Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DIÁSPORA BORUM:
ASSIS
2009
2
DIÁSPORA BORUM:
ASSIS
2009
3
CDD 980.3
4
Dedicatória
Agradecimentos
Foi o compartilhar histórias que permitiu que eu escrevesse tais páginas. Não é a única
versão, nem a verdade absoluta. É o fruto de um tempo e do diálogo que pude estabelecer
com os Krenak, moradores de Vanuíre. Tenho certeza que nomes deixaram de ser por mim
registrados nesta folha ainda branca, mas quantos sorrisos e olhos curiosos eu pude ver me
observando enquanto eu esperava observá-los. De alguns, obtive bem mais que um aceno, um
sorriso. Houve aqueles que me abriram suas casas e o baú de suas memórias. Minha eterna
gratidão a: Maria Helena Numiak Cecílio Damaceno, João Borun Batista de Oliveira, Mário
Tepó Cecílio Damaceno, Maria Aparecida Conechú Damaceno, Antonio Cecílio Damaceno,
Maria Aparecida Caiuá Damaceno, Mariana Cecílio Damaceno, Gracina Umbelina, Tiago
Umbelina, Jovelina Damaceno, Jandira Umbelina Jorge, Antonio Jorge, Luzia Conechú Vara,
Edmar Adílson, Norma Barbosa, Nayara Barbosa, Aline Damaceno Cotuí, Lidiane
Damaceno, Diego Barbosa. No P.I Krenak agradeço ao casal Santa e Nirildo, que tão
gentilmente me receberam e me abrigaram em sua casa.
Aos professores Niminon Pinheiro, Célia Camargo, Wilton Silva e Hélio Rebelo, pela
contribuição dada para minha formação e, em especial, ao meu orientador Paulo Santilli.
Lembro da alegria que senti, ainda no 1º ano de graduação, ao descobrir o que fazia um
antropólogo, e o melhor, que esse “estudava índio”.
Antes de me descobrir pesquisadora, sonhei em ser professora de História. Esse sonho
me levou até Assis, cidade que me presenteou com grandes companheiros. André Luiz
Gonzaga que dividiu comigo a dor e a alegria dos primeiros dias de Moradia Estudantil.
Andréa de Luca, por sua imensa generosidade, pessoa de luz, exemplo para mim. Antônio
Yoshimatsu, pela mão amiga em todos os momentos que precisei. Larissa Fumes, por dividir
comigo os sentimentos mais profundos. Maria Clara, companheira nos intensos períodos de
estudo. Danilo, pela alegria e as aulas de Francês. Bel, pela perseverança e coragem. Em
especial, ao César Doriguelo que, com toda sua erudição, me auxiliou quando o mestrado era
apenas um sonho e à Rita de Cássia, sem a qual eu não teria suportado a solidão da escrita.
Antes de me imaginar professora eu fui criança, e agradeço àqueles que estão comigo
desde o início: Neide da Silva, Sônia Maria da Silva, Antônio Carlos da Silva e Nilson Santos
da Silva.
6
Resumo
Esta dissertação tem como propósito uma reconstituição da trajetória dos índios Krenak desde
o Vale do rio Doce, no Estado de Minas Gerais, para a Área Indígena Vanuíre, no Estado de
São Paulo, imposta pelo Serviço de Proteção aos Índios. O desterro constituiu uma prática
sistemática imposta pelo SPI a diversos povos indígenas com vistas a implementar a
colonização e a exploração econômica de seus territórios de ocupação tradicional. O presente
texto busca reconstituir a trajetória específica de um grupo apartado do povo Krenak a partir
da memória oral transmitida no contexto do convívio e partilha territorial com um grupo
local, os Kaingang, e de registros documentais arquivados no Museu do Índio. Através da
coleta e da análise de narrativas, trata-se de interpretar os possíveis sentidos conferidos pelos
Krenak à reelaboração da própria identidade étnica, referenciada ao contexto e, marcado por
sua conversão ao pentecostalismo.
Abstract
This dissertation has the purpose of rebuilding the process of Krenak Indians migration from
Vale do Rio Doce, Minas Gerais state, to Vanuíre, an Indigenous Area in São Paulo state.
Such process was supported by the Indian Protection Service. The exile was a systematic
practice imposed by the SPI to different indigenous peoples in order to implement the
colonization and economic exploitation of their areas of traditional occupation. This text
seeks to reconstitute the trajectory of a specific group of Indians throughout their oral memory
which was transmitted during the experience lived with other Indigenous local groups, the
Kaingang. Through the analysis of the narratives, it interprets the possible meanings given by
the Krenaks to the elaboration of an ethnic identity, understood here in the context of their
conversion to pentecostalism.
Lista de Abreviaturas
Sumário:
Considerações Iniciais...............................................................................................................12
Conclusão................................................................................................................................164
11
Fontes......................................................................................................................................169
Notas bibliográficas................................................................................................................170
Anexo......................................................................................................................................177
Alguns dados quantitativos sobre a escolha religiosa na aldeia Vanuíre................................178
Acervo fotográfico..................................................................................................................187
12
Considerações iniciais
1
O texto foi revisado de acordo com as novas normas ortográficas de 2009.
2
Termo utilizado por Paul Little.
3
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e
fluxos culturais. Mana 4(1), 1998, p. 47-78.
13
Se, antes, os povos indígenas ocupavam grandes porções de terras, foram sendo, ao
longo da história reunidos em parcelas bastante reduzidas. No início da República, o Governo
Federal criou as Terras Indígenas, mas elas só passaram por um processo de demarcação com
o consentimento das outras esferas políticas, estaduais e municipais. Essa dependência gerou
novos parcelamentos, titulações sendo oferecidas a terceiros. No caso especifico dos índios
Krenak, o SPI não foi capaz de assegurar a ocupação efetiva do território indígena; mesmo
após a demarcação, interesses outros, que não o do grupo indígena, forçaram os índios Krenak
a viver um outro processo de territorialização. Antes agrupados, os índios passariam a viver o
desterro e, com ele, a pulverização: Vanuíre, Bananal, Maxacalis, Fazenda Guarani, entre
outros destinos.
4
Ibidem, p. 57.
14
Não deixando de considerar a violência com que se deu o encontro entre os índios
Krenak e as frentes de expansão colonizadora, não faremos uso de uma imagem tantas vezes
apresentada: passivos, subjugados, dominados, vencidos. Buscamos nos aproximar da visão
do grupo sobre os fatos, valorizando, neste caso, as estratégias de sobrevivência criadas por
eles. Seja ao abordarmos a questão da identidade étnica ou a inserção do pentecostalismo na
Aldeia Vanuíre, essa é sempre uma história de acomodações, de acordos, de alianças. Mesmo
nas apropriações simbólicas feitas por eles, existe o espaço para a reformulação, para a
adaptação. Essa leitura não poderia ser feita sem o uso da fonte oral e dos procedimentos da
história oral. Recorrendo aos trabalhos da memória, valorizamos a vivência e a percepção que
esses agentes sociais têm sobre o meio em que estão inseridos.
No desenvolvimento do nosso trabalho, optamos por dois tipos de entrevistas: as
temáticas e as histórias de vida. Alberti esclarece quanto às diferenças:
Como a pesquisadora nos informa nos dois procedimentos, é a partir de sua vivência
que o entrevistado fala. Para a escrita do primeiro capítulo, colhemos histórias de vida;
interessava-nos conhecer como foi sua trajetória até Vanuíre, quais os motivos de estarem ali,
6
ALBERTI, Verena. Manual de história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 37.
16
Buscamos entrevistar pessoas de faixas etárias diferentes, para perceber, nesse caso,
como a memória é transmitida e elaborada entre as gerações. Quando possível, entrevistamos
gerações de uma mesma família, o que nos foi útil para a compreensão da maneira pela qual
as identidades foram sendo construídas. Um exemplo é a família Damaceno, cuja matriarca,
Dona Jovelina, durante muito tempo negou-se a falar do “tempo dos antigos”. A história de
violência vivida pelo seu povo tinha lhe ensinado que o melhor era o silêncio. Os filhos
nascidos em Minas Gerais e crescidos em Vanuíre participaram da luta pela retomada de suas
terras na década de 80, descobriram a importância da identidade como uma arma política
fundamental na luta pelos seus direitos. A chegada, em 1991, do casal João Borum e Maria
Helena Damaceno, filha de Dona Jovelina, foi fundamental no “resgate” dessa identidade.
João diz, orgulhoso, que não tinha intenção de ficar, era apenas uma visita, mas permaneceu,
incumbido que fora de ensinar aos demais a arte do artesanato, que já não era praticada na
aldeia. Juntos, Maria Helena, seu irmão Mário, João Borum, a comunidade de Vanuíre, Icatu
e Araribá se uniram em volta do projeto intitulado por eles de “Resgate Cultural”.
Em Vanuíre os índios começaram a coletar informações dos mais velhos, que
resistiam. As idas para Minas Gerais também foram importantes neste reafirmar-se. João
7
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Trad. Lolio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Paz e Terra,
1991, p. 254.
17
O pesquisador, por vezes, espera uma coerência que não encontra nos relatos. No
início do trabalho, víamos com certa estranheza esse entrelaçar da memória individual e do
grupo. Ouvindo as pessoas, descobríamos que a trajetória contada por um membro da família
A, na verdade, tinha sido vivenciada pela família B. Nesse caso, aquilo que ele viveu e o que
foi vivido pelos outros, são partes de uma única história, a história de seu povo.
8
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990.
9
BOSI, Eclea. Memória e Sociedade. Lembrança de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
10
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. IN: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.10, 1992:
200-212.
11
Ibidem, p. 201.
18
Quanto ao tempo-espaço, geralmente nos situavam dizendo: “no tempo do mato”, “no
tempo dos antigos”, “lá no Krenak”. Mas também é verdade que nos falam desse tempo com
uma riqueza de detalhes, relatando cheiros e cores, que fazem parecer terem vivido naquela
época. Esse viver por tabela pode ser notado, quando os mais jovens descrevem o Rio Watu12,
falam da beleza, da imensidão do rio, da quantidade de peixes, ainda que nunca tivessem
estado lá.
Halbwachs também nos diz que essas lembranças, adquiridas a partir do convívio com
o grupo, podem ser simuladas ou construídas, já que “a lembrança é, em larga medida, uma
reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente e, além disso,
preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora
manifestou-se já bem alterada.”13 Ao reler nosso material coletado, sabíamos que ele não nos
levaria ao passado, assim como ele havia sido. Quando um depoente recorre à memória para
lembrar os primeiros anos em Vanuíre, essa imagem primeira já não é “pura”, ela é um
balanço de tudo o que ele viveu desde então. Com a idéia do que se tem no presente é que ele
foi buscar o passado, pois “a memória é um fenômeno construído”.
Não entramos aqui na questão da subjetividade das fontes orais já tão discutida. No
entanto, gostaríamos de lembrar que, além delas, tivemos como fonte os Diários de Posto e os
documentos produzidos pelos funcionários do SPI e da Funai. Neste caso, tanto as fontes
escritas quantos as orais carregam subjetividade. Se o relato oral é fruto da experiência do
depoente, a documentação escrita também carrega a subjetividade de quem a produziu, ainda
que de forma não consciente. A criticidade e atenção na análise das fontes, foi nossa intenção,
tanto nos documentos escritos quanto nos orais.
Fomos a campo, não apenas para realizar as entrevistas, mas porque se fazia
necessário apreender na realidade estudada as relações estabelecidas pelos índios Krenak com
as demais etnias e com a sociedade envolvente. Foi o “estar lá” que nos possibilitou perceber
a adscrição, a maneira como eles construíam os sinais diacríticos tão importantes no
fortalecimento de sua identidade étnica.
A primeira ida à aldeia, aconteceu em 2005, ainda como aluna da Graduação. Naquela
ocasião, sabia muito pouco da realidade vivida em Vanuíre. A primeira pessoa que procurei
12
Os índios chamam o Rio Doce de Watu, rio largo na língua Borum.
13
HALBWACHS. Op.cit., p. 71.
19
na área foi o cacique Gerson Cecilio Damaceno, já orientada por uma pesquisadora
experiente. Perguntei a um senhor de terno e Bíblia na mão sobre o cacique, quando me disse
que eu estava falando com ele. Foi com estranheza que ouvi que podia entrar, mas que ele
tinha naquele momento que se dirigir a um culto fora da aldeia. Ainda seguindo as orientações
da pesquisadora, dirigi-me à irmã do cacique, Maria Helena Cecilio Damaceno. Lembro-me
de que, na ocasião, eu não tinha um gravador, nem ao menos um caderno de registros, minha
intenção primeira fora apenas conseguir uma autorização. Mas, depois de ouvir sobre minhas
intenções, ela me mostrou a árvore junto à qual poderíamos realizar, naquela ocasião, a
entrevista. Eu não havia cogitado a idéia de já iniciar a pesquisa e, sem condições de fazê-la,
naquele momento, por falta de material adequado, agradeci e respondi apenas que voltaria.
Os textos que eu havia lido sobre a relação entre entrevistado e entrevistador, sobre o
papel dominante que exerce o pesquisador, não se adequavam antes mesmo de eu ter iniciado
a tal prática. Mas aquela primeira visita me ajudou a perceber quem eram e como viviam os
índios que eu desejava registrar. Há muito tempo os índios de Vanuíre estabelecem relações
com os não índios, seja no trabalho fora da reserva, no campo de futebol, que recebe tantos
outros times, nas igrejas que existem na área. Eles podiam ser “surpresa” para mim, não eu
para eles. Quantas vezes aquela cena tinha se repetido, quantas vezes um pesquisador teria ido
até lá “estudá-los”? A entrada de pesquisadores nas áreas indígenas é frequente, em algumas
ainda maior dada à facilidade com que têm acesso à área. Em quantos trabalhos acadêmicos
dessa natureza, está registrada a insatisfação demonstrada pelos índios em receber tantos
pesquisadores, sem nada verem de retorno? Certa vez um índio Kaingang me disse em tom
agressivo: “Enquanto vocês caminham com esses caderninhos, nós estamos aqui ilhados”.
Nada lhe respondi, sabia muito bem das limitações de um trabalho acadêmico frente às
necessidades reais do grupo estudado.
É importante lembrar que, embora nem todos os pesquisadores assumam esse
compromisso, o trabalho muitas vezes retorna à aldeia. O acesso a outras fontes faz com que o
pesquisador registre passagens da história do seu povo que os índios desconhecem, e as
mesmas passam a ser incorporadas por eles, sendo comum que nos deem informações, assim
como foi escrito por tal pesquisadora.
Um pouco diferente dos textos acadêmicos, mas que demonstra, além da apropriação
do texto escrito, os conflitos que podem gerar trabalhos que usam depoimentos, é a história do
20
livro didático redigido por Geralda Chaves Soares, “Os Boruns do Watu”14. Os índios não
compareceram no dia do lançamento do livro, porque não concordavam quanto à sua autoria;
afinal tinha sido escrito com os seus depoimentos, com a sabedoria do seu povo. Mais tarde,
eles se dirigiram até a sede do CEDEFES, levando com eles um grande número de
exemplares. Ainda hoje, esse livro é um importante referencial e, mais do que um recurso
didático usado pelos professores indígenas, há o orgulho de verem registrada naquelas
páginas a sua história. Em Minas Gerais, ouvi uma jovem Krenak dizer que queria muito ter
um exemplar, enquanto sua prima de Vanuíre disse que não daria o seu a ninguém, que o
guardava embaixo do colchão.
Quanto ao nosso trabalho, os índios Krenak de Vanuíre mostraram-se bastante
dispostos a contar, a mostrar, sendo eu até mesmo avisada, por telefone, quando havia
alguma ocasião especial. Na frente da igreja, uma índia Krenak me apresentou a sua tia:
“Você não conhece ela? Ela está escrevendo a história de nós Krenak.” Grande
responsabilidade o trabalho do historiador do presente, segundo Chartier: “ é um encontro
com seres de carne e osso que são contemporâneos daquele que lhes narra as vidas”. 15
14
SOARES, Geralda Chaves. Os Borun do Watu: os índios do Rio Doce. Contagem: Cedefes, 1992, p. 85.
15
CHARTIER, Roger. A visão do historiador modernista. In.: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO,
Janaína (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2001, p. 216.
21
mesma força que liga todos os “parentes” as terras “originárias”, estando eles longe ou perto
do Watu.
No segundo capítulo, partimos da trajetória individual do índio João Umbelina,
primeiro Krenak que viveu em Vanuíre, tendo antes ficado recluso na Colônia Penal de Icatú
no período de 1937 a 1945. Buscando apreender as relações internas, estabelecidas dentro do
Posto Indígena, desde sua chegada em Vanuíre até o período mais atual. Nesse, voltamos
nosso olhar para a relação entre os Krenak e os demais grupos que compõem a aldeia,
sobretudo os Kaingang, na tentativa de perceber em que ambiente e condições se manifesta
esse “eu” Krenak no interior do Posto Indígena.
No terceiro capítulo, nos dedicamos ao estudo da conversão dos índios Krenak ao
pentecostalismo. Em que contexto essa igreja foi construída e quais as suas implicações nas
relações entre índios convertidos e não convertidos. Buscamos, também, perceber o diálogo
entre o “antigo” e o “novo” universo religioso, nas adaptações e releituras, feitas a partir da
vivencia religiosa na Congregação Cristã do Brasil.
Quanto à grafia, respeitamos a escrita dos autores. No entanto, quando falávamos sem
fazer uma referência direta a tal autor, adotamos a utilizada pela pesquisadora Maria Hilda
Baqueiro Paraíso. Essa escolha se deu primeiro pela necessidade, já que um único nome foi
escrito de diversas formas, mas também por ela ter produzido muitos trabalhos sobre o povo
em questão.
22
Os Krenak, habitantes das margens do Rio Doce, são apontados como os últimos
integrantes de um extenso grupo que outrora habitou a Mata Atlântica, concentrando-se nos
atuais Estados da Bahia, de Minas Gerais e do Espírito Santo. Também conhecidos como
Botocudos, receberam essa denominação genérica e depreciativa dos portugueses que
identificavam, dessa maneira, os grupos indígenas que faziam uso de botoques auriculares e
labiais16. A família linguística Botocudo (Borum), pertence ao tronco Macro-Jê, estando
dividida entre os dialetos Krekmum, Naknanuk, Djiporok, Pojitxpa, Bakuen, Krenak e
Nakrehé.17
Os Botocudos eram chamados de Aimorés pelos índios Tupi,18 com os quais
mantinham relação hostil. O termo Aimoré deriva da palavra tupi – amoré –, que significa
“gente diversa”.19 Aparecem com essa denominação, já no século XVI, quando ocorreram as
primeiras “entradas” no interior do território, em busca de ouro e pedras preciosas. Em 1555,
adentrando a Bahia, a expedição chefiada por Francisco Bruzza de Spinoza contou ter
encontrado os Aimorés entre os rios Jequitinhonha e Pardo. Em 1577, os Aimorés foram
localizados nas imediações do Rio Doce, Minas Gerais, pela entrada de Salvador Corrêa de
Sá.20 Cronistas como Gabriel Soares de Souza e Pero de Magalhães Gândavo descrevem
incursões belicosas, realizadas pelos índios, às capitanias de Porto Seguro, Ilhéus e Espírito
Santo. Ambos enfatizaram o caráter violento e animalesco dessa população21.
No século XVII, o termo Guerén, Gren ou Kren também seria utilizado para designá-
los. O termo Kren significa cabeça, uma possível autodenominação do grupo.22 Nesse mesmo
século XVII, as “entradas” foram substituídas pelas “bandeiras”, cujo objetivo era o mesmo –
extrair metais preciosos. Diante do interesse em estender a colonização ao interior da Bahia,
16
Receberam esta denominação os índios que habitavam uma extensa faixa do interior do leste e sul brasileiro.
Entre eles, os Xokleng e os Kaingang que hoje ocupam territórios nos Estados de São Paulo, Santa Catarina e
Paraná.
17
RODRIGUES apud ARAÚJO, Benedita Aparecida Chavedar. Análise Do Worterbuch Der Botokudensprache.
Dissertação de Mestrado. Unicamp, Campinas, 1992, p.5.
18
Estamos utilizando um termo genérico para designar os índios que viviam no litoral, em oposição aos
Aimorés, índios do “sertão”.
19
RUGENDAS, João Maurício. Viagem Pitoresca através do Brasil. São Paulo, Trad. Sergio Milliet. 8º ed. Ed.
Itatiai. Limitada. Edusp, Vol.II, 1979.
20
EMMERICH, Charlotte; & MONTSERRAT, Ruth. Sobre os Aimorés, Krens e Botocudos. Notas
Lingüísticas. Boletim do Museu do Índio, Antropologia 3. Rio de Janeiro: FUNAI, 1975, p.5.
21
MARCATTO, Sônia. A. A repressão aos Botocudos em Minas Gerais. Boletim do Museu do Índio: Etno-
história 1. Rio de Janeiro: FUNAI, 1979, p.4.
22
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Krenak do Rio Doce, a Pacificação, o Aldeamento e a Luta pela Terra.
IN: Revista de Filosofia e das Ciências Humanas. Bahia, N. 2, 1991.
24
intensificou-se o contato com grupos indígenas naquele território. Para efetuá-la, a estratégia
implementada pelo Estado foi a atração e o aldeamento dos indígenas. Contatos foram
estabelecidos entre os jesuítas e os Aimorés em toda a costa da Bahia até o Espírito Santo,
datando de 1602 a primeira notícia de aldeamento dos Aimorés, uma ação do jesuíta Domingo
Rodrigues. Os índios foram aldeados na Ilha de Itaparica, mas doenças infecto-contagiosas
causaram a morte de parte da população e a fuga dos demais, período em que as “bandeiras”
continuaram a dispersar a população indígena.
A violência com que esteve pautada a colonização, segundo a etno-historiadora Sônia
Marcatto, ocasionou, na segunda metade do século XVII, o deslocamento dos índios
Botocudos para o sertão dos rios Pardo, Mucuri, Jequitinhonha e Doce23. Já a também
historiadora Maria Hilda Paraíso, aponta que essa descida se deu mais tardiamente pelos
Botocudos, os quais fugiam dos contatos e conflitos vividos nas capitanias de Ilhéus e Porto
Seguro. Em 1736, pesquisas foram feitas no São Mateus24 e no Rio Doce, tendo o
encarregado João da Silva Guimarães encontrado, naquela região, os Kumanaxó, Punxó,
Goakines, Maxakali, Purixú e Malali. Novas “entradas” em direção ao vale do Rio Doce
encontraram os “Puri, Malali e Panhame, o que indica claramente que os grupos Gren ou
Botocudos, ainda não se localizavam naquela região...” 25
No século XVIII, intensificou-se a exploração de minas de ouro na capitania de Minas
Gerais e, enquanto novas pesquisas buscavam outras áreas de mineração, a Coroa Portuguesa
tentava conter os extravios do minério, nas áreas já ocupadas:
23
MARCATTO, Sônia. Op. cit.; p. 5.
24
Segundo Paraíso, até o século XIX confundiu-se a Bacia do Mucuri com a de São Matheus, devido a
proximidade e o pouco conhecimento que tinham da região. Portanto lê-se Mucuri.
25
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O Tempo da Dor e do Trabalho: A conquista dos territórios nos sertões do
leste. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 1978, p. 91.
26
Ibidem, p. 85.
25
27
ESPINDOLA, Haruf Salmem. Sertão do rio Doce. Bauru/SP: EDUSC, 2005.
28
AMANTINO, Márcia. O Mundo das Feras: Os moradores do Sertão Oeste de Minas Gerais- século XVIII.
Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2001.
29
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. A tempo da dor. .., Op. cit.
30
Ibidem.
26
Em resposta a uma consulta da Coroa sobre a navegação fluvial do Rio Doce e sobre
os índios Botocudos, Ataíde e Mello, Governador da capitania de Minas Gerais, questionava
se haveria outro meio de domar os Botocudos, que não o uso da força.31 Assim como no
Espírito Santo, o Governador Albuquerque Tovar, afirmou que, contra a resistência botocuda,
a única forma de vencê-los seria tirá-los de seus territórios, até serem extintos.32 Se, até então,
o Estado havia adotado uma guerra defensiva que consistia em expedições de represálias as
incursões indígenas, optaram, naquele momento, por uma guerra ofensiva, visando à sua
escravização e ao seu extermínio. Um momento decisivo dessa política aconteceu com a Carta
Régia, de 13 de maio de 1808, na qual Dom João VI, declarava que:
(...) desde o momento em que receberdes esta Minha Carta Regia, deveis
considerar como principiada contra esses índios Antropophagos huma
guerra offensiva, que continuareis sempre em todos os annos nas Estações
seccas e que não terá fim, sinão quando tiverdes a felicidade de vos
senhorear das suas Habitações e de os capacitar da Superioridade das
Minhas Reaes Armas de maneira tal, que movidos do justo terror das
mesmas peção a Paz, e sujeitando-se ao doce jugo das Leis, e promettendo
viver em Sociedade, possão vir a ser Vassalos úteis como já são as
immensas Variedades de Índios, que nestes Meos vastos Estados do Brazil
se achão aldeados(...).33
Em seu texto, Dom João fundamentava a guerra, afirmando serem aqueles índios
antropófagos, que assassinavam “os Portugueses e os Índios mansos por meio de feridas, de
que sorvem depois o sangue, ora dilacerando os corpos, e comendo seus restos”.34 Para
controlar tão “terríveis” criaturas, estabeleceu a Criação da Junta da Conquista e Civilização
dos Índios e Navegação do Rio Doce:
31
ATAIDE E MELLO apud PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. A tempo da dor. .., Op. cit., p.180.
32
TOVAR MANOEL apud ESPINDOLA, Haruf Salmem. Op.cit.; p.321.
33
CARTA Régia de 13 de maio de 1808. Revista do Arquivo Público Mineiro. Minas Gerais, ano XVIII, 1913,
p.54.
34
Ibidem, p.53.
27
Seis divisões e vários quartéis foram construídos ao longo do Rio Doce, e ainda no
mesmo ano, o Governador da capitania de Minas Gerais foi orientado para que construíssem
as divisões próximas aos aldeamentos, pois isso daria segurança aos novos colonizadores que
chegassem à região. Na tentativa de fixar homens no interior do Brasil, Dom João VI iniciou
uma política de colonização, baseada em concessões territoriais e incentivos, em detrimento
dos indígenas que habitavam a região dos vales dos rios Doce e Jequitinhonha. Cabia aos
comandantes das divisões o poder de guerrear, exterminar e empregar o trabalho indígena a
seu favor, por dez anos, ou enquanto continuassem ferozes. A etno-historiadora Sônia
Marcatto, nos mostra o quão subjetivas eram tais considerações, podendo os comandantes
escravizar os indígenas por quanto tempo quisessem, alegando, para isso, a continuação da
“incivilidade” do índio.36
Os aldeamentos correspondiam a pequenas porções de terra, asseguradas aos índios.
Sabemos, no entanto, que a medida não impediu os colonos de avançarem sobre as terras. Os
documentos escritos por Guido Marlière, que trabalhou entre os Botocudos nos anos de 1813
a 1829, chegando a ser nomeado Diretor de Índios de Minas Gerais, atentam para a força
exercida pelos colonos:
35
Ibidem, p.54
36
MARCATTO, Sônia. Op.cit.
37
MARLIÈRE apud OILIAM, José. Os Brancos Matam a Obra de Marlière. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais. Minas Gerais, Volume. IV, 1957, p. 18.
28
1831, quando a Lei de 27 de outubro, daquele mesmo ano, aboliu Cartas Régias de 1808,
estabelecendo a liberdade dos índios e os equiparando aos órfãos, determinando Juízes de
Órfãos com o dever de protegê-los contra abusos, assim como administrar seus bens.38
A medida seguinte, pautada no Ato Adicional de 1834, foi a incorporação dos índios à
civilização e à catequese, sob a responsabilidade das Assembleias Legislativas Provinciais,
antes subordinadas à Assembleia Geral Legislativa e ao Imperador. Com a descentralização,
as províncias tomaram, rapidamente, medidas contra os indígenas, tais como a extinção de
suas vilas e expedições ofensivas39contra eles. Mas foi no dia 24 de julho de 1845, com o
“Regulamento acerca das Missões de catequese e civilização dos índios”, que a política
indigenista do Império estabeleceu suas linhas básicas, diretrizes voltadas para toda a
população indígena. De acordo com as disposições desse Decreto, ficaria mantida a prática
dos aldeamentos, com a catequese sob a responsabilidade dos capuchinhos italianos. Ficou
proibida a prática da transferência, ao mesmo tempo em que tornava obrigatória a
remuneração ao trabalhador indígena. O Regulamento estimulava também, os casamentos
interétnicos e o alistamento militar aos que estivessem em condições de prestar o serviço40.
A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 – Lei de Terras – associada ao Decreto, anterior,
legitima o poder do Estado sobre as terras. A Lei determina a demarcação das terras
devolutas, classificando-as como as que estão fora do domínio particular ou de uso público. A
partir de então, só se adquirem terras por meio da compra, as que não possuíssem registros
deveriam ser leiloadas. Em 21 de outubro do mesmo ano, mandam incorporar aos nacionais as
terras dos índios que não viviam mais aldeados; dessa forma, muitos daqueles que não eram
mais considerados “selvagens”, devido ao seu contato com os “civilizados”, tiveram suas
terras tomadas e leiloadas.41
A Lei de Terras estabelecia parâmetros para “medir” a indianidade. Revoga o direito à
terra aos índios inseridos na sociedade envolvente, mantendo o mesmo direito aos
considerados “selvagens” que se encontravam aldeados. Sônia Marcatto tem razão quando
afirma terem sido menos violentas as diretrizes adotadas no período regencial, embora não
38
ARNAUD, Expedito. A Legislação Indígena No Período Imperial. IN: Informativo FUNAI, Ano IV N 14, p.
65.
39
CUNHA, Maria Manuela Carneiro. “Política indígenista no século XIX.” In: CUNHA, Maria Manuela
Carneiro da. (org). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Fapesp/SMC/CIA das Letras, 1992, p.137.
40
ARNAUD, Expedito Op. cit., p. 65.
41
VALADÃO, Virginia. Marcos. Senhores destas terras: Os povos indígenas no Brasil: da Colônia aos nossos
dias. São Paulo: Atual, 1991, p. 36.
29
menos preocupantes. A extinção física, permitida por Dom João VI, foi substituída pela
extinção étnica nos anos seguintes. Vemos isso, claramente, no sistema de aldeamento, que é
pensado como uma transição para a assimilação dessa população. O aldeamento de Nossa
Senhora da Imaculada Conceição do Itambacuri, construído em 1873, sob a direção dos Freis
Serafim de Gorizia e Ângelo Sassoferrato, é um bom exemplo desse plano de assimilação.42
Para eles, o sucesso da catequese dependia da convivência com os civilizados, como vemos
na narração de Frei Ângelo:
Frei Serafim se convenceu logo de que não se devia formar dos indígenas
um povo á parte, separado do nacional civilizado, porque isso prejudicaria o
fim que nós e também o Governo tínhamos em mira.
Por isso abriu logo escolas para ambos os povos, misturando-os como se
formassem um só. Demais disso promoveu casamentos entre ambos, por
considerar ser este o único meio capaz de assimilar a pura raça indígena:
isto foi reconhecido pelo próprio Governo. 43
42
A catequese foi entregue aos missionários sob a condição de cumprirem o projeto já estipulado pelo governo,
diferentes dos jesuítas expulsos em 1759, que se recusaram a aceitar os casamentos interétnicos e a incorporação
dos indígenas como súditos da Coroa.
43
PALAZZOLO, Jacinto de. Nas Selvas Do Mucuri do Rio Doce. São Paulo: Companhia Editora Nacional 1952,
p. 92.
44
Ibidem, p. 81.
30
toponímia ou o nome do chefe, mas como nenhuma das partes adotou o nome do chefe Pahóc,
é mais provável que os nomes façam referência ao lugar em que estavam estabelecidas.
Os religiosos conseguiram reunir no aldeamento de Itambacuri diversos grupos:
Kracatãs, Cujan, Jerunhim, Nerinhim, Hen, Jakjat, Rimré, Kremum, Nhamnham, Camri,
Pamacgirum, Ponchão, Pmac e Nác-Reé. A manutenção do aldeamento era precária, o pedido
de verbas ao Governo uma constante, os responsáveis queixavam-se de não ter estrutura para
receber os indígenas, muito acostumados aos presentes. Também por esse motivo, os freis
explicavam o aldeamento tardio dos Crecmuns e os Crechés, mais conhecidos como Pojichás.
