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Ie ne fay rien

s a n s

G a y e t é
(Montaigne, Des livres)

E x L i b r i s

J o s é M i n d l i n
JOÃO DO RIO
(PAULO IMUUETO)

A j S

RELIGIÕES NO

GAZETA DE NOTICIAS

1904
a,

a n u e í J J o z g e d e Ô l í v e í z a c f y o c h a o

meu amigo.

A religião'? Um myslerióso sentimento, mixlo de terror e de esperança, a
sijmhnlisaçâo lugubre oa alegre de um poder que não lemos e almejamos ter, o
desconhecido avassalador, o equivoco, o medo, a perversidade...
O Rio. como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua
um templo e em cada homem uma crença diversa.
Ao ler os grandes diários imagina a gente que está rínm paiz essencialmente
calhnlico. onde alguns mathemalicos são positivistas. Entretanto, a cidade pul-
lula de religiões. Basta parar em qualquer esquina, interrogar. A diversidade
dos cultos espanlar-vos-á. São swendeborgcanos, pagãos litterarios, physiolatras,
defensores de dogmas exóticos, auclores de reformas da Vida, reveladores do Fa-
turo, amantes do Diabo, bebedores de sangue, descendentes da rainha de Sabá,
judeus, schismaticos, espiritas, babalãos de Ldos, mulheres que respeitam o oceano,
Iodos os cultos,todas as crenças, todas as forças do Susto. Quem atra vez a calma do sent-
ada iite lhes adivinhará as tragédias da alma? Quem na^eu andar tranqnillo de homens
sem paixões irá descobrir os reveladores de ritos novos, os mágicos, os nevros
palhas, os delirantes, os possuídos de Salanaz, os myslagogos da Morlc, do Mar e
do Arco íris? Quem poderá perceber ao conversar com estas crealuras a lucla
fralricida por causa da interpretação da Biblia, a lucla que faz mil religiões, à
espera de Jesus, cuja reapparição está marcada para qualquer destes dias, e a vinda
do A nle-Chrislo, que talvez ande por ahi ? Quem imaginará cavalheiros dislinetos'
em intimidade com as ahnas desencarnadas, quem desvendará a conversa com os
anjos nas chambergas frtidas?
Elles vão por ahi, papas, prophctas, crentes e re veladores, orgulhosos cada um
di "'u culto, o único que é a Verdade . Faltai-lhes boamente, sem a lenção de ag-
gredil-os, e cllrs se confessarão : porque só numa cousa é impossível ao homem
enganar o seu semelhante, na fé.
Foi o que fiz na reportagem a que a «Gazela de Noticias» emprestou uma
lãn larga hospitalidade e um tão grande ruído; foi esle o meu esforço : levantar
um pouco o mgslerio das crenças nesta cidade.
Não è um trabalho completo. Longe disso. Cada uma dessas religiões daria
farta mésse para um volume de revelações. Eu apenas entrevi a bondade, o mal e
o bizarro dos cultos, mas tão convencido e com tal desejo de ser e.cacto que bem
pode servir de epigraphe a este livro aphrase de Montaigne:

« Cecy esl un livre de bonne fog. »


JoÃo DO RIO.
N O M U N D O D O S F E I T I Ç O S
»

*
O S F E I T I C E I R O S
A n t ô n i o 6 c o m o d q u e í l c s adolescentes africanos de que
falia o e s j r i p t o r írígíez. Os adolescentes sabiam dos deusès
c a t h o l i c o s e d o s seus p r ó p r i o s d e u s e s , m a s só verierávám o
wiskey e o schilling.
À n t o n i o c o n h e c e m u i l o b e m N . S. d a s D o r e s , e s t á f â m i -
h a n s a d o c o r n o s orixalás da A t r i e a , mas s ó respeita o papel
moeda e o vinho do Perto. Graças a esses d o ü s poderosos
agentes, gozei da i n t i m i d a d e de A n t ô n i o , n e g r o intelligchte
e vivaz ; graças á A n t ô n i o , C o n h e c i as casas d a s ruás de
S ã o D i o g o , B a r ã o de S. í^elix, í l o s p i c i o , N ú n c i o e d a A m è r i c á ,
o n d e se r e a í í s a m os candomblés e v i v e m os p a i s de santo. E
r e n d i g r a ç a s á Deus, p o r q u e n ã o ha de certo, em toda a
cidade, meio t â o interessante.
— V a i V . S. a d m i r a r m u i t a c o u s a ! d i z i a A n t ô n i o a ábr 1

rir, e dizia a verdáde.


Da grande quantidade de escravos africanos vindos
paro o Rio no tempo do Brazií colônia e do Bràzil monarefiia,
r e s t a m u n s m i l n e g r o s . S ã o todos das pequerids nações do
interior da África, p e r t e n c e m aos igcsâ, oiú, ebá, ab&umi,
kaussd, itaqua, o u se consideram filhos d o s iboxilrh, ixáü e
d o s gêge. A l g u n s ricos m a n d a m a d e s c e n d ê n c i a brasileirâ á
Á f r i c a para estudar a religião., o u t r o s d e i x a m c o m o dote aos
filhos cruzados d a q u i , os m y s t e r i o s e á s f e i t i ç a r i a s . Todos
porem, faliam entre si u m i d i o m a cómmum :— o eubá.
A n t ô n i o , que estudou e m Lagos, dizia:
— Ò eubá p a r a os a f r i c a n o s é c o m o i n g l e z p a r a os p-ovol
I

c i v i l i s a d o s . Q u e m f a l i a eúbá pode atravessar a África e viver


e n t r e os m i n a s d o R i o , c o n v e r s a n d o c o m os orixás e os alufás.
—Orixás, ulufás? fiz eu, a d m i r a d o .
— S ã o duas religiões i n t e i r a m e n t e diversas. V a i ver.
C o m e f f e i t o . Os negros africanos dividem-se em duas
grandes c r e n ç a s : os orixás e os alufás.
O s orixás, e m m a i o r n u m e r o , s ã o os m a i s c o m p l i c a d o s e
os m a i s a n i m i s t a s . L i t h o l a t r a s e p h i t o l a t r a s . t e m u m e n o r m e
a r s e n a l d e s a n t o s , c o n f u n d e m os s a n t o s c a t h o l i c o s c o m os
seus s a n t o s , e vivem a vida dupla, encontrando em cada
p e d r a , e m cada casco dc tartaruga, em cada herva, uma
a l m a e u m e s p i r i t o . Essa espécie de p o l y t h e i s m o bárbaro
t e m d i v i n d a d e s q u e se m a n i f e s t a m e d i v i n d a d e s invisiveis.
Os n e g r o s g u a r d a m a idéa de um Deus absoluto como o
Deus çatholico : Orixá-alúm. A lista dos santos é i n f i n d á v e l .
H a o orixalá, q u e é o m a i s v e l h o , Axum, á m ã e d'agua doce,
Ye-man-já, a s e r e i a , Exú, o diabo, que anda sempre de trás
d a p o r t a , Sapanam, o santissimo s a c r a m e n t o dos .catholicos,
o Irocô, c u j a a p p a r i ç ã o se[faz n a a r v o r e s a g r a d a dagameleira,
o Gunocô, t r e m e n d o e g r a n d e , o Ogum, S. J o r g e ou o Deus r

d a g u e r r a , a Babá, a Orainha, que s ã o invisiveis, e muitos


o u t r o s c o m o o santo d o t r o v ã o e o santo das hervas. A j u n t a r
a essa c o l l e ç ã o c o m p l i c a d a , t e m os n e g r o s a i n d a os e s p i r i t o s
máose os heledás o u anjos da guarda.
E' natural que para corresponder á hierarchia celeste
seja n e c e s s á r i a uma h i e r a r c h i a ecclesiastica. As creaturas
vivem e m poder do invisivel e só q u e m t e m estudos e pre-
p a r o p o d e s a b e r o q u e os s a n t o s q u e r e m . H a p o r isso g r a n d e
q u a n t i d a d e de a u c t o r i d a d e s r e l i g i o s a s . A ' s vezes encontra-
m o s nas r u a s n e g r o s r e t i n t o s q u e m a s t i g a m s e m cessar. S ã o
babalaôs, mathen.aticos geniaes, sabedores dos segredos
s a n t o s e d o f u t u r o d a g e n t e , s ã o babás que atiram o endilogum
13

— N ã o é possível fallar agora. Elle está rezando e não


quer conversar.
Sahimos elogo na rua encontramos o Xico Mina. Esse
veste c o m o q u a l q u e r de n ó s t e r n o s claros e usa suissas cor-
tadas r e n t e . J á o conhecia de o ver nos cafés concorridos,
c o n v e r s a n d o c o m a l g u n a d e p u t a d o s . Q u a n d o nos v i u , passou
rápido.
— E s t á c o m m e d o de p e r g u n t a s . X i c o g o s t a de fingir.
Entretanto no trajecto que fizemos do largo da Carioca
á p r a ç a da A c c l a m a ç ã o , encontramos, afóra u m esverdeado
discípulo de A l i k a l i , — O m a n c h e o , c o m o elles d i z e m , duas
m ã i s , d e s a n t o , u m v e l h o babahô e dous babaloxâs.
N ó s i a m o s á casa d o v e l h o m a t h e m a t i c o Oloô-Teté.
A s casas d o s minas conservam a sua apparencia de
o u t r o r a , m a s e s t ã o cheias de negros bahianos e de mulatos.
S ã o quasi sempre r ó t u l a s lobregas, onde v i v e m c o m o per-
sonagem principal cinco seis e m a i s pessoas. N a s salas,
moveis quebrados e sujos, esteirinhas, bancos; por cima
das mesas t e r r i n a s , p u c a r i n h o s de agua, c h a p é o s de palha,
hervas, pastas de oleado o n d e se g u a r d a o obelé ; n a s pare-
des a t a b a q u e s , v e s t u á r i o s esquisitos, vidros ; e no quintal
quasi s e m p r e j a b o t y s , gallinhas pretas,"gallos e cabritos.
Ha na atmosphera um cheiro carregado de azeite de
d e n d ê , p i m e n t a d a Costa e c a t i n g a . Os p r e t o s f a l i a m d a f a l t a
de t r a b a l h o f u m a n d o grossos c i g a r r o s de palha. N ã o fosse
a credulidade, a vida ser-lhes-ia difficil,'porque em cada
u m d o s seus g e s t o s r e v e l a - s e u m a l o m b e i r a secular.
A l g u n s velhos passam a vida sentados a d o r m i t a r .
— E s t á p e n s a n d o ! d i z e m os outros.
D e r e p e n t e , os p o b r e s velhos i n g ê n u o s accordam, com
u m sonho mais f o r t e nessa confusa existência de pedras
a n i m a d a s e hervas c o m espirito.
n

—Sango d i z que eu t e n h o de fazer s a c r i f í c i o !


Sango, o deus do t r o v ã o , o r d e n o u no somno, e o obeié,
f e i t o d e cascas d e t a r t a r u g a e b a p t i s a d o c o m sangue, cai na
mesa enodoada para dizer com que s a c r i f í c i o se contenta
Sango.
O u t r o s , os m a i s m a l a n d r o s , p a s s a m a e x i s t e n c i a d e i t a d O s
no sofá. As filhas de santo, p r o s t i t u t a s a l g u m a s , concorrem
p a r a l h e s d e s c a n ç a r a e x i s t ê n c i a , a g e n t e q u e os v a i p r o c u r a r
dá-lhes o supérfluo. A preoccupação destes é saber mais
c o u s a s , os f e i t i ç o s d e s c o n h e c i d o s e q ú a h d o entra o que sabe
t o d o s os m y s t e r i o s , a j o e l h a m a s s u s t a d o s e b e i j a m - l h e a m ã o ,
soluçando :
— D i z c o m o se f a z a c a n t i g a é e ü te dou todo o meu
dinheiro !
A ' t a r d e , c h e g a m á s m u l h e r e s , e os q u e p o r acaso tra-
b a l h a r a m e m a l g u m a p e d r e i r a . Os f e i t i c e i r o s c o n v e r s a m de
casos, c r i t i c a m - s e u n s aos o u t r o s , f a l a m c o m i n t i m i d a d e d a s
figuras m a i s salientes d o paiz, do i m p e r a d o r , de q ü e quasi
t o d o s t e m o r e t r a t o , de C o t e g i p e , d ó b á r ã o de Mamanguape,
dos presidentes da R e p u b l i c a .
A s m u l h e r a s o u v e m m a s t i g a n d o abi e cantando melo-
p é a s s i n i s t r a m e n t e d o c e s . Essas m e l o p é a s s ã o q u a s i sempre
as preces as e v o c a ç õ e s e repetem sem modalidade, por
tempo indeterminado, a mesma phrase.
S ó p e l o s candomblés ou sessões de grande feitiçaria em
q u e o s b a b a l a ô s e s t ã o a t t e h t o s e os p a i s de santo trabalham
dia e noite nascamarinas ou fazendo evocações deante dos
f o g a r e i r o s , c o m o tcssubá na nlão, é que a vida dessa gente
d e i x a a sua c a l m a a m o l l e c l d a d e a c a s s á c o m azeite dedendO.
Q u a n d o e n t r á m o s n a casa d e O l o ô - t e t é , o mathematico
m a c r o b i o e sensual, u m a Veíha mina, qüe cantava sonam-
b u l i c a m e n t e , p a r o u de repente.
—Pode continuar.
EUa disse q u a l q u e r pousa de i n c o m p r e h e n s i v e l .
—Está p e r g u n t a n d o se o s e n h o r lhe d á dous tostões,
ensina-nos Antônio.
— N ã o ha d u v i d a .
A p r e t a e s c a n c a r a a b o c c a , e, b a t e n d o á s m ã o s , põe-se a
cantar :
aBaba ô u m i o ô , ò x o c o t á m , ó ilélê»

—Que vem a ser issó ?


— E ' o final d a s f e s t a s , q u a n d o o s a n t o v a i e m b o r a . Q u e r
d i z e r : p a p a i já f o i , já f e z , já a c a b o u ; v a i e m b o r a I
E u o l h a v a a restea estreita do q u i n t a l onde dormiam
jabotys,
—O jaboty é u m animal sagrado r
— N ã o diz-nos o sábio Antônio. Cada santo gosta do
seu a n i m a l . S a n g o p o r e x e m p l o c o m e jaboty, galío e car-
n e i r o . O b a l u a i é , p a í d a v a r i o l a , s ó gosta de c a b r i t o . Os pais
de santos s ã o o b r i g a d o s pela sua qualidade a fazer criação
de bichos para vender e tel-os s e m p r e a d i s p o s i ç ã o quando
p r e c i s a m de s a c r i f í c i o . O j a b o t y é apenas u m bicho que dá
f e l i c i d a d e . O s a c r i f í c i o é s i m p l e s , L a v a - s e b e m , á s vezes até
c o m champagne, a pedra que t e m o santo e p õ e - s e d e n t r o da
t e r r i n a . O sangue do a n i m a l escorre: algumas das partes
s ã o levadas para onde o santo d i z e o resto a r o d a c o m e .
' — M a s h a s a c r i f í c i o s m a i o r e s p a r a f a z e r m a l á s pessoas ?
— H a ! p a r a esses a t é se m a t a m b o i s .
—Feitiço pega sempre, sentencia o i l l u s t r e O l o õ - T e t ê c o m
a sua p r a t i c a veneravel. N ã o ha c o r p o f e c h a d o . S ó o q u e t e m
é que uns custam mais. Feitiço para pegar em preto é um
i n s t a n t e , p a r a m u l a t o já custa, e e n t ã o para cahir em cima
de b r a n c o a gente sua a t é n ã o p o d e r m a i s . Mas pega sem-
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pre. P o r isso preto usa s e m p r e o assiqui, a cobertura, o


b r e v e , e n ã o d e i x a d e m a s t i g a r obi, n o z d e k o l a p r e s e r v a t i v a .
Para m i m , homem amável, presentes alguns compa-
n h e i r o s seus, O l o ô - T e t ê t i r o u o opelé que ha m u i t o s annos
foi baptisadoe prognosticou o m e u futuro.
E s s e f u t u r o v a i ser i n t e r e s s a n t e . " S e g u n d o as cascas de
tartaruga que se v o l t a v a m s e m p r e aos p a r e s , serei felicís-
simo, ascendendo c o m a r a p i d e z dos a u t o m ó v e i s a escada
de Jacob das p o s i ç õ e s felizes. E ' v e r d a d e q u e u m inimigozi-
nho malandro pretende perder-me. E u p o r é m , o esmagarei
v i a j a n d o sempre c o m cargos elevados e sendo a d m i r a d o .
Abracei respeitoso o m a t h e m a t i c o que resolvera o qua-
d r a d o da h y p o t h e n u s a d o d e s c o n h e c i d o .
—Põe d i n h e i r o a q u i , fez elle.
D e i - l h e as n o t a s . C o m as m ã o s t r e m u l a s , o s á b i o a a p a l -
pou longamente.
—Pega agora nesta p e d r a e nesta concha. Pede o que
tiveres vontade á concha, dizendo sim, e a pedra dizendo
não.
A s s i m fiz. O obeló c a h i u d e n o v o n o e n c e r a d o . A c o n c h a
estava na m ã o d i r e i t a de A n t ô n i o , a p e d r a j n a e s q u e r d a , e O l ô
t r e m i a f a l a n d o ao s a n t o , c o m os n e g r o s d e d o s t r ê m u l o s n o a r .
—Abra a m ã o direita ! ordenou.
Era a concha.
— S e a c o n t e c e r , o s s u m c é d á p r e s e n t e a Oloô ?
Mas de certo.
E l l e c o r r e u a c o n s u l t a r o obelé. Depois s o r r i u .
— D á , s i m , s a n t o d i z q u e d á . E r e c e i t o u - m e os preserva-
t i v o s c o m q u e eu serei invulnerável.
T a m b é m eu sorria. Pobre] velho m a l a n d r o e ingênuo !
Eu p e r g u n t a r a apenas, m o d e s t a m e n t e , á c o n c h a do futuro
se s e r i a i m p e r a d o r d a C h i n a . . .
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E m q u a n t o isso, a n e g r a d a c a n t i g a e n t o a v a outra mais


a l e g r e , c o m g r a n d e gestos e risos.

O lo rêxa la rê ca um ra ride
O l p r ê x a l a r ê ca u m r a ridê

—É esta, o que quer dizer ?


— E ' u m a c a n t i g a d e Orixalá. Sgnifica : O homem do
dinheiro está a h i . Vamos erguel-o...
Apertei-lhe a m ã o jubiloso e reconhecido. Na allusão da
ode selvagem a lisonja vivia o encanto da sua v i d a e t e r n a . . .
« A S I A T J Õ »
A r e c o r d a ç ã o d e u r r f f a c t o ' t r i s t e —a m o r t e d e u m a r a p a -
riga q u e T ô r a á Bahia fazer santo—deu-me'-animo e curiosi-
d a d e p a r a e s t u d a r u m d o s m a i s b á r b a r o s e i n e x p l i c á v e i s cos-
t u m e s dos fetiches do R i o .
F a z e r s a n t o é a r e n d a d i r e c t a d o s babatoxás, m a s ser f i l h a
de santo é sacrificar a l i b e r d a d e , escravisar-se, soffrer, de-
lirar.
Os t r a u s e n t e s honestos, q u e passeiam n a r u a c o m i n d i -
f f e r e n ç a , n ã o i m a g i n a m s i q u e r as s.cenas d e S a l p e t i é r e afri-
c a n a p a s s a d a s p o r t r á s das r ó t u l a s s u j a s .
A s yauô a b u n d a m nesta Babel da ci e n ç a , c r u z a m - s e c o m
a g e n t e d i a r i a m e n t e , s o r r i e m aos s o l d a d o s é b r i o s nos p o s t i -
bulos baratos, m e r c a d e j a m d o ç e s nas p r a ç a s , as p o r t a s d o s
estabelecimentos c o m m e r c i a e s , f o r n e c e m ao Hospício a sua
q u o t a d e l o u c u r a , p r o p a g a m a h y s t e r i a e n t r e as s e n h o r a s h o -
n e s t a s e as cocottes, exploram e são exploradas, vivem da
crendice e alimentam o caftismo inconsciente. A s yauô são
as d e m o n í a c a s e as grandes f a r c i s t a s d a r a ç a p r e t a , as o b s e -
c a d a s e as d e l i r a n t e s A h i s t o r i a de cada u m a dellas, q u a n d o
n ã o é u m a s i n i s t r a p a n t o m i m a de álcool e mancebia, é u m
tecido de factos c r u é i s , anormaes, i n e d i c t o s , f e i t o s de invi-
sível, de sangue e de m o r t e . -Nasyauô e s t á a base d o culto
africano. T o d a s ellas u s a m s i g n a e s e x t e r i o r e s d o s a n t o , as
vestimentas s y m b o l i c a s , os r o s á r i o s e os c o l l a r e s d e contas
c o m as c ô r e s p r e f e r i d a s d a d i v i n d a d e a q u e p e r t e n c e m ; t o d a s
e l l a s e s t ã o l i g a d a s ao r i t o s e l v a g e m p o r m y s t e r i o q u e as o b r i -
22

gam a gastar a vida e m festejos, a sentir o santo e a respei-


t a r o pae de s a n t o .
Fazer santo é collocar-se sobre o patrocínio de u m fe-
t i c h e q u a l q u e r , é ser b a p t i s a d o p o r e l l e , e por expontânea
vontade delle. A s n e g r a s , i n s e n c i v e i s a q u a s i t o d a s as d e l i
c a d e z a s q u e p r o d u z e m a t a q u e s n a haule-gomme, são, entre-
t a n t o , de u m a i m p r e s s i o n a b i l i d a c e m ó r b i d a p o r t u d o q u a n t o
é abusão. D a c o n v i v ê n c i a c o m os m a i o r e s nesse h o r i s o n t e
de c h u m b o , de a t m o s p h e r a de f e i t i ç a r i a s e pavores, nasce-
lhes a necessidade i n i l l u d i v e l de f a z e r t a m b é m o s a n t o ; e n ã o
é possivel demovel-as, umas p o r q u e a m i r a g e m da f e l i c i d a d e
as c é g a , o u t r a s p o r q u e já e s t ã o v o t a d a s á l o u c u r a e ao a l c o o -
l i s m o . E n t r e as t n b u s cio i n t e r i o r d a Á f r i c a h a c s a c r i f í c i o d o
ã0tnutfi e m q u e se e s m a g a m v i v a s as c r e a n e a s d e seis m e z e s .
Ao Moloch das v e s a n i a s a raça preta sacriíica aqui uma
q u a n t i d a d e assustadora de homens e de m u l h e r e s .
A n t ô n i o , que me mostrara a maior p a r t e d a s casas de
santo, disse-me u m dia:
— V o u leval-o hoje a ver o i6° dia de u m a yauô.
P a r a que u m a m u l h e r saiba a v i n d a d o santo, basta en-
c o u t r a r n a r u a u m f e t i c h e q u a l q u e r , p e d r a , p e d a ç o de ferro
ou concha do m a r . De t a l m a n e i r a e s t ã o s u g e s t i o n o d a s , que
v ã o l o g o aos babálaôs indagar do f u t u r o . Os babalaôs, a troco
d e d i n h e i r o , j o g a m o edüogum, os b u s i o s , e s e r v e m - s e tam-
b é m p o r a p p r o x i m a ç ã o dos signos do zodiaco.
— Õ mez do C a p r i c ó r n i o , diz A n t ô n i o , c o m p r e h e n d e to-
d o s os a n i m a e s p a r e c i d o s , a c a b r a , o c a r n e i r o , o c a b r i t o , e se-
gundo o calculo do dia e o a n i m a l preferido pelo santo, os
mathematicos descobrem quem é.
Q u a n d o j á sabe o s a n t o , babalaô atira a sorte no obelê
p a r a p e r g u n t a r se é d e d e v e r f a z e l - o . A n a t u r e z a m e s m o d o
c u l t o , a necessidade d e c o n s e r v a r as c e r i m o n i a s e a a v i d e z d e
23

ganho da p r ó p r i a indolência fazem o sábio obter uma res-


posta afirmativa.
A l g u m a s creaturas pauperirr.as b a t e m e n t ã o nas faces e
pedem:
— E u q u e r o ter o santo assentado!
E' mais f á c i l . Os pais de santo d ã o - l h e hervas, u n a pe-
d r a b e m lavada, e m que e s t á o santo, u m r o s á r i o de contas
q u e se u s a ao p e s c o ç o d e p o i s de purificado o corpo por u m
banho. Nessas o c c a s i õ e s o v a d i o i n v i s í v e l contenta-se com
o ebó, d e s p a c h o , a l g u m a s c o m e d o r i a s c o m azeite de dendê,
h e r v a s e s a n g u e , d e i x a d a s na c n c r u s i l h a d a d o s c a m i n h o s .
Q u a s i s e m p r e , p o r e m , as v i e t i m a s s u j e i t a m - s e , e n ã o é
raro, mesmo quando s ã o p o b r e s os p a i s , o a c e i t a r e m o t r a -
b a l h o c o m a c o n d i ç ã o d e as v e n d e r e m l e i l ã o o u s e r e m servi-
d o s p o r ellas d u r a n t e l o n g o t e m p o . C o m o as d e s p e s a s s ã o
g r a n d e s , as f u t u r a s yauô levam mezes fazendo economias,
p o u p a n d o , sacrificando-se. E ' de o b r i g a ç ã o levar comidas,
presentes, d i n h e i r o ao p a i de s a n t o p a r a a sua estadia n o ylt
ache-ú-ylè-orixá, e s t a d i a q u e r e g u l a d e 12 a 30 d i a s .
A n t e s de entrar para camarinha, a m u l h e r , predisposta
p e l a f i x i d e z d a a t t e n ç ã o a t o d a s as s u g g e s t õ e s . presta jura-
m e n t o de g u a r d a r o segredo do que v i u , t o m a um banho
purificador e á meia-noite começa a cerimonia. A yauô sen-
ta-se n u m a c a d e i r a v e s t i d a d e b r a n c o c o m o ojá a p e r t a n d o a
c i n t u r a e u m l e q u e de m e t a l q u e serve de chocalho. Todos
em deredor entoam a primeira cantiga a Echú.
Echú iiriri, lô-nam bará o bebê
Tiriri lo-nam Echú tiriri.
O babaloxá p e r g u n t a ao s a n t o p a r a o n d e d e v e j r o c a b e l l o
q u e v a i c o r t a r á f u t u r a f i l h a e, d e p o i s d e a r d e n t e m e d i t a ç ã o ,
indica c o m apparato a o r d e m divina. Essas d e s c o b e r t a s são
f a t a l m e n t e as m e s m a s n o c e n t r o d e u m a c i d a d e p o p u l o s a c o m
24

c o m o a nossa. Se o s a n t o ê a m ã i cTaguadoce. Oxiim, o ca-


bello vai para a T i j u ç a , a F a b r i c a d a s Chitas;se élé-man-ja
f i c a n a p r a i a d o R u s s e l l ; se é o u t r o s a n t o q u a l q u e r , basta u m
t r e c h o d e p r a ç a e m q u e as r u a s se c r u z e m .
A s rezas c o m e ç a m e n t ã o ; o p a i de santo m o l h a a cabeça
da }'a»d c o m n m a c o m p o s i ç ã o de hervas e c o m afiadissima
navalha faz-lhe u m a coroa, enquanto a roda canta triste.

orixálâ otô ô yauô\

Essa parte do cabello é guardada eternamente e a


yauô não deve saber nunca onde a guardam, porque
lhe acontece d e s g r a ç a . E m seguida, o l u g u b r e b a r b e i r o ras-
palhe c i r c u l a r m e n t e o craneo e q u a n d o a carapinha cai no
alguidar a operada já perdeu a r a z ã o .
<Babaloxâ lava-lhe ainda a c a b e ç a c o m o sangue dos a n í -
m a e s e s f a q u e a d o s p e l o s ogans, e as yauô antigas levan-na a
mudara roupa, emquanto se p r e p a r a m c o m h e r v a s os c a -
bellos do a l g u i d a r .
D'ahi a m o m e n t o s a iniciada apparece c o m outros factos,
pega no a l g u i d a r e sae a c o m p a n h a d a d a s o u t r a s , q u e a a m -
p a r a m e c a n t a m b a i x o o o í f e r t o r i o ao santo. Em chegando
a o l o g a r i n d i c a d o , a h y p n o t i s a d a d e i x a o vaso, v o l t a e e r e c e -
bida pelo pai, que entorna e m f r e n t e á porta u m copo d'agua.
A n o v a yauô v a i e n t ã o d e s c a n ç a r e m q u a n t o os o u t r o s r e -
z a m n a c a m a r i n h a e m f r e n t e ao estado-maior.
— O estado maior? i n d a g o eu, assustado c o m o exercito
mysterioso.
O estado-maior é a c o l l e c ç ã o de terrinas e sopeiras c o l -
locaclas n u m a e s p é c i e d e prateleiras de bazar. Nas sopeiras
e s t ã o t o d o s os s a n t o s p e q u e n o s e g r a n d e s . H a d e s d e as ter-
r i n a s de g r a n i t o á s de porcellanas c o m frisos d'ouro, rode-
25

a n d o a r m a ç o e s d e f e r r o o n d e se g u a r d a o Ogum, o S ã o Jorge
da África.
N o d i a s e g u i n t e á c e r i m o n i a a yauô lava-se e v a i á pre-
s e n ç a d o p a i p a r a v e r se t e m e s p í r i t o s c o n t r a r i o .
S e os e s p í r i t o s e x i s t e m , o p a i p o d e r o s o a f a s t a a i n f l u e n »
c i a n e f a s t a p o r m e i o d e ebôs e ogunguns. A yauô é obrigada a
n ã o falar a n i n g u é m : q u a n d o deseja a l g u m a cousa, bate
p a l m a s e s ó a a j u d a nesses d i a s a m ã i p e q u e n a o u Iaque-que-rê.
As danças para p r e p a r o de santo r e a l i s a m - s e n o s i ° 3 . 7°
0

12 , e n o
o
16 d i a o s a n t o
o
revela-se.
—Mas que adeanta isso á s yauô}
— N a d a . O p a i de santo d o m i n a - a s . Ô erô o u segredo
q u e lhes d á pode r e t i r a l - o q u a n d o l h e apraz, o p o d e r de as
t r a n s f o r m a r e f a z e r - l h e s m a l esta e m v i r a r o santo sempre
que t e m vontade.
— E q u a n d o essascreaturas m o r r e m ?
—Faz-se a o b r i g a ç ã o r a s p a n d o u m p o u c o d e c a b e l l o p a r a
s a b e r se o s a n t o t a m b é m v a i , e o babaloxd procura u m col-
lega para lhe t i r a r a m ã o do f i n a d o .
Q u a n d o ayauô não tem dinheiro, ou o pai vende-a em
leilão ou a g u a r d a c o m o serva. Desta c o n v i v ê n c i a é q u e a l -
g u m a s c h e g a m a ser m ã i s d e santos, p a r a o q u e basta dar-
l h e o babaloxd uma navalha.
—E ha m u i t a m ã i de santos ?
—Umas c i n c o e n t a , c o n t a n d o c o m as f a l s a s . Se agora
l e m b r o a Josepha, a C a l ú Boneca, a H e n r i q u e t a da Praia, a
Maria Marota, que vende á porta do Glacier. a Marido do
B o m f i m , a M a r t i n h a da rua do Regente, a Zebinda, a Xica
de Vava, a A m i n a m p é - d e - b o i , a Maria Luiza, que é t a m b é m
s e d u c t o r a de senhoras honestas, a F l o r a Coco P o d r e , a D u d ú
do Sacramento, a Bitaiô, que está agora g u i a n d o seis o u
oito filhas, a Assiata.
26

E s t a é de f o r ç a . N ã o t e m n a v a l h a , finge d e m ã i d e s a n t o
e t r a b a l h a c o m t r e z ogans falsos, J o ã o Ratão, um moleque
c h a m a d o Macario e certo cabra pernóstico, o Germano. A
Assiata m o r a n a r u a da A l f â n d e g a 304. A i n d a o u t r o d i a h o u v e
lá u m e s c â n d a l o dos d i a b o s p o r q u e a A s s i a t a m e t t e u n a festa
d e Lêman-jà a l g u m a s yauô feitas por ella. Os pais de santo
p r o t e s t a r a m , a n e g r a d a m n o u , e teve q u e p a g a r a m u l t a m a r -
cada pelo santo. E s s a é u m a das f e i t i c e i r a s cie e m b r o m a ç ã o .
Nesse m e s m o d i a A n t ô n i o v e i o b u s c a r - m e a t a r d e .
— A casa a q u e vae V . S . é d e u m g r a n d e f e i t i c e i r o ; verá
se n ã o h a f a c t o s v e r d a d e i r o s .
Q u a n d o c h e g á m o s , a sala e s t a v a enfeitada. Em derre-
dor sentavam-se m u i t o s negros e negras mastigando olobó,
ou k o l a a m a r g o s a , c o m as r o u p a r l a v a d a s e as f a c e s r e l u z e n -
tes. A u m canto, os músicos, physionomias extranhas, fa-
" z i a m soar, c o m sacolejos compassados, o xequerêe, atabaques
e ubaíAs, c o m m o v i m e n t o s de b r a ç o desvairadamente regu-
lares. N ã o se r e s p i r a v a b e m .
A cachaça, circulando sem cessar, e n s a n g ü e n t a v a os
olhos amarellos dos assistentes.
— A ' s vezes t u d o é m e n t i r a s á custa de cachaça e fingi-
mento, diz A n t ô n i o . Q u a n d o o santo não vem, o pai fica
desmoralisado. Mas a q u i è de verdade. ..
O l h e i o c e l e b r e p a i d e s a n t o , c u j a s filhas s ã o s e m conta.
E s t a v a s e n t a d a á p o r t a da c a m a r i n h a , m a s l e v a n t o u - s e l o g o e
a n e g r a i n i c i a d a e n t r o u , de c a n l i s o l a b r a n c a , c o m o l e q u e de
metal. F u l a , c o m u m a e x t r a o r d i n á r i a f a d i g a nos membros
lassos, os seus o l h o s b r i l h a v a m s a t â n i c o s sob o c a p a c e t e de
p i n t u r a s bizarras c o m que lhe t i n h a m b r o c h a d o o eraneo.
D i a n t e d o p a i e s t i r o u - s e a f i o c o m p r i d o , b a t e u c o m as faces
no asoalho, a j o e l h o u o b e i j o u - i h e a m ã o . Babáloxá fez u m
gesto de b e n ç ã o e ella f o i , r o j o u - s e do n o v o d i a n t e de o u -
27

tras pessoas. O s o m d o agogô a r r a s t o u n o a r os primeiros


b a t u q u e s e os a r r a n h a d o s d o x e q u e r é . A n e g r a e r g u e u - s e e,
e s t e n d e n d o as m ã o s para u m e para o u t r o lado, c o m e ç o u a
t r a ç a r passos, s o r r i n d o i d i o t a m e n t e . S ó e n t ã o n o t e i que t i -
n h a na c a b e ç a u m a e x q u i s i t a e s p é c i e de cone.
— E ' o ado-chú, que faz v i r o santo, explica A n t ô n i o . E'
f e i t o c o m s a n g u e e h e r v a s . Se o ado-chú cai, santo n ã o v e m .
A n e g r a p a r e c i a aos p o u c o s a n i m a r - s e s a c u d i n d o o l e q u e
de m e t a l c h o c a l h a n t e .
E m derredor, a musica acompanhava as cantigas, que
repetiam indefinidamentea mesma phrase.
A d a n ç a dessas c e r i m o n i a s é m a i s o u m e n o s p r e c i p i t a d a
m a s s e m os p u l o s s a t â n i c o s dos Cafres e a vertigem diabó-
lica dos n e g r o s da L u i z i a n i a . E ' simples, continua e insis-
tente, h o r r e n d a m e n t e i n s i s t e n t e . O s passos c o n s t a n t e s s ã o
o ala já, e m r o d a d a casa, d a n d o c o m as m ã o s p a r a a d i r e i t a e
p a r a a e s q u e r d a , e o jêguedê e m q u e ao c o m p a s s o d o s tabaques,
com os p é s j u n t o s , os c o r p o s se q u e b r a m aos p o u c o s e m re-
m e x i d o s s i n i s t r o s . N ã o sei se o e n e r v a n t e s o m d a m u s i c a d i s -
t i l l a n d o aos p o u c o s d e s e s p e r o , se a c a c h a ç a , se o e x e r c i d o .
o facto é que, e m p o u c o , a yauô p .Tecia r e a n i m a r - s e , p e r d e r
a f a d i g a n u m a r a i v a d e l o u c a . D e c a d a xcquexé, xequexé que
a m ã o de u m de n e g r o sacudia no ar, vinha um espicaça-
m e n t o de u r t i g a , das boccas c u s p a r i n h e n t a s dos assistentes
escorria a a l l u c i n a ç ã o . Aos poucos, outros negros, n ã o po-
d e n d o m a i s , s a l t a r a m t a m b é m n a d a n ç a , e f o i e n t ã o e n t r e as
v o z e s , as p a l m a s e os i n s t r u m e n t o s q u e r e p e t i a m n o mesmo
c o m p a s s o o m e s m o s e m , u m a t h e o r i a de c a r a bebedas c a b r i -
o l a n d o precedidas de u m a c a b e ç a colorida que ergareiava l u -
gubremente. A loucura propagou-se. No meio do panclemo-
n i c o v e j o s u r g i r o babaloxd c o m u m desses vasos f u r a d o s e m
que se a s s a m castanhas, cheio de brasas.
28

