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A OUTRA MARGEM DO OCIDENTE

Copyright © 1999 by Os Autores

Capa:
Moem a Cavalcanti

Preparação:
Carlos Alberto Inada

Revisão:
Beatriz de Freitas Moreira
Ana Maria Barbosa

Dados Internacionais dc Catalogação na Publicação (ap)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

A Outra margem d o ocidente / organização Adauto


Novaes. -— São Paulo : Companhia das Letras, 1999.

Vários autores,
um* 85-7164-920-Q

1. Brasil — História 2. índios da América do Sul —


Brasil — História 3. Povos indígenas — Brasil j. Novaes,
Adauto.

99-2856 cdd-9S0.41

índices para catálogo sistemático:


1. Brasil : índios : História 980.41
2t índios : Brasil ; História 9S0.41

1999

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA. SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 72
04532-002 — São Paulo — sp

Telefone: (011)866-0801
Fax:(011)866-0814
e-mail: editora@companhiadasletras.com.br
ÍND ICE

A outra margem do Ocidente — A dauto Novaes............................... !7


Descobrindo os brancos — D a v i Kopenawa Y a n o m a m i.................. 15
O eterno retom o do encontro — A ilton K re n a k ............................... 23
,À espera do Outro — Frank Lestringant............................................ 33
Da tirania à tolerância — Carlos Frederico M arés.............................. 53
Itinerário de uma criança normanda — Ja cqu esM eu n ier.................. 83
Teatro sem palavras — M á rc io S ouza................................................ 93
A selvageria culta — PhilippeD escola..................... ........................ 107
O enigma das grandes cidades — M ich a el Hecken b e rg e r........ ........ 125
Entre memória e história — P a trick M en g et....................................... 153
A política do espírito — Patrick M enget............................................. i<5j
O símio de Deus — Juan Carlos Estenssoro....................................... 181
Nossa Senhora, o fumo e a dança — Ronaldo Vainfas...................... 201
Xamanismo e tradução — M anuela C arneiro da C u n h a ..................223
Armas e armadilhas— John M anuel M o n te iro ..................................... 237
Da inimizade: forma e simbolismo da guerra indígena — Carlos
F a u sto.... ....................................................................................... 251
O Renascimento ameríndio — Serge G ru z in s k i.................................. 283
A geometria do corpo — Peter G ow ................................................... 299
O erotismo do D ivino Marquês da Amazônia — Pascal D ib ie ........... 317
Essomericq, 9 venturoso carijó — Léyla Perrone-M oisés...........
A demarcação das terras e o futuro dos índios no B rasiW -°C ^Q g oep»-<*etfslòna
Alberto R ic a rd o ................... wce*c
Variações em torno da felicidade dos selvagens — Sérgio Cardoso... 359
Cartas à segunda escolástica — A lc irP é c o ra ....................................... 373
O mito do bom selvagem — Sérgio P a u lo R ouanet........................... 417
Céu de capricórnio e tristeza do Brasil — Olgãria M atos...................441
DESCOBRINDO OS BRANCOS

Davi Kopenawa Yanomami


com Bruce Albert

D a v i Kopenaw a, nascido em 1956, vive na aldeia y a n o m a m i de


Waioriki\ situada ao p é da serra doDem iniC “serra do Vento”'), no estado do
Am azonas: Seu grupo de origem foi quase inteiramente aniquilado no alto
rio ToototobiCperto da fro n te ira venezuelana) p o r duas epidemias sucessi­
vas após contatos estabelecidos com o Serviço de Proteção ao ín d io (.SPI) e
com a missão evangélica Novas Tribos do Brasil ( NTB) 0959-60, gripe [?};
1967, sarampo). Criança, D a vi Kopenawa perdeu, assim, a m a ior parte
dos membros de sua fa m ília . Em seguida sofreu, e depois rejeitou, o prose­
litism o dos m issionários da NTB, ab a n d on a n d o na adolescência sua
região natàlpara trabalhar na Fundação N acion al do ín d io ÍF u n a í) com o
intérprete. N o com eço dos anos 80, fix ou -s e em Watoriki, a li se casando
com a filh a do líder da comunidade, xa m ã renom ado que o in icio u e, tra­
dicionalista convicto, perm anece seu mentor. Ele é hoje a um só tempo chefe
do posto indígena D em in i e um dos mais influentes xamãs de Watorikt
A invasão de suas terras p o r cerca de 30 a 40 m il garimpeiros custou a
vida, entre 1987 e 1990, de mais de m il Yanom am i no Brasil. Chocado
com essa tragédia que reavivou nele a lem brança das que dizim aram sua
fa m ília nos anos 60, D a vi Kopenawa engajou-se em um a luta incansável
contra a destruição de seu p ovo e da floresta de sua terra. Graças a sua
experiência dos brancos e ã f i rm eza intelectual que Ihejsanfere^o^saber
xa m a n ístico, torn ou -se rapidam ente o p r in c ip a l p o rta -v o z da causa
ya n om a m i, no Brasil e no m undo. Visitou, ao longo dos anos 80 e 90,
vários países da E uropa e os Estados Unidos. Recebeu, depois de C hico
Mendes, o prêm io G lobal5 0 0 do P rogram a das Nações Unidasp a ra oM eio
A m biente e, recentemente, a Ordem de R io B ra n co ao g ra u de cavaleiro.

B.A.