Esses eram os mais temidos Botocudos do vale do Mucuri, tendo o aldeamento do Itambacuri
sido criado, exatamente, para aldear sua população. No entanto, mesmo quando aldeados, os
Pojichás nunca estiveram integrados, de fato, pois ainda insistiam em não abandonar antigos
hábitos, como o da caçada nas florestas, enquanto os freis tentavam impor a eles o trabalho
nas lavouras, dando-lhes as ferramentas necessárias.45 O fato é que, no século XX, os Pojichás
se encontravam nas matas, e inúmeras são as notícias de suas incursões contra os não índios.46
Progressivamente, os aldeamentos foram sendo abandonados e, cada vez que isso
acontecia, a população restante era mandada para outro aldeamento, até que esse também
fosse extinto. No final do século XIX, com os aldeamentos fechados, as terras indígenas
leiloadas, os índios encontravam-se dispersados. Como registrou Ehreinreich, em 1884, o
território botocudo naquele momento estava bastante reduzido, tendo a população concentrada
entre os rios Doce, Mucuri, Suaçui Grande e São Mateus.47 Mas “... Botocudos não
contactados ainda percorriam as matas do Rio Doce, principalmente a área limítrofe entre
Minas Gerais e Espírito Santo.” 48
Começamos, no século XIX49, a conhecer as autodenominações dos subgrupos
Botocudos que, então, entram em cena: Crecmum, Nacnenuc, Nakrehé, Gut-Krak, Potixá,
Krenak, Minajirum, entre outros50. Botocudos que, resistindo às guerras justas, à captura dos
45
Id.
46
SOARES, Geralda Chaves. Op.cit., p.84.
47
PARAÍSO, Maria Hilda. “Os Botocudos e sua Trajetória Histórica” In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (org).
Historia dos Índios no Brasil. São Paulo: Fapesp/SMC/CIA das Letras, 1992, p. 420.
48
MARCATTO, Sônia. Op.cit., p. 6.
49
A partir da viagem de Wied-Neuwied (1815), outros como Spix e Martius (1817), Saint- Hilaire (1817) e
Johann Morutz Rugendas (1821) forneceram notícias sobre os Botocudos.
50
EMMERICH, Charlotte & MONTSERRAT, Ruth. Op.cit.
31
51
Não é nosso objetivo se aprofundar sobre a criação e gestão do SPI, para isso existem trabalhos gabaritados
como o de Antonio Carlos Souza Lima e Mauro José Gagliardi.
52
GAGLIARDI, José Mauro. Op.cit.
32
53
MARCATTO, Sônia. Op. cit., p.15.
54
Ibidem, p. 16.
55
ALMEIDA, Ceciliano de Abreu. O Desbravamento das Selvas do Rio Doce. Rio de Janeiro: José Olimpio
Editora, 1959, p.81.
56
Ibidem, p. 139.
33
Para dar segurança aos operários e facilitar a construção das ferrovias Bahia-Minas e
Vitória-Minas, foram criados na Bahia os Postos de Atração do Ermida: um às margens do
Jequitinhonha, outro no Rio Pepinuque; No Espírito Santo, dois às margens do Rio Pancas, e
outro no Rio Doce, em Minas Gerais, para os índios Krenak, aldeamento do Rio Eme57. Se o
aldeamento era descrito pelo órgão como meio de proteger os indígenas, a sua prática resultou
em contaminação por doenças infecto-contagiosas, para grande parte da população neles
reunida. O sarampo, por exemplo, nos anos de 1920, levou à morte, mais de duas centenas de
Botocudos do Posto de Pancas.58 Conforme aconteciam as baixas da população, o SPI ia
transferindo os sobreviventes e, aos poucos, extinguia os postos, até restar apenas o do Rio
Eme, destinado aos Krenak, passando a chamar-se Posto Guido Marlière.59
Os temíveis Pojixás, aldeados em Itambacuri, eram formados pelos Crecmun e pelos
Creché. Dos Crecmun teriam se originado os Gut-Krak, os quais, por sua vez, deram origem
ao grupo Krenak.60 Os Gut-Krak, vivam na região do Rio Pancas, liderados pelo chefe
Tetchuk; no momento em que foi estabelecido o contato com o SPI, parte do grupo se
mostrou descontente com a aproximação, preferindo refugiar-se nas matas das cabeceiras do
Córrego Eme. Esse cisma deu início ao grupo Krenak, já que o grupo descontente tinha a
liderança de um chefe do mesmo nome. 61 No entanto, para o etnógrafo Manizer, o cisma não
se deu pela insatisfação em relação ao contato; o motivo teria sido um crime cometido por um
homem liderado pelo chefe Krenak, o que fez com que não pudessem mais viver com Tetchuk
e seus seguidores.62
Enquanto Tetchuk e seu bando eram aldeados no Posto de Pancas, seu irmão Krenak
continuou a recusar contato com não índios, cabendo a seu filho Muin a aproximação com os
agentes do SPI. Naquele momento, a responsabilidade sobre esses índios já havia sido
passada para a Inspetoria do Espírito Santo, cabendo a ela o controle sobre os dois Estados. O
Posto de Pancas, no Espírito Santo, deveria ser um local de convergência, para onde seriam
levados grupos residentes nos outros postos; o próprio Posto do Rio Eme, instalado em 1913,
57
O Rio Doce encontra-se a margem direita do Posto Indígena Krenak, enquanto o Rio Eme corta internamente a
área indígena.
58
MARCATTO, Sônia. Op. cit., p. 23.
59
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Botocudos..., Op. cit., p. 420.
60
BAETA, Alenice; MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. A Serra da Onça e os índios do Rio Doce: uma
perspectiva etnoarqueológica e Patrimonial. IN: Habitus. Goiânia, V.5, N.1, 2007, p.41.
61
SOARES, Geralda Chaves. Op. cit., p.85.
62
MANIZER apud PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Krenak do Rio..., Op. cit., p.12.
34
era considerado como transitório. Os Krenak, mais tarde, seriam transferidos para o P.I de
Pancas, mas Muin foi determinante na permanência do grupo nas margens do Rio Doce. “Os
Crenaques não aceitam de nenhum modo a mudança para o Pancas, o seu Capitão Muin até
chega a deitar-se fingindo doente, quando se fala em Pancas. Essa determinação inabalável foi
a responsável pela criação de um Posto nas matas de Minas.” 63
Vimos que, inicialmente, o líder Krenak não aceitou tal contato, e refugiou-se nas
matas, nas margens do Rio Doce, em Minas Gerais. Próximo a esse refúgio dos Krenak,
estava sendo construída a Colônia Bueno Brandão, para receber trabalhadores nacionais,
gerando conflito entre os índios que habitavam as adjacências do Rio Eme e os envolvidos
naquela construção. Para mantê-los distantes não só desses nacionais, mas dos envolvidos na
Construção da Ferrovia Vitória-Minas, foi instalado o Posto de Atração do Eme, em 1913. O
local do Posto no vale do Rio Eme, afluente do Rio Doce, foi escolhido, pois ali se
encontravam várias aldeias dos Krenak: a aldeia Praia da Gata, Quati-Quati e o Quijeme-
Brek, também conhecida como Kuparak.64 O chefe do Posto, Cândido de Freitas Chaves, foi o
63
ESTIGARRIBIA, Antonio. Trecho de um relatório apresentado pelo inspetor Antonio Estigarribia á Diretoria
do SPI no ano de 1912 relativamente aos índios do rio Doce. IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do
Espírito Santo, vol. VII, Imprensa Oficial do Espírito Santo, Vitória, 1934, p.16.
64
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Krenak do Rio...,Op.cit., p. 13.
35
65
Os Nakrehé estavam ali pois sua aldeia tinha sido extinta, depois do ocorrido eles retornam para o Etwet.
66
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Botocudos..., Op.cit., p. 420-421.
67
Nesta emboscada os colonos ferem Krembá, um líder Krenak.
68
PEQUENO, Waldemar. Município e Comarca de Aimorés- Sua história. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais, V 11, 1964, p. 341.
69
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 12/2/1924. Relatório referente ao
ano de 1923.
36
Além dos invasores, o Posto ainda mantém, com licença da Inspetoria mais 3 famílias,
as primeiras a arrendarem as terras. Em 1921, o número de não índios no aldeamento já era
bastante superior ao da população indígena, formada, nesse período, por “11 homens, 13
72
mulheres e 15 crianças dos dois sexos” , diferença que, dois anos depois era
consideravelmente maior:
70
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 12/2/1924. Relatório referente ao
ano de 1923.
71
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 27/01/1922.
72
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 27/01/1922.
37
Havia outra razão pela qual ocorriam baixas na população indígena, enquanto o
número de “civilizados” no Posto crescia. No ano de 1921, apareceu no relatório uma
epidemia de sarampo, antecedida por uma gripe que teria feito vítimas. A saúde dos Krenak
era uma questão tão preocupante que foi ressaltada pelo Inspetor:
73
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 12/2/ 1924.
74
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 27/01/1922.
75
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 340. 28/02/1942. Relatório anual das
atividades desenvolvidas durante o ano de 1942.
38
ampliação para 4 mil hectares e, vinte anos depois, ainda se esperava por ela: “Foi concluída a
medição da área concedida pelo Governo do Estado de Minas Gerais dependente ainda da
aprovação deste governo. Dita área atingiu a 4. 756 hectares.”76
A área indígena sempre sofreu a interferência dos colonos arrendatários, dos
fazendeiros vizinhos, mas os conflitos se acirram após a descoberta de jazidas ricas em mica.
Nos relatórios administrativos do SPI encontramos as primeiras notas acerca das jazidas:
76
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 340. 28/02/1942.
77
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 380. 06/ 03/ 1941.
78
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro. Filme 381. 14/02/1940.
79
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro. Filme 340. 28/02/1942.
39
Não havendo disposição da lei que permita, como também não há que
proíbe o Governo pesquisar ou lavrar jazida mineral diretamente, ocorre que
o SPI, repartição do Ministério da Agricultura, acha conveniente explorar
ele mesmo os depósitos de mica e pedras coradas, existente no posto Guido
Marlière no vale do rio doce Estado de Minas Gerais, porque:
1)a- a terra pertence aos índios crenak;
2) a gestão dos bens dos mesmos índios cabe ao mesmo serviço
Em face de que nada tem a objetar esse departamento a que a exploração do
faça e está mesmo disposto a prestar sua assistência técnica e colaboração
ao SPI nos estudos e aproveitamento econômico da área interessada.82
80
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro. Filme 381. 04/5/ 1940.
81
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 381. 26/8/ 1940.
82
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 340. 23/2/1942. Relatório referente as
atividades do ano de 1941
83
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme: 161. 31/08/ 1955.
40
A descoberta da mina nas terras do P.I Guido Marlière foi determinante na história de
dispersão vivida pelos Krenak. No entanto, segundo o antropólogo José Gabriel Correa:
De fato, nos textos produzidos sobre o processo histórico vivido pelos índios Krenak,
a mina de mica aparece como um problema a partir da década de 50. Em “Os Borun do
Watu”, está anotado:
Não acreditamos que as análises feitas sobre o processo histórico dos índios Krenak
deem à exploração do minério uma menor importância. Mas, sem dúvida, não se pode
desconsiderar o período anterior a 1955, pelos ataques que culminaram com a transferência
dos índios em 1957, pois fora uma “guerra” anunciada. Na década de 40 e início da década de
50, os arrendatários não só pressionavam para que as terras ocupadas por eles fossem
regularizadas, como reivindicavam o direito de explorar os bens nelas existentes: a mica e a
madeira.
84
CORREA, José Gabriel Silveira. Política Indigenista, Tutela e Deslocamento de Populações: A Trajetória
Histórica dos Krenak Sob a Gestão Do Serviço de Proteção Aos Índios. Arquivos do Museu Nacional, Rio de
Janeiro, V.6, n.2, Abr/Jun, 2003, p. 97.
85
SOARES, Geralda C. Op.cit., p. 31.
86
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Botocudos...; Op.cit., p. 421
41
O desterro constituiu uma prática sistemática, imposta pelo SPI a diversos povos
indígenas, com vistas a implementar a colonização e a exploração econômica de seus
territórios de ocupação tradicional. As migrações sofridas pelos índios Krenak foram várias,
ao longo da história, mas as idas para o Posto Engenheiro Mariano e, mais tarde, para a
Fazenda Guarani são marcantes, devido à violência com que ocorreram. Os índios foram
obrigados a retirar-se, deixando suas roças, seu rio, suas terras.
Para entendermos a situação que culminou neste primeiro desterro, é necessário
lembrar que a posse do território estava quase em sua totalidade nas mãos dos arrendatários,
como nos mostra o documento redigido pelo Inspetor Francisco Sampaio:
Essa reserva indígena encontra-se hoje, sob o domínio dos arrendatários das
suas terras. A princípio foram feitos arrendamentos das terras mais distantes
da sede do Posto, e depois foram se aproximando da mesma, até ao ponto
de reduzir a um 20 hectares a área que ainda se encontra sob seu poder.
Tornou-se assim a reserva indígena, em labirinto de pequenos sítios, que os
ocupantes munidos de contratos, defendem com unhas e dentes, em razão
dos trabalhos e benfeitorias neles existentes, que vale na época atual,
algumas centenas de milhares de cruzeiros.87
87
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio: Filme 190. 28/03/1957.
88
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio: Filme 190. 28/03/1957.
42
I.R.4, Raimundo Dantas Carneiro, mostra estarem conscientes da não culpabilidade dos
índios, mas sim de envolvimento daqueles que tinham total interesse naquela transferência:
(...) foi aberto inquérito a respeito e logo paralisado, pela simples razão, de
se supor envolvimento na trama um oficial do exército. Vê-se claramente,
que não houve interesse no prosseguimento do inquérito. 89
89
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 28/03/1957.
90
MISSAGIA DE MATTOS, Izabel . Borum, Bugre, Kraí: Constituição social da identidade e memória étnica
dos Krenak. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 96.
91
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 28/03/1957.
43
92
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 5/12/1957
44
Os índios saíram do “Krenak” 95 pelo uso da violência e pela promessa de que teriam
boas condições no Posto Engenheiro Mariano, até que pudessem retornar às suas terras de
origem. Vimos que o funcionário declarou dificuldade em mantê-los, mas a situação descrita
ganha proporções dramáticas na voz dos Krenak que, diretamente, a vivenciaram:
93
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 190. 07/ 1957.
94
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 161. 02/ 1958.
95
Como já dissemos, inicialmente posto de Atração do Rio Eme, depois foi chamado de Guido Marlière, hoje
Posto Indígena Krenak. È muito comum os índios dizerem “lá no Krenak”, “vamos no Krenak”.
45
Papai ficou. Nós foi tudo pra Maxakali. A criação nós deu quase tudo. Luiz
tinha umas cabeças de animal. Umas vaquinhas, quase tudo deu. Quando
chegou lá, até muié morreu lá. Chegou adoeceu. Morreu Eugenio de
Mariazinha. Que lá é frio. Morreu Chica. O filho de Chica morreu. Morreu
adulto. Dois filho de Pedrim. Morreu a mãe. Morreu a irmã. Seu Juca levou
nós tudo pra lá. A gente era pequeno. Tinha um velho todo aleijado, que
levou nós dentro da cangaia. Boto dentro do balaio. Carregava lá pra aldeia.
Ai nós era pequeno. 96
Ou ainda:
Lá não dava pra nós plantar. Aí meu pai pegou um pedaço de arroz, na
meia, com um home de nome Rosildo. Meu pai plantou. Nós foi morar
numa casinha de capim. Tinha uma baratinha que comia a gente feito cão!
Comia a gente feito sarna. Elas ficava no capim.97
Além do estado sanitário crítico, das más condições de alimentação e moradia, havia
um outro problema que preocupava o encarregado no momento em que levava os Krenak para
o Posto Engenheiro Mariano de Oliveira: a convivência forçada entre as etnias. Vejamos:
Nota-se que não é, conveniente que eles fiquem juntos do aldeamento dos
Maxacalis, uma vez que em anos antecedentes a tribo dos índios maxacalis,
encontraram com os índios da tribo de Crenaque e, tiveram um
desentendimento, havendo grande relações , inclusive enlace matrimonial,
mas depois tiveram um desentendimento, havendo grande conflito, de
ambas partes morreram um grande numero de índios, prevendo isso, com
facilidade que temos, poderemos localizá-los em separados, Além disso, os
índios Procedentes do P.I.N Guido Marlière, são acompanhados de maus
exemplos, os quais não existem na tribo Maxacalis, assim como os jogos de
baralho, buzos, bebidas alcoólicas e outras, isto e os Maxacalis são também
muito dedicados a bebida alcoólicas, mas, venho sempre enfrentando
camlanhas contra os negociantes do local, afim deles não fornecer esta tão
inútil mercadoria... 98
96
Júlia Krenak apud SOARES, Geralda Chaves, Op.cit., p. 132.
97
Sônia Krenak apud SOARES, Geralda Chaves, Op.cit., p. 132.
98
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Filme 190. 05/12/1957.
46
No entanto, tal satisfação pode ser questionada, se seguimos com a leitura do mesmo
documento escrito pelo Inspetor:
Como, porém nem sempre todos pensam pela mesma forma, um grupo
alegando falta de peixe que tinha com abundância no rio Doce e diferença
de dialeto, insistia em se transferir para São Paulo.102
99
MARCATTO, Sônia. Op. cit., p. 27.
100
No início do período Colonial é marcante a divisão estabelecida pela Coroa entre índios “amigos” e
“inimigos”. Na Capitânia de Minas Gerais visualizamos essa diferenciação, tivemos práticas de extermínio
voltadas aos índios chamados Botocudos, mais arredios e resistentes ao contato, enquanto a incorporação e
desterritorialização dos índios que aceitavam o contato com a Coroa. Os índios Maxakali, por exemplo, se
unindo aos brancos, eram transferidos e incorporados aos soldados na luta contra os Botocudos.
101
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 161. 30/09/1958.
102
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 161. 30/09/1958.
47
E continua contando:
Quando cheguei a dita cidade em viagem para o Posto, o grupo
composto de Antonio Felix, mulher e 2 filhos; Euclides, 1 filho, avó, uma tia
e 4 filhos e finalmente Jacob Josué com uma filha, 15 pessoas ao todo,
viajou na véspera da minha chegada com destino ignorado.103
Na leitura dos depoimentos reunidos no livro “Os Borun do Watu” foi possível
identificar o grupo citado pelo Inspetor:
Quem ia guiando nós. Nós ia mais o Félix, pai de Laurita. Nóis tudo tava
pequeno. Era miudinha. Antes, quando nos cheguemos lá nas águas
formosas, fiquemos lá onde eles carrega negócio de tropeiro. Fiquemos
noutra rua, tinha um sobrado lá. Fiquei trabalhando. Os índios trabalhava na
serraria pra comer. Eles arrumaram a casa e nós fiquemos uns tempos lá.
Enjoaram de trabalhar. Viemos embora! Uma moça pôs nós dentro do trole.
Nóis vinha para Valadares. No outro dia...nóis a pé traveis. Arranjemo um
carro no caminho. Cheguemos lá de noite ( Valadares). A policia veio
buscar nós. Botou nós no Batalhão. Nós dormino. Polícia falou: Vou levar
vocês para Belo Horizonte! E arrumou passagem. Laurita tava doente.104
Se, como relata o Inspetor o destino era ignorado, foi descoberto a tempo de a polícia
impedir que os índios retornassem às suas terras tradicionais. Segundo Laurita Felix, eles
seguiram para São Paulo, mas por imposição do SPI:
Nós foi para São Paulo. O homem (do SPI) falou assim: Uai! Como é que
vocês vai lá pra São Paulo? Nós não vai pra São Paulo! A senhora vai pra
onde nós mandar. O homem queimou porque minha mãe tinha respondido.
A Sônia aqui vai pra casa do pai dela. Deu dinheiro mãe, deu dinheiro pai.
Mandou nós dentro do carro. Nós nem sabia pra onde ia. Ocêis vai
perguntando aos guarda. E deu uma escrita pra nós entregar onde chegar.
Eu tava com oito anos. Tava doente.105
Do grupo que falamos acima, todos retornaram para o P.I Krenak, guiados, dessa
feita, por Laurita Felix e não mais por seu pai que se encontrava já bastante desorientado em
razão do exílio sofrido. Assim como esse grupo, outros Krenak tiveram seu destino desviado
quando tentaram retornar para suas terras, como a própria família Damaceno, hoje a maior de
Vanuíre, que tinha como destino Ilha do Bananal:
103
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 161. 30/09/1958.
104
Júlia Krenak apud SOARES, Geralda Chaves. Op.cit., p. 135.
105
Laurita Felix apud SOARES, Geralda. Op.cit: 136. Do grupo guiado por Antônio Felix, pelo menos duas
pessoas não são levadas para Vanuíre. Sônia Krenak e seu irmão insistem em ir ao encontro do pai que havia
ficado no “Krenak”.
48
Então, daquela aldeia nós fomos para outra aldeia divisa com a Bahia que se
chama Maxakali, é a cidade ali próxima. Lá em Maxakalis nós ficamos ali
por alguns uns anos. Nós com a nossa família e os povos Krenak nós saímos
num pau de arara de Krenak para essa outra aldeia na divisa com a Bahia. E
chegando lá, permanecemos naquele lugar por um bastante, é, uns 5, 6 anos,
mais ou menos. E dali seguimos, pra ir para Ilha do Bananal, nós fomos para
a Ilha do Bananal. Até que foi uns dos nossos parentes Krenak, eles foram e
permanecem lá, mas nós num. Eu mesmo não tenho sabido da notícia dos
que estão lá, porque é um lugar muito longe.106
Segundo o Sr. Antônio, o grupo que tinha como destino a Ilha do Bananal ficou,
primeiramente, alojado em Brasília; de lá uns seguiram e outros esperaram o próximo avião.
Antes que a segunda parte seguisse para Bananal, os primeiros já estavam de volta. Quando se
encontram:
Eles falaram: e lá não é um lugar muito bom parente, pra vocês ir pra lá, e
de lá nós estamos voltando. Ficou alguns lá, ficou o meu, é, que se chama
Luiz Umbelino, que ele era chefe, trabalhava de chefe, ele ficou lá, ele e a
família dele. Ficou Sebastião Pedro(...) ele também ficou, ficou também
uma velhinha, bastante velhinha, qui o nome(...) eu não sei se o nome ou se
era o apelido, mas que nós conhecia ela por J, ela também ficou, não teve
condição de voltar. Ai nós falamos: Então nós não vamos para lá, pedimos
para que nós voltasse pra de onde que eles tiraram nós, e eles pegaram e
falaram: Então falaram então, vocês vão voltar para aldeia da divisa da
Bahia, onde ôces tavão. Daquilo nós viemos, mas chegando no meio da
viagem meu pai falou, acho que nós vamos desce, vamos até a aldeia do
Krenak, vamos voltar para nossa terra, quem sabe um dia Deus pode, possa
nos ajudar que aquela terra pode ser resgatada para nós outra vez ,enquanto
isso nós vamos morando nas ilhas, porque as ilhas ta lá, nós podemos
continuar morando ali, fazemos nossos ranchos e vivemos de pesca.. Então,
os demais aceitaram, e nós descemos para lá. Chegando lá fiquemos dentro
de uma ilha por muitos tempo, e nada da terra se resgata aquela terra
novamente pra nós, então como eles tinham tomado permaneceram com
eles.107
Vimos que, por meio de uma operação irregular, o SPI transferiu as terras dos índios
Krenak sob sua responsabilidade para o Serviço Florestal, desterrando essa população,
impondo-lhes um novo destino. Várias razões são apontadas pelos Krenak para não se
106
Entrevista concedida dia 22 de abril de 2007. Seu Antonio Damaceno é morador de Vanuíre, dono de uma
fala mansa e de uma hospitalidade ímpar. Emocionou-se bastante ao lembrar da trajetória de seu povo e da de
sua família. Ele se define como um “menino sem infância”, irmão mais velho de uma família de 9 filhos, teve o
pai morto em um acidente na Estrada de Ferro Vitória-Minas, passando a assumir grande responsabilidade.
107
Idem.
49
adaptarem nas terras dos Maxakali: a falta de alimentação, moradia, diferença climática, a
hostilidade dos Maxakali, além de razões afetivas, como a ligação aos lugares onde estavam
enterrados os seus mortos.
Os Krenak foram planejando o caminho de volta, muitos tiveram seus planos
frustrados pelo SPI, como foi o caso dos índios levados a São Paulo e para a Ilha do Bananal.
Mas por não aceitarem permanecer no Posto Engenheiro Mariano, alguns ficaram nas aldeias
estipuladas pelo SPI, até que pudessem retornar. Outros, no entanto, nunca fizeram o caminho
de volta.
Como já dissemos, a ida para o Posto Engenheiro Mariano é uma forte lembrança na
memória dos índios Krenak. Memória que aproxima os Krenak que residem hoje em Minas
Gerais, de todos os outros que tomaram caminhos diferentes. É a história de todos os parentes,
como inúmeras vezes declarou Mário Tepó Damaceno108.
108
Morador de Vanuíre, casado com uma índia Kaingang e pai de três crianças nascidas em Vanuíre.
50
treinamento oferecido a eles incluía manejo de armas e montaria. De acordo com Pinheiro,
tais índios, treinados pelos oficiais da Policia Militar, voltariam a seus postos de origem,
capazes de auxiliar no combate às invasões, assim como na manutenção da ordem interna.109
A GRIN antecedeu o funcionamento do Reformatório Agrícola Indígena, que
funcionou na área entre os anos de 1969 e 1972. Ambos não diferem quanto à tentativa de
manter o controle nos postos indígenas, seja transformado os índios em “guardas” vigilantes
dos demais, ou afastando do P.I de origem, aquele que, na ótica do Serviço, tinha um
comportamento inadequado. O Reformatório recebeu índios de várias regiões do país, e o
período de reclusão deveria dar conta de transformar esses índios e livrá-los de maus hábitos
como a vadiagem, o uso de bebidas, roubos. A rotina rígida, as punições diante do não
cumprimento das atividades, foram os meios escolhidos para essa “recuperação”:
Ou ainda:
Comunico-vos dia 03.07.71 ás dez horas VG índias VG Laurita VG Luzia e
Sebastiana VG seguiram expresso Resplendor VG fim de fazer compras VG
regressando mesmo dia VG dezoito e quarenta horas VG porém Sebastiana
109
MISSÁGIA DE MATTOS, Izabel. Borum...; Op. cit., p. 104
110
ANTONIO, Jonas Dias Filho. O Outro Aprendizado: a história do Presídio entre os Krenak. Trabalho de
Conclusão de Curso. Universidade Federal da Bahia, 1990, p. 78.
111
Serviço de Proteção ao Índio. Museu do Índio. Filme 307. 06/11/1969.
51
Augusto Paulino e Sebastiana, hoje falecidos, são índios Krenak que retornaram para
suas terras depois do desterro sofrido em 1957. Sebastiana, além da ida para o P.I Engenheiro
Mariano, foi obrigada a seguir para São Paulo. Tão prisioneiros quanto os demais, eram
punidos com o trabalho sem remuneração ou mesmo com a restrição total da liberdade por
infringirem regras estabelecidas e fiscalizadas com rigor dentro do Reformatório. Tal controle
fica evidenciado, também, nos depoimentos dos índios que vivenciaram aquele período:
112
Serviço de Proteção ao Índio. Museu do Índio: Filme 306. 05/07/1971.
113
Apud MISSÁGIA DE MATTOS, Izabel. Borum...; Op. cit., p. 106.
114
A imposição do uso do Português foi justificada pela Policia Militar pela facilidade que o uso da língua
nativa traria para organizarem motins contra a ordem já estabelecida.
52
recentemente no posto, um deles no mesmo mês em que o documento foi produzido. Ainda
assim, o Inspetor Erico Sampaio, registrou a vontade de retornarem às terras de origem
afirmando que, pela disciplina e dedicação ao trabalho, tais índios deveriam ser beneficiados
pelo indulto como réus primários.120
Exatamente com a prática da transferência, afastando o índio “problema” do posto de
origem é que se inicia a história dos índios Krenak, em Vanuíre:
Acusado de um crime grave, João Umbelina passou oito anos sob esse regime. A
disciplina e a disposição para o trabalho eram cobradas pelos funcionários. João Umbelina
mostrava-se bastante disposto ao trabalho, mas, como notamos na leitura dos relatórios e
diários do Posto, o índio continuou resistente às normas ditadas pelo SPI , mesmo nos anos
de reclusão.122 Segundo informantes em Vanuíre, João Umbelina não aceitava ordens, nas
palavras da Krenak Lia, era “um que lutava pelo direito dos índios”.
Ao construir um Reformatório nas terras do Posto Indígena Guido Marlière, estariam
sob controle os conflitos entre índios e arrendatários, tão constantes naquelas terras. Com a
transferência dos índios para o PI Engenheiro Mariano, os posseiros não apenas ali
permaneceram, como aumentaram sua área de ocupação. Os índios Krenak que retornaram,
dividiram espaço com arrendatários e “internados”; no entanto, vivendo sob a vigilância
intensa já demonstrada, não existia espaço para indignação e revolta, as quais eram punidas
com rigidez e violência.
Pelo exposto, questões discutidas pelo antropólogo José Gabriel Correa, parecem-nos
bastante pertinentes:
120
Idem.
121
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 07. 5/12/1948
122
Apresentaremos mais detalhadamente a trajetória de João Umbelina no capítulo seguinte.
54
índios criminosos. Também nos faz pensar, até que ponto a gestão cotidiana
dos postos indígenas, diferia do Reformatório, com alguns índios sendo
punidos e recuperados e todos sendo educados para a civilização.123
O Reformatório funcionou nas terras dos índios Krenak até 1972, quando a estrutura
do presídio ali construído foi transferida para a Fazenda Guarani. Os índios Krenak foram
novamente desterrados, exatamente para o novo endereço do mesmo empreendimento
carcerário já deles conhecido. O desterro, a vigilância e a punição não haviam chegado ao
fim.
123
CORRÊA, José Gabriel Silveira. Formas..., Op.cit., p. 10.
55
Mais uma vez na história da atuação indigenista, promovendo a dispersão Krenak, fica
evidente a aliança entre o órgão tutelar e os poderes locais. Com a transferência dos índios, o
órgão tutelar facilitou a exploração econômica da área, beneficiando fazendeiros, que há
muito haviam invadido aquelas terras, dando como justificativa para tal feito a explicação:
124
Apud: SOARES, Geralda Chaves, p. 143.
125
MARCATTO, Sônia. Op. cit., p. 37.
56
A pesquisadora Maria Sônia Marcatto iniciou seu trabalho de campo em 1977, período
em que os Krenak se encontravam exilados na Fazenda Guarani. Ela observou um outro
problema, gerado com a transferência: o convívio forçado entre diferentes etnias estava
provocando hostilidades entre os grupos, como nos mostra o depoimento abaixo:
Nóis veio aqui conversar com tupiniquim amigo. Meu povo pediu eu vir
aqui dizer todo mundo não acostuma Fazenda Guarani. Terra não é boa,
muito frio. O segundo capitão morreu lá, cascavel mordeu ele (...)
Tupiniquim muito bom. Não é igual a Krenaque. Krenaque diz que lá não é
nosso lugar. Eles rouba animal, depois diz que é Guarani. Eles quase matar
meu irmão João, dar pontapé nele. Krenaque não gosta de nóis. Dizer que a
fazenda é deles. Para eles tem tudo. Mesa, cama, casa bonitinha. Para nóis
casa de pau-a-pique. Coronel não quer que ajudem Guarani.126
Nós não tinha recursos pra manter a família. Lá não tem serviço. Era na
base da banana cozida com sal. As famílias doentes e chefe não se
incomodava. Quando levava o doente para a cidade, o enfermeiro da
FUNAI cobrava. Nós não tinha dinheiro e ficava em precisão. Como viver
lá. Dr. Adhemar apoiou nós voltar pro Krenak. A Guarani não era nossa.
Nós decidimos voltar pro nosso lugar.127
Se, aos demais moradores, os Krenak se diziam donos da “Fazenda” como afirma o
índio Guarani, os depoimentos a que tivemos acesso nos mostram o quão forte era o
sentimento de não pertencimento, sentimento vivenciado também pelos Krenak de Vanuíre,
segundo Sônia Marcatto:
126
Ibidem, p. 38.
127
COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. Índios direitos históricos. Cadernos da Comissão Pró-Índio n. III, CPI-SP, São
Paulo, 1982. p. 58.
57
Os Krenak que foram transferidos para São Paulo vivenciaram uma situação diversa
dos que estavam na Fazenda Guarani, passando a viver em uma terra tradicionalmente de
ocupação Kaingang, sendo eles os intrusos. Embora os Krenak de Vanuíre resistam em falar
dos atritos iniciais, acabam relatando as dificuldades na convivência, como nesse depoimento
do cacique Gerson Cecílio Damaceno:
E outra, nós enfrentou uma dificuldade grande também, nós tá numa terra
que não é da nossa origem. Agora depois, hoje(...) e até hoje nós tem um
pouco, ainda leva um pouco meio chatiado: “Ah, porque vocês é Krenak,
você não é daqui”. Mas acabou muito, porque a gente já casou com
Kaingang e os filhos são todos daqui, todo mundo já conhece, já tem mais
saber mais como é que a gente é, mas no começo foi difícil.129
No trabalho de campo, Marcatto assistiu à espera dos Krenak pelo retorno dos índios
residentes em Vanuíre; as diásporas ocorridas não colocaram fim à teia que os une. Idas e
voltas são uma constante, como nos mostra o documento abaixo:
Ou ainda:
O índio José Manoel de Souza Filho está autorizado por esta chefia a
deslocar do PI. Vanuíre com destino a Fazenda Guarani, no município de
Ferros em Minas Gerais, viajando por via férrea ou rodoviária, devendo
128
MARCATTO, Sônia.Op. cit., p. 36.