— Q u e v a i elle fazer?
—Cala, c a l a . . . é o pai, é o pai grande, balbucia A n t ô n i o .
A s c a n t i g a s r e d o b r a m c o m u m f u r o r q u e n ã o se a p r e s s a .
S ã o c o m o u m a a n c i ã d e d e s e s p e r a d o essas c a n t i g a s , c o m o a
a g o n i a de u m m e s m o gesto a r r a n c a d o dos olhos a mesma
l a m i n a d e f a c a , s ã o a t r o z e s ! O babaloxd colloca o cangirâo
a r d e n t e n a c a b e ç a d a yauô, q u e n ã o cessa d e d a n s a r d e l i r a n t e ,
insensivel, e, a l t e a n d o o b r a ç o c o m u m gesto d o m i n a d o r e
u m s o r r i s o q u e l h e p r e n d e o b e i ç o aos o u v i d o s , e n t o r n a n a s
brasas f u m e g a n t e s u m a l g u i d a r cheio de azeite de dendê.
Ouve-se o c h i a r d o azeite nas c h a m m a s , a n e g r a , b e m n o
meio da sala s a c o l e j a - s e n u m jeguedê l a n c i n a n t e , e pela sua
cara suada, do c a n g i r ã o ardente, e que n ã o lhe q u e i m a a
p e l l e , e s c o r r e m fios a m a r e l l o s d e a z e i t e . . .
Ye-man-já ato uàuô

continuava a turba.
— N ã o q u e i m o u , n ã o q u e i m o u , elle é g r a n d e , fez An-
tônio.
E u a b r i r a os o l h o s p a r a v e r , p a r a s e n t i r b e m o m y s t e r i o
da inaudita selvageria. Havia u m a hora, a negra d a n ç a v a sem
p a r a r ; pela sua face o d e n d ê quente escorria benéfico aos
santos. De r e p e n t e , p o r é m , ella estacou, cahiu de joelhos,
deu u m grande grito.
—Emim oid bonmiml bradou.
— E ' o n o m e delia, o santo disse pela sua bocca o nome
que vai ter.
A sala r e b e n t o u n u m d e l í r i o i n f e r n a l . O babaloxd gri-
t a v a , c o m os o l h o s a r r e g a l a d o s , p a l a v r a s g u t t u r a e s .
— Q u e d i z elle ?
— Que é grande, que vejam como é grande !
Creaturas r o j a v a m - s e aos p é s d o p a i , b e i j a n d o - l h e s os
dedos; negras uivavam, c o m as m ã o s empoladas de bater
29

p a l m a s ; d o u s o u t r e s p r e t o s aos s o n s d o s xeqaerês sacudiam-se


e m d a n ç a s c o m o s a n t o , e a yauô r e v i r a v a os olhos, idiota,
c o m o se a c o r d a s s e d e u m a g r a n d e e e s t r a n h a m o l é s t i a .
— Q u e v a i ella f a z e r a g o r a , D e u s de m i s e r i c ó r d i a ! mur-
murei sahindo.
— V a i t r a b a l h a r , p a g a r n o f i m de tres mezes a sua o b r i -
g a ç ã o , ochú-meta, d a r d i n h e i r o a. p a i d e s a n t o , ganhar d i -
nheiro. ..
— S e m p r e o d i n h e i r o ! fiz e u o l h a n d o a v e l h a c a s a r i a .
A n t ô n i o p a r o u e disse:
— N ã o se e n g a n a V. S.
E limpando o suor do rosto, o negro concluiu com esta
reflexão profunda:
— N e s t e m u n d o , n e m os e s p í r i t o s f a z e m q u a l q u e r c o u s a
sem dinheiro e sem sacrifício !
F o m o s pela r u a estreita c o m a visão ssnistra da pobre
m a r t y r aos p u l o s , d e s s a c a b e ç a p i n t a d a , e n t r e os c h o c a l h e s e
os atabaques, que dançava
À e gritava horrendamente...
O F E I T I Ç O
N ó s d e p e n d e m o s d o Feitiço. N ã o é u m p a r a d o x o , é a ver-
dade de u m a o b s e r v a ç ã o longa e dolorosa. Ha no Rio magos
estranhos q u e c o n h e c e m a a l c h i m i a e os f i l t r o s e n c a n t a d o s ,
como nas mágicas de theatro, ha espirito que incom-
m o d a m as a l m a s p a r a f a z e r os m a r i d o s i n c o r r i g i v e i s v o l t a -
r e m ao t h á l a m o c o n j u g a i , ha b r u x a s q u e a b a l a m o invisivel
só pelo prazer de ligar dous corpos apaixonados, mas ne-
n h u m desses h o m e n s , n e n h u m a dessas h o r r e n d a s mulheres
t e m p a r a este p o v © o i n d i s c u t í v e l v a l o r d o F e i t i ç o , d o m y s -
terioso p r e p a r a d o dos n e g r o s .
E' provável que m u i t a gente n ã o acredite n e m nas
b r u x a s , n e m nos m a g o s , mas n ã o ha ninguém cuja vida
tivesse d e c o r r i d o n o R i o s e m u m a e n t r a d a nas casas s u j a s
o n d e se e n r o s c a a i n d o l ê n c i a m a l a n d r a dos negros e das
negras. E' todo u m p o b l e m a de h e r e d i t a r i e d a d e e p s y c h o -
l o g i a essa a t t r a c ç ã o m ó r b i d a . Os n o s s o s a s c e n d e n t e s acre-
d i t a r a m no arsenal c o m p l i c a d o da m a g i a da idade m é d i a ,
na p o m p a de u m a sciencia que levava á f o r c a e á s f o g u e i r a s
sábios estranhos, derramando a l o u c u r a p e l o s c a m p o s ; os
nossos a v ó s , p o r t u g u e z e s de boa f i b r a , t r e m e r a m d i a n t e dos
e n c a n t a m e n t o s e a m u l e t o s c o m q u e se p r e s e n t e a v a m os reis
entre diamantes e esmeraldas. Nós continuamos fetiches
no f u n d o , como dizia o p h i l o s o p h o , mas r o j a n d o de medo
d i a n t e d o F e i t i ç o a f r i c a n o , d o F e i t i ç o i m p o r t a d o c o m os e s -
cravos, e indo buscar trêmulos a sorte nos antros, onde
g o r r i l l a s m a n h o s o s e u m a s ú c i a de pretas cynicas o u hyste-
34

ricas desencavam o f u t u r o entre kagados estrangulados e


pennas de papagaio! V i v i tres mezes n o m e i o dos feiticeiros,
c u j a v i d a se f i n g e d e s c o n h e c e r m a s q u e se c o n h e c e , n a allu-
c i n a c ã o de u m a d ó r ou da a m b i ç ã o : e julgo que seria mais
interessante c o m o p a t a l o g i a social estudar de p r e f e r e n c i a
aos m e r c a d o r e s d a p a s p a l h i ç e , os q u e l á v ã o e m b u s c a d o
consolo.
Vivemos na d e p e n d ê n c i a do Feitiço, dessa c a t e r v a de
n e g r o s e n e g r a s , d e babaloxds eyaôu, s o m o s n ó s q u e l h e asse-
guramos a existência, c o m o c a r i n h o de u m negociante p o r
u m a amante actriz. O F e i t i ç o é o nosso v i c i o , o nosso goso,
a degeneração. Exige, damos-lbes; explora, deixamo-nos
e x p l o r a r , e, s e j a e l l e maitre-chanteur, assassino, l a r a p i o , fica
sempre i m p u n e e forte pela v i d a que lhe e m p r e s t a o nosso
dinheiro.
Os f e i t i ç e i r o s f o r m i g a m n o R i o , e s p a l h a d o s por toda a
cidade, do c á e s á E s t r a d a de Santa C r u z .
O s p r e t o s , alufás o u orixás, degeneram o mahometismo
e o c a t h o l i c i s m o n o p a v o r d o s aligenam, espiritos m à o s , e
do echu, o d i a b o , e a lista dos que p r a t i c a m para o p u b l i c o
não acaba m a i s . Conheci só n u m dia a Izabel, a L e o n o r , a
Maria do Castro, o T i n t i n o , da r u a F r e i Caneca ; o Miguel
Pequeno, u m negro que parece os a n õ e s de D. Juan de
Byron ; o Antônio, mulato conhecedor do idioma africano ;
O b i t a i õ , da r u a B o m J a r d i m ; o Juca A b o r é , o A l a m i j o , o
o Abede, u m certo Mauricio, ogan de o u t r o feitiçeiro—o
Brilhante, pai m a c u m b a dos santos c a b i n d a s ; o R o d o l p h o ,
o Virgilio, a D u d ú do Sacramento, que m o r a também na
rua do B o m Jardim ; o H y g i n o e o Breves, dous famosos
typos cie N i c t h e r o y , cuja chronica é sinistra; o Oto A l i ,
Ogan-Didi, jogador da rua da C o n c e i ç ã o ; A r m a n d o Ginja.
Abubaca Caolho, Egidio Aboré, Moracio, O i a b u m i n , filha
35

e raãi de santo actual da casa d e Abedé; Ieusimin, lor-


quato Arequipá, Cypriano, Rosendo, a Justa de O b a l u a e i ,
Apotijá, m i n a famoso pelas suas m a l a n d r a g e n s , que m o r a
na r u a d o H o s p í c i o 322 e finge d e f e i t i c e i r o f a l l a n d o m a l d o
Brazil; a Assiata, outra exploradora, a Maria Luiza, *edu-
ctora reconhecida, e até u m empregado dos Telegraphos,
o famoso pai D e o l i n d o . . .
T o d a essa g e n t e v i v e b e m , á f a r t a , j o g a n o bicho como
Oloô-Teté, deixa dinheiro quando m o r r e , á s vezes f o r t u n a s
superiores a cem contos de réis, e achincalha o nome de
pessoas e m i n e n t e s d a nossa sociedade, e n t r e conselhos ás
m e r e t r i z e s e g o l e s d e p a r a t y . A s pessoas e m i n e n t e s n ã o d e i -
x a m , e n t r e t a n t o , de i r o u v i l - o s á s baiucas infectas, porque
os f e i t i c e i r o s q u e p o d e m dar riqueza, palácios e eternidade
que mudam a distancia, c o m uma simples mistura de
sangue e de hervas, a existência humana moram em casi-
nholas s ó r d i d a s , de o n d e e m a n a u m n a u s e a b u n d o c h e i r o .
P a r a o b t e r o s e g r e d o d o f e i t i ç o f u i a essas casas, estive
nas salas s u j a s , v e n d o p e l a s p a r e d e s os e i e p h a n t e s , as flechas
os a r c o s p i n t a d o s , tropeçando em montes cie h e r v a s e l a -
gartos seccos, p e g a n d o nas terrinas sagradas e nos obelês
cheios de suor.
— V . S. se d e s e j a s a b e r q u a e s s ã o os p r i n c i p a e s f e i t i ç o s
é preciso acostumar-se antes c o m os s a n t o s , d i z i a - m e o
africano.
Acostumei-me. S ã o i n n u m e r a v e i s . As velhas que lhes
discutem o p r e ç o e m c o n v e r s a , a t é c o n f u n d e m as h i s t o r i a s .
E m p o u c o t e m p o estava r e l a c i o n a d o c o m E g ü m , o g u e r r e i r o ,
O b a l u a i ê , o santo da varjola, O e h á - o u s y , Euilê, Oboraqué,
o s a n t o d a s a l t i t u d e s , o a r , os m o n t e s , O b a l u f a z , O c h u - m a r é .
Orisá-oglinhan, Orixá-oloú, Sangô, Orixá-lá, Baynhan. e
c o n h e c i d a as mulheres eas màis desse f a r r a n c h o d e d i v i n -
dades b e i ç u d a s : — O b i - a m , esposa de Orixá-lá; Orainha, O
g a n g o , q u e se c h a m a t a m b é m A i r á ; Jená, m u l h e r , de E l ô -
q u è ; I o - m á o - j á , a d o n a de O r i x á o e ô ; O x u m de S a n g o e até
O b á , que, príncipe neste m u n d o , é n o ether hetaira do for-
m i d á v e l santo O g o d o .
Os fetiches c o n t a r a m - m e a historia de Orixá-aluni, o
m a i o r d o s s a n t o s q u e a p p a r e c e r a r a s vezes s ó p a r a
: mostrar
q u e n ã o è de b r i n c a d e i r a s , e eu assisti á s c e r i m o n i a s d o c u l t o ,
e m que quasi sempre predomina a farça pueril e sinistra.
D i a n t e dos m e u s o l h o s de c i v i l i s a d o , passaram negros ves-
tidos de Sango, com calça de c ô r , saiote encarnado en-
f e i t a d o de b ú z i o s e lantejoulas, avental, b a b a d o u r o e g o r r o ;
e esses n e g r o s dansavam c o m O x u m , varias negras fanta-
siadas, de ventarolas de m e t a l na m ã o esquerda e e s p a d i n h a
de p á o na d i r e i t a . C o n c o r r i para o s a c r i f í c i o de O b a l u a i é , o
santo da variola, u m negro de bigode p r e t o com a roupa
de P o l i c h i n e l l o e u m a touca branca orlada de u r t i g a s . O
santo, agitava u m a vassourinha, o seu.xaxará, e nós todos
e m d e r e d o r d o bab.ilo.xá viamos m o r r e r sem a u x i l i o de faca,
apenas por e s t r a n g u l a m e n t o , u m a b i c h a r a d a que f a r i a i n v e j a
ao J a r d i m Z o o l ó g i c o .
Os a f r i c a n o s p o r é m c o n t i n u a v a m a g u a r d a r o m y s t e r i o
da preparação.
— V a m o s lá, dizia eu, e a m a r a r i o , c o m o é que faz para
matar u m cidadão qualquer . :

Elles r i a m , voltavam o rosto com uns gestos quasi


femininos.
— Sei l á !
O u t r o s p o r é m tagai c i a v a m :
— Y . S. n ã o a c r e d i t a r E q u c a i n Ia n ã o \ m n a d a . Aqui
estiquem fez u m deputado ! O...
Os n o m e s c o n h e c i d o s s u r g i a m , tumultuavam, emprc-
37

gos na policia, na C â m a r a , relações no Senado, interferên-


cias e m desaguisados de famílias notáveis.
— M a s c o m o se f a z isso?
— E n t ã o o senhor pensa que a gente diz assim o seu
m e i o de v i d a ?

E immediatamente aquelle c o m q u e m eu lallava des-


coupunha o visinho mais p r ó x i m o - p o r q u e , membros de
u m a m a ç o n a r i a de defesa g e r a l , de q u e é c h e f e o O j ó d a r u a
dos A n d r a d a s , os p r e t o s o d e i a m - s e intimamente, formam
p a r t i d o s de f e i t i ç e i r ó s africanos c o n t r a f e i t i c e i r o s brazileiros
e e m p r e g a m t o d o s os m e i o s imagináveis para, a f u n d a r os
mais conhecidos.

A c a b e i j u l g a n d o os babaloxds s á b i o s na sciencia da f e i t i -
ç a r i a c o m o o Papa J o ã o X X I I e n ã o via negra mina na rua
s e m r e c o r d a r l o g o o b i z a r r o saber das f e i t i ç e i r a s de d ' A n n u n -
zio e do Sr. S a r d o u . A Iisonja p o r é m e o d i n h e i r o , a m o e d a
r e a l d e t o d a s as m a c h i n a ç õ e s dessa o p e r a p r e g a d a aos i n c a u -
tos, f i z e r a m - m e s a b e d o r dos m a i s c o m p l i c a d o s f e i t i ç o s .
Ha f e i t i ç o s de t o d o s os m a t i z e s , f e i t i ç o s lugubres, poé-
ticos, risonhos, sinistros. O feiticeiro joga c o m o A m o r , a
V i d a , o D i n h e i r o e a M o r t e , c o m o os m a l a b a r i s t a s d o s c i r c o s
c o m o b j e c t o s de pesos diversos. T o d o s e n t r e t a n t o s ã o de u m a
ignorância absoluta e affectam intimidades superiores, col-
locando-se l o g o na alta p o l í t i c a , n o clero e na magistratura.
E u f u i saber, a t e r r a d o , de u m a conspiração política com os
f e i t i c e i r o s : n a d a m a i s n a d a m e n o s q u e a m o r t e de u m passado
presidente da Reublica. A p r i n c i p i o achei impossível, mas
os m e u s i n f o r m a n t e s c i t a v a m c o m s i m p l i c i d a d e n o m e s q u e
estiveram publicamenle implicados em conspirações, homens
a q u e m tiro o m e u c h a p é o e aperto a m ã o . Era impossível a
duvida.

— O presidente e s t á b e m c o m os s a n t b s , d i s s i - m e o f e i -
38

t i c e i r o , mas bastava v e l - o ã janella do palácio para que dous


mezes depois elle m o r r e s s e .
— C o m o ?!
— E ' d i f í c i l d i z e r . O s t r a b a l h o s d e s s a e s p é c i e f a z e m se
na roça, c o m orações e grandes matanças. Precisa agente
p a s s a r n o i t e s e n o i t e s a fio d i a n t e cio f o g a r e i r ò , c o m o téssubâ
n a m ã o , a r e z a r . D e p o i s m a t a m - s e os a n i m a e s , as v e z e s um
boi que r e p r e s e n t a a pessoa e é l o g o e n t e r r a d o . G a r a n t o l h e
que dias depois o e s p i r i t o v e m d i z e r ao f e i t i c e i r o a doença
da pessoa.
— Mas p o r q u e n ã o m a t o u ?
— Porque os c a i p ó r a s nao me quizeram dar sessenta
contos.
— M a s se v o c ê t i v e s s e r e c e b i d o este d i n h e i r o e u m a m i g o
d o g o v e r n o desse m a i s ?
— O feitiço virava. A balança peza t u d o ' e p e z a também
dinheiro. Se D e u s t i v e s s e p e r m i f t i d o a essa h o r a , os sumi-
ticos estariam mortos.
Esse é o f e i t i ç o maior, o envoulement solemne e caro.
Ha o u t r o s , p o r é m , mais e m conta.
Para matar u m cavalheiro qualquer basta t o r r a r - l h e o
nome, d a l - o c o m a l g u m m i l h o aos p o m b o s e s o l t a i - o s numa
encruzilhada. Os p o m b o s l e v a m a m o r t e . . . E ' p o é t i c o . Para
u i c e r a r as p e r n a s d o i n i m i g o u m punhado do terra do c i m i -
t e r i o é s u f i c i e n t e . Esse m y s t e r i o s o serviço chama-se ciu, e
os babohxás r e s o l v e m t o d o o seu methodo depois de c o n -
v e r s a r c o m os í f f á u m a c o l e c ç ã o cie 12 p e d r a s . Quando os
ijjã e s t ã o t e i m o s o s , s a c r i f i c a - s e u m c a b r i t o m e t t e n d o as p e d r a s
n a b o c c a d o b i c h o c o m a l f a v a c a cie c o b r a .
O s h o m e n s s ã o c m g e r a l v o l ú v e i s , l i a o m e i o d e os r e t e r
per elernwn sujeitos á mesma paixão, o effi.fá u m a torquilha
de p'áo p r e p a r a d a c o m besouros, algodão, linhas e hervas,
39

s e n d o q u e d u r a n t e a o p e r a ç ã o n ã o se d e v e d e i x a r d e d i z e r o
ojó, oração. Se e u a m a n h ã desejar a d e s u n i ã o de u m casal,
e n r o l o o n o m e da pessoa c o m p i m e n t a da costa, m a l a g u e t a
e linha p r e t a , d e i t o isso n o f o g o c o m s a n g u e , e o casal d i s -
s o l v e - s e ; se r e s o l v e r t r a n s f o r m a r C a t ã o , o h o n e s t o , n o mais
d e s b r i a d o g a t u n o , a r r a n j o t o d o esse n e g o c i o a p e n a s c o m u m
b o m tira, u m rato e alumas hervas ! E ' m a r a v i l h o s o .
Ha t a m b é m feitiços porcos, o mantucá, por exemplo,
p r e p a r a d o c o m e s c r e m e n t o de v á r i o s animaes e cousas q u e a
d e c ê n c i a nos salva de d i z e r e f e i t i ç o s c ô m i c o s como o ter-
r í v e l xuxüguruxúo.. Eese faz-se c o m u m e s p i n h o de S a n t o
A n t ô n i o besuntado de ovo e enterra-se á p o r t a d o inimigo,
b a t e n d o t r e s vezes e d i z e n d o :
— Xuxú-gumxú io le bard ..
P a r a o h o m c n ser a b s o l u t a m e n t e f a t a l , D . J u * . 'Xots-
child. Nicoláo I I e M o r n y recolhi c o m carinho uma aceita
i n f a l í v e l : E ' m a s t i g a r orobó quando pragueja, trazer alguns
Ura o u b r e v e s e s c r i p t o s e m á r a b e n a c i n t a , u s a r d o ori para
o feitiço n ã o pegar, ter a l é m d o xorá, d e f e s a p r ó p r i a , o es-
siqui, c o b e r t u r a e o irocó, d e f u m a ç ã o da^ r o u p a s m i m foga
r e i r o e m q u e se q u e i m a a z e i t e d e d " ~ i d A
c a b e ç a s de biçhp'.; e
h e r v a s , v i s i t a r os bjbaloxás e j o g a r d e vez e m q u a n d o o ité ou.
a praga. Se apezar de t u d o isso a amante desse homem
f u g i r , ha u m s u p r e m o r e c u r s o : espera-sea hora do meio-dia
e crava-se u m p u n h a l de t r á s da p o r t a .
Mas o que n ã o sabem os q u e s u s t e n t a m os x e i t i c e i r o s e
que a base. o f u n d o d e t o d a a sua s c i e n c i a é o Livro de S.
Cypriano. Os m a i o r e s a l u f á s , os m a i s c o m p l i c a d o s pais de
santo, t e m e s c o n d i d a e n t r e os t i r a s e a b i c h a r a d a u n i a e.h
n a d a p h a n t a s t i c a d o S . C y p r i a n o . E m q u a n t o e r e a t u -as o a o
r o s a s e s p e r a m os q u e b r a n t o s e as m i s t u r a d a s f a t a e s os n e g
soletram o S. C y p r i a n o , á l u z dos c a n d i e i r o s . . . O feitiço
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c o m p o e - s e a p e n a s cie h e r v a s a r r a n c ã c l a s a o c a m p o d e p o i s d e
lá d e i x a r d i n h e i r o p a r a o sacy, de sangue, de o r á ç õ e s , de
gallos, cabritos, kagados, azeite de d e n d ê e d o l i v r o idiota.
E ' o d e s m o r o n a m e n t o de u m s o n h o !
Os f e i t i c e i r o s p o r é m , p e d e m retratos, e x i g e m dos clien-
tes c o i s a s d e u m a depravação sem n o m e para agir depois
f a z e n d o o egum, o u e v o c a ç ã o dos e s p í r i t o s , o m a i o r m y s t e r i o
e a maior pândega dos pretos : e quasi todos roubam com
descaro, d a n d o e m troco de d i n h e i r o sardinhas c o m p ó de
m i c o , cebollas c o m q u a t r o pregos espetados, cabeças de
p o m b o e m s a l m o r a para f o r t a l e c e r o a m o r , u m a i n f i n i t a serie
de extravagâncias. Os trabalhos são tractados como nos
consultorios-medicos, a simples cousulta d e seis a dez m i l
r é i s , a m o r t e de h o m e m s e g u n d o a sua i m p o r t â n c i a social e
o recebimento da i m p o r t â n c i a por partes. Q u a n d o é doença,
p a g a - s e n o a c t o — p o r q u e os b a b a l o x a s s ã o m é d i c o s , e c u r a m
c o m c a c h a ç a , u r u b u s , pennas de papagaio, sangue e hervas.
A policia visita essas casas c o m o consultante. Soube
nesses a n t r o s que u m antigo delegado estava amarrado a
uma paixão, g r a ç a s aos p r o d í g i o s de u m gallo p r e t o . A po-
l i c i a n ã o sabe p o i s q u e a l g u n s desses c o v i s f i c a m d e f r o n t e d e
casas s u s p e i t a s , q u e ha u m tecido de patifarias inconsci-
entes l i g a n d o - a s . Mas n ã o é possível a u m a s e g u r a n ç a tran-
s i t ó r i a acabar com o grande Vicio, com o Feitiço. Se u m
i n s p e c t o r v a s c u l h a r a m a n h ã os j a b o t y s e as figas d e u m a d a s
b a i u c a s , á t a r d e , n a d e l e g a c i a os p e d i d o s c h o v e r ã o . . .
Eu vi senhoras de alta p o s i ç ã o saltando, ás escondidas
de c a r r o s de p r a ç a , c o m o nos f o l h e t i n s - r o m a n c e , p a r a c o r r e r ,
t a p a n d o a c a r a c o m v é o s espessos, a essas casas; e u vi sessões
e m q u e m ã o s e n l u v a d a s t i r a v a m das carteiras ricas notas e
n o t a s aos g r i t o s d o s n e g r o s m a l c r i a d o s q u e b r a d a v a m .
— Bota dinheiro aqui !
41

Tive em mãos, c o m susto e pezar, fios longos de ca-


bellos de senhoras que eu respeitava e continuarei a res-
p e i t a r n a s f e s t a s e n o s b a i l e s c o m o as D e u s a s do Conforto e
da H o n e s t i d a d e suave. U m babaloxâ da costa da G u i n é g u a r -
dou-me dous dias á s suas o r d e n s p a r a acompanhal-o aos
logares onde havia serviço e eu o v i e n t r a r mysteriosa-
mente e m casas d e B o t a f o g o e d a T i j u c a , onde, durante o
i n v e r n o ha r e c e p ç õ e s e conversationes as 5 d a t a r d e c o m o e m
P a r i s e nos p a l á c i o s de Itália. A l g u n s pretos bebendo com-
m i g o i n f o r m a v a m - m e q u e t u d o era e m b r o m a ç ã o para v i v e r .
e, n o u t r o dia., t i l b u r y s p a r a v a m á p o r t a , c a v a l h e i r o s s a l t a v a m ,
pelo c o r r e d o r estreito desfilava u m resumo da nossa socie-
d a d e d e s d e os h o m e n s d e p o s i ç ã o á s p r o s t i t u t a s derrancadas,
c o m escala pelas c r i a d a s p a r t i c u l a r e s . De u m a vez mostra-
r a m - m e o r e t r a t o de u m a m e n i n a q u e eu j u l g o honesta.
— M a s p a r a q u e isso r
— E l l a q u e r casar c o m este.
Era a p h o t o g r a p h i a de u m a d v o g a d o .
— E vocês ?
— C o m o n ã o quer dar mais d i n h e i r o , o servicinho está
parado. A p e q u e n a já d e u t r e s e n t o s e c i n c o e n t a .
Tremi r o m a n t i c a m e n t e p o r a q u e l l a i n g e n u i d a d e q u e se
p e r d i a nos p o ç o s d o c r i m e á p r o c u r a do A m o r . . . •
Mas esse caso é c o m m u m . Encontrei papelinhos es-
criptos e m cursivo inglez, puro Coração de Jesus, c a r t õ e s
b i l h e t e s , p e d a ç o de seda p a r a m i s t e r e s q u e a m o r a l i d a d e n ã o
p o d e d e s v e n d a r . E l l e s d i z i a m os n o m e s c o m r e t i c ê n c i a s sor-
r i n d o e eu acabei h u m i l h a d o , e n v e r g o n h a d o , como se me
tivessem insultado.
— A c u r i o s i d a d e t e m l i m i t e s , disse a A n t ô n i o q u e de-
s a p p a r e c e r a h a v i a d i a s p a r a l e v a r ao s u b ú r b i o s u m a s negras.
Se e u d i s s e s s e m e t a d e d o q u e v i , c o m a s p r o v a s q u e t e n h o ! . . .
42

C o n t i n u a r é descer o m e s m o a b y s m o v e n d o a m e s m a cidade
mysteriosamente rojar-se diante do F e i t i ç o . . .Basta !
— V . S. n ã o passou dos p r i m e i r o s q u a d r o s d a r e v i s t a .
E p r e c i s o v e r as l o u c u r a s q u e o F e i t i ç o f a z , as b e b e r a g e n s
q u e m a t a m , os h o m i c i d i o s n a s c a m a r i n h a s que nunca a po-
licia soube, é preciso chegar á apotheose. Venha...
fí A n t ô n i o a r r a s t o u - m e p e l a r u a General Gomes Car-
neiro.
A C A S A D A S A L M A S

i
Os negros c a b i n c l a s cio R i o g u a r d a m c o m terror a his-
t o r i a de u m b r a n c o , q u e lhes a p p a r e c e u c e r t a vez e m p l e n o
s e r t ã o a f r i c a n o . Q u a n d o o rei d e u p o r elle, q u e p o r alii v i n h a
c a l m o , c o m as s u a s b a r b a s d e s o l , p r e c i p i t o u - s e m a i s a t r i b u
e m attitude feros. O branco t i r o u da c i n t a u m p e q u e n o f e i -
t i ç o de m e t a l e p r o s t o u m o r t o , g o l p h a n d o sangue, o babalácr
— E c h ú ! Echú! g a n i u a t r i b u r e c u a n d o de c h o f r e .
— Q u e m é s t ú , santo que eu n ã o c o n h e ç o ? fez t r e m u l o
o poderoso r e i .
— Sou o que p ô d e tudo, bradou o branco. V ê .
E s t e n d e u a m ã o de n o v o e m a t o u o u t r o s negros.
— S ó t e d e i x a r e i e m p a z se m e m o s t r a r e s t o d o s os t e u s
feitiços.
Sua Magestade, apavorada, levou-o á tenda real e d u -
rante o dia e d u r a n t e a noite, sem parar, lhe deu t u d o q u a n t o
sabia.
— P e r d ó o - t e , fez o b r a n c o . A d e u s ! L e v o para o mys-
t e r i o a r a i n h a . A c o n c h e g o u o f e i t i ç o , q u a p a r e c i a ogum, o
d e u s d a g u e r r a , n o seio d a p r e f e r i d a , d e i x o u - a c a h i r , e. p a r -
t i u de vagar pela estrada a f o r a . . .
N ã o precisei dos meios v i o l e n t o s d o C a r a m u r ú da A f r i c ã ,
para sabar do mais t e r r í v e l m y s t e r i o da r e l i g i ã o dos m i n a s :
— o ogum o u e v o c a ç ã o das a l m a s . N a q u e l l a m e s m a n o i t e e m
que encontrara A n t ô n i o , o negro serviçal levou-me a uma
casa n a s i m m e d i a ç õ e s d a p r a i a d e S a n t a Luzia.
— Em tudo é preciso m y s t e r i o d i z i a elle. V . S. v a i á
46

casa d o babaloxd, finge acreditar e depois é convidado para


uma c e r i m o n i a n a casa d a s a l m a s . Poderá então v e r o se-
gredo da p a n t o m i m a . Q u e m descobre o segredo do ogum,
m o r r e . E u me arrisco a m o r r e r .
A sua voz era t r e m u l a .
— Tens medo ?
— N ã o , m a s se m o r r e r a m a n h ã t o d o s os f e i t i c e i r o s d i r ã o
q u e f o i o f e i t i ç o . D o ogum d e p e n d e toda a t r a f i c a n c i a . O ne-
gro parou. N ã o imagina ! A b u b á c a Caolho, que m o r a na rua
d o R e z e n d e , é u m dos taes. Q u a n d o ha u m a morte, vai logo
dizer que foi quem a f e z . Se f o s s e m o s a c r e d i t a r n a s suas
mentiras, Abubáca tinha mais mortes no costado que ca-
bellos n a c a b e ç a . V . S. j á o v i u . E ' u m n e g r o q n e usa gravata
d o l a d o e pontas, — as r o u p a s v e l h a s d o s o u t r o s . . . Apotijá é
outro.
— M a s h a desse g ê n e r o d e m o r t e , A n t ô n i o ? fiz e u accen-
d e n d o o c i g a r r o c o m u m gesto shakespearano.
— Ora se ha' Vou provar quando quizer. De morte
m y s t e r i o s a l e m b r o a M a r i a R o s a D u a r t e , s o g r a d o mama Pão
B a l t h a z a r , alufá m u i t o a m i g o de u m p o l í t i c o conhecido ; o
Salvador Tápa, a Esperança Laninia, Larê-quê, Fantunchê,
o Jorge da rua do Estacio, O u g u - o l u s a i m . . . Todos m o r r e r a m
p o r t e r d e s c o b e r t o o ogum. N a B a h i a , e n t ã o , esses a s s a s s i n a t o s
são communs. Hei de lembrar sempre do velho feiticeiro
A g u i d y . C o i t a d o ! E r a dos q u e s a b e m . U m d i a f a r t o d e viver,
descobriu a traficancia e logo depois m o r r i a no incêndio do
T a b ã o , c o m os b r a ç o s c r u z a d o s , i m p a s s í v e l e a s o r r i r . A g u i d y
na m i n h a l í n g u a signifiça: — o que quer m o r r e r . . . Elle q u i z .
Pela praia cie S a n t a L u z i a o luar escorria silenciosa-
m e n t e , e d e l e v e o v e n t o s a c u d i n d o as f o l h a s d a s a r v o r e s em
m e l a n c ó l i c o sussurro, entristecia A n t ô n i o .
— Ah! meu senhor. N ã o é só por causa d o ogum que
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negro mata. Quando as Yauô não andam direito, quando


não fingem b e m , q u a s i n u n c a escapam de m o r r e r . Ha v á r i o s
processos de m o r t e : a m o r t e lenta, c o m beberagens e f e i t i ç o s
directos; a morte na camarinha por s u f f o c a ç ã o . . . Muitos
n e g r o s a p e r t a m u m a veia que a gente t e m no p e s c o ç o e d e n -
t r o d e u m m i n u t o q u a l q u e r pessoa e s t á morta. Outros de-
p e n d u r a m as c r e a t u r a s e ellas ficam b r a e e j a n d o n o a r c o m os
olhos arregalados.
A M o r t e e a L o u c u r a n e m s e m p r e se l i m i t a m a o e s t r e i t o
m e i o dos negros. As beberagens e o p a v o r a c t u a m sufiicien-
t e m e n t e nas pessoas q u e os f r e q ü e n t a m . A A s s i a t a , u m a n e -
gra baixa, fula e p r e s u m p ç o s a , m o r a d o r a á rua da Alfân-
d e g a , d i z e m os d a s u a r o d a que poz d o i d a na T i j u c a uma
senhora distincta dando-lhe misturadas para certa moléstia
do u t e r o . Apotija, o m a l a n d r o da rua do Hospicio, que apro-
v e i t a os m o m e n t o s cie o c i o para descompor o Brasil, tem
t a m b é m u m a v a s t í s s i m a c o i l e c ç ã o d e casos s i n i s t r o s . .
A M o r t e e t o d a s as v e s a n i a s n ã o s ã o a p e n a s os s u s t e n -
t a c u l o s d o s seus r i t o s e das suas t r a n s a c ç õ e s religiosas, s ã o
t a m b é m o m e i o de vida e x t r a - c u l t u a l , o processo de apanhar
h e r a n ç a s . A l i k a l i , lemamo a c t u a l d o s àlufás\t Amando Ginja,
cujo n o m e real é Fortunato Machado, quando m o r r e negro
rico v ã o logo á policia participar que n ã o deixou herdeiros.
A l i k a l i é t e s t a m e n t e i r o de quasi todos e b i c h o capaz de fazer
amará c o m as n e g r a s v e l h a s s ó p a r a lhes ficar c o m as casas.
A c e r t i d ã o de ó b i t o c dada sem m u i t a s observações.
Mas, Você conhece mais f e i t i c e i r o s , A n t ô n i o ?
— Pois n ã o ! O J o ã o M u s s ê , alufá feiticeiro tremendo,
q u e m o r a n a r u a S e n h o r d o s Passos 222 e é r e s p e i t a d o por
todos; Obalei-ve. Obá Jamin, Ochu-Togu.i, O c h u Bumin,
Emin-Ochun, Oumigy, Obitaió-homem. Õbitaiô-mulher {

O ç h u T a y o d ê , a Q c h u bobeio da rua d o Gattete, S y ê , Shan-


48

go-Logreti, Ajagum-barú, Echu-hemin, Angelina, o ogum


C o n r a d o . . . Mais de c e m f e i t i c e i r o s , m a i s de cem...
— Q u a s i t o d o s c o m os n o m e s d o s santos...
— Os n e g r o s u s a m s e m p r e o n o m e d o s a n t o q u e t e m n o
corpo...
M a s d e r e p e n t e A n t ô n i o p a r o u e n t r e as a r v o r e s .
— T e m o s ebó d e Iê-man-jd. A n e g r a l h a c l a v e m a h i . . . Se
q u e r v e r , esconda-se d e t r á s de a l g u m t r o n c o .
C o m e f í e i t o . S e n t i a m - s e v o z e s s u r d a s ao l o n g e cantando.
O d e s p a c h o , o u ebó, d a m ã i d ' a g ü a s a l g a d a , é u m algui-
d a r c o m pentes, a l f i n e t e s , a g u l h a s , p e d a ç o s de seda, dedaes,
perfumes, linhas, t u d o o que é femenino.
D e t r á s da arvore, pouco depois eu v i a p p a r e c e r n o p l e -
n i l ú n i o a t h e o r i a dos p r e t o s . A ' f r e n t e v i n h a u m a c o m o a l -
guidar na cabeça e cantavam baixo

Baô de ré se equi je-man-já


Pelé bé ano yo tô toro f y m la chá
Ere...

Era o offertorio. Ao chegar á praia, na parte e m que ha


uns rochedos, a negra desceu, depositou o alguidar. Uma
onda mais forte veia, bateu, virou o vaso de b a r r o , que-
b r o u - o , l e v o u as l i n h a s , e t o d o s b a l b u c i a r a m , r o j a n d o :

— Yê-man-]á!

