptando às condições reais de vida. Sobre
o sistema de parentesco dos índios Krenak, lemos:

As regras de interdição de casamento c.f Manizer (1919) compreendiam os


seguintes parentes: mãe, viúvas, muito idosas, filhas, irmãs, sobrinhas e
noras. De acordo com estes pressupostos consideramos que o casamento
preferencial era entre primos, já que os tios não podiam casar com suas
sobrinhas que eram noras em potencial ou que pertenciam a mesma
linhagem. Verificamos alguns dados acerca dos termos de referência,
podemos levantar a hipótese segundo a qual somente os casamentos entre
primos cruzados bilaterais eram permitidos. O irmão do pai e os filhos do
irmão do pai recebiam a mesma designação, assim como a filha da irmã do
pai ou a filha do irmão da mãe e a mulher do filho
(...) Podemos inferir através do diagrama que os arranjos permitidos entre
os parentes provavelmente baseavam-se na contração de casamentos entre
primos, exceto entre os primos paralelos bilaterais, que, segundo a
terminologia de parentesco do grupo, consideravam--se irmãos entre si,
recaindo, portanto, sob estes últimos a interdição de casamentos.253

As remoções, o convívio com outras etnias, fez com que os modelos de união
praticados pelos “parentes” mais antigos fossem sendo modificadas. Tais mudanças, vêm de
longa data, já que, em vários momentos de sua trajetória, os Krenak foram obrigados a dividir
o mesmo espaço com outras etnias. Foram as condições de vida que determinaram as alianças
possíveis para a continuidade do grupo, como é o caso da situação vivida na Fazenda Guarani,
onde “casamentos interétnicos se efetivaram por três motivos: a ausência de homens em
idade núbil entre os Krenak, a proibição de casamentos entre primos de 1º grau e a
necessidade de contrair aliança com os Pataxó que, posteriormente, foram removidos para
este local”. 254
De acordo com Mellati, entre os antigos Kaingang as relações entre os primos não
eram aceitas. Mas a restrição recaia sobre os primos paralelos patrilaterais, sendo estes os
“primos irmãos”, enquanto que, entre os primos paralelos matrilaterais, o casamento era
permitido. Em 1971, quando ele visitou os Kaingang em Vanuíre os casamentos entre primos
paralelos patrilaterais já ocorriam. Naquela ocasião, a explicação dada para a antiga proibição

253
GUIMARÃES, Núbia Maria C. Op.cit., p. 51.
254
Ibidem, p. 58.
107

foi a mesma que obtivemos durante a nossa pesquisa: os filhos nasciam “defeituosos.” Quanto
ao casamento com outras etnias, em 1971, não havia “suficientes parceiros matrimônios
Kaingang nos Postos, mas, apesar disso, os pais não gostavam de casamentos interétnicos.
Contudo, tais casamentos ocorrem, mas sofrem sanções do grupo, dependendo do Posto. Em
Vanuíre nenhum outro grupo indígena é considerado ideal para os Kaingang.”255
Das uniões entre Krenak e Kaingang, nasceram os “misturados”. Esse é um discurso
frequente em Vanuíre, que coloca os Krenak em uma posição confortável. Ainda que aquelas
não sejam as suas terras de origem, acabaram se misturando aos Kaingang. Quem não nasceu
dessa união, tem filhos que nasceram, ou seja, estabeleceram com os Kaingang laços
consanguíneos. Essa mistura também é dada pelos Krenak, como resposta ao fato de terem
permanecido na aldeia, de não terem feito o retorno, mesmo depois de reaverem as terras do
P.I Krenak. Os filhos, os companheiros ou companheiras nasceram em Vanuíre, não
desejando viver fora dali. Os Krenak em geral, manifestam a vontade do retorno, mas os laços
familiares os mantêm, como vemos abaixo:

Eu tenho vontade de morar lá, mas a criançada não quer ir porque não tem
serviço. Não tem serviço, que eles gosta de trabalhar. Lá tem é peixe.
Tenho vontade de ir embora pra lá, mas não vai porque não tem
256
serviço.

Os filhos de Dona Gracina são Krenak “puro” como dizem, filho de pai e mãe Krenak.
Mas vivem em Vanuíre, alguns se casaram com Kaingang tendo filhos “misturados.” Além da
falta de trabalho, durante nossa conversa, Dona Gracina enumerou outras dificuldades: a falta
de moradia já que os fazendeiros ao se retirarem da área destruíram as casas , e o “costume”
dos filhos e netos, em Vanuíre.
A identidade em Vanuíre é fluída. Aos “misturados” é possível manifestar uma ou
outra identidade conforme as circunstâncias. Os Kaingang são os donos das terras onde estão,
enquanto Krenak têm a possibilidade de mudarem para Minas Gerais, sendo também donos
daquelas terras. Sobre uma conversa com um Kaingang de Vanuíre casado com uma Krenak,
Guimarães escreve:

255
MELATTI, Delvair M. Aspectos da organização Social dos Kaingang paulistas. FUNAI, 1976, p. 47.
256
Entrevista concedida pela senhora Gracina Umbelina. 20/10/08
108

Compreendemos, portanto, por que motivo os Krenak ultimamente dão


demasiada importância á manutenção de sua identidade étnica. Com a
intenção de estender o direito á terra para os filhos, os pais, simplesmente,
afirmam que todas as crianças pertencem ao grupo Krenak, independendo
da etnia de um dos pais, bastando que apenas um seja Krenak. Segundo
Cláudio Cutuí (Traíra), índio Kaingang, casado com uma índia Krenak, os
seus filhos são Krenak porque estão em terra deste grupo. (...) Os Krenak
podem assumir, inclusive, uma dupla etnia conforme as circunstâncias. O
índio Cláudio Cutuí afirma que seus filhos são considerados Kaingang no
P.I Vanuíre, porque estão na “reserva dos Kaingang” (debochadamente, este
índio disse que seus filhos seriam “Kainkren”, uma mistura de Kaingang
com Krenak).257

Essa identidade, manifestada de acordo com a terra em que estão, é ainda motivo de
discussão, mesmo entre as duas índias Krenak mais antigas de Vanuíre. Em uma conversa
informal que tive com Dona Jovelina,258 a matriarca dos Damaceno, ela me contou que Dona
Gracina acha que crianças nascidas em Vanuíre são Kaingang, assim como eles são Krenak
por que vieram de Minas Gerais. Perguntei a ela o que achava, riu e me disse que não sabia.
As identidades hoje assumidas estão longe de ser uma questão apenas do que esta ou
aquela identidade possibilita. Conhecemos “misturados” que assumiram a identidade Krenak,
mesmo vivendo em Vanuíre, sendo taxativos ao afirmar apenas uma delas. Nesses casos, as
relações familiares determinaram a escolha, optaram por ser da etnia daqueles que
efetivamente os criaram, enquanto outros assumem a dupla identidade: são Krenak e são
Kaingang ao mesmo tempo, embora assumam identificar-se mais com uma identidade do que
com a outra, como é o caso de Norma:

N: Eu falo assim, minha mãe é Krenak, meu pai é Kaingang. Agora eu não
sei.
Eu tenho mais participação com os Krenak, porque nós tem nossa cultura,
eu faço a cultura dos Krenak, meus filhos também. Eu entendo mais o
idioma da minha mãe. Então, é mais assim Krenak. Eu me dou muito bem
com as minhas irmãs que é mais Krenak, é Krenak, né?
P: O seu pai contava histórias daqui?
N: Não, meu pai era mais fechadão. Meu pai era assim, igual eu falo assim,
apesar de eu morar muito tempo aqui eu nem sei história, eles fala dessa
índia Vanuíre, eu num sei a história. Se você for perguntar a história de
Vanuíre eu não sei contar porque eu nunca ouvi falar.
P: E dos Krenak você conhece mais.

257
GUIMARÃES, Núbia Maria C. Op.cit., p. 69.
258
De acordo com o documento de registro a senhora Jovelina tem 81 anos, mas ela diz que já era grande foi
registrada.
109

N: È, eu sou mais participante dos Krenak, que minha mãe conta, conta
dos rios.259

Norma diz que as irmãs são “mais Krenak”, pois, diferente delas ela nasceu em
Vanuíre, sendo filha de um Kaingang. A característica que Norma atribuiu ao pai foi a mesma
utilizada por outros filhos de Kaingang, para definir os seus progenitores, justificando, dessa
maneira, o pouco conhecimento que têm sobre a cultura Kaingang. A diferença entre
Kaingang e Krenak, sendo o último mais atuante, mais falante, mais inquieto, tem levado a
uma geração de índios que se definem Krenak, mesmo filhos de pai ou mãe Kaingang, ou, em
casos extremos, de filhos de pai e mãe Kaingang.
Logo que chegamos na área, ainda em 2005, a primeira resposta que obtivemos em
relação à opção étnica, foi a de que era uma questão de escolha, que a criança optava por
aquela com que mais se identificava, simples assim. Hoje, sabemos que a escolha envolve
questões muito mais complexas, mas, assim como me disseram ainda na primeira visita, as
crianças fazem suas escolhas que nem sempre agradam os pais. Um dos filhos da Kaingang
Luzia Conechú, também casada com um Kaingang, se define Krenak.
Em um dos ensaios da dança Krenak que presenciei, esse jovem era um dos mais
disciplinados. A mãe me disse que ele não se interessa pela cultura Kaingang, mas ela gostaria
de vê-lo aprender a falar o idioma de seu povo. Luzia reafirma a identidade Kaingang do filho
dizendo ser ele descendente do valente chefe dos Kaingang, Iacri. A irmã de Luzia, casada
com o Krenak Mário, nos disse que os filhos também se definem como Krenak. Os filhos se
interessam bastante pelo idioma Krenak, sendo o pai um professor deste idioma. Ela sente não
ter aprendido o idioma do pai, não podendo auxiliar os filhos, quando os mesmos trazem
atividades escolares que tenham como conteúdo a língua Kaingang: “Naquela época não
perguntava agora a gente quer saber.”
O fortalecimento da cultura Krenak, (tendo principais líderes João Batista, Maria
Helena e Mario Tepó)260 tem despertado os Kaingang quanto à importância de manter práticas
culturais, mas, ainda se mostram pouco engajados neste propósito.261 São comuns
comentários do gênero “Os Kaingang vão acabar”. Ouvi de uma senhora “misturada” que se

259
Norma Barbosa. 20/07/2008
260
Os índios reconhecem essa liderança, sempre que falam da “cultura” citam esses nomes.
261
Reitero que quando falamos de cultura, usamos do significado dado pelos próprios índios. Cultura é a dança,
os cânticos, o artesanato, o idioma. São todos traços diacríticos que os distingui dos demais.
110

define como Kaingang, o seguinte comentário: “Vou levar meu conhecimento comigo, meu
idioma e meus cânticos eu levo comigo. Não dou dez anos para os Kaingang acabar.”262
Sobre a manifestação das identidades Krenak e Kaingang na aldeia Vanuíre, Cruz tece
o seguinte comentário:

(...) considero a forte influência dos Krenak no processo de reafirmação


étnica Kaingang. Os Krenak tiveram reconhecimento pelos regionais e os
Kaingang perceberam o que estava em jogo, não deixar se apagar, frente a
um outro que estava se sobressaindo em detrimento de seu apagamento.263

Quanto ao reconhecimento dos regionais, pudemos notar, conversando com jovens da


cidade de Arco-Ìris, que alguns disseram saber apenas da existência dos índios Krenak,
mostrando-se surpresos quando falamos da existência de outras etnias na área. Cruz, fala em
“despertar para a exaltação da identidade Kaingang”, mas, ao mesmo tempo, afirma que os
Kaingang estão pouco organizados para esse despertar. Além do idioma ensinado na escola,
não há outra atividade prática que manifeste a cultura Kaingang. Já houve na aldeia um grupo
de dança Kaingang, mas hoje não há ninguém dirigindo a dança. Soube de uma senhora que
estava ensinando as crianças, mas algumas mães “crentes” temiam a influência desta senhora
que segue outra religião e, por essa razão, proibiram seus filhos de participarem da atividade.
Enquanto isso, crianças descendentes ou não dos índios Krenak participam,
semanalmente, dos ensaios da dança Krenak. A dança é entoada pelos cânticos, o que
aproxima as crianças também do idioma Krenak. Esses ensaios intensificam-se próximo ao
mês de abril, quando se comemora o Dia do Índio, aumentando os convites para se
apresentarem fora da aldeia. Para a apresentação, é pedido um quilo de alimento por pessoa,
dividindo o alimento conseguido, entre todos os participantes da dança. Fazem viagens para
fora de Arco-Ìris, basta que lhes disponibilizem o transporte. Em outubro de 2008,
apresentaram-se em São Paulo, durante a formatura dos professores indígenas, chegando a
passar a apresentação no Jornal Nacional. Aparecerem pintados, cantando no idioma indígena
que, além de demarcar as diferenças entre índios e não índios, tem feito com que voltem a se
identificar como índios, sem o medo vivido pelos mais antigos. Esse fortalecimento da cultura
Krenak explica a opção das crianças pela identidade Krenak, nesse caso, intimamente ligada à
262
Entrevista feita sem o uso do gravador. 22/07/2007
263
CRUZ, Leonardo de Oliveira. O “SER” E O “ESTAR” ÍNDIO: Produção de identidades entre Kaingang e
Krenak, em Vanuíre. Dissertação de Mestrado. Unesp, Marília, 2007, p. 113.
111

cultura que vivenciam com mais intensidade.


Perguntei a uma jovem Krenak264 casada com um índio Kaingang sobre a
identidade de suas filhas, e ela me respondeu da seguinte maneira:

E: Elas falam que são Krenak. Ai teve um moço que veio fazer um trabalho
aqui e perguntou: “ Vocês são Krenak ou Kaingang? Ai meu esposo falou:
Eu sou Kaingang. E a sua esposa é Krenak. Mas o que que eu coloco?
Coloca os dois porque nóis, minhas filhas são parte dos dois. Então são
Krenak e Kaingang, não tem como você dividir ela no meio pra falar que só
elas são Krenak ou Kaingang. Então tem que colocar os dois.” Ai ficou
assim, Krenak e Kaingang.
P: Mas elas escolhem?
E: Elas escolhem, elas falam que são Krenak, mesmo o pai delas ser
Kaingang, elas falam que são Krenak.
P: Por que você acha que isso acontece?
E: Eu acho assim, como são jovens, agora é muito assim, rivalidade entre
eles, porque eles fala assim: “Eu não gosto do Kaingang.” Porque eles
acham a dança deles mais feia, o jeito de falar mais esquisito. Então, eles já
preferem o Krenak, mais simples, mais sei lá, prefere mais o Krenak que o
Kaingang.
P: Então entre as crianças tem essa rivalidade?
E: Tem, tem essa, eles já preferem mais, porque o nosso meio tem o
Kaingang, tinha um Kaingang que dança no nosso meio, era um Kaingang
puro, ele não vai dançar com os Kaingang, junto com os Krenak, a mãe não
gosta.

Como vimos, não agrada ao pai Kaingang que as filhas manifestem uma identidade
única. As crianças, diferentes dos adultos, não veem os benefícios da categoria “misturados”,
mas são instruídas pelos pais, como nos pareceu ser o caso deste Krenak casado com uma
índia Kaingang:

Teve um dia que a velha Z265, ali, né? Ah, eu não vou mentir, ela não gosta
do Krenak. A minha menina tava aqui, ai ela perguntou assim, o que que era
ela: “Você é o que Krenak ou Kaingang?” Ela falou sou os dois. Matou
numa paulada só. Krenak e Kaingang. Divide Krenak e Kaingang.

Durante nossa conversa a menina estava presente, perguntei a ela sobre a dança, tendo
o pai me respondido antes:

264
A jovem é filha de pai Kaingang e mãe Krenak, mas se define Krenak.
265
Identificação fictícia.
112

Ela dança. Ela dança Krenak, mais os Krenak. Porque o grupo dos
Kaingang quase não tem, tá fraco. Vai mais na Lia dançar lá. Elas gosta de
dança o Krenak. Acha que são mais bonito, né? (Risadas).

Os matrimônios foram essenciais para a construção da relação entre índios Krenak e


Kaingang. As relações de parentesco fizeram com que os Krenak também criassem raízes,
nessa terra distante do Watu. Os filhos gerados dessa união, os chamados “misturados”, têm
assegurado o direito à terra. E, por meio dos filhos, os Krenak deixaram de ser, em certa
medida, os de “fora”. No entanto, como vimos, as diferenças entre as etnias não
desapareceram, a manutenção das filiações comprovam tal afirmação. Ser Krenak ou ser
Kaingang, em Vanuíre, carrega um conjunto de características, práticas comportamentais,
identificadas com este ou aquele grupo: “Krenak trabalha muito, já Kaingang não quebra um
ovo”, nos respondeu uma Krenak ao falar das diferenças entre as etnias. Para além destes
estereótipos, alguns já cristalizados pelo tempo, as identidades são fluídas, enquanto
“misturados” podem ora manifestar uma, ora a outra identidade, que está também muito
ligada à vivência das práticas culturais, sendo capazes de “produzir” Krenak filhos de pais
Kaingang.
No limite, podemos dizer que em Vanuíre os Krenak puderam “reinventar” o “ser”
Krenak, abandonando naquele espaço, afiliações a subgrupos que não valorizavam a todos.
Com a fixação em Vanuíre, eles puderam selecionar sinais diacríticos que reafirmassem a sua
identidade. Claro que esse “ser” Krenak bebe nos rios mineiros, o retorno é constante às terras
de origem; é de lá que vêm as referências, as energias para que continuem a luta. E, ouvindo
os Kaingang dizer que deveriam ter perguntado, e ter se interessado mais pela cultura dos pais
que já se foram, percebemos que, se Vanuíre deu condições para o “reinventar” do “ser”
Krenak, a presença deles contribuiu para o “despertar” da identidade Kaingang.
113

Capítulo 3: A inserção da Congregação Cristã do Brasil na aldeia Vanuíre

(...) essa é uma bandeira que Deus levantou na


nossa vida, o cartão postal da aldeia. É...muitos
falam que ela é um cartão postal. E é verdade é
muito bonita, muito bonita.

Foto: Garcia, Renata de Campos. 2006


114

A identidade religiosa em Vanuíre

Vários são os laços de matrimônio que unem Krenak e Kaingang, na área indígena
Vanuíre, mas tais casamentos antes eram evitados;266 a diferença étnica imperava, ainda que
partilhassem o mesmo espaço geográfico. Hoje, existe uma outra identidade que foi capaz de
estabelecer novas redes de convivência – a identidade religiosa. Krenak e Kaingang,
convertidos, assumem a identidade de “irmãos,” sobressaindo-se a identidade religiosa, em
relação à étnica. No entanto, de acordo com Leonardo Cruz,267 a identidade religiosa também
foi causa de uma divisão, entre os índios de mesma pertença étnica. Os índios se definem
como Kaingang e “crentes”, abrindo, dessa maneira, um diferencial entre Kaingang e
Kaingang “crente”.
Os Kaingang católicos reclamavam que os Kaingang “crentes” não se preocupam com
a identidade Kaingang, cujo descontentamento, por vezes, está relacionado ao abandono de
práticas que os Kaingang católicos entendem como parte de sua cultura. Tivemos a
oportunidade, também, de observar a aproximação desses convertidos ao grupo Krenak. A
maioria dos Kaingang convertidos tem alguma ligação de parentesco com os Krenak, além do
fato de índios Krenak, envolvidos com a dança, e com as apresentações culturais,
desempenharem papéis centrais também nas atividades religiosas, de maneira, que os
Kaingang convertidos acabaram se aproximando do idioma Krenak, trazendo os filhos à
dança, ou seja, compartilhando desse universo.
O trabalho da antropóloga Delvair Mellati268, realizado em 1970, período em que as
famílias Krenak, hoje residentes em Vanuíre, já moravam naquele espaço, nos informa quanto
às relações interétnicas e as influências religiosas existentes na área. Naquele momento, os
Kaingang se diziam católicos, indo mensalmente à missa. Não havia “crentes” na área, mas
existiam pessoas que assistiam a cultos protestantes, assim como a reuniões espíritas,
chamadas de “macumba”.269 Mesmo frequentando diferentes crenças religiosas, diziam-se
católicos, chegando a mostrar-se ofendidos quanto questionados se eram “crentes”. As missas
eram assistidas no Bairro de Ponte Alta, a uns vinte minutos da sede do posto. Lá era

266
Falamos das sanções sofridas nos casamentos interétnicos no capítulo 2, lembrando que, embora tenham sido
evitados, não foram proibidos.
267
CRUZ, Leonardo de Oliveira. Op. cit.
268
MELATTI, Delvair M. Op.cit.
269
A autora não nos informa onde eles assistiam aos cultos protestantes e as reuniões espíritas.
115

celebrada uma missa, no segundo domingo de cada mês, reunindo índios e não índios, embora
a divisão espacial entre eles tenha sido notada pela pesquisadora. O contato entre os padres e
os índios se restringia à duração da missa, pois, terminada a celebração, os padres seguiam,
rapidamente, para outra paróquia. Aproximadamente uns sete ou oito anos antes da visita da
antropóloga, os padres haviam visitado a aldeia, com o intuito de atrair os índios. Além de
acompanharem as missas, os índios também realizavam seus casamentos e batizados na Igreja
Católica. Os certificados exigidos pela Igreja, antes das cerimônias, obrigava-os a
frequentarem-na por um tempo maior, já que era exigida a participação num “cursinho” com
a duração de três meses.270
Em Icatu, uma índia disse à pesquisadora que as “civilizadas” pediam a elas, índias,
que batizassem as crianças para que não ficassem pagãs. Nesse lugar, as índias não souberam
definir o que significava ser pagão; já “em Vanuíre disseram: o pagão não é batizado e
quando morre vira lobisomem, anda toda a noite, incomodando as pessoas que encontra e
mexe nas casas. É o Véincuprin e este não vai para o céu. Batizando a criança, o Véincuprin
não aparece para ninguém, fica no céu.”271 Véincuprin eram espíritos que habitavam outra
esfera, e a alma do morto visitaria a terra com as mesmas características físicas da pessoa já
falecida. Sobre ele escreveu Nimuendaju:

No momento da morte do indivíduo, a alma (vaekupri) entra no chão


imediatamente ao lado do lugar da morte, e começa a sua viagem. Para ensinar
o caminho canta-se muito junto ao cadáver. De primeiro a alma passa por um
caminho escuro, mas logo sai outra vez no claro e encontra um toldo onde
alguns defuntos lhe oferecem comida. Se ele come ele tem de continuar a
viagem, se não ele volta para a sua casa, e assim se explica os casos de
pessoas, que já pareciam mortas, voltarem a si. (...) Muitas vezes, porém,
levam o cadáver ainda quente, arrastando ele em cima da casca de pau que lhe
serve de cama, e às vezes tem acontecido até que o moribundo chegou ainda
vivo no cemitério. Limpam bem a casa e dançam dentro dela, para a alma não
voltar, porque especialmente se o morto era casado, o perigo é grande que ele
volte para buscar a mulher ou qualquer outro parente ou conhecido. Para evitar
isto os que tomaram parte da cerimônia se lavam com um cozimento de folhas
que os Kamé tiram de uma planta por nome Xakrinkí e os Kañeru de uma
outra que se chama Kofé.272

270
Essa é uma prática da Igreja Católica, antes de um batizado ou casamento os envolvidos freqüentam esses
“cursinhos” para compreenderem a importância da celebração.
271
MELATTI, Delvair M. Op.cit., p. 138.
272
NIMUENDAJU apud CRUZ, Leonardo de Oliveira. Op.cit., p.47.
116

Melatti afirma que as antigas crenças dos Kaingang estavam mais presentes que o
catolicismo; a crença no sobrenatural era uma das poucas esferas que haviam sofrido
pequenas alterações. Mais interessante, porém, do que perceber o quanto o conjunto de
crenças sobreviveu a essa nova inserção, é perceber como os índios articulam novas práticas e
concepções partindo de uma ótica própria. No caso citado, os índios fizeram uso de um ritual
simbólico cristão. O batismo ofereceu-lhes a solução para a entrada indesejada dos
Véincuprin no mundo dos vivos, pois, uma vez batizado, o Véincuprin não voltaria à Terra. O
catolicismo forneceu a saída para um problema anterior à sua chegada.
Os índios também frequentavam as festas de Santo, quermesse e procissão. Segundo a
autora, mais do que a busca espiritual, o que os atraía era a oportunidade de divertimento e
sociabilidade. Essas festas de Santo também ocorriam na própria aldeia “algumas famílias de
mestiços Krenak, Pankararú, Aticum e Fulniô fazem fogueira no dia de São João, Santo
Antonio e São Pedro, porque são “santos de seus nomes”.273 O terço era outra atividade
religiosa vivida por eles, tendo sido primeiro rezado por uma “civilizada” e por um índio
Aticum, depois passou a ser puxado pela mestiça Maura e a Kaingang Jacira. Os não indios
também compareciam e, terminada a reza, todos confraternizavam, com pão e café, servidos
pela dona da casa em que fora rezado o terço.
A autora não nos informa quanto ao grau de participação dos índios Kaingang nas
atividades religiosas em relação às outras etnias, mas a leitura atenta do corpo do texto nos
permite algumas considerações. Primeiro, a autora afirma existir uma pequena parcela entre
os Kaingang mais resistentes em relação à Igreja, os quais, por vergonha ou por não saberem
rezar, não freqüentavam as missas. Em relação à reza do terço, lemos: “Quando os regionais
“tiram” o terço, de dia ou de noite, certos Kaingang comparecem à reza.”274 Os terços
ocorriam com uma certa frequência na aldeia, mas com o dito acima, parece que os Kaingang,
em sua maioria, não aderiam a essas reuniões, enquanto alguns deles as frequentavam apenas
quando havia a presença de não índios.
No calendário cristão, são vários os feriados religiosos, o costume de “guardar” dias
santos ficou registrado pelos chefes de posto, nos chamados diários, em um período anterior
ao observado pela pesquisadora. Na leitura do diário referente ao ano de 1952, observamos

273
MELATTI, Delvair M. Op.cit., p.140.
274
Ibidem, p. 141.
117

que nos dias 10 e 11 de abril, 12 de junho, 15 de agosto e 8 de setembro, os índios tiveram os


trabalhos suspensos em razão de as datas serem santificadas. Dia 11 de abril foi uma Sexta-
feira Santa, 12 de junho é véspera do dia de Santo Antônio, 15 de agosto, o dia de Assunção
de Nossa Senhora. Não encontramos, no entanto, uma correspondência para o dia 8 de
setembro com o calendário cristão. Referente ao ano de 1944, lê-se:
Nenhum índio trabalhou por ser dia de São João. Não houve troca de fubá no
moinho, em virtude do mesmo se achar em concerto, tendo sido recebido
milho para transformação. Curou-se 3 bezerros, 1 novilho e diversos carneiros
doentes dos cascos.”275

Sabemos que o encarregado era obrigado a prestar contas à Inspetoria, os diários de


posto correspondem a essa necessidade. Os diários deveriam apresentar ao seu superior todas
as atividades que vinha desenvolvendo junto aos índios no posto. Vemos que, nesse caso, ele
registra a ausência, a suspensão das atividades. Mas há uma justificativa, os índios “pararam”
por ser um dia santo. Isso mostra ao seu superior que os índios adotavam práticas comuns aos
“civilizados”, atendendo, assim, a um dos objetivos do SPI, de inseri-los na sociedade
brasileira.
Lemos:
Nenhum índio trabalhou, alegando ser esta data santificada, indo parte deles
a pesca e outros a caça.”276

A religião católica foi incentivada por funcionários do SPI e suas esposas. Quando
Mellati esteve na área (1971), era a esposa do chefe de posto que ajudava os índios a
decorarem as rezas. Mas, na leitura dos diários, parece-nos que os índios se apropriaram de
um costume católico, que é o de guardar dias santos, expandindo-o para além das datas já
estipuladas.
É um hábito cristão rezar pelos mortos. Desde o século V, a Igreja Católica dedica um
dia do ano em especial para que esse ritual aconteça. Encontramos também nos diários, a sua
reprodução:

Foi hasteada a Bandeira Nacional, havendo romaria á tumba onde se


encontram os despojos dos Caingangues mortos, áto êste que despertou

275
Diário de Posto. Vanuíre. 24/07/ 1944.
276
Diários de Posto. Vanuíre. 3/05/ 1944.
118

muita admiração da população visinha, que declarou ser este o primeiro ano
em que se fez visita ao referido cemitério, onde, além de inúmeras flores
naturais, foram também depositadas diversas corôas, bem como cruzes de
madeira, tendo tomado parte no ato a auxiliar de ensino deste P.I e a quase
totalidade dos índios, que reunidos nêste posto ás 12 horas, partiram logo
depois, formando um conjunto bem numeroso. Com essa simples, mas
sincera demonstração cívico-religiosa, os pacíficos Caingangs deram prova
evidente de que a cenda dos civilizados também é o seu caminho.”277

O mesmo ritual foi praticado no ano seguinte:

Em comemoração aos mortos, foram colocadas no cemitério deste Posto,


diversas cruzes de madeira e coroas de flores artificiais feitas pelos índios.
Choveu durante quase todo dia. Foi aplicada uma injeção de Novosan na
índia Parané.”278

Os trechos em relação ao dia 2 de novembro mostram a apropriação de uma prática


católica, que é a visitação dos túmulos, em uma data já determinada e o uso de um símbolo
central que é a cruz. Mas também fica evidente a postura do órgão indigenista ou, pelo menos,
daqueles que serviam a ele, na utilização da religião como um meio facilitador do processo de
“civilização” a que deveriam submeter-se os indígenas. Havia, como já dissemos, todo um
empenho dos funcionários em aproximar os índios do universo dos não índios, sendo cobrado
um conjunto de práticas e comportamentos, como vimos acima.
Hoje, além da Congregação Cristã do Brasil, em que a maioria são “irmãos” da etnia
279
Krenak , existe ainda o templo da Assembléia de Deus, freqüentado, em sua maioria, pelos
índios Terena. Os que se dizem católicos são, em grande parte, índios Kaingang, que fazem
maior oposição ao pentecostalismo na área. Não pretendemos nos ocupar aqui dos não
convertidos, mas traçar alguns comentários se faz necessário, uma vez que são eles, os índios
Kaingang, que estabelecem fortes relações com os Krenak. Vimos que, há muito tempo,
hábitos católicos são vivenciados na aldeia Vanuíre, pelos Kaingang e índios de outras etnias
que já viviam na área.
Mas, segundo Mellati, havia entre os Kaingang um grupo resistente às práticas
católicas, embora a grande maioria assumisse essa identidade, a mesma identidade católica
assumida pelos Kaingang que se opõem aos “crentes”, nos dias de hoje. A defesa do

277
Diários de Posto. Vanuíre. 2/11/ 1943.
278
Diários de Posto. Vanuíre. 2/11/ 1944.
279
Incluindo nesta categoria “os misturados”, filhos de Krenak com Kaingang.
119

catolicismo pelos índios Kaingang não é uma realidade observada apenas na aldeia Vanuíre.
A pesquisadora, Juracilda Veiga280, nos mostra que Kaingang localizados em Estados
diferentes “afirmam que sua primeira religião foi a católica. Isso se explica pelo fato de os
padres nunca terem considerado religião as relações indígenas com o sagrado”. Mas é um
catolicismo Kaingang, uma adaptação dos ritos católicos partindo de uma ótica própria. Por
isso, a permanência assume o papel de mantenedor da “tradição”, diferente dos convertidos,
os índios católicos continuam a realizar o batismo dos filhos, dar-lhes nomes indígenas,
realizar festas, entre outros costumes.
A dualidade existente na sociedade Kaingang foi apontada por nomes como
Nimuendaju, Baldus, Horta Barbosa. E, de acordo com Sergio Baptista da Silva, essa divisão
não diz respeito apenas às metades exogâmicas e patrilineares; o Kaingang pensa todo o
universo de maneira dual. “Todos os seres, objetos e fenômeno naturais são divididos em duas
categorias cosmológicas, uma ligada ao gêmeo ancestral Kamé, e a outra vinculada ao gêmeo
ancestral Kainru.281 De acordo com Veiga, essa oposição que fazem os Kaingang entre
“católicos” e “crentes” tem suas raízes na sua própria cosmologia, correspondendo às
metades, a forma dual com que enxergam o universo. Também para ela, a ideia de que
qualquer indivíduo pode entrar em contato com o sagrado é estranha aos Kaingang, há para
eles a necessidade de alguém que faça essa mediação. A pregação das Igrejas quanto à
salvação da alma também não os agrada, eles não almejam ser espíritos; a ressurreição tem
que ser da alma, mas também do corpo.
O texto trabalha com a possibilidade de que as diferenças religiosas adotadas sejam
uma necessidade da continuidade das antigas divisões, costume Kaingang de se opor a alguma
coisa. É evidente que não esperamos transpor as considerações feitas aqui à realidade
Kaingang de Vanuíre; a própria autora toma o cuidado de alertar que cada comunidade está
inserida em contextos diferentes, influindo na sua cosmovisão e, consequentemente, nas suas
escolhas, além do fato de as relações estudadas por ela estarem focadas na dicotomia entre
Kaingang “crentes e “católicos” e não em uma área em que, além da divisão religiosa, existe a
étnica. Mas fica uma questão que talvez não possa ser por nós respondida: Os Kaingang

280
VEIGA, Juracilda. As Religiões Cristãs Entre os Kaingang: Mudança e Permanência. IN: Transformando os
deuses- Igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas no Brasil. Campinas:
Editora da Unicamp, vol II, 2004, p. 176.
281
SILVA, Sergio Baptista de. Dualismo e Cosmologia Kaingang: o Xamã e do domínio da Floresta. IN:
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 8, n. 18, p. 189-209, dezembro de 2002. p.190.
120

católicos se opõem ao simples ato de conversão? Aos Kaingang “crentes”? Ou aos Krenak
“crentes”?
Sabemos que a construção do templo na aldeia ocasionou rixas, discussões. Os Krenak
são vistos hoje como os grandes responsáveis pela construção da igreja na área indígena e
embora os maiores opositores sejam índios Kaingang, esta não é apenas uma questão étnica.
Alguns Kaingang se sentiram “invadidos” vendo os Krenak estarem à frente de decisões já
“que não são dali,” se opondo neste caso aos Krenak “crentes.” Mas também vimos Kaingang
se referirem aos seus irmãos consangüíneo como “Um crente lá”. Sobre esse conflito,
ouvimos:

P: Pra trazer a Igreja pra dentro da aldeia teve conflitos?


E: Teve, foi briga feia, ai eu nem sei se posso citar assim, só que nós sofreu
bastante, muita luta, era muita luta, muita provação, era, era... gente que
falava assim pra nós, se um dia, falava assim o primeiro tijolo que levanta
aqui eles iam quebrar e que a igreja e a aldeia ia virar um salão de baile. Foi
muita prova, muita prova, muita luta, nós choramos bastante, pra esse igreja
ser, tá aqui dentro da aldeia.

P: Com a Funai não teve problema?

E: Com a Funai não, só com os índios mesmo daqui da aldeia. Passamos


bastante prova, e falaram que nós era braço gordo, só... que só fica orando,
não sei pra esses crente tanto ora, falaram um monte assim pra nós. Mas
hoje não, graças a Deus ela tá em pé, não virou um salão de baile como
falaram, né? Graças a Deus tá ai, e tudo que Deus prometeu pra nós que
seria daqui de dentro, nós estamos vendo, cooperador de jovens, organista,
músico, nós tamo vendo, nós estamos vendo cumprir. Nós cremos que Deus
ainda há de cumprir com mais coisas, Deus prometeu pra nós e nos crê, essa
é uma bandeira que Deus levantou na nossa vida, o cartão postal da aldeia.
É...muitos falam que ela é um cartão postal. E é verdade é muito bonita,
282
muito bonita.

A Congregação Cristã do Brasil conseguiu estabelecer laços entre os Kaingang e os


Krenak, convertidos, além de propor um novo conjunto de práticas e comportamentos que a
permanência do catolicismo não foi capaz de estabelecer, tais como: o abandono do álcool,
controle da agressividade, frequência ao templo, entre outros. Mas, segundo depoimentos, a
relação entre os Krenak convertidos e os Kaingang não convertidos ainda é difícil:

282
Entrevista de uma jovem K+Kr. 10/08.
121

É, com Krenak crente é difícil ainda, é um pouco difícil ainda. Porque


qualquer coisinha:Vocês são crentes, Krenak, então vai embora para suas
terras, que que tem. Então, tem ainda esse preconceito ainda contra os
Krenak , mas melhorou um pouco, eu não vou falar que é horrível, antes
não, melhorou bastante. Porque Deus chamou um pouco dos Kaingang
também, ainda falta chamar um pouco, mas ta melhor. 283

Na leitura do texto de Melatti vimos que os Kaingang conviveram durante muito


tempo com práticas religiosas católicas, que eram vivenciadas de maneira mais frouxa que as
normas trazidas pela Congregação Cristã do Brasil. E o abandono de tais práticas, segundo
Juracilda Veiga é um preço muito alto para os Kaingang:

A questão é que, para os Kaingang, um povo alegre e amante de festas, as


proibições impostas pelas igrejas são muito pesadas, de modo que
dificilmente conseguem ajustar-se a elas por muito tempo. Não tendo
conseguido permanecer fiel aos preceitos das igrejas mais rígidas, muitas
vezes o Kaingang acaba “recaindo” ou se “desviando”.284

Essa maior resistência entre os Kaingang é notada pelos índios Krenak. A depoente me
falava sobre o pequeno número de Kaingang convertidos quando lhe perguntei:

P:Você acha que eles resistem mais?


E: Resistem, não dá o braço a torcer tão fácil. Eles é mais duro, eles são
mais, assim... A maioria que Deus chamou aqui, todos, a maioria, são
Krenak. Os Kaingang são já assim mais duro, mas assim, ah... sei lá.

P:O que você acha? Por que os Krenak estavam mais abertos?
E: Porque assim, nós, que nem eu aprendi com meu tio. O tio Mário sempre
contava para nós que ele falava, sempre nós, quando nós reunia na cabana
para fazer a cultura, ele falava assim pra nós: “Nós tem que ficar com o
pensamento firme em Deus.” E tudo que Deus mostrava em sonho, hoje nós
acredita que Deus que mostrava pra nós em sonho, e tudo acontecia, então
nós sempre crê, nós sempre teve aquela, o coração mais aberto para Deus,
porque nós sempre acreditava. E sempre a mãe, o João, e o tio Mário,
conversava com nós nesta parte. Que assim, hoje, e assim, acho que não é
tanto assim, por causa que a cabana já, não tem mais a cabana, a cabana tá
faltando construir ela, mas antes quando eu era mais pequena, eu tinha uns
onze, quatorze anos mais ou menos, era assim a reunião ali. Então, ele
falava de Deus, conversava as coisas de Deus com nós, falava dos sonhos.
Então isso nós fomos guardando, eu mesmo fui guardando dentro de mim,
porque eu acho que os Krenak, sei lá tem mais coração aberto, não é um

283
Idem.
284
VEIGA Juracilda,. Op. cit., p. 184.
122

povo que, tem povo que gruda naquela idolatria, então nós não, nós fomos
diferentes, nós tinha também, mas Deus foi tirando, Deus modelou nós de
uma forma diferente, porque o nosso povo é um povo sofrido, muito
sofrido. Então, nem sei como dizer, eu sei que Deus chamou mais os
Krenak, acho que os Krenak tem o coração mais aberto, mas os Kaingang
são um pouco difícil. Até para anunciar a palavra para eles é difícil, aceita
assim, assim aceita na boa, a gente ora na casa deles, no tempo assim que
Deus começou a chamar, ia orar na casa deles, mas só que assim, obedecer
a Deus era muito pouco, muito pouco. Pra você ver, mesmo casal de
Kaingang puro mesmo, só tem a irmão Cida, e o irmão Sinésio, que é o
Cutuí, né? Irmão Sinésio, irmã Cida, a Maria da Glória e a sua neta. È
muito pouco Kaingang, puro mesmo é pouco, eles são mais duros. Faz que
nem na palavra, diz que Móisés estendeu a coisa na rocha, vai ter que fazer
assim com o povo Kaingang, tem que estender a varinha ali para ver se sai
água, se jorra água, porque eles são muito duros285.

Pelo dito acima, cabe a nós pensarmos o que fez com que os Krenak estivessem
abertos a essa nova prática, para estabelecer possíveis pontes entre a cosmologia nativa e a
religião pentecostal, partindo da leitura que os mesmos fazem dos ensinamentos cristãos.
Buscamos, dessa maneira, interpretar a inserção da Igreja pela ótica dos índios convertidos,
abandonando o maniqueísmo encontrado em tantos trabalhos acadêmicos, que colocam os
índios como donos de um sistema religioso “tradicional” destruído pela religião universal
trazida pelo não índio.
Para a escrita deste capítulo, a metodologia utilizada foi a observação direta, assistindo
aos cultos e às reuniões em grupo, pudemos observar a disposição das pessoas nos cultos, a
sequência dos ritos, a postura corporal. Também foi importante a permanência em cultos da
Congregação Cristã do Brasil fora da aldeia, assim como a leitura de trabalhos acadêmicos
que se ocupam da conversão de outros grupos, indígenas e não indígenas. Dessa forma,
buscamos situar a conversão dentro de um contexto mais amplo, capaz de nos mostrar as teias
que ligam comunidades diferentes a essa crença, buscando também o inverso, ou seja, as

285
Mulher (Kr+K) Entrevista concedida dia 17/10/08. A depoente se refere a passagem bíblia escrita abaixo:
Êxodo, 17:6. Depois toda a congregação dos filhos de Israel partiu do deserto de Sim pelas suas jornadas,
segundo o mandamento do Senhor, e acamparam em Refidim; e não havia ali água para o povo beber. Então
contendeu o povo com Moisés, e disseram: Dá-nos água para beber. E Moisés lhes disse: Por que contendeis
comigo? por que tentais ao Senhor? Tendo pois ali o povo sede d’água, o povo murmurou contra Moisés, e
disse: Por que nos fizeste subir do Egito, para nos matares de sede, a nós e aos nossos filhos, e ao nosso gado? E
clamou Moisés ao Senhor, dizendo: Que farei a este povo? daqui a pouco me apedrejarão. Então disse o Senhor
a Moises: Passa diante do povo, e toma contigo alguns dos anciãos de Israel; e toma na tua mão a tua vara, com
que feriste o rio;vai. Eis que eu estarei ali diante de ti sobre a rocha, em Horebe, e tu ferirás a rocha, e dela sairão
águas, e o povo beberá. E Moisés assim o fez, diante dos olhos dos anciãos de Israel.
123

adaptações desse mesmo credo na área indígena estudada, que abarca relações sociais,
situações econômicas e políticas próprias.
Também usamos como fonte de informação, publicações de cursos teológicos, escritos
por membros de Igrejas pentecostais, com exceção da própria Congregação Cristã do Brasil.
Uma vez que esta condena os meios de comunicação para a propagação do Evangelho, não
produzindo folhetos, cartazes ou livros. Aquilo que o convertido precisa saber encontra-se na
Bíblia, única fonte da verdade.