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D O S ESPÍRITOS CANIBAIS

Há muito tempo, meus avós, que habitavam M õra m a h i araopi, um„


casa situada muito longe, nas nascentes do rio Toototobi, iam às vezes visi­
tar nas terras baixas outros Yanomami estabelecidos ao longo do rio Aracá.
Foi lá que encontraram os primeiros brancos. Esses estrangeiros coleta­
vam fibra de palmeira piaçaba ao longo do rio .3Durante essas visitas nos­
sos mais velhos obtiveram seus primeiros facões. Eles me contaram isso
muitas vezes quando eu era criança. Naquele tempo, eles só encontravam
brancos ao viajar muito longe de sua aldeia e não iam vê-los sem motivo,
simplesmente para visitá-los. Haviam visto suas ferramentas metálicas e as
cobiçavam, pois possuíam apenas pedaços de metal que Omama deixa-
ra.2Era durante essas longas viagens que, de vez em quando, êIes~conse-
guiam obter um facão ou mesmo um machado. Trabalhavam então em
suas plantações emprestando-os uns aos outros. Quando um tinha aberto
sua plantação, passava-os a um outro e assim por diante. Eles empresta­
vam também essas poucas ferramentas metálicas de uma aldeia a outra.
Não era para procurar fósforos que iam ver os brancos tão longe, não:
tinham seus paus de cacaueiro para fazer fogo. Evidentemente, eles acha­
vam as panelas de alumínio muito bonitas, mas tampouco era por isso que
faziam aquelas viagens: também tinham vasilhas de terracota para co zi­
nhar sua caça. Era realmente por seus facões e seus machados que iam
visitar aqueles estrangeiros. ’ ~— ------- ----------“
Mas foi bem mais tarde, quando habitávamos M arakana, mais para
o lado da fo z do rio Toototobi, que os brancos visitaram nossa casa pela
primeira vez. Na época, nossos mais velhos estavam ainda todos vivos e
éramos muito numerosos, eu me lembro. Eu era um menino, mas com e­
çava a tomar consciência das coisas. Foi lá que com ecei a cresce r e desco­
bri os brancos. Eu nunca os vira, não sabTãmãHãYfeles. N em m esm o
pensava que eles existissem. Quando os avistei, chorei de medo. Os adul­
tos já os haviam encontrado algumas vezes, mas eu, nunca! Pensei que
e ram espíritos canibais e que iam nos devorar. Eu os achava“müitcTfelos,
esbranquiçados e péludosTE1es êfam tãotííférentes que me aterrorizavam.
AlénTcfissò, não compreendia nenhuma de suas palavras emaranhadas.
Parecia que eles tinham uma língua de fantasmas. Eram pessoas da
"Comissão".3Os mais velhos diziam que eles roubavam as crianças, que já
as haviam capturado e levado com eles quando tinham subido o rio Mapu-
laú, no passado.1'Era por isso também que eu tinha muito medo: estava
certo de que também iam me levar. Meus avós já haviam contado muitas
vezes essa história, eu os ouvira dizer: “Sim, esses brancos são ladrões de

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crianças!”, e tinha muito medo. Por que eles levaram aquelas crianças? Eu
m e pergunto isso ainda hoje.
Quando aqueles estrangeiros entravam em nossa habitação, minha
mãe me escondia debaixo de um grande cesto de cipó, no fundo de nos­
sa casa. Ela m e dizia então: “Não tenha medo! Não diga uma palavra!”, e
eu ficava assim, tremendo sob meu cesto, sem dizer nada. Eu m e lembro,
n o entanto devia ser realmente muito pequeno, senão não teria cabido
debaixo daquele cesto! Minha mãe me escondia pois também temia que
os brancos me levassem com clcs, com o tinham roubado aquelas crian­
ças, da primeira vez, Era também para me acalmar, pois eu estava aterro­
rizado e só parava de chorar quandcTestava escondido. T o d osõsb en s dos
brancos m e assustavam também: tinha m edo de seus motores, de suas
lâmpadas elétricas, de seus sapatos, de seus óculos e de seus relógios.
Tinha m edo da fumaça de seus cigarros, do cheiro de sua gasolina. Tudo
me assustava, porque nunca vira nada de semelhante e ainda era peque­
no! Mas, quando seus aviões nos sobrevoavam, eu não era o único a ficar
assustado, os adultos também tinham medo; alguns chegavam mesmo a
romper em soluços, e todo mundo fugia para a mata vizinha! Nós somos
habitantes da floresta, não conhecíamos os aviões e estávamos aterroriza­
dos. Pensávamos que eram seres sobrenaturais voadores que iam cair
sobre nós e queimar todosTTodos tínhamos muito m edo de morrer! Eu me
lem bro que também tinha m edo das vo zes que saíam dos rádios e da
explosão dos fuzis que matavam a caça. Perguntava-me o que todas aque­
las coisas que me pareciam sobrenaturais poderiam ser! Perguntava-me
também por que aquelas pessoas tinham vindo até nossa casa.
Mais tarde, realmente com ecei a crescer e a pensar direito, mas con­
tinuei a me perguntar: “O que os brancos vêm fazer aqui? Por que abrem
caminhos em nossa floresta?” . Os mais velhos me respondiam: “Eles vêm
sem dúvida visitar nossa terra para habitar aqui conosco mais tarde!”. Mas
eles não compreendiam nada da língua dos brancos; foi por isso que os
deixaram penetrar em suas terras dessa maneira amistosa. Se tivessem
com preen dido suas palavras, acho que os teriam expulsado. A queles
brancos os enganaram com seus presentes. Deram-lhes machados, facões,
facas, tecidos. Disseram-lhes, para adormecer sua desconfiança: “Nós, os
brancos, nunca os deixaremos desprovidos, lhes daremos muito de nos­
sas mercadorias e vocês se tornarão nossos amigos!”. Mas, pouco depois,
nossos parentes morreram quase todos em uma epidemia, depois em uma
outra. Mais tarde, muitos outros Yanomami novamente morreram quando
a estrada entrou na floresta 5e bem mais ainda quando o s garimpeiros che­
garam ali com sua malária. Mas, dessa vez, eu tinha me tornado adulto e

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pensava direito; sabia realmente o que os brancos queriam ao penetrar em
nossa terra.