129
Gerson Cecílio Damaceno é o cacique de Vanuíre. Concedeu-nos a entrevista no dia 22/ 04/ 2007,
conversamos por duas horas. Aceitei, nesse mesmo dia, o convite para participar do culto da Igreja Congregação
Cristã do Brasil.
130
Fundação Nacional do Índio. 08/08/79. Documentação armazenada no Museu Índia Vanuíre, na cidade de
Tupã, São Paulo.
58
O índio Antonio Jorge, chegou a esta Fazenda no dia 10/08/ 79, pelo ônibus
das 12, 30 hs e regressou á Belo Horizonte no dia 11/08/79, no ônibus das
7, 30, tendo pernoitado com seu filho Sebastião Jorge nesta Fazenda.
Carmésia, 11 de agosto de 1979.132
131
Fundação Nacional do Índio. 17/10/1978.
132
Fundação Nacional do Índio. 11/08/1979.
133
No Código Civil de 1916, a tutela recebeu novo reforço. No artigo 6º, esse código estabelece que: São incapazes,
relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:
I - os maiores de dezesseis e os menores de vinte um anos;
II - os pródigos;
III - os silvícolas;
Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos a regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à
medida que se forem adaptando à civilização do país (art. 6º do Código Civil de 1916).
59
mesmas oportunidades não eram encontradas nas terras mineiras, onde só se vivia de pesca134.
Hoje, seu Antonio analisa de forma positiva a vinda para Vanuíre, mas foi sua mulher, Jandira
Umbelina, a grande responsável por aquela decisão. Nascida da união entre um Krenak com
uma Kaingang, Jandira acompanhou a família em sua viagem para Minas Gerais, mas
desejava voltar para o lugar que, segundo ela, era a sua terra. Mesmo depois de casar com o
índio Antonio Jorge, originário das novas terras, Jandira não desistiu de retornar e, como me
disse, ela viria mesmo sem o marido.135
É notável o sentimento de pertencimento territorial, a origem é uma constante
referência mesmo para aqueles que foram deslocados a décadas. Esse mesmo sentimento faria
com que o grupo estabelecido na Fazenda Guarani planejasse o caminho de volta. Em 1980,
26 dos 46 Krenak retornaram para as terras do Guido Marlière, fixando-se em 68,25 hectares,
onde estava instalado o Patronato São Vicente de Paula, o qual fora abandonado, em 1978,
por causa da enchente do Rio Doce.136
A carta escrita pelo cacique José Alfredo às entidades de apoio, retrata as condições
em que viviam os Krenak que fizeram o retorno:
134
Em 1955, o Sr. Antônio Jorge chega com a família, exatamente a data em que ações dos arrendatários
dificultam as condições de vida dos índios.
135
Conversei com o casal Antonio Jorge e Jandira Umbelina no dia 22/07/07. Era clara a insatisfação de Dona
Jandira com a conversa, sobretudo quando falávamos de seu pai João Umbelina.
136
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Botocudos..., Op. cit., p. 422.
137
José Alfredo de Oliveira apud SOARES, Geralda Chaves. Op. cit., p. 153.
60
A terra arada pela FUNAI não era suficiente para o número de Krenak que retornaram
à área, de maneira que os índios recorreram às entidades, na tentativa de conseguir 3 juntas de
bois para que eles mesmos pudessem arar as terras que achassem necessárias. João Alfredo,
culpa a FUNAI de temer os fazendeiros e de manter relações com eles, afirmando, também,
que não ficariam esperando a FUNAI, “Nós mesmo podemos trabalhar pela nossa conta
própria e cuidar das coisas que é nossa.” 138
A relação de dependência alimentada pelo Serviço, fez com que, durante sua gestão
(SPI e FUNAI), os índios recorressem ao chefe do posto, diante das necessidades. Vistos
como incapazes, tiveram a interferência de um funcionário não índio nas relações
estabelecidas com a sociedade envolvente e, mesmo, dentro da aldeia. Entretanto, vemos no
trecho anterior a tentativa de cortar o cordão que os liga à FUNAI, diante da constatação de
que a mesma atende a interesses que não os seus.
Os índios Krenak que continuaram na Fazenda Guarani tinham como representantes
Augusto Paulino e Adão Luiz Viana139, que diziam ser impedidos pelos funcionários da
FUNAI, de voltar para o P.I Krenak.140 Enquanto isso, índios espalhados em diferentes
lugares iniciavam o caminho de volta, incluindo os de Vanuíre:
138
Idem.
139
Augusto Paulino era irmão do atual cacique João Alfredo. Era conhecido por ser caráter combativo, foi
morto.
140
COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO - índios direitos históricos, Cadernos da Comissão Pró-Índio n. III, CPI-SP, São
Paulo, 1982, p. 57.
141
Sr. Gerson Cecílio Damaceno, entrevista concedida dia 22/0 4/ 2007.
61
Em 1984, foi reconhecido o direito indígena sobre aquelas terras, mas ainda assim, os
índios continuaram a ser despejados pelos fazendeiros. Na tentativa de retomar o controle das
terras, em 1988, chegam a Vanuíre, Dejanira Krenak e Lírio Guarani, pedindo que os índios
retornassem. Mário Tepó Damaceno, professor da aldeia, lembra que foram feitas várias
reuniões em sua casa, até que decidiram fazer a viagem. O grupo era formado por ele, seus
irmãos Gerson, Maria Helena, Cleusa, Zezão, conjuges e filhos. Mário fez o trajeto de
caminhão, com as bagagens, enquanto os demais seguiram de ônibus. Ele nos fala da
dificuldade da viagem, do frio que passou durante os cinco dias na estrada. Também nos falou
da satisfação em retornar para o Posto Indígena Krenak, mesmo sem a mulher, Maria
Aparecida Conechú Damaceno, índia Kaingang que resistiu, inicialmente, em sair do lugar
em que fora criada.
Foi um período muito difícil, segundo Maria Helena Damaceno. Na época, os
fazendeiros se encontravam na área indígena. A Krenak lembra com pesar das noites que
passava na casa de madeira sem nenhuma segurança, temendo a invasão de pistoleiros que
circulavam a área. Lá, Maria Helena uniu-se ao Krenak João Borum Batista de Oliveira. Em
1991 o casal retorna a Vanuíre, Lia viera visitar sua mãe e irmãos que permaneceram em
Vanuíre. O casal chegou numa data próxima ao Dia do Índio, a mãe de Lia sugeriu a João que
fizesse artesanatos para vender, pois os Kaingang já tinham perdido essa prática e não
ofereciam nada aos visitantes que vinham conhecer a aldeia naquela data. Os Kaingang
insistiram para que João Borum permanecesse na aldeia e ensinasse a arte aos demais e, a
partir de então, eles moram em Vanuíre.
Os desterros sofridos têm uma força que aproxima e distancia os Krenak de Vanuíre
dos demais. Algumas dispersões foram irreversíveis, alguns “parentes” se perderam, outros
constituíram laços que impossibilitam a vivência no Posto Indígena Krenak, como explica seu
Antônio Damaceno:
142
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo, 1968, p. 211.
62
143
Entrevista cedida pelo Sr. Antonio Cecílio Damaceno. 22/04/ 2007.
144
CUNHA, Manuela Carneiro da (org). Negros Estrangeiros: os escravos libertos e sua volta á África. São
Paulo: Editora: Brasiliense, 1985, p. 206.
63
expansão colonizadora. No século XVI, várias são as referências aos Aimorés; no século
XVII, o termo mais usado é Guerén e, a partir do século XVIII, cessam as referências aos
Aimorés e aos Guerén, e passa a ser adotado o etnônimo Botocudo na designação aos povos
indígenas, habitantes da região. No século XIX, os viajantes puderam observar mais
atentamente essa população e perceber que havia, entre o que genericamente eles designaram
de Botocudos, inúmeras divisões, cada subgrupo com uma denominação própria. Entre os que
mais detalhadamente descreveram a organização social dos Botocudos, no referido período,
destacam-se: Maximiliano Wied-Niuwied (1815)145, J.B. Spix e C.F.P. Martius (1817)146 e
Auguste de Saint-Hilaire (1817).147
Considerando a patente continuidade histórica entre os Krenak e os Botocudos,
trataremos de referenciar neste trabalho os registros historiográficos atinentes aos Krenak,
produzidos a partir do século XX, por memorialistas, antropólogos, etnólogos e linguistas,
considerando a sua pertinência para uma reconstituição documental do processo de
territorialização desse grupo étnico.
Os registros do século XX
Antes de discorrer a respeito das principais referências sobre o grupo em questão,
148
parece-nos pertinente, citar o trabalho intitulado “Sobre os Aimorés, Krens e Botocudos” .
As linguistas analisaram 28 vocabulários botocudos, coletados entre os séculos XIX e XX,
buscando comprovar um vínculo linguístico entre os Aimorés, os Krens e os Botocudos. Com
esse intuito, as autoras analisaram itens lexicais e características formais da língua. Um dos
exemplos dessa ligação é a utilização, tanto pelos chamados Aimorés, quanto pelos Guerén,
do termo Crenton, que significa “gente de cabelo feio”.
Também com base nos vocabulários coletados pelos viajantes, elas perceberam que
havia duas formas para designar o grupo, sendo usado Guerén ou Gren. Essa alternância é
encontrada na língua Botocuda, a palavra formiga pode ser dita prik ou pirik. Embora
reconheçam o quão limitado são os dados linguísticos até o século XIX, consideram que os
145
WIED-NEUWIED, Maxilimialiano de. Viagem ao Brasil nos anos de 1815 e 1817. 2º ed. São Paulo, 1958.
146
SPIX & MARTIUS. Viagem pelo Brasil 1817-1820. São Paulo, Tradução Lúcia Furquim Lahmeyer. 3º ed.
Edições Melhoramentos IHGB/ Instituto Nacional do Livro, vol.II, 1976.
147
SAINT-HILAIRE, Augusto de. Viagem pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Geraes. São Paulo,
Nacional, 1938.
148
EMMERICH, Charlotte & Ruth Monserrat. Op. cit.
64
encontrados são suficientes para confirmar o elo entre aqueles que habitaram as orlas da
Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo. Concluindo, os diversos subgrupos Botocudos, falavam
uma mesma língua, ainda que com pequenas variantes.
A primeira referência ao grupo Krenak data de 1905, feita pelo memorialista e
engenheiro Ceciliano Abel de Almeida.149 Encarregado da construção da Estrada de Ferro
Vitória Minas, o funcionário discorre sobre a importância da ferrovia, que traria a
“civilização” para aquele território ainda pouco conhecido pelo homem branco. Com a
construção, chegaram a essa região os funcionários da EFVM. Vários seriam os conflitos
envolvendo índios e os trabalhadores da estrada de ferro, justificando, alguns anos mais tarde,
a instalação de uma Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios, naquela região.
De 1911, temos o artigo de Hermann Von Ihering que apresenta os dados colhidos
pelo viajante Walter Garbe, em sua visita aos Botocudos do Rio Doce, no ano de 1909. Não
se trata de uma análise interpretativa, ele apenas descreve aspectos físicos, alguns costumes, a
cultura material. Mas é bastante interessante, na medida em que ele nos apresenta grupos de
localidades distintas, mas caracterizados todos como Botocudos, sendo possível, na leitura,
identificar aspectos comuns a todos os subgrupos, ao mesmo tempo em que vemos costumes
usados por uns, já sendo abandonados por outros, como é o caso do uso do botoque.
Os três grupos distintos de Botocudos, observados por ele foram esses:
149
ALMEIDA, Ceciliano Abel de Almeida. Op.cit.
150
IHERING, Hermam Von. Os Botocudos do Rio Doce. Revista Do Museu Paulista. São Paulo, n 8, 1911, p.
39.
65
Essa informação é valiosa para o estudo sobre os Krenak, por referenciar o surgimento
do grupo Krenak após a cisão, por evidenciar a associação do nome do chefe ao grupo, uma
característica comum aos subgrupos Botocudos, assim como, por explicar a relação
conflituosa entre os Krenak (Gut-Krak do Rio Doce) e os índios do P.I de Pancas, para onde
foram levados os seguidores de Tijuque.
Garber observou que o uso do botoque ainda era bastante difundido entre os
Botocudos da Lapa, ou seja, entre os Krenak. Os homens os usavam nas orelhas, enquanto
que as mulheres os usavam mais nos “beiços”. Já na tribo de Manhaçu, apenas as mulheres os
usavam, não mais os homens. Eram discos bastante leves e brancos, apenas o tiravam quando
imaginavam não estarem sendo observados. Garber conseguiu que as mulheres removessem
os auriculares, mas elas resistiram à retirada dos botoques labiais, e quando uma o fez, foi
escarnecida pelas demais.
De acordo com as informações de Garber, todos os Botocudos encontrados por ele
eram nômades, vivendo nas margens do Rio Doce apenas quando as águas estavam baixas.
Tinham casas bastante simples, feitas com folhas de palmeira, a alimentação consistindo,
basicamente, da caça e da pesca, além de frutas, larvas e mel. No que diz respeito a armas, o
texto nos mostra que não produziam outras além de arcos e flechas, embora já tivessem
recebido dos não índios, machados, facas, facões e anzóis. Na verdade, o contato de tribos
Botocudas com as armas dos brancos é bastante antigo, Marlière já adotava a prática de
oferecer aos chefes facas e espingardas, pois, alimentando a superioridade dos chefes, dava ao
bando a sensação de um controle interno, da manutenção de sua já conhecida organização.152
A flauta foi o único instrumento musical que o pesquisador observou entre os índios,
os quais tinham, também, o hábito de dançar e cantar, práticas que o viajante considerou
151
ESTIGARRIBIA, Antonio. Op.cit.
152
OILIAM, José. Indígenas De Minas Gerais. Belo Horizonte, 1965, p. 117.
66
monótonas. A mesma opinião sobre o canto teve Manizer (1914/1915)153 que, ao contrário de
Garber, não encontrou entre os índios do Rio Doce nenhum instrumento. A voz e os
movimentos dos pés os substituíam, tornando as músicas, também, na sua opinião,
monótonas.
Em 1934154, temos a publicação de informações interessantes do Inspetor do Serviço
de Proteção aos Índios, Antonio Estigarribia. Nela há o trecho de um relatório entregue à
Diretoria, referente ao ano de 1912, além de novas considerações escritas em 1921, destinadas
ao professor colaborador do I.H.G.E.S. Estigarribia é um funcionário do S.P.I e fala como tal,
mostrando-se focado na ação “civilizadora”. Para ele, estavam em diferentes estágios o índio
aldeado e aquele que permanecia nas matas. A prática da agricultura aparece no texto como
um sinal de evolução, um passo dado para que esses índios fossem incorporados ao restante
da sociedade nacional. Ele não acreditava que os costumes indígenas permanecessem por
muito tempo, enquanto as características físicas e morais demorariam mais para desaparecer.
Estigarribia teve um permanente contato com os índios do P.I de Pancas e do Rio
Eme, chamando estes de Crenacs e aqueles de Gutecrac. No relatório de 1912, apresenta
costumes, crenças, aspectos da cultura material, além de um vocabulário colhido entre os
Krenak, sendo possível percebermos a proximidade entre os dois grupos, seja na língua que
era compreendida por todos, seja no seu universo simbólico, considerado pelo Inspetor um
conjunto de superstições e lendas.
Em 1912, encontravam-se já no Posto do Eme, em Resplendor, 73 índios Krenak e,
segundo os próprios índios, havia muitos outros na mata, que viriam na próxima descida. A
dificuldade para atraí-los foi grande, dada à negativa dos índios ao contato, atacando diante
das tentativas de aproximação. Essa dificuldade na relação com os índios Krenak se manteve,
mesmo com a fixação de parte deles no aldeamento. Diferente de outros grupos com que
Estigarribia teve contato, os Krenak revoltavam-se com facilidade, reclamando de qualquer
pedido negado.
A vestimenta, em 1912, era apenas uma tanga usada pelos homens, já que as mulheres
andavam nuas. Essas, segundo o autor, andavam com os pés para dentro, na tentativa de
esconder os órgãos genitais; diferentemente de outras Botocudas, preocupavam-se com a
153
MANIZER apud OILIAM, José. Op. cit. p. 73.
154
ESTIGARRIBIA, Antonio. Op.cit.
67
nudez. Quanto à prática sexual, eles não tinham pudor algum, o ato sexual ocorria em espaços
comuns, sem que chamasse a atenção dos demais.155
A poligamia era um privilégio dos chefes. O chefe Krenak tinha cinco mulheres, uma
delas era uma menina, da qual ele completaria a criação. Muin, filho do índio Krenak,
também um chefe importante do grupo, tinha três esposas. Não havia nenhuma grande
cerimônia de casamento, apenas um pedido aos pais, o que também não era uma regra. Às
mulheres cabiam as tarefas mais pesadas, sendo comuns ocorrências de maus tratos, com
homens agredindo suas esposas. Entretanto, Estigarribia pôde notar que as mulheres,
geralmente com mais idade, exerciam liderança, sendo ouvidas pelos chefes que acatavam
suas opiniões.
Ainda sobre Muin, Estigarribia o define como sendo o chefe geral da tribo, a quem
todos, inclusive seu pai, ouvia. A tentativa de transferi-los para o Posto de Pancas foi
frustrada, os próprios funcionários temiam possíveis conflitos entre os grupos, mas insistiam
na sua transferência. Sabemos que, fixados em Pancas, estavam os Gut-Krak que, após a
cisão, tinham se transformado em inimigos dos Krenak e, possivelmente por essa causa, a
negativa do chefe Muin, recusando-se a morar junto a um grupo inimigo. Assim, o SPI teve
que dispor de verba para a criação de um P.I nas matas de Resplendor, e estabelecer acordos
com a empresa que havia adquirido, do Governo de Minas Gerais, a concessão daquela área
para criação de núcleos e usinas de açúcar.
Se, em 1912, Estigarribia definiu os índios Krenak como os mais atrasados do grupo
Gutcrak, em 1921 ele afirmava que os índios, de forma geral, já se encontravam mais
“civilizados”, ou seja, já haviam adotado práticas e costumes dos não índios. Os índios
naquela data, mesmo as mulheres, agora usavam roupas, encontravam-se assentados e haviam
adotado a prática do cultivo de alimentos. Como funcionário do Serviço, Estigarribia
evidenciava o caráter salvacionista do SPI, que deu àqueles homens que, até 1911, viviam nas
matas com fome e em constantes conflitos com os civilizados, a possibilidade de viverem em
paz. Afinal, conseguira mantê-los aldeados, protegidos dos não índios, e a quem tinham
ensinado a agricultura e tantos outros “bons costumes”, como uso de vestimentas.
155
Na viagem que fizemos a Minas Gerais (2008), os índios Krenak falaram sobre o comportamento dos índios
Maxakali que viveram naquela aldeia. O despudor dos Maxakali, que segundo eles, praticam relações sexuais
na frente de todos, seja na aldeia ou na cidade, os deixavam bastante espantados.
68
Entre 1914 e 1926, importantes etnografias sobre os Krenak foram escritas, das quais
destacamos duas. A de Sylvio Froes Abreu e a Henri Henrikhovitch Manizer (1914/1915) que
passou seis meses entre os índios de Pancas e os Krenak do Rio Doce e escreveu o mais
detalhado estudo sobre a organização social dos Krenak. O texto não foi traduzido para o
português e se encontra no Museu Nacional do Rio de Janeiro, de onde não pode ser retirado.
Embora não tenhamos lido no original, acompanhamos partes do texto do etnógrafo em vários
trabalhos, partes foram traduzidas e incorporadas ao trabalho “Borum, Bugre, Kraí:
Constituição social da identidade e memória étnica Krenak”, escrito por Missagia.156 Manizer,
coletou dados quanto ao universo mítico, analisou o sistema de parentesco, a relação entre a
disposição das casas e as relações de poder, entre outros aspectos.
Em 1926, durante sua pesquisa in loco, Abreu157 visitou os Krenak aldeados no P.I
Guido Marlière, de quem descreveu costumes, cultura material, expressões artísticas. Na
leitura do texto de Abreu, chama-nos atenção a facilidade com que parece obter os dados da
pesquisa, mostrando os índios já bastante adaptados ao convívio com os não índios. Segundo
o autor, para os Krenak a humanidade era dividida em dois grupos: os boruns e os carahys.
Esses, os homens brancos, os civilizados, não índios; aqueles, todos os indígenas e os
“civilizados” com características físicas próximas às suas, como é o caso dos asiáticos.
O grupo dos caray também sofria uma divisão, sendo formado pelos caray-lehée e os
caray-ton, os bons e os maus, respectivamente. Dos caray-lehée conheciam apenas os
viajantes e os funcionários do SPI, todos os outros eram tratados com desconfiança. Desta
forma, Abreu ressalta que os índios viam de forma positiva a convivência com os
funcionários do SPI, sentindo-se protegidos pelo chefe do posto, recorrendo a ele com
frequência. Entretanto, o texto também fala na desconfiança do líder Juquinót que, assim
como o chefe do posto, registrava, à sua maneira, os dias de trabalho dos índios, na tentativa
de não ser enganado pelos funcionários.
O texto nos mostra que os Krenak se fixavam à margem esquerda do Rio Doce,
ficando a administração do Posto Guido Marliére e a Estrada de Ferro Vitória-Minas na outra
margem. Quando os índios queriam adquirir produtos dos não índios, iam eles até a margem
156
MISSAGIA DE MATTOS. Borum..., Op. cit.
157
ABREU, Sylvio Fróes. Os Ìndios Crenaques: Botocudos do Rio Doce em 1926. Revista do Museu Paulista,
XVI, São Paulo, 1929.
69
direita. O Rio Doce, nesse caso, constituía uma barreira entre eles os “civilizados”, embora
outros não índios já explorassem os recursos do posto com permissão do S.P.I:
Além de não índios que entravam no posto, os Krenak mantinham contato com eles
quando iam à cidade de Resplendor para fazer compras, ou quando levavam seus arcos e
flechas para serem comprados pelos passageiros da estrada de ferro. O comércio já era a única
razão pela qual se fabricavam tais peças, pois, vivendo de agricultura, agora já não as
utilizavam cotidianamente e, mesmo para a caça, já preferiam o uso das armas de fogo.
Dezessete anos depois da visita de Garber, Abreu encontra o botoque quase em
desuso, apenas duas mulheres e um homem os usavam. Ele atribui a isso tanto aos
ensinamentos dos funcionários do SPI, como à vontade do índio em adotar costumes dos
brancos. Nas suas palavras: “alliam o uso de botoque ao da gravata e do colete.”159.
Em 1926, havia apenas 22 índios Krenak no Posto Guido Marlière, sendo chefiados
pelo líder Juquinót, sucessor de Muin. A poligamia não era mais privilégio do chefe, além
dele outros homens possuíam duas ou até três esposas. As mulheres viúvas podiam ter novas
relações e seus filhos do antigo relacionamento eram criados pelo novo companheiro. A
adoção dos órfãos parecia uma prática comum, o índio Krembá, por exemplo, além do seu
filho cuidava de mais cinco menores órfãos.
A imposição dos agentes do SPI, o contato com a sociedade envolvente, causara
mudanças na organização social, nos costumes desse grupo indígena. Com isso, Abreu
escreve, motivado pela certeza de que está diante dos últimos Krenak, “os últimos que
nasceram e attingiram a edade adulta em plena vida errante pela selva”. Os mais jovens, já
educados sob o regime do órgão indigenista, terão dos antigos o sangue e alguns costumes
que também desaparecerão com o tempo. Na sua visão, a incorporação de novos valores e
práticas colocaria essa população a caminho da extinção, já que não seriam mais “os
selvagens”.
158
Ibidem, p. 572.
159
Ibidem, p. 573.
70
Em 1939, esteve no Posto Guido Marlière, Curt Nimuendajú.160 Segundo ele, ali
estavam reunidos os últimos Botocudos, aqueles que, resistindo aos conflitos constantes,
acabaram pacificados pelos SPI. Ao todo, 68 indígenas, sendo que destes, 50 eram índios
Nakrehé, transferidos do Manhuaçu. Ele cita como informantes Raulino, da tribo Minyã-
Yirúgn, antes localizada no Rio Pancas e Hamálat, da tribo Nakpie, que antes vivia nas
margens do Rio Doce, acima da fronteira de Minas. O etnógrafo nos apresenta informações
preciosas quanto ao universo religioso desses índios, sendo possível perceber quão pequenas
eram as variações entre os diversos subgrupos Botocudos que neste momento habitavam o P.I
Guido Marlière.
Acreditavam na existência de espíritos que povoam o céu, chamados de Tokón,
invisíveis aos homens comuns. Apenas os escolhidos pelos espíritos Marét podiam manter
contato com eles. Sobre os espíritos Marét, os informantes de Nimuendaju divergiam quanto à
sua forma e tamanho, mas estavam de acordo quanto à morada e a bondade destes para com
os homens escolhidos por eles, oferecendo o que lhes solicitam.
Yikégn é traduzida pela palavra “forte”, no sentido de sobrenatural. Ser Yikégn foi
uma característica comum a todos os chefes Botocudos, mas nem todos os Yikégn tornaram-
se chefes. A essas pessoas são dados poderes como o contato com os Marét e a capacidade de
transformar a si e aos outros. Raulino e Hamálat contam de homens que se transformaram em
águias, que transformaram os outros em macacos.
A alma que cada pessoa possuía recebiam o nome de Nakandyún e, embora uma única
pessoa pudesse ter cinco ou seis almas, apenas uma delas habitava o corpo. Essa Nakandyún
podia abandonar o corpo por algum tempo, mas sua perda definitiva causava doenças. Os
Botocudos temem ao que chamam de Nandyón, que são fantasmas formados dos ossos dos
mortos. Os Marét cuidavam para que não voltassem à Terra, mas esses encontros ocorriam,
sendo necessário que o vivo tentasse matá-lo para que não morresse em razão do encontro.
Esse mesmo medo é descrito por Estigarribia, pelo espírito que ele denomina de Natchon.
Para afastá-los os índios davam tiros e também pintavam paus ao redor das suas casas.
160
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mitos indígenas inéditos na obra de Curt Nimuendaju.
Rio de Janeiro, SPHAN: Fundação Pró-Memória, n.21, 1986.
71
Uma outra forma tomada pela alma dos mortos era a de uma onça magra, que aparecia
aos homens desafiando-os, podendo até comê-los. Garber (1909) afirma que os corpos dos
mortos eram queimados, pois acreditavam que se não fossem enterrados ou queimados
poderiam transformar-se em animais, particularmente em onças. Estigarribia (1912) escreveu
que o medo da “onça das almas” impedia Crenacs e Gutcracs de saírem durante a noite.
Além das etnografias aqui citadas, trabalhos mais atualizados nos foram úteis para a
compreensão do povo estudado. De 1979, temos o artigo “A repressão contra os Botocudos
em Minas Gerais”, escrito pela antropóloga Sônia Marcatto.161 O artigo traça o processo
histórico vivido pelos índios Botocudos, entre 1808 e 1978. Em 1978, segundo ela, os
Botocudos eram representados pelos índios Krenak, tendo todos os outros grupos sido dados
como extintos. Além de uma compilação bibliográfica sobre os Krenak, Marcatto nos oferece
informações mais atualizadas sobre o grupo. A autora os define como índios integrados, que
quase nada conservavam dos costumes originais. Contraditoriamente, a mesma autora escreve
sobre a resistência da tradição oral e do dialeto, traços diacríticos, fortes o bastante para
diferenciá-los dentre outros grupos indígenas e a sociedade regional.
Na década de 1990, trabalhos de conclusão de curso e dissertações terão os Krenak
como objeto de pesquisa. Em 1990, temos o trabalho de conclusão de curso de Núbia
Guimarães: “Quem são os filhos e Netos do capitão Krenak?,” 162orientado pela historiadora
Maria Hilda Baqueiro Paraíso. Guimarães faz um estudo sobre a manipulação étnica, as
identidades assumidas no P.I Krenak. Com base em entrevistas realizadas com os moradores,
mais as informações contidas nos estudos etnográficos realizados na área, a pesquisadora faz
um levantamento genealógico, chegando a uma hipótese quanto aos descendentes diretos do
capitão Krenak. As informações apresentadas nesta pesquisa foram bastante exploradas no 2º
capítulo, de maneira que não faremos neste momento uma apresentação prolongada.
De 1992, a dissertação de mestrado da linguista Benedita Araújo163 consiste em um
estudo filológico a partir de dados colhidos no Wortebuch der Botokudensprache, um
vocabulário extenso da língua falada por um subgrupo Botocudo, os Naknanuk. Para isso, a
161
MARCATTO, Sônia. Op.cit.
162
GUIMARAES, Núbia Maria C. Quem são os filhos e netos do Capitão Krenak?: Um estudo sobre
manipulação étnica e a árdua trajetória dos Botocudos do Rio Doce. Trabalho de Conclusão de Curso.
Universidade Federal da Bahia. 1990.
163
ARAÚJO, Benedita Aparecida Chavedar. Op.cit.
72
Foi possível observar que no P.I Vanuíre os índios não querem esquecer a
língua materna, mas pouco a usam, pois alegam que não podem fazê-lo
porque vivem em terra Kaingang. Ao lado deste impasse, está a tristeza e a
saudade, pois falar sobre a língua e falar na língua materna fez com que se
lembrassem de fatos ocorridos no passado165
Ela pode observar que, embora nas duas aldeias o uso da língua não fosse mais
utilizado para a comunicação, ela era uma marca étnica valorizada. Uma marca que, na sua
opinião, em Vanuíre, seria ainda mais difícil de manter. Afirmou também que “língua em
processo de extinção” poderia ser “recuperada” com a ajuda de lingüistas e antropólogos.
É interessante lembrar que, em 1981, parte dos Krenak havia retornado às suas terras
de origem, depois de um longo período fora da área. Nesse ano, quando a linguista esteve no
posto, ainda dividiam seu território com fazendeiros que se recusavam a sair do local,
alegando, entre outras coisas, não haver mais índios entre eles. Nesse contexto, a língua
164
Ibidem, p. 19. Maria Teresa é uma não-índia, que cresceu no Rio Doce. Era casada com Jacó Costa, na época
já falecido. Segundo hipóteses levantadas Jacó era filho de Muin, neto do capitão Krenak. Edmar Adílson um
dos filhos de Jacó é morador de Vanuíre.
165
ARAÚJO, Benedita Aparecida. Op.cit., p. 30.
73
166
ARANTES, Luana Lazzeri. Diferenças Indissolúveis: um estudo sobre a sociabilidade Borum. Dissertação
de Mestrado. Universidade de Brasília. 2006.
167
BAETA, Alenice; MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Op. cit.
74
índios, possuindo, assim, um importante valor na construção da identidade étnica. Várias são
as histórias contadas pelos índios sobre a Serra da Onça, passeios feitos com os pais durante a
infância, do refúgio buscado pelos índios naquelas pedras.
Na Serra da Onça, em 1998, foi criado o Parque Estadual dos Sete Salões, ficando o
Instituto Estadual de Florestas responsável por sua implantação e administração. O projeto foi
interrompido, uma vez que os Krenak reivindicaram esse espaço. No momento da escrita do
referido artigo, havia um processo na Justiça Federal, faltando aos índios trabalhos que
comprovem a ligação do grupo com esse território. O próprio artigo apresenta dados que
buscam comprovar essa ocupação imemorial. No texto de Ihering, são citados os Botocudos
da Lapa, também chamados de Gut-Krak. Esse grupo estava dividido entre os de Manhuaçu
chefiados pelo Tijuque e os da Lapa por Crenac. Segundo o artigo, o único local do Médio
Rio Doce, onde, acima do Manhuaçu se encontram afloramentos rochosos com cavernas e
lapas, é a Serra da Onça, que na língua Borum, significa Takrukkrak ou Grukrak.
Conclui-se que, “o território cultural Krenak expande em muito os limites jurídicos da
atual área demarcada, abrangendo localidades que há décadas não são mais freqüentados pela
168
comunidade Krenak (...)”.
Sobretudo, nas etnografias do início do século XX os índios Krenak parecem estar
fadados ao desaparecimento, pois, uma vez incorporados à sociedade envolvente,
desapareceriam enquanto grupo indígena. São usadas palavras como desaparecimento,
assimilação, extinção. O contato, realmente, se intensificou, o botoque foi abandonado, mas
eles ainda são os Krenak, assim se veem e assim querem ser vistos pelos demais.
168
Ibidem, p. 53.
75
Capítulo 2
Me dá sua mão?
Sua mão é branca. Nóis é preto, porque nóis é
índio.
169
Nome dado pelos índios Kaingang para o “branco”.