A santa apparecera na phosphorecencia lunar, agrande-


cendo...
D e p o i s os s a c e r d o t e s e r g u e r a m - s e , r e u n i r a m e n ó s ficá-
m o s de n o v o s ó s , e m q u a n t o o o c e a n o r u g i a e ao l o n g e tris-
temente a canzoada ladrava.
— Ainda apanhamos o candomblé, fez A n t ô n i o . E ' p r e -
c i s o q u e o babaloxá c o n v i d e V . S. p a r a o ogum..:
49

N o u t r o d i a , p o u c o m a i s o u m e n o s á m e i a - n o i t e , estava-
m o s n o ilé-saim o u casa d a s a l m a s .
O ogum é uma c e r i m o n i a q u a s i p u b l i c a , a q u e os f e i t i -
ceiros c o n v i d a m certos brancos para presenciar a p a n t o m i m a
do seu extraordinário p o d e r . Esses c u r i o s o s fetiches, que
p a r a f a z e r o g u i n c h o de santo O s s a i m a m a r r a m nas p e r n a s
bonecas de borracha, com assobio; cujos santos s ã o u m
p r o d u c t o de bebedeiras e de hypnose, t e m na e v o c a ç ã o dos
e s p í r i t o s a m á x i m a e n s c e n a ç ã o d a sua f o r ç a sobre o i n v i s i v e ,
Q u a n d o m o r r e a l g u é m , quando todos estão diante do corpo
um dos pretos esconde-se e d á u m grito. N o m e i o da con-
l u s a o g e r a l , e n t ã o , m u d a n d o a v o z , esse n e g r o g r i t a :
-Emim, toculâmi mopé, cd-um-pé, mim! Eu que
m o r r i hoje, quero que c h a m e m por m i m .
Os d o n o s d o d e f u n t o a r r a n j a m o d i n h e i r o para a evo-
c a ç ã o , pessoas e s t r a n h a s a j u d a m t a m b é m c o m a sua q u o t a
p a r a a p r o v e i t a r e s a b e r d o f u t u r o O babaloxd n ã o faz o o*um
e m q u a n t o n ã o t e m pelo menos tresentos m i l réis. A r r a n j a d a
a quantia, começa a cerimonia.
Q u a n d o e n t r a m o s n a sala d a s a l m a s , á l u z f u m a r e i d o s
c a n d i e i r o s , a scena era estranha. H a v i a brancas, m e r trizes
d e g r a n d e s r o d e l l a s d e c a r m i m nas f a c e s , m u l a t a s e m c a m i s a
mostrando os b r a ç o s com" desenhos e miciaes e m azul dos
proprietários d o seu a m o r , e n e g r o s , m u i t o s n e g r o s . Esses
ú l t i m o s , sentados e m r o d a d o assoalho, estavam quasi n ú s
e algumas negras m e s m o i n t e i r a m e n t e nuas c o m os seios
p m d e n t e s e a c a r a p i n h a cheia de banha.
— P o r q u e e s t ã o e l l e s a s s i m .-
— Para mais f a c i l m e n t e receber o espirito.
J u n t o á p o r t a d o f u n d o , tres n e g r o s de vara e m punho
quedavam-se estáticos. Eram os anrríckans, que faziam

4
50

g u a r d a a o saluin o u q u a r t o d o s e s p í r i t o s . O u v i d e n t r o d o sa-
luin u m b a r u l h o de pratos, de copos tocados, de garrafas
desarrolhadas; u m m o m e n t o pareceu-me o u v i r ate o estouro
f o r t e d a champagne barata.
— H a gente lá d e n t r o ?
— A s a l m a s . E s t ã o se b a n q u e t e a n d o . O banquete f o i
p a g o pelos presentes. M a s , p s i u ! D a q u i a p o u c o começarão
as c a n t i g a s , q u e n i n g u é m c o m p r e h e n d e . O s a f r i c a n o s i n v e n -
t a m n o m e s p a r a a scena parecer m a i s f a n t á s t i c a ,
Com effeito, m i n u t o s d e p o i s , aos p r i m e i r o s sons dos
a t a b a q u e s , as n e g r a s b r a d a r a m :
— Aluá! o espirito! e r o m p e r a m u m a cantiga assustada

e tropega.
Anu-ha, a o ry au od d
San-nd elê-o ou baba
Locd-alò.

A porta continuava fechada, mas eu vi surgir de repente


um negro vestido de d o m i n ó c o m os pés amarrados em
p a n n o s . O s t r e s amiichans e r g u e r a m as v a r a s , o d o m i n ó m a -
cabro c o m e ç o u a bater a sua n o c h ã o , os xeguedès saeudi-
ram-se, e o u t r a cantiga estalou medrosa:

Loit-á gege vt(-rou ó uá


Xó la-ry la-ry lary
Que quê oura ô uchô
La-ry la mamau rú nam babá

-t-Vão appareecr as almas, tez Antônio, a cantiga diz:


P r o c u r a m o s a a l m a de F u l a n o e de C i c r a n o e n ã o a e n c o n -
tramos dormindo. Cançámos sem saber o m y s t e r i o q u e a
e n v o l v i a . A a l m a e s t á a q u i e e n t r o u pela p o r t a ' d o q u i n t a l .
T*~ M a s q u e r n é e s t ç d o m i n ó ?
51

— T E ' Baba-Ogum. As almas têm v á r i o s cargos. O que


traz u m a gamela c h a m a - s e Ala-lé-ontm, o 2 Opocó-echi,
0
o 3 0

Eguninhansan,e n o m e i o d e sete e s p i r i t o s a p p a r e c e o i n v o c a -
d o . E n t r e t a n t o o d o m i u ó Babagum batia furiosamente no
c h ã o c o m a sua vara de m a r m e l l o , e n o a l a r i d o augmentado
a p p a r e c e u aos p u l o s o u t r o d o m i n ó , o Mabà, q u e p o r sua vez
t a m b é m se p o z a b a t e r . E r a o ritual da entrega das almas.
Por f i m appareceu Ousaim, entiaçlo n u m a fantasia de bebê,
de x a d r e z v a r i a d o , c o m d u a s m a s c a r a s : u m a nas costas, o u -
tra tapando o rosto.
— Q u e m é esse . :

— O Bonifácio da Piedade, u m m a l a n d r o de cavaignac,


q u e faz s e m p r e de Enio-saim.
Eruosaim também d a n s a v a . E n t r e as c a n t i g a s , os anni-
ckans e r g u e r a m d e n o v o as v a r a s , a p o r t a a b r i u - s e , d o u s ne-
gros ficaram um d e c a d a l a d o , o atafun, ou confidente, e o
anuxam, sscretas. De d e n t r o s a h i r a m m a i s tres d o m i n ó s cheios
d e figas e e s p e l h i n h o s , c o m os p é s e m b r u l h a d o s n o s trapos.
As negras a t e r r o r i s a d a s , u i v a v a m , c o m o a m a r e l l o dos olhos
v i r a d o s e os e s p i r i t o s , n a q u e l l a algazarra, pareciam camba-
l e a r . H a v i a g e n t e p o r é m q u e os r e c o n h e c i a .
— Elles fingem os g e s t o s d o s m o r t o s , s e g r e d o u - m e A n -
tônio.
Palmas resoavam estridentes saudando a chegada do i n
v i s i v e l , as v a r a s de m a r m e l l o l a n h a v a m . o a r e as almas, e
n a q u e l l e c i r c u l o s i l v a n t e , ao s o m d o s xeguedès e dos atabaques
b a t i a m s u r d a m e n t e n o c h ã o aos p u l o s d a d a n ç a demoníaca.
Um dos espiritos, p o r é m , sentou-se n u m a espécie de
t h r o n o de m á g i c a . C o m o por encanto a dança cessou e n a -
quella pavída athmosphera, em que o medo g e m i a , as m u -
l h e r e s d e b o r c o , os h o m e n s contorcionados, o negro fanta-
siado g u i n c h o u do alto • \
\.
,1
52

— G u i l h e r m i n a o c ê percisa g o s t á de A n t o n h o . . . J o s é t e m
q u e f a z ê ebô p a r a e s p i r i t o m á o .
X í c a , u m h o r a e h a de v i a h i , o c é vai c o m e l l e . . .
— V e j a V . S. o chanlagc, m u r m u r o u A n t ô n i o . Os n e g r o s
recebem d i n h e i r o antes dos h o m e n s e o b r i g a m as c r e a t u r a s
p e l o t e r r o r a t u d o q u a n t o q u i z e r e m . P o r isso q u e m d e s c o b r e
o ogum, morre.
A X i e a , u m a m u l a t i n h a , coitada! tremia convulsivamente
m a s j á o u t r a s , n u a s , e m c a m i s a , s a c u d i n d o os m e m b r o s las-
sos, g a n i a m d e l o n g e b a t e n d o as v a r a s n u m t e r r o r exhaus-
tivo.
— E eu ? e eu ?
— O c é tá dereita,sua vida vai p ra f r e n t e .
— E eu e eu ? g a r g o l e j a r a m outras boccas em ester-

tores.
— O c ê e s t á p r a traz, percisa ebô.
A p p r o x i m e i - m e de u m dos e s p i r i t o s ; c h e i r a v a a e s p i r i t o
de v i n h o ; estava l i t t e r a l m e n t e bebedo.
Q u a n d o a c e r i m o n i a a t t i n g i a ao d e s v a r i o e j á os e s p i r i t o s
t i n h a m p a s t o s i d a d e s n a v o z , c a h i u n a sala c o m o u m bendegó
Inhansam, u m negro f i n g i n d o de santo m a t e r i a l i s a d o , e c m
m e i o d o p a v o r g e r a l , ao s o m d a s c a n t i g a s , e s t i c o u a m ã o s i -
n i s t r a , f o i p e d i n d o a c a d a c r e a t u r a 16 o bis, 16 orobôs, 16 g a l -
l o s , 16 g a l l i n h a s , 16 p i m e n t a s d a C o s t a , 16 m i l r é i s , u m ca-
brito, u m carneiro. Ao chegar ás meretrizes brancas Inhan-
sam ferozmente exgia p e ç a s de chita, fazendas e objectos
caros. A tnrba gritava toda : Inhansam! Inhansam! gente
n o v a e n t r a v a n a s a l a , e d e r e p e n t e , c o m o t o d o s se v o l t a s s e m
a n m g r i t o d a p e r t a , os e s p i r i t o s d e s a p p a r e c e r a m . . . T i n h a m
f u g i d o t r a n q u i l l a m e n t e pelo c o r r e d o r .
— E s t á a c a b a d o , f e z A n t ô n i o . Os e s p i r i t o s v â o e despir,e
v o l t a m d a h i â p o u c o p a r a v e r se o p e s s o a l a c r e d i t o u mesmo...
t
53

A scena m u d a r a e n t r e t a n t o . D i s s i p a d o o s u d a r i o apavo-
r a d o , todas aquellas carnes hyperestisadas erguiam-se a i n d a
vibrantes para a bacchanal. O álcool e a queda na realidade
estabeleciam o desejo. Negros arrastavam-se para o quintal,
para os c a n t o s , l o n g o s s o r r i s o s l u b r i c o s a b r i a m e m b o c e j o s
as b o c c a s e s p u m a n t e s , r i s i n h o s r e b e n t a v a m e n e g r o s fortes,
e s t e n d i d o s n o c h ã o , r o l a v a m as c a b e ç a s n u m a s é d e d e g o z o .
H a e n t r e as n e g r a s u m a p r o p e n s ã o s i n i s t r a p a r a o t r i b a -
d i s m o . E m pouco, naquella casinhola suja e m a l cheirosa.
eu via c o m o u m a c a r i c a t u r a h o r r e n d a as s c e n a s d e deboche
dos romances h i s t ó r i c o s e m m o d a . Mais dous negros entra-
ram.
— E n t ã o ogum esteve b o m P
— E eu que n ã o cheguei e m tempo..
— V e j a , m o s t r o u A n t ô n i o , lá e s t á o B o n i f á c i o Eruousaim
v e n d o se c a u s o u e f i e i t o f a n t a s i a d o d e bebe. V e n h a a t é o q u a r t o
do banquete.
Fomos. Antônio e m p u r r o u u m a p o r t a e logo nos achá-
mos numa sala c o m garrafas pelo chão, pratos servidos,
c o p o s e n t o r n a d o s , r o l h a s , os d e s t r o ç o s d e u m a f o m e voraz,
N u m canto a Xica dizia baixinho.
— E' você que o espirito disse...
Q u a n d o r e a p p a r e c e m o s , babaloxa murmurava:

— A festa está acabada, c o m p a n h e i r o s . . . E' n ã o deixar


d e t r a z e r o q u e Inhansam pediu.
S a h i m o s e n t ã o . V i n h a pelo c é o raiando a m a n h ã Palli-
d a m e n t e n a c a l l o t e c ô r d e p é r o l a as e s t r e l l a s t r e m i a m e d e s -
m a i a v a m . A n t ô n i o cambaleava. Chamei u m carro que pas-
sava, m e t t i - o d e n t r o . E m t o r n o t u d o d i z i a o m y s t e r i o e a
incomprehensão humana, o ether puro, os vagalhões do
m a r , as a r v o r e s calmas, T i n h a a c a b e ç a o c a . e, a p e z a r dos
assassinatos, dos r o u b o s , d a l o u c u r a , das e v o c a ç õ e s s i í u s t f a s ,
54

v i n h a d a casa d a s a l m a s j u l g a n d o babalaôs, babaloxás, mãis


de santo e f e i t i c e i r o s os a r c h i t e c t o s d e u m a religião com-
p l e t a . Q u e f a z e m esses n e g r o s m a i s d o q u e f i z e r a m t o d a s as
religiões conhecidas?
O c u l t o precisa de m e n t i r a s e de dinheiro. Todos os
c u l t o s m e n t e m e a b s o r v e m d i n h e i r o . Os q u e n o s desvenda-
ram os s e g r e d o s e a m a c h i n a ç ã o m o r r e r a m . Os a f r i c a n o s
também matam.
E e u , p e r d o a n d o o c r i m e desse s a c e r d ó c i o m i n a , q u e se
impõe e vive regaladamente, tive vontade de i r entregar
Antônio n e g r o e a d c r m i r á casa d e O j ô , p a r a que nunca
m a i s desvendasse a n i n g u é m o s i n i s t r o s e g r e d o d a casa das

almas.
s n o v o s f e i t i ç o s d e S a n i n
— P o i s seja! d i s s e Antônio, tomando coragem. V S.
p o d e i r , m a s n ã o c u s p a , n ã o f u m e e n ã o c o m a nessa c a s a . E u
não vou.
— Acompanbas-me até a porta.
— A t é a esquina, Ficarei de a l c a t é a . S a n i n e O j ô s ã o ca-
pazes de m e acabar c o m a v i d a .
A v i d a d e A n t ô n i o é u m a v i d a s o b t o d o s os t i t u l o s p r e c i -
osa, e n a q u e l l e m o m e n t o a i n d a o e r a m a i s , p o r q u e a s u s t e n -
tava eu. Reflecti e concordei.
— Está d i r e i t o , ficas á e s q u i n a . . .
Chovia a cântaros. Antônio, sem guarda-chuva,mettido
num capote, que lhe ia a t é aos p é s , accendia constante-
mente u m charuto, que apagava.
— M a s , q u e é esse S a n i n , a f i n a l ?
— U m feiticeiro damnado !
— M a s babaloxé,, babalaô, t r a f i c a n t e ?. .
— 'Babalaô, n ã o senhor. Para ser babalaô é preciso
m u i t a c o u s a . S ó de n o v i c i a d o , leva-se m u i t o t e m p o , annos a
fio, e a c e r i m o n i a é d i f f i c i l l i m a . Quando u m iniciado quer
s e r babalaô, tem que levar ao babalaô q u e o sagra d o u s ca-
britos pretos, duas galinhas d'Angola. duas galinhas da
t e r r a , d o u s patos, dous p o m b o s , dous bagres, duas preás,
u m k i l o d e l i m o , u m ori, u m p e d a ç o d e ossum, u m p e d a ç o de
g i z , d o u s gansos, d o u s gallos, u m a esteira, dous caramujos
e u m a p o r ç ã o de pennas de papagaio encarnadas.
— E'difficil.
58

— E n ã o é t u d o . T e m que levar t a m b é m u m k i l o de s a b ã o
d a c o s t a q u e se c h a m a ochô-i- biílaiê, e n ã o entra para o ibodo-
i f f á o u q u a r t o dos santos s e m estar de r o u p a n o v a e levar na
algibeira pelo menos 200S000. O futuro babalaô fica sete
d i a s n o ibodô, onde n ã o entra ninguém para n ã o ver o se-
gredo .
— O segredo?
— O s e g r e d o é u m o v o d e p a p a g a i o . V . S . já v i u u m o v o
de papagaio ? N u n c a ! E ' difficil. E quem vê u m ovo desses
a r r i s c a - s e a ficar c e g o . O ovo e m africano chama-se odidô
e g u a r d a m d e n t r o d e u m a c u i a o u ybadú. O i n i c i a d o fica i n -
t e i r a m e n t e n ú , senta-se na esteira e o v e l h o b a b a l a - ô i n d a g a
se c d e seu g o s t o f a z e r o i f f a . Se a r e s p o s t a for affirmativa,
lavam-se quarenta e dous caroços de d e n d ê com diversas
h e r v a s e nessa a g u a o babalaô novo toma banho.
Depois raspa-se-lhe a c a r a p í n h a , guardando-a para o
grande despacho, pinta-se-lhe o c r a n e o c o m g i z e faz-se a
matança.
— Todos os a n i m a e s ?
— T o d o s c a h e m ao g o l p e d a s n a v a l h a s a f i a d a s , o s a n g u e
e n c h e os al g u i e i a r e s , e s c o r r e p e l a casa, m a s ninguém sabe,
p o r q u e lá d e n t r o , cie v i v o s , s ó h a os d o u s babahôs e o aco-
íyto. O p r i m e i r o s a c r i f í c i o é p a r a echú. Mistura-se o sangue
do gallo c o m tabatinga, forma-se u m boneco recheiado c o m
os p é s , o f í g a d o , o c o r a ç ã o , e a c a b e ç a d o s b i c h o s , mettem-
se e m f o r m a cie o l h o s , n a r i z e bocea q u a t r o busios e está
f e i t o o echú. Em seguida esfaqueiam-se os outros bichos.
s a c r i f i c a n d o aos i f f à . O n o v o b a b a l a - ô r e c e b e n a cabeça um
p o u c o desse s a n g u e , o a c o l y t o ou ogiboiyjjfc amara-lhe na
testa uma penna de papagaio com linha p r e t a e, assim
prompto, o novo mathematieo fica seis d i a s aprendendo a
p r a t i c a de a l g u n s f e i t i ç o s t e m í v e i s e r e z a n d o á o s ndü i f f à .
59

Os iffa são dezeseis:-—eydy-obé, ojécu-meygy, jory-


meygy, ury-meygy, ôrosê-meygy. nany-meygy, obará-
mèygy, ccairá-meigy, egundà-meygy, osé-meygy, oturá-
mevgy, oreté-meygy, icá-meygy, eturáfan-meygy, ache-
m e y g y , e o g y - o f u m . N o fim d o s sete d i a s j u n t a m - s e os ossos,
as c a b e ç a s , os p é s d o s a n i m a e s c o m os r e s t o s de c o m i d a , a
p e n a d e p a p a g a i o d o j o v e n p r o f e s s o , as h e r v a s d o s serviços
a n t e r i o r e s , colloca-se t u d o n u m a l g u i d o r para jogar onde o
opelê disser, no m a r , n u m lago, e m q u a l q u e r rio. O iniciado
é q u e m leva o a l g u i d a r , sem perder a r a z ã o , e canta n ó tra-
jecto tres cantigas. . .
E s t á v a m o s no largo do C a p i m . A chuva era t a n t a que
nos o b r i g á r a a r e c o l h e r a u m b o t e q u i m q u a l q u e r , e A n t ô n i o
já sentado, b e b e n d o v i n h o d o porto e accendendo pela t r i -
g e s s i m a vez a h o r r e n d a p o n t a d o seu c h a r u t o , praparava-se
p a r a e n t o a r as m a v i o s a s c a n t i g a s . C h e g o u m e s m o a p e r p e t r a r
uma, a segunda, a mais c u r t a .

O-chê-yturá a narê praquê


Àbá gun-nem-gum gebó
Oury ôcú ou-myn-nan
E s s é o u x y - c á g ô - x é - n a n ló n a n .

Esta apavorada oração significa: sabão da Costa serve


para resguardar-se a gente do rei que c o m e u r u b ú e limo
da costa. N ó s , se c o m e r m o s limo ou urubú pelo p é , hoje
mesmo morreremos. Elle n ã o d e f e n d e filho c o m o filho.
— Alas o S a n i n ?
— V . S. n ã o quer aprender mesmo ? Deixe o Sanin.
Está chovendo tanto !
— O Sanin é ou n ã o u m sábio?
—• E ' m a l a n d r o .
— Ainda melhor.
60

Quando sahi, de d e n t r o do botequim, Antônio esticou


a mão.
— Orum-my-lá ború ybó, yê, ybó, ybó, xixé!
Negro amável! Com aquelle seu gesto sacerdotal
dizia-me:
— S a t i s f a z o D e u s q u e f a z t u d o e t u d o e n t o r t a , amem !
Abri o guarda-chuva e r s s p o n d i já de l o n g e .
— ybó-xixé!
Sanin m ó r a agora n a casa d o famoso Ojô, o director
s o c i a l d a f e i t i c a r i a . A casa d e O j ô f i c a n a r u a d o s A n d r a d a s ,
quasi no c o m e ç o , c o m u m aspecto pobre e um cheiro de-
s a g r a d á v e l . Quando batemos, a chuva rufava em torno um
barulho ensurdecedor. N ã o nos responderam. Batemos de
novo. A l g u é m de certc nos espiava. A f i n a l abriu-se a r o t u l a
e uma mulher appareceu.
— Baba Sanin ?
— N ã o está.
— Venho mandado por u m conhecido. S e m receio.
— A casa é d e Emanuel...
— O j ô , sei b e m . F o i o M i g u e l P e q u e n o q u e m e m a n d o u .
Abre.
De n o v o a r o t u l a f e c h o u . A m u l h o r ia consultar, mas
n ã o d e m o r o u m u i t o q u e voltasse a b r i n d o de esguelha e di-
zendo mysteriosamente.
— Entre.
A s a l a t i n h a a r e i a n o a s s o a l h o , os moveis concertados
i n d i c a v a m que O j ô vive b e m . N u m a cadeira u m facto branco
engommado, e mais longe o c h a p é o de palha attestava a
presença do feiticeiro.
— Então Sanin ?
— V e m já.
Poucs t e m p o depois appareceu S a n i n , de blusa azul e
61

gorro vermelho, o typo clássico cio m i n a desapparecido,


a n d a n d o m e i o de lado, c o m o olhar desconfiado. O pobre
d i a b o v i v e a s s u s t a d o c o m a p o l i c i a , c o m os j o r n a e s , c o m os
a g e n t e s . P a r a o seu c é r e b r o r e s t r i c t o de a f r i c a n o , desde q u e
c h e g o u , o R i o passa p o r transformações fantásticas. E' um
malandro, orgulhoso do feitiço e com um medo damnado
da cadeia. Fora de certo q u a s i á f o r ç a que apparecera, e s ó
m u i t o lentamente o pavor o deixou fallar.
—Baba S a n i n , o M i g u e l Pequeno m a n d o u - m e a q u i para
u m negocio m u i t o grave. Baba t e m uns feitiços novos.
—Não tem...
— E u sei q u e t e m . A b r i a c a r t e i r a , u m a c a r t e i r a d e e f f e i t o ,
c o m o as u s a m os h o m e n s d a p r a ç a , e n o r m e , c o m f e c h o s de
p r a t a . N ã o t e n h a m e d o . Se o B a b a n ã o m e faz o trabalho,
estou p e r d i d o . E ' a m i n h a u l t i m a esperança.
—Que trabalho ?
R e v o l v i as n o t a s d a c a r t e i r a , d e v a g a r , p a r a mostral-as'
tirei u m papelzinho e mysteriosamente murmurei :
—Aqui temo nome delia...
N a cara do feiticeiro deslisou u m sorriso diobolico :
—Aha ! Aha... Está b o m .
— S a n i n , eu t e n h o f é nos santos, mas os o u t r o s f e i t i c e i -
ros n ã o d ã o v o l t a ao n e g o c i o .
V o c ê vai acabar. Olhe, pode contar...
T u d o neste m u n d o ê esperança de d i n h e i r o , de felici-
d a d e , de paz, e t a n t o vive de e s p e r a n ç a o f e i t i c e i r o q u e a dá
c o m o as p o b r e s c r i a t u r a s q u e c o m e l l e a v ã o p r o c u r a r .
S a n i n c o m e ç o u a fallar d o s f e i t i ç o s dos o u t r o s , l e m b r o u - s e
d o s seus aos b o c a d o s , e e m p o u c o , c o m a e s p e r a n ç a d e g a n h a r
mais fazia-me revelações.
Cada feiticeiro t e m feitiços próprios. Abubáca Caolho,
o a l c o ó l i c o d a r u a d o R e z e n d e , t e m o-ibá, cuia c o m pimenta
62

d a costa e h e r v a s p a r a fazer m a l . Q u a n d o se f a l i a do ibd


diz-se s i m p l e s m e n t e : o feitiço do A b u b á c a . Gya., c a b e ç a de
pato c o m lesmas e o cabello da pessoa, é u m a descoberta
de Ojô e serve para enlouquecer. Q u e m quer enlouquecer
o p r ó x i m o a r r a n j a o u falsifica a o b r a de Ojô.
— M a s baba S a n i n , c o m o é q u e sabe t u d o isso }
— E n t à o n ã o a p r e n d i ? E u sei t u d o .
E c o m o sabe t u d o dá-me receitas. Fico sabendo, sem
pasmo, sentado n u m a cadeira, que giba de camello com
c o r p o de macaco e u m cabrito preto e m hervas m a t a m a
g e n t e e q u e esta d e s c o b e r t a é d o c e l e b r a d o J o ã o A l a b á , n e g r o
rico e s a b i c h ã o da r u a B a r ã o deS. Felix 76. Não é tudo.
S a n i n f a z - m e v a g a r o s a m e n t e d a r a v o l t a ao a r m a z é m d o f e i -
t i ç o . E u t o m o n o t a s c u r i o s a s dessa m e d i c i n a m o r a l e phy-
sica.
Para matar ainda ha o u t r o s processos. O malandrão
B o n i f á c i o da Piedade acaba u m c i d a d ã o pacato apenas c o m
cuspo, sobejos e trese o r a ç õ e s ; J o ã o A l a b á c o n s e g u i r á matar
a cidade c o m u m porco, u m carneiro, u m bode, u m gallo
p r e t o , u m j a b o t y e a r o u p a das c r e a t u r a s , auxiliado apenas
p o r d o u s n e g r o s n ó s c o m o tessitba, r o s á r i o , na m ã o , á hora
da m e i a - n o i t e ; pipocas, b r a ç o de m e n i n o , pimenta mala-
g u e t a e p é s d e a n j o a r r a n c a d o s ao c e m i t é r i o m a t a m e m tres
dias; dous jabotys e dous caramujos, dous obis, dous oro-
b ó s e t e r r a d e d e f u n t o s o b sete o r a ç õ e s que demorem sete
minutos chamando sete vezes a pessoa, é a receita do
E m y g d i o para e x p e d i r d e s t a v i d a os inimigos...
Ma f e i t i ç o s p a r a t u d o . Sobejo de cavallo c o m hervas e
duas orações, segundo Alufá Guinja, p r o d u z ataques hvs-
tericos; u m par de meias c o m o r a s t r o d a pessoa, h e r v a s e
duas orações, t u d o dentro 'de* u m a a
garrafa, f a l a perdera
t r a m o n t a n a ; cabello de d e f u n t o , u n h a s , p i n r a n t a da Costa e
h e r v a s o b r i g a m o i n d i v í d u o a s u i c i d a r - s e ; c a b e ç a s de cobras
e de k a g a d o , t e r r a d o c e m i t é r i o e caramujos atrazam a vida
t a l q u a l c o m o os p o m b o s com hervas d a m n i n h a s , e n ã o ha
c o m o pombas para fazer u m h o m e m andar para trás...
— Mas para dar sorte, caro t i o ?
-Ha m ã o de anjo roubada ao cemitério em dia de
sexta-feira.
— E para t o r n a r u m h o m e m l a d r ã o , por exemplo.
— U m r a t o , c a b e ç a de g a t o , hervas, o n o m e da pessoa e
orações.
— E p a r a f a z e r u m casal b r i g a r ?
— C a b e ç a de macaco, a r a n h a e u m a f a c a n o v a .
— E p a r a a m a r r a l - o s p o r t o d a a v i d a .-
O negro pensou, o l h a n d o - m e fixamente :
— U m obi, u m orobô, u n h a s d o s p é s e das m ã o s , p e s t a -
nas c l e s m a s . . .
— T u d o isso ?
— Preparado por m i m .
E n t ã o S a n i n f a l l a - m e d o s seus f e i t i ç o s . S a n i n ê p o e t a e é
phantasista.
Sob d e p e n d ê n c i a de O j ô , quasi seu escravo, esse negro
f o r t e , de q u a r e n t a annos, t r o u x e d o c e n t r o da Á f r i c a a capa-
c i d a d e p o é t i c a d a q u e l l a g e n t e d e m i o l o s t o r r a d o s , as u l t i m a s
novidades da phantasia feiticeira. Para conquistar. Sanin
t e m u r a b r e v e , q u e se p õ e ao p e s c o ç o . O b r e v e c o n t e m d o u s
tiras, u m a c a b e ç a de p a v ã o e u m c o l i b r i , t u d o c o l o r i d o e b r i -
lhante; para amar e t e r n a m e n t e , c a b e ç a s de r o l a e m saqui.
nhos de v e l l u d o ; p a r a apagar a saudade, pedras roxas do
mar.
Q u a n d o lhe pagam para que torne u m homem judeu
e r r a n t e , o p r e t o p r e p a r a c a b e ç a s de coelho, a presteza assus-
tada ; p o m b o s pretos, a dor; hervas do c a m p o , e e n t e r r a em
64

frente á porta do novo Ashaverus; quando pretende prender


para sempre u m a m u l h e r , faz u m breve de e s s ê n c i a s que o
apaixonado s a c o d e ao a v i s t a l - a . . . S a n i n é também máu—
m a s de m a n e i r a interessante, sem a malandragem estúpida
d e J o ã o A l a b á , e p a r a as m a l d a d e s t e m f e i t i ç o s i m p r e v i s t o s .
Para fazer b a r r i g a d á g u a , o n e g r o diz dous o/ás em-
q u a n t o a v i c t i m a b e b e ; p a r a t o r n a r os s ã o s e m m o r p h e t i c o s ,
atira-lhes e m c i m a u m a m i s t u r a de a r a n h a s , ovos, sapos e
p i m e n t a s d a C o s t a . O s seus t r a b a l h o s d e m o r t e s ã o os mais
d i m c e i s . S a n i n ao m e i o - d i a l e v a n t a n o t e r r e i r o u m a vara e
reza. P o u c o tempo d e p o i s sae d a v a r a u m m a r i m b o n d o e o
m a r i m b o n d o parte, vai p r o c u r a r a victima, e n ã o p á r a em-
quanto n ã o lhe inocula a m o r t e .
O m a r i m b o n d o é vulgar a vista do boto vivo metide
d e n t r o de u m a caveira humana ; em p r e s e n ç a do feitiço do
m o r c e g o , a aza que r o ç a e mata, a raposa e o lenço, e eu o
fui encontrar pondo e m execução o maior feitiço: baiacú de
espinho com ovo de j a c a r é , — q u e é o babalaô da agua,
b a i a c ú q u e faz seccar e i n c h a r a v o n t a d e das rezas e d o m i n a
as a l m a s p a r a t o d o o s e m p r e .
— Mas por que você, u m h o m e m t ã o poderoso, n ã o m e
queria receber?
— Porque a n d a m a fallar de n ó s , p o r q u e a policia vem
ahi. Fizemos outro dia até u m despacho no campo de
S a n t ' A n n a c o m os d e n t e s , os o l h o s d e u m c a r n e i r o , jabotys,
hervas e duas o r a ç õ e s para quem falia de nós deixar de
fallar.
— Mas por que u m carneiro?
— Porque o carneiro m o r r e calado. Foi d A n t ô n i o M i n a
quem fez o clespacho e t o d o s n ó s r e z a m o s de b r u ç o s c t o d o s
nós demos para o despacho, que custou cento e oitenta e
tres m i l r é i s .
65

E n t ã o eu apanhei o m e u c h a p é o , apertei a m ã o do fanta-


sista S a n i n .
— Pois fez m a l , baba, f e z m u i t o m a l e m d a r o sen d i -
nheiro, porque quem falia de vocês sou eu.
E c o m o o n e g r o a t t e r r a d o abrisse a bocca enorme, eu
a b r i a c a r t e i r a e o c o n v e n c i d e q u e t o d a s as s u a s f a n t a s i a s , a r -
r a n c a d a s a o c e r t ã o d a Á f r i c a , n ã o v a l e m o p r a z e r d e as v e n -
der bem.