DESCOBRIR O DESCOBRIMENTO

Os brancos são engenhosos, têm muitas máquinas e mercadorias,


mas não têm nenhuma sabedoria. Não pensam mais no que eram seus
ancestrais quando foram criados. Nos primeiros tempos, eles eram com o
nós, mas esqueceram todas as suas antigas palavras. Mais tarde, atravessa­
ram as águas e vieram em nossa direção. Depois, repetem que descobri­
ram esta terra. Só compreendi isso quando comecei a compreender sua
língua. Mas nós, os habitantes da floresta, habitamos aqui há longuíssimo
tempo, desde que Omama nos criou. N o com eço das coisas, aqui só havia
habitantes da floresta, seres Humânos,6Os brancos clamam hoje: "Nós des­
cobrimos a terra do Brasil!”. Isso não passa de uma mentira. Ela existe des­
de sempre e Omama nos criou com ela. Nossos ancestrais a conheciam
desde sempre. Ela não foi descoberta pelos brancos! Muitos outros povos,
como os Makuxi, os Wapixana, os Waiwai, os Waimiri-Atroari, os Xavante,
os Kayapó e os Guarani ali viviam também. Mas, apesar disso, os brancos
continuam a mentir para si mesmos pensando que descobriram esta terra!
Como se ela estivesse vazia! Com o se os seres humanos não a habitassem
desde os primeiros tempos!
Os brancos foram criados em nossa floresta por Omama mas ele os
expulsou porque temia sua falta de saí5è3Õrire porque eram perigosos
para nós .7 Ele lhes deu uma terra, muito longe daqui, pois queria nos pro-
tegêTdè suas epidemias e de suas armas. Foi por isso que os afastou. Mas
esses ancestrais dos brancos falaram a seus filhos dessa floresta e suas
palavras se propagaram por muito tempo. Eles se lembraram: “É verdade!
Havia lá, ao longe, uma outra terra muito bela!”, e voltaram para nós. Na
margem desta terra do Brasil aonde eles chegaram viviam outros índios.
Esses brancos eram pouco numerosos e começaram a mentir: “Nós, os
brancos, somos bons e generosos! Damos presentes e alimentos! Vamos
viver a seu lado nesta teira com vocês! Seremos seus amigos!” . Era com
essas mesmas mentiras que tentavam nos enganar desde que também che­
garam a nós. D epois dessas primeiras palavras de mentira eles foram
■embora e falaram entre si. Depois voltaram muito numerosos. N o com e­
ço, sem casa nesta terra, ainda mostravam amizade pelos índios. Tinham
visto a beleza desta floresta e queriam se estabelecer aqui. Mas desde que
se instalaram realmente, desde que construíram suas habitações e abriram
suas plantações, desde que começaram a criar gado e a cavar a terra para

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procurar ouro, esqueceram sua amizade. Começaram a matar as gentes da
floresta que viviam perto deles.
Nos primeiros tempos, os seres humanos eram muito numerosos nes­
ta tenra. É o que dizem nossos mais velhos. Não havia doenças perigosas,
sarampo, gripes, malária. Estávamos sozinhos, não havia garimpeiros para
queimar o ouro, fábricas para produzir ferro e gasolina, carros e aviões. A
floresta e os que a habitavam não estavam o tempo todo doentes. Foi ape­
nas quando os brancos se tomaram muito numerosos que sua fumaça-epi­
dem ia xawcira começou a aumentar e a se propagar por toda parte. Essa
coisa má se tornou muito poderosa e foi assim que as gentes da floresta
começaram a morrer.® Quando viviam sem os brancos nossos ancestrais
não tinham fábricas, caçavam e trabalhavam em suas plantações para fazer
crescer seu alimento. Também não sujavam todos os rios com o esses bran­
cos que agora procuram ouro em nossas terras.
■Nós descobrimos estas terras! Possuímos os livros e, por isso, somos
importantes!", dizem os brancos. Mas são apenas palavras de m entira- Eles
não fizeram mais que tomar as terras das gentes da floresta para se pôr a
devastá-las. Todas as terras foram criadas em uma única vez, as dos brancos
e as nossas, ao mesmo tem po que o céu. Tudo isso existe desde os primei­
ros tempos, quando Omama nos fez existir. É por isso que não creio nes­
sas palavras de descobrir a terra do Brasil. Ela não estava vazia! Creio
que os brancos querem sempre se apoderar de nossa terra, é por isso què
repetem essas palavras. São também as dos garimpeiros a propósito de
nossa floresta: "Os Yanom am i não habitavam aqui, eles vêm de outro
lugarí Esta terra estava vazia, queremos trabalhar nela!”. Mas eu, sou filho
dos antigos Yanomami, habito a floresta onde viviam os meus desde que
nasci e eu não digo a todos os brancos que a descobri! Ela sempre esteve
ali, antes de mim. Eu não digo: "Eu descobri esta terra porque meus olhos
caíram sobre ela, portanto a possuo!”. Ela existe desde sempre, antes de
mim. Eu não digo: "Eu descobri o céu!”. Também não clamo: “Eu desco­
bri os peixes, eu descobri a caça!". Eles sempre estiveram lá, desde os pri­
meiros tempos. D igo simplesmente que também os como, isso é tudo.