3.1 - A Congregação Cristã do Brasil

A Igreja Congregação Cristã no Brasil foi fundada em 1911, pelo italiano Luigi
Francesco, que vivia nos Estados Unidos até, segundo ele, receber a “santa revelação” de que
deveria partir para a América do Sul. Sua evangelização inicia-se no Estado do Paraná,
seguida de sua permanência em São Paulo, onde foi convidado para pregar entre os
presbiterianos. No entanto, suas ideias não foram aceitas por todos naquela comunidade
religiosa, ocasionando um cisma entre seus fiéis. Aqueles que seguiram Luigi Francesco
deram, então, o início à Congregação Cristã do Brasil.286
A Congregação Cristã do Brasil faz parte das Igrejas pentecostais, e sua denominação
se deve à crença nos dons dados pelo Espírito Santo. O Pentecostes é um evento bíblico, pelo
qual o Espírito Santo, descendo dos céus, deu aos apóstolos dons como a glossolalia, a
revelação e a profecia, para que pudessem expandir o conhecimento do Evangelho. Diferente
de Igrejas protestantes tradicionais, os pentecostais não veem o Pentecostes como um evento
histórico e único; para eles, o Pentecostes é revivido, os dons do Espírito Santo são dados na
conversão ou em outras ocasiões. 287
Os usos e costumes da Congregação Cristã se cristalizaram desde o início do século
XX; as mulheres sentam-se separadas dos homens, estes à direita e aquelas à esquerda na
nave do templo. Os homens usam ternos e mantêm os cabelos cortados. A elas é proibido

286
FELICIANO, Marcos. Introdução á doutrina Pentecostal. Instituto Teológico Carisma. Orlândia, São Paulo,
2005.
287
CAMARGO, Ivani Vasconcelos. Rituais de poder: um estudo comparativo dos rituais das igrejas
Pentecostais em São Paulo. Dissertação de Mestrado,Unicamp, 2000.
124

cortar os cabelos, usar saias curtas, blusas decotadas, calças compridas e adornos como
brincos e pulseiras. Durante o culto, devem usar um véu branco sobre a cabeça.
Os cooperadores288, como são chamados aqueles que celebram o culto, não recebem
qualquer pagamento pela atividade. Também não são preparados em institutos e faculdades
teológicas para o exercício da função, pois acreditam que a capacitação necessária é
propiciada pelo Espírito Santo. O dízimo não é obrigatório e as despesas são pagas com as
ofertas que, em dinheiro, são colocadas em envelopes e entregues ao porteiro na entrada do
templo, não havendo, no culto, um momento especial para o seu recolhimento.
Os encontros seguem a uma mesma liturgia, iniciando-se com cântico de hinos do
Hinário exclusivo da Congregação, acompanhados pelos músicos. Em seguida, o cooperador
lê e explica um trecho bíblico, abre espaço para o testemunho dos fiéis, cantam mais um hino,
fazem orações, após é que o culto termina. O ósculo santo, ou seja, o beijo na face das pessoas
de mesmo sexo, fecha o ritual.
O batismo ocorre por imersão nas águas, em tanques construídos nas próprias igrejas.
Não há nada que determine o momento em que o membro estará pronto e, mesmo os que não
são frequentadores, estão convidados para o batismo, pois acreditam que o Espírito Santo
pode chamá-los a qualquer momento.

3.2 - A Igreja Congregação Cristã na aldeia Índia Vanuíre

Na atualidade, como já dissemos, além da Congregação Cristã do Brasil, também


existe uma Igreja Assembléia de Deus e, ainda que seus adeptos não possuam um templo,
missas católicas são celebradas de 15 em 15 dias. Poucos são os que frequentam as missas, as
quais contam com a participação de fazendeiros próximos. A grande maioria dos índios que
frequentam a Assembléia são os Terena, que já vieram do Mato Grosso do Sul convertidos,
enquanto que os frequentadores da Congregação Cristã do Brasil são, na sua maioria, Krenak
e Kaingang, que possuem, laços de parentesco.
Em 2002, foi construído na área indígena, o templo da Congregação Cristã do Brasil
que segue o mesmo padrão arquitetônico dos demais. Antes dela, os índios convertidos

288
Várias vezes me corrigiram quando chamei de pastor o cooperador; insistentemente, diziam-me haver só um
pastor – Deus.
125

frequentavam a CCB de Arco-Íris, sendo o trator, muitas vezes, o único meio de transporte
que os levava até lá. As dificuldades no transporte, segundo eles, eram amenizadas pela mão
de Deus. Lembram que nos dias chuvosos nem as crianças reclamavam do frio e chuva, e só
chegando à aldeia é que notavam estar completamente molhados. Deus também os teria
livrado da morte durante esse trajeto, numa ocasião, em que retornavam da igreja e o trator
ficou sem uma das rodas, que eles viram a sair rolando na frente do carro. Assim, atribuem a
Deus o fato de nada haver acontecido aos que estavam no trator, pois, sem a sua divina
proteção poderiam ter morrido.
Os convertidos de Vanuíre seguem os mesmos costumes das demais, as irmãs usam
saias longas, cabelos compridos, enquanto os homens usam ternos nos cultos e, mesmo no dia
a dia, vestem-se sempre com calça social, ainda que usando chinelos de dedo. Nos cultos, as
mulheres mantêm-se separadas dos homens e todas, até mesmo as meninas, usam o véu
branco.
A liturgia segue a mesma ordem das encontradas em outras Igrejas: hino, leitura
bíblica, testemunho, hino e oração. Os hinos são acompanhados pela banda formada por
homens que ficam no centro do templo. O conhecimento musical das mulheres sofre restrição,
elas não podem tocar todos os instrumentos; elas recebem aulas de órgão, na Congregação
Cristã, localizada na cidade de Tupã, sendo a flauta o outro instrumento musical a que têm
acesso, informação que obtive ao demonstrar meu interesse pelo objeto.
A leitura e explicação do trecho bíblico são feitas pelo cooperador289 que rege o culto.
No começo, era um não índio morador da cidade de Arco-Íris, mas em 2008 os Anciães
“sentiram” que o cacique Gerson Cecílio Damaceno, que já era cooperador de jovens, deveria
tornar-se cooperador de adultos. Sobre essa escolha, ouvimos:

E: Depois que nós viemos de Minas, Deus levantou o irmão Gerson, agora o
irmão Gerson é cooperador de jovens e cooperador de adultos. Agora só tá
esperando Deus, Deus mostrar alguém, pra eles coloca, pra atender o culto
de jovens.
P: Como é o mostrar alguém?
E: Assim, mostrar é assim, Deus mostra os nomes, então aquele que Deus
faz sentir no coração, eles oram a Deus. Escolhe três, ai depois permanece
um, o que Deus fazer ele senti, ai eles anuncia pra Igreja.
P: Então, além do Gerson tinha outras pessoas ?

289
O cooperador não índio disse no culto que ninguém acreditava que iriam construir um templo naquele lugar
cheio de bugres, mas que Deus chegava a todos os lugares.
126

E: Não, acho que não. Só o irmão Gerson porque ele já era cooperador de
jovens, né? Porque o cooperador de jovens eles oram a Deus, se Deus
confirma, que ele tem que passar pra cooperador de adulto, ai sim. Mas
senão ele fica no cooperador de jovens mesmo, mas como eles oraram pelo
irmão Gerson e Deus fez sentir que era o irmão Gerson como cooperador de
adulto ai eles levantaram como cooperador de adulto, agora tá faltando
cooperador de jovens.
P: Então ele já frequentava a Igreja há muito tempo?
E: Já. Ele já era o cooperador de jovens, então agora já é cooperador oficial
do sábado à noite, ele só atendia o culto dia de terça porque o irmão não
podia vim e dia de sábado esse irmão vinha, então ele só era cooperador do
culto a noite, agora não, agora é o irmão Gerson.290

O cacique, assumindo posto de cooperador, é encontrado em outras áreas indígenas.


No trabalho que a antropóloga Valéria de Barros fez entre os Guarani de Laranjinha, que
também frequentam a Congregação Cristã do Brasil, o posto de cooperador foi assumido pelo
índio Mário, que já havia ocupado o posto de cacique e chefe de posto naquela aldeia:

Apesar da conversão de Mário poder ser apontada como decisiva para o


estabelecimento da Congregação Cristã no Brasil em Laranjinha, pois ele
foi o grande responsável por converter grande parte das famílias à nova
igreja, atuando como um mediador e anunciador da “nova fé”, é preciso
destacar que o contato do grupo com a nova igreja se deu também a partir
de outras redes de sociabilidade já existentes, por exemplo, entre os índios e
as famílias não índias da região que estavam ligadas a eles através de
casamentos (índios casados com não índios); através de vizinhos ou
conhecidos que freqüentavam a igreja; e através dos parentes que moravam
em outras cidades e que já participavam da CCB291

Situação semelhante foi vivida em Vanuíre. A conversão de um líder torna mais fácil a
adesão daqueles que o escolheram para representá-los, além do fato de ser necessária a
permissão do cacique para a entrada de não indios e possíveis projetos que possam apresentar.
Mas é importante frisar que, assim como em Laranjinha, havia outros laços que os ligavam a
Igrejas Evangélicas, uma vez que vários moradores se converteram, antes do cacique. Dona
Ondina, uma não índia, filha de mãe italiana e pai português, contou-nos ter sido a primeira a
se converter. Ela, que quando jovem morava em Penápolis, conheceu o índio Kaingang,
morador de Icatu e com ele acabou fugindo para Vanuíre, onde passou a viver desde então. A
índia Norma Barbosa, filha de mãe Krenak e pai Kaingang, também se converteu, no período

290
Mariana Cecílio Damaceno. Data da entrevista: 17/10/2008
291
BARROS, Valéria E.N. A conversão ao pentecostalismo entre os Guarani da Terra Indígena Laranjinha.
Revista: Antropologia em primeira mão, N.1. Santa Catarina: UFSC, 1995, p. 10.
127

em que passou fora da aldeia; voltando, sentiu necessidade de continuar, passando a


frequentar a Igreja Congregação Cristã do Brasil, em Arco-Íris.
Intencional ou não, o fato de caciques ocuparem a posição de cooperador, não fere o
estabelecido no Estatuto da Igreja CCB, uma vez que não é necessário conhecimento
teológico e a escolha se dá como vemos a seguir:

Os irmãos Anciães e Diáconos são ordenados (I Tim. 4:14), e os


cooperadores são apresentados, conforme deliberação do Conselho de
Anciães, segundo a guia de Deus pela revelação do Espírito Santo, dentre os
membros da Congregação Cristã do Brasil que apresentarem as virtudes
consignadas no Santo Evangelho (I Tim. 3: 1-7 e 8-3; Atos 6:6; Tito 1:5 –
D292

Como vimos, cabe aos Anciães e Diáconos, orientados pelo Espírito Santo, escolher os
cooperadores, que vão estar à frente dos cultos, convivendo com a comunidade. O trecho
abaixo mostra-nos qualidades apreciadas no cooperador Gerson Cecílio Damaceno:

Congregado na 6ª feira na Central, irmão da região de Araçatuba/SP, citava


que esteve na Aldeia Vanuíre (Arco Íris-proximidade deTupã-SP), após
culto muita chuva, mas uma irmã índia, pediu oração, assim foi feita, irmão
colocou cabeça no chão até como sinal de humilhação e Deus mostra-lhe
uma revelação "onde irmão Luiz montado num trator e uma linda lavoura
florescendo com amendoim"
Após oração apontava esse fato, irmão Luiz não se continha de alegria,
virtude (visitações espirituais) em resumo, era sinal de confirmação, pois
plantaram amendoim.
Agora bem recente foram no local e viram o prodígio da mão de Deus,
colheram 2 mil sacas, maior colheita da região e todos estão glorificando
esse magnífico retumbante Deus.
FATOS E VIAS:
Já estive neste local com Missão Material, realmente muito difícil por ali,
solo fraco,desgastado,"terra cansada/exaurida/esgostada".
E irmão Luiz é cacique da etnia krenaques293, onde foi revelado para ser
cooperador jovem, com excelente dom da palavra...!!!294

É exatamente o cooperador quem está à frente no momento conhecido como a hora da


“Palavra” oportunidade em que os presentes têm uma intensa participação, com os “Glória a

292
Contrariando a proibição da propagação do Evangelho através dos meios de comunicação, os convertidos tem
se utilizado da rede, várias são as páginas na Internet que disponibilizam hinos, Bíblias on-line, chat entre os
convertidos, entre outros. Estatuto disponível: www.amigosccb.com
293
Ele se refere ao cacique e cooperador Gerson Cecílio Damaceno.
294
www. Cristanobrasil.org
128

Deus” e “Aleluia Jesus”295 aclamados por toda a igreja. Os testemunhos nos cultos a que
estive presente296 foram dados pelos visitantes, um momento de comoção, quando a pessoa
compartilha com as outras a dor vivida: pobreza extrema, morte de parentes e o uso do álcool
foram os assuntos mais recorrentes. Todo testemunho termina, invariavelmente, com a
superação do testemunhante, o que foi possível graças a uma providência divida, uma
revelação. Aqueles que dão o testemunho parecem entrar em um estado de êxtase,
apresentando uma postura bastante alterada, diferente da normal. O cooperador lembra o
adiantado da hora, pedindo para que as pessoas encurtem seus relatos.
Os hinos são cantados duas vezes no culto, as pessoas os escolhem, “chamando” os
números dos hinos, e o cooperador lembra para que só o peçam quando sentirem que devem.
Nem todos trazem a Bíblia, enquanto o Hinário é visto na mão de todos os presentes, que
conhecem boa parte das letras dos hinos. A oração é o momento de grande efervescência, feita
de forma individual, momento em que se manifestam os dons do Espírito Santo, como a
glossolalia, ou seja, falar em diferentes línguas.297
Na saída do culto, a frente do templo torna-se também um espaço de sociabilidade:
Krenak, Kaingang, não indios, assumem agora uma mesma identidade religiosa. A conversa
fora da igreja não foge da religião, os testemunhos dados no culto são comentados por eles, e
novas “Graças” são contadas ali mesmo. Além de “irmãos” que vivem próximos à área, os
índios recebem com frequência a visita de “irmãos” de outras cidades, os quais, neste caso,
dormem na casa de algum convertido. Em uma de minhas visitas, dormi na mesma casa que
um grupo de “irmãos” que vinham das cidades de Piracicaba e de Limeira. Nessa ocasião, a
conversa iniciada na frente da igreja continuou, na casa da convertida. Durante horas,
contaram experiências próprias e relatos ouvidos, muitos foram recordados pelo seu lado
cômico, testemunhos que na opinião dos presentes não cabiam durante o culto, tornando-se
motivo de chacota.298

295
Essas são adorações pontuais que se repetem em todas as Congregações.
296
Quando assistimos aos cultos de sábado, Gerson ainda não era o cooperador de adultos.
297
Maiores informações ver: RICCI, Mauricio. Glossolalia e Organização do Sistema Simbólico Pentecostal.
Dissertação de Mestrado. Unesp: Araraquarara, 2006.
298
Uma das histórias contadas foi a de uma senhora que havia colado o pé de uma galinha com cola super
bonder. Após contar o testemunho na igreja é repreendida pelo cooperador, que avisa que aquele espaço não era
para histórias como aquela. A mulher então respondeu: Você pode não querer ouvir, mas que colou, colou.
129

O pentecostalismo surge entre os mais pobres e, mesmo na atualidade, o maior número


de adeptos, continua sendo dessa classe social.299Os visitantes não indios, encontrados na
área, comprovam as estatísticas. São pessoas simples, de baixa escolaridade, de muitos
percalços vivenciados, o que contribui para que as diferenças pareçam dissolvidas. Enquanto
se alimentavam após o culto, na residência citada, não se notavam diferenças entre eles, fosse
nos modos à mesa, no grau de domínio da linguagem , fosse na trajetória de dor e superação.
A visita feita a outras igrejas, a convertidos de outras comunidades, é chamada de
“Missão”300 pelos adeptos da Congregação Cristã. Uma jovem visitante me definiu esse
procedimento como sendo o momento de levar a palavra aos aflitos e aos enfermos,
enfatizando que tais visitas ocorrem por preparação divina. Ela, por seus meios, não teria
condição financeira de fazê-la, mas Deus teria preparado o transporte. Entre os índios, a ideia
de preparação divina é bastante recorrente; dizem que Deus toca o coração daquele que possui
o bem material e este o divide com o outro. Mário contou como testemunho sobre o violão
que recebeu do lojista por apenas 10,00 reais. Uma índia recém casada contou-nos de como
Deus preparou até os sabonetes para o banho, já que não os tinha.
O caminho percorrido para a conversão de grupos indígenas na Igreja Batista e nas
missões de fé, ocorre de maneira lenta. Antes, é importante o conhecimento da língua, da
cultura, passos considerados necessários para que consigam fazer da ideia de Deus algo
inteligível aos possíveis “crentes”. O mesmo cuidado, segundo Ronaldo Almeida, não é visto
entre a vertente pentecostal do fundamentalismo; na Assembléia de Deus, o intuito é “ganhar”
adeptos no menor tempo.301 Na Congregação Cristã do Brasil, também representante dessa
vertente pentecostal, a dinâmica é a mesma, os não índios em missão, pouco ou nada sabem
das áreas por eles visitadas. É evidente que os índios encontrados em Vanuíre estão muito
próximos a eles quanto aos costumes, além do domínio do português e das condições
financeiras. Entretanto, é gritante a falta de conhecimento acerca da população local. Os
trechos abaixo evidenciam isso:

299
CAMARGO, Ivani Vasconcelos. Op. cit.
300
Ronaldo de Almeida define essa atividade: “Missão é a atividade religiosa por excelência, responsável pela
inserção de um conjunto de crenças em outro universo cultural (unidade mínima a partir da qual a evangelização
é formulada).” ALMEIDA, Ronaldo de. Traduções do Fundamentalismo Evangélico. IN: Transformando os
deuses- Igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas no Brasil. Campinas:
Editora da Unicamp, 2004, p.33.
301
Ibidem, p. 42.
130

Você é índia mesmo?


Sou, meu pai era Kaingang e minha mãe Krenak
Você fala um pouco de Guarani? perguntou novamente o irmão302

Em uma outra ocasião:

Aqui vocês invadiram? – pergunta o visitante


Não, quem invadiu foram os brancos, foram tomando tudo, desde Tupã era
303
tudo dos índios.

Não existe nenhuma atividade na CCB que faça o caminho inverso: o de apresentar
aos convertidos não índios a cultura indígena. O maior interesse dos índios de Vanuíre, mais
especificamente os Krenak é traduzir hinos para o seu idioma dos quais um exemplo, é a
tradução feita por Lidiane Cecílio Damaceno, professora da escola:
Hino 79 O`alma que choras
O alma que choras com grande amargor,
Se queres consolo, recorro ao Senhor
A Ele implorando, conforto acharás,
Graças e virtude e vida terás

Tradução: O giracam tocane puk au emram grópe


Prame hac-hira nim thák Tupãn
Anchuk conoekrum am-merik ampim maajocom
Jagy acuam- cuang

Amigo sincero é Cristo Jesus


Que salva o perdido e ao céu o conduz;
Tua voz levanta ao bom redentor
Clama por socorro, clama ao Senhor

Tradução: Making aça cruk Tupân


Tacane airim tam taru rimi
O ti aui na him ererre Kijican
Pecak Ke imrám gicam pacak Tupam

Ó alma cansada, recorre ao Senhor,


Ele te sustenta e te dá vigor;
Seu constante auxílio não falta jamais

Tradução: O giracam rarate, timu Tupân


Anchut ti hume maajacam
Nhik gicaram rarat nuk ajõam
302
Trabalho de campo. 19/07/ 2008.
303
Ibidem. 20/07/2008.
131

Ww anchuk brãu nuk puk intã.304

Quando Lidiane Damaceno fez a tradução, o hino era cantado apenas entre eles, em
reuniões dentro da aldeia. Quando os visitantes ficaram sabendo da novidade, pediram que os
cantassem na igreja e, hoje, durante as visitas que realizam fora da aldeia sempre cantam o
hino na “linguagem” Krenak.
A conversão da maioria dos índios aconteceu há muitos anos. Durante esse tempo, o
que parece oscilar é a intensidade com que vivenciam a experiência religiosa. Ouvimos, em
julho de 2008, uma índia convertida dizer a uma visitante que a “igreja estava fraca”, que os
“irmãos” não se visitavam. Nos dias em que passamos na aldeia, percebemos que estavam
tentando fortificar esse elo. Além dos cultos dos sábado e dos domingo, este último dedicado
aos jovens, os irmãos se encontraram todas as noites na casa de um convertido. O número de
pessoas nessas reuniões foi pequeno, mas nos disseram já ter havido períodos em que pessoas
ficavam fora das casas por falta de espaço.
Nessas ocasiões, a liturgia ocorre com uma ordenação mais frouxa, com espaços para
interrupções, seja porque alguém adentrou a moradia, ou porque a água usada na preparação
do café está no fogo. Mário Cecílio Damaceno acompanha o canto do Hinário com seu violão,
no lugar dos testemunhos ocorrem as revelações, visões que tiveram durante o culto e que
“Deus mandou falar”. Nas reuniões, pudemos observar uma índia de pai Kaingang e mãe
Krenak, falando em outras línguas e fazendo revelações aos presentes, postura essa bem
diferente da adotada pela mesma jovem na igreja.
De maneira geral, a participação feminina na Congregação Cristã é menor que a dos
homens, pois não tocam todos os instrumentos musicais, não fazem parte do Ministério, ou
seja, não lhes é dado assumir posições de liderança dentro da Igreja.
Uma questão problematizada pelos chamados antropólogos pós-modernos, é a relação
estabelecida entre o pesquisador e o pesquisado. Esses estudiosos têm como um dos objetivos
a quebra da ideia de que o etnólogo detém o saber, de ser um indivíduo capaz de decifrar o
grupo a partir do contato com os pesquisados do grupo. A antropologia pós-moderna mostra
que a etnografia é resultado do diálogo entre "nativo" e etnólogo, com a observação
participante, possível graças a negociações estabelecidas entre eles. Na escrita das etnografias

304
Maria Helena Damaceno permitiu que fizéssemos uma cópia. 21/07/08
132

clássicas, é na introdução do livro que percebemos a presença do pesquisador, é esse o espaço


que nos informa sobre o grupo estudado e o tempo que passou entre eles. No decorrer do
livro, tal presença desaparece na garantia da impessoalidade. Os antropólogos clássicos
tinham a mesma ideia de presença “invisível” em relação ao campo; para eles, era como se
sua presença fosse neutra, que não afetasse o cotidiano do grupo e o próprio antropólogo. Dito
isso, é necessário salientar a clara interferência da minha presença nas reuniões que ocorreram
na casa dos convertidos, falas direcionados a mim, enquanto pesquisadora, grupo que,
segundo o índio Krenak, vê com estranheza a religião adotada por eles:

Mas o Deus do índio não é o Sol, a Lua? Como nós já ouvimos. Não, o
Deus do índio é quem fez o Sol e a Lua.” 305

Na mesma ocasião, um índio filho de pai e mãe Krenak “revelou a mim uma
mensagem divina”. Eu, que tinha passado por uma tristeza, ia ter uma alegria com a conclusão
da minha matéria em outra aldeia. A matéria à qual se referiu era a dissertação e a outra aldeia
o P. I Krenak, pois já havia possibilidade de eu fazer a viagem.
A participação nas reuniões me confere duas identidades que se confundem e se
misturam: a pesquisadora e uma possível convertida. A participação nas reuniões possibilitou
que eu dividisse com eles o cotidiano religioso, nos aproximando, através desses momentos.
Embora saibam que nem sempre concordam com os textos escritos pelos pesquisadores,
pareciam mais preocupados em me convencer dos ganhos da conversão. A vastidão do rio
Watu, o sol iluminando às montanhas; toda beleza apreciada em Minas Gerais, durante a
viagem eram pequenas, perto das que veria no céu, diziam a mim.