Dinheiro, mortes, e infâmia as bases desse t e m p l o f o r -


midável do feitiço!
I

S A T A N I S M O
s a t a n i s t a s
— Satanaz! Satanaz i
—• (Jue voi ?
— N ã o o sabes t u r Q u e r o o a m o r , a r i q u e z a , a sciencia,-
o poder.
— C o m o as c r i a n ç a s , as b r u x a s e os d o i d o s — s e m fazer
nada p a r a os c o n q u i s t a r .
O p h i l o s o p h i c o T i n h o s o t e m nesta grande cidade um
u l u l a n t e p u n h a d o d e s a c e r d o t e s , e, c o m o s e m p r e q u e o s e u
n o m e apparece, arrasta comsigo o galope da l u x u r i a , a a n c i ã
da v o l ú p i a e do c r i m e , eu, que já o vira Echú, pavor dos
n e g r o s f e i t i c e i r o s , f u i e n c o n t r a l - o p o l u i n d o os r e t á b u l o s c o m
o seu d e b o c h e e m q u a n t o a t h e o r i a b a c c h i c a dos depravados
e das d e m o n í a c a s estorcia-se n o p a r o x i s m o d a o r g i a . . . Sata-
naz é c o m o a flecha de Z e n o n , parece que partiu mas está
parado—e firme nos c o r a ç õ e s . S u r g e m os c u l t o s , d e s a p p a -
r e c e m as c r e n ç a s , e s m a g a - s e a s u a recordação, mas, impal-
pavel, o E s p i r i t o do M a l espalha pelo m u n d o amordacidade
d e seu r i s o cynico e resurge quando menos se e s p e r a no
infinito poder da tentação.
C o n h e c i a l g u n s d o s s a t a n i s t a s a c t u a e s n a casa de S a y ã o ,
o e x ó t i c o h e r b a n a r i o d a r u a L a r g a d e S. J o a q u i m , o t a l q u e
t e m á p o r t a as a r m a s da Republica. Sayão é um doente.
A t o r d o a - o a l o u c u r a s e n s u a l . F a c e i r a n d o e n t r e os m o l h o s d e
hervas,cuja p r o p r i e d a d e quasi sempre desconhece, o a m b í g u o
homem d i s c o r r e , c o m gestos m e g a l o m a n o s , das mortes e
das curas q u e t e m f e i t o , d o s seus. a m o r e s e d o assedio das
m u l h e r e s e m t o r n o da sua g r a ç a . A conversa de S a y ã o é u m
coleio de lesmas c o m urtigas. Q u a n d o fala cuspinhando,
os O l h i t o s a t a c a d o s d e s a t y r i a s i s , t e m a gente vontade de
e s p a n c a l - o . A casa d e S a y ã o é , p o r é m , u m c e n t r o d e obser-
v a ç ã o . L á v ã o t e r as c a r t o m a n t e s , os m a g o s , o s negros dos
ebos, as m u l h e r e s q u e p a r t e j a m , t o d a s as g a m m a s d o crime
religioso, do s a c e r d ó c i o lugubre.
C o m o u m a c e r t a v e z , u m a n e g r a e s t i v e s s e a c o n t a r - m e as
propriedades mysteriosas da cabeça do pavão, eu recordei
que o p a v ã o no K u r d i s t a n é venarado, é o p á s s a r o maravi-
lhoso, cuja cauda e m leque reproduz o schema secreto do
deus ú n i c o dos iniciados pagãos.
— O senhor conhece a m a g i a ? fez a m e u lado u m h o m e m
e s q u á l i d o , c o m as a b a s d a s o b r e c a s a c a a a d e j a r .
Immediatamente Sayão apresentou-nos.
— O D r . Justino de M o u r a .
O h o m e m abancou, olhando c o m desprezo para o herba-
n a r i o , l i m p o u a testa' i n u n d a d a d e s u o r e m u r m u r o u lyrica-
mente.
— O h ! a Asia ! a Asia...
E u n ã o c o n h e c i a a m a g i a , a n ã o ser a l g u m a s f o r m a s d e
s a t a n i s m o . O D r . J u s t i n o p u x o u m a i s o seu b a n c o e c o n v e r -
s á m o s . Dias depois estava r e l a c i o n a d o c o m q u a t r o o u c i n c o
f r u s t e s , m a i s o u m e n o s i n s t r u i d o s , q u e c o n f e s s a v a m c o m des-
caro vicios horrendos. Justino, o mais exquisito e o mais
sincero, guarda avaramente o d i n h e i r o para comprar car-
neiros e chupar-lhes o sangue; o u t r o rapaz m a g r i s s i m o , que
f o i e m p r e g a d o dos C o r r e i o s , satisfaz a p e t i t e s m a i s inconfes-
sáveis ainda, quasi sempre cheirando a álcool; u m outro
m o r e n o , de g r a n d e s bigodes, é u m a f i g u r a das praças, que
se p ô d e e n c o n t r a r á s h o r a s m o r t a s . . . Se d e S a t a n a z e l l e s f a l l a -
v a m m u i t o , q u a n d o lhes p e d i a p a r a assistir á m i s s a n e g r a , os
73

h o m e n s t o m a v a m a t t i t u d e s de r o m a n c e e e x i g i a m o pacto e
a cumplicidade. v
A religião do Diabo sempre existiu entre n ó s , mais ou
m e n o s . Nas c h r c n i c a s d o c u m e n t a t i v a s dos satanistas actuaes
e n c o n t r e i casos d e envoulement e de malefícios, anteriores
aos f e i t i ç o s cios n e g r o s e a P e d r o I . A E u r o p a d o s é c u l o XVII
praticava a missa negra e a missa branca. E ' natural que
a l g u m feiticeiro f u g i d o plantasse a q u i a semente da a d o r a ç ã o
do m a l . Os d o c u m e n t o s — d o c u m e n t o s esparsos sem. conca-
t e n a ç ã o q u e o D r . J u s t i n o m e m o s t r a v a d e vez e m q u a n d o —
c o n t a m as e v o c a ç õ e s d o p a p a A v i a n o em 1745. O s
avianis-
t a s d e v i a m ser n e s s a t e m p o apenas clientes c o m o ê hoje a
m a i o r i a dos f r e q ü e n t a d o r e s dos espiritas, dos magos e das
cartomantes. No século passado o numero dos fanáticos
cresceu, o a v i a n i s m o transformou-se adaptando correntes
e s t r a n g e i r a s . A p r i n c i p i o s u r g i r a m os p a l l a d i s t a s os lucifc-
ristas que a d m i r a v a m Lucifer, i g u a ! de Acionai, i n i c i a l do
B e m e deus da L u z .
Esses f a z i a m u m a f r a n c o - m a ç o n a r i a , c o m u m c u l t o p a r t i -
c u l a r , q u e e x p l i c a v a a v i d a d e Jesus d o l o r o s a m e n t e . G u a r d a m
a i n d a os s a t a n i s t a s c o n t e m p o r â n e o s a l g u n s nomes da con-
fraria que insultava a V i r g e m c o m palavras stercorarias : —
E d u a r d o de Campos, Hamilcar Figueiredo, T h e o p o m p o d e
Souza, Teixera W e r n e c k e outros, usando pseudônimos c
c o m p o n d o u m r o s á r i o de n o m e s c o m s i g n i f i c a ç õ e s o c e u l t i s t a s
e s y m b o l i c a s . Os palladistas n ã o m o r r e a a m de toclo, antes
se t r a n s f u s a r a m e m f o r m a s p o é t i c a s . N o P a r a n á , o n d e h a u m
m o v i m e n t o o c e u l t i s t a a c c e n t u a d o — c o m o h a t o d a s as f o r m a s
da c r e n ç a , sendo o povo de poetasimpressionaveis,—existem
actualmente escriptores luciferistas que estão dans le train
dos processos da c r e n ç a na Europa. A franco-maçonária,
m o r t o o seu a n t i g o chefe, u m padre italiano Victorio Sen-
74

g a m b o , f u g i d o da Itália por crimes contra a moral, desap-


pareceu. N o B r a s i l n ã o a n d a m a s s i m os a p ó s t a t a s e, apezar
d o desejo de f o r t u n a e de s a t i s f a ç õ e s m u d a n a s , é diffjcü se
e n c o n t r a r u m caso d e a p o s t a s i a n o c l e r o b r a s i l e i r o . Os luci-
feristas ficaram apenas curiosos relacionados c o m o s u p r e m o
directorio de Charleston. d o n d e p a r t i r á o n o v o d o m í n i o do
m u n d o e a sua deschristianisação.
Os satanistas ao contrario imperam, sendo como são
mais modestos.
Sabem que Satan ê o proscripto, o infame, o m a l , o cons-
p u r c a d o r , f a z e m apenas o c a t h o l i c i s m o inverso, e s ã o supers-
ticiosos, depravados mentaes, o u ignorantes apavorados das
f o r ç a s ocultas. O n u m e r o de crentes convictos é curto ; o
n u m e r o de crentes inconscientes é infinito.
Seria c u r i o s o , neste a c o r d a r d o espiritualismo, em que
os p h i l o s o p h o s m a t e r i a l i s t a s s ã o a b a n d o n a d o s pelos mysti-
cos, ver c o m o v i v e S a t a n , c o m o goza s a ú d e o Tentador.
N u n c a esse e s p i r i t o i n t e r e s s a n t e d e i x o u d e ser adorado.
N o i n i c i o dos s é c u l o s , na i d a d e - m e d i a , nos t e m p o s modernos
contemporaneamente, os c u l t o s e os incultos veneram-no
c o m o a i n c a r n a ç ã o dos deuses p a g ã o s , c o m o o p o d e r con-
t r a r i o á cata de almas, como o Renegado. As almas das
m u l h e r e s t r e m e m ao o u v i r - l h e o n o m e , as c r e a ç õ e s littera-
rias f a z e m - n o de i d é a s frias e b r i l h a n t e s c o m o floretes d'aço,
no t e m p o do r o m a n t i s m o o Sr. Diabo f o i saliente. H o j e S a t a -
naz dirige as litteraturas perversas, as pornographias, as
p h i l o s o p h i a s a v a r i a d a s , os m y s t i c i s m o s perigosos, assusta a
é g r e j a Catholica, e cada h o m e m , cada m u l h e r , por momen-
tos ao m e n o s , t e m o desejo de o chamar para ter amor,
riqueza, s c i e n c i a e o p o d e r . B e m d i z e m os p a d r e s : Satanaz
é o Tentador ; b e m o p i n t o u T i n t u r e t o na T e n t a ç ã o , bonito
e loiro como u m a n j o . . .
75'

A nossa t e r r a s o f f r e c r u e l m e n t e da c r e n d i c e dos negros,


a g a r r a - s e aos f e i t i c e i r o s e f a z a p r o s p e r i d a d e d a s s e i t a s d e s d e
que estabeleçam o milagre. Satanaz faz m i l a g r e s a troco
d a l m a s . Q u e m e n t r e n ó s a i n d a n ã o teve a e s p e r a n ç a i n g ê n u a
d e f a l l a r ao D i a b o , á m e i a n o i t e , m e s m o a c r e d i t a n d o e m D e u s
e crendo na t r a p a ç a de Fausto ? Quantos p o r conselhos de
m a g o s falsos, e m noites de t r o v o a d a , n ã o se a g i t a r a m e m
logares desertos á espera de ver s u g i r o G r a n d e Rebelde ? H a
no ambiente u m a p r e d i s p o s i ç ã o para o satanismo, e como,
s e g u n d o o A p o c a l y p s e , é talvez neste s é c u l o que Satanaz yai
a p p a r e c e r , o n u m e r o dos satanista a u t h e n t i c o s conhecedores
da Kabbala, dos fios imantados, prostituidores da missa,
a u g m e n t o u . Ha hoje para m a i s de. c i n c o e n t a .
Q u a r t a - f e i r a santa e n c o n t r e i o Dr. Justino no S a y ã o , O
pobre estava m a i s pallido,, m a i s m a g r o e m a i s s u j o , l e v a n d o
sempre o lenço á b o c c a , c o m o se s e n t i s s e g o s t o d e s a n g u e .
— C o n t i n u a nas suas s c e n a s d e v a m p i r i s m o , s u s s u r r e i e u .
Nos olhos do Dr. J u s t i n o u m a l u z de odio brilhou-
— I n f e l i z m e n t e o s e n h o r n ã o sabe o q u e d i z ! D e u dous
p a s s o s a g i t a d o s , v o l t o u - s e , r e p e t i u : i n f e l i z m e n t e n ã o sabe o
que diz ! O vampirismo ! a l g u é m sabe o que isto é Não
se f a ç a d e s c e p t i c o . E m q u a n t o r i , a m o r t e o envolve. Agora
m e s m o está sentado n u m m o l h o de solanéas.
E u o deixara dizer, subitamente penalisado. N u n c a o vira
t ã o nervoso e c o m u m c h e i r o t ã o p r o n u n c i a d o de álcool.
— N ã o r i a m u i t o . O v a m p i r i s m o c o m o a sua p h i l o s o p h i a
c o o p e r a m para a v i c t o r i a d e f i n i t i v a de Satan... Conhece o
Diabo ?
A p e r g u n t a f e i t a n u m restaarant bem ílluminado seria
e n g r a ç a d a . N'aquelle a m b i e n t e de herbanario, e na noite
e m q u e Jesus s o f f r i a , f e z - m e m a l . «^•d-rs^qa,
— N ã o . T a m b é m c o m o o conhecer, sem o pacto ?
76

— O pacto c o conhecimento de causa.


Passeou f e b r i l m e n t e , o l h a n d o - m e c o m o a relutar com
u m d e s e j o s i n i s t r e . P o r fim a g a r r o u - m e o p u l s o .
— E se l h e m o s t r a s s e o D i a b o , g u a r d a r i a s e g r e d o ?
— Guardaria! murmurei*
— Então venha.
E bruscamente sahimos para o luar fantástico da rua.
Esta scena a b r i u - m e de r e p e n t e u m m u n d o de horrores. O
D r . J u s t i n o , m e d i c o i n s t r u í d o , era s i m p l e s m e n t e u m louco.
No b o n d , aconchegando-se a m i m , a e x t r a n h a c r e a t u r a disse
o q u e estivera a f a z e r antes d o nosso e n c o n t r o . F o r a beber o
seu sanguezinho, ao escurecer, num açouque conhecido.
C o m o t o d o s os d e g e n e r a d o s , abundou nos detalhes. Man-
d a v a s e m p r e o c a r n e i r o a n t e s ; d e p o i s , q u a n d o as estrellas
l u z i a m , entrava no pateo, fazia u m a i n c i s ã o no pescoço do
bicho e chupava, sorvia gulosamente todo o sangue, o l h a n d o
os o l h o s v i t r e o s d o animal agonisante.
N ã o teria eu lido nunca o livro sobre o vampirismo, a
p o s s e s s ã o dos corpos? Pois o v a m p i r i s m o era uma conse-
q ü ê n c i a f a t a l dessa l e g i ã o d e a n t i g o s d e u s e s p a g ã o s , os saty-
r o s e os f a u n o s , q u e S a t a n a t i r a v a a o m u n d o c o m a f o r m a d e
suecubos e incubos. O D r . J u s t i n o era perseguido pelos
incubos, n ã o podia resistir, entregava-se... Já n ã o tinha
espinha, já n ã o podia respirar, já n ã o podia mais e sentia-se
varado pelos s y m b o l o s f e c u n d o s dos incubos c o m o as f e i t i -
ceiras e m ê x t a s e , nos grandes dias de sabbat.
Sacudia cabeça como quem faz u m supremo esforço
para n ã o sossobrar também.
O cidadão com que fallava era u m d o i d o atacado do
solitário vicio astral! Elle, entretanto , febril, c o n t i n u a v a a
descrever o poder de S a t a n s o b r e os cadáveres, a legião
que a c o m p a n h o u o S u p r e m o e o i n e b r i a m e n t o sabbatico.
il

— Mas, d o u t o r , c o m p r e h e n d a m o s . O sabbat em plena


cidade ? As feiticeiras de Shakspeare n o E n g e n h o N o v o ?

— Satan continua cultuado, por mais que o m u n d o se


t r a n s f o r m e . O s a b b a t j á se f e z a t é n o s t e l h a d o s . O s gatos e
os m o r c e g o s , a n i m a e s d e S a t a n , v i v e m e n t r e as t e l h a s .

L e m b r e i - m e d e u m caso d e l o u c u r a , u m estudante que


recebia o d i a b o pelos telhados, e m o r r e r a f u r i o s o . N ã o m e
pareceu de t o d o falso. O sabbat, p o r é m , o sabbat clássico, a
festa h o r r e n d a da noite, o delírio nos bosques e m que as
a r v o r e s p a r e c e m d e m ô n i o s , a r o n d a d e t e s t á v e l das mulheres
n ú a s , s u b i n d o aos m o n t e s , d e s c e n d o as-montanhas, a fúria
necrophila que desenterrava c a d á v e r e s e bebia álcool com
sangue extinguiu-se. A antiga orgia, a c o m m u n i c a ç ã o i m -
m u n d a c o m o D i a b o n ã o passa de contos de demographos,
d e f a n t a s i a s de c u r i o s o s . S a t a n v i v e h o j e e m casa c o m o q u a l -
q u e r b u r g u e z . Esse c a v a l h e i r o p o d e r o s o , o T i n h o s o , n ã o v a i
m a i s p a r a t r a z d a s e r m i d a s o f f i c i a r , as f ú r i a s desnudas n ã o
e s p r e m e m m a i s o suco da vida, r o l a n d o nas pedras, sob a
ventania d o c i o . T o d o o m a l que a Deus f a z e m é e m casa,
nos deboches e na p r o s t i t u i ç ã o da missa.

E q u e v i d a a d e l l e s ! A g o r a q u e o b o n d passava p e l l o ca-
n a l d o M a n g u e e a l u a b a t i a n a c o m a das p a l m e i r a s , o p o b r e
homem, tremendo c o n t a v a - m e as suas n o i t e s de agonia.
S i m , o D r . J u s t i n o t e m i a os l é m u r a s e as l a r v a s , d o r m i a c o m
u m a navalha debaixo do travesseiro, a n a v a l h a d o C a m b u c á ,
u m assassino q u e m o r r e r a de u m t i r o . As larvas s ã o f r a g -
m e n t o s de i d é a s , e m b r y õ e s de coleras e ó d i o s , restos de r a i -
vas d a m n a d a s que sobem do sangue dos c r i m i n o s o s e do
s a n g u e r e g u l a r d a s e s p o s a s e v i r g e n s aos a s t r o s p a r a envol-
v e r as c r e a t u r a s , s ã o os d e s e s p e r o s q u e se t r a n s f o r m a m e m
t o i r o s e e l e p h a n t e s , s ã o os a n i m a e s d a l u x u r i a . E esses a n i -
78

maes esmagavan-no preparando-o para o grande escândalo


dos incubos.
— M a s c e r t a m e n t e , fiz p a r a a c a l m a l - o , S a t a n , d e s d e q u e
se f a z c o m o i n f e r n o u m p a c t o e u m a a l i a n ç a c o m a m o r t e ,
dá o supremo poder de magia, o quebranto, a bruxaria, o
m a l e f í c i o , o e n v o l v e r das vontades...
Elle s o r r i u t r i s t e m e n t e , t i r i t a n d o de f e b r e .
A m a g i a e s t á m u i t o d e c a í d a , eivada de costumes a f r i c a -
nos e m i s t u r a d a s de p a g é s . Conhece o malefício do odio, a
boneca de cera virgem? Esmagava-se a cera, mode-
lava-se u m b o n e c o p a r e c i d o c o m o o d i a d o , c o m u m dente,
u n h a s e c a b e l l o s s e u s . D e p o i s v e s t i a m - l h e as r o u p a s d a pes-
soa e n o b a p t i s m o d a v a - s e - l h e c seu p r ó p r i o n o m e . P o r s o b r e
a boneca o m a g n o estendia u m a corda c o m u m n ó , s v m b o l o
d a sua r e s o l u ç ã o e e x c l a m a v a : — Arator, Lepidator, Tenta-
dor, Somniator, Ductor, Comestor, Devorator, Seductor,
companheiros da destruição e do odio, semeadores da dis-
c ó r d i a q u e a g i t a m l i v r e m e n t e os m a l e f í c i o s , p e ç o - v o s e con-
j u r o - v o s q u e a d m i t t a i s e c o n s a g r e i s esta i m a g e m . . .
— E a cera morria...
— A n i m a d o d o s e u o d i o , o m a g o d o m i n a v a as p a r t í c u l a s
fluidicas d o odiado, e p r a g u e j a n d o acabava atirando a bo<-
n e c a ao f o g o , d e p o i s d e t r e s p a s s a l - a com uma faca. Nessa
occasião o o d i á d o morria.
— E ochoque de volta?
— Q u a n d o o e n f e i t i ç a d o percebia, e m logar de c o n s e n t i r
n a s p e r t u r b a ç õ e s p r o f u n d a s d o s e u ser, a p r o v e i t a v a os f l u i d o s
c o n t r a o assassino e h a v i a c o n f l a g r a ç ã o .
O m á g i c o , p o r é m , podia envenenar o dente da pessoa,
distender-se no ether e i r tocal-a.
H a v i a a i n d a o envoutement rectangular...
H o j e , os f e i t i c e i r o s s ã o n e g r o s , os f l u i d o s d e uma raça infe-
7°.

rior destinados a u m clominio r á p i d o . Os m a l e f í c i o s satâni-


cos estão inundados de azeite de dendê e de hervas de
caboclos.
Então encostados a m i m , c o m m á o hálito, e n q u a n t o o
bond corria, o D r . Justino d e u - m e varias receitas. Como se
e s t u d a nesse r e c e i t u a r i o m a c a b r o o t e m o r d e varias raças,
d e s d e os c i g a n o s b o h e m i o s a t é os brancos assustadiços! O
s a n g u e é o s e u g r a n d e f a c t o r : cj|ada f e i t i ç o é u m mixto de
i m u n d i c i e e de i n f â m i a . Para possuir, para amar, para ven-
c e r , os s a t a n i s t a s u s a m , a l é m das receitas da clavicula, de
morcegos, porcos da í n d i a , p ó s , hervas, sangue mensal das
m u l h e r e s , ratos brancos, p r o d u c t o de espasmos, c a m o n d o n -
gos, rabos de gatos, m o e d a s de o u r o , fluidos, carnes, bolos
de f a r i n h a c o m óleos, e para abrir u m a chaga e m p r e g a m , por
exemplo, o ácido s u l p h u r i c o . . .
— C o m o p o d e r d o H o r r e n d o , fez s u b i t a m e n t e o m e d i c o
n u m a n o v a c r i s e , é l á p o s s í v e l t e m e r esse i d i o t a q u e morreu
n a c r u z ? S a b e q u e os t a l m u d i s t a s j a e g a m a ressurreição?
Levantou-se titubeante, saltamos. O bond desapa-
r e c e u . E m b a i x o , n o l e i t o d o c a m i n h o d e f e r r o , os raüs d'aço
b r a n q u e j a v a m , e n o ar, m o r c e g o s f a z i a m c u r v a s sinistras. O
D r . J u s t i n o a r d i a e m f e b r e . D e r e p e n t e e r g u e u os p u l s o s .
— Impostor! Torpe! Salafrário' ganiu aos céos es-
treliados.
— Onde vamos ?
— A ' missa negra...
— Onde ?
— Alli.
Estendeu a m ã o , veiu-lhe u m vomito, emborcou no m e u
b r a ç o que o amparava, golphando n u m estertor p e d a ç o s de
sangue coagulado.
A o longe ouviu-se o silvo da locomotiva. A lua no alto ceo }
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a lua da semana santa que parece de u m a luz mais nítida


entre sombras mais negras, deslisava na doçura do céo
c o m o u m a h ó s t i a de tristezas.
Então, com o possuído d o D i a b o nos b r a ç o s eu b a t i a
p o r t a dos s a t a n i s t a s , o u v i n d o a sua d e s g r a ç a d a v i d a e a d o r
infindável da m ò r t e ;
m i s s a n e g r a
A t r a v e s s á m o s u m a aléa de sapucaias. O t e r r e n o enlame-
ado pegava na sóla dos sapatos. J u s t i n o ia á frente, c o m u m
p r e t o q u e assobiava d o u s c ã e s sujos e m a g r o s . P o r entre os
c a n t e i r o s i n c u l t o s c r e s c i a a h e r v a d a m n i n h a , e os t r o n c o s d a s
a r v o r e s , m o l h a d o s de l u a r , p a r e c i a m c u r v a r - s e .
— Entramos no inferno?
— V a m o s ao s a b b a t m o d e r n o .
Tinhamos chegado ao v e l h o p r é d i o , que emergia da
s o m b r a . O n e g r o e m p u r r o u a p o r t a e todos tres, m y s t e r i o -
samente, penetramos n u m a saleta quasi escura, onde não
havia n i n g u é m . Justino lavou as mãos, r e s p i r o u f o r t e e,
abrindo u m a outra porta, sussurrou :
— Entra.
D e i n u m a v a s t a sala c h e i a d e g e n t e . Candieiros de ke-
rosene c o m reflectores de f o l h a pregados á s paredes pare-
ciam uma fileira de olhos, de fócos de l o c o m o t i v a g o l p e a n d o
as t r e v a s n u m a pertinaz interrogação. A atmosphera, im-
p r e g n a d a de c h e i r o s m á o s de p ó de a r r o z e de s u o r , s u f f o c a v a .
Encostei-me ao portal indeciso. Remexia e gania entre
aquellas q u a t r o paredes o m u n d o estercorario do R i o . Velhos
viciados á procura de emoções novas, fufias hystericas e
nynphomaniacas, mulatas perdidas, a ralé da prostituição,
t y p o s a m b í g u o s de c a l ç a s largas e m e n e i o s de q u a d r i s , caras
l i v i d a s d e rodeurs das p r a ç a s , h o m e n s d e s b r i a d o s , toda essa
massa heteroclita cacarejava i m p a c i e n t e para que começasse
a o r g i a . O s v e l h o s t i n h a m o l h a r e s c u p i d o s , m e l o s o s , os t y p o s
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d ú b i o s t r a t a v a m - s e e n t r e si d e c o m a d r e s , c o m as f a c e s pin-
tadas, e a u m c a n t o o e m p r e g a d o dos C o r r e i o s , esticando o
pescoço depennado de condor, fixava na p e n u m b r a a presa
f u t u r a . N ã o era u m a r e l i g i ã o ; era u m c o m e ç o de s a t u r n a l .
Senti que me tocavam no braço. Voltei-me. Era um
poeta m u i t o vermelho, que cultivara outr'ora, n u m a revista
de arte, o satanismo l i t t e r a r o . Desequilibrado, mattoide, o
C a r o l i n o estava a l l i . e m p a r a d a i n t i m a de p e r v e r s ã o p o é t i c a .
— T a m b é m t u ? fez a p e r t a n d o - m e a m ã o entre as suas
viscosas d o s u o r . C u r i o s o , h e i n ? Mas p a l h a ç a d a , filho, pa-
l h a ç a d a ! E ' a s e g u n d a a q u e eu assisto. U m a m i s s a n e g r a de
j o r n a l d e P a r i s c o m i l l u s t r a ç õ e s ao v i v o . . . I m a g i n a q u e n e m
h a padres: O o f f i c i a n t e é o d e g e n e r a d o q u e a n d a á n o i t e pelas
praças.
— E as h ó s t i a s
— A s h ó s t i a s , essas ao m e n o s s ã o a u t h e n t i c a s roubadas
ás igrejas. Dizem a t é . . . Esticou-se, c o l l o u a bocca ao meu
ouvido como quem vai fazer u m a espantosa revelação:
d i z e m a t é que ha u m s a c r i s t ã o na cidade a mercadejal-as. E '
p a r a q u e m q u e r . , . h ó s t i a s a dez t o s t õ e s E ' boa ?
Mas q u e d i f f e r e n ç a , m e u c a r o , d a m i s s a a n t i g a , d a ver-
dadeira !
— N ã o se m a t a n i n g u é m
— E ' lá p o s s i v e l ! E a policia } J á n ã o estamos no t e m p o
de Griles de Rais n e m d a M o n t e s p a n . . . B o m t e m p o esse !
Pousou os d e d o s n o peito, r e v i r o u os olhos saudosos.
E r a c o m o se t i v e s s e t i d o r e l a ç õ e s pessoaes c o m o Gilles ea
Montespan.
A t u r b a e n t r e t a n t o c o n t i n u a v a a p i a r . l edas á s janellas
fechadas f a z i a m da sala um forno. Carolino encostou-se
t a m b é m e deu-me i n f o r m a ç õ e s curiosas. Estava vendo eu
uma rapariga loura, com uma fistula no queixo e óculos
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a z u e s ? E r a u m a troteuse da p r a ç a Tiradentes. Certo h o m e m


p a l l i d o , q u e c o r c o v a v a a b a n a n d o - s e , era a r t i s t a peladanista,
o u t r o g o r d o e flacido fazia milagres e intitulava-se m e m b r o
da Sociedade de Estudos Psychicos. Havia de tudo...
U m a senhora, vestida de n e g r o , passou p o r n ó s grave, c o m o
cançada.
— E está ?
— E' a princeza... U m a m u l h e r original, estranha, q u ê
já a d o r o u o f o g o . . .
— Mas você está fazendo romance. Isso é l i t t e r a t u r a .
— T u d o é litteratura ! A litteratura é o m i r i f i c o agente
do vicio. P o r que estou eu a q u i ? A l i t t e r a t u r a , H u y s m a n , o
c o n e g o D o c r e d o La Bás, os l i v r o s e n e r v a d o r e s . Os q u e ar-
r a n j a r a m estas scenas, o r a p a z dos Correios, o Justino, o
Bóde...
— O Bóde.-
— E' o nome satânico do sacerdote... t e m o cérebro
c o m o u m a s a n d w i c h e de l i t t e r a t u r a .
— M a s o r e s t o , estas q u a r e n t a s pessoas q u e e u v e j o , t e n h o
a certeza de ver e q u e e n c o n t r a r e i talvez a m a n h ã nas r u a s ?
— E m ruas m á s . . . S ã o clepavrados, pervertidos, doentes,
endemoinhados! Satan, m e u a m i g o , S a t a n , q u e os p a d r e s
arrancam dos c o r p o s das mulheres no Rio de J a n e i r o , a
varadas.
— E sempre o melhor mèio.
— O ú n i c o efficaz—mas que nos tiraaillusão ea fan-
tasia. . . Confesse. E' u m gozo a descida ao a b y s m o d a per-
d i ç ã o c o m o D e u s d o M a l , este b a n h o de g o s m a e m que, de
d e i r r e a e s as s c e n a s , n ã o as a c r e d i t a m os nossos o l h o s , ao
v e l - a s n e m os n o s s o s o u v i d o s o u v i n d o - a s . Começa a ceri-
monia. .. Entremos. S ó falta aqui o fallecico c o r o n e l . . .
A b r i r a - s e u m a p o r t a , a d a casa d e j a n t a r , e a c r á p u l a e n -
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t r a v a aos e n c o n t r õ e s d a n d o - s e b i l i s c õ e s , c o r a o o l h a r g u l o s o
e devasso. E n t r á m o s também.
C o m o era rasoavel a d e s i l l u s â o de Carolino ! A missa
n e g r a q u e eu assisti era u m a p a r o d i a carnavalesca e sádica.
u m a m i s t u r a d e v a r i a s m i s s a s c o m i n v e n ç õ e s pessoaes d o sa-
cerdote. Havia phrasesdo officio da Observância, trechos
s a c r i l e g o s d o a b b a d e G u i b o u r g , a m i s s a d e V i n t r a s , esse d o i d o
formidável, a p a r a t o s c o p i a d o s aos Ansariés da Syria e um
desmedido deboche, o deboche d o theatro S. Pedro e m noite
d e c a r n a v a l , se a p o l i c i a n ã o c o n t i v e s s e o d e s e j o e as portas
se f e c h a s s e m . C a r o l i n o t i n h a r a z ã o .
O e r o t i s m o a m b i c i o s o de o u t r ' o r a d e v i a ser mais inte-
ressante. G u i b o u r g aspergindo dágua benta o corpo n ú
da Montespan deitada nos evangelhos d o s r e i s , os p o m b o s
queimados, a paixão de Nossa Senhora lida c o m os pés
d e n t r o d ' a g u a , o c i b o r i o c h e i o cie s a n g u e i n n o c e n t e n o c e n t r o
d a s s e n s a ç õ e s , t i n h a m u m fim. A m i s s a d e E z e q u i e l , o o f f i c i o
s u p r e m o e m que, a l é m de Satan, a p p a r e c e m B e l z e b u t h , A s -
tarob, A s m o d e u , Belial, Moloch e B a a l - P h a g o r , era religio-
s a m e n t e t e r r í v e l . A q u e os m e u s o l h o s v i a m n ã o p a s s a v a d e
phantasia de debochadas e hystericas necessitando d o refie
policial e do chicote.
A casa d e j a n t a r e s t a v a t r a n s f o r m a d a n u m a c a p e l l a . Ao
f u n d o levantava-se o altar-mór, ladeado de u m pavão em-
palhado c o m a cauda aberta—o pavão symbolo do Vicio
Triumphal. Nos q u a t r o cantos do tecto, morcegos deitados
em c o r a ç õ e s de papelão vermelho, pareciam assustados.
Pannos pretos c o m cruzes de p r a t a voltadas cobriam as
j a n e l l a s e as p o r t a s .
D o a l t a r - m ó r , q u e l i n h a tres degraus cobertos por um
pellego encarnado, descia, a b r i n d o e m f o r m a de l e q u e , u m
duplo r e n q u e de q a s t i ç a e s altos, s u s t e n t a n d o t o c h a s accésas
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d e c e r a v e r m e l h a . E r a essa t o d a a l u z d a sala. 0 b a n d o t o m o u
posições. Alguns r i a m ; outros, p o r é m , t i n h a m as f a c e s p a l -
"lidas. o l h e i r e n t a s , d o s a p a v o r a d o s . N ó s , e u e o p o e t a , ficamos
no fim. U m silencio c a h i u . Do alto, pregado a cruz tosca.
u m a escultura i n f a m e pretendia representar Christo, o doce
Jesus ! E r a u m b o n e c o t o r p e , de b i g o d e s retorcidos, total-
m e n t e e x c i t a d o , q n e o l h a v a os fieis c o m u m o l h a r t r o c i s t a e
o beicinho revirado.
— E' horrendo.
— Se e s t a m o s n a casa d o h o r r e n d o ! G u a r d e a s u a eme-
ç ã o . T u d o isso é r e l i g i ã o . 0 m e s m o f a z e m c o m I s k a r i o t e n o
s a b b a c l o d e A l i e l u i a os m e n i n o s c a t h o l i c o s .
G u a r d e i . V i n h a m a p p a r e c e n d o aos s a l t i n h o s , n u m a n d a r
de m a r r e c o s presos, q u a t r o s a c r i s t ã e s c o m as sotainas em
c i m a d a p e l l e . Esses e p h e b o s d i a b ó l i c o s , d e f a c e s c a r m i n a d a s
e s o r r í s i n h o s e q u í v o c o s , p a s s e a v a m p e l a sala c o m o menagérés
p r e o e c u p a d a s c o m u m j a n t a r de c e r i m o n i a , d a n d o a ultima
de m ã o á mesa. Depois s u r g i u u m n e g r i n h o de batina ama-
r e l l a c o m os p ê s n u s e as u n h a s pintadas cie o i r o . T r a z i a os
b r a z e i r o s p a r a o imeeriso e q u a n d o passava pelos h o m e n s er-
g u i a de vagar o b a l a u d r a u c ô r de e n x o f r e , A p r i n c e z a , ado-
r a d o r a d o f o g o , o l h o u - o c o m g u l a e ia talvez f a l a r q u a n d o a p -
pareceu o Sacerdote acompanhado de u m o u t r o sacristão
exoctico. A ' l u z d o s c i r i o s q u e esta l i d a v a m , n e s s a l u z vacil-
Iante e agonica, o m u l a t o era theatral. Alto, grosso, com
o bigode trincado, as o l h e i r a s p a p u d a s , os b e i ç o s s e n s u a e s
pendentes, fez a a p p a r i ç ã o de capa e n c a r n a d a e b a c u l o de
p r a t a , c o m os s y m b o l o s d e S h i v a potente.
—• E s s e h o m e m é d o i d o ?
— U m sádico intelligente. T e m como prazer único o
c r i m e de u m p r í n c i p e que ha u m a n n o a g i t o u a m o r a l a r c h i -
duvidosa de Londres... Ainda não conversou com elle?
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M u i t o interessante. H a tempos i n v e n t o u a d i v i n a j u n c ç ã o dos


sexos n u m t y p o ú n i c o , o a n d r o g y n o s a t â n i c o . E ' a d m i r á v e l . . .
— A litteratura! fiz. .
— O M a l ! retrucou o poeta cynico, e apontou o Dr.
Justino.
O p o b r e m e d i c o encostado a u m a das cruzes b a t i a p a l m a s
clamando.
— Satanaz! Satanaz ! Nosso S e n h o r ! A c c o d e !
O sacerdote virou-se. A cauda estrellada de um pavão
cobria-lhe o peito da t ú n i c a .
C u r v o u - s e , j u n t o u as m ã o s , e a p a r o d i a d a m i s s a c a t h o l i c a
c o m e ç o u , e m l a t i m , m u d a n d o apenas Deus pelo Diabo. Era
tal q u a l , c u r v a t u r a s , gestos, toques de c a m p a i n h a , respostas
d e s a c r i s t ã e s , t u d o . D e r e p e n t e , p o r é m , o h o m e m d e s c e u os
t r e s d e g r a u s , os s a c r i s t ã e s s u r g i r a m c o m t h u r y b u l o s e n o r m e s ,
e elle, d e s p r e g a n d o a casula s u r g i u i n t e i r a m e n t e n ú . c o m o
cavaignac revirado, a m ã o na anca, cruel como o próprio
Rebelde. A s m u l h e r e s , os pequenos equivocos, o occulista
a r r a n c a r a m as r o u p a s , r a s g a r a m - s e e m q u a n t o o seu dorso
reluzente e suado curvava-se deante dos incensos. Depois
de n o v o , c o m u m a voz d o m e t a l b r a d o u :
— Senhor! Satan ! Gloria da terra ! T u que aclaras os
pobres h o m e m , F o n t e d o o u r o , m y s t e r i o s o G u a r d a das crip-
tas e d o s a n t r o s ; T u que m o r a s na t e r r a onde o ouro vive;
Causa dos peccados; A m p a r o da carne; Delírio único ; Fim
da vida;— d e i x a q u e te a d o r e m o s ! N ã o te e x t e r m i n a r a m
as s o i t a n a s b a r a t a s , n ã o t e p e r d e u o Ò u t r o , n ã o se acabará
nunca o teu poderoso i m p é r i o , ó Lógica da Existência ! Sa-
tanaz, e s t á s e m toda a p a r t e ; és o Desejo, a R a z ã o de Ser, o
Espasmo ! Ouve-nos, apparece, i m p e r a !
N ã o vê/, na c r u z o l a r a p i o q u e r o u b o u a t u a l á b i a e o t e u
saber ?
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— Deus! m u r m u r e i .
- G u a r d e a sua e m o ç ã o meu amigo. E' do rito. Elles
d i z e m q u e Jesus, f o i a p r i n c i p i o , d e Lucifer...
— E ' preciso encarnar o mágico, continuava o homem,
neste p e d a ç o de pão,-é preciso magoal-o, fazel-o soffrer,
mostrar-lhe que és ú n i c o , i m p a s s í v e l e a d m i r á v e l . Que seria
d a h u m a n i d a d e se n ã o f o s s e o t e u A u x i l i o , ó Portador dos
gozos, ó D e s m a s c a r a d o r das hypocrisias ? Todo o mundo
soluça o teu Nome, a Pérsia, a Kaldea, o Egypto, a Grécia, a
Roma dos roubadores da tua Pompa. Olha pelo mundo
a v i c t o r i a , os p h i l o s o p h o s , os s á b i o s , os m é d i c o s , as m u l h e r e s .
O s p h i l o s o p h o s d e s v i a m o a m o r d o O u t r o , os s á b i o s a l u g a m
a crença, os m é d i c o s a r r a n c a m dos ventres a m a t e r n i d a d e ,
f a z e m as a x e s u a d a s d e l i r a n t e s , e s m a g a m as c r i a n ç a s , as mu-
lheres escorrem a lasciva e o o u r o ! N ó s todos prostrados
adoramos-te, diante do impostor, do mentiroso, desse que
aconselha a renunciar á Carne ! Que venha o dinheiro, que
v e n h a a C a r n e ! Q u e se e s m a g e os seios d a s m u l h e r e s e se l h e s
crave o p u n h a l da luxuria em f r e n t e ao i m p o s t o r . . . Jesus
ha de descer á h ó s t i a ; t u queres !
Deixou cahir o braço. N a face dos e r o t o m a n o s a l o u c u r a
p u n h a r i c t u s de a n g u s t i a .
O sacerdote e s p u m a v a , e a f u m a ç a dos incesarios de t ã o
espessa, parecia envolver-lhe a indecorosa nudez n'uma
c h l a m y d e de c i n z a , estrellada de c i r i o s .
— O ' R e i p o d e r o s o d a s s a t i s f a ç õ e s , os q u e t e acreditam
a b a n d o n a m as c o v a r d i a s d a v e r g o n h a , a s p r e g r a s d o p a v o r e
a estupidez da r e s i g n a ç ã o . Envia-nos A s t a r o h . d a - n o s o a m o r ,
faz-nos gozar o prazer, faz-nos. . .
Um p a l a v r ã o silvou, sagrado c o m o na Bíblia. H o u v e u m
c o m p l e x o de u r r o s e g u i n c h o s .
— Amen ! caearejaram os pequenos.
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— T u que és o Vicio A m p l o ajuda-nos a violar o Naza-


reno para a gloria immensa...
O u t r o p a l a v r ã o estalou. Metade do grupo n ã o compre-
hendia o galimatias blasphemo, m a s as phrases indignas
c a h i a m c o m o varadas accendendo a l u b r i c i d a d e , e a gentalha
e n t ã o , c o m o gesto l u b r i c o dos macacos, c u s p i n h a v a impro-
périos.
O s a c e r d o t e n ã o d e s c a n ç o u . A t i r a d a a p a l a v r a , t r e p o u os
d e g r á o s , c o l l o c o u u m a m i t r a i m m o r a l n o c r a n e o , e, e s t e n d e n -
d o e n t r e os d e d o s u m a h ó s t i a b r a n c a d e n e v e encostou-se ao
altar vacillante.

— Q u e v a i e l l e f a z e r .-

— V a i ao s i n i s t r o b a n a l . . .