O P O V O DAS MERCADORIAS

Quando viajei para longe, vi a terra dos brancos, lá onde havia muito
tempo viviam seus ancestrais. Visitei a terra que eles chamam Eropa. Era
sua floresta, mas eles a desnudaram pouco a pouco cortando suas árvores
para construir suas casas. Eles fizeram muitos filhos, não pararam de
aumentar, e não havia mais floresta. Então, eles pararam de caçar, não
havia mais caça também. Depois, seus filhos puseram-se a fabricar merca­
dorias e seu espírito começou a obscurecer-se por causa de todos esses
bens sobre os quais fixaram seu pensamento. Eles construíram casas de
pedra, para que não se deteriorassem. Continuaram a destruir a floresta,
dizendo-se.- “Nós vamos nos tornar o povo das mercadorias! Vamos fabri­
car muitas delas e dinheiro também! Assim, quando form os realmente
muito numerosos, jamais seremos miseráveis!’’. Foi com esse pensamento
que eles acabaram com sua floresta e sujaram seus rios. Agora, só bebem
água “embrulhada” , que precisam comprar. A água de verdade, a que
corre nos rios, já não é boa para beber.
Nos primeiros tempos, os brancos viviam com o nós na floresta e seus
ancestrais eram pouco numerosos. Omama transmitiu também a eles suas
palavras, mas não o escutaram. Pensaram que eram mentiras e puseram-
se a procurar minerais e petróleo por toda parte, todas essas coisas peri­
gosas que Omama quisera ocultar sob a terra e a água porque seu calor é
perigoso. Mas os brancos as encontraram e pensaram fazer com elas fer­
ramentas, máquinas, carros e aviões. Eles se tornaram eufóricos e se dis­
seram: “Nós somos os únicos a ser tão engenhosos, só nós sabem os
realmente fabricar as mercadorias e as máquinas!”. Foi nesse m omento
que eles perderam realmente toda sabedoria. Prim eiro estragaram sua
própria terra antes de ir trabalhar nas dos outros para aumentar suas mer­
cadorias sem parar. Nunca mais eles se disseram; “Se destruirmos a terra,
será que seremos capazes de recriar uma outra?”.
Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto. A lgu ­
mas cidades são belas, mas seu barulho não pára nunca. Eles correm por
elas com carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Hã muito
barulho e gente por toda parte ._0 espírito se toma obscuro e emaranha-
do, não se pode mais pensar direÍtorÉ~pÕ7 issò que o p ensamento dos
brancos e$tá_chgio de v e rtigem e eles não compreendem nossas palavras.
Eles não fazem mais que dizer: “Estamos muito contentes de rodar e de
voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os Yanomami são
mentirosos!”. O pensamento desses brancos está obstruído, é por isso que
eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até debai­
xo de suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar. Eles
não temem cair no mundo subterrâneo. Porém, é assim. Se os “brancos-
espíritos-tatus-gigantes” [mineradoras] entram por toda parte sob a terra
para retirar os minérios, eles vão se perder e cair no mundo escuro e podre
dos ancestrais canibais.9
Nós, nós queremos que a floresta permaneça com o é, sempre. Q u e­
remos viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíri­
tos xapirípè\ a caça e os peixes. Cultivamos apenas as plantas que nos

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alimentam, não queremos fabricas, nem buracos na terra, nem rios sujos.
Queremos que a floresta permaneçajálen ciosa, que o céu continue claro,
que a escuridão da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas.
As terras dos brancos estão contaminadas, estão cobertas de uma fumaça-
epidemia xawara que se estendeu muito alto no peito do céu. Essa fuma­
ça se dirige para nós mas ainda não chega lá, pois o espírito celeste
H utukararia repele ainda sem descanso. Acima de nossa floresta o céu
ainda é claro, pois não faz tanto tempo que os brancos se aproximaram
de nós. Mas bem mais tarde, quando eu estiver morto, talvez essa fuma­
ça aumente a jponto de estender a escuridão^sobre a terra e de apaRar o
sol. Os brancos nunca pensam nessas coisas que,os xamãs conhecem, é
por isso que eles não têm medo. Seu pensamento está cheio de esqueci­
mento. Eles continuam a fixá-lo sem descanso em suas mercadorias,
com o se fossem suas namoradas.

Tradução do fra n cês de M a ria Lucia M achado

NOTAS

(1 ) O rio Aracá é, com o o rio Toototobi, um afluente d o rio Demini, ele próprio tribu­
tário da margem esquerda d o rio Negro.
(2 ) O s antigos Yanom am i possuíam fragmentos de facões e de m achados muito gas­
tos, que obtinham por um com plexo circuito de trocas interétnicas, mas cuja origem atri­
buíam a O mama, seu herói cultural.
(3 ) Um a equipe da Com issão dos Limites ( c b d l ) subiu o rio Toototobi em 1958-9.
(4 ) Alusão a uma primeira visita da cbdl ao rio Toototobi, em 1941.
(5 ) A br-210 (Perimetral N orte), aberta em 1973A e abandonada em 1976, depois de
cortar duzentos quilômetros a sudeste d o território yanomami.
(6 ) A autodesignação dos Yanom am i — ■ya n o m a e thêpê — significa antes de tudo
“seres humanos", e se aplica também aos outros índios, opondo-se aos animais, aos seres
sobrenaturais e, em certa medida, aos não-índios Çnapèpê).
T7)~Os brancos foram criados por Orifarna a partir d o sangue de um grupo de ances­
trais Yanomami devorados p o r lontras e jacarés numa grande enchente provocada pela que­
bra de um resguardo menstrual.
(8 ) A expressão xawara wakixi ( “epidem ia-fum aça") designa aqui a um só tempo as
epidemias e a poluição, às quais é atribuída a mesma origem: a fusão d o ouro, dos metais
e dos carburantes extraídos da terra para produzir as mercadorias dos brancos e abastecer
seus veículos.
(9 ) O universo yanomami com põe-se de quatro níveis superpostos suspensos em um
“grande vazio”. O m undo subterrâneo foi Formado pela queda d o nível terrestre na aurora
dos tempos. É habitado pelos ancestrais Yanom am i da primeira hum anidade, que se torna­
ram monstros canibais (o s aÕpataripê').
O ETERNO RETORNO D O ENCONTRO

Aiiton Krenafz

Essa capacidad e de p ro je ta r e de co n s tru ir um a interferên cia na


natureza é um a maravilhosa novidade que o Ocidente trouxe p a ra cá;
mas ela desloca a natureza e quem vive em h a rm on ia com a natureza
p a ra um outro lu ga r qu e é fora do Brasil, que ê na periferia do Brasil. Uma
outra m argem é um a outra m argem do O cidente mesmo, é um a outra
m argem onde cabe a idéia do Ocidente, cabe a idéia de progresso, cabe a
idéia de desenvolvimento.