3.3 - O início da Conversão

Quando questionados sobre a razão da conversão, todos são enfáticos em descrever os


problemas gerados pelo alcoolismo, seja na relação familiar quando o marido não provê as
necessidades da família, uma vez que gasta com a bebida, ou nas brigas envolvendo
dependentes do álcool. Segundo informantes, não era feito um casamento ou um baile na área,

305
Tais palavras são dirigidas a mim para que eu compreenda que o Deus do índio é o mesmo “Deus vivo” dos
não índios. Na ocasião, estávamos em uma oração na casa do Krenak Edmar Adíson. 20/07/ 2008.
133

sem que houvesse uma briga. Hoje, os convertidos entendem que só a Igreja seria capaz de
reestruturar as relações, de pôr fim às ações violentas que o uso do álcool gerava. A mesma
opinião demonstra o depoente:

Eu trabalhei na aldeia por vários anos. Naquela época o servidor era


responsável pela aldeia 24 horas, não tinha respaldo de médico. O
município de Arco Íris ainda não era instalado, a nossa referência era Tupã.
Nossa viatura era um caminhão 608, velho, que a gente fazia o transporte
dos índios enfermos, não só para Tupã, como também para Marília.
Aos sábados, o funcionário não tinha nem o direito de ter uma folga, coisa
que eu nunca reivindiquei. Ao sábado, o chefe de posto falava : Você tem
que ir em Tupã levar os índios para fazer compra. Isso em torno das 9 da
manhã e com retorno por volta das 17 horas, com a maioria desse pessoal
todos embriagados, com exceção das mulheres. Quando você retirava um
do bar bêbado e colocava em cima do caminhão então descia outro e você
não podia falar nada, senão poderia apanhar deles. E o chefe de posto
cobrando sempre da gente. Existe até uma frase que o Marechal Rondon
deixou que eu não sei se está lá ainda, que eu escrevi em algum lugar:
Morrer se preciso for, matar um índio jamais. Então, o sofrimento ali foi
muito grande. A área da saúde pertencia à FUNAI e não era como a
FUNASA. Eu ainda participei de algumas reuniões junto com a Silvia
(enfermeira da FUNASA) quando estava se fazendo a transição entre
FUNA I- FUNASA, mais ou menos no ano de 1997. A FUNASA começou
a funcionar no ano de 2000. Então, a responsabilidade era toda da gente, era
muito difícil. O chefe de posto participava ativamente. Hoje esta fácil,
naquela época a responsabilidade de um chefe de posto era como a de um
secretário, tudo que acontecia, que faltava o chefe de posto é que tinha que
estar orientando. E hoje mudou, pelo que a Sílvia fala, é diferente. A gente
morava lá dentro, tinha vez que atendia fora de hora, não podia falar não,
mesmo que estivesse na hora de folga, não tinha isso não. Ai, o que
acontecia? Muita violência dentro da área, brigas e desavenças. Eles faziam
quermesses, bailes e acabavam brigando, se cortando. E a gente não tinha
como levar o índio para a cidade. Tupã fica a 18 quilômetros daqui, além de
a viatura ser muito precária.
E o que aconteceu?Eu cheguei a uma conclusão que reuniões, conselhos...
Não ia resolver. A única pessoa que ia resolver de imediato, que daria uma
solução, tipo de um milagre, só Deus! Foi onde eu busquei uma religião. Eu
não era evangélico e participava das mesmas coisas que eles. Não tinha
jeito, você tinha que buscar alguma coisa para que aquilo se amenizasse.
Foi quando eu conheci uma pessoa que me falou do evangelho e eu acabei
acreditando e me converti (só que essa história é muito comprida, se você
for ficar me ouvindo você vai ficar aqui umas 5, 6 horas). Os índios quando
ficaram sabendo da minha conversão não gostaram, por que eu participava
de tudo com eles, aos domingos sempre os transportava com o caminhão
para os jogos de futebol (eu também jogava). E quando comecei a falar que
não ia levá-los ao jogo porque era evangélico coisa e tal eles se revoltavam
muito. Essa minha mudança foi muito brusca, eles queriam que a FUNAI
tomasse uma posição contra a minha pessoa. Até então eu só participava de
134

reuniões e cultos fora da aldeia, por que lá não podia, era proibido, por que
ia acabar com a cultura deles e eu não podia entrar na cultura deles. Então o
trabalho começou por ai, eu evangélico e eles começaram a me perseguir.
Quando foi um dia eu perguntei para o chefe de posto, que chamava
Rômulo, se eu não poderia fazer um culto na minha casa? E ele falou: João
não pode, você sabe que aqui na aldeia a gente não pode interferir na cultura
do índio, eles já não gostam do fato de você ter se tornado evangélico, e isso
vai lhe trazer problema. Mas eu sempre falando para ele e quando foi um
dia a gente conversando, o pai dele tinha vindo de Minas e veio visitar ele
na aldeia (o pai dele era um cerealista muito forte e tinha vários
funcionários) e surgiu a conversa que um motorista dele era evangélico e o
pai do Rômulo me falando que ele era o melhor motorista que ele tinha, o
Rômulo ouvindo aquilo se sensibilizou e, depois quando eu voltei a falar
com ele em fazer reunião da igreja em minha casa ele disse: João é
complicado, mas tudo bem. Nesse dia foi então a primeira abertura
evangélica dentro da área indígena. Vieram de Tupã aproximadamente 30
músicos, foi uma orquestra que ecoou naquela área! No outro dia foi um
falatório! Meu pai do céu! Só que eu continuava insistindo, porque eu
precisava fazer alguma coisa para melhorar o alcoolismo na aldeia e eu só
via solução através disso. Só que ai, através dos hinos (a congregação tem
uns hinos muito bonitos) e dos músicos que tocaram esses hinos, alguns
deles foram sensibilizados (isso depois de várias reuniões). Bom... Quando
foi um dia, eu estava saindo para a cidade num sábado à noite, para assistir
o culto em Tupã, quando chegam duas mulheres e me pediram para irem ao
culto também, uma era índia e outra branca, porém, sogra do cacique na
época. E elas foram, independentes de saberem o que iriam enfrentar no
retorno.E eu quando cheguei lá clamei: Senhor que responsabilidade,meu
pai do céu! Aí foram as duas para o tanque e se batizaram. Aí a coisa
começou a ferver! Por que era a sogra do cacique e uma kaiua. Eles
partiram para a administração de Bauru dizendo que eu estava acabando
com a cultura do índio. Ai eu comecei a ser perseguido pela chefia, sendo
que um dos meus perseguidores, que era um ditador terrível, o pai era
membro da Congregação Cristão no Brasil e possuía um dos cargos mais
altos dentro da hierarquia da igreja, que é o de ancião. Foram para Brasília
para me tirarem dali, mas o Rômulo falou: mas espera lá! Se ele está
fazendo esses cultos na casa dele, ele tem o direito! Na casa dele ele pode!
Essa ajuda do chefe de posto foi muito importante. Então e aí, o que
aconteceu? No segundo batismo veio a sogra do cacique, a esposa do
cacique e mais uma. E esses cultos passaram a acontecerem com mais
frequência e, cada vez mais se agrupava mais índios. Nessa altura já tinha
uns 10 batizados, não lembro os outros que foram, mas lembro que o
cacique foi logo em seguida e assim que ele se batizou começou a
perseguição sobre ele também. O cacique se converteu, só que acabou
voltando ao alcoolismo. Quando foi um dia, ele e mais um grupo foram para
o rio e sumiram, passou uma semana e nada de voltarem para a aldeia! Aí, a
esposa dele, junto com outras que já tinham se batizado, montaram num
trator e foram para lá. Quando lá chegaram começaram a orar num mato
que tem na beira da lagoa, lá na fazenda Santo Antônio. Quando esse índio
viu essa manifestação ele se sentiu importante e lembrado. Aí vem o
arrependimento, né? Ele começou a chorar, se ajoelhou e chorou muito.
Trouxeram-no embora e ele não bebeu mais. E aqueles bailes de brigas
135

foram se acabando. Não houve mais baile e quermesse, onde eles tanto
bebiam e acabavam brigando. Só que existia uma facção ali, que existe
ainda hoje, muito contra o evangelho, e não apenas da Congregação, mas do
evangelho mesmo (Da própria igreja católica). E um sonho meu era de
construir uma igreja ali para tentar melhorar ainda mais. Mas era impossível
você construir uma igreja em uma área indígena. Você não poderia fazer
isso. Teria que ter uma planta e aparecer alguém para construir essa igreja.
Só que a Congregação Cristã no Brasil trabalha de uma maneira diferente,
que é através de doações. Ela não tira uma verba e paga pessoas para ir lá
construir, são os próprios membros que a constroem. Eu acho que, nessa
altura, tinha mais de 30 membros já batizados (O convívio na aldeia já tinha
melhorado bastante). Não sei se você chegou a conhecer o Antônio Cecílio.
Ele bebia muito, montava no cavalo e vinha para cá (Arco Íris) se
embebedava e depois o cavalo que levava ele de volta. Um dia, lá nas
mangueiras, eu ia atravessando para ir ali no senhor Gervarde, quando vi
uma pessoas em silêncio em cima de um cavalo. Quando fui chegando
perto, beirando o mato vi que era o Antônio bêbado com um litro na mão. O
cavalo estava andando em torno da mangueira. Muitas vezes ele ficava
semanas bêbado, às vezes ele sumia e a mulher dele ia em casa desesperada
para procurarmos ele no mato. Bom... quando foi um dia, eu estava na
igreja e quando olho para trás vejo o Antônio entrando bêbado pelo
corredor, ai eu acomodei ele num banco e, quando terminou o culto, ele
falou para o cooperador que gostaria de se batizar, mas como ele já tinha
falado isso tantas vezes a gente não botou muita fé, porém ele foi batizado
e, nunca mais bebeu...” .306

João Cotrin foi, inicialmente, enfermeiro da aldeia Vanuíre, ocupando,


posteriormente, o cargo de chefe de posto. João e sua esposa foram os primeiros convertidos
da Congregação Cristã na área. Diferente do que ocorre hoje, o chefe de posto e os
enfermeiros fixavam residência na aldeia, o que fazia com que os índios também
conhecessem os hábitos dos funcionários da FUNAI. Se, antes da conversão, Cotrin
participava das atividades de entretenimento como o futebol, a conversão exigiu dele uma
nova conduta que aboliu essa prática esportiva. Além do distanciamento natural que isso
acarretou entre os índios e o funcionário, havia duas outras razões que dificultavam o projeto
de conversão idealizado por Cotrin. Primeiro, a própria resistência dos índios em relação à
entrada de missionários na área, e a imposição que seu próprio cargo lhe impunha: como
funcionário da FUNAI, não poderia interferir na organização social dos índios. Sobre este
início ouvimos:

306
João Cotrin apud GARCIA, Renata de Campos. A presença evangélica em território Indígena: O caso do
Posto Indígena Vanuíre- SP. Trabalho de Conclusão de Curso. Presidente Prudente: Unesp. 2006, p.53.
136

A primeira, no início daqui era assim, era o chefe de posto que se, que tinha
obedecido a Deus, já era convertido, ele e a esposa dele, mas como eles era
empregados da FUNAI, eles não podia falar. Mas só que um dia minha
sogra teve um sonho e que ela descia um tanque de batismo e que via as
irmãs que hoje nós conhece, nós sabe, agora nós entende que era as irmãs
de véu, de um lado e os irmãos de outro de terno, via aquilo lá tudo
branquinho e ela obedecendo a Deus. E ela chegou para o chefe que
chamava João Cotrin e falou: O seu João, eu vou na igreja de crente mas eu
não vou batizar, mas ai Deus, foi que quando foi na outra vez ela assistiu
um batismo ai Deus chamou ela. Muitos fala assim, eu não vou para a igreja
de crente porque se não eles vão me forçar a ser crente, mas não, na nossa
igreja é diferente.307

Como vimos, a Congregação Cristã entra na aldeia por intermédio de um funcionário


da FUNAI, que recebe autorização de um outro funcionário, Rômulo, chefe de posto na
época. O cacique, Antonio Barbosa, índio Kaingang, era um forte opositor à presença de
missionários na área e à conversão dos índios a essa religião. Quando dona Ondina, mulher
branca, casada com um índio, resolveu converter-se, o cacique a repreendeu, dizendo que ela
não seguiria aquela religião. Assim nos mostra o entrevista abaixo:

Ah, depois o cacique veio, brigou com a minha sogra, falou que ela não ia
ficar. E, com o tempo, ele foi perceber que ela tinha obedecido a Deus, e
com um mês mais ou menos obedeceu meu sogro, obedeceu outro casal que
era vizinho dela, e com o tempo aquele cacique veio bravo com ela, com o
chefe de posto, com a esposa dele não aconteceu nada, né? Porque Deus
chamou ela. Deus guardou eles ali, com o tempo o cacique ficou bravo,
roubaram seu dinheiro, ele veio a falecer.308

Os adeptos da Congregação Cristã têm em comum uma vida marcada pela dor, o que é
interpretado como necessária para a execução de um propósito maior. As primeiras
conversões para a Congregação Cristã do Brasil, em Minas Gerais, ocorreram após a morte de
um parente, em um acidente de carro. A perda, nesse caso, foi interpretada como um meio
encontrado por Deus, para que se fizesse cumprir seu plano – a conversão. A morte de seu
Antonio foi interpretada por alguns convertidos da mesma maneira. O cacique foi morto em
Tupã, ao buscar o pagamento pela mandioca vendida à indústria de farinha “Deusa”, nunca
tendo sido descoberto o responsável pelo crime. Depois de sua morte, foi escolhido um novo

307
Entrevista cedida pela senhora Mariana Cecílio Damaceno. 17/10/2008
308
Idem. 17/10/2008
137

cacique, que se tornou evangélico, aumentando, desde então, o número de adeptos da


Congregação. A morte do antigo cacique aparece na fala de alguns, neste mesmo sentido: foi
o caminho, ainda que tortuoso e dolorido, encontrado por Deus para fazer a obra, ou seja,
fazê-los conhecedores do Evangelho.
Dona Ondina nos conta que o desejo da conversão nasceu de um sonho no qual via
“tudo branquinho.” Hoje, acredita que via as “irmãs” com o véu usado por todas as mulheres
no interior do templo. Embora fosse uma mulher não índia, o sonho deu legitimidade ao
desejo diante dos índios. As revelações vistas na Congregação Cristã como um dom dado pelo
Senhor, encontram correspondência na crença do poder dos sonhos. Era em sonho que os
Marét, os espíritos bons, avisavam o líder Krenak:

Com sabedoria o Capitão Krenak acompanhava seu Povo.


Ele se deitava cedo e, á noite, os Espíritos
Contavam-lhe sobre as coisas ruins que aconteceram nas aldeias.
E sabidamente ele as afastava. Dia seguinte, reunia o povo
Vinha muita doença ruim para vocês.
Fui avisado pelos Maret.309

Conversando com os índios de Vanuíre, percebemos que os sonhos capazes de revelar


não constituem um poder atribuído apenas aos grandes chefes como o líder Krenak e seu filho
Muin. Desde pequenos, eles foram ensinados a prestar atenção nos sonhos, a compartilhar
com os parentes e produzir análises sobre o que sonharam. Acreditando na força dos sonhos
Lia, irmã de Mário, nos conta:

Mas quando eu tinha 15 dias de batizado ainda, meu irmão não era batizado,
o Mário. Eu falei assim, ele era contra, muito contra, meu Deus ele não vai
gostar, ele não gostava de crente, nós também não, depois nós se converteu,
começou gostar e ai ele falou assim pra mim assim.... Ai uma noite eu
acordei umas três horas da madrugada, assim com meu coração pulsando,
parece que eu ouvia uma voz falar assim: “Vai ora lá na cabana” Ai eu falei:
“Ai eu não vou não, porque o Mário vai ver eu orando na cabana e vai
brigar, não gosta de crente.” Mas aquilo pulsava, pulsava, pulsava e eu não
ia. Quando foi uma noite, eu sonhei assim, eu creio que Deus me deu uma
revelação assim, que eu chegava na cabana, e chamava todas as crianças
que participava da cultura, para ir pra cultura, fazer a cultura.Tava eu, João,
o Mário e essas crianças. Cheguei nessa cabana e vi o Mário, o João e as

309
SOARES, Geralda Chaves. Op. cit., p. 97.
138

crianças todas elas em volta de um monte de cinzas, porque a gente


queimava o fogo e via se transformando em cinza, mas nós nunca sabia o
que nós ia fazer com aquelas cinzas, formava cinza, aquele montão a gente
ponhava madeira, tacava fogo, e aquilo lá ficava aquele montão de cinza.
Eu via aquele montão de cinza e realmente eu vi no meu sonho aquele
montão de cinza ali. Eu vi o Mário, o João, o Mário e um monte de criança
ali, só que eu fiquei do lado da cabana, perto das palhas da cabana. Eu
fiquei ali, no meu sonho eu tava ali, desceu como se fosse um...como se
fosse uma fumaça, feito um redimunho, desceu perto de mim e aquela
fumaça conversava comigo nos meus sonhos, falava assim pra mim assim,
eu estava com uns quinze dias de batizada. E falava assim ó: “Você
pode...vai lá e fala para eles - e eles como daqui assim na pia, e eu aqui -
Vai lá e fala pra eles que eles podem continuar com o toque da flauta.” E
no meu sonho eu ia lá e falava, e aquela fumaça ficava ali e conversava
comigo: “Vai lá e fala pra ele que pode continuar com um cântico assim,
assim” E eu ia lá e falava, todos os cânticos que nós podia continuar ele
falava que era pra mim ir lá e falar, toque do bambu, o toque da flauta, os
cânticos. Aí o irmão Mário virou e falou pra mim assim: “E agora você
volta lá e pergunta pra ele se nós pode continuar com o chocalho.” Eu
cheguei e falei assim: “Nós pode continuar com chocalho?” Aquela fumaça
respondeu assim para mim: “Eu sempre tive aqui, e sempre vou continuar
aqui e vou vir várias vezes aqui e vou continuar aqui. Eu vou falar pra vocês
o que pode, o que vocês deve de fazer e o que vocês não devem fazer.”
Aquela fumacinha conversava comigo no sonho: “E você fala pra ele, que
amanhã - e naquele dia, no outro dia era dia de cultura mesmo- você fala pra
eles que amanhã é dia de cultura. Você, Mário e João, deixe as crianças aqui
dentro da sua casa e vai lá na cabana, pega aquele monte de cinza que tá lá,
faz um círculo dentro da cabana, sobre esse círculo você coloca todas as
crianças da cultura para apresentar, mas eu quero com muito respeito, com
muito respeito.” E aquela fumacinha foi embora. Voltei lá e falei com eles.
No outro dia o irmão Mário chegou, falou pra mim assim, eu falei pra ele:
“Mário eu tive um sonho”, porque o irmão Mário acreditava muito, ele não
era crente mas ele sempre acreditou, desde criança, nós sempre acreditou, o
nosso povo acreditou. Ai o Mário chegou e eu falei pro Mário: “Mário essa
noite eu sonhei assim, assim, assim.” Ai então vamos fazer o que Deus
mostrou pro cê. Então vamos. Foi feito do jeitinho, deixei todas as crianças
na minha casa: “Vocês só descem para a cabana quando eu vir buscar
vocês.” Fizemos um círculo e o irmão Mário tinha um cricócão grande,
grande assim que ele tocava, deixou no meio do círculo, mas do lado de
dentro. Eu e ele e o João com muita... silêncio, com pensamento muito
firme, nós fez aquele círculo, fizemos aquele círculo lá. Ai depois
chamemos as crianças, ai conversamos com as crianças: “Olha, nós quer
muito silêncio, nos crê que é uma dança religiosa hoje que nós vai
apresentar, e que Deus vai fazer alguma coisa, Marét-Erehé vai fazer
alguma coisa de bom pra nós hoje, que ele pediu pra nós hoje nessa noite.”E
como foi, colocamos todos eles pra apresentar a dança. Ai eu falei: “Mário
você fica ai, que eu e João vai lá buscar as crianças”. Viemos eu e o João
naquele tempo não tinha luz lá, era só foguerinha mesmo. Eu e o João foi
buscar as crianças; todo mundo veio em silêncio, fazendo o maior silêncio,
e eles obedecia. Então tinha um temor no coração deles, eles obedeceram.
Quando chegamos lá....quando cheguei lá, eu vi o Mário diferente,
139

esquisito, sabe? meio assustado. Ai eu falei pra ele assim: “O Mário


aconteceu alguma coisa?” Ele quis falar e não quis, ai depois demoro um
pouco e ele falou: “Esse círculo, esse círculo aqui molecada é pra vocês
fica, pensamento firme em Deus. Isso aqui, isso que tá acontecendo aqui é
uma coisa forte.” Por que? Ai ele falou: “Porque quando vocês subiu mais o
João pra buscar as crianças para apresentar a cultura, eu fui atravessar sobre
as cinzas pra pegar o meu cricocão que ficou do outro lado de lá. Eu fui pra
lá e não coloquei meu pé no chão, uma coisa veio e parece que flutuou o
meu pé, eu fiquei sobre flutuando, fui e voltei flutuando.” Ai todo mundo
ficou quetinho, concentrado ali, né? Nós fizemos aquela apresentação,
fizemos aquela apresentação e voltemo para casa, vai ser o que Deus quiser,
né? No outro dia, o Mário chegou na porta da minha casa perguntou assim
pra, perguntava assim pra mim: “O Lia, aconteceu uma coisa esquisita.”
Mas eu falava mais o que que aconteceu? Outro dia, né? O que que
aconteceu? E ele ficava, coçava a cabeça, voltava, passava a mão e não
falava pra mim. Aquilo foi me deixando com curiosidade. Ai ele chegou de
pé na porta olhava para minha cara, olhava pra na cara do João. Ficou
estranho, sabe? Mário o que que aconteceu? Ai ele sentou olhou pra minha
cara, o Mário sempre com a paciência dele, quase mata a gente sabe, sentou,
olhou pra minha cara e disse: “Oh, você acredita que depois que nós
apresentou a cultura sobre o círculo da cinza, não fumei mais cachimbo, não
tenho mais vontade de bebe. Tirou, tirou, Marét-Eheré tirou tudo isso de
mim.” Ah, então foi por isso, é isso, que Deus quis fazer com ele, tira tudo
os vícios dele. Porque ele tinha um cachimbo grande, que ele colocava e
que fumava na hora que nós tava apresentando a... que nós tava
apresentando a cultura, que fumava ele colocava num saquinho de fumo ali
dentro daquele cachimbo. E as crianças quando dançava na cultura não
conseguia abrir a boca pra cantar porque de tanta fumaça, fumaça na boca
das crianças e as crianças sufocava. Então naquela noite foi tirado, as vezes
ele ia pra cidade, ele ia pra cidade, quantas vezes ele dormia ali naquela
saída, naquela saída do posto de gasolina, dormia ali perto só com jornal no
chão, bêbedo sem conseguir vim embora. Naquela noite tirou tudo aquilo
dele. Tudo que fazia artesanatinho que fazia, ia, não trazia dispensa pra
dentro de casa, era tudo na farra na cidade, bebedeira, fumava, e hoje tá ai
um grande homem.310