Q u e D e u s s e r i a esse ? l a p e r g u n t a r a o p o e t a , m a s n ã o t i v e
tempo. U m dos s a c r i s t ã e s t r e p a r a ao a l t a r , c o m o cálice na
mão. C o m o c o r o a d o pelos pés do Christo, o pequeno com
tremores pelo corpo, tics bruscos, g a r r õ e s d e nervos, o olhar
embaciado sujeitava-se a e x t r i p a ç ã o do b a p t i s m o da hóstia,
e emquanto o braço do Sacerdote n u m movimento cruel
saccudia-o, a sua voz i a d i z e n d o :

— Que Satan o faça encarnar...


De r e p e n t e o b r a ç o e s t a c o u . O p e q u e n o t o m b a r a baban-
do. Houve e n t ã o a apotheose. C o m a h ó s t i a p o l u í d a , o h o m e m
n ú d e s c e u g r i t a n d o ; os b r a z e i r o s c a h i r a m p o r t e r r a , os h o -
mens a m b í g u o s c o m gargalhadas infames rolavam ; mulheres
strabicas t r e p a v a m pelo altar do q u a t r o p é s , q u e r e n d o c o m e r
as m i g a l h a s d a h ó s t i a h u m i d a . A r a p a r i g a d e óculos azues
c o m os c a b e l l o s p r e s o s a u m c i r i o e s t e n d i a o corpo convul-
sionado; o occultista gordo gania, em torno do malandro
n ú , o sacerdos; u m a t h e o r i a de satyros e f ú r i a s h y d r o p h o b a s
m a s t i g a v a e n o j a d a os p e d a ç o s d a h ó s t i a q u e o r a p a z d e pes-
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c o ç o de c o n d o r c u s p i n h a r a . A f u m a ç a dos cirios suffocava,


alguns castiçaes t i n h a m cahido.
— H e i n ? fez o poeta, p o r pose. M a s t i n h a os o l h o s i n -
jectados e t r e m i a .
E n t ã o , a g a r r e i - o , p a s s a m o s a sala e m q u e os c o r p o s re-
domoinhavam promiscuamente no m a i s f o r m i d á v e l dos d e -
b o c h e s e n t r e os c i r i o s t o m b a d o s . D o u s s y n e t a s p u x a r a m - n ' o .
Claudino amparou-se no pedestal do pavão, o Vicio T r i -
umphal r o l o u . D e m o s n a sala d o s r e f l e c t o r e s , d e s e s p e r a d o s .
A sala p a r e c i a na sua s o l i d ã o u m a ^are de crime deserta.
E n t r á m o s n a o u t r a e m q u e o J u s t i n o r o l a v a n u m c a n a p é sob
a p r e s s ã o d e i n c u b o s s u m c i e n t e s e reaes. O n e g r o a b r i u m e i a
porta;
-— N ã o q u e r e m a a g u a m a l d i t a ?
— Não.
— V . S. vai assustado. Não diga nada, meu senhor.
D e u s l á e m c i m a é q u e l h e s d á esse c a s t i g o .
Deixei-o a fallar, deitei a correr como u m doudo, na
noite enluarada. O u r o , p r o s t i t u i ç ã o , i n f â m i a , c a n a l h i c e , sa-
crilégio, v e r g o n h a ! M a s q u e é t u d o isso d i a n t e d a c a s t i d a d e
i m m a c u l a d a dos e l e m e n t o s ? Dos altos c é o s i m m e n s o s que
as e s t r e l l a s c r a v e j a v a m d e g l o r i a , a l u a d e r r a m a v a p o r s o b r e
a c a l m a da noite u m m a n t o i n c o n s u t i l de crystal e o u r o , e a
terra i n t e i r a , cheia de paz e de d o ç u r a , abria em perfume
sob o s u d a r i o de l u z , i n f i n i t a m e n t e c a s t a . . .
E f o i c o m o se, arrancado ao i n f e r n o de um pesadelo
l o b r e g o de n o j o e p e r v e r s ã o , eu voltasse á realidade miseri-
cordiosa de b o n d a d e da v i d a . . .
O s E x o r c i s m o s
I

I
Houve u m grande combate nos c ê o s . Miguel e os
anjos combatiam contra o dragão que luctava com
os s e u s . Estes, porem, não tiveram a victoria e desde en-
tão f o i impossivel reachar o logar nos céos. O dragão, a
antiga serpente chamada diabo ou seductor do universo,
foi precipitado com os maus anjos sobre a terra. E esse
dragão t i n h a sete c a b e ç a s , dez cornos, sete diademas e
a sua c a u d a arrastou a terça parte das estrellas...»
Assim f a l i a S. J o i o de P a t h m o s . O d r a g ã o e as e s t r e l -
las f a z e m o m u n d o diabólico, inspiram o mal, arrastam
a t h e o r i a f u r i o s a das hystericas e mais do que em qual-
quer outra terra fazem aqui as e n d o m o n i n h a d a s . Pela clas-
se baixa, nas r u a s e s c u s a s , as possessas a b u n d a m . D e r e -
pente creaturas perfeitamente boas c a h e m com ataques,
escabujam, arquejam, cusparam uma baba espessa, com
os c a b e l l o s tezos e os o l h o s ardentes. Vem os médicos
chamam a isso h y s t e r i a , v e m os espiritas, dão outra ex-
plicação, mas as c r e a t u r a s s ó t o r n a m á v i d a natural quan-
do u m s a c e r d o t e as e x o r c i s m a . J á v i n a Gamboa uma mu-
lher que ficava dous palmos acima do sólo com os b r a ç o s
e m cruz gargolejando i n j u r i a s ao Creador; tenho a histo-
ria de u m a outra que babava verde e passava horas e
noras enrodilhada, com soluços seccos, e a t i r a v a pu-
nhadas aos crucifixos n u m a anciã incrível. S ã o sem con-
ta os casos d e p o s s e s s a s . .
— E toda essa gente é exorcismada ?
96

— A s vezes.
1

O amigo com quem eu fallava era um medico ca-


tholico.

— O exorcismo pôde ser feito por qualquer ?

— H o j e n ã o . A c t u a l m e n t e é p r e c i s o ser u m h o m e m d e s -
t i t u í d o das vaidades do m u n d o , é p r e c i s o ser velho e p u r o
dotado de u m a força imperecivel. O b i s p o f a z t o c a r ao p a -
dre exorcista o livro das formulas dizendo « Accipe et
c o m m e n d a memorae, et habem potestatem i m p o n e n d i m a -
nos super energúmenos...» Aqui no Rio ha exorcistas
falsos, m a l a n d r o s exploradores, h a os j e s u í t a s , alguns la-
zaristas e o superior da o r d e m dos Capuchos que tem li-
cença do bispo. C o n h e ç o f r e i Piazza? E ' u m a excellente
creatura, feita de b o n d a d e e de paz. Nunca recebe mal
Para cada i n j u r i a tem u m carinho e guarda como máxi-
ma a g r a n d e v e r d a d e de q u e u m frade vale p o r u m exer-
to. Que f i g u r a ! Elle pelo m e n o s vale p o r u m e x e r c i t o c o m
a sua caricia ea sua f o r ç a . E' u m destes entes que não
param, um m i l i t a n t e . A n d a , sai, i n d a g a , conversa, prote-
ge, a j u d a , converte, exorcisma. Já o vi u m a vez vaiado
por alumnas de uma escola e rapazes grosseiros, á
toa, s e m r a z ã o d e ser, a p e n a s p o r q u e era f r a d e . F r e i Piazza,
m u i t o calmo, agradecia com beijos a vaia e cada beijo
seu n o ar petrificava a bocca de u m dos impiddentes i n -
sultadores. E ' o nosso p r i m e i r o e x o r . i s t a , o grande com-
batente dos Diabos. V ã interrogal-o de preferencia a ou-
tro qualquer.

— Mas ha diabos?

— U m recrudecimento apenas. O catholicismo explica


o inexplicável. Quem faz a cosmolatria? Satanaz! a ner
c r o l a t r i a , o sabe m o , o m a l d e D e u s . e n V ' " m ? S a t - i n a z , sem-
97

prc Satanaz ! Qual o m e i o de acabar dom o Diabo ? o


exorcismo.
O R i o de Janeiro é uma tenda de f e i t i c e i r o s brancos
e negros, de r e l i g i õ e s de a n i m a e s , de pedras animadas, o
r o j a r de u m povo inteiro diante do a m a n h ã ,

Spectre toujours masque qui naus suit cote á cole


Et qií on nomine Dêmain. ..

A's scenas da missa negra, dos satanistas, dos ma-


gos, é preciso j u n t a r a missa vermelha, e os e x o r c i s m o s .
— Mas nos estamos no século X X !
— M e u caro, o m u n d o n ã o varia olhando o invisível. Ha
sempre de u m lado os e s p i r i t o s b o n s , os a n j o s q u e se d e -
m o n s t r a m p e l a t h e u r g i a , e os e s p i r i t o s m á u s , a s l a r v a s . o s d e -
m ô n i o s , i s t o é , d e u m l a d o as t h e o p h a n i a s , d e o u t r o as f ú r i a s
Ultimamente, p o r é m , casos i n c r í v e i s , lendas antiquissimas
deram para reapparecer. Os a g e n t e s d o D i a b o , as s e r e i a s ,
os f a u n o s , os g i g a n t e s , os tritões surgem de novo. O João
catraeiro, alli do caes d o s M i n e i r o s , jâ v i u passeiando na
agua u m a dama de v e r m e l h o c o m homens de barbas v e r -
des q u e riam e assobiavam... Porque havemos de banir
factos. E u , e dou-lhe como testemunha o D r . Raphael P i -
n h e i r o e o u t r a s pessoas c o n h e c i d a s , já t i v e u m a d o e n t e que
frei Pizza poz boa. A m u l h e r delirava, t i n h a ataques for-
m i d á v e i s , e u t r a t a v a - a s e g u n d o C h a r c o t . U m a v e z ella disse
eu tenho o diabo no corpo. Pois vá ao C a s t e l l o ! Foi e fi-
cou boa
Era u m medico que me d i z i a o a s s o m b r o . Nesse m e s -
m o dia s u b i ao Castello.
Pelas pedras do morro iam homens carregando bal-
des de á g u a s ; mulherias estendiam roupas na relva; em
baixo, a cidade n u m vapor branco parecia uma miragem
98

sob o c h u v e i r o de luz. E m torno do convento saltavam


cabras. Pendurei-me de u m cordão á porta carcomida,
como u m viajante medieval. M u i t o t e m p o depois appareceu
um f r a d e i t a l i a n o de barba negra.
— O Superior?
Abriu a porta, fez-me entrar para uma sala paupe-
rima, onde havia u m altar c o m i m g e n s grosseiras e para-
mentos de missa. Pelas p a r e d e s , o r d e n s d o a r c e b i s p o , t a -
b e l l a s d o s d i a s d e j e j u m . A t r a vez das o u t r a j p o r t a s abertas
v i a m - s e salas a b o b a d a d a s , onde as a l p e r c a t a s sacerdotaes
punham um brando rumor de i n t i m i d a d e .
Dous m i n u t o s d e p o i s , f r e i Piazza apparecia. M u i t o jovial
e m u i t o simples. E u queria u m a informação; elle dava-a
Sempre qua Deus lhe fazia a g r a ç a de p o d e r ser util, f i -
cava c o n t e n t e . A impressão desse h o m e m , c o m os f l o c o s
d e neve de sua b a r b a , escorrendo de uma face cheia de
v i t a l i d a d e , é a d e u m ser d e f m i t i v a m e u t e c e r t o d e s e u f i m ,
a q u e m as i n j u r i a s , as i n t r i g a s , os e l o g i o s o u os m a l e s n ã o
attingem. V i u - m e u m curioso m u n d a n o , impoz-me a sua
crença com delicadeza.
— O s e n h o r é j o r n a l i s t a ! a h ! os j o r n a l i s t a s ! . . . Se e l l e s
dissessem apenas o que v ê e m , s e r i a m os melhores homens
d o u n i v e r s o . . . Mas quasi n u n c a d i z e m . O p r í n c i p e de C r a y -
emberg tinha u m temor m u i t o justo. Olhe o que ainda ha
pouco fizeram com a princeza russa.
E s t á v a m o s sentados n u m d u r o banco, deante de Deus e
d o s santos, c o m o e m p o l t r o n a s c o n f o r t á v e i s . E l l e t i n h a e n t r e
as b a r b a s u m s o r r i s o d e s u b t i l ironia.
— S u p e r i o r , confessei eu, t e n h o nestes ú l t i m o s tempos
v i s t o d e p e r t o os m a l e s d o Diabo.
Disseram-me que frei Piazza e x o r c i s m a .
— S i m f i l h o , h a a l g u n s a n n o s . T o d a s as s e x t a s - f e i r a s das
99

4 d a m a n h ã as 4 d a t a r d e , t r a b a l h o sem descanço. Só no
a n n o d e 1903 e x o r c i s m e i m a i s d e 300 d e m o n í a c a s . Esses e x o r -
cismos s ã o feitos de p r e f e r e n c i a na i g r e j a , mas quando., me
c h a m a m , vou t a m b é m á casa d o s p a c i e n t e s . S a t a n m a i s , d o
q u e n u n c a a m e a ç a D e u s . Esse m a c a c o d o D i v i n o , c o m o d i z o
padre Goud, arrasta as creaturas para as profundas do
i n f e r n o , q u e a sciencia considera u m c e n t r o de f o g o n o meio
d a t e r r a , a u c t o r d o s v u l c õ e s e d o a b a l o das m o n t a n h a s . . . A h !
meu filho, é u m a vida bem dura !
— Oexorcismo é publico ?
— N e m s e m p r e . O d i a b o pela bocca dos p o s s é s s o s c o n t a
ávida de todos, i n j u r i a os p r e s e n t e s . N ã o é conveniente.
F i c a m alguns amigos que sejam sérios e piedosos.
— E c o m o se p r a t i c a m os e x o r c i s m o s ?
— Segundo o Rituale.
— C o n t a m tanta cousa...
— E' b e m simples. Leio-lhe a cerimonia.
Foi-se c o m o seu passo apressado, v o l t o u trazendo os
ó c u l o s e u m l i v r o de m a r r o q u i m vermelho com lettras de
ouro.
— E s t á escripto q u e o h o m e m n ã o v i v e r á s ó de p ã o , m a s
d a s p a l a v r a s d e D e u s , d i s s e S. P a u l o .
S e n t á m o - n o s . F r e i Piazza a b r i u o Rituale, escripto e m
vermelho e negro...
O o f f i c i o d e e x o r c i s m o c o m e ç a c o m as l i t a n i a s normaes
e o p s a l m o L H . D e p o i s , o s a c e r d o t e d e r i g i - s e ao E n e r g ú m e n o .
— Q u e m q u e r q u e sejas, o r d e n o - t e , e s p i r i t o i m m u n d o ,
c o m o aos t e u s c o m p a n h e i r o s , q u e o b e d e ç a m a e s t e s e r v i d o r d e
Deus, e m n o m e dos m y s t e r i o s da I n c a r n a ç ã o , da P a i x ã o , da
Resurreição e d a A s c e n s ã o de Nosso S e n h o r Jesus C h r i s t o ,
e m n o m e do Espirito Santo, que digas o teu n o m e e i n d i q u e s
p o r u m s i g n a l q u a l q u e r o clia e a h o r a e m q u e e n t r a s t e n e s t e
100

corpo. Ordeno-te que me o b e d e ç a s , a m i m , m i n i s t r o i n d i g n o


de Deus, e prohibo-te que offendas esta creatura assim
c o m o aos p r e s e n t e s .
Depois o exorcista procede á leitura dos Evangelhos,
s e g u n d o S. J o ã o , S. M a r c o s , S . L u c a s , e v o c a o C h r i s t o , faz
os s i g n a e s d o c r u z n o p o s s é s s o , envolve-lhe o p e s c o ç o num
p e d a ç o deestola e c o m a m ã o direita na c a b e ç a do rebelde,
diz :
— Eu te exorcismo, i m m u n d o èspirito, phantasma
egião, e m n o m e d e N . S. J . C , ordeno-te que abandones'
esta c r e a t u r a f e i t a p o r D e u s c o m terra. Deus, o m e s m o que
d o a l t o dos C é o s te p r e c i p i t o u nas p r o f u n d e z a s , é q u e m te
ordena, Aquelle q u e m a n d a nos mares, nos ventos e na terra.
O u v e e t r e m e de pavor, Satan, inimigo da fé, i n i m i g o do
gênero humano, mensageiro da morte, ladrão da vida,
oppressor da justiça, raiz do t o d o s os m a l e s , s e d u c t o r dos
homens, t r a i d o r de todas as n a ç õ e s , origem da avareza,
i n v e n t o r d a i n v e j a , causa das d i s c ó r d i a s e das dores. Por
q u e ficas .- p o r q u e r e s i s t e s ? T e m e s o q u e te immolou por
Isac, v e n d i d o p o r J o s é , m o r t o p o r u m a n h o e q u e a c a b o u p o r
t r i u m p h a r do Inferno ?
E fazendo signaes da c r u z na c a b e ç a , n o v e n t r e , n o peito
e no c o r a ç ã o do paciente, o sacerdote, c o m os paramentos
roxos, continua :
— A d j u r o - t e . serpente antiga, e m n o m e dos j u l g a m e n t o s
dos vivos e e m n o m e dos m o r t o s , e m n o m e do teu Creador
e do C r e a d o r dos m u n d o s , d ' A q u e l l e que t e m o p o d e r de te
e n v i a r ao I n f e r n o , — d e sahir immediatamente com o teu
f u r o r desse s e r v i d o r d e N . S . , r e f u g i a d o n o s e i o d a Igreja.
E s c o n j u r o - t e de n o v o , n ã o e m n o m e da m i n h a f r a q u e z a , m a s
em nome do Espirito Santo. S a i desse s e r v i d o r d e Deus,
c r e a d o a s u a i m a g e m ; o b d e c e , n ã o a m i m , m a s ao ministro
101

de C h r í s t o . A t o r ç a d ' A q u e l l e q u e te s u b m e t e u a sua cruz,


ordena-te. Teme o braço do que c u n d u z as a l m a s á luz,
a p ó s t e r v e n c i d o os g e m i d o s d o inferno. Que o corpo dessa
c r e a t u r a te cause m e d o , q u e a i m a g e m de Deus te apavore.
N ã o resistas. Apressa-te, porque C h r i s t o deseja habital-o.
Deus, a magestade do Senhor, o Espirito Santo, o sacra-
m e n t o d a c r u z , a f é dos santos a p ó s t o l o s P e d r o e P a u l o e dos
o u t r o s santos, o sangue dos martyres, a intervenção dos
s a n t o s e d a s s a n t a s , os m y s t e r i o s d a f é c r i s t ã , o r d e n a - t e que
o b e d e ç a s . S a i , v i o l a d o r da l e i , sai, seduetor c h e i o ' d e manhas
e de enganos, i n i m i g o da v i r t u d e / p e r s e g u i d o r dos innocen-
tes. P o r q u e resistes? P o r q u e t e m e r a r i a m e n t e recusas?
A i m p r e c a ç ã o c o n t i n ú a formidável até o hiato suave de
uma n o v a o r a ç ã o . Depois o padre lê o u l t i m o e mais t r e m e n -
do exorcismo.
— A d j u r o - t e omnts imrhundissime, dirissime, fantasma,
enviado de Satan, e m n o m e de J . C. o Nazareno, que f o i
c o n d u z i d o ao D e s e r t o d e p o i s d o B a p t i s m o d e S . J o ã o e que
t e v e n c e u n a t u a h a b i t a ç ã o . Cessa d e o b c e d a r esta creatura,
q u e Deus, p a r a sua h o n r a , t i r o u do l i m o da t e r r a . T r e m e , n ã o
da sua f r a g i l i d a d e h u m a n a , mas da imagem d 3 Todo Pode-
roso. Cede a Deus q u e te p r e c i p i t o u n o a b y s m o a t i e a tua
i n f â m i a , n a pessoa de P h a r a ó , p o r i n t e r m é d i o d o seu servi-
dor M o y s é s ; cede a Deus que te conclemnou no traidor
ískariote...
A i m p r e c a ç ã o torna-se de u m a s o l e m n i d a d e colossal. O
sacerdote ergue o l i v r o sobre o d e s v e n t u r a d o p o s s u i d o :
— Os v e r m e s esperam-te a t i e aos teus. U m fogo de-
vorador está preparado por toda a eternidade, porque tu
és a causa d o homicídio maldito , o organisador do inces-
to, o organisador dos s a c r i l é g i o s , o i n s t i g a d o r das peiores
a c ç õ e s , o que ensina a heresia, o i n v e n t o r de tudo quanto
102

é o b s c e n o . S a i , i m p i o , s a i , s c e l e r a d o , s a i c o m as t u a s men-
tiras, p o r q u e Deus q u i z f a z e r seu t e m p l o deste c o r p o . O b -
d e c e ao Deus deante do q u a l se ajoelham os homens :
cedeo l o g a r a N . S. J. C. que d e r r a m o u o seu sangue
sagrado pela h u m a n i d a d e ; cede ao Espirito Santo, que
p e l o s seus b e m a v e n t u r a d o s a p ó s t o l o s v e n c e u - t e no mago
Simon. q u e c o n d e m n o u as t u a s i n f â m i a s e m A n a m a s e S a -
p h i r a , q u e te curvou em erodes, que te cegou no mago
Elyma. Sai agora, sai, seductor. O deserto é a tua mo-
rada, a serpente a tua h a b i t a ç ã o . Eis que apparece Deus,
o Senhor; o fogo arderá os i n i m i g o s se n ã o fugirem. Se
pudeste enganar um homem, não poderás embair Deus
Escoi r a ç a r - t e - á O que tem tudo em seu poder, far-te-á
sahir O que preparou a gehena eterna, Aquelle de c u j a
b o c e a sai o g l a d i o a g u d o , q u e v i r á j u l g a r os v i v o s os m o r t o s
e o século pelo f o g o .
E, emquanto as endemoninhadas, flexuosas, prague-
jando, batendo c o m o craneo, espectoram Satanaz, o s p a t e r ,
os psalmos e n v o l v e m - n a . Q u a n d o ella cai p r o s t r a d a , sal-
va, o t r i u m p h a d o r g r i t a :
— Eis-te refeita santa. Deixa de peccar para que te
não a c o n t e ç a m o u t r o s d e s a s t r e s . V a i p a r a casa e a n n u n c i a
aos t e u s , as g r a n d e s cousas que Deus fez p o r t i e toda a
sua m i s e r i c ó r d i a . . -
Eu tinha acabado de ler o l a t i m illuminado. Fre
Piazza , m u i t o doce, murmurava.
— l ia o u t r a s f o r m a s d e e x o r c i s m o q u e i n v o c a m os santos
a V i r g e m ...
— Mas, superior, ha mesmo m u i t o s casos a q u i ?
— N ã o i m a g i n a ! P r i n c i p a l m e n t e nas classes b a i x a s , sem
impeza. O diabo ama a immundicie. E' quasi incrivel
103

Esses phenomenos, que a espiritolatria t e m por novos,


s ã o nossos conhecidos, ha muito tempo explicados. Ha
creaturas que se d o b r a m e m d o u s , q u e se tornam sabias
de repente, gritam em línguas desconhecidas , t ê m uma
força enorme. Ainda ha dias tive dous casos . Não
acredita.
- T - Se eu conheço o caso d a Gamboa em que um sa-
c e r d o t e n ã o se p ô d e approximar da possessa de t a l modo
ella colleava !
— A mim aconteceu facto i d ê n t i c o . Era uma virgem.
Cuspia no C r u x i f i c a d o , c o m os b r a ç o s em cruz, dobrava
em dous, d i z i a a v i d a cios o u t r o s e de repente começou a
arregalar os o l h o s . . . Ficaram como duas b r a s a s os o l h o s ,
as p a l p e b r a s dilatarem-se, dilataram-se. E u estava-as v e n -
do arrebentar , mas tão horrível era o quadro que não
tive coragem... Cada palavra do Ritual arregalava-lhe
mais o olhar pavoroso. E' um capitulo infindável a pe-
regrinação pelos bairros pobres. Casos estranhos ! Não
conhece a Cabloca, uma mulher que c o m m a n d a 250 es-
píritos ? Esta creatura, onde está, os moveis cahem, ha
rumores, quebram-se os vasos. Também não pára. Ellâ
diz que já nasceu c o m os espiritos e n ã o os q u e r tirar.
A i n d a outro dia encontrei-a e m Catumby...
E u j á c o n h e c i a esse ser s a t â n i c o e i n é d i t o , a Cabocla, já a
vira escabujando emquanto os m o v e i s c a h i a m e as portas
fechadas a b r i a m - s é c o m estridor. Era verdade.
—Mas ha amuletos perservativos do Diabo? perguntei
tremendo.
—Basta a c r u z de S. Bento, As iniciaes da m e d a l h a d i z e m
a o a l t o : Ipse Venena Bibus;áo l a d o e s q u e r d o : sunt mal, quce
libas; do lado direito: vade retro, Satanas; e m b a i x o : non
104

suads mihi vana. A o c e n t r o a p h r a s e : non draco sit mihi dnx


— d a e s q u e r d a para a d i r e i t a , e m f ô r m a v e r t i c a l , de c i m a p a r a
b a i x o : crux sancta mihi lux, e n o s q u a t r o c a n t o s : crux, sanctis,
patris, benedicti...
E s t a v a d a n d o u m a h o r a . A t r a v é z d o c o n v e n t o os r e l ó g i -
os r e p e t i a m i n t e r m i n a v e l m e n t e a h o r a s o l l i t a r i a . Erguemo-
nos, e a i n d a a l g u m t e m p o o u v i e m b e v e c i d o a pureza da c r e n ç a .
N a sexta-feira, p o r é m , de m a d r u g a d a , f u i o u t r a vez ao
Castello c e r t i f i c a r - m e . V i n h a nascendo o dia. N o e t h e r p u r o
os sinos d e s f i a v a m as notas claras e era c o m o se os sons
fossem a c o r d a n d o pela m o n t a n h a os e c h o s d a v i d a . Cabras
s u r g i a m das s o m b r a s , mastigando a relva h u m i d a , e no alto
u m a estrella ardia a m o r r e r . V i e n t ã o s u b i n d o a encosta,
d e s d e essa h o r a , a t h e o r i a d a s beatas, homens anparando
m u l h e r e s de face maceradas, mantilhas pretas escondendo
rostos dolorosos, corpos dobrados em dous, tremendo, o
b a n d o das possessas m o d e r n a s galgando o cimo do monte
para arrancar a alma á Satanaz; o delirio d i a b ó l i c o , *a f é a
angustia, o m a l . . . E na c ô r suave da aurora, aquelle con
v e n t o s i m p l e s , d o n d e sahia a h a r m o n i a dos sinos, s u r g i u - m e
como o balsamo do B e m , o gladio do Senhor solitário e
ú n i c o e m meio da D e s c r e n ç a Universal,—ultimo auxilio de
Deus ás almas do D i a b o . . .
Q u a n d o descia, o u t r o s crentes, outras demoniacas iam
subindo na l u z d o sol p a r a a L o u r d e s e s p i r i t u a l q u e os s i n o s
p r o c l a m a v a m . E, recordando a visão tenebrosa desse t u r b i -
l h ã o a n g u s t i o s o q u e e s c a b u j a n a s casas e s p i r i t a s e n a s i g r e j a s
sob o d o m i n i o d e S a t a n a z , e r g u i os o l h o s a o céo, e louvei a
g l o r i a de Deus n o seu i m p e r e c i v e l f u l g o r . . .
A EGREJA P O S I T I V I S T A
O amor por principio
E a o r d e m p o r base.
O progresso por fim.

Era domingo, á porta do templo da Humanidade, na


rua B e n j a m i n Constant .
Com o céo luminosamente a z u l e o sol t e p i d o , havia
muita c o n c u r r e n c i a pela rua, de ordinário deserta:—se-
n h o r a s , cavalheiros de sobrecasaca, m i l i t a r e s , c r i a n ç a s . Uns
s u b i a m l o g o as e s c a d a s d o t e m p l o , c u j a f a c h a d a r e c o r d a u m
t e m p l o grego; outros, mais Í n t i m o s , seguiam para o f u n d o ,
pelo lado direito. Teixeira Mendes fazia a sua predica
dominical.
Tínhamos ido a conversar c o m u m velho positivista.
A principio elle annunciara que desprezava a frivolidade
jornalística e a imprensa. Mas depois, como eu risse sem
rancor, permittiu-se levar-me a t é a Igreja e foi t ã o bondoso,
que n ó s e s t á v a m o s alli, tagarelando de cousas superiores
e m q u a n t o ao t e m p l o c o n t i n u a v a a a f f l u i r a o n d a de f a r d a s e

de senhoras.
— N ã o é possível negar a influencia positivista na nossa
política, sobre os b r a s i l e i r o s c u l t o s , ia eu d i z e n d o , m a s o
publico...
— Os jornaes..,
—... o grande publico n ã o comprehende e irrita-se.O
108

meu a m i g o póçle fallar e m Spencer, de Kant, de outros


philosophos. Passa p o r e r u d i t o e é r e s p e i t a d o . B a s t a p o r é m -
fallar de Comte para que o tomem por um exquisitão e
perguntem i n j u r i o s a m e n t e se essa é a religidó de Clotüde
de Vaux.
— E' natural. Essa g e n t e n ã o conhece o culto, adulte-
r a d o p o r espiritos anarchicos. Mas você vê que m u i t a gente
já c o m p r e h e n d e a doce r e l i g i ã o que submetteu a intelli-
g e m c i a ao s e n t i m e n t o .
— T e m lhes custado.
— O p o s i t i v i s m o t e m q u a r e n t a a n n o s de p r o p a g a n d a no
Brasil. E m 1864 o D r . B a r r e t o d e Aragáo publica uma arith
metica dando a hierarchia scientifica de Comte e o
Dr. B r a n d ã o e s c r e v i a a Escravidão no Brasil. F o r a m esses os
primeiros livros positivistas, hoje quasi desconhecidos.
Depois é que o positivismo começou a ser f a l l a d o entre
m a t h e m a t i c o s e q u e os professores da Central e da Escola
Militar deram em c i t a r a Astionomiae o primeiro volume
da c
Philosophia
— Era o tempo em q u e se c o n s i d e r a v a a 'Política um
livro impio...
—< A i n d a n ã o se f i z e r a s e n t i r a n e c e s s i d a d e d e dispensar
os serviços provisórios de Deus. O caracter religioso do
p o s i t i v i s m o n ã o era c o n h e c i d o . Isso n ã o i m p e d i o q u e B e m -
j a m i n Constant, fazendo c o n c u r s o na Escola M i l i t a r , decla-
rasse ser positivista orthocloxo e republicano, e que o
p r ó p r i o B e n j a m i n , c o m os D r s . O l i v e i r a Guimarães e Abreu
L i m a , c o n s t i t u í s s e o n ú c l e o dos o r t h o d o x o s e m 1872.
— A i n f l u e n c i a f o i n u l l a . .. i n t e r r o m p i eu, olhando u m a
senhora loura que entrava com o cathecismo encadernado
em velludo verde.
— N a d a se p e r d e . Oliveira Guimarães deixou u m dis-
109

c i p u l o , Oscar de A r a ú j o ; B e n j a m i n levou á s escolas a pa-


lavra religiosa do mestre, regenerou o ensino da mathe-
m a t h i c a e f o i o p r i m e i r o b r a s i l e i r o q u e teve n o seu q u a r t o o
retrato de Clothilde de V a u x . Os t r a b a l h o s adoptados na
Escola Militar sao q u a s i t o d o s de d i s c í p u l o s seus. N o m e i o
i n t e l l i g e n t e desses últimos surgiram Raymundo e Miguel
L e m o s : era u m m o m e n t o de a g i t a ç ã o . Pereira B a r r e t o p u b l i -
cava o r v o l u m e d a o b r a As tres philosophias e tanto Miguel
c o m o Teixeira Mendes eram littreistas, considerando a parte
r e l i g i o s a de C o m t e c o m o o b r a de l o u c o . . .
F o i c o m elles q u e O l i v e i r a G u i m a r ã e s fez a l l i a n ç a para
fundar a bibliotheca positivista e abrir cursos scien-
tificos.
— E r a a philosophia da A c a d e m i a . . .
— Sem jardins. O começo do positivismo no Brasil é
absolutamente acadêmico. E m 1876 a E s c o l a d e Medicina
manifestou-se com a t h e s e Da Nutrição, de Ribeiro de
Mendonça, e a p r i m e i r a sociedade positivista f o i feita de
professores o r t h o d o x o s e de estudantes l i t t r e i s t a s .
— S e r i a c u r i o s o s a b e r c o m o estes m u d a r a m .
— Apenas umacensuraao d i r e c t o r claescola, o q u e m o t i -
vouseremsuspensospordousannos. TeixeiraMandeseMiguel
Lemos f o r a m para a Europa, e emquanto só, B e n j a m i n pro-
pagava aqui, os d o u s e m P a r i z littreisavam. Mendes veio o
m e s m o , a c h a n d o o C o m t e d a Política maluco. Miguel ficou,
e l á , sponte sua, abandonou Littré e relacionou-se com
Laírite.
— E converteu-se ?
— A 4 d e j u l h o d e 1879.
Solemnemente o meu amigo positivista apanhava sol.
L e v e i o - o c o m c a r i n h o para o j a r d i m , o n d e devia estar o b o s »
110

que sagrado c o m as sepulturas dos homens dignos. Não


havia bosques, n e m sepulturas. Apenas algumas arvores. O
positivista accendeu o cigarro depois de o fazer c o m u m
forte f u m o Rio Novo. E u perguntei pasmado :
— T o m a café ?
Elle rio
— C o m o t o d a a g e n t e ! Essa h i s t o r i a de n ã o t o m a r c a f é
e n ã o f u m a r é apenas u m a léria. E n t ã o v o c ê pensa que A u -
gusto C o m t e imaginasse, de m ã o , fazer o m u n d o deixar o
café e o f u m o , só para a r r u i n a r o Brasil? G facto é o u t r o . O
grande philosopho n ã o f u m a v a n e m bebia excitantes p o r q u e
lhe f a z i a m m a l ; M i g u e l L e m o s , d o e n t e c o m o é , n ã o se a t i r a
a esses excessos ; T e i x e i r a A l e n d e s , u m h o m e m que reflecte
d e z e i s h o r a s a f i o , n ã o se p ô d e d a r aos desvaneios da f u -
m a ç a . . N ã o ha p r o h i b i ç õ e s formaes para o h o r r e n d o vicio ;
ha apenas m e d o . . .
Puxei c o m vigor u m a baforada.
— A propaganda desappareceu c o m a estada de M i g u e l
Lemos em Pariz ?
— N ã o . A sociegade passou a chamar-se Sociedade Po-
sitivista d o R i o de Janeiro, sendo acclamado presidente o
D r . R i b e i r o de M e n d o n ç a , q u e se f i l i o u a L a f f í t e .
— C o m e ç o u a é r a do laffitismo ?