Quando fui convidado a participar desta série de conferências e a


falar sobre o contato entre as nossas culturas, entre os nossos povos, achei
que seria uma boa oportunidade para reportar algumas das narrativas anti­
gas de muitas das nossas tradições, das .diferentes tribos que vivem hoje
nesta região da América que identificamos com o o Brasil mas que, natu­
ralmente, bem antes de identificarmos com o essa região geográfica do
Brasil, já vinha fazendo história. Os registros dessa memória, dessa histó­
ria, estão tomados de falas, de narrativas em aproximadamente quinhen­
tas líng uas diferentes, só daqui da Am érica do Sul. Essas narrativas são
narrativas que datam dos séculos xvtr, xvm, na língua de alguns povos que
nem existem mais. Desde o século xvm, já eram escritas em alemão, inglês,
e distribuídas na Europa, narrativas muito importantes falando da criação
do mundo, falando dos eventos que deram origem aos sítios sagrados,
onde cada um dos nossos povos antigos viveu na Antiguidade e continua
vivendo ainda hoje. Fico admirado de reconhecermos que em mais de qui­
nhentas línguas e durante aproximadamente trezentos a quatrocentos
anos são divulgados textos, com o o texto muito importante que tem o títu­
lo de Xilã Balã. O Xilã Balã é um texto sagrado, que tem tanta importância

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para os Maya quanto os textos sagrados da cultura do Ocidente, com o a
Bíblia ou o Alcorão. São textos que fundam a tradição e a memória — útero
da cultura que cada uma dessas antigas tradições tem do ser social, da his­
tória, do mundo, da realidade circundante, e a minha admiração é que es­
ses textos maravilhosos já tenham sido divulgados há tanto tem po, e
mesmo assim a maioria das pessoas continue ignorando essas fontes de
nossa h istória antiga.
Com o essa história do contato entre os brancos e os povos antigos
daqui desta parte do planeta tem se dado? Com o temos nos relacionado
ao longo desses quase quinhentos anos? Ê diferente para cada uma das
nossas tribos o tempo e a própria noção desse contato?
Em cada uma dessas narrativas antigas já havia profecias sobre a vin­
da, a chegada dosjbrancos. Assim, algumas dessas narrativas, que datam
de 2 , 3 , 4 mil anos atrás, já falavam da vinda desse outro nosso irmão, sem­
pre identificando d e com o alguém q ue saiu do nosso convívio e nós não
sabíamos mais onde estava. Ele foi para muito longe e ficou vivendo'por
muitas emuitas gerações longe da gente. Ele aprendeu outras tecnologias,
desenvolveu outras linguagens e aprendeu a se organizar de maneira dife­
rente de nós. E nas narrativas antigas ele aparecia de novo com o um sujei-
to que estava voltando para casa, mas não se sabia mais d q u e ele pensava,
nem o que ele estava buscando. E apesar de ele ser sempre anunciado
com o nosso visitante, que estaria voltando para casa, estaria vin do de
novo, não sabíamos mais exatamente o que ele estava querendo. E isso
ficou presente em todas essas narrativas, sempre nos lembrando a profe-
cia ou a ameaça da vinda d o s brancos como, ao mesmo tempo, a prom es­
sa de ligar, de reencontrar esse nõsso irmão antigo. Tanto nos textos mais
antigos, nas narrativas que foram registradas, com o na fala de hoje dos
nossos parentes na aldeia, sempre quando os velhos vão falar eles com e­
çam as narrativas deles nos lembrando, seja na língua do meu povo, onde
nós vam os chamar o branco deJ tra t, ou na língua dos nossos outros
parentes, com o os Yanomami, que chamam os brancos de Napê, E tanto
os K r a ícom o os Napê sempre aparecem nas nossas narrativas marcando
um lugar de oposição constante no mundo inteiro, não só aqui neste lugar
da América, mas no mundo inteiro, mostrando a diferença e apontando
aspectos fundadores da identidade própria de cada uma das nossas tradi­
ções, das nossas culturas, nos mostrando a necessidade de cada um de nós
reconhecer a diferença que existe, diferença original, de que cada povo,
cadatradição e cada cuítura é portadora^ é herdeira. Só quando conseguir­
mos reconhecer essa diferença não com o defeito, nem com o oposição,
mas com o diferença da natureza própria de cada cultura e de cada povo,
só assim poderemos avançar um pouco o nosso reconhecimento do outro