170
Assim a índia Vanuíre foi descrita: “Dentre êles, chamou-lhes atenção uma índia Vanuíre, que a esse tempo
já era mulher madura e mal falava o português. Tinha entre os seus a curiosa função de rapsoda, cabendo-lhes
relatar, periodicamente, em contos e cantos, as estórias, lendas e tradições da tribo. Dotada de grande
sensibilidade e sinceridade, desgostosa com as guerras inúteis que seus irmãos travavam com os brancos, dispôs-
se a colaborar com o esforço de pacificação.” Revista do Arquivo Municipal. VCL XXXI 1970, p.173.
171
PINHEIRO, Niminon. Vanuíre: Conquista, Colonização e Indigenismo: Oeste Paulista, 1912-1967. Tese de
Doutorado. Assis, Unesp, 1999.
172
Idem.
77
A área do Ribeirão dos Patos, até então habitada por facções Kaingang, era uma terra
fértil, muito propícia ao plantio do café. Em 1916, um acordo entre fazendeiros locais e o SPI,
culminou com a transferência dos Kaingang para o P.I Icatu. A ação não era de desejo dos
índios e nem mesmo do encarregado do Posto, Bandeira de Mello, figura fundamental no
processo de atração e acomodação dos índios na “Vila Kaingang”. Poucos foram efetivamente
transferidos, tendo alguns sucumbido antes, devido às epidemias. Outros optaram por retornar
às matas. Essa pequena população levada ao P.I de Icatu sofreu uma divisão, visto que grupos
diferentes foram forçados ao convívio comum. No mesmo ano, foi criado o Posto Indígena de
Vanuíre, separando, dessa maneira, os grupos rivais.173
A atuação do SPI, no Espírito Santo e na região do Rio Doce, em Minas Gerais, não se
diferencia quanto às práticas e aos objetivos vistos acima. Para que colonos e funcionários da
estrada de ferro pudessem continuar suas atividades, três postos seriam construídos nos dois
Estados. Se, em São Paulo, a índia Vanuíre foi de extrema importância para o projeto de
atração, em Minas, o diálogo entre os funcionários e os índios que seguiram o “capitão”
Krenak foi estabelecido através do seu filho, Muin. Foi ele quem determinou onde o Posto de
Atração deveria ser construído e, mais tarde, fez pressão para que o grupo não fosse
transferido para o Posto de Pancas, como já havia estabelecido o SPI.
Segundo Estigarribia, nessa ocasião, o grupo liderado por Krenak já havia sofrido uma
nova cisão. Seu cunhado Orimã culpava-o pela morte da irmã, esposa do “capitão” Krenak,
formando, a partir daí, seu próprio bando. Quanto à aproximação com os não índios, os
grupos também mantinham posições contrárias. Muin como já dissemos, mantinha uma
relação muito próxima, seguido por parte do grupo. Seu pai, embora convivesse com os
funcionários, mantinha-se mais distante, na Aldeia Bonita, enquanto Orimã o cunhado de
Krenak, negava-se a qualquer aproximação.174
A Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios em Minas Gerais foi criada em 1910.
Em 1913, foi instalado o Posto de Atração do Rio Eme, exatamente no local onde o grupo do
“capitão” Krenak havia se refugiado. Epidemias como a varíola, em postos da mesma
Inspetoria, transferiram vários índios para o Posto do Eme. Mesmo grupos rivais, como o do
dissidente Orimã, dividiram o espaço com os seguidores de Krenak e Muin.
173
Ibidem.
174
ESTIGARRIBIA apud PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Krenak do Rio...; Op. cit., p. 14.
78
175
COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. Op. cit.p.58
176
Tivemos acesso a um recenseamento feito em Vanuíre no ano de 1947, ele mostra que na ocasião João
Umbelina tinha 34 anos. Quando chegou em Icatu, em 1937, era então, um jovem de 24 anos de idade.
177
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 016. s/d.
79
O trecho acima é parte de uma carta assinada pelo então, Chefe da 2º Seção do SPI,
Antonio Martins Estigarribia, que fora Inspetor do Estado de Minas Gerais. A carta narra sua
visita aos Postos de Icatu, Vanuíre e Araribá. Ela não está datada, mas certamente foi escrita
entre 1940 e 1942, já que, além de encontrar o índio Pom-Pom com vida, ele fala de recursos
financeiros de 1940. Um outro documento nos ajudou a situá-la no tempo:
Estigarribia também escreve sobre a razão da reclusão em Icatu dos índios de Minas
Gerais e Espírito Santo:
Esse trecho nos parece importante, uma vez que demonstra a irresponsabilidade com
que agiam funcionários do SPI, ao desconsiderarem os conflitos existentes entre os grupos. Os
Aimorés ou Botocudos como foram chamados, foram pintados na história de vermelho
sangue, descritos como ferozes assassinos. Será que Estigarribia acreditava, realmente, que
Muin deteria, de maneira pacífica, as investidas de Lima e seu bando?
178
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 07. 12/01/1943.
179
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: 016. s/d.
80
Muin ordenou a ação que, mais tarde, foi vingada pelos Gut-Krak, de Pancas. Com a
extinção do Posto de Pancas, em 1940, os índios foram levados para o Posto Guido Marliére,
180
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme: 07. 10/1941
181
Grifo nosso.
182
PARAÍSO apud MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op.cit., p. 142.
183
MANIZER apud MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op. cit., p.161.
81
onde viviam os Krenak. Isso explica a transferência para Icatu desses índios, cuja presença no
Guido Marliére certamente geraria uma nova onda de violência. Ao que tudo indica, Jucuate,
Tenuque, e mesmo o índio Pom-Pom, não estavam internados pelo crime que praticaram,
pois, assim como disse Estigarribia, isso havia ocorrido já há muito tempo. O que os mantinha
em Icatu, era o fato de não poderem retornar para as terras de origem, uma vez, que o P.I onde
viviam tinha sido extinto e no Posto Guido Marliére existia o problema já relatado.
Diferente de Jucuate e Tenuque, a origem de João Umbelina é o Posto Guido Marliére,
antigo Posto do Eme, o que nos faz concluir que a permanência de João Umbelina em Icatu
nada tinha a ver com o motivo que levara os índios de Pancas para o mesmo P.I. De acordo
com a documentação, João Umbelina, que havia cometido um crime grave, mas diferente dos
outros, podia retornar para o Guido Marliére, o que realmente fez mais tarde.
Em 1951,184quando João Umbelina já tinha cumprido sua pena e se mudado com a
família para Vanuíre, os índios Jucuate e Tenuque ainda permaneciam em Icatu. Na ocasião,
Jucuate tinha 61 anos, Tenuque 59, e ambos permaneciam solteiros. Esses homens passaram a
vida longe dos seus, chegaram a uma idade avançada sem ter uma companheira. De repente, o
lugar em que viviam não existia mais e o lugar encontrado pelo SPI era bem distante do
ambiente em que haviam crescido.
Na ocasião da visita de Estigarribia, os índios sob “tratamento” no Posto Icatu,
recebiam pagamento pelos serviços prestados, assim como os demais. Mas a localização de
suas casas demonstra existir uma diferenciação entre eles: de um lado ficavam os Kaingang e,
do outro lado, os Kaingang casados com os Krenak e as demais etnias:
Foram feitas com os recursos dos dois adiantamentos de 1940, três casas do
material para os índios, estando em construção uma quarta. São de cinco
cômodos e duas varandas abertas, elevando-se o seu custo a cerca de
4:500$00 cada uma. Ficam do lado do norte e ali moram só caingangues.
Do lado oposto foram concertadas e postas como novas 4 casas de madeira
de lei, com cinco cômodos cada uma, e está em acabamento uma quinta nas
mesmas condições, orçada em 2:200$000. Ali moram os Aimorés casados
com Caingangues, e alguns outros índios.”185
184
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme: 07. 1951
185
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 016. s:d. Grifo nosso.
82
No Icatu, várias etnias estavam reunidas em uma mesma área, grupos de costumes,
crenças e origem bastante diferentes; não se tratava de uma prática isolada e despretensiosa, a
própria vinda dos Terenas para Icatu e Vanuíre corresponde a esse projeto do SPI:
Falecimento:
21-11-1942, atacada de desenteria, faleceu a pequena Jacira Revanhering, filha do
índio Crenaque João Umbelina e da índia Caingang Cotú. Após tratamento rigoroso
186
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 340. Relatório referente ao ano de
1929.
83
pelo Dr. Jorge Xavier de Almeida entrou em franco restabelecimento, infelizmente por
ignorância da própria mãe, foi lhes dado caldo de cana, que a fez recair não havendo
possibilidade de salvação.187
Os “Aimorés” viviam próximos uns dos outros, acompanhados das esposas Kaingang.
Sob reclusão, realizavam uma série de atividades ligadas à lavoura e à criação animal. João
Umbelina recebia pelos trabalhos constantes realizados no P.I de Icatu, aparecendo seu nome
em várias folhas de pagamento:188
Em 1945, com o término da reclusão, João passou a viver em Vanuíre, com toda a
família:
Chegaram ás 14 horas nêste Posto os seguintes índios: João Umbelino, da
tribu Crenaque, sua mulher, índia Caingang, de nome Cutú e duas filhas
menores, sendo uma de 5 anos e outra de 6 mezes, de nomes Jandira e
Rosalina, respectivamente, que vieram do posto de Icatú, afim de fazer roça
nêste P.I.189
Na leitura dos diários do Posto de Vanuíre, notamos a grande integração que havia
entre os moradores dos dois postos, sendo comum o deslocamento das famílias entre as duas
áreas, como lemos abaixo:
Ou ainda:
Segue com a família para o Icatú, afim de visitar parente que se encontra
doente, o índio Francisco Paraná com sua família.”191
A área do Posto de Vanuíre – que hoje corresponde a 706 hectares –, era superior à de
Icatu. No início da década de 40, escreve Estigarribia sobre Vanuíre: “Existem apenas 28,
caingangs, mas o Posto constitue excelente reserva para mais umas 20 famílias de índios a
187
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: Filme 07.
188
Pinheiro, na leitura da documentação do SPI acompanhou o cotidiano de alguns internados, buscando saber
se os mesmos recebiam salário. Ela cita o índio Euclides que veio para Vanuíre em 1949, e embora tenha
realizado trabalhos, seu nome não consta em nenhuma folha de pagamento. PINHEIRO, Niminon S. Op. cit.,
p.233.
189
Diário de Posto. Vanuíre. 3/10/ 1945.
190
Diário de Posto. Vanuíre. 6/09/ 1945.
191
Diário de Posto. Vanuíre. 9/10/ 1945.
84
192
quem venha a faltar em outra parte”. Segundo Pinheiro, a população de Vanuíre foi
pequena desde o início, um quadro que se manteve nas décadas seguintes, variando entre 25 e
50 pessoas.193 Tanto Icatu como Vanuíre foram gerenciados pela Inspetoria Regional 5 (IR),
tinham ambos a mesma coordenação, que parecia facilitar esse caminhar entre os postos.
Talvez o pequeno número de habitantes em Vanuíre, acomodados em uma área maior, tivesse
oferecido, na ocasião, melhores condições para o índio João Umbelina “fazer roça”.
Na década de 40, quando João Umbelina chegou em Vanuíre, a economia era
diversificada. No posto plantava arroz, milho, feijão, entre outros gêneros. Criava bovinos,
ovinos e suínos. Arrendava áreas para pasto, além da extração da madeira. Parte desta verba
ficava sob o poder do encarregado do posto, enquanto parte dos valores eram encaminhados
até Icatu e entregues ao Inspetor Erico Sampaio, como vemos:
A extração de madeira era intensa, vários são os registros dessa atividade. Quanto à
“roça” do posto, ela era voltada para a venda, mas também se faziam trocas com a população
vizinha, distribuindo o restante entre os índios. No entanto, a responsabilidade em prover a
família vinha do próprio índio, compromisso cobrado com rigidez pelos encarregados, os
quais impunham ao índio uma rotina de trabalho nas lavouras:
192
Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio. Rio de Janeiro: 016. s/d. Explicamos acima como chegamos
a data aproximada da escrita da carta, entre 1940 e 1942.
193
PINHEIRO, Niminon S. Op. cit., p. 197.
194
Diário de Posto. Vanuíre. 18/03/ 1945.
195
Diário de Posto. Vanuíre. 28/10/ 1943.
85
Canuto, citado no texto acima, foi substituto de um outro aprendiz que também não
parecia muito satisfeito com a função:
Foi afastado do serviço o aprendiz índio Francisco Iaiatí, por vir o referido
trabalhando com má vontade, descuidando completamente da criação,
apezar de todos os conselhos e agrados que lhes foram dados. Foi dirigido
ao Sr. Diretor da I.R.5, nesta data o ofício n. 3, comunicando o fato e
pedindo substituição do aprendiz índio em questão, sendo também
cientificado o P.I Icatú.198
196
Pinheiro, comparou o valor da diária paga em 1949 ao Sr.Nilo com o preço da creolina. O índio recebeu
25,00, quando preço da unidade era de 22,00o. PINHEIRO, Niminon S. Op. cit., p. 233.
197
Diário de Posto.Vanuíre. 13/03/ 1944. Curioso, que mesmo após o pedido de “demissão” Canuto continua a
exercer a função levando até Erico Sampaio as folhas do pagamento mensal e do ponto pessoal. Enquanto
“gorducho”, junto com Francisco Paraná e Dotí iniciam suas colheitas de arroz.
198
Diário de Posto.Vanuíre. 28/10/1943.
86
mesma paga pelo P.I, Cr$14,00.199 É nas relações comerciais estabelecidas entre os índios e
os fazendeiros vizinhos, que notamos a postura dos funcionários do S.P.I, enquanto tutores:
O índio Dotí adquiriu do Sr. Bruno Zoner um porco para engorda, pela
quantia de Cr$ 100,00, tendo o negócio sido feito na presença do enc. Do
Posto.200
Ou ainda:
A dieta alimentar dos índios era muito pobre e, ainda que o posto possuísse dezenas de
cabeças de gado, não vemos qualquer referência ao consumo de leite ou de carne. Apenas no
199
Valor pago no ano de 1945.
200
Diário de Posto.Vanuíre. 24/05/ 1944
201
Diário de Posto.Vanuíre. 19/06/1944
202
Diário de Posto.Vanuíre. 14 /10/ 1945
87
Dia do Índio é que se fazia um churrasco, prática que perdura até os dias atuais. A falta de
nutrientes é registrada no próprio diário do Posto de Vanuíre:
Como vimos, as condições são precárias. Além de conviver com as doenças, os índios
viram ceifada a liberdade em caminhar pelas matas, em realizar atividades como a caça e a
pesca quando bem quisessem. Estavam “presos” a uma rotina de trabalho, controlados em
cada saída e em cada chegada. Eram levados para Icatu, quando envolvidos em discussões,
em brigas, onde permaneciam cumprindo medida disciplinar. Uns se adaptavam com mais
facilidade que os outros ao trabalho nas lavouras; alguns nomes aparecem, com frequência,
relacionados ao plantio e às colheitas, enquanto outros registros se referem a famílias que
nada colheram.
O Krenak João Umbelina chegou a Vanuíre com a família dia 03/10/1945, mas seu
filho Antônio de oito anos permaneceu em Icatu até o dia 7 do mesmo mês. Nos primeiros
dias da família em Vanuíre, descobriu-se que a menina Rosalina estava com coqueluche. João
Umbelina deslocou-se até Juliana em busca de remédios. Ainda com a criança doente, João
dedicava-se ao trabalho na lavoura, sendo vários os registros das atividades realizadas por ele:
Ou ainda:
O índio Crenac João Umbelino iniciou sua colheita de arroz, tendo batido 3
sacos, dos quais foram vendidos 2 ao Sr. João Nave pelo preço corrente de
203
Diário de Posto. Vanuíre. 22/02/ 1943.
204
Diário de Posto. Vanuíre,18/10/ 1945.
88
Quem assina o memorando acima é Itamar Simões que, na ocasião, era Inspetor
Auxiliar de Vanuíre. Itamar é lembrado, ainda hoje, pelos índios de Vanuíre, como um chefe,
capaz de vender a eles o que deveria ser dado, obrigando-os a trabalharem na lavoura de
segunda a sexta em troca de alimentos. Falam também em uma espécie de cadeia, onde
ficavam presos os índios que bebiam, que não faziam as atividades exigidas pelo chefe de
posto. Foram os índios que, revoltosos com a ação de Itamar, colocaram a “prisão” abaixo.
205
Diário de Posto. Vanuíre. 22/03/ 1946.
206
Serviço de Proteção do Índio. Museu do Índio: Filme 016. 5/08/1949
89
Itamar passou muito tempo trabalhando em Vanuíre, e os Damaceno, que chegaram em 1964,
lembram do dia em que o chefe de posto saiu algemado do P.I pelos policias.
Itamar já havia enviado, em maio de 1948, um ofício ao Chefe Substituto da I.R,
solicitando dele instruções que pudessem resolver o problema207. Reclamava, na ocasião, de
um “civilizado” o Sr. Pedro Dellvalle que fornecia bebidas alcoólicas aos índios, tendo João
Umbelina como freguês assíduo. Dellvalle respondeu, ao então encarregado do posto, que
pagava seus impostos e que o Serviço não podia proibi-lo de vender bebidas. O filho do
comerciante também causava problemas, tendo invadido a aldeia para pegar a porca de uma
índia como pagamento das bebidas compradas por ela. O problema não eram os índios que
consumiam as bebidas, mas o “civilizado” que as vendia a eles. Itamar esperava das
autoridades uma medida contra o Sr. Dellvalle.
Não sabemos ao certo se foi por vontade própria, mas em 1953 seguiu o índio João
Umbelina para o Posto Guido Marliére. O delito cometido quando jovem foi resolvido com a
transferência. E, agora, diante do comportamento do índio, o Serviço apoiou uma nova
transferência. A família de Umbelina retornou para Vanuíre dois anos após a viagem:
207
Serviço de Proteção do Índio. Museu do Índio: Filme 016. 02/05/1948
208
Serviço de Proteção do Índio. Museu do Índio: Filme 016. 02/08/1955
209
Serviço de Proteção do Índio. Museu do Índio: filme: 016. 02/05/1956.
90
No documento acima não há nenhum registro sobre uma possível companheira, talvez
ela tivesse vindo em uma outra ocasião. O fato, é que João Umbelina teve uma segunda
esposa, Dona Gracina Umbelina. Veio de Minas para Vanuíre, onde permanece até hoje com
os filhos de sua relação com João Umbelina. Ela e Dona Jovelina Damaceno, são as mais
idosas Krenak que vivem em Vanuíre.210
Em uma conversa com Dona Gracina em sua casa, estavam presentes três filhos. Um
deles, Tiago Umbelina, nos responde se o pai era mesmo do Posto Indígena Krenak:
Ele era, mais não acostumava. Antigamente ele andava de aldeia por aldeia.
Ficava igual um andarilho andando, andando, aldeia por aldeia. Eles vieram
a pé de lá de Krenak até aqui. È mole é? Vir a pé de lá aqui, aqui é longe,
vir a pé de lá aqui. Antigamente veio a mãe da Lia, a mãe da Lia que veio, o
Antonio Jorge, vieram tudo a pé. 211
Eu sou de Minas. Depois, o meu marido andava aqui, né? Não gostava de
lá, gostava mais daqui, ai nos mudemo pra cá. Até hoje, morreu, eu tô
aqui.212
210
Gracinda é uma senhora adorável. Bastante atenta mostrou-se receosa quando seu filho Tiago pediu que ela
falasse na “linguagem” para eu “guardar”. Disse que os estudantes ganham dinheiro, e só falaria se pagasse. Mas
como o assunto não era a “linguagem”, ela conversou bastante, contou-me rindo de quando os índios antigos
encontraram um homem negro: “Os índios antigos lá no Krenak, nunca viu nêgo preto, né? Juntou lá , pegou,
levou lá, que tá sujo. Levou lá na areia, ariou ele até sair sangue”. Em uma outra ocasião, a encontrei quando
voltava da casa de Dona Jovelina. Saia longa, pés descalços, uma bolsa pendura e um pedaço de madeira que lhe
servia de apoio. Acredito que ela não tenha se recordado do dia em que estive na sua casa, mas me contou de
onde vinha e perguntou se eu estava passeando.
211
Entrevista concedida dia 20/07/08.
212
Entrevista concedida dia 20/07/08.
91
G: Morreu em São Paulo. Nós nem viu a morte dele. Esse aqui era deste
tamanho, aquela ali também era desse tamainho. Ela chorava: Mãe, quer
meu pai. Eu falava pra ela: Seu pai virou bicho. Ai ela parou de falar.
P: Ele foi trabalhar em São Paulo?
G:Não, ele tava doente. Operou ele, ai morreu.
P:Foi se tratar.
G:De lá mesmo ficou. 213
Sobre a morte de João Umbelina, escreve Álvaro Villas Boas, Chefe da Ajudância de
Bauru, ao Chefe de Vanuíre, Antonio Alves de Menezes:
Como nos falou Dona Gracina, João morreu em São Paulo e lá foi sepultado. Ainda
que o chefe comunicasse o local de sepultamento, sabemos as dificuldades que os parentes
teriam para dirigir-se até lá, além do que, em momento algum, o documento falasse dessa
possibilidade. Ainda que se dirigissem para São Paulo, João já estaria enterrado. A dor de
Dona Gracina está em não ter podido acompanhar o enterro, em não ver o corpo do marido.
As viagens de João Umbelina não terminaram quando ele retornou para Vanuíre no
ano de 1956. Já estava casado com Dona Gracina, e foram morar com os filhos, no Mato
Grosso do Sul:
Ele foi até em Mato Grosso, morou em Mato Grosso do Sul. Lado lá de
Cuiabá, Miranda. Já ouviu falar? Cachoeirinha, aldeia Terena, ele morou
lá. Nós morou lá também, sai daqui foi com 7 anos pra lá, pra Mato Grosso.
Quando eu voltei eu tinha 26 anos, eu cresci lá em Mato Grosso. Ai eu vim
embora pra cá, ai eu casei.
213
Entrevista concedida dia 20/07/08.
214
Fundação Nacional do Índio. 28/01/1975. Documento armazenado no Museu Índia Vanuíre, Tupã.
92
João Umbelina foi um dos índios que o Serviço deveria transformar em trabalhador
rural produtivo, que contribuísse para o “progresso”. Para aqueles índios que não se
adequassem, que praticassem ações anormais aos olhos dos “civilizados”, o SPI criou as
Colônias Penais. Por essa razão, João Umbelina veio do Guido Marliére cumprir sua pena em
Icatu. Vivendo em Icatu, mais tarde em Vanuíre, João Umbelina tornou-se um “trabalhador”,
com atividades determinadas, pagamento e até férias. Mas, além do trabalho, o não índio
também lhe apresentou o álcool. Nas palavras de sua filha Jandira: “Eles amansam o índio
com cachaça, depois quer tirar a cachaça do índio”. A bebida faria de João Umbelina
novamente um problema para o Serviço, e a saída pareceu ser mesmo o retorno para Minas
Gerais. Assim, o índio João fez o caminho de volta, mas retornou anos depois, vivendo em
Vanuíre e no P.I Cachoeirinha.
A palavra Krekmum216 (aquele que vai e volta) parece definir este índio Krenak. João
Umbelina viveu ora em Minas, ora em São Paulo, um pouco no Mato Grosso. Viveu aquela
mesma trajetória de deslocamentos, tão presente na história de seu povo. Ao casar-se com a
índia Caingang Cotú e transferir-se para Vanuíre, deu início à história dos Krenak em
Vanuíre, dos Kaikren217, dos Borum longe do Watu.
215
Tiago Umbelina. 20/07/2008
216
Palavra Borum usada para definir um andarilho.
217
Maria Helena, moradora de Vanuíre, me disse que quando buscavam o nome para a Associação criada na
aldeia, chegaram a conclusão que o nome deveria lembrar as duas etnias. Dessa necessidade, nasce a Kaikren.
93
Há toda uma produção teórica acerca da identidade étnica que nos permitiu pensar
este caso específico e, por essa razão, julgamos necessário uma breve apresentação das
contribuições dadas por cientistas sociais para a melhor compreensão do assunto em questão.
Para a literatura antropológica, as identidades não são categorias ontológicas, imutáveis. Ela é
pensada dentro de um contexto capaz de determinar qual identidade será vestida ou descartada
pelo grupo. Ainda no século XX, influenciados pelo modelo evolucionista do século XIX, os
trabalhos acadêmicos utilizaram conceitos como “assimilação” e “aculturação”, que denotam
a transitoriedade da figura indígena que, em contato com a sociedade envolvente, estaria
fadada ao desaparecimento, pois não apresentariam uma identidade especifica.
É de 1973 o Estatuto do Índio que define como indígena “todo indivíduo de origem e
ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo
étnico cujas características o distinguem da sociedade nacional”. Percebemos que a identidade
indígena nesse caso não depende apenas da auto-identificação; a identidade é vista como algo
tocável, visível. Na leitura do artigo 231, da Constituição Brasileira de 1988, vemos que não
são mais estabelecidos critérios de identificação. A Constituição diz apenas em reconhecer
“aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Em 2004, tivemos a promulgação da
Convenção 169 da OIT, que estabelece como critério fundamental à auto-identificação, o
sentir-se indígena como definidor da identidade. Nesse sentido, a legislação também
caminhou para o reconhecimento dessa identidade, como algo mutável, incluindo, então,
aqueles grupos de pouca distinção cultural.
Nas décadas de 50 e 60, do século XX, estudiosos refletiam sobre os encontros entre
diferentes grupos no cenário brasileiro. Os estudos focavam sua atenção no aspecto cultural; a
leitura de Barth contribuiu para as discussões que já se faziam no nosso país sobre a
temática.218 O autor em questão desloca a definição de grupo étnico como “unidade portadora
de cultura” para um “tipo organizacional”. O partilhar, a autodenominação e atribuição dada
pelos outros, seriam suficientes para formar o grupo em seu sentido de organização, não
sendo, nesse caso, o aspecto cultural determinante na definição de um grupo étnico. 219
218
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Op.cit.
219
BARTH apud OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Op. cit., p.176.
94
A fricção interétnica também é pensada entre etnias indígenas, também neste contexto
assumem uma identidade contrastiva que atualiza a sua identidade étnica, ou seja, também
nesse espaço aparece o “eu” e o “nós”. A vivência em um contexto multiétnico não foi uma
realidade imposta apenas ao Krenak que viveram em Vanuíre; desterros anteriores já haviam
forçado a convivência com os Maxakali e com os índios Guarani, entre outros. Mas há um
dado também bastante interessante para a discussão que pretendemos, que é a convivência
comum de diferentes subgrupos Botocudos. Entre 1918 e 1923 foram levados para viver entre
os Krenak, os Nakrehé. Mais tarde, com a extinção do Posto de Pancas, em 1940, chegam os
Gout-tkrak, os Mina-jirún, outros Nakrehé e Naknenuk.221 Dessa forma, são os Krenak de
hoje um rearranjo dos Gut-Krak, Minãjirun, Nakrehé e Naknenuk.
Diante de pesquisadores, representantes do Governo e a sociedade envolvente em
geral, a identidade Krenak é assumida por todos – ser descendente direto do cacique Krenak
garante a eles o domínio daquele território. Como nos mostra Brandão:
220
OLIVEIRA, João Pacheco. “O nosso governo”. Os Ticuna e o regime tutelar. São Paulo: Marco Zero, 1998.
p.45.
221
GUIMARÃES, Núbia Maria C. Op.cit., p. 54.
95
Neste caso, a adscrição adotada é o “nós” Krenak , frente ao “eles” não indios, os
Krenak reconhecem força na unidade. Roberto Cardoso de Oliveira apresenta-nos o caso da
família Tikuna que, mesmo fugindo às estruturas da própria organização social, define como
sendo Tikuna duas crianças de mãe Tikuna e pai não índio, ainda que a definição da
identidade se dê pela linha paterna. Em ambos os casos, vemos a busca pela homogeneização
étnica, que não se dá, como colocou Brandão, por uma “voluntária vontade simbólica do
grupo”. Segundo Roberto Cardoso, essa é mais uma pressão que a sociedade nacional exerce
sob os indígenas, embora possa ser uma pressão positiva, uma vez que contribui para o
fortalecimento da identidade étnica.223 Esse ativamento da identidade é visto entre os Krenak
de Minas Gerais, onde o conhecimento da genealogia do grupo, a confecção de adornos e o
domínio da língua são altamente valorizados.
A mesma homogeneidade étnica apresentada aos de “fora”, não é vivenciada dentro do
território indígena. De acordo com Missagia, três são os subgrupos existentes dentro da
aldeia: os Butkrak do Rio Eme, Nakréhé-hé de João Pinto (se localizavam próximos a
Conselheiro Pena) e Nakréhé-hé de Itueta (P.I Pancas).224 A disposição das casas no P.I foi
analisada por pesquisadores que buscavam compreender a organização social do grupo. Nos
trabalhos a que tivemos acesso, a organização espacial encontra correspondência na divisão
grupal, apontada por Missagia.
Como descreve Arantes:
222
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e etnia: Construção da pessoa e resistência. São Paulo, Brasiliense:
1986. p. 111.
223
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Op.cit.
224
MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op.cit. Segundo Missagia, na ocasião do trabalho de campo
havia uma única índia cuja descendência era Minãgirum, sendo esta filha de mãe Miñagirum e pai Nakhré-hé de
Itueta.
225
ARANTES. Op.cit., p. 103.
96
226
Arantes faz uma análise mais completa da organização espacial existente no P.I Krenak. Ela aponta três
modelos de agrupamentos. O primeiro, divide as casas em três grupos, relativo ao grupo de origem: Nakrehé de
Itueta, Nakrehé de João Pinto e Gutkrak do Eme. O segundo em três pólos: pólo do Eme, polo do cacique, polo
da Barca. Essa divisão foi criada pela Funasa para melhor atender os índios, hoje mesmo na escola os
professores usam esse modelo de divisão. O terceiro, diz respeito ao arranjo que ela presenciou durante a
pesquisa. Este último, com quatro divisões, foi feito com base nas atuais lideranças. Uma divisão a mais, pois os
Butkrak tinham se dividido, em razão de uma briga entre duas primas.
227
Trabalho de campo realizado entre abril de 1992 e abril de 1994.
228
MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op. cit., p.141.
229
Idem.
97
Casamento daqui de cima com alguém de baixo, não, acabou, mas não é só
por causa da divisão, eu não sei, acho que o pessoal daqui de cima talvez
não tem muito a ver com o pessoal de baixo, ficam brigando, e também lá
em baixo fica mais perto das meninas encontrarem com os meninos, os
rapazes, por isso que eu acho que sai mais casamento entre eles lá e aqui em
cima, não, porque o M. casou com a B. então é coisa de família (de cima).
Você pode ver, lá acaba ficando na mesma família.
Eu acho que é Nakrehé-hé e Krenak, mas era uma aldeia só, porém
Nakrehé-hé, quando houve a guerra- são histórias- então eles se afastaram e
o Krenak persistiu, ficou no lugar por isso, mas como o pessoal se afastou
por causa das guerras, foi assim que surgiu outro nome.
Mesmo não querendo dizer, ás vezes as pessoas falam: “aqui não tem
divisão, todo mundo é unido, a R. mesmo acha ruim quando fala em
divisão, ela gosta de mostrar que todo mundo está unido, mas quando muda
alguém lá de baixo, tipo assim, a M. mudou agora, eu acho que está até
mudando, porque de primeiro era aquela divisão, ninguém daqui ia lá, nem
os de lá vinha pra cá. Até que agora estão se unindo, indo um na casa do
outro...” .230
230
Ibidem, p. 146.
231
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro.Os Botocudos do Rio..., Op.cit., p.426.
98
232
GUIMARÃES, Núbia Maria C. Op cit., p. 56.
233
Curioso que Guimarães não tenha incluído Krembá, como chefe Krenak.
234
Guimarães aponta Waldemar como neto de Muin e bisneto de Krenak, mas diz que ele é filho de Pac. O que
não condiz com os relatos ouvidos em Vanuíre. Waldemar é filho de Jacó, índio que acaba morrendo de tristeza
na Fazenda Guarani, durante o exílio sofrido pelos Krenak.
235
GUIMARÃES, Núbia Maria C. Op.cit., p. 63.
99
com o intuito de reaver o espaço que ainda estava tomado pelos fazendeiros. A localização
das famílias vindas de Vanuíre nos interessa bastante, uma vez que possibilita perceber as
alianças estabelecidas nessa volta. Analisando o croqui da área indígena, vemos que os irmãos
Damaceno estão todos fixados ao norte, juntos a José Alfredo. A única exceção é Cleusa
Cecílio Damaceno, casada com José Manuel de Souza, cuja família apoiava Laurita Felix.