— E c o m t a l excesso q u e c o n c o r r í a m o s p e c u n i a r i a m e n t e
para o subsidio sacerdotal da igreja e m Pariz. L e m o s i n f l u i o
de t a l m o d o sobre T e i x e i r a Mendes que p o u c o t e m p o depois
e s t e t a m h e m se c o n v e r t i a . F o i , l i g a d a a L a f f i t e q u e a nossa
i g r e j a i n i c i o u as c o m m e m o r a ç õ e s da caracter religioso c o m
a t e s t a d e C a m õ e s e m 1886 ; q u e se c o m m e m o r o u o 22- p a s -
s a m e n t o d e C o m t e e a f e s t a d a H u m a n i d a d e ; e é dossa é p o c a
que data a primeira procissão civica no R i o de Janeiro,
111

com andores e o busto de Camões esculpido por Almeida


Reis.
Quando Miguel voltou, aspirante ao Apostolado, a
reuniões tornaram-se regulares aos domingos, na r u a do
Carmo n . 14, e Ferreira de Araújo abriu uma secção na
Gazeta com o titulo Centro Positivista, cujo primeiro artigo
dava a t h e o r i a , scientifica do c a l e n d á r i o . Em 18S1, j á p r e s i -
dente M i g u e l L e m o s , o C e n t r o passou para a rua Nova do
O u v i d o r , as e x p o s i ç õ e s d a religião tornaram-se regulares e
R a y m u n d o fez n o L y c e u u m c u r s o do c a t h e c i s m o i n t e r r o m -
pido pelas suas celebres conferências de antigo littreista
c o n t r a o s o p h i s m a de L i t t r é .
— Era a prosperidade.
— Nesse anno, e m que se c o m m e m o r o u a Tomada da
Bastilha, L e m o s f o i a S. Paulo, fez nove c o n f e r ê n c i a s , f u n -
dou uma filial c o m Ferreira Souto, C a r v a l h o de M e n d o n ç a ,
O l i v e i r a M a r c o n d e s , G o d o f r e d o M a r t i n s e S i l v a J a r d i m , e as
i n t e r v e n ç õ e s d o C e n t r o na nessa v i d a p o l í t i c a a c e e n t u r a m - s e
contra a immoralidade da colonisação chineza, traçando o
p r o g r a m m a do candidato positivista, protestando c o n t r a as
loterias, exigindo o registro civil, a abolição, oppondo-seás
universidades...
— J á nesse t e m p o .-
— Os a r t i g o s f o r a m p u b l i c a d o s n a Gazeta de Noticias e
fizeram com que o imperador se o p p u z e s s e á i d é a , a c o n s e -
l h a n d o ao m i n i s t r o q u e r e f o r m a s s e o ensino p o r o u t r o q u a l -
q u e r m e i o q u e n ã o f o s s e as u n i v e r s i d a d e s .
O meu velho amigo a n d o u a l g u n s passos p e l o f u t u r o
bosque sagrado. Acompanhei-o.
O u v i a - s e lá d e n t r o o som múltiplo de u m a orchestra.
Raros retardatarios entravam.
— Neste anno t a m b é m , c o n t i n u o u c o m c a l m a , uma cir-
112

cular instituio o subsidio sacerdotal, o que deu logar á


r e t i r a d a de B e n j a m i n Constant, e f o r a m c o n f e r i d o s os p r i -
meiros sacramentos aos filhos de M i g u e l L e m o s , Teixeira
Mendes e do D r . Coelho Barreto.
— H o j e esses s a c r a m e n t o s s ã o c o m m u n s ?
— C o m o os d o m a t r i m ô n i o , e m g r a n d e n u m e r o . J
— A r u p t u r a c o m L a f f i t e deu-se logo depois ?
— E m 1883.. L e m o s ficou o único responsável do posi-
tivismo no Brasil, c o n t i n u a n d o a ingerir-se na vida publica
d a sua p á t r i a .
— M a s este t e m p l o . c o m o f o i f e i t o ?
— O Apostolado deixou a sêde da rua Nova do O u v i d o r
para a r u a do Lavradio. A mudança determinou o lança-
m e n t o d e u m e m p r é s t i m o e m 1891 p a r a a c o n s t r u c ç ã o d o
t e m p l o , n o que m u i t o c o n c o r r e r a m Pereira Reis, O t t e r o ,
R u f i n o de A l m e i d a , D e c i o V i l l a r e s . A inauguração foi em
1894 e a i g r e j a c u s t o u 250 contos.
— E' mais u m a provada importância do Centro no
regimen republicano.
— A nossa i n t e r v e n ç ã o no inicio da Republica f o i de
primeira ordem. Basta citar a bandeira n a c i o n a l , a sepa-
r a ç ã o da igreja do Estado, a liberdade dos professores, a
r e f o r m a d o c ó d i g o n o caso d a t u t e l l a d e filhos menores.
— O C e n t r o t a m b é m t e m u m a casa e m Pariz?
O semblante do positivista annuviou-se.
— S i m , a casa e m q u e m o r r e u C l o t i l d e . F o i comprada
p o r 70 m i l f r a n c o s . E' triste. Em Paris n ã o estavam pre-
parados para comprehender Teixeira Alendes. Era tarde
para a c a m p a n h a . . . Mas v e n h a ver a nossa t y p o g r a p h i a .
* Caminhamos com intimidade pela avenida estreita.
D e vez e m q u a n d o o u v i a - s e o s o m de u m a voz acre. Era
a predica.
113

A t y p o g r a p h i a fica e m b a i x o , c o r r e s p o n d e n d o a toda a
e x t e n s ã o da nave e m cima. E' completa. Pergunto respei-
t o s o o n u m e r o dc p u b l i c a ç õ e s dessa o f f i c i n a .
— As obras de m a i o r v a l o r s ã o o A n n o sem Par, a B i o
g r a p h i a d e B e n j a m i n C o n s t a n t , a V i s i t a aos L o g a r e s S a n t o s
do Positivismo, a Chimica P o s i t i v a , ,as Ultimas Concep-
ç õ e s de A. Comte (onde se a c h a a t h e o r i a dos números
sagrados) todas obras de Raymundo Mendes. A publicação
de f o l h e t o s é talvez s u p e r i o r a 600.
— M a s os s u b s c r i p t o r e s s ã o m u i t o s ?
— S ã o sufflcientes. A Igreja do Brazil tem recebido
t a m b é m a u x í l i o s de Londres.
O pavimento em baixo n ã o é só occupado pela typo-
graphia. H a t a m b é m o g a b i n e t e l u x u o s o de Miguel Lemos
e a sala D a n i e l E n c o n t r e o n d e T e i x e i r a M e n d e s e x p õ e aos
jovens discipulos da h u m a n i d a d e , e a q u e m quizer ouvil-o,
as s e t e s c i e n c i a s . O u v e m - n o l e n t e s d e a c a d e m i a s e profes-
sores n o t á v e i s .
— E :
grande o numero de positivistas ?
— No Brasil os orthodoxos d e v e m ser uns 700. Os
s y m p a t h i c o s n ã o se p ô d e m a i s c o n t a r . A s g e r a ç õ e s q u e s a e m
da nosso Escola M i l i t a r s ã o quasi que compostas de sym-
pathicos
— E a influencia moral augmenta ?
O positivista confessou c o m tristeza.
— V a i se t o r n a n d o f r a c a . N ã o se a d m i r e . S e r á p o r f r a q u e z a
d o s a p ó s t o l o s ? S e r á p o r q u e o p u b l i c o se a f a s t a d a realidade,
c o r r o m p i d o m o r a l m e n t e ? O facto é patente. A i n d a ha p o u c o
o privilegioftmerariouma.ca.mpa.nha p e r d i d a . . . Mas entremos.
C o m o c h a p é o na m ã o , n ó s entramos. Havia luxo e c o n -
f o r t o . De u m lado a secretaria, onde se v e n d e m as obras
e d i t a d a s p e l a i g r e j a , d e o u t r o , a sala o n d e e s t á a e s c a d a p a r a
114

o côro, c o m orchestra e u m a rica bibliotheca de carvalho


l a v r a d a . D e g r á o s a t a p e t a d o s d ã o accesso á nave.
O t e m p o d a h u m a n i d a d e é l i n d o . A o a l t o , j u n t o ao t e c t o
correm janellas que arejam o ambiente. Todo pintado de
verde mar, está-se lá d e n t r o c o m o n u m suave banho de
e s p e r a n ç a . S e n t a m - s e os h o m e n s na nave que t e m quatorze
capellas; — c o l u m n a s de p á o n e g r o s u s t e n t a n d o e m portaes
abertos bustos esculpturados por Decio V i l l a r e s . Os bustos
r e p r e s e n t a m os m e z e s d o c a l e n d á r i o : M o y s é s o u a T h e o c r a c i a
i n i c i a l , H o m e r o , A r i s t ó t e l e s , A r c h i m e d e s o u a poesia, philo-
sophia e a sciencia antiga; C é s a r , o u a civilisação militar;
S. P a u l o , o u o c a t h o l i c i s m o ; C a r l o s M a g n o , o u a civilisação
f e u d a l : Dante, G u t e n b e r g , Shakspeare, Descartes, Frederico
Bichat, ou a epopéa, a industria, o drama, a philosophia,
a política, a sciéncia moderna, e Heloísa, a santa entre as
santas que fica na u l t i m a capella v o l t a n d o o seu semblante
maguado para a porta.
Xa capelia-mõr, r i c a de tapetes e de madeiras escul-
p i d a s . H a u m a c a t h e d r a , o n d e se s e n t a T e i x e i r a M e n d e s c o m
as vestes s a c e r d o t a e s n e g r a s c o m v i v o s v e r d e s . P o r t r a z f i c a
u m b u s t o d e b r o n z e d e A . C o m t e , e, d o m i n a n d o t o d a a s a l a ,
o q u a d r o de carvalho lavrado e lettras de oiro, de onde
surge a figura delicada de Clotilde, a humanidade symbo-
lisada por Decio n u m a das suas m i r i f i c a s athmospheras
sonhadoras.

A voz de R a y m u n d o corre c o m a c o n t i n u i d a d e de uma


q u e d a de á g u a s ; na nave cheia s c i n t i l l a m galões e lunetas
g r a v e s ; n a c a p e l l a - m ó r s e n h o r a s o u v e m c o m a t t e n c ç ã o essa
p a l a v r a , q u e n ã o d e i x a d e ser d e m o l i d o r a .
— O que é o positivismo ? sussurro eu sentando-me.

- E ' u m a religião que respeita as r e l i g i õ e s p a s s a d o s e


115

substitue a r e v e l a ç ã o pela d e m o n s t r a ç ã o . Nasceu da r u p t u r a


d o c a t h o l i c i s m o e d a e v o l u ç ã o s c i e n t i f i c a d o s é c u l o 17 o
para
c á . De M a i s t r e d i z i a q u e o c a t h o l i c i s m o ia passar p o r m u i t a s
t r a n f o r m a ç õ e s para ligar a sciencia á religião. Comte des-
c o b r i u a lei dos t r e s estados, a chave da s o c i o l o g i a , e q u a n d o
era o g r a n d e philosopho, Clotilde appareceu e ensinou que
a i n t e l l i g e n c i a é a p e n a s o' m i n i s t r o d o c o r a ç ã o .

Agir por âffeição


Pensar para agir

Comte proclamou que o homem e a mulher se comple-


t a m sob o t r í p l i c e aspecto : s e n t i m e n t o , i n t e l l i g e n c i a e acti-
vidade. A religião divide-se e m Culto, Dogma e Regimen, o
q u e v e m a ser b e m amar, b e m conhecer e bem servir a h u -
m a n i d a d e , o G r a n d e Ser, o c o n j u n c t o das g e r a ç õ e s passadas
e f u t u r a s pela g e r a ç ã o presente. A e x i s t ê n c i a do G r a n d e Ser
está ligada á terra, o G r a n d e - F e l i c h e , e ao e s p a ç o , ó G r a n d e
Meio...

— Mas quantas senhoras !


— As mulheres devem ama** o positivismo. Comte
dignificou-as. A m u l h e r é a força moderadora, o sentimento
p u r o do a m o r que faz a sociabilidade, é a sacerdotisa espon-
t â n e a da H u m a n i d a d e que m o d i f i c a pela â f f e i ç ã o o orgulho
vão e o reino da força : a mulher é a humildade, o fóco
do culto no lar, é Beatriz, é Clotilde, é Heloísa, m ã i , esposa
e filha, a V e n e r a ç ã o , a D o ç u r a e o B e m . As mulheres d e v i a m
ser t o d a s p o s i t i v i s t a s .

E m q u a n t o isso, R a y m u n d o M e n d e s d o a l t o d a cathedra,
r e l a m p e j a v a . N a c a t a d u p a das p a l a v r a s faltavam rr, havia
repetições do pensamento, de phrases, mas na explicação
cultuai, de repente, iconoclastamenté, o azerrague partia
c o n t r a os f a c t o s , c o n t r a a a n a r c h i a actual.
Fiquei enlevado a ouvil-o. Esse m e s m o homem, pura
como u m christal, que t e m o s a b e r nas mãos, eu já o vira
u m a vez, de m a n h ã , carregando com dignidade um em-
b r u l h o de c a r v ã o . . .
As m u l h e r e s s o r r i a m , em toda a translúcida claridade
parecia v i b r a r a alma do grande philosopho terno e bom»
e do alto, Clotilde, a Humanidade, abria como u m lirio a
g r a ç a suave d o seu l á b i o .
A S S I N A G O G A S
Hontem, 14 d e Hadar de 1664 e u assisti â s c e r e m o -
nias d o carnaval nas s y n a g o g a s da S i o n f l u m i n e n s e . O es-
perto Mardocheu, que tudo conseguira com a perfumada
belleza de Esther, ao c o m m u n i c a r de Suza a sua l u m i n o -
sa v i c t o r i a , o r d e n a i a p a r a t o d o o s e m p r e d i v e r s õ e s e a l e g r i a
nesse d i a . Os filhos d e I s r a e l o b e d e c e m e, c o m o a p á t r i a de
Israel é o mundo, nenhuma cidade ainda soffreu por n ã o
festejar data t ã o preciosa. N o R i o , t a m b é m h o n t e m , cerca
de q u a t r o m i l f a m í l i a s d i v e r t i r a m , r i r a m e beberam. Diver-
t i r a m c o m discreção, é certo, beberam sem violência, riram
c o m calma, exactamente porque a gente do p a i z d e j u d á t e m a
tristeza n'alma e a tenacidade na vida.
As festas do peisan foram copiadas dos persas pelos
romanos. Os povos m o d e r n o s c o p i a r a m dos r o m a n o s , a u g -
m e n t a n d o os d i a s d e p r a z e r e d e s t r u i n d o a i n t e n ç ã o c u l t u a i
da ceremonia. Q u e m assistiu á orgia c o n t i n u a dos batu-
ques carnavalescos, talvez n ã o possa c o m p r e h e n d e r como
cerca de dez m i l judeus c o m m e m o r a m 14 d e Hadar, com
tanta modéstia e tanta correcção.
Esses d e z m i l judeus divertiram-se, trocaram presen-
tes, cantaram, ouviram mais uma vez a historia da linda
E s t h e r , l i d a p e l o hhasan nos sagrados livros, e cada u m re-
colheu u m momento o espirito para pensar e m M a r d o c h e u ,
no rei A s s u é r o e na maneira por que 6Q m i l h õ e s de ante-
passados f o r a m salvos da m o r t e e do, p a t i b u l o .
120

Entretanto, pela vasta cidade, ninguém desconfiou


q u e t a n t a g e n t e tivesse a a l e g r i a n ' a l m a .
E ' q u e os lhos de Israel s ã o receiosos, sempre curva-
d o s ao s o p r o das perseguições, sempre sábios. Festejaram
sem que ninguém désse por tal...
O R i o t e m u m a vasta c o l ô n i a s e m i t a l i g a d a a nossa v i d a
e c o n ô m i c a , p r e s a ao a l t o c o m m e r c i o , c o m d i f f e r e n t e s classes
sem relações e n t r e ellas e d i f f e r e n t e s r i t o s .

h a os judeus ricos, a c o l ô n i a densa dos judeus armê-


nios e a parte exótica, a gente ambígua os centros onde
o l e n o c i n i o , m u l h e r e s d a v i d a a i r a d a e caftens cresce e a u g m e n -
ta, ha israelitas francezes, quasi todos da Alsacia Lorena,
marroquinos, r u s s o s i n g l e z e s , t u r c o s , á r a b e s , q u e se d i v i d e m
em seitas d i v e r s a s , e h a os Asknena\i c o m m u n s na Rússia,
na Allemanha, na Á u s t r i a , osfalachas da Á f r i c a , os rab-
banitas, os K'araitas, que só a d i m i t t e m o Antigo Testemen-
t o , os a r g o n i c o s e m u i t o s o u t r o s .

Os s e m i t a s r i c o s n ã o t ê m n o R i o ligação com os hu-


mildes nem os protejem como em Paris e L o n d r e s os
grandes banqueiros da força de H i r s c h e dos R o t t c h i l d s .
S ã o todos negociantes, j o g a m na Bolsa, veraneiam e m Pe-
tropolis, vestem b e m .

Muitos s ã o joalheiros, c o m a arte de fazer b r i l h a r m a i s


as j ó i a s e de serem a m á v e i s . Francezes, inglezes, a l l e m ã e s ,
o c u l t o desses c a v a l h e i r o s a p r e s e n t a v e i s e mundanos re-
veste-se de u m a discreção absoluta. Uns praticam o c u l t o
i n t i m o , o u t r o s n ã o p r e c i s a m d o hhrsan e fazem juntos ape-
n a s as d u a s g r a n d e s c e r e m o n i a s : a lon- Kipur o u d i a das l a -
m e n t a ç õ e s e do perdão, e o anno novo ou Rasch-Haschana.
A l g u m a s synagogas já t ê m sido estabelecidas nas sa-
las d e p r é d i o s c e n t r a e s p a r a r e c e b e r esses s e n h o r e s . Actu-
almente n ã o ha n e n h u m a , estando na E u r o p a q u e m mais
se p r e o c c u p a v a c o m i s s o .
A s r i q u e z a s d a s n a ç õ e s e s t ã o nas m ã o s d o s j u d e u s , b r a d a
o a n t i - s e m i t a D r u m o n t , ao v o c i f e r a r os seus a r t i g o s . A n o s -
sa também e s t á , n ã o p o r é m nas dos j u d e u s d a q u i , q u e s ã o
apenas homens ricos bem installados nos bancos e na
vida.
O outro meio, extraordinariamente numeroso é onde
vicejam o vicio e a inconsciencia, os r u f i õ e s e as s i m p l e s
mulheres que fazem profissão do meretrício. Essa gente
vem e m grandes levas d a Áustria, da R ú s s i a , de Marse-
lha, de Buenos A y r e s , e habita e m m a i o r parte na p r a ç a T i r a -
dentes, nas ruas L u i z de Camões, Tobias Barreto, Sete
de S e t e m b r o , E s p i r i t o Santo, S e n h o r dos Passos e n a s r u e l -
las t r a n s v e r s a e s a r u a d a C o n s t i t u i ç ã o . C o m e m q u a s i t o d a s n u -
m a s p e n s õ e s e s p e c i a e s dessas r u a s equívocas, pensões sujas
em que se r e ú n e m h o m e n s e m u l h e r e s d i s c u t i n d o , bradan
d o , g r i t a n d o . O a l a r i d o é á s vezes i n f e r n a l p o r q u e , q u a s i sem-
p r e n u m a b r i g a de casal, ella e x p l o r a d a p o r elle, t o d o s inter
v ê m , d ã o r a z ã o , estabelecem contendas. Nestascasas g u a r d a m
n ã o r a r o u m a sala p a r a c o s t u r a e o u t r a d e s t i n a d a á s y n a g o g a .
Ha mais mulheres do que homens. Os h o m e n s s ã o i n -
telligentes. espertos, sabem e e x p l i c a m c o m c l a r e z a , as m u -
lheres s ã o p r o f u n d a m e n t e ignorantes da própria crença.
Quasi nenhuma sabe a d a t a exata das festas, a sua du-
r a ç ã o , a s u a r a z ã o d e ser. E ' | i n t e r e s s a n t e i n t e r r o g a l - a s , g a s t a r
algumas h o r a s v i s i t a n d o as a l f u r j a s apertadas desta babel
americana.
— E n t ã o vai á synagoga?
— O h ! a q u i n ã o ha nada direito; e m Buenos Ayres
sim.
— M a s v o c ê v a T s e m p r e a estas r e u n i õ e s ?
—- V o u . E n t ã o p o d i a d e i x a d e i r ?
199

— Por que vai ?


— P o r q u e t e n h o q u e i r . Q u a n d o s a i o d e casa d e i x o u m a
v e l a a ccesa.
— Por que ?
— E' costume.
— A festa d o a n n o n o v o q u a n t o s dias d u r a ?

U m a nos d i z trez dias, o u t r a oito, o u t r a s r e s p o n d e m vaga-


m e n t e . E n t r e t a n t o russas, inglezas, f r a n c e z a s , f a z e m q u e s t ã o
d e se d i z e r j u d i a s e o b e d e c e m á j f é . N o d i a d o Kipiu\ ou dia
do perdão, d o a r r e p e n d i m e n t o e das l a m e n t a ç õ e s , f e c h a m -
se os p r o s t í b u l o s , t o d a s e l l a s v ã o á s y n a g o g a s improvisadas
s o l u ç a r os p e c a d o s d o a n n o i n t e i r o , os p e c c a d o s s e m conta.
As'4 da tarde fazem u m a refeição sem p ã o sem carne e des-
dequeno céo palpitaa primeiraestrella, atéo outro dia quan-
d o d e n o v o L u c i f e r b r i l h a , n ã o se a l i m e n t a m m a i s , l i m p a s
d e t o d o s os d e s e j o s e d e t o d a s as n e c e s s i d a d e s humanas...

Estes judeus reunem-se em qualquer parte, o mais


l e t t r a d o lê a h i s t o r i a n o t ó p i c o necessário, e choram e riem
ou cantam, conforme é necessário, crentes ignorantes. As
synagogas a m b u l a n t e s e s t ã o cada anno i n u m a rua. As u l -
timas reuniões deram-se na rua do Espirito Santo, na
rua da C o n s t i t u i ç ã o , e na r u a do H o s p í c i o . E ' chefe do culto
d e r i g i n d o os c ò n v i t e s e o r g a n i s a n d o a s festas, u m a m e r e t r i z ,
a Norma, que ultimamente introduziu no Rio a entolage,
o r o u b o aos f r e g u e z e s .

A o u t r a sociedade, a mais densa, é a dos a r m ê n i o s e a


dos m a r r o q u i n o s . Esse fez-se de grandes levas de imigra-
ção para o amanho de terra, em que o Brasil gas-
tou muito dinheiro Os a g e n t e s em Gibraltar acceita-
vam n ã o só famílias c o m o homens solteiros. As colônias
não deram resultados; no I g u a s s ú os c o l o n o s f u g i a m aos
123

poucos e e m outros logares f o i impossívelestabelecel-os por-


que o p o v o a t é os j u l g a v a c o m c h i f r e s d e l u z c o m o M o y s é s .
Os j u d e u s á r a b e s a p p a r e c e r a m p o r a q u i na m i s é r i a , mas
aos poucos pela própria energia, t o m a r a m o commercio
a m b u l a n t e , v i r a r a m camelots, m o n t a r a m a r m a r i n h o s e aca-
baram prosperando. Ha ruas inteiras occupadas por
elles, n a t u r a l m e n t e l i g a d o s aos turcos mahometanos, aos
gregos scismaticos e a outras religiões e ritos degenera-
dos que pullulam nos quarteirões centraes.
Nas levas de imigrantes vieram homens intelligentes
e c u l t o s . O hhasan David Hornstein é u m exemplo. Esse
homem c u r s o u doze annos a Universidade Talmudica, é
polyglotta, professor, c o r r e s p o n d e n t e de v á r i o s j o r n a e s es-
criptos em hebreu e rabbino diplomado da religião ju-
d a i c a . D a v i d estava n a Palestina, na c o l ô n i a Rishon V Sion
u m a e s p é c i e de c o m p a n h i a que o fallecido b a r ã o B. Rots-
child installara e m terrenos comprados ao sultão, com
grande odio dos b e d u i n o s . Nessa colônia havia médicos,
advogados, russos nihilistas. O resultado foi a sublevação
que o amável barão, depois da m o r t e do administrador,
a c a b o u , d i s p e r s a n d o os a m o t i n a d o s . V i n t e d o u s desses h o -
m e n s , e n t r e os q u a e s David e o erudito Kulekóf, q u e aca-
bon rico em S. Paulo, p a r t i r a m para Beyreuth, depois
para Paris. Hirsh deu-lhe 500 f r a n c o s f a z e n d o u m dis-
curso camarario.
Os judeus revolucionários f o r a m para Gibraltar e ahi
embarcaram para o Brasil. Todos acabaram com fur-
tuna, menos o r a b b i n o , q u e ficou e n s i n a n d o l í n g u a s , p o r -
que o sacerdote j u d e u n ã o vive d o seu culto.
E' esta p a r t e d e n s a da colônia judaica que t e m duas
synagogas estáveis, n m a n a r u a L u i z d e C a m õ e s 59 e outra
na rua d a A l f â n d e g a 369.
124

A synagoga da rua L u i z dc C a m õ e s é do rito argoni-


co Entra-se n u m corredor sujo, onde crianças brincam.
A o s f u n d o s f i c a a r e s i d ê n c i a d a f a m i l i a . N a sala d a f r e n t e e s t á
o templo, que quasi sempre tem camas e redes por to-
d o s os lados.
As taboas de M o y s é s n e g r e j a m na parede; a u m canto
está o altar, e na e x t r e m i d a d e opposta fica a arca o n d e se
guarda a sagrada historia, resumo de toda a sciencia
universal, escripta e m pelle de carneiro e enrolada em
formidáveis rolos de carvalho. Só nos dias solemnes se
transforma o templo. David H o r n s t e i n f a z as cerimonias
n o m e i o d a sala, no altar, envolto na sua túnica branca
riscada nas extremidades de v i v o s negros, c o m u m gor-
ro de v e l l u d o e n t e r r a d o na cabeça. M u i t o myope, o hha-
san é a c o m p a n h a d o por trez pequenos que entoam o c o r o .
No altar David r e t i r a a capa de v e l l u d o r o x o dos r o -
los, abre-os da esquerda para a direita. Ao lado guiam-
lhe a l e i t u r a c o m u m a m ã o de p r a t a . A h i , i m m o v e l , sem
se m e x e r , f a z a o r a ç ã o secreta para que Deus o a t t e n d a e o
perdoe de ser e n v i a d o e o u s a r rogar pelo seu p o v o .
Jeovah naturalmente a t t e n d e e p e r d o a . O hhasan infa-
tigavel já t e m desenhado cento e cincoenta sepulturas,
já p r a t i c o u á c i r c u m s c i s ã o e m cerca de setecentos peque-
nos, já b a p t i s o u . mergulhando em tres banhos consecuti-
vos, m u i t a s meninas, já casou muitos judeus e prospera
f a l l a n d o dos nossos p o l í t i c o s e c i t a n d o os deputados com
familariedade.
A synagoga da rua da A l f â n d e g a é m u i t o mais interes-
sante. Occupa todo o sobrado do prédio 363, q u e é vul-
g a r e a c a n h a d o c o m o e m g e r a l os d o f i m d a q u e l l a r u a . S o -
be-se u m a escada íngreme, dá-se n u m corredor que tem
na parede as t a b o a s d e Moysçs.
125

A h i v i v e u m o u t r o M o y s é s , o hhasan; c o m u m a face hes-


p a n h o l a d a e u m a r b o n d o s o . N a sala de j a n t a r estão as p a -
redes ornadas de symbolos, representando as d o z e t r i b u s
de J u d á , e a h i passam M o y s é s ella de" l e n ç o n a cabeça, elle
com com u m c h a p é o de palha velho.
A sala d a f r e n t e é destinada ás cerimonias. Quasi n ã o
se p ô d e a g e n t e mover, t ã o cheia e s t á de bancos. N o m e i o
collocam o altar de v i n h a t i c o envernisado, e m que o hhasan
fica de p é l e n d o o u cantando.
N a s p a r e d e s a p e n a s as t a b o a s , ao f u n d o a arca, c o m
c o r t i n a s d e s e d a o n d e se g u a r d a o s a g r a d o livro. Do tecto
p e n d e m p r e s o s d e c o r r e n t e s b r a n c a s vasos d e v i d r o s , c h e i o s
d'agua onde lamparinas colossaes queimam crepitando.
S o b r e o a l t a r desce o lustre de chrystal, chispando luzes
nos seus m ú l t i p l o s pingentes, A l é m de M o y s é s , ha u m o n -
t r o sacerdote, S a l o m ã o , tão devoto que é o hhassidim...
Foi nesta synagoga, indicada por um negro falacha,
cuja origem v e m dos tempos de S a l o m ã o e da r a i n h a de
S a b á , q u e e u a s s i s t i ao peisan.
— O h ! eiles s ã o b o n s e se p r o t e g e m u n s aos o u t r o s , d i -
zia o n e g r o a s s o m b r o s o . A v i d a d o j u d e u p o t j r e é a d o p o u -
co comer, do pouco gosar, d o m u i t o s o f f r e r . A g o r a , fize-
r a m a Irmandade d e Pro/ecção Israelista.
E u o l h a v a a t u r b a c o l o r i d a , a serie de perfis e x ó t i c o s , de •
caras hespanholas e á r a b e s , d e olhos^ l u m i n o s o s b r i l h a n d o
á luz dos alampadarios. Havia gentes m o r e n a , gente clara,
m u l h e r e s vestidas a m o d a hebraica de t ú n i c a e alpercata,
m o s t r a n d o os p é s , h o m e n s de c h a p é o s e n t e r r a d o s n a c a b e ç a
caras f e m i n i n a s de l e n ç o a m a r r a d o na testa e c r i a n ç a s lin-
d a s . O hhasan, paramentado, lia splemnemente e t o d a a q u e í -
l a e x q u e s i t a i l l u m i n a ç ã o d e b a l d e s cie v i d r o , f a z e n d o h a l o s d e
luz e m e r g u l h i n d o n'agua translúcida as m e c h a s d a I a m -
parinas, aquelle lustre, oncle as luzes ardiam, eram
cómo um v i s ã o de sonho estranho.
E m q u a n t o o hhasan l i a , c o m os p é s j u n t o s , s e m mover
s i q u e r os o l h o s , c o m « u m a v o z . á c i d a t r e m e n d o n o a r , todos
t i n h a m nas faces s o r r i os d e s a t i s í a ç ã o .
" As cidades serão d e s t r u í d a s a f e r r o e f o g o se n ã o fes-
t e j a r e m este d i a do mez de Hadar. N ó s festejamos. E d i -
ante das lâmpadas, para aquelle punhado de judeus, a
historia desenrolava a m a r a v i l h a de Assuero, que reinou
desde a í n d i a a t é a E t h i o p i a sobre cento e vinte cidades.
Era Saza, a capital maravilhosa, Esther suave e cândida,
substituindo a rainha Vashi, Mardocheo sentado á porta do
templo sem adorar Á m a n , a q u e m Assuero t u d o dava,x\man
f o r ç a d o a levar Mardocheo e m triumpho, t u d o p o r causa
de u m a m u l h e r t r e m u l a e timida, que desmaiava, salvan-
d o 6o m i l h õ e s de j u d e u s e m a n d a v a m a t a r q u i n h e n t o s i n i -
migos, pedindo concessões idênticas p a r a as p r o v í n c i a s .
E r a a d a t a dessa m a t a n ç a ; festejava-se o dia e m que
Aman foi para a patibulo que p r e p a r á r a para Mardocheo,
e o momento em que se espatifara Arisai, Phrasandata,
Delphon, Ebhata, Foratha, Adalia, Aridatha, Phermesta.
Aridai e Jeratha.
Mas daquelle l i v r o sagrado, entre aquellas illuminações,
a f é d e s t i l l a v a a s u p r e m a d i l i c i a . E r a c o m o se c a d a p a l a v r a r e -
cordasse os banquetes dados aos príncipes nos atrios
do palácio decorado de p a v i l h õ e s da c ô r d o c é o , da c ô r do
jacintho e da c ô r da assucena; era como se cada período
abrisse a v i s ã o das c o l u m n a s de m á r m o r e , dos leitos d e prata
e o u r a e dos pavimentos embutidos, onde esmeraldas ro-
lavam. ..
N ó s e s t á v a m o s apenas n u m a sala e s t r e i t a q u e f i n g i a d e
de synagjoga, no fim da rua da Alfândega.
A. N O V A J E R U S A L É M
A séde da nova J e r u s a l é m , annunciada pelo Apocalipse,
fica na r u a M a r i a J o s é n . 10. E'uma casa de dous pavi-
m e n t o s , m u i t o alta. p i n t a d a de v e r m e l h o escuro, que assenta
á beira da rua C o l l i n ã c o m o u m a fortaleza.

De l o n g e parece formidável aos reflexos do sol, que


q u e i m a t o d a s as v i d r a ç a s , e r e v e r b e r a n a s e s c a d a s d e p e d r a ;
de p e r t o é solemne. Abre-se u m p o r t ã o , sobe-se u m a das
escadas, abre-se o u t r o p o r t ã o , d á - s e n u m pateo q u e t e r m i n a
para a f r e n t e e m estreitas arcarias ogivaes e perde-se ao
fundo n u m jardim obumbroso. Desse p a t e o vê-se o declive
v i r i d e das ruas q u e descem, e vagos trechos d a c i d a d e .

Antes de bater, olhamos ainda a casa alta. Detrás


daquelles m u r o s viceja a r e l i g i ã o de Swedenborg, a nova
igreja, a verdadeira comprehensão da Bíblia ; detrás
daquelles m u r o s , i l l u m i n a d o s da luz da tarde, guarda-se a
c h a v e c o m q u e t u d o se p ô d e e x p l i c a r n e s t e m u n d o . « E u s o u
o D ê u s , disse Jesus a S w e d e n b o r g , o S e n h o r , o C r e a d o r e o
R e d e m p t o r , e t e e l e g i p a r a e x p l i c a r e s aos h o m e n s o s e n t i d o
i n t e r i o r e e s p i r i t u a l das Escripturàs Santas. Dictar-te-ei o
que escreveres!»

S u b i m o s m a i s u m a escada de p e d r a n ú a , n o p a t a m a r da
qual nos r e c e b e o sr. Frederico Braga. Esse cavalheiro
a m á v e l é u m a e s p é c i e de « d i l e t t a n t e » dos cultos. D i z e m que
já f o i a t é f â k i r f a z e n d o crescer bananeiras de um momento
para outro. Neste momento porém limita-se a fazer-nos
e n t r a r p a r a u m a s a l a s i m p l e s e, e m q u a n t o n ó s v a g a m e n t e o
i n t e r r o g a m o s , passeia d a p o r t a p a r a a janella.
130

— O pastor está a h i , diz dej repente. Ninguém melhor


d o q u e elle o p ô d e i n f o r m a r .
O p a s t o r é o sr. Levindo Castro de la Fayette, que
apparece logo. H o m e m de physionomia intelligente, f a l -
l a n d o b e m , c o m o ar de q u e m e s t á sempre na p e r o r a ç â o de
um discurso i n t e r r o m p i d o por apartes, o pastor agrada.
H a d e c e r t o n o s seus g e s t o s u m p o u c o d e morgue, o intimo
o r g u l h o d e ser o p r o p h e t a d e u m a r e l i g i ã o de intellectuaes,
de espalhar pela terra a p a l a v r a d o m a i o r h o m e m d o m u n d o ,
que t u d o descobrira na sciencia terrestre e v i r a Deus na terra
celeste.

O sr. la F a y e t t e consulta o óculo brilhante, falia da


conquista da Nova Igreja a t r a v é s do mundo, falia torren-
cialmente. E' a h i s t o r i a d o swedenborgismo desde a m o r t e
dc g r a n d e v i s i o n á r i o , desde a defeza de Thomaz Wright
e Roberto H i n d m a r s h que d e m o n s t r a r a m o perfeito estado
mental do mestre, até a reunião dos adeptos de S w e d e n -
borg em Londres em 1788, d o n d e começou a expansão do
culto novo que agora augmenta diariamente na Áustria,
na F r a n ç a , na I n g l a t e r r a , na A u s t r á l i a , nos Estados Unidos,
c o m igrejas novas e novos adeptos. P ô d e - s e calcular em
cento e vinte m i l o n u m e r o de crentes.

O S r . F r e d e r i c o B r a g a m o s t r a - n o s as revistas allemàes
e i n g l e z a s , o New Chnrch Messager, a New Church Review,
onde v ê m reproduzidas e m p h o t o g r a v u r a as fachadas dos
novos templos a t r a v é s d o mundo.

— A verdade caminha ! diz o pastor, e leva-nos á sala


o n d e se r e a l i s a m as reuniões dos swedenborgeanos. E' no
i u
pavimento, na frente, u m a sala n ú a . Ao centro uma
grande mesa, rodeada de cadeiras c o m u m a cadeira mais
a l t a p a r a o p a s t o r . A o l a d o a b i b l i o t h e c a , o n d e se e m p i l h a a
131

o b r a i n t e r m i n á v e l d e S w e d e n b o r g d e s d e os Arcania Cceiestia
a t é o Tratado do Cavallo Branco do Apocalypse.

A Nova Jerusalém d o B r a s i l d a t a d e 1898. F o i s e u f u n d a -


dor o p r ó p r i o Sr. de la Fayette, e isto d e v i d o a revelações
q u e recebera e m Paris alguns annos antes. E ' o caso q u e o
p a s t o r , nesse t e m p o simples professor de portuguez num
i n s t i t u t o parisiense, f o i nomeado chanceller do consulado
geral d o Brasil na F r a n ç a . Essa f u n c ç ã o fel-o desejoso de
c o n h e c e r a v e r d a d e e s p i r i t u a l , e, para que a verdade bri-
lhasse, de la Fayette o b s e r v o u logo u m r i g o r o s o r e g i m e n de
temperança e m t o d a s as c o u s a s . . . Swebenborg, cávalleiro
d a o r d e m e q ü e s t r e da S u é c i a , q u e de t u d o escrevera e fal-
l a r a , s ó e m 1745 t e v e a r e v e l a ç ã o d e q u e e s t a v a t a l h a d o para
explicar os s y m b o l o s da Biblia. Mas S w e d e n b o r g comia
m u i t o . A p r i m e i r a v e z q u e os e s p i r i t o s i n v i s i v e i s l h e f a l l a r a m
foi durante u m jantar. O philosopho engulia vorazmente no
q u a r t o reservado de u m h o t e l , o n d e á vontade devorava e
p e n s a v a , q u a n d o s e n t i u a v i s t a se l h e e m p a n a r e r e p t i s h o r -
ríveis arrastarem-se pelo soalho. Os olhos pouco tempo
depois recobraram a visão perfeita e Swedenborg v i u , distin-
ctamente, no angulo d a sala, u m homem c o m o seio em
luz, que lhe dizia, paternalmente :

— N à o comas tanto, m e u f i l h o !