24
e estabelecer uma convivência mais verdadeira entre nós. Os fatos e a his­
tória recente dos últimos quinhentos anos têm indicado que o tempo desse
encontro entre as nossas culturas é um tempo que a co n tece T sêT e p eíe
todõcliã.Tsfãõ houve um encontro entre as cültriraTcíõspõvos doO cidente
eTcuhu ra do continente americano numa data e num tempo demarcado
que pudéssemos chamar de 1500 ou de 1800. Estamos convivendo com
esse contato desde sempre. Se pensarmos que hã quinhentos anosalgu-
ifíãscãnoas aportaram aqui na nossa praia, chegando com os primeiros
viajantes, com os primeiros colonizadores, esses mesmos viajantes, eles
estão chegando hoje às cabeceiras dos altos rios lá na Amazônia. De vez
em quando a televisão ou o jornal mostram uma frente de expedição
entrando em contato com um povo que ninguém conhece, com o recen­
temente fizeram sobrevoando de helicóptero a aldeia dos Tamináwa, um
p o vo que vive na cabeceira do rio Jordão, lã na fronteira com o Peru, no
estado do Acre. Os Jamináwa não foram ainda abordados, continuam
perambulando pelas florestas do alto rio Juruã, nos lugares aonde os bran­
cos estão chegando somente agora!
Poderíam os afirmar, então, que para os Jamináwa 1500 ainda não
aconteceu. Se eles conseguirem atravessar aquelas fronteiras, subirem a
serra do divisor e virarem do lado de lá do Peru, o 1500 pode acontecer só
lá pelo 2010. Então eu queria partilhar com vocês essa noção de que o con­
tato entre as nossas culturas diferentes se dá todo dia. N o amplo evento da
história do Brasil o contato entre a cultura ocidental e as diferentes, cultu-
msTcIas nossasjtribosacontece to d o ano, acontece todo dia, e em alguns
casos se repete, com gente que encontrou os brancos, aqui no litoral,
duzentos anos atrás, foram para dentro do Brasil, se refugiaram e só
encontraram os brancos de n ovo agora, nas décadas de 30,40, 50 ou mes­
mo na década de 90. Essa grande movimentação no tempo e também na
geografia de nosso território e de nosso p o vo expressa uma maneira pró­
pria das nossas tribos de estar aqui neste lugar.

TERRITÓRIOS TRADICIONAIS

O território tradicional do meu p o vo vai do litoral do Espírito Santo


até entrar nas serras mineiras, entre o vale do rio D oce e o São Mateus.
Mesmo que hoje só tenhamos uma reserva pequena no médio rio D oce,
quando penso no território do meu povo, não penso naquela reserva de
4 mil hectares, mas num território onde a nossa história, os contos e as nar­
rativas do meu p o v o vão acendendo luzes nas montanhas, nos vales,
nomeando os lugares e identificando na nossa herança ancestral o fúnda-

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mento da nossa tradição. Esse fundamento da tradição, assim com o o tem­
po do contato, não é um mandamento ou uma lei que a gente segue, nos
reportando ao passado, ele é vivo com o é viva a cultura, ele é vivo com o
é dinâmica e viva qualquer sociedade humana. É isso que nos dá a possi­
bilidade de sermos contemporâneos, uns dos outros, quando algumas das
nossas famílias ainda acendem o fo g o friccionando uma varinha no terrei­
ro da casa ou dentro de casa, ou um caçador, se deslocando na floresta e
fazendo o seu fo g o assim — auto-sustentável.

Essa simultaneidade que temos tido a oportunidade de viver é uma


riqueza muito especial e um dos maiores tesouros que temos. O professor
Darcy Ribeiro costumava dizer que a maior herança que o Brasil recebeu
dos índios não foi propriamente o território, mas a experiência de viver em
sociedade, a nossa engenharia social. A capacidade de viver junto sem se
matar, reconhecendo a territorialidade um do outro como elemento funda­
dor também da sua identidade, da sua cultura e do seu sentido de humani­
dade. Esse entendimento de que somos povos que temos esse patrimônio
e essa riqueza tem sido o principal motivo e a principal razão de eu me
dedicar cada vez mais a conhecer a minha cultura, conhecer a tradição do
meu p o vo e reconhecer também na diversidade das nossas culturas o que
ilumina a cada época o nosso horizonte e a nossa capacidade com o socie­
dades humanas de ir melhorando, pois se tem uma coisa que todo mundo
quer é melhorar. Os índios, os brancos, os negros e todas as cores de gente
e culturas no mundo anseiam por melhorar.

O CONTA TO ANUNCIADO

Na história do p o vo Tikuna. que vive no rio Solimões, na fronteira


com a Colômbia, temos dois irmãos gêmeos, que são os heróis fundado­
res desta tradição, que estavam lã na Antiguidade, na fundação do mun­
do, quando ainda estavam sendo criadas as montanhas, os rios, a floresta,
que nós aproveitamos até hoje... Quando esses dois irmãos da tradição do
p o vo Tikuna, que se chamam Hi-pí -— o mais velho ou o que saiu primei­
ro — e j o - l — seu companheiro de aventuras na criação do mundo tiku­
na — , quando eles ainda estavam andando na terra e criando os lugares,
eles iam andando juntos, e quando o jo - í tinha uma idéia e expressava essa
idéia, as coisas iam se fazendo, surgindo da sua vontade. O irmão mais
velho dele vigiava, para ele não ter idéias muito perigosas, e quando per­
cebia que ele estava tendo alguma idéia esquisita, falava com ele para não