Sobre isso diz Guimarães:
Três dos irmãos Damaceno retornam para Vanuíre, dois deles casaram-se com índias
Kaingang, enquanto Maria Helena Cecílio Damaceno se uniu a João Batista de Oliveira,
irmão do cacique José Alfredo. Dos irmãos que permaneceram em Minas, José Cecílio
Damaceno contraiu matrimônio com Milda Umbelina237.Cleuza Cecílio Damaceno ficou
viúva, casando-se mais tarde com um não indio. A única união dos Cecílio Damaceno com os
Felix foi o casamento de Carlos com uma das filhas de Laurita. 238
Na ocasião de nossa viagem,239 Cleuza Cecílio Damaceno não morava mais tão
próxima a Laurita, mas ainda vivia no lugar denominado de Barra do Eme. Ela nos contou
que, ao unir-se a um não índio foi proibida de morar na aldeia, mudando-se para Vitória.
Laurita Felix, no entanto, depois de reaverem as terras, disse à Cleuza que ela podia voltar. Já
José Cecílio Damaceno (Zezão) mora em um ponto denominado Porto da Barca. Ele tem dois
filhos casados com os filhos de Laurita Felix.
Acompanhando os Krenak de Vanuíre até Minas Gerais, percebemos que havia um
distanciamento entre a família Damaceno e Laurita Felix. Durante uma visita frustrada a José
Cecílio Damaceno (Zezão), passamos pela casa de Laurita que se estava no quintal. Os irmãos
236
Ibidem, p. 66.
237
Filha de dona Gracina Umbelina e João Umbelina.
238
Carlos nasceu em Vanuíre, é filho da Dona Jovelina com um Kaingang. Ele conheceu a esposa em Minas
Gerais, uma das filhas de Laurita Felix. Ele era tratorista da FUNAI e acabou morrendo em um acidente de
trabalho.
239
Saímos de Vanuíre com destino ao P.I Krenak dia 27/07/2008. O motorista não índio (“crente”), 14 índios
adultos, mais 5 crianças.
100
240
A construção da Hidrelétrica de Aimorés é um empreendimento da Companhia Energética de Minas Gerais
(Cemig) e Cia. Vale do Rio Doce, o aproveitamento do potencial hidrelétrico do médio Rio Doce, já causa
danos ambientais, afetando diretamente ao povo Krenak.
241
Waldemar Adílson não conseguiu se estabelecer como cacique, tendo o filho de Laurita assumido a liderança
Butkrak.
242
ARANTES, Luana Lazzeri. Op.cit.
101
Muin. Sabemos que Jacó e Sebastiana, mãe de Laurita, foram criados como irmãos. Mas,
enquanto Jacó foi criado por Juquinót, Sebastiana era uma das órfãs criadas por Krembá,
antecessor de Juquinot na liderança.243 No entanto, ainda que os dois reivindiquem a
identidade Butkrak – a descendência direta ao “capitão” –, Laurita é filha de mãe Krenak (do
Rio Doce) e pai Nakrehé de Itueto, enquanto Waldemar é filho de pai Krenak (do Rio Doce)
e mãe não índia. Assim, ainda que descendam ambos do líder Krenak, a identidade acionada é
a que traz mais beneficio, e desse modo o fazem todos os índios Borum, ao assumir a
identidade Krenak.
Em Vanuíre, as afiliações a subgrupos não são utilizadas, todos assumem a mesma
identidade Krenak. Quando questionados sobre as divisões existentes na aldeia de Minas,
dizem que foi uma medida de proteção, pois, estando uns ao sul e outros ao norte, toda a área
estaria protegida de possíveis invasões. Quando questionamos sobre os diferentes subgrupos
existentes no P.I Krenak, obtivemos a seguinte resposta de João Batista de Oliveira:
Esse grupo era porque...sabedoria do índio, né? Porque o branco matou
muito Krenak, muitos. Tinha 5 mil índios Krenak, matou quase tudo, o
grupo tava acabando, ficou 20 índio. E ai ele falou assim: “Nós vamos
dividir, cada uma tribo, cada um índio tem um nome de uma tribo. Ai veio:
Butkrak, Naknenuk, Kuparak, Minãjirum, e foi pondo. Ai, quando as
pessoas brancas chegava: Cabo já os índios. Ainda tem índio ainda? Tem.
Tem? Tem Butkrak, tem Minãjirum, tem...tem Kuparak. E onde que é isso?
Ah, lá embaixo”. Ai eles ia, né? Pra ver se era só um índio. Se o branco ia
pra lá, esses índios daqui, já comunicava todos os outros, juntava todos os
outros, sentava: “Tá vindo ai, conheço ele”. Corria tudo pra lá, chegava lá: “
È ainda tem bastante índio, ainda.” Mas não era, não tinha muito, só tinha
só 20 índios. Mas ele dividiu pra pode enganar branco.244
Segundo o Sr. João, os índios formavam um só grupo. Nomes diferentes foram criados
para dar a impressão de que eram muitos, assim os brancos os temeriam e os deixariam em
paz. A história contada por ele não faz referência a genealogias, nem a grupos de diferentes
origens. Quando novamente insistimos sobre uma possível diferença entre Nakrehé e Gut-
Krak , ele nos disse:
Nóis daqui é o mesmo de lá, nós que veio pra cá. Quando eu vim, é como
eu falei, aqui não tinha artesanato, nóis foi fazer. Então, a língua é uma só,
243
ABREU, Syvio Fróes. Op. cit., p. 577.
244
Entrevista concedida em Vanuíre, em 18/10/2008
102
não fala outra coisa. Fala assim, o mesmo grupo, uma coisa só. Que na
verdade não era Krenak. Krenak era um nome que tava faltando em
uma...foi pondo nome e faltava uma pra ter nome, né? Então, tinha uma
índia barrigudona, tava pra ganhar neném, ai tava caçando nome pra botar
no outro grupo, caçando nome. Ai, aquela índia ficou de cocorado, que
ganhava neném de cocorado. Ai rapidinho ela tava ganhando neném,
neném. Ia cair e bater com a cabeça no chão, na terra, ai o índio gritou: kruk
kren no nak, kruk kren no nak, neném vai bater a cabeça no chão. Ai ele
ficou, kruk kren no nak, quer dizer, kren a cabeça, né? Nak a terra, kren-
nak. Ai o branco já falou, Krenak, índio Krenak. Nóis é kren nak, kren no
nak. Cabeça na terra. Ai ficou o nome do outro grupo que faltava, que dizer,
aquela índia ganhando neném foi um grupo que surgiu o nome do grupo.
Kren no Nak, Nakre-hé, quer dizer, terra boa.245
O surgimento do nome Krenak, segundo ele, nasceu da mesma necessidade que fez
surgir Butkrak, Naknenuk, Kuparak, Minãjirum. È curioso que o Sr. João não faça nenhuma
referência ao líder Krenak, ao falar da origem do nome, quando toda a bibliografia sobre o
grupo afirma que os Krenak assim foram chamados por serem liderados por um índio do
mesmo nome. No livro didático produzido por índios Krenak que vivem em Minas, lemos
sobre a origem do nome:
Krenak é o nome tradicional que usamos, antes de cantar.
Significa cabeça na terra. Colocamos a cabeça sobre a terra por um minuto,
em seguida, dançamos.
Há muitos anos atrás, quando eu não existia, os mais velhos contaram uma
história para minha mãe, e minha mãe me contou.
Havia um casal de índios passando por um caminho, de repente, a índia
passou mal, para dar a luz uma criança. O índio colocou a índia sobre o
barranco deitada e saiu correndo desesperado, pedindo ajuda aos "KRAI".
Ele não sabia falar português.
Nesta época, havia uma porção de homens trabalhando na companhia,
construindo a estrada de ferro de Vitória a Minas, eles vieram correndo e
começaram a fazer o parto. De repente a criança sai e bate a cabeça na terra.
O índio desesperado grita:
— AGRANA TONDONE KREN NO NAK! (O bebê bateu a cabeça na
terra!)
O homem mandou o índio repetir o que ele tinha falado, o índio repete:
— AGRANA TONDONE KREN NO NAK! (O bebê bateu a cabeça na
terra!)
O homem juntou as duas palavras e disse:
— Esta estação terá o nome Krenak.
E ficou para sempre o nome Krenak. Esta história foi contada para os mais
velhos, dos mais velhos contada para os mais novos, dos mais novos
contada para os mais jovens.
245
Idem.
103
Assim ela é passada, por cada geração. Esta história nunca morrerá.246
Também nessa história não se estabelece uma relação entre o nome Krenak e o líder
do povo. Em comum, há o fato de o não índio ter ouvido kren no nak e nomeado, na primeira
história os índios, e na segunda a estação de trem, lembrando que, no trecho da ferrovia que
corta a aldeia, há uma estação de nome Krenak. É importante frisar que o nome foi dado pelos
brancos, sendo Borum a autodenominação – uma identidade comum a todos os índios Krenak,
ainda hoje, descendentes ou não do “capitão”. Ser Borum está além das divisões já
apresentadas, divisões que, segundo o Sr. João foram criadas por sabedoria do índio.
Perguntamos também para Maria Helena Cecílio Damaceno sobre a divisão entre os
subgrupos:
É da divisão que quer saber? A divisão, eles são todos é Krenak. No
começo do nosso povo, nosso povo não era conhecido como Krenak, nosso
povo era conhecido como Botocudo. Ai quando chegava os fazendeiros pra
tomar terra, naquela época já tinha matado vários índios, né? Mataram
muitos índios, então se tornou pouquinhas pessoas. Ai, falou assim: “Pra
não tomar todas as terras que nós tem, tentaram matar nós, nós vai dividir
em grupo”. Só que ai eles foram pra, pra bem assim distanciado um do
outro pra segurar aquela terra, no meio vamos dividir em grupo. Você fica
aqui, outro fica ali. Era bem pouquinho, já era bem pouquinho, tinha outro
pouquinho ali. Ai os fazendeiros chegaram para tomar as terras deles, ai eles
quando os fazendeiros chegarem pra tomar a terra pergunta: “Tem muito
índio ai? Vocês fala tem bastante índio. Você é que grupo? Sou Nakreré. E
você? Sou Minagirum. E você? Butkrak. E você? Krenak.” Então, cada
parte montou, mas todos Botocudos, né? Ai foi que, foi que, foi assim. Foi
que, ai que quando eles chegaram sai um índio pra fora: “Tem muito índio
ai? Tem. Que tribo que você é?”, eles falavam.247
Se a categoria Krenak, nas terras originárias, passa pela genealogia, dando espaço para
diferenciações entre os descendentes ou não do líder Krenak, em Vanuíre, a mesma categoria
é assumida de forma coesa, fechada. Todos os nascidos em Minas, seus filhos, netos, são
todos Krenak. Ou, pelo menos, todos podem manifestar essa identidade.248 O contraste, nesse
caso, é vivido em relação à outra identidade – a Kaingang.
Segundo, Manuela Carneiro da Cunha:
A cultura original de um grupo étnico na diáspora ou em situações de
246
Conne Panda- ríthioc Krenak: coisa tudo na língua Krenak. Belo Horizonte/ Brasília: SEE/MG/ MEC-
Unesco. 1997, p.13.
247
Entrevista concedida dia 18/10/2008
248
Desenvolverei essa idéia no desenrolar do presente capítulo.
104
A diáspora, nesse caso, não só foi capaz de reafirmar a identidade em contraste com a
Kaingang, mas possibilitou a manutenção de traços diacríticos que os favorecessem. No lugar
da genealogia, foi valorizada a língua, o panteão religioso, a dança; traços bastante similares
entre todos os subgrupos Borum. Como já dissemos, a origem é um grande referencial, as
viagens são constantes e, mesmo aqueles que nunca estiveram em Minas, falam do Watu, do
Rio Eme, dos Sete Salões, comprovando o seu pertencimento.
Sabemos que, inicialmente, a manifestação da identidade Krenak em Vanuíre gerava
conflitos. Estavam em uma terra que não a sua de origem e foram vistos pelos Kaingang como
“intrusos”, os de “fora”. O casamento fora evitado, estereótipos depreciativos foram criados,
dificultando a união. Além disso, o medo de que os Krenak retornassem às suas terras
“originárias”, levando a esposa Kaingang, fez com que os pais fossem contrários aos enlaces.
Ouvimos de uma Kaingang, casada com Krenak, que os pais não concordavam com o
casamento; diziam que quando viam os filhos namorando um não índio sabiam que eles iriam
embora, mas era mais difícil ainda ver os filhos casando com índio e, mesmo assim, morando
fora da aldeia. Mas, os matrimônios aconteceram, o que fez amenizar as diferenças e dar
início a uma geração denominada de “misturados”, tendo uma grande parte dos moradores de
Vanuíre nascido desse tipo de união.
A união interétnica é vista hoje como ideal, não importa se descendem de grupos
diferentes, “se tem sangue de índio é tudo índio”. Isso assegura o direito à terra e mantém os
não índios fora da aldeia. Em razão dessa preocupação, casamentos entre índios e não índios
obriga o casal a viver fora do Posto Indígena. Há alguns anos, tal restrição afetava apenas as
mulheres. Hoje, qualquer casamento nessas condições, resulta na saída do índio, independente
do sexo. A razão nos é explicada por uma índia casada com não índio que permaneceu na
aldeia:
249
CUNHA, Manuela Carneiro da (org). Etnicidade: da cultura residual mas irredutível. In: Antropologia do Brasil:
mito, história, etnicidade. São Paulo: Ed, Brasiliense, 1986, p. 99.
105
Eles sempre falavam que não podia, que branco não podia ficar na aldeia.
Porque eles têm medo, assim porque eles fala que branco é um pouco
ambicioso, vai querer muita roça, a mais, né? Mais do que eles têm direito.
Mais assim, eu ficava chateada com isso, mais agora não.250
N: Eles, é... eles falava assim, aqui o chefe da FUNAI sempre deu conselho
pros índios não mistura senão ia acabar, ia acabando a raça, né? O interesse
deles é índio com índio. Hoje eu sei como é importante, tem que se casá
mesmo porque tá acabando. Hoje meus filhos tudo são casados com índio,
eles tem filhos...eles são legítimo mesmo. Eu tenho uma filha, meus filhos
eles se interessaram pra parente, né? Primo.
P: Não há problema serem primos?
N: Não, eles antigamente falava que saia defeituoso, mas graças a Deus, não
saiu não. Eles fala que não pode misturar parente com parente que nasce
defeituoso, mas graças a Deus tá tudo perfeito.251
Essa índia se casou com um não índio, tendo que morar fora da aldeia. Mas foi feito
um acordo de que o casal ficaria enquanto seu pai, que já estava bastante doente, estivesse
vivo. Fora da aldeia ela foi morar em outro Estado, vivendo com dificuldades:
Um lugar onde pra tudo precisa ter dinheiro. É era duro, hein (risadas).
Tudo que coisa é comprado. Aqui não, a gente planta, algum vizinho dá, e
lá não. Não dá nada de graça, a vida é mais difícil.252
250
Entrevista concedida pela Senhora Norma Barbosa. 20/07/08
251
Ibidem.
252
Ib.
106
De uma forma geral, os índios sabem das dificuldades que encontram fora da aldeia,
vista como um lugar seguro e, para manter o controle sobre ela, é ideal que se casem entre si.
O sistema de parentesco de ambas as etnias foi se adaptando às condições reais de vida. Sobre
o sistema de parentesco dos índios Krenak, lemos:
As remoções, o convívio com outras etnias, fez com que os modelos de união
praticados pelos “parentes” mais antigos fossem sendo modificadas. Tais mudanças, vêm de
longa data, já que, em vários momentos de sua trajetória, os Krenak foram obrigados a dividir
o mesmo espaço com outras etnias. Foram as condições de vida que determinaram as alianças
possíveis para a continuidade do grupo, como é o caso da situação vivida na Fazenda Guarani,
onde “casamentos interétnicos se efetivaram por três motivos: a ausência de homens em
idade núbil entre os Krenak, a proibição de casamentos entre primos de 1º grau e a
necessidade de contrair aliança com os Pataxó que, posteriormente, foram removidos para
este local”. 254
De acordo com Mellati, entre os antigos Kaingang as relações entre os primos não
eram aceitas. Mas a restrição recaia sobre os primos paralelos patrilaterais, sendo estes os
“primos irmãos”, enquanto que, entre os primos paralelos matrilaterais, o casamento era
permitido. Em 1971, quando ele visitou os Kaingang em Vanuíre os casamentos entre primos
paralelos patrilaterais já ocorriam. Naquela ocasião, a explicação dada para a antiga proibição
253
GUIMARÃES, Núbia Maria C. Op.cit., p. 51.
254
Ibidem, p. 58.
107
foi a mesma que obtivemos durante a nossa pesquisa: os filhos nasciam “defeituosos.” Quanto
ao casamento com outras etnias, em 1971, não havia “suficientes parceiros matrimônios
Kaingang nos Postos, mas, apesar disso, os pais não gostavam de casamentos interétnicos.
Contudo, tais casamentos ocorrem, mas sofrem sanções do grupo, dependendo do Posto. Em
Vanuíre nenhum outro grupo indígena é considerado ideal para os Kaingang.”255
Das uniões entre Krenak e Kaingang, nasceram os “misturados”. Esse é um discurso
frequente em Vanuíre, que coloca os Krenak em uma posição confortável. Ainda que aquelas
não sejam as suas terras de origem, acabaram se misturando aos Kaingang. Quem não nasceu
dessa união, tem filhos que nasceram, ou seja, estabeleceram com os Kaingang laços
consanguíneos. Essa mistura também é dada pelos Krenak, como resposta ao fato de terem
permanecido na aldeia, de não terem feito o retorno, mesmo depois de reaverem as terras do
P.I Krenak. Os filhos, os companheiros ou companheiras nasceram em Vanuíre, não
desejando viver fora dali. Os Krenak em geral, manifestam a vontade do retorno, mas os laços
familiares os mantêm, como vemos abaixo:
Eu tenho vontade de morar lá, mas a criançada não quer ir porque não tem
serviço. Não tem serviço, que eles gosta de trabalhar. Lá tem é peixe.
Tenho vontade de ir embora pra lá, mas não vai porque não tem
256
serviço.
Os filhos de Dona Gracina são Krenak “puro” como dizem, filho de pai e mãe Krenak.
Mas vivem em Vanuíre, alguns se casaram com Kaingang tendo filhos “misturados.” Além da
falta de trabalho, durante nossa conversa, Dona Gracina enumerou outras dificuldades: a falta
de moradia já que os fazendeiros ao se retirarem da área destruíram as casas , e o “costume”
dos filhos e netos, em Vanuíre.
A identidade em Vanuíre é fluída. Aos “misturados” é possível manifestar uma ou
outra identidade conforme as circunstâncias. Os Kaingang são os donos das terras onde estão,
enquanto Krenak têm a possibilidade de mudarem para Minas Gerais, sendo também donos
daquelas terras. Sobre uma conversa com um Kaingang de Vanuíre casado com uma Krenak,
Guimarães escreve:
255
MELATTI, Delvair M. Aspectos da organização Social dos Kaingang paulistas. FUNAI, 1976, p. 47.
256
Entrevista concedida pela senhora Gracina Umbelina. 20/10/08
108
Essa identidade, manifestada de acordo com a terra em que estão, é ainda motivo de
discussão, mesmo entre as duas índias Krenak mais antigas de Vanuíre. Em uma conversa
informal que tive com Dona Jovelina,258 a matriarca dos Damaceno, ela me contou que Dona
Gracina acha que crianças nascidas em Vanuíre são Kaingang, assim como eles são Krenak
por que vieram de Minas Gerais. Perguntei a ela o que achava, riu e me disse que não sabia.
As identidades hoje assumidas estão longe de ser uma questão apenas do que esta ou
aquela identidade possibilita. Conhecemos “misturados” que assumiram a identidade Krenak,
mesmo vivendo em Vanuíre, sendo taxativos ao afirmar apenas uma delas. Nesses casos, as
relações familiares determinaram a escolha, optaram por ser da etnia daqueles que
efetivamente os criaram, enquanto outros assumem a dupla identidade: são Krenak e são
Kaingang ao mesmo tempo, embora assumam identificar-se mais com uma identidade do que
com a outra, como é o caso de Norma:
N: Eu falo assim, minha mãe é Krenak, meu pai é Kaingang. Agora eu não
sei.
Eu tenho mais participação com os Krenak, porque nós tem nossa cultura,
eu faço a cultura dos Krenak, meus filhos também. Eu entendo mais o
idioma da minha mãe. Então, é mais assim Krenak. Eu me dou muito bem
com as minhas irmãs que é mais Krenak, é Krenak, né?
P: O seu pai contava histórias daqui?
N: Não, meu pai era mais fechadão. Meu pai era assim, igual eu falo assim,
apesar de eu morar muito tempo aqui eu nem sei história, eles fala dessa
índia Vanuíre, eu num sei a história. Se você for perguntar a história de
Vanuíre eu não sei contar porque eu nunca ouvi falar.
P: E dos Krenak você conhece mais.
257
GUIMARÃES, Núbia Maria C. Op.cit., p. 69.
258
De acordo com o documento de registro a senhora Jovelina tem 81 anos, mas ela diz que já era grande foi
registrada.
109
N: È, eu sou mais participante dos Krenak, que minha mãe conta, conta
dos rios.259
Norma diz que as irmãs são “mais Krenak”, pois, diferente delas ela nasceu em
Vanuíre, sendo filha de um Kaingang. A característica que Norma atribuiu ao pai foi a mesma
utilizada por outros filhos de Kaingang, para definir os seus progenitores, justificando, dessa
maneira, o pouco conhecimento que têm sobre a cultura Kaingang. A diferença entre
Kaingang e Krenak, sendo o último mais atuante, mais falante, mais inquieto, tem levado a
uma geração de índios que se definem Krenak, mesmo filhos de pai ou mãe Kaingang, ou, em
casos extremos, de filhos de pai e mãe Kaingang.
Logo que chegamos na área, ainda em 2005, a primeira resposta que obtivemos em
relação à opção étnica, foi a de que era uma questão de escolha, que a criança optava por
aquela com que mais se identificava, simples assim. Hoje, sabemos que a escolha envolve
questões muito mais complexas, mas, assim como me disseram ainda na primeira visita, as
crianças fazem suas escolhas que nem sempre agradam os pais. Um dos filhos da Kaingang
Luzia Conechú, também casada com um Kaingang, se define Krenak.
Em um dos ensaios da dança Krenak que presenciei, esse jovem era um dos mais
disciplinados. A mãe me disse que ele não se interessa pela cultura Kaingang, mas ela gostaria
de vê-lo aprender a falar o idioma de seu povo. Luzia reafirma a identidade Kaingang do filho
dizendo ser ele descendente do valente chefe dos Kaingang, Iacri. A irmã de Luzia, casada
com o Krenak Mário, nos disse que os filhos também se definem como Krenak. Os filhos se
interessam bastante pelo idioma Krenak, sendo o pai um professor deste idioma. Ela sente não
ter aprendido o idioma do pai, não podendo auxiliar os filhos, quando os mesmos trazem
atividades escolares que tenham como conteúdo a língua Kaingang: “Naquela época não
perguntava agora a gente quer saber.”
O fortalecimento da cultura Krenak, (tendo principais líderes João Batista, Maria
Helena e Mario Tepó)260 tem despertado os Kaingang quanto à importância de manter práticas
culturais, mas, ainda se mostram pouco engajados neste propósito.261 São comuns
comentários do gênero “Os Kaingang vão acabar”. Ouvi de uma senhora “misturada” que se
259
Norma Barbosa. 20/07/2008
260
Os índios reconhecem essa liderança, sempre que falam da “cultura” citam esses nomes.
261
Reitero que quando falamos de cultura, usamos do significado dado pelos próprios índios. Cultura é a dança,
os cânticos, o artesanato, o idioma. São todos traços diacríticos que os distingui dos demais.
110
define como Kaingang, o seguinte comentário: “Vou levar meu conhecimento comigo, meu
idioma e meus cânticos eu levo comigo. Não dou dez anos para os Kaingang acabar.”262
Sobre a manifestação das identidades Krenak e Kaingang na aldeia Vanuíre, Cruz tece
o seguinte comentário:
E: Elas falam que são Krenak. Ai teve um moço que veio fazer um trabalho
aqui e perguntou: “ Vocês são Krenak ou Kaingang? Ai meu esposo falou:
Eu sou Kaingang. E a sua esposa é Krenak. Mas o que que eu coloco?
Coloca os dois porque nóis, minhas filhas são parte dos dois. Então são
Krenak e Kaingang, não tem como você dividir ela no meio pra falar que só
elas são Krenak ou Kaingang. Então tem que colocar os dois.” Ai ficou
assim, Krenak e Kaingang.
P: Mas elas escolhem?
E: Elas escolhem, elas falam que são Krenak, mesmo o pai delas ser
Kaingang, elas falam que são Krenak.
P: Por que você acha que isso acontece?
E: Eu acho assim, como são jovens, agora é muito assim, rivalidade entre
eles, porque eles fala assim: “Eu não gosto do Kaingang.” Porque eles
acham a dança deles mais feia, o jeito de falar mais esquisito. Então, eles já
preferem o Krenak, mais simples, mais sei lá, prefere mais o Krenak que o
Kaingang.
P: Então entre as crianças tem essa rivalidade?
E: Tem, tem essa, eles já preferem mais, porque o nosso meio tem o
Kaingang, tinha um Kaingang que dança no nosso meio, era um Kaingang
puro, ele não vai dançar com os Kaingang, junto com os Krenak, a mãe não
gosta.
Como vimos, não agrada ao pai Kaingang que as filhas manifestem uma identidade
única. As crianças, diferentes dos adultos, não veem os benefícios da categoria “misturados”,
mas são instruídas pelos pais, como nos pareceu ser o caso deste Krenak casado com uma
índia Kaingang:
Teve um dia que a velha Z265, ali, né? Ah, eu não vou mentir, ela não gosta
do Krenak. A minha menina tava aqui, ai ela perguntou assim, o que que era
ela: “Você é o que Krenak ou Kaingang?” Ela falou sou os dois. Matou
numa paulada só. Krenak e Kaingang. Divide Krenak e Kaingang.
Durante nossa conversa a menina estava presente, perguntei a ela sobre a dança, tendo
o pai me respondido antes:
264
A jovem é filha de pai Kaingang e mãe Krenak, mas se define Krenak.
265
Identificação fictícia.
112
Ela dança. Ela dança Krenak, mais os Krenak. Porque o grupo dos
Kaingang quase não tem, tá fraco. Vai mais na Lia dançar lá. Elas gosta de
dança o Krenak. Acha que são mais bonito, né? (Risadas).
Vários são os laços de matrimônio que unem Krenak e Kaingang, na área indígena
Vanuíre, mas tais casamentos antes eram evitados;266 a diferença étnica imperava, ainda que
partilhassem o mesmo espaço geográfico. Hoje, existe uma outra identidade que foi capaz de
estabelecer novas redes de convivência – a identidade religiosa. Krenak e Kaingang,
convertidos, assumem a identidade de “irmãos,” sobressaindo-se a identidade religiosa, em
relação à étnica. No entanto, de acordo com Leonardo Cruz,267 a identidade religiosa também
foi causa de uma divisão, entre os índios de mesma pertença étnica. Os índios se definem
como Kaingang e “crentes”, abrindo, dessa maneira, um diferencial entre Kaingang e
Kaingang “crente”.
Os Kaingang católicos reclamavam que os Kaingang “crentes” não se preocupam com
a identidade Kaingang, cujo descontentamento, por vezes, está relacionado ao abandono de
práticas que os Kaingang católicos entendem como parte de sua cultura. Tivemos a
oportunidade, também, de observar a aproximação desses convertidos ao grupo Krenak. A
maioria dos Kaingang convertidos tem alguma ligação de parentesco com os Krenak, além do
fato de índios Krenak, envolvidos com a dança, e com as apresentações culturais,
desempenharem papéis centrais também nas atividades religiosas, de maneira, que os
Kaingang convertidos acabaram se aproximando do idioma Krenak, trazendo os filhos à
dança, ou seja, compartilhando desse universo.
O trabalho da antropóloga Delvair Mellati268, realizado em 1970, período em que as
famílias Krenak, hoje residentes em Vanuíre, já moravam naquele espaço, nos informa quanto
às relações interétnicas e as influências religiosas existentes na área. Naquele momento, os
Kaingang se diziam católicos, indo mensalmente à missa. Não havia “crentes” na área, mas
existiam pessoas que assistiam a cultos protestantes, assim como a reuniões espíritas,
chamadas de “macumba”.269 Mesmo frequentando diferentes crenças religiosas, diziam-se
católicos, chegando a mostrar-se ofendidos quanto questionados se eram “crentes”. As missas
eram assistidas no Bairro de Ponte Alta, a uns vinte minutos da sede do posto. Lá era
266
Falamos das sanções sofridas nos casamentos interétnicos no capítulo 2, lembrando que, embora tenham sido
evitados, não foram proibidos.
267
CRUZ, Leonardo de Oliveira. Op. cit.
268
MELATTI, Delvair M. Op.cit.
269
A autora não nos informa onde eles assistiam aos cultos protestantes e as reuniões espíritas.
115
celebrada uma missa, no segundo domingo de cada mês, reunindo índios e não índios, embora
a divisão espacial entre eles tenha sido notada pela pesquisadora. O contato entre os padres e
os índios se restringia à duração da missa, pois, terminada a celebração, os padres seguiam,
rapidamente, para outra paróquia. Aproximadamente uns sete ou oito anos antes da visita da
antropóloga, os padres haviam visitado a aldeia, com o intuito de atrair os índios. Além de
acompanharem as missas, os índios também realizavam seus casamentos e batizados na Igreja
Católica. Os certificados exigidos pela Igreja, antes das cerimônias, obrigava-os a
frequentarem-na por um tempo maior, já que era exigida a participação num “cursinho” com
a duração de três meses.270
Em Icatu, uma índia disse à pesquisadora que as “civilizadas” pediam a elas, índias,
que batizassem as crianças para que não ficassem pagãs. Nesse lugar, as índias não souberam
definir o que significava ser pagão; já “em Vanuíre disseram: o pagão não é batizado e
quando morre vira lobisomem, anda toda a noite, incomodando as pessoas que encontra e
mexe nas casas. É o Véincuprin e este não vai para o céu. Batizando a criança, o Véincuprin
não aparece para ninguém, fica no céu.”271 Véincuprin eram espíritos que habitavam outra
esfera, e a alma do morto visitaria a terra com as mesmas características físicas da pessoa já
falecida. Sobre ele escreveu Nimuendaju:
270
Essa é uma prática da Igreja Católica, antes de um batizado ou casamento os envolvidos freqüentam esses
“cursinhos” para compreenderem a importância da celebração.
271
MELATTI, Delvair M. Op.cit., p. 138.
272
NIMUENDAJU apud CRUZ, Leonardo de Oliveira. Op.cit., p.47.
116
Melatti afirma que as antigas crenças dos Kaingang estavam mais presentes que o
catolicismo; a crença no sobrenatural era uma das poucas esferas que haviam sofrido
pequenas alterações. Mais interessante, porém, do que perceber o quanto o conjunto de
crenças sobreviveu a essa nova inserção, é perceber como os índios articulam novas práticas e
concepções partindo de uma ótica própria. No caso citado, os índios fizeram uso de um ritual
simbólico cristão. O batismo ofereceu-lhes a solução para a entrada indesejada dos
Véincuprin no mundo dos vivos, pois, uma vez batizado, o Véincuprin não voltaria à Terra. O
catolicismo forneceu a saída para um problema anterior à sua chegada.
Os índios também frequentavam as festas de Santo, quermesse e procissão. Segundo a
autora, mais do que a busca espiritual, o que os atraía era a oportunidade de divertimento e
sociabilidade. Essas festas de Santo também ocorriam na própria aldeia “algumas famílias de
mestiços Krenak, Pankararú, Aticum e Fulniô fazem fogueira no dia de São João, Santo
Antonio e São Pedro, porque são “santos de seus nomes”.273 O terço era outra atividade
religiosa vivida por eles, tendo sido primeiro rezado por uma “civilizada” e por um índio
Aticum, depois passou a ser puxado pela mestiça Maura e a Kaingang Jacira. Os não indios
também compareciam e, terminada a reza, todos confraternizavam, com pão e café, servidos
pela dona da casa em que fora rezado o terço.
A autora não nos informa quanto ao grau de participação dos índios Kaingang nas
atividades religiosas em relação às outras etnias, mas a leitura atenta do corpo do texto nos
permite algumas considerações. Primeiro, a autora afirma existir uma pequena parcela entre
os Kaingang mais resistentes em relação à Igreja, os quais, por vergonha ou por não saberem
rezar, não freqüentavam as missas. Em relação à reza do terço, lemos: “Quando os regionais
“tiram” o terço, de dia ou de noite, certos Kaingang comparecem à reza.”274 Os terços
ocorriam com uma certa frequência na aldeia, mas com o dito acima, parece que os Kaingang,
em sua maioria, não aderiam a essas reuniões, enquanto alguns deles as frequentavam apenas
quando havia a presença de não índios.