D e l a F a y e t t e n ã o p r e c i s o u desse c e l e s t e c o n s e l h o . Pra
ticou-o antes da revelação; — e foi por isso q u e , mezes
depois, c o m e ç o u , d u r a n t e o s o m n o , a receber ensinamentos
do m u n d o espiritual a respeito da palavra de Deus. Desde
esse t e m p o o S r . L e v i n d o f o i g u i a d o p e l o c é o , e c h e g o u a t é a
Bibliotheca Nacional.
— Q u e l i v r o h e i de p e d i r ? i n t e r r o g o u aos seus b o t õ e s o
h o m e m feliz.
132

— Pede S w e d e n b o r g ! b r a d a r a m os e s p í r i t o s bons de
d e n t r o do sr. Levindo.
O i l l u m i n a d o p e d i u os Arcania C ceies lia, e m l a t i m , p o r q u e
a l é m de c i n c o l í n g u a s vivas, lé c o r r e n t e m e n t e a lingua em
q u e C a t u l l o escreveu t ã o bellos versos e t ã o suggestivas pati-
f a r i a s . L e u os Arcana, foi a igreja da rua T h o u i n , conversou
comMme. H u m a n n que o recebeu ineffavelmente doce, e
mezes, depois, era baptisado n a n o v a i g r e j a .
E m a g o s t o d e 1893, o s r . d e l a F a y e t t e , q u e é mineiro,
v e i u para o R i o , mas q u a n d o a q u i c h e g o u a revolta estalara,
h a v i a estado de sitio, e n ã o teve r e m é d i o s e n ã o abalar para
as montanhas do seu Estado. A cidade de Lamim, em
Minas, foi onde p r i m e i r o se fallou no Brasil da Nova Je-
rusalém.
De v o l t a ao R i o , o p a s t o r fez u m adepto, o sr. Carlos
Frederico Braga, também mineiro. A adhesão foi rápida.
O sr. C a r l o s c o n c o r d o u logo c o m o sr. de la F a y e t t e , como
concordava naquelle i n s t a n t e e m q u e e u os o u v i a . Dahi por
diante Levindo foi o texto do credo e Carlos Frederico o
commentario enthusiasmado. Esses dous homens atira-
ram-se pela cidade a explicar a Nova Jerusalém, a fazer
comprehender pelos h o m e n s i n t e l l i g e n t e s as sagradas i n -
t e r p r e t a ç õ e s do prolixo S w e d e n b o r g , escriptas s o b as v i s t a s
de C h r i s t o Deus, que é u m s ó . Q u a t r o annos depois reuni-
r a m n a r u a M i n e r v i n a c i n c o e n t a swedenborgianos, fundando
duas sociedades: — a A s s o c i a ç ã o de P r o p a g a n d a da Nova
J e r u s a l é m , pela i m p r e n s a , conferências e leitura das obras
d o m e s t r e , e u m a s o c i e d a d e d e b e n e f i c ê n c i a p a r a a u x i l i a r os
i r m ã o s brasileiros.
U m j o r n a l , a Nova Jerusalém, f o i logo p u b l i c a d o e existe
ha oito annos; o c i r c u l o da p r o p a g a n d a a u g m e n t o u , a m i g o s
e m v i a j a m l e v a r a m a n o t i c i a ao P a r á , ao R i o G r a n d e d o S u l ,
133

ci M i n a s e, a f ó r a esses a d e p t o s , c e r c a d e d u z e n t o s szvedenbor-
gianos reunem-se aos d o m i n g o s p a r a ouvir d e la Fayette
n a r r a r o s y m b o l o de A d ã o , e x p l i c a r o s e n t i d o ú n i c o de cada
p a l a v r a e m t o d o s os l i v r o s d a B i b l i a e l o u v a r S w e d e n b o r g .
— S w e d e n b o r g ! e u n ã o p r e c i s o d i z e r - l h e q u e m f o i esse
e x t r a o r d i n á r i o espirito que tudo descobriu da terra e do
c é o . N a sua é p o c a , c h a m o u a a t t e n ç ã o de grandes cérebros
comoGcethe, K a n t , W e s l e y , de Wleland, Klopstosk...
N ó s b a t e m o s as p a l p e b r a s , g e s t o q u e S w e d e n b o r g con-
sidera signal de e n t e n d i m e n t o e sabedoria. Gcethe puzerao
p h i l o s o p h o n o Fausto com o pseudonymo de Pater Sera-
phicus, K a n t fallando delle recorda e c u m p r i m e n t o do seu
cocheiro a T y c h o Brahe: « o Sr. p ô d e ser m u i t o entendido
nas cousas d o c é o , m a s neste m u n d o n ã o passa d e u m d o ' d b » .
Ü s outros n ã o t i n h a m sido mais a m á v e i s . Mas para que d i s -
cutir ? O m i n i s t r o da Nova J e r u s a l é m continuava contado
a a t t e n ç ã o e curisiodade dos povos m o d e r n o s pelo extraor-
d i n á r i o propheta do N o r t e . Depois parou.
— O que é, e m synthese, a Nova J e r u s a l é m ? p e r g u n t o u .
S w e d e n b o r g ao m o r r e r e m casa d e u m b a r b e i r o , a c h a v a
d e s n e c e s s á r i o r e c e b e r os s a c r a m e n t o s p o r ser de ha muito
c i d a d ã o d o o u t r o m u n d o . A r e s p e i t o dessa r e g i ã o o cidadão
e s c r e v e u e n o r m e s v o l u m e s ex auditis etvisis, isto é , sobre o
oue vira e ouvira.
O s Arcania, o tratado do C é o e do Inferno,o tratado das
Representações e Correspondências, a Sabedoria Angélica
s o b r e o d i v i n o A m o r e a d i v i n a S a b e d o r i a , a Doutrina Novaz
lüerosalymce, as t e r r a s d o n o s s o m u n d o s o l a r e n o c é o a s t r a l ,
a t é o Amor Conjugai, com umas m á x i m a s arriscadas sobre
o a m o r s c o r t a t o r i o , e x p l i c a r a m b e m as suas e x t r a o r d i n á r i a s
viagens.
S w e d e n b o r g esteve no inferno e conversou comtaniÊa
134

gente q u e M a t t e r p a r a - s i m p l i f i c a r fez u m a lista c h r o n o l o g i c a


d e s d e os d e u s e s g r e g o s a t é os c o n t e m p o r â n e o s ,• t e v e r e l a ç õ e s
i n t i m a s c o m os e s p i r i t o s d e J ú p i t e r , d e Mercúrio, de Marte
e a t é da L u a , apezar de n ã o s y m p a t h i s a r m u i t o c o m esses
que eram pequenos e faziam barulho. N ã o foi só. O extraor-
dinário homem v i u o paraiso, ouviu os a n j o s , e s t e v e com
D e u s Nosso S e n h o r e m pessoa q u e l h e a p p a r e c e u pelo olho
direito c o m o u m sole pelo esquerdo c o m o u m a lua cercada
de l u a s i n h a s . E r a n a t u r a l que comprehendesse o sentido
das c o r r e s p o n d ê n c i a s entre os espiritos dos planetas e o
m á x i m o h o m e m , q u e r e v e l a s s e ao m u n d o o sentido intimo
e s p i r i t u a l o u celeste das r e v e l a ç õ e s q u e a t é e n t ã o f i c a r a i g n o -
rado.
« A d o u t r i n a da Igreja actual é viciosa, deve desappa-
r e c e r » e S c e e d e n b o r g , c o m os o l h o s e s p i r i t u a e s abertos não
innovoü, e l u c i d o u os textos sagrados.
A nova igreja t e m u m catecbismo que explica e resume
a N o v a J e r u s a l é m e a sua d o u t r i n a celeste. A s s i m o homem
f o i c r e a d o p o r D e u s p a r a a m a r a D e u s e f a z e r o b e m ao p r ó -
x i m o . Q u e m faz m a l vai para o i n f e r n o , q u e m faz b e m vive
c o m luxo e conforto no reino do céo que, segundo Sweden-
borg, tem edifícios magnificos, parques encantadores e
vestidos bonitos. O h o m e m aprende a fazer o b e m nos dez
mandamentos. E' simples e fácil.
O Senhor, deve o h o m e m j u l g a l - o o ú n i c o Deus, e m q u e
está encarnada a S a n t í s s i m a Trindade do Pai, do Filho e do
E s p i r i t o S a n t o . A t r i n d a d e p e r f a z n u m a s ó pessoa a a l m a , o
corpo e o acto da obra. Na T r i n d a d e Divina, o Pai é a a l m a
o Filho o corpo, o Espirito Santo a operação condensados
n u m a s ó pessoa : — Jesus. E ' esta a d i v e r g ê n c i a capital do
Catholicismo. A Nova J e r u s a l é m é o christianismoprimitivo.
Os seus m e m b r o s n ã o t ê m a m b i ç õ e s e a j u d a m - s e u n s a © s
135

outros, praticando a caridade, o ú n i c o arnor capaz de nos


d e s p r e n d e r de n ó s mesmos para nos a p p r o x i m a r de Deus.
A regeneração v e m da o r a ç ã o . O h o m e m ora só a Jesus
p o r q u e o m a i s é i d o l a t r i a . T o d a s as s c i e n c i a s e r e l i g i õ e s n a d a
s ã o s e m o c o n h e c i m e n t o d e D e u s . P o s s u i d o r e s desse c o n h e -
c i m e n t o , os swedenborgeanos t ê m a chave da interpretação
exacta de t u d o e e x p l i c a m c o m h a r m o n i a espiritual todas
as s c i e n c i a s e t o d a s as r e l i g i õ e s . . .
— N ã o se p o d i a v o l t a r a o C h r i s t i a n i s m o , ao t e m p o e m
que começou a ser f a l s i f i c a d o , d i z - n o s o s r . d e l a F a y e t t e .
S e r i a d e s c o n h e c e r as l e i s d a ordem divina que teria desse
m o d o perdido quinze séculos, quando esse p e r í o d o serviu
para a execução das suas obras sempre misericordiosas. ,
O S e n h o r a n n u n c i o u q u e , n a c o n s u m a ç ã o dos s é c u l o s , isto é,
no fim da igreja actual, viria, «nas nuvens do céo, com
poder e gloria» f u n d a r o u t r a igreja que n ã o terá fim. Esta
igreja é a Nova Jerusalém, que o Senhor instaurou, reti-
rando o véo que occultava o V e r b o . . .
E s c u r e c i a . A s t r e v a s e n t r a v a m p e l a sala o n d e o V e r b o é
r e v e l a d o . E m de r e d o r , q u a n t o abrangia o olhar, via-se a
cidade reclinada p o r valle e m o n t e , preguiçosamente. No
c é o p u r í s s i m o as e s t r e l l á s p a l p i t a v a m d e v a g a r ; pela terra
e s t r e l l a v a m os c o m b u s t o r e s u m i n f i n i t o r e c a m o d e l u z e s .
— V o u aos E s t a d o s U n i d o s , d i s s e o ministro, comprar
livros, e d i t a r obras m i n h a s para f r a n q u e a r a b i b l i o t h e c a ao
p o v o . A r e g e n e r a ç ã o far-se-a !
E n ó s d e s c e m o s o m o n t e , o n d e , n a q u e l l a casa d e pedra,
dusentcs homens compenetrados do secreto sentido das
c o r r e s p o n d ê n c i a s , l o u v a m t o d o s os d o m i n g o s Swedenborg
que gozou o C é o , e Jesus, q u e é a caridade e o supremo
Amor.
O C U L T O DO M A R
O culto do mar é p r a t i c á d o pelos pescadores das nossas
praias. E ' u m culto variado, cosmolatra e fantasista, e m que
e n t r a m a lua e alguns elementos divinisados.
N ã o c o n h e c e s os nossos pescadores ? Gente t r a n q u i l l a -
R a r a m e n t e se a g g r i d e m e s e m p r e p o r q u e s t ã o de pesca.
Os pescadores f o r m a m u m c o r p o d i s t i n c t o , d i v e r s o dos
catraeiros, dos maritimos, dessa população ambígua e
viciada que anda no c ã e s á b e i r a das o n d a s p e r t u b a d o r a s .
N ã o ha c a n t o d a nossa b a h i a q u e n ã o t e n h a u m a c o l ô n i a de
pescadores. V i v e m todos m u i t o calmos, sem saber d o resto
do m u n d o . E m f i m u m a classe á p a r t e , c o m f e s t a s p r ó p r i a s ,
q u e n ã o se a f a s t a d o o c e a n o e é u n i d a p e l o c u l t o d o m a r . O s
p e s c a d o r e s s ã o os últimos i d o l a t r a s das vagas. Conversar
c o m elles é t e r i m p r e s s õ e s a b s o l u t a m e n t e i n é d i t a s d e m o r a l ,
de p h i l o s o p h i a e de r e l i g i ã o .
— M a s essas c o l ô n i a s s ã o b r a s i l e i r a s ? i n d a g u e i d o m e u
informante.
— N ã o . H a c o l ô n i a s s ó de p o r t u g u e z e s c o m o a de Santa
L u z i a e de Santo C h r i s t o , de portuguezes e brasileiros, c o m o
em Sepetibâ, de italianos apenas, de brasileiros s ó . U m a
série de n ú c l e o s ligados pela crença. S ã o outros homens.
N a s c e m de m a i s pescadoras, partejadas quasi sempre por
curiosas, v i v e m nas praias, nun,caas a b a n d o n a m . A o s q u a t r o
a n n o s n a d a m aos d e z r e m a m e a c o m p a n h a m os p a r e n t e s á s
pescarias, e assim passam aexistencia, f a m i l i a r i s a d o s apenas
140

eom as r e d e s , os p e t r e c h o s d e pesca e o c a l ã o , o p i t t o r e s c o
calão m a r í t i m o
O oceano i m p r i m i - l h e s u m c u n h o especial, s ã o p r o p r i e -
dades do mar. N u n c a reparaste nos pescadores ? T ê m os
p é s d i f f e r e n t e s d e t o d o s , u n s p é s c o n t r a c t e i s q u e se c r i s p a m
nas pranchas c o m o os d o s macacos; andam a bambolear,
balouçando como um barco e a sua pelle l u s t r o s a t e m o
macio g r o s s o d o s v e l l u d o s . A a l m a dessa g e n t e conserva-se
ondeante, maravilhosa e simples.
— M a s os p e s c a d o r e s s ã o c h r i s t ã o s ?
— E s t á claro. Mas christãos puros é difficil encontrar
h o j e a f ó r a os
; e v a n g e l i s t a s e os s y r i o s .
— L e m b r o - m e d a festa de Nossa S e n h o r a , na L a p a .
— E ' o u t r a cousa.
— V i em Santa Luzia a d e v o ç ã o de S. Pedro.
— Era promessa de u m rapaz, que, p o r falta de meios
não a continua. Deixemos N . S e n h o r a e S. P e d r o . F a l l o d e
u m c u l t o q u e e m a n a n o i n t i m o r e s p e i t o d a s o n d a s . T o d o s os
pescadores das praias e das ilhas p r ó x i m a s festejam, sacri-
f i c a m ao m a r e t ê m u m o b j e c t o e s p e c i a l d e d e v o ç ã o . N ã o h a
nenhum q u e n ã o t e m a a M ã i d ' A g u a , a S e r e i a , os T r i t õ e s e
que n ã o respeite a Lua. C o n h e ç o tres m a n i f e s t a ç õ e s desse
culto. A Mãi d' A g u a e n t r e os p e s c a d o r e s d e S a n t o C h r i s t o
e de Santa L u z i a , a da L u a e d o M a r e a d o A r c o Ires.

— O arco-ires ?
* * *
— E m Sepetiba. E ' dos m a i s c o m p l e t o s e dos m a i s bellos,
tendo c o m o sacerdote u m a m u l h e r . . . .

O arco-ires, a a d o r a ç ã o de u m d e u s q u e se c u r v a nas
nuvens p o l y c h r o m o e vago, q u e e r g u e das ondas u m f a c h o
de 1 uzes b r a n d a s e desapparece, o terror daquillo que se~
d e s f a z , s e m q u e se s a i b a c o m o l E r a u m a p h a n t a s i a 1 M a s os
141

c o s m o l a t r a s i n v e n t a m t a n t a cousa p a r a p e r f u m a r a sua i g n o -
r â n c i a q u e b e m p o d i a ser.
— N ã o h a d u v i d a s , disse o m e u a m i g o . O arco-ires, é
uma a n t i q u i s s i m a d i v i n d a d e , u m a n n u n c i o dos c é u s . L e m -
b r a - t e disso e a c o m p a n h a - m e .
Acompanhei-o, durante u m inverno, muito humido e
muito estrellado. Os pescadores têm um temor incalcu-
lável d a policia. Desde que u m curioso apparece, g u a r d a m
s e g r e d o das suas c r e n ç a s e negam toda e qualquer copar-
ticipação e m religião que n ã o seja a c a t h o l i c a . C o m o s ã o
primitivos e r u d i m e n t a r e s , p o r é m , a bondade que t e m é f u n -
damental, t r a n s f o r m a - o s e n ã o h a n e n h u m q u e n ã o acabe
confiante e f a l l a d o r , e x a g g e r a n d o p a r a e s p a n t a r os m y s t e -
r i o s c o s m o l o g i c o s . Esses m y s t e r í o s s ã o de u m a belleza d e l i c a -
da e antiga, de u m a belleza de rhapsodos q u e r e l e m b r a a s
fantasias scandinavas e helenas, u m m o n t ã o de lendas e de
ritos enervantes. H a nas p r a t i c a s e nas i d é a s trechos de
Hesiodo, de Christo e dos pretos m i n a s e a gente afunda-se,
q u a n d o os q u e r g u a r d a r , n u m b a n h o d e c r y s t a l b a t i d o p e l o
sol.
— Quasi s e m p r e os d i r e c t o r e s d a s f e s t a s , os s a r c e c l o t e s
n ã o s ã o pescadores. E m Santo C h r i s t o é o padeiro Carvalho,
homem de posses, d i z o m e u a m i g o . Os s a c r i f í c i o s s ã o f e i t o s
geralmente á noite.
V a m o s os d o u s i n t e r r o g a r os p e s c a d o r e s . Essa gente
teme a Mai d' Agua, tendo a longigua r e c o r d a ç ã o de que
ella apparece v e s t i d a de b r a n c o , seguida de h o m e n s b a r b a -
dos de v e r d e . A a p p a r i ç ã o f e m i n i n a g r i t a de repente, apaga
as luzes na barca, f a z as cerrações, a f a s t a os p e i x e s , e as
vezes c a n t a .
— Como a.Darclée ?
— C o m o as s e r e i a s meu caro. Os pescadores t ê m que
142

cahir no f u n d o da b a r c a t a p a n d o os o u v i d o s . U l y s s e s a m a r -
rava-se . . .
Para aplacar a d e u s a d o m a r , ser i m p a l p a v e l e l i n d o , os
pescadores fazem o sacrifício de u m carneiro. Matam
o b i c h o á b e i r a d o o c e a n o , o s a n g u e cae numa cova aberta
na areia. Depois partem canoas levando p e d a ç o s do a n i m a l
com presentes que deixam cahir no f u n d o da bahia com
uma oração votiva.
U m rapazola, l i n d o c o m o o A p o l l o do Belveder, respon-
d e as nossas perguntas:
— E u f u i baptisado patrão.
— M a s sabe a h i s t o r i a d a M ã i d ' A g u a ?
— Sei s i m . A q u i , para Mãi d ' A g u a ser boa fazem-se
despachos. Na ilha do Governador c o m p r a m tudo do mais
f i n o , p õ e m a mesa á beira da praia, c o m talheres de prata,
copos b o n i t o s , a toalha alva e gallinhas sem c a b e ç a , para a
santa c o m e r .

—- Q u e differença ha entre Nossa Senhora e a Mãi


d ' A g u a ?— i n d a g o interessado.
— Nossa S e n h o r a e s t á no céo. Mãi d' A g u a é differente;
éa devoção, é como um santo do M a r . . . E sopra-me na
cara u m a b a f o r a d a de f u m o m á o .
O meu a m i g o , cheio de literatura, declama logo.
— N ã o comprehendes ! A agua é e m toda a parte uma
religião. O N i l o f o i f e i t o das l a g r i m a s de Isis, o Ganges
é o factor da crença d a i m m o r t a l i d a d e , os gregos povoa-
r a m o m a r de h a b i t a n t e s sagrados.
L e m b r a - t e des a r y a s ao descer d o p l a n a l t o : — « ó m a r ,
grande laboratório !...» Laboratório da vida da crença.
E leva-me a uma outra praia, a comprehender como
tudo depende do maré da lua. Elle conhecia um velho
143

pescador, J o s é B e l c h i o r . O v e l h o recebe-o c o m i n t i m i d a d e e
c c n t a - m e o q u e pensa deste m u n d o . E'curiosissimò.
Para José o m a r representa o h o m e m , o principio activo.
Por isso o mar é superior em tudo á terra, que como a
m u l h e r s ó serve para o d e s c a n ç o . O oceano c i r c u n d a a t e r r a
n u m longo a b r a ç o . O m a r só soffre u m a influencia, a da
lua, que mostra a sua face de t r i n t a em t r i n t a dias e o
faz inquieto e a a r f a r . Nella mora Nossa Senhora com o
seu. f i l h o , J e s u s , e esse d o c e a l a m p a d a r i o de o u r o desenca-
d e i a os v e n t o s , f a z as t e m p e s t a d e s , e s c o n d e os p e i x e s , baixa
as m a r é s e g u i a as n a v e s . Se N o s s a S e n h o r a q u i z e s s e , p a r a v a
a l u a q u a n d o ella v e m cheia e t u d o seria então magnifico.
C o m o as c o u s a s n ã o s ã o a s s i m , f a z e m - s e p r o m e s s a s , pede-se
aos s a n t o s p a r a i n t e r c e d e r e, n a s n o i t g s d e l u a r f a z e m uma
passeata e m b a r c a ç õ e s c o m v e l a s d e c e r a accesas n a mão e
rezando baixinho.
T o d a s essas p e q u e n a s modalidades reunem-se em Se-
petiba no culto geral do Arco íris. H a festas de tres em
tres mezes, despachos simples e u m a grande solemnidade
que já f o i feita a 2 de f e v e r e i r o e a c t u a l m e n t e se r e a l i s a e m
j u n h o , no dia de S. Pedro.
E s t i v e Ia n e s s e d i a . A s a c e r d o t i s a é u m a portugueza re-
f o r ç a d a , q u e se chama Maria Mattos da Silva. S ó são per-
m i t t i d o s n a f e s t a p e s c a d o r e s e os p e s c a d o r e s v ã o de t o d a a
p a r t e a o c u l t o s i n g u l a r . A casa d e M a r i a d a S i l v a f i c a m e s m o
no p o n t o dos bonds, e nos dias de festa está toda a d o r n a d a
de folhagens e galhardetes. Todos lavados e de roupas
claras, a d o n a da da d e v o ç ã o m a n d a buscar os n e g r o s f e i t i -
csiros para preparar os ebós e f a z e r a matança dos ani-
maes.
Ella p r ó p r i a d e i t a as c a r t a s para saber quem deve i r
ievar os s a c r i f í c i o s e os d e s e j o s subtis do Arco-íris,
144

No interior da casa, o n d e a r d e m velas, é prohibida a


e n t r a d a c o m e x c e p ç ã o das q u e t o m a m p a r t e nos s a c r i f í c i o s .
Em f r e n t e os pescadores b e b e m , c a n t a m e d a n s a m o cate-
retè. Se p o r a c a s o n o c é o se c u r v a m as c o r e s do spectro,
p r o s t e r n a m se t o d o s r a d i o s o s c l a m a n d o p e l o m i l a g r e . O m i -
lagre p o r é m , c o m o todo o m i l a g r e , é r a r o .
M a r i a da S i l v a t e m s e m p r e a seu l a d o o c o r o n e l R o d r i -
gues, velho guarda n a c i o n a l , q u e c o m os p é s m e t t i d o s e m
grossos tamancos, sentencia m á x i m a s moraes para a assem-
b l ê a . Os pescadores q u e a p a n h a m n a rede u m boto levam-
n'o á m u l h e r do culto para preparo d o azeite das festas
sagradas.
V o u pela praia, alanhada por u m vento algido. No céo
apparecem nuvens, na areia descançam tres barcas enfei-
tadas. U m rapazola guarda-as, E ' e l l e q u e m nos d á infor-
m a ç õ e s a respeito da gente que d a n ç a . Reina entre estas
creaturas u m a perfeita amoratidade. C o m o n ã o ha barulhos
graves, n ã o se v a i a p o l i c i a . C o n s e l h o s d ã o os v e l h o s . A
m u l h e r serve p a r a p r o c r e a r , obedece c e g a m e n t e ao h o m e m ,
cose, trabalha, é inferior. O macho domina. O respeito
aos a n c i ã o s e x i s t e p o r q u e estes s a b e m das m a n h a s dos p e i -
x e s , a n n u n c i a m as t e m p e s t a d e s , e n s i n a m . Q u a n t o ao a m o r ,
d e v e ser m u i t o d i v e r s o d o n o s s o . . .
— E as f e s t a s , q u e m as f a z ?
— P a r a as f e s t a s c o n c o r r e m t o d o s .
Das tres barcas q u e e u v i a , a p r i m e i r a e r a para o Arco-
íris, a segunda para a M ã i d'agua e a terceira acompanha-
r i a as duas f o r m a n d o a trilogia, duas na frente e uma
atrás.
O meu amigo, lembrando mythologias diversas, quiz
saber a razão desse triângulo. O rapaz respondeu a-
penas :
145

— E' costume.
E' costume t a m b é m p a g a r e m t o d a s as r e l i g i õ e s . T a n -
to os f e i t i c e i r o s , como os c o n d u c t o r e s das barcas rece-
bem dinheiro. Os remadores pertencentes ao Arco-íris
t ê m seis m i l r é i s , os d a M ã i d ' a g u a tres e os a c o m p a n h a -
dores n o v e . A ' noite, já no c é o negro o crecente l u n a r , de-
pois dos b ú z i o s e dos baralhos t e r e m indicado os d i a s e m
q u e n ã o se p o d e r á p e s c a r , começa o sacrifício.
F o r ç a d o a ficar de longe, e m b r u l h a d o n u m paletot e m
que tiritava, vi sahir da casa d a Maria u m a theoria de
c a m i s o l a s b r a n c a s c o m as lanternas de azeite de boto na
mão, acompanhando dous homens, um vestido de seda
outro de setim.
O p r i m e i r o era o voga da canoa d o A r c o - í r i s , o segundo
ia d i r i g i r a da M ã i d ' A g u a . As canoas f o r a m arrastadas pa-
ra o m a r . Na d o A r c o - í r i s i a m os m a i s f i n o s presentes c o m
os d e s p a c h o s , na da M ã i d ' A g u a objectos caros e femini-
nos. Q u a n d o as c a n o a s p a r t i r a m e m d i r e ç ã o ao Norte, le-
vando aquelles estranhos remadores vestidos de morim
b r a n c o , os q u e f i c a r a m n a p r a i a levantaram os b r a ç o s e a
Maria da Silva, na t u r b a , s o r r i a c o m o q u e m se desobriga
de u m a promessa sagrada.
— E ao v o l t a r e m , o q u e h a ? i n d a g u e i ao rapaz.
— V o l t a m de costas, de frente para o mar, entram as-
s i m e m casa; os r e m a d o r e s , m e n o s os d o A r c o - í r i s , batem
coma c a b e ç a n o c h ã o , e a festa continua.
— M a s q u e é o Arco íris, afinal ?
O A r c o í r i s i n d i c a se a g e n t e e s t á b e m c o m D e u s . E ' u m
aviso, o signal da u n i ã o , o nnico meio por que o mar se
deixa ver...é a crença.
Olhei mais- o oceano soluçante sob o vento al-
gida.
146

As barcas todas accesas d e luzes frouxas perdiam-se


na phosphorecencia lunar ; as r e m a d o r e s cantavam e eu
ouvia como a copia de uma barcarola nostálgica. Em
f r e n t e da casa de Maria, o cateretê delirava e sombras
de adolescentes desciam a praia ágeis e finas.
A Maria, sentada, sorrindo, era indecifrável.
E para que d e c i f r a l - a ? O seu c u l t o era o culto de
t o d a s as épocas e de todos os homens, o m a r
continua
a ser o grande mysterio. Para os e s p i r i t o s simples que
temem o diabo e guardam na alma crenças accumula-
das, só a Lua com a imagem de Nossa Senhora pôde
explicar a angustia do mar e só as sete c o r e s do arco
do céo podem symbolisar o vago mysterio da união do
oceano e do homem.
À S S A C E R D O T I S A S DO F U T U R O
O f u t u r o é o deus vago e p o l y m o r p h o que p r e s i d e aos
nossos destinos entre as estrellas, o incomprehensivel
e assustador deus dos b o h e m i o s nas caravanas da Asia,
a Força occulta, o perigo invisivel. Hugo e Alencar
acreditavam nessa d i v i n d a d e , e não ha entre os deuses
q u e m m a i o r n u m e r o t e n h a de sacerdotes e de sacerdotizas.
S ó os c u l t o r e s d o F u t u r o p o d e m m o d i f i c a r a f a t a l i d a d e ,
a f a s t a r a m o r t e , s a c u d i r o sacco de o u r o da f o r t u n a , soltar
o riso da alegria na tristeza dos s é c u l o s . As sacerdotizas do
Deus t r e m e n d o i n f e s t a m a nossa c i d a d e , t o m a m conta de
todos os b a i r r o s , p r e d i z e m a s o r t e aos r i c o s , c o m p õ e m um
m u n d o exótico e c o m p l e x o de c a r t o m a n t e s , nigromantes,
somnambulas videntes, chiromantes, graphologas, feiticei-
ras e bruxas.
E s s e g e n t e c u r a , s a l v a , d e s f a z as d e s g r a ç a s , e r g u e o v é o
da f o r t u n a , faz esperar, faz crer, vive e m p r é d i o lindos, e m
t a p é r a s , e m c a s i n h o l a s — é o c o u j u h c t o das pithonisas m o -
dernas, as d i s t r i b u i d o r a s d e o r á c u l o s . E m m e i o t ã o v a r i a d o
ha de haver ignorantes—a maioria—cartomantes que v ê m
nas cartas caminhos estreitos e caminhos largos e nâo
sabem n e m distribuir o baralho, somnambulas falsificadas,
portuguezas e mulatas que se a p r o p r i a m d o s m o l d e s dos
africanos, e mulheres jntelligentes que conversam e dis«
150

F r e q ü e n t e i os t e m p l o s d o f n t u r o . Só em uma semana
visitei oitenta, encontrando~os sempre cheios de fieis. O ka~
l e n d e s c o p i o a l l u c i n a n t e das a d v i n h a s f a z a v i d a livremente.
Em algumas casas e n c o n t r e i tres e q u a t r o , gyrando sob
uma única firma.

Só na r u a d o H o s p í c i o , p o r e x e m p l o , ha c i n c o o u seis.
Nos outros pontos conversei com M m e . Jorge da rua da
A j u d a , a L i b e r a t a na r u a da A l f â n d e g a , a Joanna Maria da
Conceição na rua Figueira de Mello, a A m é l i a de Aragão
a L u i z a B a r b a d a n a r u a B a r ã o d e S. F e l i x , a A m é l i a d o P e -
dregulho, a A m é l i a Portugueza, a C â n d i d a , a M m e . . . da rua
dos A r c o s 4, a X i m e n e s n a r u a d a P r a i n h a 19, M a r i a de Je-
sus na ruaDr. Maciel 7, C a s t o r i n a Pires e m S. D i o g o , a
A m é l i a da rua d o L a v r a d i o , donã M a r t i n s na rua Mariz e
Barros, a A l e x a n d r i n a na r u a da A m e r i c a , M m e . H e r m i n i e
na r u a Senador Pompeu, Maria Bahiana na rua do Costa,
aGenovava da r u a d o V i s c o n d e de Itauna, Dona Z . . , da
r u a d a I m p e r a t r i z 15, a Corcundinha celebre a d v i n h a de acto-
res e de reporters na deixa u m ror infindável. Todas f a l a m
d o seu desinteresse e x i g i n d o d i n h e i r o e a l g u m a s v e n d o o f u -
t u r o nas m ã o s n e m ao m e n o s s a b e m as l i n h a s e s s e n c i a e s se-
g u n d o o e n g r a ç a d i s s i m o Desbarolles. A observação nessas
casinholas é i n c o l o r . Fica-se e n t r e os f e i t i ç o s dos minas e
a magia medieva, n u m a athmosphera de b u r l a .

M a s é l á p o s s í v e l n ã o a c e r t a r as vezes ? A v i d a humana
t e m u m a linha geral. Tanto a m a m as h e r o i n a s d e Bourget
c o m o as l a v a d e i r a s , g o s a m e g o s t a m d e ser g o s a d o s os fre-
q ü e n t a d o r e s d a haute-gomme c o m os d a n ç a r i n o s d o s b e c c o s
esconsos. As vidas têm uma parecença em bloco, uma
uniformidade de sentimentos. Por mais ignorantes que
sejam, as sacerdotisas tem o habito da observação, i n -
151

dagam da vida antes, e m conversa. Muitas chegam a


perguntar :
— V e m por d ô r ou por amor ?

E como sabem perfeitamente q u a n d o se d i r i g e m a u m


c a v a l h e i r o , a u m a d a m a , á s coccottes o u aos r u f i õ e s , as suas
respostas acertam. E ' u m exercicio de a t t e n ç ã o , antes de
tudo, com scenarios, e pedido suggestivos. Uma dellas
recebe velas de sebo, terminada a consulta ; outras, peças
d e c h i t a . A t u r b a d á - l h e s d i n h e i r o , e s u s s u r r a os seus s e g r e -
dos n o s o u v i d o s dessa g e n t e que s ã o c o m o abysmos de d i s -
creto silencio.

N a p e r e g r i n a ç ã o pelos t e m p l o s d o Deus Futuro guardo


c o m o o r i g i n a e s u m a casa d e c a r t o m a n c i a n a r u a d o O u v i d o r
e n t r e as m o d i s t a s d o t o m e a e l e g â n c i a m á x i m a , a C e g u i n h a
v i d e n t e de r u a da M i s e r i c ó r d i a , a Rosa que olha n'agua e é
astrologa, M m e . de F. s o m n a m b u l a numa rua parallela á
praia de B o t a f o g o e a esquisita M m e . Mathilcle do Gattete.
A C e g u i n h a t e m a face m a c e r a d a e é a exploração de
q u a t r o o u c i n c o . V i v e n u m a c a d e i r a , c o m os o l h o s c h e i o s de
pus. O g r a n d e Deus fez-lhe a treva e m t o r n o , para melhor
ler a sorte dos outros nos m e a n d r o s do céo. Dizem q u e os
agentes d o p o l i c i a v ã o lá p a r a saber o p a r a d e i r o dos g a t u n o s
e q u e cs g a t u n o s t a m b é m v ã o a v e r se escapam. Immovel
c o m o u m santo i n d i a n o á p o r t a da i m m o r t a l i d a d e , a C e g u i -
nha, com a mesma d u c t i l i d a d e desvenda-lhes o Futuro.
A ' s vezes a p p a r e c e m s e n h o r a s . A Ceguinha curva-se, e p i n t a
o Destino c o m a m e s m a calma dolorosa.

A R o s a , c o m a s f o n t e s s a l t a d a s , o q u e e m m a g i a se c h a m a
cornos de M o y s é s , é um assombro de observação. Esse
e x e m p l a r ú n i c o de astrolatria conhece m e s m o algumas pra-
ticas antigas. Q u a n d o a f o m o s p r o c u r a r , olhou-nos bem»
152

— P o r q u e v e i o , se n u n c a acreditará ?
— Estou numa situação difficil.
— O u ç a a voz de Deus.
— Mas a m i n h a a l m a soffre.
— O h o m e m t e m muitas almas...
— M a s se p o s s o s a b e r o f u t u r o i r a g u a ?

— A a g u a é o n d e se se m i r a m os a s t r o s q u e t e m a vida
da gente.

— C o m o se consulta ?

— V e n d o . . . A l g u n s astros de outr'ora não tem mais


i m p o r t â n c i a hoje : outros receberam-lhe a f o r ç a . Os meus
horóscopos são certos; o Destino ordena-me. Mas eu so
f a l l o c o m os h o m e n s q u e a d o r f a z t r i s t e s e crentes.

M m e . de F . . . esteve n a I n g l a i e r r a ; e m estado n a t u r a l
discute o psychismo, e quando somnambulisada apparece
n u m a t ú n i c a preta. Dizem que predisse os acontecimentos
da nossa p o l i c i a e p r e v ê u m futuro desagradável da pen-
d ê n c i a brasileira c o m o Peru. E' lugubre. A roda que a
f r e q ü e n t a da-se como ultra chie.

M m e . M a t h i l d e , a c a r t o m a n t e d o h i g h - l i f e , já teve c r i a -
dos de casaca e possue u m a linda galeria de quadros. De
t o d o s os t e m p l o s , o d e s s a s e n h o r a e o m a i s e x c ê n t r i c o . M m e .
M a t h i l d e , p a r a os Í n t i m o s a p r i n c e z a M a t h i l d e , e u m a crea-
t u r a que falia c o m vulubilidade.