Esse depoimento é bastante significativo. Primeiro, porque é o relato de um sonho. Na


Congregação Cristã, sonhos que nos mostram caminhos são chamados de revelações, um dom
dado por Deus aos homens que o seguem. Tantos os sonhos tidos ainda no “tempo do mato”
como as revelações, depois de convertidos, os levam ao sobrenatural, dando acesso à
divindade. O fato de a mensagem ter sido dada por meio do sonho deu legitimidade ao
contado por Lia. Mário não era evangélico, não almejava tornar-se um deles, mas acreditava
na comunicação por meio dos sonhos.

310
Maria Helena Cecílio Damaceno. Entrevista concedida dia 18/10/2008
140

Mário nos contou que foi na cabana que Deus revelou a ele a necessidade da
conversão. No sonho descrito acima, Lia também sentia a necessidade de orar no mesmo
local, mas o receio de que o irmão não convertido a visse orar lá, a impediu de fazê-lo. Deus,
ao se revelar na cabana mostrou-lhes que não terão que abandonar antigos costumes, que
Deus pode habitar os dois espaços. Antes da conversão, a Igreja era vista de uma maneira
muito negativa, poderia significar o fim da cultura indígena. Uma vez convertidos, o medo
não era descartado, a incerteza sobre o que poderia continuar existindo, ainda continuava
grande. No sonho tido por Lia, esse “redemoinho” assegura que poderiam continuar com os
cânticos, com cricocão, com o toque do bambu, com o toque da flauta. Eles aceitam Deus
quando se convencem de que este Deus também os aceitava.
Nas primeiras entrevistas que fizemos, os Krenak com os quais conversamos, falavam
da igreja e da cabana como espaços separados. Ouvi relatos de que, quando entravam na
cabana não se lembravam da igreja, apenas dos antigos. Em outros, pudemos perceber que as
reuniões na cabana, não eram ao menos pensadas como um ritual religioso. Como vemos no
depoimento abaixo:

Levar nossa cultura avante é interessante para nós índio, nós te a nossa
cultura, nós conservar o nosso idioma, pra que nós não perca totalmente a
idioma indígena, para que sempre nós estamos falando com nossos filhos,
com nosso netos. E algumas coisas do passado, ensinando alguma coisa do
presente também. E o presente do passado, tá no presente também, é a
cultura. A cultura pra nós é muito importante como eu tô dizendo, ela é
muito importante para nós mesmo, muito bom. Então nós tem a cultura, que
é a dança, a dança Krenak e tem a religião que é Igreja da Congregação
Crista do Brasil.311

Ou ainda:

Todas segundas e quintas – feiras, tem o ritual. Não tem nada a ver com a
igreja. Todos rituais que são apresentados falam da terra, da mata, do céu,
das estrelas, das plantas, das raízes, do anjo de deus, dos animais, dos rios e
de nós mesmos, os índios. Fala-se de tudo em nosso ritual, cada um tem seu
significado”312

Eles insistiam em mostrar que as duas coisas coexistiam, partilhavam um mesmo


ambiente, mas tinham significados bem diferentes. A descontinuidade entre o conjunto de

311
Antônio Cecílio Damaceno. Entrevista concedida dia 22/04/2007.
312
Gerson Cecílio Damaceno apud GARCIA, Renata de Campos. Op. cit., p 51.
141

crenças do “tempo dos antigos” e o “novo” trazido pela Congregação Cristã, pode ser
entendida como uma forma de mostrar aos de fora e aos de dentro, mas ainda não convertidos,
que a Igreja CCB não ameaçava a cultura. Falavam de uma ruptura entre o “antigo e o novo”,
sem que este ameaçasse aquele. Em um período muito curto de tempo, pudemos observar o
abandono da descontinuidade para a afirmação do seu inverso, a defesa de uma continuidade
entre esses dois tempos. Sobre isso lemos:

Antigamente nossos costumes indígenas era o cântico, né? Cantar, orando a


Deus nos cânticos. E quando a gente ia caçar, cantava, cantava, cantava,
mas era pedindo a Deus, que viesse uma caça pra gente, a gente ia lá, a
gente ia no mato, chegava lá, conseguia a caça, matava, voltava. Chegava
em casa, cantava, cantava de novo, e agradecia a Deus, porque deu, porque
deu aquela caça pra gente.313

Também nas regras estabelecidas pela Congregação Cristã é percebida a continuidade;


Deus revelou às irmãs os instrumentos que podiam ser tocados, o mesmo fazendo com o povo
Krenak:

Oh, uma coisa que eu, que eu fico assim, antes de Deus chamar nós, o tio
Mário falava assim pra nós, que os homens toca flauta e as mulheres
cantam, né? No início, depois que a gente assim, que a gente foi, que nós
obedeceu a Deus eu entendi que o senhor ensinou ao povo Krenak mesmo
antes de não obedecer a Deus, porque só os homens podia tocar flauta e as
mulheres não podia tocar instrumentos, só o Cricó. Que nem na
Congregação é a mesma coisa, os homens tocam outros instrumentos, agora
as mulheres só tocam órgão. E assim, eu fiquei pensando assim, Deus
ensinou o povo, Deus começou a ensinar o povo mesmo assim eles lá no
mundo. Porque que só os homens tocam instrumentos é só Deus quem sabe.
Deus revelou para os irmãos tocar os instrumentos, pra mulheres só
órgãos.314

A ruptura existente no discurso, hoje, diz respeito apenas à conduta. Deus sempre
existiu, sempre os visitou, sempre os ensinou. Eram eles que não serviam a Deus da maneira
correta, só a conversão os ensinara o caminho certo. A prova de que Deus existia está na
própria sobrevivência física de um povo que sofreu uma violência extrema. E nos
perguntaram: – Se Deus não existisse como teriam sobrevivido a tudo aquilo? O
conhecimento da Bíblia também influenciou em sua postura. Ao conhecerem a “palavra”, os
313
João Borun Batista de Oliveira. Entrevista cedida dia 18/10/2008.
314
Mariana Cecílio Damaceno. Entrevista cedida dia 17/10/2008.
142

Krenak foram construindo pontes entre ela e os ensinamentos dos “antigos”. Em Minas
Gerais, na casa de Cleuza Cecílio Damaceno ( conhecida como Santa) tivemos, ao lado do
fogão de lenha, uma conversa sobre a crença dos “antigos” no poder das cinzas, tida pelo seu
povo como um elemento sagrado. Bastante entusiasmados, Mário e Cleusa Damaceno nos
falaram de passagens bíblicas que também atribuem poder às cinzas. Sobre uma delas, Lia nos
fala:

L: As cinzas, as cinzas também tem alguma coisa ligada, a cinza é.... o


nosso povo. No casamento, o casamento, até no casamento nosso povo
falava assim que as cinzas, o nosso povo falava não, fala até hoje, nós
acredita até hoje que as cinza ela....que através da cinza ela....sei lá como é
que eu posso te explicar. Ela gera uma energia, uma energia melhor, uma
coisa melhor, eu não sei, eu não sei explicar. Uma coisa, quando ia ter
casamento, quando fazia casamento, o casal, eles é...fazia uma... coisa
assim, como se fosse, quando ia ter casamento como se você tivesse
colocando um tapete vermelho para você passar, as noivas hoje faz isso.
Mas nosso povo colocava cinza para o noivo e a noiva passar, então para
nós era uma coisa sagrada, é até hoje uma coisa sagrada, né? É até hoje uma
coisa sagrada pra nós. Nosso povo usava a cinza como remédio, né? Então
pra nós, até hoje nós usa ele como remédio, até hoje nós usa ela como
remédio.
P: E cura o que?
L: Nós usa pra inchaço de barriga, às vezes a gente acredita assim: Tô com
uma dor aqui, toma remédio, vô no médico. Faço isso, faço aquilo e não dá
jeito, vou na cabana vou pegar uma cinza e vou passar onde eu tô com isso,
e a gente tem resultado. Sabe, a gente, a gente acreditava que ela era uma
coisa, uma coisa sagrada eu não sei como que era, mas é. A gente acreditava
sempre nisso. Minha mãe quando ela, eu lembro que minha mãe foi andar
uma vez, eu era pequena, que minha mãe destroncou o pé. Ela chegou na
beira de um fogão de lenha assim, catou aquela cinza morna, bem morna,
esfregou no pé, esfregou no pé e no outro dia o pé dela tava bom. Então a
gente sempre acreditou, e quando a gente viu na Bíblia, quando a gente viu
na Bíblia, teve uma hora que a gente olhou um assim pra cara do outro e
começou a dar risada. Gente isso é coisa do passado, é coisa dos antigos, é
coisa que nosso povo também passou aqui, porque na Bíblia também está
escrito lá nessa parte de...quando Deus criou uma cidade, não me lembro o
nome da cidade, mais ou menos ele queria acabar com aquela cidade,
porque ali estava havendo muito pecado, muito pecado, ele falou vou
destruir. O que fez o rei de lá? O rei de lá foi, vestiu uma camisa, vestiu,
cortou um saco, fez a roupa dele de saco, ele se ajoelhou, ele começou...
colocou a cabeça dele na cinza como se fosse uma humilhação e rolava
sobre a cinza. E Deus viu que ele estava se humilhando sobre as cinzas e
por causa desta humilhação do rei, Deus não destruiu a cidade. Então, na
passagem da Bíblia tá escrito isso, então é uma coisa que se liga sabe?
143

Também, você entendeu? Se liga, é uma coisa legal assim sabe, de ver
assim.315

Mesmo quando o remédio do não índio não resolve, as cinzas curam. As mesmas
cinzas que abençoam uma união Krenak, fizeram com que Deus poupasse da morte toda uma
cidade. As histórias bíblicas bastante valorizadas na atualidade têm o poder de legitimar a
história dos “antigos”, a cada vez que há a possibilidade de traçarem essa continuidade. A
cada ponte possível, confirma-se a presença de Deus, antes que a Congregação Cristã do
Brasil certificasse o propósito divino da conversão. Como nos aprofundaremos mais adiante,
assim como a Bíblia pode legitimar a historia dos “antigos”, também pode negar a veracidade
de algumas crenças, como é o caso do Yhom-Quinhom, o totem sagrado feito de madeira:

Tem ouvido, mas não ouve; olhos, mas não vê; boca mas, não fala; sendo o
deus de agora o único digno de louvor 316

A cabana existente em Vanuíre, hoje, em péssimo estado de conservação, já que eles


não encontram o sapé necessário para reconstruir o teto, foi construída depois da igreja.317
Segundo João Cotrin:

Olha, naquela época eles nem praticavam a cultura deles. Quando começou
a primeira cabana foi uma ideia minha, eu conversei com o Mário e disse:
por que vocês não constroem uma cabana aqui e tenta resgatar alguma coisa

315
Jonas, 3:11 “.E veio a palavra do Senhor segunda vez a Jonas, dizendo: Levanta-te, e vai á grande cidade de
Nínive, e prega contra ela a pregação que eu te disse. E levantou-se Jonas e foi a Nínive, segundo a palavra do
Senhor. Era, pois, Nínive uma grande cidade, de três dias de caminho. E começou Jonas a entrar pela cidade
caminho dum dia, e pregava, e dizia: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida. E os homens de Nínive
creram em Deus; e proclamaram um jejum, e vestiram-se de saco, desde o maior até o menor. Porque esta
palavra chegou ao rei de Nínive, e levantou-se do seu trono, e tirou de si os seus vestidos, e cobriu-se de saco, e
assentou-se sobre a cinza. E fez uma proclamação, que se divulgou em Nínive, e levantou-se do trono, e tirou de
si os seus vestidos, e cobriu-se de saco, e assentou-se sobre a cinza. E fez uma proclamação, que se divulgou em
Nínive, por mandado do rei e dos seus grandes, dizendo: Nem homens, nem animais, nem bois, nem ovelhas
provem coisa alguma, nem se lhes dê pasto, nem bebam água. Mas os homens e os animais estarão cobertos de
sacos, e clamarão fortemente a Deus, e se converterão, cada um do seu mau caminho, e da violência que há nas
suas mãos. Quem sabe se voltará Deus, e se arrependerá, e se apartará do furor da sua ira, de sua sorte que não
pereçamos/ E Deus viu as obras deles, como se converteram do seu mau caminho; e Deus viu as obras deles,
como se Deus se arrependeu do mal que tinha dito lhes, e não o fez.” Maria Helena Cecílio Damaceno.
Entrevista concedida dia 18/10/2008.
316
Gerson Cecílio Damaceno apud Garcia, Renata de Campos. Op. cit. p. 61
317
Os ensaios da dança Krenak com as crianças têm sido feitos embaixo de um pé de manga na casa da Lia e do
João. Com uma extensão conseguiram colocar uma lâmpada encima da árvore, que ilumina o quintal bastante
escuro.
144

da cultura de vocês? E ele ouviu. Então, fizeram a cabana, veio uma pessoa
de Minas Gerais que trouxe algumas ideias e ajudou a construir a cabana.318

Assim como observou Renata de Campos Garcia, a cabana feita de sapé também
reproduz a arquitetura típica dos templos da Congregação Cristã, que possui duas entradas,
uma para os homens e outra para as mulheres. Nela há bancos como na igreja e são realizados
cultos típicos da Congregação Cristã, para onde são levados todos os instrumentos musicais
utilizados pela orquestra. Os não indios apreciam os cultos realizados na aldeia, dizem que
sentem uma energia diferente ao entrar lá. No ano de 2008, foi realizado o batismo de um não
indio enfermo.
Sobre esse batismo lemos :

E: Esse ano teve, mas não obedeceu nenhum índio, foram brancos. Porque
foi pedido, foi um batismo especial, ele tava enfermo. E esse branco ele
queria, esse não índio, ele queria obedecer a Deus dentro da aldeia, então
Deus chamou ele aqui.
P: Ele falou por quê?
E: Ah ele, é que aqui é diferente, né? Todo, assim, a irmandade vem pra cá
fala que a aldeia é diferente, que ao entrar aqui, eles senti muita paz. È eles
falam assim a gente sente Deus aqui cara a cara , nós sente Deus face a face,
parece que Deus pega nós com cola assim e a gente flutua. Então, ele
queria, ele quis o batismo dele aqui e também em Arco-Íris não tem o
tanque de batismo, só em Tupã. Mas em Tupã ele não queria, ele queria
aqui na aldeia. 319

Também ouvimos sobre um milagre que ocorreu na cabana, quando uma criança, filha
de não-indios convertidos, curou-se de um problema nas pernas, após terem passado as cinzas
da cabana em seu corpo.
O que João Cotrin não diz em seu depoimento é que a cabana construída após a
entrada da igreja não foi o único espaço destinado às reuniões, à religião e à dança Krenak.
Havia, na aldeia, antes da conversão, a casa da religião, onde ficava o Ynhom-Quinhom.
Segundo o texto de Pinheiro:

A casa da religião320 fica no meio da única mata restante. Na casa da


religião eles têm um Deus que teve sua primeira versão totêmica roubada

318
GARCIA, Renata de Campos. Op. cit. p.49.
319
Mariana Cecílio Damaceno. Entrevista cedida dia 17/10/2008.
320
Ou Kieme Reja, na língua Borum.
145

pelos civilizados no início deste século. Para essa cabana eles se dirigiam
para agradecer, para aconselhar-se, para acalmar, para pedir e para meditar e
cantar. Segundo eles, quando se está longe do Deus, uma madeira verde ou
uma água corrente exercem as mesmas funções. È um tipo de troca
energética.”321

Uma passagem muito interessante desse mesmo texto, que retrata o tempo da casa da
religião, nasce de uma conversa com João Borum. Perguntado pela pesquisadora se não
tomava banho no rio, respondeu a ela que para isso a água deveria ser limpa. Ela, então,
lembrou-o de uma pequena cachoeira próxima à “mata”. Ele respondeu que lá havia uma
cobra grande. Segundo a autora, era uma indicação de que aquele lugar, próximo à cabana da
religião, era um local sagrado, sendo a cobra grande sua protetora, João acabou por ir banhar-
se no rio; Pinheiro não soube em qual deles, mas desconfia de que tenha sido exatamente onde
a cobra grande estava, testando seus poderes de pajé.322
Os encontros na casa da religião são lembrados pela terceira geração de Krenak,
moradores de Vanuíre. Mariana, neta de dona Jovelina e filha de Maria Helena, nos fala sobre
elas:

A gente se reunia, é...antes a cabana era lá do lado de lá. Então, a gente se


reunia, o tio Mário conversava: Marét, Marét- Erehé, espíritos bons ele
falava, Quicama-Quiam, Tetum do Borun. Ele sentava, começava falar
histórias: “Oh, hoje eu sonhei com isso, vamos prestar atenção que vai
acontecer aqui dentro com nosso povo.” Minha mãe falava a mesma coisa.
Então, e sempre nós se reunia em volta da fogueira, ele falava, conversava
com nós. As vezes ele sonhava com maribondo, maribondo também para
nós não é bom. Falava assim pra nós: “Oh, vamos ficar com o pensamento
firme em Deus. Porque maribondo pra nós é espírito, e espírito, não é
espírito bom, ruim. Vamos ficar com o pensamento firme em Deus, espírito
ruim esta rudiando a aldeia, querendo pegar o povo.” Então ele sempre,
sempre conversava com nós, ele, assim, as vezes ele via sinal de luz, onde
que tava, então ele falava assim: “ Marét-Erehé veio aqui , porque ali
passou um anjo ali, ali onde que tava.323

Sobre o mesmo período ela prossegue:

Eu sinto saudade desta época porque, hoje eu já tenho 29 anos, mas eu sinto
saudade daquela época, quando eles ensinava nós. Era...a gente sentava, a

321
PINHEIRO, Niminon S. Op. cit. p. 74.
322
João nunca nos falou da pajelança.
323
Mariana Cecílio Damaceno. Entrevista concedida dia 17/10/08.
146

gente conversava, ensinava idioma, cada um ia com seu caderno, marcava o


que tinha e o que não tinha, em volta da fogueira. As vezes levava, levava
minha vó. Ali mesmo já assava batata, já comia. Todo mundo já saia dali
diferente, né? 324