No calendário cristão, são vários os feriados religiosos, o costume de “guardar” dias
santos ficou registrado pelos chefes de posto, nos chamados diários, em um período anterior
ao observado pela pesquisadora. Na leitura do diário referente ao ano de 1952, observamos
273
MELATTI, Delvair M. Op.cit., p.140.
274
Ibidem, p. 141.
117
A religião católica foi incentivada por funcionários do SPI e suas esposas. Quando
Mellati esteve na área (1971), era a esposa do chefe de posto que ajudava os índios a
decorarem as rezas. Mas, na leitura dos diários, parece-nos que os índios se apropriaram de
um costume católico, que é o de guardar dias santos, expandindo-o para além das datas já
estipuladas.
É um hábito cristão rezar pelos mortos. Desde o século V, a Igreja Católica dedica um
dia do ano em especial para que esse ritual aconteça. Encontramos também nos diários, a sua
reprodução:
275
Diário de Posto. Vanuíre. 24/07/ 1944.
276
Diários de Posto. Vanuíre. 3/05/ 1944.
118
muita admiração da população visinha, que declarou ser este o primeiro ano
em que se fez visita ao referido cemitério, onde, além de inúmeras flores
naturais, foram também depositadas diversas corôas, bem como cruzes de
madeira, tendo tomado parte no ato a auxiliar de ensino deste P.I e a quase
totalidade dos índios, que reunidos nêste posto ás 12 horas, partiram logo
depois, formando um conjunto bem numeroso. Com essa simples, mas
sincera demonstração cívico-religiosa, os pacíficos Caingangs deram prova
evidente de que a cenda dos civilizados também é o seu caminho.”277
277
Diários de Posto. Vanuíre. 2/11/ 1943.
278
Diários de Posto. Vanuíre. 2/11/ 1944.
279
Incluindo nesta categoria “os misturados”, filhos de Krenak com Kaingang.
119
catolicismo pelos índios Kaingang não é uma realidade observada apenas na aldeia Vanuíre.
A pesquisadora, Juracilda Veiga280, nos mostra que Kaingang localizados em Estados
diferentes “afirmam que sua primeira religião foi a católica. Isso se explica pelo fato de os
padres nunca terem considerado religião as relações indígenas com o sagrado”. Mas é um
catolicismo Kaingang, uma adaptação dos ritos católicos partindo de uma ótica própria. Por
isso, a permanência assume o papel de mantenedor da “tradição”, diferente dos convertidos,
os índios católicos continuam a realizar o batismo dos filhos, dar-lhes nomes indígenas,
realizar festas, entre outros costumes.
A dualidade existente na sociedade Kaingang foi apontada por nomes como
Nimuendaju, Baldus, Horta Barbosa. E, de acordo com Sergio Baptista da Silva, essa divisão
não diz respeito apenas às metades exogâmicas e patrilineares; o Kaingang pensa todo o
universo de maneira dual. “Todos os seres, objetos e fenômeno naturais são divididos em duas
categorias cosmológicas, uma ligada ao gêmeo ancestral Kamé, e a outra vinculada ao gêmeo
ancestral Kainru.281 De acordo com Veiga, essa oposição que fazem os Kaingang entre
“católicos” e “crentes” tem suas raízes na sua própria cosmologia, correspondendo às
metades, a forma dual com que enxergam o universo. Também para ela, a ideia de que
qualquer indivíduo pode entrar em contato com o sagrado é estranha aos Kaingang, há para
eles a necessidade de alguém que faça essa mediação. A pregação das Igrejas quanto à
salvação da alma também não os agrada, eles não almejam ser espíritos; a ressurreição tem
que ser da alma, mas também do corpo.
O texto trabalha com a possibilidade de que as diferenças religiosas adotadas sejam
uma necessidade da continuidade das antigas divisões, costume Kaingang de se opor a alguma
coisa. É evidente que não esperamos transpor as considerações feitas aqui à realidade
Kaingang de Vanuíre; a própria autora toma o cuidado de alertar que cada comunidade está
inserida em contextos diferentes, influindo na sua cosmovisão e, consequentemente, nas suas
escolhas, além do fato de as relações estudadas por ela estarem focadas na dicotomia entre
Kaingang “crentes e “católicos” e não em uma área em que, além da divisão religiosa, existe a
étnica. Mas fica uma questão que talvez não possa ser por nós respondida: Os Kaingang
280
VEIGA, Juracilda. As Religiões Cristãs Entre os Kaingang: Mudança e Permanência. IN: Transformando os
deuses- Igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas no Brasil. Campinas:
Editora da Unicamp, vol II, 2004, p. 176.
281
SILVA, Sergio Baptista de. Dualismo e Cosmologia Kaingang: o Xamã e do domínio da Floresta. IN:
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 8, n. 18, p. 189-209, dezembro de 2002. p.190.
120
católicos se opõem ao simples ato de conversão? Aos Kaingang “crentes”? Ou aos Krenak
“crentes”?
Sabemos que a construção do templo na aldeia ocasionou rixas, discussões. Os Krenak
são vistos hoje como os grandes responsáveis pela construção da igreja na área indígena e
embora os maiores opositores sejam índios Kaingang, esta não é apenas uma questão étnica.
Alguns Kaingang se sentiram “invadidos” vendo os Krenak estarem à frente de decisões já
“que não são dali,” se opondo neste caso aos Krenak “crentes.” Mas também vimos Kaingang
se referirem aos seus irmãos consangüíneo como “Um crente lá”. Sobre esse conflito,
ouvimos:
282
Entrevista de uma jovem K+Kr. 10/08.
121
Essa maior resistência entre os Kaingang é notada pelos índios Krenak. A depoente me
falava sobre o pequeno número de Kaingang convertidos quando lhe perguntei:
P:O que você acha? Por que os Krenak estavam mais abertos?
E: Porque assim, nós, que nem eu aprendi com meu tio. O tio Mário sempre
contava para nós que ele falava, sempre nós, quando nós reunia na cabana
para fazer a cultura, ele falava assim pra nós: “Nós tem que ficar com o
pensamento firme em Deus.” E tudo que Deus mostrava em sonho, hoje nós
acredita que Deus que mostrava pra nós em sonho, e tudo acontecia, então
nós sempre crê, nós sempre teve aquela, o coração mais aberto para Deus,
porque nós sempre acreditava. E sempre a mãe, o João, e o tio Mário,
conversava com nós nesta parte. Que assim, hoje, e assim, acho que não é
tanto assim, por causa que a cabana já, não tem mais a cabana, a cabana tá
faltando construir ela, mas antes quando eu era mais pequena, eu tinha uns
onze, quatorze anos mais ou menos, era assim a reunião ali. Então, ele
falava de Deus, conversava as coisas de Deus com nós, falava dos sonhos.
Então isso nós fomos guardando, eu mesmo fui guardando dentro de mim,
porque eu acho que os Krenak, sei lá tem mais coração aberto, não é um
283
Idem.
284
VEIGA Juracilda,. Op. cit., p. 184.
122
povo que, tem povo que gruda naquela idolatria, então nós não, nós fomos
diferentes, nós tinha também, mas Deus foi tirando, Deus modelou nós de
uma forma diferente, porque o nosso povo é um povo sofrido, muito
sofrido. Então, nem sei como dizer, eu sei que Deus chamou mais os
Krenak, acho que os Krenak tem o coração mais aberto, mas os Kaingang
são um pouco difícil. Até para anunciar a palavra para eles é difícil, aceita
assim, assim aceita na boa, a gente ora na casa deles, no tempo assim que
Deus começou a chamar, ia orar na casa deles, mas só que assim, obedecer
a Deus era muito pouco, muito pouco. Pra você ver, mesmo casal de
Kaingang puro mesmo, só tem a irmão Cida, e o irmão Sinésio, que é o
Cutuí, né? Irmão Sinésio, irmã Cida, a Maria da Glória e a sua neta. È
muito pouco Kaingang, puro mesmo é pouco, eles são mais duros. Faz que
nem na palavra, diz que Móisés estendeu a coisa na rocha, vai ter que fazer
assim com o povo Kaingang, tem que estender a varinha ali para ver se sai
água, se jorra água, porque eles são muito duros285.
Pelo dito acima, cabe a nós pensarmos o que fez com que os Krenak estivessem
abertos a essa nova prática, para estabelecer possíveis pontes entre a cosmologia nativa e a
religião pentecostal, partindo da leitura que os mesmos fazem dos ensinamentos cristãos.
Buscamos, dessa maneira, interpretar a inserção da Igreja pela ótica dos índios convertidos,
abandonando o maniqueísmo encontrado em tantos trabalhos acadêmicos, que colocam os
índios como donos de um sistema religioso “tradicional” destruído pela religião universal
trazida pelo não índio.
Para a escrita deste capítulo, a metodologia utilizada foi a observação direta, assistindo
aos cultos e às reuniões em grupo, pudemos observar a disposição das pessoas nos cultos, a
sequência dos ritos, a postura corporal. Também foi importante a permanência em cultos da
Congregação Cristã do Brasil fora da aldeia, assim como a leitura de trabalhos acadêmicos
que se ocupam da conversão de outros grupos, indígenas e não indígenas. Dessa forma,
buscamos situar a conversão dentro de um contexto mais amplo, capaz de nos mostrar as teias
que ligam comunidades diferentes a essa crença, buscando também o inverso, ou seja, as
285
Mulher (Kr+K) Entrevista concedida dia 17/10/08. A depoente se refere a passagem bíblia escrita abaixo:
Êxodo, 17:6. Depois toda a congregação dos filhos de Israel partiu do deserto de Sim pelas suas jornadas,
segundo o mandamento do Senhor, e acamparam em Refidim; e não havia ali água para o povo beber. Então
contendeu o povo com Moisés, e disseram: Dá-nos água para beber. E Moisés lhes disse: Por que contendeis
comigo? por que tentais ao Senhor? Tendo pois ali o povo sede d’água, o povo murmurou contra Moisés, e
disse: Por que nos fizeste subir do Egito, para nos matares de sede, a nós e aos nossos filhos, e ao nosso gado? E
clamou Moisés ao Senhor, dizendo: Que farei a este povo? daqui a pouco me apedrejarão. Então disse o Senhor
a Moises: Passa diante do povo, e toma contigo alguns dos anciãos de Israel; e toma na tua mão a tua vara, com
que feriste o rio;vai. Eis que eu estarei ali diante de ti sobre a rocha, em Horebe, e tu ferirás a rocha, e dela sairão
águas, e o povo beberá. E Moisés assim o fez, diante dos olhos dos anciãos de Israel.
123
adaptações desse mesmo credo na área indígena estudada, que abarca relações sociais,
situações econômicas e políticas próprias.
Também usamos como fonte de informação, publicações de cursos teológicos, escritos
por membros de Igrejas pentecostais, com exceção da própria Congregação Cristã do Brasil.
Uma vez que esta condena os meios de comunicação para a propagação do Evangelho, não
produzindo folhetos, cartazes ou livros. Aquilo que o convertido precisa saber encontra-se na
Bíblia, única fonte da verdade.
A Igreja Congregação Cristã no Brasil foi fundada em 1911, pelo italiano Luigi
Francesco, que vivia nos Estados Unidos até, segundo ele, receber a “santa revelação” de que
deveria partir para a América do Sul. Sua evangelização inicia-se no Estado do Paraná,
seguida de sua permanência em São Paulo, onde foi convidado para pregar entre os
presbiterianos. No entanto, suas ideias não foram aceitas por todos naquela comunidade
religiosa, ocasionando um cisma entre seus fiéis. Aqueles que seguiram Luigi Francesco
deram, então, o início à Congregação Cristã do Brasil.286
A Congregação Cristã do Brasil faz parte das Igrejas pentecostais, e sua denominação
se deve à crença nos dons dados pelo Espírito Santo. O Pentecostes é um evento bíblico, pelo
qual o Espírito Santo, descendo dos céus, deu aos apóstolos dons como a glossolalia, a
revelação e a profecia, para que pudessem expandir o conhecimento do Evangelho. Diferente
de Igrejas protestantes tradicionais, os pentecostais não veem o Pentecostes como um evento
histórico e único; para eles, o Pentecostes é revivido, os dons do Espírito Santo são dados na
conversão ou em outras ocasiões. 287
Os usos e costumes da Congregação Cristã se cristalizaram desde o início do século
XX; as mulheres sentam-se separadas dos homens, estes à direita e aquelas à esquerda na
nave do templo. Os homens usam ternos e mantêm os cabelos cortados. A elas é proibido
286
FELICIANO, Marcos. Introdução á doutrina Pentecostal. Instituto Teológico Carisma. Orlândia, São Paulo,
2005.
287
CAMARGO, Ivani Vasconcelos. Rituais de poder: um estudo comparativo dos rituais das igrejas
Pentecostais em São Paulo. Dissertação de Mestrado,Unicamp, 2000.
124
cortar os cabelos, usar saias curtas, blusas decotadas, calças compridas e adornos como
brincos e pulseiras. Durante o culto, devem usar um véu branco sobre a cabeça.
Os cooperadores288, como são chamados aqueles que celebram o culto, não recebem
qualquer pagamento pela atividade. Também não são preparados em institutos e faculdades
teológicas para o exercício da função, pois acreditam que a capacitação necessária é
propiciada pelo Espírito Santo. O dízimo não é obrigatório e as despesas são pagas com as
ofertas que, em dinheiro, são colocadas em envelopes e entregues ao porteiro na entrada do
templo, não havendo, no culto, um momento especial para o seu recolhimento.
Os encontros seguem a uma mesma liturgia, iniciando-se com cântico de hinos do
Hinário exclusivo da Congregação, acompanhados pelos músicos. Em seguida, o cooperador
lê e explica um trecho bíblico, abre espaço para o testemunho dos fiéis, cantam mais um hino,
fazem orações, após é que o culto termina. O ósculo santo, ou seja, o beijo na face das pessoas
de mesmo sexo, fecha o ritual.
O batismo ocorre por imersão nas águas, em tanques construídos nas próprias igrejas.
Não há nada que determine o momento em que o membro estará pronto e, mesmo os que não
são frequentadores, estão convidados para o batismo, pois acreditam que o Espírito Santo
pode chamá-los a qualquer momento.
288
Várias vezes me corrigiram quando chamei de pastor o cooperador; insistentemente, diziam-me haver só um
pastor – Deus.
125
frequentavam a CCB de Arco-Íris, sendo o trator, muitas vezes, o único meio de transporte
que os levava até lá. As dificuldades no transporte, segundo eles, eram amenizadas pela mão
de Deus. Lembram que nos dias chuvosos nem as crianças reclamavam do frio e chuva, e só
chegando à aldeia é que notavam estar completamente molhados. Deus também os teria
livrado da morte durante esse trajeto, numa ocasião, em que retornavam da igreja e o trator
ficou sem uma das rodas, que eles viram a sair rolando na frente do carro. Assim, atribuem a
Deus o fato de nada haver acontecido aos que estavam no trator, pois, sem a sua divina
proteção poderiam ter morrido.
Os convertidos de Vanuíre seguem os mesmos costumes das demais, as irmãs usam
saias longas, cabelos compridos, enquanto os homens usam ternos nos cultos e, mesmo no dia
a dia, vestem-se sempre com calça social, ainda que usando chinelos de dedo. Nos cultos, as
mulheres mantêm-se separadas dos homens e todas, até mesmo as meninas, usam o véu
branco.
A liturgia segue a mesma ordem das encontradas em outras Igrejas: hino, leitura
bíblica, testemunho, hino e oração. Os hinos são acompanhados pela banda formada por
homens que ficam no centro do templo. O conhecimento musical das mulheres sofre restrição,
elas não podem tocar todos os instrumentos; elas recebem aulas de órgão, na Congregação
Cristã, localizada na cidade de Tupã, sendo a flauta o outro instrumento musical a que têm
acesso, informação que obtive ao demonstrar meu interesse pelo objeto.
A leitura e explicação do trecho bíblico são feitas pelo cooperador289 que rege o culto.
No começo, era um não índio morador da cidade de Arco-Íris, mas em 2008 os Anciães
“sentiram” que o cacique Gerson Cecílio Damaceno, que já era cooperador de jovens, deveria
tornar-se cooperador de adultos. Sobre essa escolha, ouvimos:
E: Depois que nós viemos de Minas, Deus levantou o irmão Gerson, agora o
irmão Gerson é cooperador de jovens e cooperador de adultos. Agora só tá
esperando Deus, Deus mostrar alguém, pra eles coloca, pra atender o culto
de jovens.
P: Como é o mostrar alguém?
E: Assim, mostrar é assim, Deus mostra os nomes, então aquele que Deus
faz sentir no coração, eles oram a Deus. Escolhe três, ai depois permanece
um, o que Deus fazer ele senti, ai eles anuncia pra Igreja.
P: Então, além do Gerson tinha outras pessoas ?
289
O cooperador não índio disse no culto que ninguém acreditava que iriam construir um templo naquele lugar
cheio de bugres, mas que Deus chegava a todos os lugares.
126
E: Não, acho que não. Só o irmão Gerson porque ele já era cooperador de
jovens, né? Porque o cooperador de jovens eles oram a Deus, se Deus
confirma, que ele tem que passar pra cooperador de adulto, ai sim. Mas
senão ele fica no cooperador de jovens mesmo, mas como eles oraram pelo
irmão Gerson e Deus fez sentir que era o irmão Gerson como cooperador de
adulto ai eles levantaram como cooperador de adulto, agora tá faltando
cooperador de jovens.
P: Então ele já frequentava a Igreja há muito tempo?
E: Já. Ele já era o cooperador de jovens, então agora já é cooperador oficial
do sábado à noite, ele só atendia o culto dia de terça porque o irmão não
podia vim e dia de sábado esse irmão vinha, então ele só era cooperador do
culto a noite, agora não, agora é o irmão Gerson.290
Situação semelhante foi vivida em Vanuíre. A conversão de um líder torna mais fácil a
adesão daqueles que o escolheram para representá-los, além do fato de ser necessária a
permissão do cacique para a entrada de não indios e possíveis projetos que possam apresentar.
Mas é importante frisar que, assim como em Laranjinha, havia outros laços que os ligavam a
Igrejas Evangélicas, uma vez que vários moradores se converteram, antes do cacique. Dona
Ondina, uma não índia, filha de mãe italiana e pai português, contou-nos ter sido a primeira a
se converter. Ela, que quando jovem morava em Penápolis, conheceu o índio Kaingang,
morador de Icatu e com ele acabou fugindo para Vanuíre, onde passou a viver desde então. A
índia Norma Barbosa, filha de mãe Krenak e pai Kaingang, também se converteu, no período
290
Mariana Cecílio Damaceno. Data da entrevista: 17/10/2008
291
BARROS, Valéria E.N. A conversão ao pentecostalismo entre os Guarani da Terra Indígena Laranjinha.
Revista: Antropologia em primeira mão, N.1. Santa Catarina: UFSC, 1995, p. 10.
127
Como vimos, cabe aos Anciães e Diáconos, orientados pelo Espírito Santo, escolher os
cooperadores, que vão estar à frente dos cultos, convivendo com a comunidade. O trecho
abaixo mostra-nos qualidades apreciadas no cooperador Gerson Cecílio Damaceno:
292
Contrariando a proibição da propagação do Evangelho através dos meios de comunicação, os convertidos tem
se utilizado da rede, várias são as páginas na Internet que disponibilizam hinos, Bíblias on-line, chat entre os
convertidos, entre outros. Estatuto disponível: www.amigosccb.com
293
Ele se refere ao cacique e cooperador Gerson Cecílio Damaceno.
294
www. Cristanobrasil.org
128
Deus” e “Aleluia Jesus”295 aclamados por toda a igreja. Os testemunhos nos cultos a que
estive presente296 foram dados pelos visitantes, um momento de comoção, quando a pessoa
compartilha com as outras a dor vivida: pobreza extrema, morte de parentes e o uso do álcool
foram os assuntos mais recorrentes. Todo testemunho termina, invariavelmente, com a
superação do testemunhante, o que foi possível graças a uma providência divida, uma
revelação. Aqueles que dão o testemunho parecem entrar em um estado de êxtase,
apresentando uma postura bastante alterada, diferente da normal. O cooperador lembra o
adiantado da hora, pedindo para que as pessoas encurtem seus relatos.
Os hinos são cantados duas vezes no culto, as pessoas os escolhem, “chamando” os
números dos hinos, e o cooperador lembra para que só o peçam quando sentirem que devem.
Nem todos trazem a Bíblia, enquanto o Hinário é visto na mão de todos os presentes, que
conhecem boa parte das letras dos hinos. A oração é o momento de grande efervescência, feita
de forma individual, momento em que se manifestam os dons do Espírito Santo, como a
glossolalia, ou seja, falar em diferentes línguas.297
Na saída do culto, a frente do templo torna-se também um espaço de sociabilidade:
Krenak, Kaingang, não indios, assumem agora uma mesma identidade religiosa. A conversa
fora da igreja não foge da religião, os testemunhos dados no culto são comentados por eles, e
novas “Graças” são contadas ali mesmo. Além de “irmãos” que vivem próximos à área, os
índios recebem com frequência a visita de “irmãos” de outras cidades, os quais, neste caso,
dormem na casa de algum convertido. Em uma de minhas visitas, dormi na mesma casa que
um grupo de “irmãos” que vinham das cidades de Piracicaba e de Limeira. Nessa ocasião, a
conversa iniciada na frente da igreja continuou, na casa da convertida. Durante horas,
contaram experiências próprias e relatos ouvidos, muitos foram recordados pelo seu lado
cômico, testemunhos que na opinião dos presentes não cabiam durante o culto, tornando-se
motivo de chacota.298
295
Essas são adorações pontuais que se repetem em todas as Congregações.
296
Quando assistimos aos cultos de sábado, Gerson ainda não era o cooperador de adultos.
297
Maiores informações ver: RICCI, Mauricio. Glossolalia e Organização do Sistema Simbólico Pentecostal.
Dissertação de Mestrado. Unesp: Araraquarara, 2006.
298
Uma das histórias contadas foi a de uma senhora que havia colado o pé de uma galinha com cola super
bonder. Após contar o testemunho na igreja é repreendida pelo cooperador, que avisa que aquele espaço não era
para histórias como aquela. A mulher então respondeu: Você pode não querer ouvir, mas que colou, colou.
129
299
CAMARGO, Ivani Vasconcelos. Op. cit.
300
Ronaldo de Almeida define essa atividade: “Missão é a atividade religiosa por excelência, responsável pela
inserção de um conjunto de crenças em outro universo cultural (unidade mínima a partir da qual a evangelização
é formulada).” ALMEIDA, Ronaldo de. Traduções do Fundamentalismo Evangélico. IN: Transformando os
deuses- Igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas no Brasil. Campinas:
Editora da Unicamp, 2004, p.33.
301
Ibidem, p. 42.
130
Não existe nenhuma atividade na CCB que faça o caminho inverso: o de apresentar
aos convertidos não índios a cultura indígena. O maior interesse dos índios de Vanuíre, mais
especificamente os Krenak é traduzir hinos para o seu idioma dos quais um exemplo, é a
tradução feita por Lidiane Cecílio Damaceno, professora da escola:
Hino 79 O`alma que choras
O alma que choras com grande amargor,
Se queres consolo, recorro ao Senhor
A Ele implorando, conforto acharás,
Graças e virtude e vida terás
Quando Lidiane Damaceno fez a tradução, o hino era cantado apenas entre eles, em
reuniões dentro da aldeia. Quando os visitantes ficaram sabendo da novidade, pediram que os
cantassem na igreja e, hoje, durante as visitas que realizam fora da aldeia sempre cantam o
hino na “linguagem” Krenak.
A conversão da maioria dos índios aconteceu há muitos anos. Durante esse tempo, o
que parece oscilar é a intensidade com que vivenciam a experiência religiosa. Ouvimos, em
julho de 2008, uma índia convertida dizer a uma visitante que a “igreja estava fraca”, que os
“irmãos” não se visitavam. Nos dias em que passamos na aldeia, percebemos que estavam
tentando fortificar esse elo. Além dos cultos dos sábado e dos domingo, este último dedicado
aos jovens, os irmãos se encontraram todas as noites na casa de um convertido. O número de
pessoas nessas reuniões foi pequeno, mas nos disseram já ter havido períodos em que pessoas
ficavam fora das casas por falta de espaço.
Nessas ocasiões, a liturgia ocorre com uma ordenação mais frouxa, com espaços para
interrupções, seja porque alguém adentrou a moradia, ou porque a água usada na preparação
do café está no fogo. Mário Cecílio Damaceno acompanha o canto do Hinário com seu violão,
no lugar dos testemunhos ocorrem as revelações, visões que tiveram durante o culto e que
“Deus mandou falar”. Nas reuniões, pudemos observar uma índia de pai Kaingang e mãe
Krenak, falando em outras línguas e fazendo revelações aos presentes, postura essa bem
diferente da adotada pela mesma jovem na igreja.
De maneira geral, a participação feminina na Congregação Cristã é menor que a dos
homens, pois não tocam todos os instrumentos musicais, não fazem parte do Ministério, ou
seja, não lhes é dado assumir posições de liderança dentro da Igreja.
Uma questão problematizada pelos chamados antropólogos pós-modernos, é a relação
estabelecida entre o pesquisador e o pesquisado. Esses estudiosos têm como um dos objetivos
a quebra da ideia de que o etnólogo detém o saber, de ser um indivíduo capaz de decifrar o
grupo a partir do contato com os pesquisados do grupo. A antropologia pós-moderna mostra
que a etnografia é resultado do diálogo entre "nativo" e etnólogo, com a observação
participante, possível graças a negociações estabelecidas entre eles. Na escrita das etnografias
304
Maria Helena Damaceno permitiu que fizéssemos uma cópia. 21/07/08
132
Mas o Deus do índio não é o Sol, a Lua? Como nós já ouvimos. Não, o
Deus do índio é quem fez o Sol e a Lua.” 305
Na mesma ocasião, um índio filho de pai e mãe Krenak “revelou a mim uma
mensagem divina”. Eu, que tinha passado por uma tristeza, ia ter uma alegria com a conclusão
da minha matéria em outra aldeia. A matéria à qual se referiu era a dissertação e a outra aldeia
o P. I Krenak, pois já havia possibilidade de eu fazer a viagem.
A participação nas reuniões me confere duas identidades que se confundem e se
misturam: a pesquisadora e uma possível convertida. A participação nas reuniões possibilitou
que eu dividisse com eles o cotidiano religioso, nos aproximando, através desses momentos.
Embora saibam que nem sempre concordam com os textos escritos pelos pesquisadores,
pareciam mais preocupados em me convencer dos ganhos da conversão. A vastidão do rio
Watu, o sol iluminando às montanhas; toda beleza apreciada em Minas Gerais, durante a
viagem eram pequenas, perto das que veria no céu, diziam a mim.
305
Tais palavras são dirigidas a mim para que eu compreenda que o Deus do índio é o mesmo “Deus vivo” dos
não índios. Na ocasião, estávamos em uma oração na casa do Krenak Edmar Adíson. 20/07/ 2008.
133
sem que houvesse uma briga. Hoje, os convertidos entendem que só a Igreja seria capaz de
reestruturar as relações, de pôr fim às ações violentas que o uso do álcool gerava. A mesma
opinião demonstra o depoente:
reuniões e cultos fora da aldeia, por que lá não podia, era proibido, por que
ia acabar com a cultura deles e eu não podia entrar na cultura deles. Então o
trabalho começou por ai, eu evangélico e eles começaram a me perseguir.
Quando foi um dia eu perguntei para o chefe de posto, que chamava
Rômulo, se eu não poderia fazer um culto na minha casa? E ele falou: João
não pode, você sabe que aqui na aldeia a gente não pode interferir na cultura
do índio, eles já não gostam do fato de você ter se tornado evangélico, e isso
vai lhe trazer problema. Mas eu sempre falando para ele e quando foi um
dia a gente conversando, o pai dele tinha vindo de Minas e veio visitar ele
na aldeia (o pai dele era um cerealista muito forte e tinha vários
funcionários) e surgiu a conversa que um motorista dele era evangélico e o
pai do Rômulo me falando que ele era o melhor motorista que ele tinha, o
Rômulo ouvindo aquilo se sensibilizou e, depois quando eu voltei a falar
com ele em fazer reunião da igreja em minha casa ele disse: João é
complicado, mas tudo bem. Nesse dia foi então a primeira abertura
evangélica dentro da área indígena. Vieram de Tupã aproximadamente 30
músicos, foi uma orquestra que ecoou naquela área! No outro dia foi um
falatório! Meu pai do céu! Só que eu continuava insistindo, porque eu
precisava fazer alguma coisa para melhorar o alcoolismo na aldeia e eu só
via solução através disso. Só que ai, através dos hinos (a congregação tem
uns hinos muito bonitos) e dos músicos que tocaram esses hinos, alguns
deles foram sensibilizados (isso depois de várias reuniões). Bom... Quando
foi um dia, eu estava saindo para a cidade num sábado à noite, para assistir
o culto em Tupã, quando chegam duas mulheres e me pediram para irem ao
culto também, uma era índia e outra branca, porém, sogra do cacique na
época. E elas foram, independentes de saberem o que iriam enfrentar no
retorno.E eu quando cheguei lá clamei: Senhor que responsabilidade,meu
pai do céu! Aí foram as duas para o tanque e se batizaram. Aí a coisa
começou a ferver! Por que era a sogra do cacique e uma kaiua. Eles
partiram para a administração de Bauru dizendo que eu estava acabando
com a cultura do índio. Ai eu comecei a ser perseguido pela chefia, sendo
que um dos meus perseguidores, que era um ditador terrível, o pai era
membro da Congregação Cristão no Brasil e possuía um dos cargos mais
altos dentro da hierarquia da igreja, que é o de ancião. Foram para Brasília
para me tirarem dali, mas o Rômulo falou: mas espera lá! Se ele está
fazendo esses cultos na casa dele, ele tem o direito! Na casa dele ele pode!
Essa ajuda do chefe de posto foi muito importante. Então e aí, o que
aconteceu? No segundo batismo veio a sogra do cacique, a esposa do
cacique e mais uma. E esses cultos passaram a acontecerem com mais
frequência e, cada vez mais se agrupava mais índios. Nessa altura já tinha
uns 10 batizados, não lembro os outros que foram, mas lembro que o
cacique foi logo em seguida e assim que ele se batizou começou a
perseguição sobre ele também. O cacique se converteu, só que acabou
voltando ao alcoolismo. Quando foi um dia, ele e mais um grupo foram para
o rio e sumiram, passou uma semana e nada de voltarem para a aldeia! Aí, a
esposa dele, junto com outras que já tinham se batizado, montaram num
trator e foram para lá. Quando lá chegaram começaram a orar num mato
que tem na beira da lagoa, lá na fazenda Santo Antônio. Quando esse índio
viu essa manifestação ele se sentiu importante e lembrado. Aí vem o
arrependimento, né? Ele começou a chorar, se ajoelhou e chorou muito.
Trouxeram-no embora e ele não bebeu mais. E aqueles bailes de brigas
135
foram se acabando. Não houve mais baile e quermesse, onde eles tanto
bebiam e acabavam brigando. Só que existia uma facção ali, que existe
ainda hoje, muito contra o evangelho, e não apenas da Congregação, mas do
evangelho mesmo (Da própria igreja católica). E um sonho meu era de
construir uma igreja ali para tentar melhorar ainda mais. Mas era impossível
você construir uma igreja em uma área indígena. Você não poderia fazer
isso. Teria que ter uma planta e aparecer alguém para construir essa igreja.
Só que a Congregação Cristã no Brasil trabalha de uma maneira diferente,
que é através de doações. Ela não tira uma verba e paga pessoas para ir lá
construir, são os próprios membros que a constroem. Eu acho que, nessa
altura, tinha mais de 30 membros já batizados (O convívio na aldeia já tinha
melhorado bastante). Não sei se você chegou a conhecer o Antônio Cecílio.
Ele bebia muito, montava no cavalo e vinha para cá (Arco Íris) se
embebedava e depois o cavalo que levava ele de volta. Um dia, lá nas
mangueiras, eu ia atravessando para ir ali no senhor Gervarde, quando vi
uma pessoas em silêncio em cima de um cavalo. Quando fui chegando
perto, beirando o mato vi que era o Antônio bêbado com um litro na mão. O
cavalo estava andando em torno da mangueira. Muitas vezes ele ficava
semanas bêbado, às vezes ele sumia e a mulher dele ia em casa desesperada
para procurarmos ele no mato. Bom... quando foi um dia, eu estava na
igreja e quando olho para trás vejo o Antônio entrando bêbado pelo
corredor, ai eu acomodei ele num banco e, quando terminou o culto, ele
falou para o cooperador que gostaria de se batizar, mas como ele já tinha
falado isso tantas vezes a gente não botou muita fé, porém ele foi batizado
e, nunca mais bebeu...” .306
306
João Cotrin apud GARCIA, Renata de Campos. A presença evangélica em território Indígena: O caso do
Posto Indígena Vanuíre- SP. Trabalho de Conclusão de Curso. Presidente Prudente: Unesp. 2006, p.53.