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pronunciar, não contar o que estava pensando, porque ele tinha o poder
de fazer aconteceras coisas que pensava e pronunciava. Então, Jo-í subiu
num pé de açaí e ficou lá em cima da palmeira, bem alto, e olhou longe,
quanto mais longe ele podia olhar, e o irmão dele viu que ele ia dizer algu­
ma coisa perigosa, então Hi-pí falou: "Olha, lã muito longe está vindo um
povo, são os brancos, eles estão vindo para cã e estão vindo para acabar
com á gente". O irmão dele ficou apavorado porque ele falou isso e disse:
“Olha, você não podia ter falado isso, agora que você falou isso vo cê aca­
bou de criar os brancos, eles vão existir, pode demorar muito tempo, mas
eles vão chegar aqui na nossa praia” . E, depois que ele já tinha anuncia­
do, não tinha com o desfazer essa profecia. Assim as narrativas antigas, de
mais de quinhentas falas ou idiomas diferentes, só aqui nessa região da
América do Sul, onde está o Brasil, Peru, Bolívia, Equador, Venezuela, nos
lembram que os nossos antigos já sabiam desse contato anunciado.
Os Tikuna têm suas aldeias parte no Brasil e outra na vizinha Colômbia.
Os Guarani partilham o território dessas fronteiras do sul entre Paraguai,
Argentina, Bolívia. Em todos esses lugares, áreas de colônia espanhola,
áreas de colônia portuguesa, inglesas, os nossos parentes sempre reconhe­
ceram na chegada do branco o retom o de um irmão“ que foi embora há
muito tempo, e que indo embora se retirou também no sentido de huma­
nidade, que nós estávamos construindo. Ele é um sujeito que aprendeu
muita coisa longe de casa, esqueceu muitas vezes de onde ele é, e tem difi­
culdade de saber para onde está indo.
Por isso que os nossos v e lhos dizem: “Você não pode se esquecer de
onde você é e nem de onde vo cê veio, porque^issim v o c ê^sabcLq u em você
é e para onde você vai”. Isso não é importante só.para a pessoa d ó indiví­
duo, é importante para o coletivo, é importante para uma comunidade
■humana saber quem ela é, saber para onde ela está indo. Depois os bran­
cos chegaram aqui em grandes quantidades, eles trouxeram também jun­
to com eles outros povos, daí vêm os pretos, por exemplo. Os brancos
vieram para cá porque queriam, os pretos eles trouxeram na marra. Talvez
só agora, no século xx, é que alguns pretos tenham vindo da América para
cá ou da África para cá por livre e espontânea vontade. Mais foi um m ovi­
mento imenso. Imagine que movim ento fantástico que aconteceu nos últi­
mos três, quatro séculos, trazendo milhares e milhares de pessoas de
outras culturas para cá. Então meu p o v o Krenak, assim com o nossos
outros parentes das outras nações, nós temos recebido a cada ano esses
povos que vêm para cá, ven do eles chegarem no nosso terreiro. Nós vimos
chegar os pretos, os brancos, os árabes, os italianos, os japoneses. Nós
vimos chegar todos esses povos e todas essas culturas. Somos testemu­
nhas da chegada dos outròs aqui, os que vêm com antiguidade, e mesmo

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os cientistas e os pesquisadores brancos admitem que sejam de 6 mil, 8 mil
anos. Nós não podem os ficar olhando essa história do contato com o se
fo sse um eventcqgormguês. O encontro com as nossas culturas, ele trans­
cende a essa cronologia do descobrimento da América, ou das circunave­
gações, é muito mais antigo. Reconhecer isso nos enriquece muito mais e
nos dá a oportunidade de ir afinando, apurando o reconhecimento entre
essas diferentes culturas e “formas de ver e estar no m undo” que deram
fundação a esta nação brasileira, que não pode ser um acampamento,
deve ser uma nação que reconhece a diversidade cultural, que reconhece
206Jínguas que ainda.são faladas aqui, além do português. Então para­
béns, vocês vêm de um lugar onde tem gente falando duzentos e tantos
idiomas, inclusive na língua borum, que é a fala do meu povo, é uma rique­
za nós chegarmos ao final do século xx ainda podendo tocar, compartir
um elemento fundador da nossa cultura e reconhecer com o riqueza, com o
patrimônio. O encontro e o contato entre as nossas culturas e os nossos
povos, ele nem começou ainda e às vezes parece que ele já terminou.
Quando a data de 1500 é vista com o marco, as pessoas podem achar que
deviam demarcar esse tempo e comemorar ou debaterem de uma manei­
ra demarcada de tempo o evento de nossos encontros. Os nossos encon­
tros, eles ocorrem todos os dias e vão continuar acontecendo, eu tenho
certeza, até o terceiro milênio, e quem sabe além desse horizonte. Nós
estamos tendo a oportunidade de reconhecer isso, de reconhecer que
existe um roteiro de um encontro que se dá sempre, nos dá sempre a opor­
tunidade de reconhecer o Outro, de reconhecer na diversidade e na rique­
za da cultura de cada um de nossos povos o verdadeiro patrimônio que
nós temos, depois vêm os o utros recursos, o território, as florestas, os rios,
ashiquezas naturais, as nossas tecnologias e a nossa capacidade de articu­
lar desenvolvimento, respeito pela natureza e principalmente educação
para a liberdade.
Hoje nós temos a vantagem de tantos estudos antropológicos sobre
cada uma das nossas tribos, esquadrinhadas por centenas de antropólo­
gos que estudam desde as cerimônias de adoção de nome até sistemas de
parentesco, educação, arquitetura, conhecimento sobre botânica. Esses
estudos deveriam nos ajudar a entender melhor a diversidade, conhecer
um pouco mais dessa diversidade e tornar mais possível esse contato. Me
parece que esse contato verdadeiro, ele exige alguma coisa além da von ­
tade pessoal, exige mesmo um esforço da cultura, que é um esforço de
ampliação e de iluminação de ambientes da nossa cultura comum que ain­
da ocultam a importância que o Outro tem, que ainda ocultam a importân­
cia dos antigos moradores daqui, os donos naturais deste território. A
maneira que essa gente antiga viveu aqui foi deslocada no tempo e tam­