Vemos que se reuniam para falar dos bons espíritos que protegem os Krenak, os
Marét-Erehé. Era ensinado o idioma, ouviam histórias dos “antigos”, reproduzia-se naquele
espaço a identidade Krenak. Sabemos que à volta de Lia e João do P.I Krenak, em 1991, fez
renascer as práticas culturais em Vanuíre, a construção do Ynhom-Quinhom acontecido,
também, após esse retorno das terras mineiras. Precisar datas é sempre um desafio, são
informações que fogem aos personagens. Não sabemos, exatamente, quando foi construída a
“casa da religião”, mas sabemos que, após esse retorno, rituais foram realizados com
frequência naquele espaço.
Em 1998, segundo Mariana, foi o ano em que ela, sua mãe e seu pai “desceram às
águas”, ou seja, foram batizados. Lia, sua mãe, nos conta que no sonho que teve com quinze
dias de batizada, Deus informou que podiam continuar com os rituais na cabana, na antiga
cabana, já que ainda não existia a atual. Isso nos faz pensar que, se houve períodos em que os
rituais na antiga cabana deixaram de existir, não foi durante um período longo, parecendo-nos
bastante questionável o depoimento do então funcionário da FUNAI, João Cotrin, ao afirmar
ter sido sua a sugestão para a construção da primeira cabana, já que os índios não praticavam
nada da sua cultura. Faz-nos pensar mais numa tentativa de mostrar que a Igreja, não
interferiu na cultura indígena; ao contrário, ela a fez renascer e fortificar-se, uma assertiva
bastante comum nos relatos dos índios convertidos.
A insegurança em relação às consequências causadas pela inserção da Igreja, fez com
que os índios a pensassem, inicialmente, em separado dos outros espaços, negando qualquer
conexão entre a cabana e o templo. Encontramos pessoas como o cacique Gerson que negava
a existência de práticas religiosas entre os Krenak, anteriores à construção da igreja. Em
conversa com seu Antônio, que via na cabana o espaço da cultura e na igreja o espaço da
religião, ainda assim, naquela ocasião, Antonio já nos falava de um Deus único:

Os Deuses de todos é o mesmo o nosso Deus, então só o que muda é a


doutrina. A nossa é uma parte, a doutrina do católico é outra parte, a doutrina

324
Idem.
147

de outra igreja é outra parte, e assim por diante. Agora sobre o Deus que nos
fala, nosso Deus Tupã que é Deus, ele é de todos, Deus do branco, Deus do
índio, Deus do africano, Deus do...Deus de todos. Nós sabe, nós tem pelo...nós
conhece pela bíblia que só existe, somente um Deus para que todos crêem
nele, é o Deus que fez o céu e fez a terra. 325

A Igreja possibilitou aos índios Krenak uma relação de igualdade com os não índios,
uma relação mais harmoniosa. Aos poucos, eles foram se convencendo de que aqueles
“irmãos” não os visitavam com intenção de roubá-los, de lhes causar mal, como inicialmente
muitos haviam pensado. Aos poucos, a cultura deixou de ser ameaçada por aquelas pessoas e
pelas novas ideias que traziam. Conhecendo-as melhor, certificaram-se de que os novos
conhecimentos eram em certa medida velhos, e assim, seguros, abandonaram o discurso da
descontinuidade, adotando a continuidade.
Pinheiro nos fala da conversão de João Cotrin e o início das atividades proselitistas na
aldeia Vanuíre:

Ele era funcionário da FUNAI. Chefe do Posto Indígena Vanuíre. Não havia
nenhum apoio à comunidade e o único socorro para eles era a FUNAI. Não
tinha FUNASA, não tinha Projetos, havia muita falta de gêneros
alimentícios e nenhuma chance de adquiri-los. Caça e pesca não era mais
viável. O seu João era evangélico e começou a trazer "irmãos" para passar o
final de semana. Eles faziam almoços e convidavam os índios. Faziam
doações de botijões de gás, objeto de muita necessidade naqueles dias. Me
lembro das crianças pequenas, sem leite para por nas mamadeiras. Alguns
trabalhavam de bóia-fria mas nem sempre tinha serviço.
Os evangélicos foram socorrendo e eram os únicos com os quais eles
podiam minimamente contar. Na época eu era totalmente contra a
intromissão de igrejas na comunidade e ficava muito revoltada com isso.
Hoje eu compreendo melhor o que se passou pois a miséria era muita
mesmo. Hoje eles não precisam mais dessa ajuda, com a intensidade de
antes. Existem vários Projetos que eles fazem e podem fazer. Muitos têm
empregos: professores indígenas, técnicos de agricultura, de enfermagem,
etc.326

Desde o início da ação do SPI, a relação estabelecida com os indígenas foi de


dependência, começando com o período conhecido como “namoro”, quando eram deixados os
presentes e, depois, enquanto aldeados, eram ensinados a recorrer ao chefe do posto. No texto

325
Sr. Antonio Cecílio Damaceno. 22/04/2007.
326
Entrevista concedida pela pesquisadora Niminon Pinheiro que acompanhou o início do processo de
conversão. Enviada por email em novembro de 2008.
148

de Garber, vimos que os Krenak identificavam os funcionários como kraí-érehe, ou seja,


brancos bons. Sabemos, no entanto, que essa relação nunca foi de extrema confiança, mas
que, por imposição do sistema, ela teve que existir. A relação com os não indios foi marcada
pela violência, pela matança feita por bugreiros, pela invasão dos fazendeiros.
Conhecendo-se o processo histórico, vivido não só pelos Krenak mas pelos outros
índios habitantes de Vanuíre, é facilmente compreensível a recusa inicial aos missionários da
Congregação Cristã. Alguns tinham tido contado anterior com outras igrejas, mas os índios
tinham ido até elas. Com a Igreja Católica, o contato era feito por meio de padres que,
esporadicamente, celebravam uma missa na aldeia, mas, na maioria das vezes, eles se
dirigiam até a capela de Ponte Alta. Seu Cotrin, ao se converter, passou a levar os “irmãos”
até a aldeia, onde se celebrava um culto dentro da área, o que foi visto pelos índios como uma
invasão dos não indios em seu território. No entanto, pelo conhecimento da situação descrita
acima por Pinheiro, vemos os índios estabelecendo com os não índios uma relação análoga à
vivida até então. Diante da ausência de recursos mínimos á sobrevivência, são os não indios,
os “irmãos”, que lhes estendem a mão.

3.4 - Os Krenak e o Sobrenatural

O panteão religioso dos índios Botocudos era formado por quatro tipos de espíritos:
aqueles que habitavam a esfera superior, os que viviam na esfera da natureza, aqueles que
habitavam o corpo dos vivos e, por último, os que se mantinham no mundo subterrâneo.327
Vivendo no céu, estavam os Marét, visíveis apenas aos escolhidos; os que podiam vê-los,
segundo Niimuendaju, possuíam Yikégn, uma força sobrenatural. Por meio destes, os Marét
ajudavam a toda comunidade, provendo os índios de caça e de colheita, sem que fosse
necessário trabalhar. Entre os Marét, Manizer destaca o Marét- Khamakian, um velho que
ensinava aos índios tudo o que precisavam saber, ajudava-os, mas também podia puni-los com
tempestades e até com a morte. O uso dos botoques era uma ordem do Marét- Khamakian.
Quando o “língua” Cristino retira dos índios o adorno, eles temem por desobedecer o velho;
na verdade, sem o botoque sentem-se desprotegidos.

327
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Botocudos...Op.cit., p. 425.
149

As almas eram espíritos que habitavam o corpo, cada pessoa possuía até cinco
Nakandyún, embora apenas uma habitasse o corpo, ficando as outras ao redor da pessoa. No
sonho, a Nakandyún saía do corpo e, se não retornasse, gerava doenças na pessoa que a
328
perdera. Com a morte da pessoa, morria também a alma que habitava o corpo, mas as
demais continuavam acompanhando-o. Para que as almas não se transformassem em onças,
ameaçando os vivos, era necessário acender uma fogueira e alimentá-la, evitando que as
chamas se apagassem.
Sobre esse costume entre os Botocudos, lemos:

Segundo declarou o SNR. Garber existe a superstição de que as almas


dos mortos que não foram enterrados ou queimados, se transformam em
animaes e particularmente em onças.”329

A respeito desse ritual fúnebre, Garber afirmou que os mortos eram queimados em
uma fogueira, retirando-se todos os presentes, em seguida. Nisso diferencia, segundo Ihreing,
de outros autores, que não fazem referência à incineração, mas afirmam que faziam uma
fogueira sobre o túmulo depois de enterrado o corpo. Estigarribia, tratando exatamente do
grupo Krenak, não relaciona os alimentos à necessidade de alimentar as almas, mas observa
uma cerimônia semelhante:

A morte é, muitas vezes, lamentada com veemência, havendo até suicídio


do sobrevivente, ao que dizem; outras vezes, porém, é recebida pelos outros
e quase sempre pelo que dela é vitima, com indiferença. As mais
lamentadas são as dos filhos pelos Pais, que os enterram, pondo alimento ao
lado ou por cima da cova, que é coberta com um ranchinho. Durante alguns
dias acendem alguns tições ao lado para que o cadáver não sinta frio. Já vi,
entre os Crenacs, descobrirem a cova dias depois do enterramento para,
ainda uma vez, verem o cadáver.330

A morte do líder Krenak também nos ajuda a entender a relação entre os homens e os
espíritos. O “capitão” Krenak possuía Yikégn que, segundo Nimuendaju, era um atributo de
todos os chefes Botocudos. Dessa forma, Krenak, durante a noite, era visitado pelos espíritos
que lhe contavam o que de bom e de mau aconteceria à comunidade que, avisado pelos Marét,

328
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Op.cit.
329
IHERING, Hermam Von. Op.cit., p. 46.
330
ESTIGARRIBIA, Antonio. Op.cit., p.16.
150

tinha o poder de afastar todo o mal. E assim era durante todo o tempo, até que ele mesmo
percebesse o fim de suas energias, fazendo o seguinte pedido:

Eu vou morrer
Mas não quero que vocês me enterrem
Façam um jirau e me coloquem em cima dele.
E acendam uma fogueira para mim.
Quero que vocês continuem gostando de mim
Se lembrando de mim
Quero que vocês continuem gostando de mim.
Passando a mão no meu cabelo
Que eu sempre vou olhar por vocês!331

A alma que habitava o corpo o deixou. Os índios fizeram roças e mantiveram a


fogueira acessa por todo o tempo, o corpo foi secando, mas não se desfez. A preocupação de
alimentar a alma do líder Krenak é vista entre os índios que permaneceram, até hoje, nas
terras “originárias”. Segundo eles, com a invasão dos brancos, estes tomaram posse da terra
onde estava o corpo de Krenak, tendo ficado impossível alimentar as almas, as quais, então, se
transformaram em onças, que hoje vivem no último salão da Gruta, conhecida como Sete
Salões.332
Quando os Krenak convertidos de Vanuíre falam sobre a religião, designada por eles
como “religião dos antigos”, as principais referências são os Marét e o Ynhom-Quinhom. A
palavra Ynhom-Quinhom, em português, corresponde a beija-flor que, na antropogonia
borum, foram os primeiros ancestrais dos índios, ou seja, pássaros que se transformaram em
homens.333A dança dos índios Krenak era feita ao redor do Ynhom-Quinhom, um totem
construído pelo líder Krenak. Os rituais nunca eram feitos no mesmo lugar, mas contrariando
esse costume, os funcionários do SPI exigiram que fossem feitos em um lugar fixo, fato que
teria facilitado o roubo do totem na década de 1940.334 O Ynhom-Quinhom335, era uma figura
central, sobre quem temos a seguinte leitura:

331
SOARES, Geralda Chaves. Op.cit., p. 97.
332
MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op. cit., p. 66.
333
Os pássaros socós se transformam em homens brancos, os urubus em homens negros.
334
SOARES, Geralda Geralda. Op. cit., p. 129.
335
A pesquisadora Izabel Missagia de Mattos informou que a imagem está no Museu Paranaense Emílio Goeldi,
parte do acervo da Coleção de Curt Nimuendaju. MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Civilização e revolta: os
Botocudos e a catequese na Província de Minas. Bauru, SP: Edusc, 2004, p. 138.
151

Então quando era pra dançar tirava aquele pau. Era igual um homem levado
lá num canto onde fazia lugar de botar o Ynhom-Quinhom. Fazia lugar dele
ficar ai dançava. Quando eles fizeram a última dança veio um povo de Rio
de Janeiro e assim que meus tios falavam. Não era minha mãe não, era
meus tios...Quando veio a dança eles colocou o Yhnom-Quinhom lá dentro.
Dentro dele, perto do curral. Ali era um currauzão, perto, fizeram um lugar
para colocar Ynhom-Quinhom: “Vocês bota dentro de um lugar aí e não tira
mais não”. Disse ele, “Deixa esse Deus de vocês no lugar certo. “Eles
pegaram e colocaram perto do curral onde eles fizeram uma porta. E o chefe
mandou pintar ele. Não era pintado...E, eles, colocaram num lugarzinho.
Pegou Ynhom-Quinhom e levou lá. Ele falou aos índios “amanhã nóis vai
vê onde é que vai ficá o Ynhom-Quinhom ou não.”Largou ele e foram para
a casa para saber a orientação de onde que era para ficar a cerimônia
religiosa. Era para ficar no lugar mandado pelo branco ou se era no terreiro
do Guaimã, lá na dança deles? Eles foram fumar cachimbo! Ele disse que o
pajé falou assim: “Eu falei procêis não deixarem o Ynhom-Quinhom lá. Já
não está lá”.
Quando eles foram, acabaram o ritual, nem esperou acabar se era para ficar
lá, era pra deixar lá. Mandou o cacique lá olhar. Chegou lá e disse:
“Roubaram o Deus”. Os índios começaram a dançar. O espírito vieram
falando que foi branco que roubou. Procurou quem era esse homem na
religião. Mas ele tinha ido embora. Religião acabou por isso. Meu tio,
quando ele bebia cachaça, quando ele cantar pro Ynhom-Quinhom, ficava
como o olho cheio de lágrima. Eu queria conhecer o índio Krenak veio que
fez...Eu queria conhecer o deus...o índio Krenak veio é que fez
acabou...acabou...Pensava assim os craí...”336

Os índios ligam o fim das atividades religiosas ao desaparecimento do Ynhom-


Quinhom, embora os rituais tivessem recomeçado, sendo até mesmo construída uma nova
imagem em Vanuíre. Nessa aldeia, os Krenak João Borum e Mário Tepó foram os
responsáveis pela criação da imagem, que foi colocada na cabana, lugar de oração.
Questionado sobre a imagem que havia na aldeia, João Borum nos responde:

J: O Ynhom-Quinhom aqui não tinha, eu mais o irmão Mário nós veio pra
aqui, aqui não tinha mais nada. A cultura tinha acabado, não tinha, não fazia
artesanato, não tinha mais cabana, eles não tinha mais dança indígena.
Então nós começou, muito difícil, a minha companheira, que é a Lia, nós ia
nas casas pedindo para os mais velhos falar. Um monte deles achava ruim:
porque vocês vai mexe com isso, vai arrumar pra cabeça. (risos) Mas tá

336
Este texto foi gravado em uma fita de áudio e era usado por Maria Helena Cecílio Damaceno nas aulas de cultura.
Não é uma cópia integral, mas é parte de um depoimento da índia Laurita Felix, registrado no livro “Os Borun do
Watu”.
152

bom, nós quer assim mesmo, ai nos fizemos um cântico, ai começou a


cantar, cantava, cantava, cantava, ai pegou e falou: vamos fazer um Ynhom-
Quinhom? Nós foi no mato e fez, tirou madeira, e nós fez.

P: Como é que você sabia como ela era?

J: Eu sabia porque do jeito que eu vi lá aquilo ficou na minha mente, até


hoje eu faço a mesma coisa.

João conta que não se recorda de ter visto a primeira imagem, mas que, por meio de
uma foto, a refez. Ao redor dela, assim com o os antigos, Krenak e índios de outras etnias
dançavam na cabana construída em Vanuíre. De acordo com a fita de áudio utilizada por Lia
Damaceno nas aulas de cultura, a imagem foi construída pelo velho Krenak. Como já
dissemos, as informações contidas nela com algumas pequenas modificações são uma fala de
Laurita Felix. Em uma entrevista falávamos sobre a “religião dos antigos” quando Maria
Helena nos falou do Ynhom-Quinhom:

Sempre assim que a gente teve mais contato com os antigos ssim, da
religião deles. Eles faziam uma, eu não sei como foi , eu não sei como foi
assim, como é...bem antes, bem antes, antes mesmo eu não sei contar, mas
eu não sei se eles aprenderam depois com o povo branco ou se foi coisa
mesmo que eles teve no sonho, né? Eles fizeram uma madeira, chamava ele
de Ynhom-Quinhom, então eles deram esse nome para essa madeira
chamada Ynhom-Quinhom. E essa madeira eles acreditava que era Deus.
Tudo que eles queria, é...pedi, né? Eles pedia, ali ficava de frente dessa
madeira, cantava em línguas, apresentava a cultura, dançava, cânticos
religiosos. E ali eles fazia pedido, o que eles queria, né? È pra cura, pra
tudo, né? Ai fazia pedido pra essa madeira, quando chegou um tempo,
quando os brancos chegaram na aldeia eles viram, né? O nosso povo
adorando essa madeira, uma imagem feita de madeira, ne? Viram adorando
essa madeira e roubaram, né ? Ai nosso povo falaram: “ Eles roubaram o
nosso Deus”. Mas até hoje ninguém sabe pra onde que eles levaram, né?
Roubaram e ...e depois desse tempo pra cá, não construíram mais. Mesmo
assim a gente, mesmo assim ainda o nosso povo continua fazendo a
religião, mas em cântico, né? Cantava, cântico de cura. Nós, o nosso toque
do bambu é até hoje o nosso cântico de cura, é um cântico de religião,
né?337

Na declaração acima, ela afirma não saber ao certo se o Ynhom-Quinhom foi trazido
pelos brancos ou mostrado aos índios por meio dos sonhos. Mário nos disse que o Ynhom-
Quinhom foi um homem, uma liderança. Os jesuítas, vendo que os índios falavam muito dele,

337
Maria Helena Cecílio Damaceno. 18/10/2008.
153

disseram: “Este é o Deus de vocês”. Foram os jesuítas que criaram o intercessor que é a
madeira.338 Quanto à criação, João Borum nos fala:

J: Ele fazia milagre, tudo que pedia pra ele dava. Na verdade aquilo que
você crê te ajuda, né? Sendo que é errado, né? Acreditava muitos de nós
mesmos acreditava que o Ynhom-Quinhom era o Deus que fez o céu e a
terra, e não é. O Ynhom-Quinhom é uma madeira feita pela mão do homem.
Na verdade eu não cheguei a ver esse tempo, mas é... eu creio que esse foi o
tempo dos antigos padres, do Anchieta. Eles vieram, entraram na tribo,
então eles deve que falou pros índios, né? Que eles que trazia aquele santo
de pau, de pau, aquele santo, de lá de trás, que eu nem sei como é que é.
Então, eles ia comunicar com os índios, trazia aqueles santos, fazia amigos
e deve ter falado pros índios: “Vocês tem que fazer isso”. Então o índio na
cabeça dele: “Vamos fazer nosso Deus, né? Chego e fez o Ynhom-
Quinhom”.
P: Então foram os padres que trouxeram?
J:Trouxe pra aldeia. Que o índio acreditou naquilo que os padres tava
falando, que o índio de antigamente era igual como se fosse um passarinho,
né? Não tinha leitura, né? Não sabe o que é o que não é. Antigamente não,
antigamente era igual um passarinho, se você chegasse lá desce um tiro nele
caia um, outro ficava bem olhando.339

No depoimento acima, vemos que a criação da imagem se dá, agora, em um período


muito anterior ao vivido pelo cacique Krenak. Parece-nos que atribuir aos padres a ideia da
criação isenta-os de qualquer penalização pela criação de uma imagem. A recriação da
história da origem do Ynhom-Quinhom encontra correspondência na conduta da Congregação
Cristã do Brasil que nega qualquer tipo de mediação entre a criatura e o criador. Em várias
conversas com os índios Krenak, ao falar do Yhnom-Quinhom, eles o comparam à imagem de
Nossa Senhora Aparecida, mostrando-nos que a criação de imagens é uma prática da Igreja
Católica.
Não só a história que narra a criação do Ynhom-Quinhom foi reelaborada, como
também o poder da imagem foi passível de ressignificação. De acordo com o depoimento de
João, não é negada a eficácia da imagem em fazer milagres, mas o poder está na fé, e não no
Ynhom-Quinhom. Assim, a imagem tornou-se desnecessária, já que a fé os leva a Deus sem a
necessidade de uma intermediação. Dessa maneira, assistimos à dessacralização do Ynhom-
Quinhom:

338
Mario Cecílio Damaceno. 24/07/2007.
339
João Borum de Oliveira. 18/10/2008.
154

L: A gente acreditava, acreditava que ela podia fazer, sei lá...que a gente
podia fazer um pedido ali, né? E não sei como Deus podia ouvir... (risos). A
gente acreditava.
P: E o que mudou?
L: Ah, sei lá. Mudou muita coisa. Sabe por que? Porque, o que mudou é que
a gente assim, enxergou assim, que aquela madeira não tinha ouvido e não
tinha olho, nem não podia falar. È como hoje a gente, eu acredito hoje
assim, que nós serve a um Deus vivo, que nós não vê ele mas ele vê nós.
Ele escuta, ele fala, ele enxerga, ele faz muita coisa. Ele pode nos palpar,
tem mão, aquela madeira não. Ela não tinha ouvido, não tinha boca, não
podia falar com nóis, não nos palpava. Então, eu acredito assim. 340

Entre as entrevistas gravadas e conversas informais, os convertidos salientam que


aquela é uma imagem de madeira e que o Deus apresentado pela Congregação é um Deus
vivo, como vemos abaixo:

O Ynhom-Quinhom era feito de madeira, e muitos acredita nele até hoje,


mas...nós não acredita, não acredita mais, não acredita mais porque nós
passamos a entender que aquilo é uma madeira feito pela mão do homem,
né? E nós não pode acreditar naquilo feito na mão do homem, ser Deus.
Deus que fez, Deus que fez nós, como nós pode fazer Deus? Então pra nós
tá errado. Começemo a entender que nós, que nós estava confundindo nóis
mesmo, fazendo uma coisa que era contra Deus, dizendo que era Deus. Um
pedaço de pau não pode ser Deus, hoje nós crê em Deus, que é o Deus vivo,
que todo mundo crê, né? Que é o Deus do católico, do índio, Deus de todos.
Nós cremos nele, nós não vemos ele, mas foi ele que fez o céu e a terra e
também todos nós, e assim a gente passou a servir a Deus diferente.
Servimos a Deus na Congregação como cristão e tamo contente, mas não
deixamos também da cultura, temo também a nossa cultura ainda, tá em pé
a cultura.341