136
A primeira, no início daqui era assim, era o chefe de posto que se, que tinha
obedecido a Deus, já era convertido, ele e a esposa dele, mas como eles era
empregados da FUNAI, eles não podia falar. Mas só que um dia minha
sogra teve um sonho e que ela descia um tanque de batismo e que via as
irmãs que hoje nós conhece, nós sabe, agora nós entende que era as irmãs
de véu, de um lado e os irmãos de outro de terno, via aquilo lá tudo
branquinho e ela obedecendo a Deus. E ela chegou para o chefe que
chamava João Cotrin e falou: O seu João, eu vou na igreja de crente mas eu
não vou batizar, mas ai Deus, foi que quando foi na outra vez ela assistiu
um batismo ai Deus chamou ela. Muitos fala assim, eu não vou para a igreja
de crente porque se não eles vão me forçar a ser crente, mas não, na nossa
igreja é diferente.307
Ah, depois o cacique veio, brigou com a minha sogra, falou que ela não ia
ficar. E, com o tempo, ele foi perceber que ela tinha obedecido a Deus, e
com um mês mais ou menos obedeceu meu sogro, obedeceu outro casal que
era vizinho dela, e com o tempo aquele cacique veio bravo com ela, com o
chefe de posto, com a esposa dele não aconteceu nada, né? Porque Deus
chamou ela. Deus guardou eles ali, com o tempo o cacique ficou bravo,
roubaram seu dinheiro, ele veio a falecer.308
Os adeptos da Congregação Cristã têm em comum uma vida marcada pela dor, o que é
interpretado como necessária para a execução de um propósito maior. As primeiras
conversões para a Congregação Cristã do Brasil, em Minas Gerais, ocorreram após a morte de
um parente, em um acidente de carro. A perda, nesse caso, foi interpretada como um meio
encontrado por Deus, para que se fizesse cumprir seu plano – a conversão. A morte de seu
Antonio foi interpretada por alguns convertidos da mesma maneira. O cacique foi morto em
Tupã, ao buscar o pagamento pela mandioca vendida à indústria de farinha “Deusa”, nunca
tendo sido descoberto o responsável pelo crime. Depois de sua morte, foi escolhido um novo
307
Entrevista cedida pela senhora Mariana Cecílio Damaceno. 17/10/2008
308
Idem. 17/10/2008
137
Mas quando eu tinha 15 dias de batizado ainda, meu irmão não era batizado,
o Mário. Eu falei assim, ele era contra, muito contra, meu Deus ele não vai
gostar, ele não gostava de crente, nós também não, depois nós se converteu,
começou gostar e ai ele falou assim pra mim assim.... Ai uma noite eu
acordei umas três horas da madrugada, assim com meu coração pulsando,
parece que eu ouvia uma voz falar assim: “Vai ora lá na cabana” Ai eu falei:
“Ai eu não vou não, porque o Mário vai ver eu orando na cabana e vai
brigar, não gosta de crente.” Mas aquilo pulsava, pulsava, pulsava e eu não
ia. Quando foi uma noite, eu sonhei assim, eu creio que Deus me deu uma
revelação assim, que eu chegava na cabana, e chamava todas as crianças
que participava da cultura, para ir pra cultura, fazer a cultura.Tava eu, João,
o Mário e essas crianças. Cheguei nessa cabana e vi o Mário, o João e as
309
SOARES, Geralda Chaves. Op. cit., p. 97.
138
310
Maria Helena Cecílio Damaceno. Entrevista concedida dia 18/10/2008
140
Mário nos contou que foi na cabana que Deus revelou a ele a necessidade da
conversão. No sonho descrito acima, Lia também sentia a necessidade de orar no mesmo
local, mas o receio de que o irmão não convertido a visse orar lá, a impediu de fazê-lo. Deus,
ao se revelar na cabana mostrou-lhes que não terão que abandonar antigos costumes, que
Deus pode habitar os dois espaços. Antes da conversão, a Igreja era vista de uma maneira
muito negativa, poderia significar o fim da cultura indígena. Uma vez convertidos, o medo
não era descartado, a incerteza sobre o que poderia continuar existindo, ainda continuava
grande. No sonho tido por Lia, esse “redemoinho” assegura que poderiam continuar com os
cânticos, com cricocão, com o toque do bambu, com o toque da flauta. Eles aceitam Deus
quando se convencem de que este Deus também os aceitava.
Nas primeiras entrevistas que fizemos, os Krenak com os quais conversamos, falavam
da igreja e da cabana como espaços separados. Ouvi relatos de que, quando entravam na
cabana não se lembravam da igreja, apenas dos antigos. Em outros, pudemos perceber que as
reuniões na cabana, não eram ao menos pensadas como um ritual religioso. Como vemos no
depoimento abaixo:
Levar nossa cultura avante é interessante para nós índio, nós te a nossa
cultura, nós conservar o nosso idioma, pra que nós não perca totalmente a
idioma indígena, para que sempre nós estamos falando com nossos filhos,
com nosso netos. E algumas coisas do passado, ensinando alguma coisa do
presente também. E o presente do passado, tá no presente também, é a
cultura. A cultura pra nós é muito importante como eu tô dizendo, ela é
muito importante para nós mesmo, muito bom. Então nós tem a cultura, que
é a dança, a dança Krenak e tem a religião que é Igreja da Congregação
Crista do Brasil.311
Ou ainda:
Todas segundas e quintas – feiras, tem o ritual. Não tem nada a ver com a
igreja. Todos rituais que são apresentados falam da terra, da mata, do céu,
das estrelas, das plantas, das raízes, do anjo de deus, dos animais, dos rios e
de nós mesmos, os índios. Fala-se de tudo em nosso ritual, cada um tem seu
significado”312
311
Antônio Cecílio Damaceno. Entrevista concedida dia 22/04/2007.
312
Gerson Cecílio Damaceno apud GARCIA, Renata de Campos. Op. cit., p 51.
141
crenças do “tempo dos antigos” e o “novo” trazido pela Congregação Cristã, pode ser
entendida como uma forma de mostrar aos de fora e aos de dentro, mas ainda não convertidos,
que a Igreja CCB não ameaçava a cultura. Falavam de uma ruptura entre o “antigo e o novo”,
sem que este ameaçasse aquele. Em um período muito curto de tempo, pudemos observar o
abandono da descontinuidade para a afirmação do seu inverso, a defesa de uma continuidade
entre esses dois tempos. Sobre isso lemos:
Oh, uma coisa que eu, que eu fico assim, antes de Deus chamar nós, o tio
Mário falava assim pra nós, que os homens toca flauta e as mulheres
cantam, né? No início, depois que a gente assim, que a gente foi, que nós
obedeceu a Deus eu entendi que o senhor ensinou ao povo Krenak mesmo
antes de não obedecer a Deus, porque só os homens podia tocar flauta e as
mulheres não podia tocar instrumentos, só o Cricó. Que nem na
Congregação é a mesma coisa, os homens tocam outros instrumentos, agora
as mulheres só tocam órgão. E assim, eu fiquei pensando assim, Deus
ensinou o povo, Deus começou a ensinar o povo mesmo assim eles lá no
mundo. Porque que só os homens tocam instrumentos é só Deus quem sabe.
Deus revelou para os irmãos tocar os instrumentos, pra mulheres só
órgãos.314
A ruptura existente no discurso, hoje, diz respeito apenas à conduta. Deus sempre
existiu, sempre os visitou, sempre os ensinou. Eram eles que não serviam a Deus da maneira
correta, só a conversão os ensinara o caminho certo. A prova de que Deus existia está na
própria sobrevivência física de um povo que sofreu uma violência extrema. E nos
perguntaram: – Se Deus não existisse como teriam sobrevivido a tudo aquilo? O
conhecimento da Bíblia também influenciou em sua postura. Ao conhecerem a “palavra”, os
313
João Borun Batista de Oliveira. Entrevista cedida dia 18/10/2008.
314
Mariana Cecílio Damaceno. Entrevista cedida dia 17/10/2008.
142
Krenak foram construindo pontes entre ela e os ensinamentos dos “antigos”. Em Minas
Gerais, na casa de Cleuza Cecílio Damaceno ( conhecida como Santa) tivemos, ao lado do
fogão de lenha, uma conversa sobre a crença dos “antigos” no poder das cinzas, tida pelo seu
povo como um elemento sagrado. Bastante entusiasmados, Mário e Cleusa Damaceno nos
falaram de passagens bíblicas que também atribuem poder às cinzas. Sobre uma delas, Lia nos
fala:
Também, você entendeu? Se liga, é uma coisa legal assim sabe, de ver
assim.315
Mesmo quando o remédio do não índio não resolve, as cinzas curam. As mesmas
cinzas que abençoam uma união Krenak, fizeram com que Deus poupasse da morte toda uma
cidade. As histórias bíblicas bastante valorizadas na atualidade têm o poder de legitimar a
história dos “antigos”, a cada vez que há a possibilidade de traçarem essa continuidade. A
cada ponte possível, confirma-se a presença de Deus, antes que a Congregação Cristã do
Brasil certificasse o propósito divino da conversão. Como nos aprofundaremos mais adiante,
assim como a Bíblia pode legitimar a historia dos “antigos”, também pode negar a veracidade
de algumas crenças, como é o caso do Yhom-Quinhom, o totem sagrado feito de madeira:
Tem ouvido, mas não ouve; olhos, mas não vê; boca mas, não fala; sendo o
deus de agora o único digno de louvor 316
Olha, naquela época eles nem praticavam a cultura deles. Quando começou
a primeira cabana foi uma ideia minha, eu conversei com o Mário e disse:
por que vocês não constroem uma cabana aqui e tenta resgatar alguma coisa
315
Jonas, 3:11 “.E veio a palavra do Senhor segunda vez a Jonas, dizendo: Levanta-te, e vai á grande cidade de
Nínive, e prega contra ela a pregação que eu te disse. E levantou-se Jonas e foi a Nínive, segundo a palavra do
Senhor. Era, pois, Nínive uma grande cidade, de três dias de caminho. E começou Jonas a entrar pela cidade
caminho dum dia, e pregava, e dizia: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida. E os homens de Nínive
creram em Deus; e proclamaram um jejum, e vestiram-se de saco, desde o maior até o menor. Porque esta
palavra chegou ao rei de Nínive, e levantou-se do seu trono, e tirou de si os seus vestidos, e cobriu-se de saco, e
assentou-se sobre a cinza. E fez uma proclamação, que se divulgou em Nínive, e levantou-se do trono, e tirou de
si os seus vestidos, e cobriu-se de saco, e assentou-se sobre a cinza. E fez uma proclamação, que se divulgou em
Nínive, por mandado do rei e dos seus grandes, dizendo: Nem homens, nem animais, nem bois, nem ovelhas
provem coisa alguma, nem se lhes dê pasto, nem bebam água. Mas os homens e os animais estarão cobertos de
sacos, e clamarão fortemente a Deus, e se converterão, cada um do seu mau caminho, e da violência que há nas
suas mãos. Quem sabe se voltará Deus, e se arrependerá, e se apartará do furor da sua ira, de sua sorte que não
pereçamos/ E Deus viu as obras deles, como se converteram do seu mau caminho; e Deus viu as obras deles,
como se Deus se arrependeu do mal que tinha dito lhes, e não o fez.” Maria Helena Cecílio Damaceno.
Entrevista concedida dia 18/10/2008.
316
Gerson Cecílio Damaceno apud Garcia, Renata de Campos. Op. cit. p. 61
317
Os ensaios da dança Krenak com as crianças têm sido feitos embaixo de um pé de manga na casa da Lia e do
João. Com uma extensão conseguiram colocar uma lâmpada encima da árvore, que ilumina o quintal bastante
escuro.
144
da cultura de vocês? E ele ouviu. Então, fizeram a cabana, veio uma pessoa
de Minas Gerais que trouxe algumas ideias e ajudou a construir a cabana.318
Assim como observou Renata de Campos Garcia, a cabana feita de sapé também
reproduz a arquitetura típica dos templos da Congregação Cristã, que possui duas entradas,
uma para os homens e outra para as mulheres. Nela há bancos como na igreja e são realizados
cultos típicos da Congregação Cristã, para onde são levados todos os instrumentos musicais
utilizados pela orquestra. Os não indios apreciam os cultos realizados na aldeia, dizem que
sentem uma energia diferente ao entrar lá. No ano de 2008, foi realizado o batismo de um não
indio enfermo.
Sobre esse batismo lemos :
E: Esse ano teve, mas não obedeceu nenhum índio, foram brancos. Porque
foi pedido, foi um batismo especial, ele tava enfermo. E esse branco ele
queria, esse não índio, ele queria obedecer a Deus dentro da aldeia, então
Deus chamou ele aqui.
P: Ele falou por quê?
E: Ah ele, é que aqui é diferente, né? Todo, assim, a irmandade vem pra cá
fala que a aldeia é diferente, que ao entrar aqui, eles senti muita paz. È eles
falam assim a gente sente Deus aqui cara a cara , nós sente Deus face a face,
parece que Deus pega nós com cola assim e a gente flutua. Então, ele
queria, ele quis o batismo dele aqui e também em Arco-Íris não tem o
tanque de batismo, só em Tupã. Mas em Tupã ele não queria, ele queria
aqui na aldeia. 319
Também ouvimos sobre um milagre que ocorreu na cabana, quando uma criança, filha
de não-indios convertidos, curou-se de um problema nas pernas, após terem passado as cinzas
da cabana em seu corpo.
O que João Cotrin não diz em seu depoimento é que a cabana construída após a
entrada da igreja não foi o único espaço destinado às reuniões, à religião e à dança Krenak.
Havia, na aldeia, antes da conversão, a casa da religião, onde ficava o Ynhom-Quinhom.
Segundo o texto de Pinheiro:
318
GARCIA, Renata de Campos. Op. cit. p.49.
319
Mariana Cecílio Damaceno. Entrevista cedida dia 17/10/2008.
320
Ou Kieme Reja, na língua Borum.
145
pelos civilizados no início deste século. Para essa cabana eles se dirigiam
para agradecer, para aconselhar-se, para acalmar, para pedir e para meditar e
cantar. Segundo eles, quando se está longe do Deus, uma madeira verde ou
uma água corrente exercem as mesmas funções. È um tipo de troca
energética.”321
Uma passagem muito interessante desse mesmo texto, que retrata o tempo da casa da
religião, nasce de uma conversa com João Borum. Perguntado pela pesquisadora se não
tomava banho no rio, respondeu a ela que para isso a água deveria ser limpa. Ela, então,
lembrou-o de uma pequena cachoeira próxima à “mata”. Ele respondeu que lá havia uma
cobra grande. Segundo a autora, era uma indicação de que aquele lugar, próximo à cabana da
religião, era um local sagrado, sendo a cobra grande sua protetora, João acabou por ir banhar-
se no rio; Pinheiro não soube em qual deles, mas desconfia de que tenha sido exatamente onde
a cobra grande estava, testando seus poderes de pajé.322
Os encontros na casa da religião são lembrados pela terceira geração de Krenak,
moradores de Vanuíre. Mariana, neta de dona Jovelina e filha de Maria Helena, nos fala sobre
elas:
Eu sinto saudade desta época porque, hoje eu já tenho 29 anos, mas eu sinto
saudade daquela época, quando eles ensinava nós. Era...a gente sentava, a
321
PINHEIRO, Niminon S. Op. cit. p. 74.
322
João nunca nos falou da pajelança.
323
Mariana Cecílio Damaceno. Entrevista concedida dia 17/10/08.
146
Vemos que se reuniam para falar dos bons espíritos que protegem os Krenak, os
Marét-Erehé. Era ensinado o idioma, ouviam histórias dos “antigos”, reproduzia-se naquele
espaço a identidade Krenak. Sabemos que à volta de Lia e João do P.I Krenak, em 1991, fez
renascer as práticas culturais em Vanuíre, a construção do Ynhom-Quinhom acontecido,
também, após esse retorno das terras mineiras. Precisar datas é sempre um desafio, são
informações que fogem aos personagens. Não sabemos, exatamente, quando foi construída a
“casa da religião”, mas sabemos que, após esse retorno, rituais foram realizados com
frequência naquele espaço.
Em 1998, segundo Mariana, foi o ano em que ela, sua mãe e seu pai “desceram às
águas”, ou seja, foram batizados. Lia, sua mãe, nos conta que no sonho que teve com quinze
dias de batizada, Deus informou que podiam continuar com os rituais na cabana, na antiga
cabana, já que ainda não existia a atual. Isso nos faz pensar que, se houve períodos em que os
rituais na antiga cabana deixaram de existir, não foi durante um período longo, parecendo-nos
bastante questionável o depoimento do então funcionário da FUNAI, João Cotrin, ao afirmar
ter sido sua a sugestão para a construção da primeira cabana, já que os índios não praticavam
nada da sua cultura. Faz-nos pensar mais numa tentativa de mostrar que a Igreja, não
interferiu na cultura indígena; ao contrário, ela a fez renascer e fortificar-se, uma assertiva
bastante comum nos relatos dos índios convertidos.
A insegurança em relação às consequências causadas pela inserção da Igreja, fez com
que os índios a pensassem, inicialmente, em separado dos outros espaços, negando qualquer
conexão entre a cabana e o templo. Encontramos pessoas como o cacique Gerson que negava
a existência de práticas religiosas entre os Krenak, anteriores à construção da igreja. Em
conversa com seu Antônio, que via na cabana o espaço da cultura e na igreja o espaço da
religião, ainda assim, naquela ocasião, Antonio já nos falava de um Deus único:
324
Idem.
147
de outra igreja é outra parte, e assim por diante. Agora sobre o Deus que nos
fala, nosso Deus Tupã que é Deus, ele é de todos, Deus do branco, Deus do
índio, Deus do africano, Deus do...Deus de todos. Nós sabe, nós tem pelo...nós
conhece pela bíblia que só existe, somente um Deus para que todos crêem
nele, é o Deus que fez o céu e fez a terra. 325
A Igreja possibilitou aos índios Krenak uma relação de igualdade com os não índios,
uma relação mais harmoniosa. Aos poucos, eles foram se convencendo de que aqueles
“irmãos” não os visitavam com intenção de roubá-los, de lhes causar mal, como inicialmente
muitos haviam pensado. Aos poucos, a cultura deixou de ser ameaçada por aquelas pessoas e
pelas novas ideias que traziam. Conhecendo-as melhor, certificaram-se de que os novos
conhecimentos eram em certa medida velhos, e assim, seguros, abandonaram o discurso da
descontinuidade, adotando a continuidade.
Pinheiro nos fala da conversão de João Cotrin e o início das atividades proselitistas na
aldeia Vanuíre:
Ele era funcionário da FUNAI. Chefe do Posto Indígena Vanuíre. Não havia
nenhum apoio à comunidade e o único socorro para eles era a FUNAI. Não
tinha FUNASA, não tinha Projetos, havia muita falta de gêneros
alimentícios e nenhuma chance de adquiri-los. Caça e pesca não era mais
viável. O seu João era evangélico e começou a trazer "irmãos" para passar o
final de semana. Eles faziam almoços e convidavam os índios. Faziam
doações de botijões de gás, objeto de muita necessidade naqueles dias. Me
lembro das crianças pequenas, sem leite para por nas mamadeiras. Alguns
trabalhavam de bóia-fria mas nem sempre tinha serviço.
Os evangélicos foram socorrendo e eram os únicos com os quais eles
podiam minimamente contar. Na época eu era totalmente contra a
intromissão de igrejas na comunidade e ficava muito revoltada com isso.
Hoje eu compreendo melhor o que se passou pois a miséria era muita
mesmo. Hoje eles não precisam mais dessa ajuda, com a intensidade de
antes. Existem vários Projetos que eles fazem e podem fazer. Muitos têm
empregos: professores indígenas, técnicos de agricultura, de enfermagem,
etc.326
325
Sr. Antonio Cecílio Damaceno. 22/04/2007.
326
Entrevista concedida pela pesquisadora Niminon Pinheiro que acompanhou o início do processo de
conversão. Enviada por email em novembro de 2008.
148
O panteão religioso dos índios Botocudos era formado por quatro tipos de espíritos:
aqueles que habitavam a esfera superior, os que viviam na esfera da natureza, aqueles que
habitavam o corpo dos vivos e, por último, os que se mantinham no mundo subterrâneo.327
Vivendo no céu, estavam os Marét, visíveis apenas aos escolhidos; os que podiam vê-los,
segundo Niimuendaju, possuíam Yikégn, uma força sobrenatural. Por meio destes, os Marét
ajudavam a toda comunidade, provendo os índios de caça e de colheita, sem que fosse
necessário trabalhar. Entre os Marét, Manizer destaca o Marét- Khamakian, um velho que
ensinava aos índios tudo o que precisavam saber, ajudava-os, mas também podia puni-los com
tempestades e até com a morte. O uso dos botoques era uma ordem do Marét- Khamakian.
Quando o “língua” Cristino retira dos índios o adorno, eles temem por desobedecer o velho;
na verdade, sem o botoque sentem-se desprotegidos.
327
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os Botocudos...Op.cit., p. 425.
149
As almas eram espíritos que habitavam o corpo, cada pessoa possuía até cinco
Nakandyún, embora apenas uma habitasse o corpo, ficando as outras ao redor da pessoa. No
sonho, a Nakandyún saía do corpo e, se não retornasse, gerava doenças na pessoa que a
328
perdera. Com a morte da pessoa, morria também a alma que habitava o corpo, mas as
demais continuavam acompanhando-o. Para que as almas não se transformassem em onças,
ameaçando os vivos, era necessário acender uma fogueira e alimentá-la, evitando que as
chamas se apagassem.
Sobre esse costume entre os Botocudos, lemos:
A respeito desse ritual fúnebre, Garber afirmou que os mortos eram queimados em
uma fogueira, retirando-se todos os presentes, em seguida. Nisso diferencia, segundo Ihreing,
de outros autores, que não fazem referência à incineração, mas afirmam que faziam uma
fogueira sobre o túmulo depois de enterrado o corpo. Estigarribia, tratando exatamente do
grupo Krenak, não relaciona os alimentos à necessidade de alimentar as almas, mas observa
uma cerimônia semelhante:
A morte do líder Krenak também nos ajuda a entender a relação entre os homens e os
espíritos. O “capitão” Krenak possuía Yikégn que, segundo Nimuendaju, era um atributo de
todos os chefes Botocudos. Dessa forma, Krenak, durante a noite, era visitado pelos espíritos
que lhe contavam o que de bom e de mau aconteceria à comunidade que, avisado pelos Marét,
328
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Op.cit.
329
IHERING, Hermam Von. Op.cit., p. 46.
330
ESTIGARRIBIA, Antonio. Op.cit., p.16.
150
tinha o poder de afastar todo o mal. E assim era durante todo o tempo, até que ele mesmo
percebesse o fim de suas energias, fazendo o seguinte pedido:
Eu vou morrer
Mas não quero que vocês me enterrem
Façam um jirau e me coloquem em cima dele.
E acendam uma fogueira para mim.
Quero que vocês continuem gostando de mim
Se lembrando de mim
Quero que vocês continuem gostando de mim.
Passando a mão no meu cabelo
Que eu sempre vou olhar por vocês!331
331
SOARES, Geralda Chaves. Op.cit., p. 97.
332
MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op. cit., p. 66.
333
Os pássaros socós se transformam em homens brancos, os urubus em homens negros.
334
SOARES, Geralda Geralda. Op. cit., p. 129.
335
A pesquisadora Izabel Missagia de Mattos informou que a imagem está no Museu Paranaense Emílio Goeldi,
parte do acervo da Coleção de Curt Nimuendaju. MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Civilização e revolta: os
Botocudos e a catequese na Província de Minas. Bauru, SP: Edusc, 2004, p. 138.
151
Então quando era pra dançar tirava aquele pau. Era igual um homem levado
lá num canto onde fazia lugar de botar o Ynhom-Quinhom. Fazia lugar dele
ficar ai dançava. Quando eles fizeram a última dança veio um povo de Rio
de Janeiro e assim que meus tios falavam. Não era minha mãe não, era
meus tios...Quando veio a dança eles colocou o Yhnom-Quinhom lá dentro.
Dentro dele, perto do curral. Ali era um currauzão, perto, fizeram um lugar
para colocar Ynhom-Quinhom: “Vocês bota dentro de um lugar aí e não tira
mais não”. Disse ele, “Deixa esse Deus de vocês no lugar certo. “Eles
pegaram e colocaram perto do curral onde eles fizeram uma porta. E o chefe
mandou pintar ele. Não era pintado...E, eles, colocaram num lugarzinho.
Pegou Ynhom-Quinhom e levou lá. Ele falou aos índios “amanhã nóis vai
vê onde é que vai ficá o Ynhom-Quinhom ou não.”Largou ele e foram para
a casa para saber a orientação de onde que era para ficar a cerimônia
religiosa. Era para ficar no lugar mandado pelo branco ou se era no terreiro
do Guaimã, lá na dança deles? Eles foram fumar cachimbo! Ele disse que o
pajé falou assim: “Eu falei procêis não deixarem o Ynhom-Quinhom lá. Já
não está lá”.
Quando eles foram, acabaram o ritual, nem esperou acabar se era para ficar
lá, era pra deixar lá. Mandou o cacique lá olhar. Chegou lá e disse:
“Roubaram o Deus”. Os índios começaram a dançar. O espírito vieram
falando que foi branco que roubou. Procurou quem era esse homem na
religião. Mas ele tinha ido embora. Religião acabou por isso. Meu tio,
quando ele bebia cachaça, quando ele cantar pro Ynhom-Quinhom, ficava
como o olho cheio de lágrima. Eu queria conhecer o índio Krenak veio que
fez...Eu queria conhecer o deus...o índio Krenak veio é que fez
acabou...acabou...Pensava assim os craí...”336
J: O Ynhom-Quinhom aqui não tinha, eu mais o irmão Mário nós veio pra
aqui, aqui não tinha mais nada. A cultura tinha acabado, não tinha, não fazia
artesanato, não tinha mais cabana, eles não tinha mais dança indígena.
Então nós começou, muito difícil, a minha companheira, que é a Lia, nós ia
nas casas pedindo para os mais velhos falar. Um monte deles achava ruim:
porque vocês vai mexe com isso, vai arrumar pra cabeça. (risos) Mas tá
336
Este texto foi gravado em uma fita de áudio e era usado por Maria Helena Cecílio Damaceno nas aulas de cultura.
Não é uma cópia integral, mas é parte de um depoimento da índia Laurita Felix, registrado no livro “Os Borun do
Watu”.
152
João conta que não se recorda de ter visto a primeira imagem, mas que, por meio de
uma foto, a refez. Ao redor dela, assim com o os antigos, Krenak e índios de outras etnias
dançavam na cabana construída em Vanuíre. De acordo com a fita de áudio utilizada por Lia
Damaceno nas aulas de cultura, a imagem foi construída pelo velho Krenak. Como já
dissemos, as informações contidas nela com algumas pequenas modificações são uma fala de
Laurita Felix. Em uma entrevista falávamos sobre a “religião dos antigos” quando Maria
Helena nos falou do Ynhom-Quinhom:
Sempre assim que a gente teve mais contato com os antigos ssim, da
religião deles. Eles faziam uma, eu não sei como foi , eu não sei como foi
assim, como é...bem antes, bem antes, antes mesmo eu não sei contar, mas
eu não sei se eles aprenderam depois com o povo branco ou se foi coisa
mesmo que eles teve no sonho, né? Eles fizeram uma madeira, chamava ele
de Ynhom-Quinhom, então eles deram esse nome para essa madeira
chamada Ynhom-Quinhom. E essa madeira eles acreditava que era Deus.
Tudo que eles queria, é...pedi, né? Eles pedia, ali ficava de frente dessa
madeira, cantava em línguas, apresentava a cultura, dançava, cânticos
religiosos. E ali eles fazia pedido, o que eles queria, né? È pra cura, pra
tudo, né? Ai fazia pedido pra essa madeira, quando chegou um tempo,
quando os brancos chegaram na aldeia eles viram, né? O nosso povo
adorando essa madeira, uma imagem feita de madeira, ne? Viram adorando
essa madeira e roubaram, né ? Ai nosso povo falaram: “ Eles roubaram o
nosso Deus”. Mas até hoje ninguém sabe pra onde que eles levaram, né?
Roubaram e ...e depois desse tempo pra cá, não construíram mais. Mesmo
assim a gente, mesmo assim ainda o nosso povo continua fazendo a
religião, mas em cântico, né? Cantava, cântico de cura. Nós, o nosso toque
do bambu é até hoje o nosso cântico de cura, é um cântico de religião,
né?337
Na declaração acima, ela afirma não saber ao certo se o Ynhom-Quinhom foi trazido
pelos brancos ou mostrado aos índios por meio dos sonhos. Mário nos disse que o Ynhom-
Quinhom foi um homem, uma liderança. Os jesuítas, vendo que os índios falavam muito dele,
337
Maria Helena Cecílio Damaceno. 18/10/2008.
153
disseram: “Este é o Deus de vocês”. Foram os jesuítas que criaram o intercessor que é a
madeira.338 Quanto à criação, João Borum nos fala:
J: Ele fazia milagre, tudo que pedia pra ele dava. Na verdade aquilo que
você crê te ajuda, né? Sendo que é errado, né? Acreditava muitos de nós
mesmos acreditava que o Ynhom-Quinhom era o Deus que fez o céu e a
terra, e não é. O Ynhom-Quinhom é uma madeira feita pela mão do homem.
Na verdade eu não cheguei a ver esse tempo, mas é... eu creio que esse foi o
tempo dos antigos padres, do Anchieta. Eles vieram, entraram na tribo,
então eles deve que falou pros índios, né? Que eles que trazia aquele santo
de pau, de pau, aquele santo, de lá de trás, que eu nem sei como é que é.
Então, eles ia comunicar com os índios, trazia aqueles santos, fazia amigos
e deve ter falado pros índios: “Vocês tem que fazer isso”. Então o índio na
cabeça dele: “Vamos fazer nosso Deus, né? Chego e fez o Ynhom-
Quinhom”.
P: Então foram os padres que trouxeram?
J:Trouxe pra aldeia. Que o índio acreditou naquilo que os padres tava
falando, que o índio de antigamente era igual como se fosse um passarinho,
né? Não tinha leitura, né? Não sabe o que é o que não é. Antigamente não,
antigamente era igual um passarinho, se você chegasse lá desce um tiro nele
caia um, outro ficava bem olhando.339
338
Mario Cecílio Damaceno. 24/07/2007.
339
João Borum de Oliveira. 18/10/2008.
154
L: A gente acreditava, acreditava que ela podia fazer, sei lá...que a gente
podia fazer um pedido ali, né? E não sei como Deus podia ouvir... (risos). A
gente acreditava.
P: E o que mudou?
L: Ah, sei lá. Mudou muita coisa. Sabe por que? Porque, o que mudou é que
a gente assim, enxergou assim, que aquela madeira não tinha ouvido e não
tinha olho, nem não podia falar. È como hoje a gente, eu acredito hoje
assim, que nós serve a um Deus vivo, que nós não vê ele mas ele vê nós.
Ele escuta, ele fala, ele enxerga, ele faz muita coisa. Ele pode nos palpar,
tem mão, aquela madeira não. Ela não tinha ouvido, não tinha boca, não
podia falar com nóis, não nos palpava. Então, eu acredito assim. 340
É nós que faz o criador ou é ele que faz nós? È ele que faz nós, o criador
mostrou pra nós que isso era um vão. Tem alguns que crêem, eu não
creio.”342
Quando João e Lia retornaram das terras mineiras, no início da década de 1990,
começaram o que eles designaram de “Resgate Cultural”, colheram vocabulário no seu
340
Maria Helena Cecílio Damaceno. 18/10/2008.
341
João Borum de Oliveira. 18/10/2008.
342
Mário Cecílio Damaceno. 24/07/2007.
155
idioma, buscaram histórias com os mais velhos que resistiam em oferecer informações, pois,
já bastante traumatizados, temiam a ação dos não indios. O Ynhom-Quinhom é parte desse
resgate, é uma figura importante na busca, no renascimento dessa identidade Krenak, agora
em terras paulistas. Lia, João e Mário não conheceram a primeira imagem que dele foi feita.
Apenas João cresceu nas terras mineiras, Lia veio para São Paulo com apenas 2 anos de idade,
Mário era um bebê, ainda de colo, quando a mãe faz a viagem com os filhos. A viagem dos
irmãos Lia e Mário Damaceno para o Posto Indígena Krenak fez nascer a vontade da
manutenção desses conhecimentos, também em Vanuíre.