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bém no espaço, para ceder lugar a essa idéia de civilização e essa idéia do
Brasil com o um projeto, com o alguém planeja Brasília lã no Centro-Oeste,
vai e faz.
Essa capacidade de projetar e de construir uma interferência na natu-
reza, ela é urhã maravilhosa novidade que o Ocidente trouxe para cá, mas
ela desloca a natureza e quem vive em harmonisfcom a natureza para um
outro lugar, que é fora do Brasil, que é na periferia do Brasil. Uma outra
margem, é uma outra margem do Ocidente mesmo, é uma outra margem
onde cabe a idéia do Ocidente, cabe a idéia de progresso, cabe a idéia de
desenvolvimento. A idéia mais comum que existe é que o desenvolvim en­
to e o progresso chegaram naquelas canoas que aportaram no litoral e que
aqui estava a natureza e a selva, e naturalmente os selvagens. Essa idéia
continua sendo a idéia que inspira todo o relacionamento do^Brasil com
as sociedades tradicionais daqui, continua; então, mais do que um esfor­
ço pessoal de contato com o Outro, nós precisamos influenciar de manei-
rajdecisiva a política pública do Estado brasileiro.
Esses gestos de aproximação e de reconhecimento, eles podem se
expressar também numa abertura efetiva e maior dos lugares na mídia, nas
universidades, nos centros de estudo, nos investimentos e também no
acesso das nossas famílias e do nosso povo àquilo que é bom e àquilo que
é considerado conquista da cultura brasileira, da cultura nacional. Se con­
tinuarmos sendo vistos com o os que estão para serem descobertos e vir­
mos também as cidades e os grandes centros e as tecnologias que são
desenvolvidas somente com o alguma coisa que nos ameaça e que nos
exclui, o encontro continua sendo protelado. Tem um esforço comum que
nós podem os fazer que é o de difundir mais essa visão de que tem impor­
tância sim a nossa história, que tem importância sim esse nosso encontro,
e o que cada um desses povos traz de herança, de riqueza na sua tradição,
tem importância, sim.
Quase não existe literatura indígena publicada no Brasil. Até parece
que a única língua no Brasil é o português e aquela escrita que existe é a
escrita feita pelos brancos. É muito importante garantir o lugar da diversi­
dade, e isso significa assegurar que mesmo uma pequena tribo ou uma
pequena aldeia guarani, que está aqui, perto de vocês, no Rio de Janeiro,
na serra do Mar, tenha a mesma oportunidade de ocupar esses espaços
culturais, fazendo exposição da sua arte, mostrando sua criação e pensa­
mento, mesmo que essa arte, essa criação e esse pensamento não coinci­
dam com a sua idéia de obra de arte contemporânea, de obra de arte
acabada, diante da sua visão estética, porque senão você vai achar bonito
só o que vo cê faz ou o que você enxerga. Nosso encontro — ele pode

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começar agora, pode começar daqui a um ano, daqui a dez anos, e ele
ocorre todo o tempo.
JEierrçXlastres, depois de conviver um pouco com os nossos paren­
tes Nhandevá e JVTbiã, concluiu que somos sociedades que naturalmente
nos organizamos de uma maneira contra o Estado; não tem nenhuma id eo­
logia nisso, somos contra naturalmente, assim com o o vento vai fazendo
o caminho dele, assim com o a água do rio faz o seu caminho, nós natural­
mente fazemos um caminho que não afirma essas instituições com o fun­
damentais para a nossa saúde, educação e felicidade.
Desde os primeiros administradores da Colônia que chegaram aqui,
a única coisa que esse poder do Estado fez foi demarcar sesmarias, entre­
gar glebas para senhores feudais, capitães, implantar pátios e colégios
com o este daqui de São Paulo, fortes com o aquele lã de Itanhaém. Nossa
esperança é que o desenvolvimento das nossas relações ainda possa nos
ajudar a ir criando formas de representação, formas de cooperação, for­
mas de gerenciamento das relações entre nossas sociedades, onde essas
instituições se tom em mais educadas, é uma questão de educação. Se o
progresso não é partilhado por todo mundo, se o desenvolvimento não
enriqueceu e não propiciou o acesso â qualidade de vida e ao bem-estar
para todo mundo, então que progresso é esse? Parece que nós tínhamos
muito mais progresso e muito mais desenvolvim ento quando a gente
podia beber na agua de todos os rios daqui, que podíamos respirar todos
os ares daqui e que, com o diz o Caetano, alguém que estava lã na praia
p o dia estender a mão e pegarum caju.
Tem uma música do Caetano, tem uma poesia dele que fala disso, o
nativo levanta o braço e pega um caju. As pessoas estão preferindo em
nome do progresso instalar aquelas casas com aquelas placas luminosas e
distribuir Coca-Cola na praia.

À M ARGEM N O ORIENTE

N o norte d oja p ã o tem.uma ilha que se chama Hokaido, lá vive o p ovo


Ainu, tem um porto nessa ilha que se chama Nibutani, é uma palavra ainu
que dá nom e para esse lugar, assim com o aquela montanha bonita lá em
Tóquio, no Japão, o monte Fuji, também reporta uma história muito anti­
ga do povo Ainu, uma história muito bonita, de uma mãe que ficou senta­
da esperando o filho que foi para a guerra e que não retornava, passou o
inverno, passaram as estações do ano e ela ficou cantando, esperando o fi­
lho voltar e o filho demorava demais, então ela chorava de saudade do
filho; as lágrimas dela foram formando aquela montanha e o lago, e toda

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aquela paisagem linda é dessa mãe que ficou com saudade do filho que
saiu para a guerra e que não voltou, então ficou chorando por ele. Os Alnu
estão lá em Hokaido hã mais ou menos uns oitocentos anos, talvez mais
um pouco, porque eles foram tendo que subir lá para cima, que é o lugar
mais gelado, liberando aqueles territórios cã de baixo para a formação des­
ses povos que vieram subindo. O Japão agora no final do século xx é uma
das nações mais tecnológicas, digamos assim, do mundo, mas eles não
puderam negar a existência dos Ainu, eles negaram isso até agora. Na
década de 70 alguns Ainu conseguiram chegar à comissão da o n u que tra­
ta desses assuntos e apresentaram uma questão para o governo do Japão:
querem reconhecimento e respeito pela suá identidade e cultura. Q ui­
nhentos anos não é nada.

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