Mário também nos fala:

É nós que faz o criador ou é ele que faz nós? È ele que faz nós, o criador
mostrou pra nós que isso era um vão. Tem alguns que crêem, eu não
creio.”342

Quando João e Lia retornaram das terras mineiras, no início da década de 1990,
começaram o que eles designaram de “Resgate Cultural”, colheram vocabulário no seu

340
Maria Helena Cecílio Damaceno. 18/10/2008.
341
João Borum de Oliveira. 18/10/2008.
342
Mário Cecílio Damaceno. 24/07/2007.
155

idioma, buscaram histórias com os mais velhos que resistiam em oferecer informações, pois,
já bastante traumatizados, temiam a ação dos não indios. O Ynhom-Quinhom é parte desse
resgate, é uma figura importante na busca, no renascimento dessa identidade Krenak, agora
em terras paulistas. Lia, João e Mário não conheceram a primeira imagem que dele foi feita.
Apenas João cresceu nas terras mineiras, Lia veio para São Paulo com apenas 2 anos de idade,
Mário era um bebê, ainda de colo, quando a mãe faz a viagem com os filhos. A viagem dos
irmãos Lia e Mário Damaceno para o Posto Indígena Krenak fez nascer a vontade da
manutenção desses conhecimentos, também em Vanuíre.
Por meio dessa busca, é que uma terceira geração de Krenak, moradores de São Paulo,
que nunca tinham saído dali, começam a conhecer os costumes e as crenças de seu povo. As
crianças frequentam a cabana, veem a imagem, vivenciam o ser Krenak. Sobre o Ynhom-
Quinhom, Mariana nos fala:

A imagem, a imagem dele, sei lá, aquilo lá para nós que era jovem na
época, era um simples pedaço de madeira. Agora, para o tio Mário, para
Mãe, aquilo lá, era uma, um Deus mais ou menos, pode dizer. Mas na época
que Deus chamou ele, Deus mostrou para uma serva de Deus tomada pelo
seu espírito, pelo Espírito Santo de Deus, e falou que era para eles queimar
aquilo lá, que aquilo lá não era do agrado dos olhos de Deus. È que nem,
pra nós, Nossa Senhora Aparecida é um barro, porque ali é um santo que
não fala, não ouve, não vê, não escuta...mas Deus não, Deus está acima de
tudo, Deus vê, Deus fala, Deus ouve, o que nós pede, Deus da pra nós o que
nós pede, né? Então, aquele Ynhom-Quinhom lá, pra eles era um Deus, mas
Deus chamou, Deus converteu, Deus tirou tudo aquilo, e foi queimado,
virou cinza, virou pó. Pra mim mesmo, para nós jovens, pra mim mesmo
não significava, era uma madeira que ficava ali, mas pra eles não, eles era
mais antigo, vieram de Minas com isso já mais... Mas aqui que nós fomos
conhecendo a cultura Krenak. Porque antes eu não conhecia também, depois
que eles vieram para cá, minha mãe foi embora depois que volto que foi
mais, né? Mas ai pra mim mesmo não significava nada aquilo lá, era um
pedaço de madeira que tava ali.343

A leitura que Mariana faz de Ynhom-Quinhom sofre a influência dos ensinamentos da


Igreja Congregação Cristã do Brasil, ela fala como convertida. Mas Mariana também
representa uma geração que nasceu longe das terras “tradicionais” do seu povo, que não via,
pelo menos na imagem do Ynhom-Quinhom, a mesma representatividade. Tiago Umbelina

343
Mariana Cecílio Damaceno. 17/10/2008.
156

(convertido), embora tenha quase a mesma idade de Mário, tem uma visão parecida com a de
Mariana. Quando perguntamos se o seu povo acreditava em espíritos ele nos respondeu:

T: Acreditavam, antigamente acreditavam, mas agora...Eu nunca participei,


quem participava muito era a Lia, o João. Pegava um pedaço de pau e servia
aquele pedaço de pau antigamente. Aquele era o Deus deles.
P: O Ynhom-Quinhom?
T: É, servia aquele pedaço de pau. O Mário também, você conhece o Mário?
Esse mesmo, esse participava. Eu nunca, eu nunca participei. Eu cheguei aqui
eles tava passando ruim, bebia, essas coisa, fumava. O cachimbão do Mário
antigamente, cachimbo grande, servindo aquele pedaço de pau. (...) Mas agora
nóis serve o Deus vivo que existe mesmo. È isso ai agora. Antigamente
participava dançando, participava errado, né? Não sabia que existia Deus, né?
Deus que fez nós, não pode né? A gente serve ao nosso Deus e a cultura é
igual.

Os Krenak acreditavam344 que os não índios tinham a capacidade de dessacralizar os


ambientes, de eliminar os encantamentos que os protegiam. Essa crença também existia entre
os Krenak de Vanuíre. Mário contou que permitiam que “brancos” visitassem a cabana, mas
que não podiam ver o Ynhom-Quinhom. Uma mulher branca, desobedecendo à ordem,
tentou, com uma máquina fotográfica, fazer uma imagem, durante a máquina se quebrou, e a
mulher acabou confessando o que tentara fazer. Naquele momento, os Krenak entenderam
que a quebra da máquina havia sido um castigo, mostrando que o Ynhom-Quinhom estava ali,
protegendo-os.
Missagia afirma que os índios Krenak associam simbolicamente a perda do mágico, do
sobrenatural, à presença dos não índios no seu território sendo estes ainda evitados, como
neste caso:

É interessante notar na relação mágica do caçador com suas flechas que


ainda se mantém o habito de evitar o contato dos kraí com os
encantamentos, fortalecendo a identidade Krenak. Não é permitido a
nenhum kraí tocar, nem ao menos ver as flechas rezadas desses caçadores,
que só as mostram para membros de sua própria família.345

Embora exista, atualmente, no P.I Krenak a presença missionária, índios convertidos


inclusive na Congregação Cristã do Brasil, sempre houve nesta área uma forte resistência à
344
È importante salientar que ainda há Krenak que mantêm a crença, alguns pesquisadores puderam constatar
durante trabalho de campo no Posto Indígena Krenak.
345
MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op. cit., p. 173.
157

presença de padres ou evangélicos. Missagia acredita que isso possa ser explicado pelo poder
dessacralizador atribuído aos não indios. Em Vanuíre, assim como os “ brancos” não podiam
ver o Ynhom-Quinhom na cabana, os índios também resistiram, inicialmente, à conversão,
com medo de que eles acabassem com a cultura, que viessem para roubar suas terras.
Como vimos, os Krenak convertidos negam o poder da imagem do Ynhom- Quinhom;
no entanto, o mesmo não ocorre com os Marét que dizem continuar acreditando. Os Marét
aparecem como um elo de ligação entre a “religião dos antigos” e a seguida hoje, prova de
que Deus sempre existiu entre eles:

Os Marét-Erehé até hoje nós acredita. Os Marét-Erehé por tanto que nós
acredita que ainda nós tem os cânticos deles ainda. E nós acredita nos
Marét-Erehé porque os Marét-Erehé pra nosso povo era o espírito bom e
hoje em dia pra nós é o espírito bom, o Marét-Erehé é o espírito Santo de
Deus, né? Então, é as duas coisas ao mesmo...uma coisa só. Só era diferença
no falar, mas é uma coisa só. Como se você, você é branca acredita no anjo,
no anjo de Deus. Então, o Marét-Erehé pra nós é o anjo de Deus, porque se
ele é bom ele era uma coisa enviada de Deus, né? Então, nós acredita que o
Marét-Erehé, Marét-Erehé até hoje nós acredita.346

Foi encontrado um lugar para a figura do Marét-Erehé, dentro da nova crença, em que,
remodelado, revestido de Espírito Santo pode continuar existindo. Marét-Erehé é a prova da
permanência de Deus entre eles, é um espírito bom que os visitava na cabana antes da
conversão. Hoje, eles acreditam que a energia que sentiam ao entrar na cabana, ao dançar, era
porque o “espírito bom” estava ali. Diferente do Yhnom-Quinhom, o Marét-Erehé é um
espírito, está vivo e os acompanha. Eles não o veem, mas também não veem a Deus, apenas
sentem a sua presença.

3.5 - As condutas na Congregação Cristã

A Igreja Congregação Cristã do Brasil é conhecida por suas normas rígidas: não beber,
não jogar, não assistir à televisão, não fumar, não usar vestes curtas e decotadas, ser fiel ao
parceiro, entre outras proibições. Para o pentecostalismo o arrependimento nasce a partir do
abandono das “coisas do mundo”. Apenas com a ruptura dos antigos costumes é que a pessoa

346
Maria Helena Cecílio Damaceno. 18/10/2008.
158

pode ganhar a salvação, principal objetivo do “crente”. Mas, ainda que aceitem esse conjunto
de condutas, segui-las nem sempre é uma tarefa fácil. Muitos acabam fugindo às regras e
distanciando-se da igreja, enquanto outros conseguem “adaptá-las” em seu cotidiano e, dessa
forma, permanecer na “irmandade”.
A dificuldade em seguir a doutrina não é uma realidade vivida apenas pelos
convertidos da aldeia Vanuíre. Para a escrita da dissertação de mestrado Camargo347 realizou
trabalho de campo acompanhando a vida dos “irmãos” da Congregação Cristã que
freqüentavam a sede da igreja no bairro do Brás, na cidade de São Paulo, tendo encontrado
aparelhos de televisão na casa dos convertidos. Sabemos que meios de comunicação como a
televisão e o rádio são proibidos aos “irmãos”, pois tais aparelhos os aproximam do mundo
profano de que eles devem se manter distantes. Nas tais casas visitadas por Camargo, a
explicação dada foi a de que nem todos eram convertidos, portanto os televisores eram para
uso daqueles outros moradores. Em uma das casas, o aparelho televisor estava embutido no
armário. A dona da casa explicou que o guardava ali para não escandalizar os “irmãos” que
vinham visitá-la, mas afirmou que apenas assistia a programas jornalísticos e evangélicos.
Sobre os “irmãos”, Camargo fez uma outra observação que nos parece pertinente, ele
notou que os homens pareciam menos preocupados com as suas próprias condutas. Não temos
dados concretos para afirmar que os homens convertidos de Vanuíre são menos rígidos em
seu comportamento do que as mulheres; podemos, no entanto, perceber que os homens
encontram mais dificuldades em abandonar a “vida do mundo”. Entre as regras de maior
dificuldade citadas em Vanuíre estão o abandono dos jogos, das bebidas alcoólicas e do
cigarro
Segundo informações tidas na aldeia, há o testemunhado e o batizado. O testemunhado
é aquele que visita a igreja, que ora, que está indo congregar. É considerado um servo de
Deus, mas que ainda não está “firme”, não segue as condutas rigorosamente, ainda
aguardando ser chamado. O batizado ouviu o chamado, está disposto a seguir a conduta,
“desceu às águas” no tanque batismal e nasceu para uma nova vida, longe das “coisas do
mundo.” Os convertidos nos dizem que, quando Deus chama não há como recusar, mas
sabemos que antes de tomar a decisão eles refletem sobre o que é a vida do “crente”, sobre as
condutas que terão que seguir, como nos mostra o depoimento abaixo:

347
CAMARGO, Ivani Vasconcelos . Op.cit.
159

E é assim, Deus começou a visitar a gente, visitava a nossa alma e uma


coisa assim que ia, eu falava assim, eu queria obedecer a Deus, mas tinha
uma coisa assim que, do outro lado que falava que se eu obedecesse a Deus
como que eu ia seguir o meu esposo? Pra onde que, não podia mais pro
baile, não podia usar mais calça, não podia usar mais short, não podia sair
mais para o jogo com ele, né? Então, ai eu fui indo, fui tirando, ai depois, eu
fui tirando isso da cabeça. Eu tenho que ir para o lado certo, não para o lado
errado, né? Porque se eu morrer do jeito que eu tô, como que eu vou prestar
conta da minha alma para Deus um dia? Porque nós todos temos uma alma
para prestar conta diante de Deus, então a gente tem que tá...tem que tá
certo para um dia Deus julgar nós, o que nós fizemos de bom na obra, né?
Então eu falava assim, eu não posso seguir meu esposo por causa que ele tá
fazendo tudo errado, então eu tenho que ir pelo caminho certo, porque eu já
tava indo, e ele já conhecia porque a mãe dele já tinha obedecido a Deus, só
que ele também não gostava muito. Então, eu falava assim: “Eu vou mesmo
ele querendo, não querendo, eu vou.” E eu ia. Mas ai comecei a tirar as
coisas assim que a gente não pode usar , que é calça, que é short e blusa
cavada. Então, eu fui tirando, e Deus foi preparando mais roupa pra mim
assim, de serva de Deus. E quando eu saia da igreja, ou entrava ou saia,
sempre aquela paz gostosa, aquela visitação gostosa do Espírito Santo, que
Deus toma a gente, que a gente parece que não é a gente que tá ali, sei lá...é
uma coisa muito boa.348

No depoimento, vemos que antes da conversão ela pesou os prós e os contras. Sabia
que o conjunto de condutas a seguir a distanciaria, em certa medida, do marido já que espaços
como o campo de futebol e os bailes, não seriam mais freqüentados por ela. No entanto, ainda
como testemunhada, ou seja, como frequentadora, ela tinha adquirido a consciência de que era
necessário preparar-se para o encontro com Deus, e a preocupação com a salvação da alma
fez com que se convertesse. Uma das barreiras encontradas por ela, assim como ouvimos de
outras mulheres, foi o abandono da televisão. Porém, segundo a depoente, esse vício Deus foi-
lhe tirando aos poucos. Em geral, as mulheres se convertem primeiro, daí a preocupação com
o marido, os quais, conforme já dissemos, mesmo depois de convertidos encontram
dificuldades em permanecer na “Graça”.
O marido da depoente acima acabou por se converter, mas ainda faz uso do álcool.
Segundo ela:

348
Mulher Krenak+ Kaingang. 10/2008
160

Ele é, mas só que ele não ficou, tá parado. Tá com dois anos que ele não vai
na igreja, só que ele bebe, joga bola, fuma , mas só que agora já é mais
calmo que como antes, né?349

Esse homem desceu às águas, mas não conseguiu seguir as condutas durante muito
tempo. Mas embora voltado às práticas antigas, a esposa me contou que o homem havia se
tornado muito mais calmo, abandonado ações violentas e a infidelidade. Há outros casos em
Vanuíre de homens convertidos, que se declaram “crentes”, mas que ainda assim fazem uso
do álcool e do cigarro; é o futebol, no entanto, a prática que nos parece a mais difícil de ser
abandonada.

3.6 - Vanuíre Futebol Clube

Em vários trabalhos acadêmicos que tiveram como objeto aldeias indígenas, vemos a
importância que tem para os índios as partidas de futebol. O futebol possibilita o
estabelecimento de um confronto entre índios e não índios, sem que estes estejam em posição
inferior. E mais, além da possibilidade de vitória sob um grupo de homens “brancos”, há uma
relação entre índios e demais jogadores que não é marcada pela violência e subjugação.
No “Krenak” temos o Watu Futebol Clube. Segundo Missagia, mesmo o esporte
tendo sido aprendido com os não índios, o time tem características étnicas próprias como o
nome escolhido – que na língua nativa significa Rio Doce – e a cor do uniforme, o vermelho.
Essa prática une Krenak e Nakré-hé os quais, se no viver diário, tomam posições contrárias,
evitando o matrimônio, no campo formam um único time. Quando a autora realizou o
trabalho de campo, os fazendeiros ainda ocupavam as terras em litígio. Índios e fazendeiros
disputavam além das terras a partida de futebol:

Os primeiros, despossuídos totalmente de condições matérias, enfrentam os


“inimigos” com os uniformes vermelhos, cor usada pelos antepassados na
pintura corporal como preparativo de guerra. Levam consigo sempre a
“torcida” composta pelas mulheres, adolescentes e crianças.350

349
Idem.
350
MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op. cit., p. 162.
161

Em 1970, quando Melatti esteve na aldeia Vanuíre, os índios jogavam bocha, mas já
era o futebol o esporte preferido. O time Vanuíre Futebol Clube fundado em 1966, era de
composição mista, jogando índios e não índios. Havia presidente e vice-presidente que eram
escolhidos pelos seus jogadores. Os jogos eram disputados dentro e fora do posto, quando
fora, em lugares próximos como Arco-Íris (4 Km) , Pilar (20 Km), Fazenda União (22 Km),
entre outros.
Além dos jogadores não índios, outros frequentavam a aldeia nos dias de jogos. A
partida também era assistida pelas mulheres indígenas que não se misturavam aos não índios e
ainda que a alteridade nos pareça tão visível, a autora tece o seguinte comentário:

O futebol, mas do que um esporte, desempenha naquele contexto de


convivência interétnica, dupla e complementar função: em primeiro lugar,
pode ser visto como mecanismo socializador de populações mais jovens de
índios, inculcando-lhes certos padrões de relacionamento social que
presidem as relações em certos ambientes do mundo dos brancos. Em
segundo lugar, permite aos índios participarem de um sistema de relações,
relativamente bem estruturado, onde o “civilizado” também está presente,
quer como jogador, quer como expectador, quer como vizinho, quer como
“gente de fora”, isto é, de cidades mais distantes. A esposa do auxiliar de
Posto de Vanuíre se deu conta desse particular, pois comentou que o futebol
é o que mais une índio e FOK, assim como a Escola e o Snooker”, porque
são freqüentados por “civilizados” e arrendatários da área indígena.351

Em um período anterior já encontramos referência às partidas de futebol na aldeia:

Houve animadíssimo jogo de futebol entre os quadros deste Posto e do


Barreirão, saindo vitorioso o primeiro, pela contagem de 4 a 2,
respectivamente, pelos 1º e 2º quadros.352

Ou ainda:
Houve animado jogo de futebol no campo deste Posto entre os quadros do
Saltinho e Vanuíre, saindo vencedor este último, por 2x0 no 1º e 1x0 no 2º
g.353

Vemos, então, que a prática do futebol é muito anterior à da conversão. O futebol era
uma das poucas opções de entretenimento. Bastante isolados, os índios saíam da aldeia

351
MELATTI, Delvair M . Op. cit., p. 144
352
Diário de posto. Vanuíre. 19 de dezembro de 1946
353
Diário de posto. Vanuíre. 16 de março de 1947
162

quando iam vender sua colheita ou fazer compras, lembrando que ambas as atividades, na
maioria das vezes, eram feitas na mesma ocasião. As partidas eram um dos poucos momentos
em que índios e não indios se relacionavam, além do que o futebol permitia aos índios saírem
da aldeia para jogar em outros locais. Hoje, os jogos continuam ocorrendo aos domingos,
possibilitando o futebol uma grande reunião entre jogadores índios e não índios, que são
assistidos por não índios, mulheres indígenas, crianças.354
Dessa maneira, o futebol está enraizado no cotidiano da aldeia, é um dia de reunião
entre vários personagens. Uma rotina que como mostramos se repete há muito tempo, o que,
provavelmente, explique a dificuldade dos homens em romper com essa atividade. É bastante
interessante, contudo, que as mulheres falem da dificuldade dos homens em abandonar o
futebol, mas que não vejam problemas quanto a elas próprias estarem presentes às partidas.
Pudemos apreciar sempre, nos dias de jogos, as rodas formadas pelas mulheres, bastante
entusiasmadas, torcendo pelo time da aldeia.
Em uma de minhas visitas a área, as equipes eram formadas de Toledo e de Vanuíre,
jogando primeiro o time que eles chamam de cascudo (time reserva) e depois o titular. Nessa
ocasião, aproximei-me de um grupo de mulheres Krenak, Kaingang e Terena, convertidas,
podendo registrar o seguinte comentário:

Índio não tem muita religião. Antes era passa a bola cumpadre, agora é
passa a bola irmão.355

A fala acima deixa claro que a conversão, ao menos para alguns, não significou o
rompimento com a prática do futebol, o que mudou foi que agora jogam entre “irmãos”. As
razões dessa proibição não estão claras para todos, pois alguns, ao serem questionados,
chegaram a nos perguntar se jogar é pecado. A maioria dos índios com os quais falamos
afirmaram que o jogo leva à agressão verbal, aos palavrões. Mas temos também a seguinte
versão:

Ah, porque é jogo né? Tudo que é jogo não pode. Se você tá ali, que nem
por exemplo, é...assim... vai lá um homem com sua família, tem sua família
354
O senhor Biriba é um Kaingang já idoso, quando tentei marcar uma entrevista com ele, me avisou
logo: “Só não venha de domingo porque tem jogo”. O mesmo era vice-presidente do time em 1971. Hoje o vejo
cuidando do gramado do campo de futebol.
355
Comentário de uma índia “misturada” ( K+ Kr) . Data: 20/07/2008
163

e tudo, começa a joga, joga, joga, e vai perder não vai? Então é jogo, então
não pode. Sei lá, jogo também eu não entendo dessa parte que não pode,
mas não pode, sabe que tudo é vício, vira um vício, ali você vai jogando,
jogando, vai se viciando naquilo. Então de vez de ir na igreja, lembra e orar
a Deus, agradecer a Deus pela nossa benção que Deus colocou na nossa
casa, tá esquecendo, esquece de Deus e vai ficar só no jogo.356

Percebemos, na fala das pessoas, que o erro não está na prática do jogo em si, mas nas
relações que se estabelecem durante ele: o homem que xinga o adversário, aquele que deixa
de ir ao culto para jogar, nas bebidas que se consomem durante uma partida.357 Conversando
com uma jovem filha de Kaingang com Krenak ela nos disse que uma das queixas do
cooperador não índio que celebrava os cultos em Vanuíre era exatamente sobre a manutenção
dessa atividade ao que ela lhe respondia dizendo ser necessário ter paciência. Parece, no
entanto, que a dicotomia vista entre os dois espaços pelo cooperador, não é a mesma vivida
pelos índios. Alguns convertidos insistem em ser convertidos e jogadores, ao mesmo tempo.
O fato de vestirem o calção na tarde de domingo, não os impede de vestirem o terno adequado
no próximo sábado.