Por meio dessa busca, é que uma terceira geração de Krenak, moradores de São Paulo,
que nunca tinham saído dali, começam a conhecer os costumes e as crenças de seu povo. As
crianças frequentam a cabana, veem a imagem, vivenciam o ser Krenak. Sobre o Ynhom-
Quinhom, Mariana nos fala:
A imagem, a imagem dele, sei lá, aquilo lá para nós que era jovem na
época, era um simples pedaço de madeira. Agora, para o tio Mário, para
Mãe, aquilo lá, era uma, um Deus mais ou menos, pode dizer. Mas na época
que Deus chamou ele, Deus mostrou para uma serva de Deus tomada pelo
seu espírito, pelo Espírito Santo de Deus, e falou que era para eles queimar
aquilo lá, que aquilo lá não era do agrado dos olhos de Deus. È que nem,
pra nós, Nossa Senhora Aparecida é um barro, porque ali é um santo que
não fala, não ouve, não vê, não escuta...mas Deus não, Deus está acima de
tudo, Deus vê, Deus fala, Deus ouve, o que nós pede, Deus da pra nós o que
nós pede, né? Então, aquele Ynhom-Quinhom lá, pra eles era um Deus, mas
Deus chamou, Deus converteu, Deus tirou tudo aquilo, e foi queimado,
virou cinza, virou pó. Pra mim mesmo, para nós jovens, pra mim mesmo
não significava, era uma madeira que ficava ali, mas pra eles não, eles era
mais antigo, vieram de Minas com isso já mais... Mas aqui que nós fomos
conhecendo a cultura Krenak. Porque antes eu não conhecia também, depois
que eles vieram para cá, minha mãe foi embora depois que volto que foi
mais, né? Mas ai pra mim mesmo não significava nada aquilo lá, era um
pedaço de madeira que tava ali.343
343
Mariana Cecílio Damaceno. 17/10/2008.
156
(convertido), embora tenha quase a mesma idade de Mário, tem uma visão parecida com a de
Mariana. Quando perguntamos se o seu povo acreditava em espíritos ele nos respondeu:
presença de padres ou evangélicos. Missagia acredita que isso possa ser explicado pelo poder
dessacralizador atribuído aos não indios. Em Vanuíre, assim como os “ brancos” não podiam
ver o Ynhom-Quinhom na cabana, os índios também resistiram, inicialmente, à conversão,
com medo de que eles acabassem com a cultura, que viessem para roubar suas terras.
Como vimos, os Krenak convertidos negam o poder da imagem do Ynhom- Quinhom;
no entanto, o mesmo não ocorre com os Marét que dizem continuar acreditando. Os Marét
aparecem como um elo de ligação entre a “religião dos antigos” e a seguida hoje, prova de
que Deus sempre existiu entre eles:
Os Marét-Erehé até hoje nós acredita. Os Marét-Erehé por tanto que nós
acredita que ainda nós tem os cânticos deles ainda. E nós acredita nos
Marét-Erehé porque os Marét-Erehé pra nosso povo era o espírito bom e
hoje em dia pra nós é o espírito bom, o Marét-Erehé é o espírito Santo de
Deus, né? Então, é as duas coisas ao mesmo...uma coisa só. Só era diferença
no falar, mas é uma coisa só. Como se você, você é branca acredita no anjo,
no anjo de Deus. Então, o Marét-Erehé pra nós é o anjo de Deus, porque se
ele é bom ele era uma coisa enviada de Deus, né? Então, nós acredita que o
Marét-Erehé, Marét-Erehé até hoje nós acredita.346
Foi encontrado um lugar para a figura do Marét-Erehé, dentro da nova crença, em que,
remodelado, revestido de Espírito Santo pode continuar existindo. Marét-Erehé é a prova da
permanência de Deus entre eles, é um espírito bom que os visitava na cabana antes da
conversão. Hoje, eles acreditam que a energia que sentiam ao entrar na cabana, ao dançar, era
porque o “espírito bom” estava ali. Diferente do Yhnom-Quinhom, o Marét-Erehé é um
espírito, está vivo e os acompanha. Eles não o veem, mas também não veem a Deus, apenas
sentem a sua presença.
A Igreja Congregação Cristã do Brasil é conhecida por suas normas rígidas: não beber,
não jogar, não assistir à televisão, não fumar, não usar vestes curtas e decotadas, ser fiel ao
parceiro, entre outras proibições. Para o pentecostalismo o arrependimento nasce a partir do
abandono das “coisas do mundo”. Apenas com a ruptura dos antigos costumes é que a pessoa
346
Maria Helena Cecílio Damaceno. 18/10/2008.
158
pode ganhar a salvação, principal objetivo do “crente”. Mas, ainda que aceitem esse conjunto
de condutas, segui-las nem sempre é uma tarefa fácil. Muitos acabam fugindo às regras e
distanciando-se da igreja, enquanto outros conseguem “adaptá-las” em seu cotidiano e, dessa
forma, permanecer na “irmandade”.
A dificuldade em seguir a doutrina não é uma realidade vivida apenas pelos
convertidos da aldeia Vanuíre. Para a escrita da dissertação de mestrado Camargo347 realizou
trabalho de campo acompanhando a vida dos “irmãos” da Congregação Cristã que
freqüentavam a sede da igreja no bairro do Brás, na cidade de São Paulo, tendo encontrado
aparelhos de televisão na casa dos convertidos. Sabemos que meios de comunicação como a
televisão e o rádio são proibidos aos “irmãos”, pois tais aparelhos os aproximam do mundo
profano de que eles devem se manter distantes. Nas tais casas visitadas por Camargo, a
explicação dada foi a de que nem todos eram convertidos, portanto os televisores eram para
uso daqueles outros moradores. Em uma das casas, o aparelho televisor estava embutido no
armário. A dona da casa explicou que o guardava ali para não escandalizar os “irmãos” que
vinham visitá-la, mas afirmou que apenas assistia a programas jornalísticos e evangélicos.
Sobre os “irmãos”, Camargo fez uma outra observação que nos parece pertinente, ele
notou que os homens pareciam menos preocupados com as suas próprias condutas. Não temos
dados concretos para afirmar que os homens convertidos de Vanuíre são menos rígidos em
seu comportamento do que as mulheres; podemos, no entanto, perceber que os homens
encontram mais dificuldades em abandonar a “vida do mundo”. Entre as regras de maior
dificuldade citadas em Vanuíre estão o abandono dos jogos, das bebidas alcoólicas e do
cigarro
Segundo informações tidas na aldeia, há o testemunhado e o batizado. O testemunhado
é aquele que visita a igreja, que ora, que está indo congregar. É considerado um servo de
Deus, mas que ainda não está “firme”, não segue as condutas rigorosamente, ainda
aguardando ser chamado. O batizado ouviu o chamado, está disposto a seguir a conduta,
“desceu às águas” no tanque batismal e nasceu para uma nova vida, longe das “coisas do
mundo.” Os convertidos nos dizem que, quando Deus chama não há como recusar, mas
sabemos que antes de tomar a decisão eles refletem sobre o que é a vida do “crente”, sobre as
condutas que terão que seguir, como nos mostra o depoimento abaixo:
347
CAMARGO, Ivani Vasconcelos . Op.cit.
159
No depoimento, vemos que antes da conversão ela pesou os prós e os contras. Sabia
que o conjunto de condutas a seguir a distanciaria, em certa medida, do marido já que espaços
como o campo de futebol e os bailes, não seriam mais freqüentados por ela. No entanto, ainda
como testemunhada, ou seja, como frequentadora, ela tinha adquirido a consciência de que era
necessário preparar-se para o encontro com Deus, e a preocupação com a salvação da alma
fez com que se convertesse. Uma das barreiras encontradas por ela, assim como ouvimos de
outras mulheres, foi o abandono da televisão. Porém, segundo a depoente, esse vício Deus foi-
lhe tirando aos poucos. Em geral, as mulheres se convertem primeiro, daí a preocupação com
o marido, os quais, conforme já dissemos, mesmo depois de convertidos encontram
dificuldades em permanecer na “Graça”.
O marido da depoente acima acabou por se converter, mas ainda faz uso do álcool.
Segundo ela:
348
Mulher Krenak+ Kaingang. 10/2008
160
Ele é, mas só que ele não ficou, tá parado. Tá com dois anos que ele não vai
na igreja, só que ele bebe, joga bola, fuma , mas só que agora já é mais
calmo que como antes, né?349
Esse homem desceu às águas, mas não conseguiu seguir as condutas durante muito
tempo. Mas embora voltado às práticas antigas, a esposa me contou que o homem havia se
tornado muito mais calmo, abandonado ações violentas e a infidelidade. Há outros casos em
Vanuíre de homens convertidos, que se declaram “crentes”, mas que ainda assim fazem uso
do álcool e do cigarro; é o futebol, no entanto, a prática que nos parece a mais difícil de ser
abandonada.
Em vários trabalhos acadêmicos que tiveram como objeto aldeias indígenas, vemos a
importância que tem para os índios as partidas de futebol. O futebol possibilita o
estabelecimento de um confronto entre índios e não índios, sem que estes estejam em posição
inferior. E mais, além da possibilidade de vitória sob um grupo de homens “brancos”, há uma
relação entre índios e demais jogadores que não é marcada pela violência e subjugação.
No “Krenak” temos o Watu Futebol Clube. Segundo Missagia, mesmo o esporte
tendo sido aprendido com os não índios, o time tem características étnicas próprias como o
nome escolhido – que na língua nativa significa Rio Doce – e a cor do uniforme, o vermelho.
Essa prática une Krenak e Nakré-hé os quais, se no viver diário, tomam posições contrárias,
evitando o matrimônio, no campo formam um único time. Quando a autora realizou o
trabalho de campo, os fazendeiros ainda ocupavam as terras em litígio. Índios e fazendeiros
disputavam além das terras a partida de futebol:
349
Idem.
350
MISSAGIA DE MATTOS, Izabel. Borum..., Op. cit., p. 162.
161
Em 1970, quando Melatti esteve na aldeia Vanuíre, os índios jogavam bocha, mas já
era o futebol o esporte preferido. O time Vanuíre Futebol Clube fundado em 1966, era de
composição mista, jogando índios e não índios. Havia presidente e vice-presidente que eram
escolhidos pelos seus jogadores. Os jogos eram disputados dentro e fora do posto, quando
fora, em lugares próximos como Arco-Íris (4 Km) , Pilar (20 Km), Fazenda União (22 Km),
entre outros.
Além dos jogadores não índios, outros frequentavam a aldeia nos dias de jogos. A
partida também era assistida pelas mulheres indígenas que não se misturavam aos não índios e
ainda que a alteridade nos pareça tão visível, a autora tece o seguinte comentário:
Ou ainda:
Houve animado jogo de futebol no campo deste Posto entre os quadros do
Saltinho e Vanuíre, saindo vencedor este último, por 2x0 no 1º e 1x0 no 2º
g.353
Vemos, então, que a prática do futebol é muito anterior à da conversão. O futebol era
uma das poucas opções de entretenimento. Bastante isolados, os índios saíam da aldeia
351
MELATTI, Delvair M . Op. cit., p. 144
352
Diário de posto. Vanuíre. 19 de dezembro de 1946
353
Diário de posto. Vanuíre. 16 de março de 1947
162
quando iam vender sua colheita ou fazer compras, lembrando que ambas as atividades, na
maioria das vezes, eram feitas na mesma ocasião. As partidas eram um dos poucos momentos
em que índios e não indios se relacionavam, além do que o futebol permitia aos índios saírem
da aldeia para jogar em outros locais. Hoje, os jogos continuam ocorrendo aos domingos,
possibilitando o futebol uma grande reunião entre jogadores índios e não índios, que são
assistidos por não índios, mulheres indígenas, crianças.354
Dessa maneira, o futebol está enraizado no cotidiano da aldeia, é um dia de reunião
entre vários personagens. Uma rotina que como mostramos se repete há muito tempo, o que,
provavelmente, explique a dificuldade dos homens em romper com essa atividade. É bastante
interessante, contudo, que as mulheres falem da dificuldade dos homens em abandonar o
futebol, mas que não vejam problemas quanto a elas próprias estarem presentes às partidas.
Pudemos apreciar sempre, nos dias de jogos, as rodas formadas pelas mulheres, bastante
entusiasmadas, torcendo pelo time da aldeia.
Em uma de minhas visitas a área, as equipes eram formadas de Toledo e de Vanuíre,
jogando primeiro o time que eles chamam de cascudo (time reserva) e depois o titular. Nessa
ocasião, aproximei-me de um grupo de mulheres Krenak, Kaingang e Terena, convertidas,
podendo registrar o seguinte comentário:
Índio não tem muita religião. Antes era passa a bola cumpadre, agora é
passa a bola irmão.355
A fala acima deixa claro que a conversão, ao menos para alguns, não significou o
rompimento com a prática do futebol, o que mudou foi que agora jogam entre “irmãos”. As
razões dessa proibição não estão claras para todos, pois alguns, ao serem questionados,
chegaram a nos perguntar se jogar é pecado. A maioria dos índios com os quais falamos
afirmaram que o jogo leva à agressão verbal, aos palavrões. Mas temos também a seguinte
versão:
Ah, porque é jogo né? Tudo que é jogo não pode. Se você tá ali, que nem
por exemplo, é...assim... vai lá um homem com sua família, tem sua família
354
O senhor Biriba é um Kaingang já idoso, quando tentei marcar uma entrevista com ele, me avisou
logo: “Só não venha de domingo porque tem jogo”. O mesmo era vice-presidente do time em 1971. Hoje o vejo
cuidando do gramado do campo de futebol.
355
Comentário de uma índia “misturada” ( K+ Kr) . Data: 20/07/2008
163
e tudo, começa a joga, joga, joga, e vai perder não vai? Então é jogo, então
não pode. Sei lá, jogo também eu não entendo dessa parte que não pode,
mas não pode, sabe que tudo é vício, vira um vício, ali você vai jogando,
jogando, vai se viciando naquilo. Então de vez de ir na igreja, lembra e orar
a Deus, agradecer a Deus pela nossa benção que Deus colocou na nossa
casa, tá esquecendo, esquece de Deus e vai ficar só no jogo.356
Percebemos, na fala das pessoas, que o erro não está na prática do jogo em si, mas nas
relações que se estabelecem durante ele: o homem que xinga o adversário, aquele que deixa
de ir ao culto para jogar, nas bebidas que se consomem durante uma partida.357 Conversando
com uma jovem filha de Kaingang com Krenak ela nos disse que uma das queixas do
cooperador não índio que celebrava os cultos em Vanuíre era exatamente sobre a manutenção
dessa atividade ao que ela lhe respondia dizendo ser necessário ter paciência. Parece, no
entanto, que a dicotomia vista entre os dois espaços pelo cooperador, não é a mesma vivida
pelos índios. Alguns convertidos insistem em ser convertidos e jogadores, ao mesmo tempo.
O fato de vestirem o calção na tarde de domingo, não os impede de vestirem o terno adequado
no próximo sábado.
356
Mulher (K+Kr) Data: 17/10/2008
357
Próximo ao campo tem um “barzinho” que vende bebida alcoólica.
164
Conclusão
358
Reiteramos que tomamos como cultura a definição dada pelos índios: cultura é a dança, o artesanato.
359
Instrumento musical usado nas danças.
166
descobrindo que, embora tivesse outro nome, o Espírito Santo enviado por Deus, sempre
estivera entre eles, mesmo no “tempo do mato”.
Em 2005, os Krenak que permaneceram nas terras originárias, bloquearam a Estrada
de Ferro Vitória–Minas, tendo duas reivindicações principais. A primeira delas diz respeito à
demarcação de uma área de 1,8 mil hectares que fica na margem direita do Rio Doce, a
mesma área que, em setembro de 1998, foi transformada em Parque Estadual dos Sete Salões,
pelo Governo do Estado de Minas Gerais. Os Krenak reivindicam aquele espaço como seu:
“Essa é uma região importantíssima para nós. Contém sete cavernas e pinturas rupestres feitas
pelos nossos antepassados”, explicou o cacique Rondon Félix Krenak.”360 As obras para
implantação do parque foram interrompidas, mas a disputa ainda não foi resolvida. A FUNAI
montou um GT (grupo de trabalho) para a realização de estudos que comprovem o direito dos
índios. O trabalho que deveria começar em dezembro de 2008 foi adiado, até o momento não
temos informações quanto ao início das atividades.
A segunda reivindicação é referente aos danos causados pela hidrelétrica de Aimorés,
um empreendimento da Companhia Vale do rio Doce (com 51% de participação), em
associação com a Companhia Energética de Minas Gerais, a CEMIG (com 49%). A Usina
construída tem sua margem a 11 quilômetros da aldeia Krenak. Metade dela é constituída pelo
Rio Doce, sendo necessário no restante um alagamento. Em 2008, a Justiça entendeu que os
responsáveis pela hidrelétrica deveriam pagar uma indenização por dano moral coletivo ao
povo Krenak, já que, ao realizar o aproveitamento do potencial hidrelétrico do médio Rio
Doce, ignoraram os direitos e interesses do povo indígena Krenak.
A grande questão é: Quem a Justiça entende como sendo o povo Krenak? Em nenhum
momento os Krenak de Vanuíre foram consultados pela FUNAI, ouvidos pela Justiça. O
direito, neste caso, ficaria restrito aos que permaneceram no território? Não teriam os Krenak
de Vanuíre direito às indenizações que já estão sendo pagas aos moradores do P.I Krenak?
Para os Krenak de Vanuíre essa não é só uma questão de quem e quanto recebe, envolve a
identidade, a pertença étnica. Ouvi de uma índia Krenak: Se nós não somos Krenak, nós
somos o quê? E assim João Borum nos explicou: “Nóis daqui é o mesmo de lá, nós que veio
pra cá”.
360
Rondon Felix Viana.
167
Sabemos que a identidade Krenak que sobreviveu à diáspora sofre sanções na sua terra
de origem. A permanência nas margens do Rio Doce é sinônimo de luta, de terem resistido as
ações do Governo, vencido a invasão dos fazendeiros. E, também por isso, não parece justo
aos índios Krenak de Vanuíre estarem excluídos da indenização paga pela inundação das
terras por eles ocupadas tradicionalmente, uma vez que parte deles retornou ao vale do rio
Doce em um momento de grande dificuldade, quando a terra ainda estava em litígio, lutando,
naquela ocasião, junto aos demais.
Com a hidrelétrica, o trecho do Rio Doce que corta a aldeia será alagado, as casas à
sua margem terão que ser abandonadas. Parte dos índios residentes na aldeia Krenak
considerarem que a indenização só deveria favorecer aos que vivem próximos ao Rio. Neste
caso, não só os índios Krenak de Vanuíre seriam excluídos, mas também o grupo que vive na
área norte da aldeia. Estas são discussões atuais, todas as famílias do P.I tem recebido em
parcelas mensais a indenização. Mas além das casas que terão que ser removidas, a beleza das
pedras, as chamadas “ilhas” serão cobertas pela água. Essas ilhas são referência para este
povo, muitas famílias viveram nelas. O Senhor Antonio Cecílio Damaceno morador de
Vanuíre, nos disse que depois do desterro para Maxakalis, da viagem para Brasília, depois de
“vagarem” por tantos lugares, foram as ilhas que devolveram segurança à família : “(...) no
meio da viagem meu pai falou, acho que nós vamos desce vamos até a aldeia do Krenak,
vamos voltar para nossa terra, quem sabe um dia Deus pode possa nos ajudar que aquela terra
pode ser resgatada para nos outra vez ,enquanto isso nos vamos morando nas ilhas, porque as
ilhas ta lá, nos podemos continuar morando ali, fazemos nossos ranchos e vivemos de pesca.”
Em Minas Gerais, ouvimos casos sobre grupos indígenas que se negaram a receber
indenização, e que, ainda assim, nada puderam fazer contra os danos causados pelas
hidrelétricas. É como se, neste momento, depois de tantos embates com os “brancos”, os
índios se vissem sem capacidade de reação. A incerteza quanto ao destino da aldeia existe,
uma jovem Krenak moradora daquela área nos disse: “A aldeia vai acabar, uns vão sair”.
Entre os Krenak de Vanuíre, inclusive os que estavam admirando as pedras do Watu pela
primeira vez, havia tristeza. Desejavam que seus filhos que não puderam estar presentes
naquela ocasião, em razão das dificuldades econômicas, também pudessem um dia apreciar
tal beleza.
168
Fontes
Posto indígena Vanuíre. Fontes armazenadas no Museu Histórico Índia Vanuíre, Arco-
íris, São Paulo.
- Diários produzidos no posto indígena que abarcam o período de 1943 a 1948 sem
interrupções;
- Diário do ano de 1952;
- Ocorrências dos quatro meses iniciais de 1981, listas com nomes de índios enfermos e o
tratamento oferecido;
- Memorando, ata de reunião na aldeia;
-Autorização para a locomoção dos índios, pedido de transferência de posto;
-Listas de presença escolar do ano de 1986;
170
Notas Bibliográficas
ABREU, Jean Luiz Neves. Nas margens da natureza e da civilização: a viagem de Saint-
Hilaire na região do rio Doce. Estudos de História, Franca. V.12, n.1, 2005, p. 109-126.
ABREU, Syvio Fróes. Os índios Crenaques: Botocudos do Rio Doce em 1926. Revista do
Museu Paulista, XVI, São Paulo, 1929.
ALBERTI, Verena. Manual de história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005.
ALMEIDA, Maria Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidades e culturas nas aldeias
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. 2005.
AMANTINO, Márcia. O Mundo das Feras: Os moradores do Sertão Oeste de Minas Gerais-
século XVIII. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2001.
AMORIM, Maria Stella de. A situação dos Maxakali. Revista do Instituto de Ciências
Sociais. Rio de Janeiro: Volume IV, 1967.
ANTONIO, Jonas Dias Filho. O Outro Aprendizado: a história do Presídio entre os Krenak.
Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Federal da Bahia, 1990.
BOSI, Èclea. Memória e Sociedade. Lembrança de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
CAMARGO, Ivani Vasconcelos. Rituais de poder: um estudo comparativo dos rituais das
igrejas Pentecostais em São Paulo. Dissertação de Mestrado,Unicamp, 2000.
COMISSÃO, Pró-Ìndio. Índios no Estado de São Paulo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984.
Conne Panda- ríthioc Krenak: coisa tudo na língua Krenak. Belo Horizonte/ Brasília:
SEE/MG/ MEC- Unesco. 1997
CUNHA, Manuela Carneiro da. Org. Antropologia do Brasil: mito, história e etnicidade. São
Paulo: Editora: Brasiliense, 1986
FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e história oral. IN: Revista Topoi,
Rio de Janeiro, dezembro 2002, p. 314-332.
FERREIRA, Marieta de Moraes; JANAINA, Amado (org). Usos e abusos da Historia Oral.
Tradução Luiz Alberto Monjardim. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.
GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província Santa Cruz. São Paulo, Obelisco,
1964.
GUIMARAES, Núbia Maria C. Quem são os filhos e netos do Capitão Krenak ? Um estudo
sobre manipulação étnica e a árdua trajetória dos Botocudo do rio Doce. Trabalho de
Conclusão de Curso. Universidade Federal da Bahia. 1990.
IHERING, Hermann Von. Os Botocudos do Rio Doce. Revista. Do Museu Paulista. São
Paulo, n. 8, 1911.
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. IN: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
5, n.10, 1992.
LIMA, Antonio Carlos de S. Um Grande Cerco de Paz: Poder tutelar, indianidade e formação
do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.
MARLIÉRE, Guido Tomás. Documentos diversos relativos á sua vida e obra. Revista do
Arquivo Público Mineiro X 1905; XI, 1906; XII, 1907. Belo Horizonte.
MELATTII, D.M. Aspectos da Organização Social dos Kaingang paulistas. Brasília: FNI,
1976.
MONTEIRO, John M. Negros da Terra. Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo.
São Paulo: Contexto, 1994.
NETO, Edgar Ferreira. História e Etnia. In: Domínios da História: ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
OLIVEIRA FILHO, JOÃO Pacheco de. “O nosso governo”: Os Ticuna e o Regime Tutelar.”
Rio de Janeiro: UFRJ, 1986, Tese de Doutorado.
174
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. A Sociologia do Brasil Indígena. São Paulo: Ed. da USP,
1972.
OTONI, Teófilo. Notícia sobre os selvagens do Mucuri. Org: Regina Horta Duarte. Belo
Horizonte: Ed. da UFMG, 2002.
PALAZZOLO. Jacinto de. Nas selvas dos vales do Mucuri do Rio Doce. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1952.
PARAÍSO, Maria Hilda.O tempo da Dor e do Trabalho: a conquista dos territórios indígenas
no Sertão do Leste. Universidade de São Paulo, 1998, Tese de Doutorado.
RANGEL, Lucia H. “Vida em Reserva”. IN: Índios no Estado no Estado de São Paulo:
Resistência e Transfiguração. São Paulo: Yankatu/ Pró- Índio, 1984.
RIBEIRO, Rodrigo B. Uso do Álcool nas sociedades tribais: do prazer á dor. Dissertação de
Bacharelado em Ciências Sociais. Marília: UNESP, 1997.
SAINT-HILAIRE, Augusto de. Viagem pelas províncias de Rio de Janeiro e Minas Geraes.
São Paulo, Nacional, 1938.
SANTOS, Sílvio Coelho dos. Índios e Brancos no sul do Brasil: a dramática experiência dos
Xokleng. Porto Alegre: Movimento, 1987.
SPIX & MARTIUS. Viagem pelo Brasil 1817-1820. São Paulo, Tradução Lúcia Furquim
Lahmeyer. 3º ed. Edições Melhoramentos IHGB/ Instituto Nacional do Livro, vol.II, 1976.
WIED-NEUWIED, Maxilimiliano de. Viagem ao Brasil nos anos de 1815 e 1817. 2ª ed. São
Paulo, 1958.
177
ANEXOS
178
361
Informações levantadas 10/2008.
362
Não sabemos precisar, mas é grande o número de crianças e adolescentes em Vanuíre. Filhos que seguem a
religião dos pais. Na CCB o culto de domingo é destinada aos jovens, sendo bastante freqüentado em Vanuíre.
179
Membros da
Congregação Cristã
13%
do Brasil
Católicos
27%
60%
Membros da
Assembléia de Deus
1º casa:
Mário Cecílio Damaceno (Krenak)
Aparecida Conechú (Kaingang + Pankararu)
Moradores: 05
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil
2º casa
Helena Conechú ( Pankararu)
Filho: Ademir Conechú (Kaingang+ Pankararu)
Moradores: 02
Religião: Senhora Helena é evangélica da Congregação, seu filho é católico.
3º casa
Maria Helena Cecílio Damaceno (Krenak)
João Batista de Oliveira (Krenak)
Moradores:02
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil
4º casa
Aline Damaceno Cotuí (Krenak)
Wagner Indubrasil (Kaingang)
Moradores:04
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil
5º casa
Ena Luiza (Kaingang)
Moradores:02
Religião: Evangélica da Congregação do Brasil
180
6º casa
Antonio Cecílio Damaceno (Krenak)
Maria Aparecida Caiua ( Caiua)
Moradores:06
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil
7º casa
Marcos Elias de Melo (Fúniô)
Tereza Gomes Conechu ( Kaingang)
Moradores:06
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil
8º casa
Josefa Elias de Melo (Funiô)
Moradores:01
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil
9º casa
Adeildo Elias de Melo ( Funiô)
Jacira (Kaingang)
Moradores:02
Religião: Evangélica/ Congregação Cristão do Brasil
10º casa
Rosimara Cecílio Damaceno (Krenak)
Moradores:04
Religião: Católica
11ºcasa
Raquel Cecílio Damaceno (Krenak)
Moradores: 04
Religião: Católica
12ºcasa
Antonia de Paula (Terena)
Moradores:03
Religião: Católica
13ºcasa
Rosimeire Barbosa (Terena/ Kaingang)
Moradores:03
Religião: Católica
14º casa
Ondina Dokemkri Campos (não índia)
181
15º casa
José Constantino da Silva (Aticum)
Moradores:03
Religião: Evangélico da Congregação Cristã do Brasil ( progenitor)
16º casa
Ana Anato (Kaingang)
Moradores:03
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil
17º casa
Irineu Cotuí (Kaingang)
Ivani Barbosa (Kaingang)
Moradores:02
Religião: Evangélicos da Assembléia de Deus
18º casa
Antonio Cotuí (Kaingang)
Moradores:01
Religião: Evangélico da Congregação Cristã do Brasil
19º casa
Denildo Dokemkri (Kaingang/ não-índio)
Mariana Cecílio Damaceno (Krenak)
Moradores:06
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil
20º casa
Márcio de Jesus de Jesus da Silva (Kaingang)
Tatiana Damaceno (Krenak)
Moradores:04
Religião: Evangélicos da Congregação
21º casa
Gilmar Afonso (não índio)
Norma Barbosa Afonso (Kaingang/ Krenak)
Moradores: 05
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil
22º casa
Jovelina Jorge Damaceno (Krenak)
Moradores: 02
Religião: Congregação Cristã do Brasil
182
23º casa
Sinézio Cotuí (Kaingang)
Aparecida Piui (Kaingang)
Moradores: 04
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil
24º casa
Ricardo Cotuí (Kaingang)
Juraci Garcia (não índia)
Moradores: 05
Religião: Evangélicos da Congregação Cristã do Brasil
25º casa
Mariza Jorge (Kaingang/Krenak)
Esposo: não-índio
Moradores:03
Religião: Católica
26º casa
Régis Damaceno (Krenak)
Natalia Barbosa Afonso (Kaingang /Krenak)
Moradores:03
Religião: Católica
27º casa
Edivaldo Cotuí (Kaingang)
Cecília (não índia)
Moradores: 03
Religião: Católica
28º casa
Antonio Jorge (Krenak)
Jandira Umbelina Jorge (Kaingang)
Moradores:02
Religião: Católica
29º casa
Camargo Jorge (Krenak)
Ana Paula (Terena)
Moradores:05
Religião: Evangélica da Assembléia de Deus
30ºcasa
Edmar Adílson (Krenak)
Adelina Piui (Kaingang)
Moradores:04
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil
183
31ºcasa
Jesuíno (Kaingang)
Moradores:02
Religião: Católica
32º casa
Tiago Umbelino (Krenak)
Iracema Piui (Kaingang)
Moradores:04
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil
33º casa
Gracina Umbelina (Krenak)
Moradores: 02
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil
34º casa
Itamar Jorge (Krenak)
Gislaine (Terena)
Moradores: 03
Religião: Católico
35º casa
Paulo Jorge (Krenak)
Rosangela Barbosa (Kaingang)
Moradores:03
Religião: Católica
36º casa
Marcos Piu (Guarani)
Claudinéia Cecílio (Krenak)
Moradores: 07
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil
37º casa
Diego Barbosa Afonso (Krenak)
Lidiane Damaceno (Krenak)
Moradores: 04
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil
38º casa
Leandro Barbosa (Krenak/ Kaingang)
Elizabeth Conechú Damaceno (Krenak/ Kaingang)
Moradores:02
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil
184
39º casa
Nilza Barbosa (Kaingang)
Moradores:03
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil
40º casa
Willian Piui Adilson (Krenak+Kaingang)
Fabiane Damaceno (Krenak)
Moradores:06
Religião: Evangélica Congregação Cristã do Brasil
41º casa
Paulo José (Terena)
Marisângela Cotuí (Kaingang)
Moradores: 03
Religião: Evangélica/ Assembléia de Deus
42º casa
Luzia Umbelina (Krenak)
Esposo: (Terena)
Moradores:05
Religião: Evangélica da Assembléia de Deus
43º casa
Vagner Cecílio Damaceno ( Krenak)
Flávia Barbosa (Kaingang/ Krenak)
Moradores: 04
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil
44º casa
Claudinei Constantino (Caiua/ Tikuna)
Claudinéia Barbosa (Kaingang/Krenak)
Moradores: 04
Religião: Católica
45º casa
Mauro Umbelino (Krenak)
Èlia Damaceno (Krenak)
Moradores: 04
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil
46º casa
Eder Vara (Kaingang)
Luzia Conechú (Kaingang/Pankararu)
Moradores: 05
Religião: Evangélica/ Assembléia de Deus
185
47º casa
Maria Dito (Kaingang)
Moradores:02
Religião: Católica
48º casa
Vanilson José (Terena)
Marizângela (Terena)
Moradores: 03
Religião: Evangélica/ Assembléia de Deus
49º casa
Dorvalina José (Terena)
Moradores: 04
Religião: Evangélica/ Assembléia de Deus
50º casa
Vilma Cardoso (?)
Moradores: 03
Religião: Católica
51º casa
Araci Cardoso ( ?)
Moradores: 02
Religião: Católica
52º casa
Domingo Vaiti (Kaingang)
Olinda Vaiti (não-índia)
Moradores:03
Religião: O Sr. Vaiti é católico e a esposa evangélica/ Congregação Cristã
53º casa
Gerson Cecílio Damaceno (Krenak)
Roselina Dokemkri (Kaingang)
Moradores:07
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã do Brasil
54º casa
Maria da Glória (Kaingang)
Moradores: 03
Religião: Evangélica da Congregação Cristã do Brasil
55º casa
João Umbelino (Krenak)
Ruth Braga (Atikum)
Moradores: 03
186
56º casa
Fernanda da Silva (Atikum)
Moradores:03
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã
57º casa
Dirce Jorge (Krenak)
Esposo: ? (Terena+ Kaingang)
Moradores:04
Religião: Evangélica/ Congregação Cristã
187
João Borun
189