356
Mulher (K+Kr) Data: 17/10/2008
357
Próximo ao campo tem um “barzinho” que vende bebida alcoólica.
164

Conclusão

A ocupação colonizadora no Vale do Rio Doce impôs-se pela violência. A navegação


do rio Doce, o estabelecimento dos colonos, a construção da ferrovia, e tantos outros
empreendimentos engendrados em nome do “progresso”, foram implantados com o desterro,
o contágio epidêmico, a exploração do trabalho e a dizimação dos índios habitantes da região.
Às guerras movidas para a extinção da população indígena no período colonial, sucederam-se
práticas genocidas durante o Império e a República. A política indigenista do Estado pautou-
se pela eliminação física dos índios seguida por práticas para a sua assimilação forçada à
sociedade brasileira. No entanto, toda essa imposição de um nós único, resultou em uma
sociedade plural. Prova disso é que ainda no século XXI, falamos dos Krenak, dos Borum, em
oposição aos Kraí.
Não apenas as histórias imemoriais, mas a trajetória mais recente dos índios Krenak
foi marcada como vimos, pelos desterros e a dispersão para diversas regiões do país.
Expulsos de suas terras, algemados, mal acomodados, foram para Maxakalis, Fazenda
Guarani, Vanuíre e para tantos outros destinos. Mas, além da dor, havia a lembrança do Watu,
dos peixes, das ilhas, da terra sagrada e, mais forte que tudo, havia a esperança do retorno.
O deslocamento para Vanuíre é resultado deste processo. Das famílias Krenak que
tiveram São Paulo como destino, umas vieram obrigadas pelos funcionários do S.P.I, outras
fugiram da fome, dos “pistoleiros” contratados pelos fazendeiros. Parte retornou, outros se
mantêm na área até os dias de hoje. Longe de suas terras de origem, a identidade étnica não se
apagou. È evidente que o “ser” Krenak, em Vanuíre, se manifesta dentro de um contexto
especifico; no convívio com as etnias ali presentes, nas condições de sobrevivência
encontradas no P.I, nas relações estabelecidas com os não índios daquela região. Os mais
velhos assumem a mesma identidade de seus parentes, carregam o sentimento de pertencer a
um lugar. Esse sentimento de pertença foi transmitido aos índios nascidos de casamentos
interétnicos - os Krenak de Vanuíre, que também se sentem Krenak do Watu. Dessa maneira,
a identidade Krenak é reelaborada tanto pelo nascimento, quanto pela descendência.
Como vimos, os Krenak “nasceram” da união de diferentes subgrupos Botocudos, mas
a identidade Krenak é assumida por todo frente á sociedade nacional. Internamente a
heterogeneidade aparece, sendo a referência genealógica valorizada no P.I Krenak – ser
165

descendente do líder Krenak é um importante diferencial. A divisão espacial vista na aldeia,


onde uns estão localizados na área sul e outros ao norte, corresponde, em certa medida, às
distinções de origem dos subgrupos, embora esse não seja um quadro estático, como nos
mostrou Arantes. O fato, é que, em Vanuíre, não se faz uso dessas outras identidades. Não há
“eles” e “nós” entre os Krenak de Vanuíre, talvez porque o contraste já se faça presente nas
relações com os Kaingang e demais etnias. Poderíamos dizer que, em Vanuíre, a identidade
étnica sofreu um processo já descrito por Manuela Carneiro, para outros grupos em diáspora:
o fortalecimento e a simplificação. Na unidade estava a força, uma unidade manifestada
também internamente, uma vez que eram “os de fora”. Nesse caso, não seria pertinente o uso
de filiações a subgrupos que causariam o seu oposto, a fragmentação. Nessa reelaboração da
identidade, a dança Krenak, a língua Borum ensinada na escola, a referência aos Marét, a
confecção de adornos e o conhecimento da trajetória histórica de seu povo foram sinais
diacríticos suficientes para demarcar a identidade Krenak.
Apesar das alianças estabelecidas através das relações de afinidade, as diferenças
étnicas entre Krenak e Kaingang persistem. Mas o pentecostalismo ofereceu a eles uma
identidade comum – são todos “irmãos” na fé. A igreja é vista pelos convertidos como
reestruturadora, capaz de harmonizar as relações interétnicas dentro da aldeia, de livrá-los de
um vício gerador de muitos conflitos: o álcool. Somados a isso, temos o convívio com os não
índios que congregam na mesma igreja.
“Descobrir” um Deus único, criador de todos os homens, fez com que eles se
descobrissem iguais, mesmo na diferença. No entanto, a aceitação deste “Deus Vivo”, termo
recorrente na aldeia, não foi imediata. A religião foi vista como mais uma forma de
dominação do não índio, capaz de destruir a “cultura”358. O pentecostalismo foi sendo aceito à
medida que descobriam que esse Deus, também os aceitava. Iriam ao culto, desde que
pudessem usar o Cricocão359, desde que pudessem dançar como os “antigos” faziam. O
antigo, contudo, sofreu uma releitura a partir do novo, antigas crenças foram abandonadas,
outras foram revestidas e continuaram a existir. Houve espaço para o diálogo e a negociação
entre o “antigo” e o “novo”. Um novo que, na ótica dos índios, é bastante antigo, ao irem

358
Reiteramos que tomamos como cultura a definição dada pelos índios: cultura é a dança, o artesanato.
359
Instrumento musical usado nas danças.
166

descobrindo que, embora tivesse outro nome, o Espírito Santo enviado por Deus, sempre
estivera entre eles, mesmo no “tempo do mato”.
Em 2005, os Krenak que permaneceram nas terras originárias, bloquearam a Estrada
de Ferro Vitória–Minas, tendo duas reivindicações principais. A primeira delas diz respeito à
demarcação de uma área de 1,8 mil hectares que fica na margem direita do Rio Doce, a
mesma área que, em setembro de 1998, foi transformada em Parque Estadual dos Sete Salões,
pelo Governo do Estado de Minas Gerais. Os Krenak reivindicam aquele espaço como seu:
“Essa é uma região importantíssima para nós. Contém sete cavernas e pinturas rupestres feitas
pelos nossos antepassados”, explicou o cacique Rondon Félix Krenak.”360 As obras para
implantação do parque foram interrompidas, mas a disputa ainda não foi resolvida. A FUNAI
montou um GT (grupo de trabalho) para a realização de estudos que comprovem o direito dos
índios. O trabalho que deveria começar em dezembro de 2008 foi adiado, até o momento não
temos informações quanto ao início das atividades.
A segunda reivindicação é referente aos danos causados pela hidrelétrica de Aimorés,
um empreendimento da Companhia Vale do rio Doce (com 51% de participação), em
associação com a Companhia Energética de Minas Gerais, a CEMIG (com 49%). A Usina
construída tem sua margem a 11 quilômetros da aldeia Krenak. Metade dela é constituída pelo
Rio Doce, sendo necessário no restante um alagamento. Em 2008, a Justiça entendeu que os
responsáveis pela hidrelétrica deveriam pagar uma indenização por dano moral coletivo ao
povo Krenak, já que, ao realizar o aproveitamento do potencial hidrelétrico do médio Rio
Doce, ignoraram os direitos e interesses do povo indígena Krenak.
A grande questão é: Quem a Justiça entende como sendo o povo Krenak? Em nenhum
momento os Krenak de Vanuíre foram consultados pela FUNAI, ouvidos pela Justiça. O
direito, neste caso, ficaria restrito aos que permaneceram no território? Não teriam os Krenak
de Vanuíre direito às indenizações que já estão sendo pagas aos moradores do P.I Krenak?
Para os Krenak de Vanuíre essa não é só uma questão de quem e quanto recebe, envolve a
identidade, a pertença étnica. Ouvi de uma índia Krenak: Se nós não somos Krenak, nós
somos o quê? E assim João Borum nos explicou: “Nóis daqui é o mesmo de lá, nós que veio
pra cá”.

360
Rondon Felix Viana.
167

Sabemos que a identidade Krenak que sobreviveu à diáspora sofre sanções na sua terra
de origem. A permanência nas margens do Rio Doce é sinônimo de luta, de terem resistido as
ações do Governo, vencido a invasão dos fazendeiros. E, também por isso, não parece justo
aos índios Krenak de Vanuíre estarem excluídos da indenização paga pela inundação das
terras por eles ocupadas tradicionalmente, uma vez que parte deles retornou ao vale do rio
Doce em um momento de grande dificuldade, quando a terra ainda estava em litígio, lutando,
naquela ocasião, junto aos demais.
Com a hidrelétrica, o trecho do Rio Doce que corta a aldeia será alagado, as casas à
sua margem terão que ser abandonadas. Parte dos índios residentes na aldeia Krenak
considerarem que a indenização só deveria favorecer aos que vivem próximos ao Rio. Neste
caso, não só os índios Krenak de Vanuíre seriam excluídos, mas também o grupo que vive na
área norte da aldeia. Estas são discussões atuais, todas as famílias do P.I tem recebido em
parcelas mensais a indenização. Mas além das casas que terão que ser removidas, a beleza das
pedras, as chamadas “ilhas” serão cobertas pela água. Essas ilhas são referência para este
povo, muitas famílias viveram nelas. O Senhor Antonio Cecílio Damaceno morador de
Vanuíre, nos disse que depois do desterro para Maxakalis, da viagem para Brasília, depois de
“vagarem” por tantos lugares, foram as ilhas que devolveram segurança à família : “(...) no
meio da viagem meu pai falou, acho que nós vamos desce vamos até a aldeia do Krenak,
vamos voltar para nossa terra, quem sabe um dia Deus pode possa nos ajudar que aquela terra
pode ser resgatada para nos outra vez ,enquanto isso nos vamos morando nas ilhas, porque as
ilhas ta lá, nos podemos continuar morando ali, fazemos nossos ranchos e vivemos de pesca.”
Em Minas Gerais, ouvimos casos sobre grupos indígenas que se negaram a receber
indenização, e que, ainda assim, nada puderam fazer contra os danos causados pelas
hidrelétricas. É como se, neste momento, depois de tantos embates com os “brancos”, os
índios se vissem sem capacidade de reação. A incerteza quanto ao destino da aldeia existe,
uma jovem Krenak moradora daquela área nos disse: “A aldeia vai acabar, uns vão sair”.
Entre os Krenak de Vanuíre, inclusive os que estavam admirando as pedras do Watu pela
primeira vez, havia tristeza. Desejavam que seus filhos que não puderam estar presentes
naquela ocasião, em razão das dificuldades econômicas, também pudessem um dia apreciar
tal beleza.
168

Tivemos acesso a um documento redigido pelos índios Krenak de Vanuíre destinado a


FUNAI e aos caciques do P.I Krenak no qual reafirmam a mesma identidade de todos os
outros Krenak. Reivindicam não apenas o direito quanto aos danos da Hidrelétrica de
Aimorés, mas a participação nas decisões quanto aos Sete Salões.
A conclusão é que não se conclui, que esses índios sobre os quais falamos, não são os
mesmos de 1500, ainda tão falados em nossas escolas. Estes, estão inseridos no tempo e na
história. E sua trajetória é fruto da imposição dos não-indios, mas também de suas próprias
escolhas. A luta dos guerreiros Borum continua.
169

Fontes

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tratamento oferecido;
- Memorando, ata de reunião na aldeia;
-Autorização para a locomoção dos índios, pedido de transferência de posto;
-Listas de presença escolar do ano de 1986;
170

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177

ANEXOS
178

Alguns dados quantitativos sobre a escolha religiosa na aldeia Vanuíre

Com o auxílio de uma das professoras da aldeia, fizemos um levantamento contendo a


etnia, religião e o número de moradores de cada família.361 É importante lembrar que a
pesquisa foi feita por família e, nesse caso, registramos a religião dos responsáveis, pais e
mães.362 A pesquisa qualitativa nos informa quanto ao número de famílias convertidas e não
convertidas. Mas não nos parece possível definir, exatamente, quantos Krenak seguem cada
religião, pela dificuldade em enquadrar identidades tão fluidas. Há nesta lista “misturados” que
se identificam Krenak, filhos de não índio com Kaingang que se dizem Krenak, filhos de
Kaingang com Krenak que assumem a identidade Kaingang, não cabendo aqui outra postura
que não respeitar a identidade assumida.
Podemos afirmar, contudo, que na maioria das famílias da Congregação Cristã do
Brasil (batizados ou não) pelo menos um dos conjugues é Krenak, incluindo nessa categoria os
“misturados”. Entre os Assembleianos, a maioria é mesmo Terena. Das 7 famílias, 6 tem pelo
menos um dos membros desta etnia. Como já dissemos, são Terenas que já vieram do Mato-
Grosso convertidos.
Temos em Vanuíre 203 habitantes, formando um total de 57 famílias. Destas 40 são
evangélicas, 15 são católicas e 2 delas tem um membro católico e outro evangélico da
Congregação Cristã do Brasil. Das 40 evangélicas, 33 são da Congregação Cristã do Brasil e 7
famílias são da Assembléia de Deus.
Usando como base às 55 famílias, chegamos aos seguintes números:

Congregação Cristã do Brasil = 33 = 60%.


Igreja Católica = 15 = 27,3%.
Assembléia de Deus = 7 = 12,7%.

361
Informações levantadas 10/2008.
362
Não sabemos precisar, mas é grande o número de crianças e adolescentes em Vanuíre. Filhos que seguem a
religião dos pais. Na CCB o culto de domingo é destinada aos jovens, sendo bastante freqüentado em Vanuíre.
179

Membros da
Congregação Cristã
13%
do Brasil
Católicos

27%
60%
Membros da
Assembléia de Deus

Lista das casas

1º casa:
Mário Cecílio Damaceno (Krenak)
Aparecida Conechú (Kaingang + Pankararu)
Moradores: 05
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil

2º casa
Helena Conechú ( Pankararu)
Filho: Ademir Conechú (Kaingang+ Pankararu)
Moradores: 02
Religião: Senhora Helena é evangélica da Congregação, seu filho é católico.

3º casa
Maria Helena Cecílio Damaceno (Krenak)
João Batista de Oliveira (Krenak)
Moradores:02
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil

4º casa
Aline Damaceno Cotuí (Krenak)
Wagner Indubrasil (Kaingang)
Moradores:04
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil

5º casa
Ena Luiza (Kaingang)
Moradores:02
Religião: Evangélica da Congregação do Brasil
180

6º casa
Antonio Cecílio Damaceno (Krenak)
Maria Aparecida Caiua ( Caiua)
Moradores:06
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil

7º casa
Marcos Elias de Melo (Fúniô)
Tereza Gomes Conechu ( Kaingang)
Moradores:06
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil

8º casa
Josefa Elias de Melo (Funiô)
Moradores:01
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil

9º casa
Adeildo Elias de Melo ( Funiô)
Jacira (Kaingang)
Moradores:02
Religião: Evangélica/ Congregação Cristão do Brasil

10º casa
Rosimara Cecílio Damaceno (Krenak)
Moradores:04
Religião: Católica

11ºcasa
Raquel Cecílio Damaceno (Krenak)
Moradores: 04
Religião: Católica

12ºcasa
Antonia de Paula (Terena)
Moradores:03
Religião: Católica

13ºcasa
Rosimeire Barbosa (Terena/ Kaingang)
Moradores:03
Religião: Católica

14º casa
Ondina Dokemkri Campos (não índia)
181

Moradores: 06 (filhos nascidos de pai Kaingang e mãe não-índia)


Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil

15º casa
José Constantino da Silva (Aticum)
Moradores:03
Religião: Evangélico da Congregação Cristã do Brasil ( progenitor)

16º casa
Ana Anato (Kaingang)
Moradores:03
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil

17º casa
Irineu Cotuí (Kaingang)
Ivani Barbosa (Kaingang)
Moradores:02
Religião: Evangélicos da Assembléia de Deus

18º casa
Antonio Cotuí (Kaingang)
Moradores:01
Religião: Evangélico da Congregação Cristã do Brasil

19º casa
Denildo Dokemkri (Kaingang/ não-índio)
Mariana Cecílio Damaceno (Krenak)
Moradores:06
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil

20º casa
Márcio de Jesus de Jesus da Silva (Kaingang)
Tatiana Damaceno (Krenak)
Moradores:04
Religião: Evangélicos da Congregação

21º casa
Gilmar Afonso (não índio)
Norma Barbosa Afonso (Kaingang/ Krenak)
Moradores: 05
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil

22º casa
Jovelina Jorge Damaceno (Krenak)
Moradores: 02
Religião: Congregação Cristã do Brasil
182

23º casa
Sinézio Cotuí (Kaingang)
Aparecida Piui (Kaingang)
Moradores: 04
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil

24º casa
Ricardo Cotuí (Kaingang)
Juraci Garcia (não índia)
Moradores: 05
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil

25º casa
Mariza Jorge (Kaingang/Krenak)
Esposo: não-índio
Moradores:03
Religião: Católica

26º casa
Régis Damaceno (Krenak)
Natalia Barbosa Afonso (Kaingang /Krenak)
Moradores:03
Religião: Católica

27º casa
Edivaldo Cotuí (Kaingang)
Cecília (não índia)
Moradores: 03
Religião: Católica

28º casa
Antonio Jorge (Krenak)
Jandira Umbelina Jorge (Kaingang)
Moradores:02
Religião: Católica

29º casa
Camargo Jorge (Krenak)
Ana Paula (Terena)
Moradores:05
Religião: Evangélica da Assembléia de Deus

30ºcasa
Edmar Adílson (Krenak)
Adelina Piui (Kaingang)
Moradores:04
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil
183

31ºcasa
Jesuíno (Kaingang)
Moradores:02
Religião: Católica

32º casa
Tiago Umbelino (Krenak)
Iracema Piui (Kaingang)
Moradores:04
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil

33º casa
Gracina Umbelina (Krenak)
Moradores: 02
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil

34º casa
Itamar Jorge (Krenak)
Gislaine (Terena)
Moradores: 03
Religião: Católico

35º casa
Paulo Jorge (Krenak)
Rosangela Barbosa (Kaingang)
Moradores:03
Religião: Católica

36º casa
Marcos Piu (Guarani)
Claudinéia Cecílio (Krenak)
Moradores: 07
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil

37º casa
Diego Barbosa Afonso (Krenak)
Lidiane Damaceno (Krenak)
Moradores: 04
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil

38º casa
Leandro Barbosa (Krenak/ Kaingang)
Elizabeth Conechú Damaceno (Krenak/ Kaingang)
Moradores:02
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil
184

39º casa
Nilza Barbosa (Kaingang)
Moradores:03
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil

40º casa
Willian Piui Adilson (Krenak+Kaingang)
Fabiane Damaceno (Krenak)
Moradores:06
Religião: Evangélica Congregação Cristã do Brasil

41º casa
Paulo José (Terena)
Marisângela Cotuí (Kaingang)
Moradores: 03
Religião: Evangélica/ Assembléia de Deus

42º casa
Luzia Umbelina (Krenak)
Esposo: (Terena)
Moradores:05
Religião: Evangélica da Assembléia de Deus

43º casa
Vagner Cecílio Damaceno ( Krenak)
Flávia Barbosa (Kaingang/ Krenak)
Moradores: 04
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil

44º casa
Claudinei Constantino (Caiua/ Tikuna)
Claudinéia Barbosa (Kaingang/Krenak)
Moradores: 04
Religião: Católica

45º casa
Mauro Umbelino (Krenak)
Èlia Damaceno (Krenak)
Moradores: 04
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil

46º casa
Eder Vara (Kaingang)
Luzia Conechú (Kaingang/Pankararu)
Moradores: 05
Religião: Evangélica/ Assembléia de Deus
185

47º casa
Maria Dito (Kaingang)
Moradores:02
Religião: Católica

48º casa
Vanilson José (Terena)
Marizângela (Terena)
Moradores: 03
Religião: Evangélica/ Assembléia de Deus

49º casa
Dorvalina José (Terena)
Moradores: 04
Religião: Evangélica/ Assembléia de Deus

50º casa
Vilma Cardoso (?)
Moradores: 03
Religião: Católica

51º casa
Araci Cardoso ( ?)
Moradores: 02
Religião: Católica

52º casa
Domingo Vaiti (Kaingang)
Olinda Vaiti (não-índia)
Moradores:03
Religião: O Sr. Vaiti é católico e a esposa evangélica/ Congregação Cristã

53º casa
Gerson Cecílio Damaceno (Krenak)
Roselina Dokemkri (Kaingang)
Moradores:07
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil

54º casa
Maria da Glória (Kaingang)
Moradores: 03
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil

55º casa
João Umbelino (Krenak)
Ruth Braga (Atikum)
Moradores: 03
186

Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil

56º casa
Fernanda da Silva (Atikum)
Moradores:03
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã

57º casa
Dirce Jorge (Krenak)
Esposo: ? (Terena+ Kaingang)
Moradores:04
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã
187

Adultos e crianças nascidas em Vanuíre indo de encontro ao Rio Doce


pela 1º vez.

Toda a beleza do Watu!


188

Estrada de Ferro Vitória-Minas

João Borun
189

O banho no Rio Eme


190

Mariana, Mário, Lia (escondida), João e a pesquisadora.

As marcas do passado: ruínas do antigo presídio.


191

Fotos do 1º dia de culto na igreja da aldeia Vanuíre


192

Deslocamento vivido pelos índios Krenak: ida para Vanuíre.

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