Ha alguns annos f o i a Paris, onde estudou com Papus


e M m e . de T h é b e s . C o n h e c e a c a r t o m a n c i a , a telepathia, o
s o n a m b u l i s m o , a m e t a p h y s i c a das estrellas, a chiromancia,
cousas c o m p l i c a d a s de q u e faz u m a interessante confusão.
A l é m de t u d o isso, a p r i n c e z a é c r i t i c a de p i n t u r a e inte-
ressa-se p e l o m o v i m e n t o u n i v e r s a l . Q u a n d o me annunciei,
153

a agradável dama mandou illuminar o seu salão de visitas e


e n t r e as c o l c h a s japonezas, os q u a d r o s d e v a l o r , os bibelots.
d o O r i e n t e e aspelles de t i g r e s , fez a sua appariçâo.
V i n h a vestido de v e r m e l h o , u m v e s t i d o de m a n g a s per-
didas, donde os seus b r a ç o s s u r g i a m c ô r d e o u r o , e v i n h a
c o m ella a essência capitosa de vinte frascos de p e r f u m e .
Mme. Mathilde embalsamava. Deixou-se cahir n u m divan,
p a s s e o u c o m as m ã o s p e l o a r e d i s s e :
— E s t o u c a n ç a d i s s i m a . Se n ã o m e m a n d a s s e d i z e r q u e m
e r a , n ã o o t e r i a r e c e b i d o . S y m q a t h i s o c o m o s e u ser.
Curvei-me cornmovido.
— N ã o podia fallar das sacerdotizas do F u t u r o , sem
ou vil-a.
— J á t e m p e r c o r r i d o os t e m p l o s d o g r a n d e D e u s ?
— A l g u n s . V i s i t e i o i t e n t a e ha para m a i s de duzentos,
— H a t e m p l o s de o u r o , de prata, de cobre e de l a t ã o .
— G u a r d e i p a r a o fim o m e l h o r .
— M e u c a r o , os v e r d a d e i r o s templos do F u t u r o s ã o cie
data recente entre nôs A sorte c o m e ç o u a ser descoberta
a q u i por negros da África imbecis e por ciganos e x p l o r a d ® -
res. D e p o i s a p p a r e c e r a m as v a r i a ç õ e s e s p i r i t a s , os a d i v i n h o s
q u e m o n t a v a m casinholas receiosas, r e u n i n d o ao e s t u d o das
cartas a necessidade dos despachos a f r i c a n o s . U m a crendice!
As verdadeiras sacerdotizas datam de p o u c o t e m p o , s ã o de
i m p o r t a ç ã o e a u u u n c i a m . Essas n ã o se o c c u l t a m m a i s e d ã o
consultas claramente/
— Como e m Pariz ?
— Como em Pariz. N ã o lhe fallo de Papus, de q u a t r o
ou cinco somnambulas de f a m a universal, mas apenas da
m i n h a i l l u s t r e p r o f e s s o r a M m e . de T h e b e s . Mme. de The-
bes e m P a r i z é u m a necessidade m u n d a n a c o m o o c l u b , as
premiéres, o jrand prix.
154

V a i - s e a M m e . c l e T h e b e s c o m o se j o g a u m a p a r t i d a d e
b o s t o n . E ' u m a necessidade elegante, M m e , de Thebes t e m
hoje u m a fortuna.
— E erra sempre.
— Nunca,
— E ' sacerdotiza por v o c a ç ã o ?
— S e m p r e e s t u d e i as sciencias occultas p o r d i l e t t a n t i s -
mc. Das s c i e n c i a s occultas sahiram as sciencias exáctas,
disse u m g r a n d e m e s t r e . Desde c r i a n ç a a m e i a a n t i g ü i d a d e ,
t i v e o d e s e j o d e r e m o n t a r o Z o r o a s t r o , ao Z e n d - A v e s t a e aos
Magos, c o m o prazer de d e s c a n ç a r á b e i r a d o N i l o , de co-
n h e c e r P l o t i n o e os l i v r o s herméticos.
Depois, s e m p r e f u i d o t a d a de u m a g r a n d e f o r ç a n e r v o -
sa. U m a v e z , l e v a n d o a m i g a s á casa d e u m a somnambula,
r e s o l v i e s t u d a r os írucs das m e r c a d o r a s e d ' a h i a m i n h a c o n -
versão.
Nesse m o m e n t o , como a prophetisa ria, estendendo as
mãos, v i - l h e na s i n i s t r a v á r i o s a n n e i s c o m p l i c a d o s , e pren-
di-lhe os d e d o s , c u r i o s o das jóias e da m ã o .
— E s t á v e n d o os m e u s a n n e i s ? E s t e é a f r i c a n o , p a r t i d o .
Tem os s i g n o s d o z o d i a c a — o t e m p o . E s t e outro guarda no
f u n d o u m b e r y l l o , p o r o n d e se e n x e r g a a a l m a . N a t u r a l m e n -
te é descrente ?
— S o u filho d e u m a c i v i l i s a ç ã o muito parecida com a
d aquelle i m p e r a d o r que precavidamente levantava t e m p l o
aos d e u s e s d e s c o n h e c i d o s . H a e m t u d o a l g u m a c o u s a a te-
m e r — o i n e x p l i c á v e l . A h i s t o r i a é u m a a f f i r m a ç ã o de orácu-
los, d e s o m n a r a b u l i s m o d e predicções....
E u guardara com religião a m ã o da pithonisa, M m e . M a -
thilde, porém, ergue-se, agitando os seus perfumes.
— E n ã o t e m e }'è n ã o l h e p a r e c e s u g g e s t i v o e s t e interi-
o r MNflo receia q u e d ' a q u e l l c c a n t o e s c u r o surjam pharttaa*
155

m a s , q u e , a g a r r a n d o a s u a m ã o , l e i a n'essas l i n h a s a d e s g r a -
ça irremediável ?
— Se f o r a s s i m , d i s s e d o c e m e n t e , q u e se h a d e f a z e r ? E '
a vontade do F u t u r o . . .
— Pois m e u caro, pode ter a certeza de q u e n ã o somos
Só as s a c e r d o t i s a s do terrível Destino, somos as C o n s o l a d o -
r a s , a T h e o r i a d o B e m , as S o f f r e d o r a s d a IUusão.Não sorria.
S e m n ó s , q u e seria das c i d a d e s ? Os s m h o r e s andamá
cata do d o c u m e n t o humano. N ó s temos á m ã o , todos os
d i a s , as t r a g é d i a s , os d r a m a s e as c o m é d i a s de q u e se f a z o
mundo. A ' n o s s a c a s a v ê m as m u l h e r e s c i u m e n t a s , os que
d e s e j a m a m o r t e e os q u e desejam amor. O s a d u l t é r i o s , os
crimes, os remorsos, a luxuria, as v e r g o n h a s fervilham.
Nós consolamos.
D i a r i a m e n t e , n a s casas d e q u e tomou o numero para
indical-as á policia, encontram-se os conquistadores, os
homens b e m vestidos d e q u e a p o l i c i a i g n o r a os m e i o s de
v i d a ; os senadores, os d e p u t a d o s , as pessoas n o t á v e i s , as
a c t r i z e s , as cocottes, as s e n h o r a s c a s a d a s , os i m b e c i s pro-
p o n d o c o u s a s i n d e c o r o s a s e as a l m a s dolorisadas.
N ó s a todos damos o favo da i I l u s ã o . . . Qaundo morre
m e u pai ? M e u m a r i d o abandona-me ! Será minha a mulher
de S i c r a n o ? Fulana é fiel? Realisa-se o negocio? E nós
a q u i e t a m o s os i n s t i n c t o s c o m o l e n i t i v o do b e m . Ainda ha
pouco tempo, entrou por esta sala uma menina em
p r a n t o s . E r a d o m i n g o . N ã o d e i t o c a r t a s aos d o m i n g o s .
Neguei-me. Soluçou, pediu, ajoelhou. Logo que a v i ,
p e r c e b e n d o a sua a g i t a ç ã o , e s p a l h e i as c a r t a s ao a c a s o , A
m e n i n a vai c o m m e t t e r u m desatino! Ella o l h o u - m e espan-
tada. S i m , ia dalli suicidar-se, porque a abandonara o
a m a n t e , g r á v i d a e s e m t r a b a l h o . F i z as cartas d i z e r e m que
o amante voltava e a pequena nâo morrêu.
156

— Cartas salvadoras!
— D i a s a n t e s a p p a r e c c r a una m a r i d o a i n t e r r o g a r - m e a
r e s p e i t o d o seu ménage, derruido por i n c o m p a t i b i l i d a d e de
g ê n i o s . Ella escrevia-lhe cartas pedindo para voltar. Que
d e v o f e z e r ? V o l t a r ! Mas teve a m a n t e s ! E ' boa. A b a n d o n a d a
sem saber t r a b a l h a r e sem recursos queria o senhor que a
pobre morresse? Depois f o i - l h e o Sr. fiel ? N ã o ! Era lá
p o s s í v e l a ella d e i x a r de t e r u m amante...

Ou mesmo dous ?

— O u t r e s , n ã o v a i ao caso. Elle reflectiu e vivem os


dou® b e m . Qantos desmandos evitamos, quantas desgraças
quantos escândalos ! Recorda a historia do oráculo de D e l -
p h o s ? E ' a h i s t o r i a d a p r u d ê n c i a , d e ser a m b í g u o para n ã o
se e n g a n a r . A n o s s a é m u i t o m a i s d i f f i c i l .
—• M e n t e c o m f r a n q u e z a .
— Diz verdades e consola. M u i t a s das minhas clientes
vem a q u i apenas c o m o um c o n s o l o . C o n t a m as maguas e
vão-se.

— Que t r a b a l h o deve ter !


— F a ç o e x p e r i ê n c i a s a t é altas horas c o m o m e u criado
J u i i o , e v o u á s e s t a l á g e n s , aos c o r t i ç o s , l e r g r á t i s nas mãos
dos p o b r e s N ã o i m a g i n a c o m o sou recebida !
D e i t o cartas, leio nas m ã e s . E ' o e s t u d o e m q u e procedo
sem perguntar para ter a certeza. E é certo ! Adivinho
cousas de ha q u a t r o e c i n c o a n n o s passados, chego a des-
c r e v e r as r o u p a s d a s p e s s o a s d i s t a n t e s e p r e v e j o . A p r e v i s ã o
é de resto u m a f a c u l d a d e q u e d e s e n v o h i .
- E ' feliz ?
-r- T u d o q u a n t o q u e r o f a ç o .
— T e m talvez a a l m a de a l g u m m á g i c o a n t i g o . . .
Mme. M a t h i l d e r e c o s t o u o seu c o r p o e l e g a n t e .
1*7

— N ã o : tive tres vidas apenas. Da p r i m e i r a f u i physico,


da segunda advogado e na terceira odalisca

O h ! m y s t e r i o ! A sacerdotisa p o s s u í a o saber dos physicos,


fallava como u m advogado e naquelle m o m e n t o - t i n h a a ine-
b r i a n t e d o ç u r a das odaliscas.
P e g u e i - l h e a m ã o e disse b a i x i n h o :
— Já u m occultista me a f f i r m o u que f u i Nero e depois
Ponce de L e o n . . .
Ella r i u u m riso perlado.
— P o n c e a t t r a h i d o p e l o m y s t e r i o das mãos.
— Pela belleza...
— Todos n ó s temos a attracção das m ã o s . A mão é um
r e s u m o do C é o . C a d a astro t e m a sua p a r t e . J ú p i t e r é o i n d e x ,
Saturno o m é d i o , o Sol o annular, Mercúrio Hermes o mí-
n i m o . A L u a t e m a região do Sul, Marte todo o meio, onde
se d ã o os c o m b a t e s d a v i d a e V e n u s o g r a n d e monte.
— E ' este o m a i s trabalhoso?

— Quasi sempre.
Ergui-me, e vi numa o u t r a sala f o r r a d a de esteiras da
Índia, u m oratório onde a r d i a m lamparinas. Os s a n t o s , s o b
o h a l o d e l u z , q u e a s c i e n c i a e x p l i c a p e l o s r a i o s n, c o m o o es-
f o r ç o da a t t e n ç ã o — t i n h a m u m olharzinho redondo e inex-
pressivo. Q u e d i r i a m os c o i t a d o s , s a n t o D e u s d o F u t u r o ?
— Neste m e i o de adivinhas, chiromantes e somnam-
b u l a s é m e l h o r ser i m p a s s í v e l , dizia M m e . Mathilde, A's
v e z e s p r o t e g e m a m o r e s , s ã o casas a m b i g u a s .

— M a s as s u a s e x p e r i ê n c i a s ?
— P r a t i c o o s o m n a m b u l i s m o c o m o as c a r t a s , a t e l e p a t h i a
e a chiromancia, indo directamente á alma, a alma que n ó s
temos no f u n d o . T u d o é d o m i n i o . As ultimas experiências
d o m e u d o m i n i o tive-as c o m o c o n h e c i d o p i n t o r Helios Seel-
15S

l i n g e r . C u r e i - o u m a vez c o m agua m a g n e t i s a d a . Desde e n t ã o


dizia-lhes: á s 2 horas de tal d i a o senhor s o f f r e r á u m c h o q u e .
E r a ta! q u a l . N o u t r o d i a s o f f r i a o c h o q u e . F u i eu de resto
q u e l h e d e s v e n d e i o f u t u r o e a s o r t e nas mãos.

— E a transmissão do pensamento?

— Já em Botafogo transmiíti idéas a creaturas no E n -


genho Novo. Conhecem essas experiências poetas c o m o
Luiz Edmundo, o padre S e v e r i a n o de Rezende, p i n t o r e s
c o m o Amoeclo, A m i n h a a m i g a D. A d e l i n a L o p e s V i e i r a t a m -
b é m as c o n h e c e .

Lembrei-me então que M m e . M a t h i l d e era t a m b é m l i t -


terata.
— M a s as c a r t a s ?

— Q u e r vel-as ?
Tocou o t y m p a n o , appareceu u m pequeno loiro com u m
sarcophago de prata em relevo. M m e , M a t h i l d e — a p r i n -
ceza para os í n t i m o s — a b r i u - o c o m c u i d a d o , e cie d e n t r o
n u m a s o m b r i a a p o t h e o s e d e o i r o s e c o r e s , as c a r t a s d o larot,
a papesse, o d o i d o , o az d e o i r o , o e n f o r c a d o , o biteleur esca-
moteador surgiram tenebrosamente.

Mãos estendiam moedas d'oiro, o oiro scintillava, em


altos m o n t e s figuras sinistras appareciam. E estava alli a
consolação universal, a consolação dos pobres e dos p o t e n -
tados ! Nas mãos d e l i c a d a s cia f e i t i c e i r a u l t i m o g r i t o r o l a v a
n u m a serie de i l l u m m u r a s a m i r a g e m e n g a n a d o r a d o F u t u -
ro. Ella estendia as c a r t a s nas luzes e e u r e c o r d a v a a o r i -
gem a n t i g a dessa d o c e i l l u s ã o , a v i n d a d o s B o h e m i o s .

— Q u e m sois v o s ?

— Sou c duque do E g y p t o e v e n h o c o m os c o n d e s e
barOea,
159

— Quem vos traz ?


— A q u e p r e c e d e o nosso c o r t e j o e lê nos l i v r o s c o l o r i d o s
de Hermes o destino do m u n d o , a r a i n h a das K a b b a l a s , a
sublime senhora do fogo e do metal ! E e m f r e n t e á m u l t i -
d ã o a b r i a m o tarot c o m o q u e m rasga o c é o , o consolo i n f i -
n i t o dos bohemios.
E u estava alli c o m o os c a m p o n e z e s d a é p o c a d e C a r l o s
V I diante da senhora do m e t a l , — apenas, tanto a rainha
como eu, u m tanto mais descrentes.
E n t ã o c u r v e i - m e , depuz o beijo que ha m u i t o sentia'nos
l á b i o s , o b e i j o d a d e v o ç ã o , n a sua m ã o p e r f u m a d a .
— Como em P a r i s ! — f e z e l l a , d e i x a n d o q u e os m e u s
lábios roçassem a e x t r e m i d a d e d o s seus d e d o s .
— C o m o na h o r a de s e m p r e , m u r m u r e i , o Medo, diante
do Futuro.
O povo maronita, dizia o papa Benedicto, é como uma
flor entre os espinhos. E como o pontilice notável tinha
e s t a d o c e p h r a s e p a r a p i n t a r os h o m e n s d o monte Libano,
outros pontífices guardaram tão perfumada i m a g e m e hoje,
q u a n d o se f a l a d o s maronitas, l o g o se recorda a f l o r e os
. espinhos antigos. T u d o , p o r é m , neste m u n d o tem o vinco
f a t a l d o destino. A phrase dos papas tornou-se prophetica
e a t r a v é s a v i d a i m m e n s a os d e M a r u m c o n t i n u a m a p e r f u -
m a r a c r e n ç a i m p o l l u t a e n t r e os e s p i n h o s das hostilidades.
Os m a r o n i t a s , gente extremamente religiosa, habitam
a S y r i a e d e s c e n d e m dos A r a m i l a s , f i l h o s de A r a m , de Sem,
de N ó e . A s c e n d ê n c i a t ã o d i g n a de r e s p e i t o só os preparou
para u m longo e pungente s o f f r e r . Desde os t e m p o s dos
A p ó s t o l o s , d i z e m os A c t o s n o versículo 22 d o c a p i t u l o X V ,
eram christãos, conservando a fé orthodoxa havida dc
p r í n c i p e dos A p ó s t o l o s n o a n n o 38 d a é r a d e J e s u s C h r i s t o .
Quando no quarto século c o m e ç a r a m a apparecer no Orien-
t e as h e r e s i a s e as d o u t r i n a s f a l s a s , p r o t e g i d a s p e l o s s o b e r a -
ranos coroados de pedrarias, impostas pelos a r m a s , e a fé
e a s o b e r a n i a ao m e s m o t e m p o v a c i l l a v a m , S . M a p i n , chefe
dos e r e m i t a s d a S y r i a , s a h i u de sua toca de cilicios e o r a -
ções veiu salval-os.
— Quem é esse h o m e m d e g r a n d e s b a r b a s , m e i o roto?
164

i n d a g a v a m os h o m e n s v e n d o a figura r e s u r g i d a do santo sem


peccado.
S. M a r u n n ã o respondia; seguia pelas estradas cheias
de sol, n a a t m o s p h e r a de m i l a g r e d o a z u l sem m a n c h a e pre-
gava a d o u t r i n a p u r a , exhortava o povo a conservar a sua
verdadeira fé.
—Acredita sempre em Deus, t a l q u a l te e n s i n a r a m os
Apóstolos, e conservarás atua liberdade!
A gente que d o s seus l á b i o s o u v i a as palavras ungidas
pela m e d i t a ç ã o c o n t i n u a seguia-o n u m novo resplendor de
crença, e m cada c o r a ç ã o a e s p e r a n ç a brotava e em pouco
t e m p o o povo da p r o v í n c i a d o m o n t e L i b a n o era chamado
de maronita. Os heresiarcas quizeram calumnial-o mas
M a r u n e r a p u r o c o m o o c r y s t a l , S. J o ã o C h r y s o s t o m o , o bocca
doiro, na carta que lhe escrevia, rogava que por elle oras-
se, e a i r o n i a c o m o a c a l u m n i a f e n d e r a m - s e d e e n c o n t r o ao
seu b r o q u e l d e bondade.
Q u a n d o a sua a l m a i r r a d i o u , d e i x a n d o o invólucro ter-
reno, o povo maronita tinha inabalável a crença para sup-
p o r t a r t o d a s as s a n g r e n t a s perseguições, e tem sido desde
e n t ã o o mesmo ordeiro e persistente auxiliar da obra divina-
Durante as cruzadas combateu ao lado dos christãos
c o n t r a os i m p i o s . A o a p p r o x i m a r e m - s e os e x é r c i t o s , desciam
d a m o n t a n h a , a l i m e n t a v a m e v e s t i a m os c r u z a d o s n ú s e c o m
f o m e . S e m p r e q u e os t u r c o s e n t r a v a m sedentos de sangue
p e l o seu t e r r i t ó r i o , s o f f r i a m c o m o m a r t y r e s o s a c r i f í c i o e n ã o
protestavam. O odio do M a h o m e t a n o seguia-os, entretanto,
na vida simples e indolente dos mosteiros. Em 1860 os
d n j j ^ s , povo p a g à o e feroz, recordando velhos ó d i o s reli-
g i o s o s , a t i r a r a m - s e s u b i t a m e n t e s o b r e os pobres maronitas.
trahidos e abandonados.
165

A carnificina foi horrenda. A França então, sempre


benevolente para os christãos do Oriente, m a n d o u uma
esquadra ás á g u a s do Levante, f o r ç a n d o o Turco a modificar
o g o v e r n o do L i b a n o ea d a r - l h e u m a certa a u t o n o m i a . Desde
essa é p o c a o g o v e r n o é c h r i s t ã o , n o m e a d o pelas sete g r a n d e s
p o t ê n c i a s e u r o p é a s , a c â m a r a dos representantes faz-se p o r
e l e i ç ã o l i v r e e o c h e f e d a p o l i c i a d e v e ser christão. O chefe
d a p o l i c i a e m t o d o s os p o v o s d o O r i e n t e r e p r e s e n t a u m p a p e l
f< i r m i d a v e l .
E x t r e m a m e n t e r e l i g i o s o s , os m a r o n i t a s d e p e n d e m civil,
m i l i t a r e r e l i g i o s a m e n t e , e m q u a l q u e r p a r t e e m q u e se a c h e m ,
dos sacerdotes e a h i e r a r c h i a da sua igreja compõe-se de
u m prelado, c o m o titulo de P a t r i a r c h a de A n t i o c h i a e de
t o d o o O r i e n t e , de doze bispos directores de doze dioceses
e de u m n u m e r o i n f i n d á v e l desacerdotes intelligentes ebons.
A i n t e r v e n ç ã o e u r o p é a , entretanto, espalhou pelo m u n d o
a f l o r p o n t i f í c i a . A e m i g r a ç ã o esvazia aos p o u c o s o Libano.
N ã o se p ô d e v i v e r c o m f a r t u r a s e m terras t ã o antigas, as
auctoridades conservam a influencia aterradora do S u l t ã o .
O s q u e p r i m e i r o s a h i r a m , c o m os o r t h o d o x o s e o u t r o s c r e n -
tes d e J e s u s , e s c r e v e r a m c h a m a n d o os q u e f i c a v a m , a per-
spicácia m a h o m e t a n a facilitou a e m i g r a ç ã o para enfraquecer
os l i b e r t o s d a s u a p r e p o t ê n c i a e os maronitas v ã o para os
Estados Unidos, para a Argentina, para o Brasil, n u m lento
êxodo...
Nós temos u m a c o n s i d e r á v e l pétala da celebrada flor.
Uma das nossas m a i o r e s c o l ô n i a s h o j e é i n c o n t e s t a v e l m e n t e
a c o l ô n i a syria. H a o i t e n t a m i l s y r i o s no B r a s i l , dos quaes
cincoenta m i l m a r o n i t a s . S ó o R i o de Janeiro possue para
mais de cinco m i l .
Q u a n d o os p r i m e i r o s appareceram aqui, ha cerca de
166

vinte annos, o povojulgava-os antropophagos, hostilisava-os


e na p r o v í n c i a muitos fugiram corridos á pedra. A t é hoje
q u a s i n i n g u é m os s e p a r a desse q u a l i f i c a t i v o g e r a l e depri-
m e n t e d e t u r c o s . E l l e s , t o d o s os q u e a p p a r e c e m , s ã o t u r c o s !

Os s y r i o s , a r r a s t a d o s n a sua i m m e n s a necessidade de
amisade e amparo, davam com a muralha de uma lingua
e s t r a n h a , n u m p a i z q u e os n ã o s u p p o r t a v a . Agremiaram-se,
fizeram v i d a á p a r t e e, c o m o a c o l ô n i a a u g m e n t a v a , foram
por a h i , mascates a credito, fiando a toda a gente, monta-
r a m botequins, armarinhos, fizeram-se negociantes. Quem
os amparou? Ninguém! Só, por u m acaso, Ferreira de
Araújo, o Mestre admirável, escreveu defendendo-os. Os
sacerdotes m a r o n i t a s r e s p e i t a m - l h e a memória, e na data
da sua morte rezam-lhe missas por alma, guardando
delicadamente uma gratidão duradoura.

N o m a i s , a h o s t i l i d a d e , os e s p i n h o s d a p h r a s e papal.

Ha nessa g e n t e operários hábeis, médicos, doutores,


gente i n s t r u í d a que discute c o m clareza q u e s t õ e s de polí-
tica internacional, jornalistas e oradores. A vida é dura,
p o r é m , e jornalistas e doutores vendem alfinetes e linhas
e m casas p o u c o c l a r a s d a r u a d a A l f â n d e g a , d o S e n h o r dos
Passos, d o N ú n c i o e dos subúrbios. A totalidade ainda
ignora o portuguez.

Conversei c o m alguns maronitas, sempre de uma ama-


bilidade penetrante. U m delles, d a n d o - m e a s a t i s f a ç ã o da
sua prosa t o r r e n c i a l , f a l l o u c o m o u m estrategista d a guerra
r u s s o - j a p o n e z a . Esse h o m e m n ã o f a l l a v a , r e d i g i a u m a r t i g o
de j o r n a l com a rhetorica empolada que fez a d e l i c i a dos
nossos pais e a i n d a hoje é a f o r ç a do j o r n a l i s m o dogmático.
E u ó u v i a - o de l á b i o s entreabertos.
107

—Se a justiça de Deus n ã o desappareceu, se a vida


humana decorre dos desejos da divindade, é possível crer
q u e os j a p o n e z e s p o s s a m v e n c e r ?
—Oh ! não !
Eu dissera, c o m o n o t h e a t r o , a p h r a s e , m a s estava i n t e r -
essado p o r esses o r g a n i s m o s simples, creados na c h a m m a
d e u m a c r e n ç a i n a b a l á v e l , desses r o m â n t i c o s d o O r i e n t e .
T o d o s s ã o feitos de exaggero, de e n t h u s i a s m o , de a m o r
e d e i l l u s ã o . O s d o u s j o r n a e s s y r i o s t ê m e n t r e n ó s os t i t u l o s
s y m b o l i c o s e e x t r e m o s : — A Justiça, A Razão.
Os h o m e n s naturalmente perdem o limite do natural.
N u m a o u t r a casa e m q u e s o u r e c e b i d o , u m g o r d o c a v a l h e i r o
preoccupa-se c o m o problema da c o l o n i s a ç ã o .
— A colonisação syria, diz, é a m e l h o r para o Brasil.
Os brasileiros a i n d a n ã o a c o m p r e h e n d e r a m . O syrio n ã o é
só o commerciante é t a m b é m agricultor, operário. Despre-
zam-nos ? Este paiz n ã o vê que comnosco, povo t r a n q u i l l o e
dócil, n ã o poderia haver complicações diplomáticas? Os
h e s p a n h ó e s , os p o r t u g u e z e s , os i t a l i a n o s e n r i q u e c e m , p a r t e m ,
pedem indemnisações. N ó s , pobres de nós! não pedimos
n a d a , q u e r e m o s ser a p e n a s d o B r a s i l .
N ã o r e s p o n d o . T a l v e z b e m c e d o os s y r i o s s e j a m a s s i m i -
lados á f a m í l i a h e t e r o g ê n e a d a nossa p á t r i a . Estas c r e a t u r a s
t ê m q u a l i d a d e s m u i t o p a r e c i d a s c o m as d o s b r a s i l e i r o s .
V á r i o s n e g o c i a n t e s q u e c o m m i g o d i s c u t e m — p o r q u e os
syrios d i s c u t e m sempre; são c o m o jornaes rhetoricos e b r a n .
dos—diziam naturalmente:
— N o A m a z o n a s p e r d i ha p o u c o 400 c o n t o s . A colônia
s y r i a t e v e n a b a i x a d o c a f é u m p r e j u í z o d e 70 m i l c o n t o s . A s
u l t i m a s remessas d e f a z e n d a s e l e v a m - s e a 200 c o n t o s .
A p r i n c i p i o e u os a c r e d i t e i u m b a n d o d e V a n d e r b i l d t s ,
168

f a l l a n d o c o m d e s p r e n d i m e n t o d o o u r o e das riquezas. Mas


não. U m sacerdote a m i g o nos desfaz o s o n h o . Ha fortunas
restrictas. A totalidade p o r é m t e m relações c o m o a l t o c o m -
mercio, c o m p r a a credito para vendera c r e d i t o aos merca-
d o r e s a m b u l a n t e s d o i n t e r i o r e á s vezes a situação compli-
ca-se, q u a n d o lhes f a l t a o p a g a m e n t o d o s últimos, tudo por
causa d o e x a g g e r o , pela m a n i a de a p p a r e n t a r r i q u e z a . Cada
c é r e b r o o r i e n t a l t e m u m P o t o s i nas circumvoluções.

— Os s y r i o s c h e g a m , g a n h a m d o u s m i l r é i s p o r d i a e já
estão contentes. N u n c a s e r ã o v e r d a d e i r a m e n t e ricos p o r q u e
a p p a r e n t a m ter oito q u a n d o apenas t ê m d o u s .

E s t e f e i t i o os h a d e f a z e r c o m p r e h e n d i d o s d o s b r a s i l e i r o s .
M a s os m a r o n i t a s , s o b a p r o t e c ç ã o do velho santo aus-
tero s ã o essencialmente bons, de u m a bondade á flor da pelle,
q u e se d e s f a z e m g e n t i l e z a s ao p r i m e i r o c o n t a c t o c o m o um
bonbon. O s h o m e n s f a l i a m s e m p r e , as m u l h e r e s olham com
os s e u s l i q u i d o s o l h o s i n s o n d a v e i s e p o r t o d a s essas casas h a ,
i n s e p a r á v e l da vida, o m y s t e r i o da religião, no a m o r que as
mulheres, algumas i n e f f a v e l m e n t e b e l l a s , p r o p o r c i o n a m , nos
n e g ó c i o s , nas i d é a s e nas refeições. Quando um maronita
e n f e r m a , a p r i m e i r a cousa que faz é c h a m a r u m padre p a r a
se c o n f e s s a r ; q u a n d o u m n e g o c i o v a i m a l , a c o n s e l h a - s e com
o s a c e r d o t e , s ó c a s a p e l o seu r i t o , o ú n i c o v e r d a d e i r o , e tra-
balhando para viver, f u n d a irmandades, c o l l e g i o s e, p e n s a
e m edificar capellas.

D e 1900 d a t a a f u n d a ç ã o d a I r m a n d a d e M a r o n i t a , p o s t e -
r i o r a o u t r a s d u a s q u e se d e s f i z e r a m . F o r a m sócios funda-
dores: Dieb A i c a l , Arsanius M a n d u r , Galep T o y a m , Seba
reodP Curi, Miguel C a r m o , Acle Miguel, João Facad, A n -
tônio Nicoláo,Antônio Kairur, Bichara Bueri, Gabriel Ranie,
169

Salbab, José C h a l h u b e Bichara D u e r . Brevemente abrirá as


suas p o r t a s o c o l l e g i o dos Jovens Syrios.

Apezar da permissão para dizer missa em todas as


i g r e j a s c a t h o l i c a s e d e c e l e b r a r e m aos d o m i n g o s n a Saúde e
e m Cascadura, já c o m p r a r a m o t e r r e n o na r u a d o S e n h o r dos
P a s s o s p a r a e d i f i c a r a c a p e l l a m a r o n i t a , e a p r o p a g a n d a se f a z
m e s m o e n t r e os s y r i o s orthodoxos e mahometanos, porque
uma o r d e m d o Papa lhes i n d i c a que pela bondade façam
v o l t a r á c r e n ç a ú n i c a as o v e l h a s tresmalhadas.

A c t u a l m e n t e ha tres padres maronitas em S. Paulo e


q u a t r o n o R i o , os R e v s . P e d r o Abigaedi, Ledro Zaghi, Luiz
T r a h e L u i z C h i d i a k . A n d a m todos de barba cerrada, u s a m
1

ó c u l o s e s ã o s u a v e m e n t e e r u d i t o s . T r a h , p o r e x e m p l o , este-
ve o i t o a n n o s n a B é l g i c a e discursa .como u m regato tran-
quillo ; Chidiak é professor, e cada palavra sua v e m repas-
sada de doçura.
E' sabido que a r e c o n c i l i a ç ã o dos m a r o n i t a s c o m a i g r e -
ja r o m a n a d a t a d e i 182. A reconciliação foi incompleta a
principio, mas hoje é quasi integral. Os p a d r e s , p o d e n d o
casar, abandonam essa idéa; ha o maior respeito pelo
Summo Pontífice, e a política do Vaticano consegue aos
poucos outras reformas.
C o m o os p a d r e s me levassem a ver o t e r r e n o donde a
igreja maronitá surgirá, interroguei-os a respeito do rito
da sua seita.
— E ' q u a s i i d ê n t i c o ao r o m a n o , d i z e m - m e . A l i t u r g i a ê
redigida em syriaco. E' u m a necessidade. Ha syrios que
sabem de c ó r o sacrifício da missa. Talvez o m e s m o n ã o
aconteça n u m a igreja romana, que conserva o latim.
— A começar pelos s a c r i s t ã e s .
170

— Ha a l é m disso as m i s s a s privadas, a regra é a de


Santo Antônio e seguimos o martyrologio de S. Marun.
— Dizem q u e os m a r o n i t a s f o r a m a principio mono-
thelitas...
— Dizem tanta cousa no m u n d o !
Eiles t i n h a m parado diante de u n s velhos m u r o s .
— Será aqui a igreja ?
— Querendo Deus !
E n ã o sei porque, vendo-os t ã o simples diante das
p a r e d e s c a r c o m i d a s , esses s a c e r d o t e s de u m p o v o religio-
samente b o m , eu recordei a phrase p r o p h e t i c a dos papas.
O povo maronita é como u m a flor entre espinhos, mas u m a
flor cujo viço é eterno. Os espinhos c o n t i n u a m persisten-
tes m a s a velha f l o r espalha-se pelo m u n d o , rescendendo a
mais doce ternura e a mais profunda crença.
OS P H Y S I O L A T R A S
Quando resolvi i n t e r r o g a r o hierophanle Mágnus Son-
d h a l s a b i a d a p h y s i o l a t r i a o q u e os p r o s e l y t o s d e i x a v a m e n -
t r e v e r e m a r t i g o s de j o r n a l cheios de nomes arrevezados e
n o s c o m m u n i c a d o s n o s c o p i o s o s c o m m u n i e a d o s t r a z i d o s aos
d i á r i o s p o r homens apressados e radiantes. Pelos a r t i g o s f i -
cara i m a g i n a n d o a p h y s i o l a t r i a u m c o n j u n c t o de p o s i t i v i s m o ,
o e c ú l t i s m o e s o c i a l i s m o ; pelos communicados v i r a q u e os
phvsiolatras, quasi todos doutores, creavam cooperativas e
academias. E n t r e t a n t o o Sr. Magnus S o n d h a l c e r t a vez á
porta de u m café d e f i n i r a para meu espanto a sua r e l i g i ã o .
— A physiolatria não é u m c u l t o no sentido vulgar da
palavra, mas u m a verdadeira cultura mental. E \ antes, a
s y s t e m a t i s a ç ã o r a c i o n a l do processo e s p o n t â n e o da e d u c a ç ã o
d o s seres v i v o s , d o n d e r e s u l t a r a m t o d a s as a p t i d õ e s , m e s m o
physicas e physiologicas, respectivamente adquiridas.
P u z as m ã o s n a c a b e ç a a s s o m b r a d o . M a g n u s t o s s i u , re-
virou os o l h o s a z u e s .
— A p h y s i o l a t r i a baseia-se c o m o t o d a a r e f o r m a socio-
cratieo-libertaria na s y s t e m a t i s a ç ã o da lógica universal ou
n a t u r a l q u e o hierophante 4- S U N i n t i t u l a de o r t h o l o g i a .
— Orthologia? fiz sem comprehender.
— D o g r e g o orthos, logos— recta r a z ã o .
174

A religião t a m b é m é chamada ortholatria, ou verdadeira


cultura, como orthodoxia significa verdadeira doutrina. Os
physiolatras pretendem f a z e r u m a r e m o d e l a ç ã o d e t o d a s as
cousas h u m a n a s , n ã o l i m i t a n d o a sua a c ç à o á modificação
dos conceitos.
— Mas o R e m o d e l a m e n t o geral é possivel -
Sondhal sorriu com calma :
— N ó s somos o m n i b o n d o s o s , omniscientes e omnipo-
tentes.
— Os a t t r i b u t o s de D e u s !
— N ó s n o s i n t i t u l a m o s os v e r d a d e i r o s d e u s e s . A r e f o r -
m a a b i a n g e as o p i n i õ e s , os c o s t u m e s , o Homem e a própria
Terra.
A r r e g a l e i os o l h o s , p u z o p é b e m firme n o c h ã o , passei o
l e n ç o t r e m u l o na f r o n t e e olhei os v e r d a d e i r o s d e u s e s . Para
o que fallava, envolto na sobrecasaca, c o m uma barbinha
r a l a e o n a r i z ao v e n t o , e s c a v o q u e i a r e l i g i ã o d o i d e a l d i v i n o
e n ã o lhe achei c o m p a r a ç ã o . O o u t r o t o r c i a u m b i g o d e sen-
sual p o r c i m a do l á b i o rosado.
— C o m q u e e n t ã o deuses? D e r a - m e de r e p e n t e avontade
d e ser t a m b é m o m n i s c i e n t e e o m n i p o t e n t e . — M a s q u e é p r e -
c i s o p a r a e u ser t a m b é m ?
— A p r o p a g a n d a t o m a u m c u n h o s e c r e t o . Os aspirantes
á O r t h o l o g i a t ô m de passar pela i n i c i a ç ã o e s o t é r i c a , q u e custa,
além das provas moraes, quinhentos m i l réis em moeda
corrente.
Era relativamente barato e eu pensava e m fazer uma
reducção shvlockeana, quando Magnus começou a de l i -
b r a r a belleza u t i l da v i d a p h y s i o l a t r a .
A i n i c i a ç ã o d á e n t r a d a na U n i v e r s i d a d e O r t K o l o g i c a re-
s u m i d a n o hierophante, a q u a l se i n t i t u l a MaçonariarfCatho-
175

lica. A M a ç o n a r i a catholica divide-se e m lojas, cujo conjun-


cto, e m tres g r ã o s , c o n s t i t u e o respectivo t e m p l o . Os a s p i r a n -
t e s r e p r e s e n t a m as l o j a s , o t e m p l o s ó p o d e ser representado
p e l o hierôphante o u por u m areopagita.
— O n d e esse t e m p l o ?

— Os p h y s i o l a t r a s , os q u e p r a t i c a m a m a g i a o r t h o l o g i c a
n ã o precisam d e l o c a l d e t e r m i n a d o . S ã o os n o v o s homens,
f a z e m e x c u r s õ e s pelos prados, m o n t e s e lagos e m Fraterias
Estheticas, Philosophicas ou Orthologicas, conforme o g r ã o
dos ludambulos.

— Ludambulos ?
— U m a palavra da l i n g u a u n i v e r s a l !
— O volapuck? O esperan/o}
— Não, u m a lingua inventada por m i m , o Al-tâ.
— Mas q u e v e m a ser o A l - t á ?

—• A p p l i c a n d o a O r t h o l o g i a ( o u L ó g i c a Universal) aos
factos da L i n g u a g e m , verifica-se que os elementos phonc-
ticos, sons e i n t o n a ç õ e s (ou consoantes e vogaes) são por
t o d a a p a r t e i d ê n t i c o s . Decluz-se q u e s ã o o r i u n d o s das mes-
m a s i m p r e s s õ e s e r e s u l t a n t e s das m e s m a s a p t i d õ e s e x p r e s s i o -
naes. C o l l o c a n d o e m syncse, descobre-se que os sons,- que
e x p r i m e m relações, formam uma escala semitonal, como a
d a m u s i c a , e c o m p o s t a ' d e irese notas, ou graves primarias
como todas as escalas, aliás:—U (grave fundamenta!) A
(dominante e geratriz) e I (sensivel superior) estabelecem
t o d a s as relações synésicas :

A I (o I I )

Gênese Mégaphorèmâ Metaphorêiua


Crescimento Transíormaí-ãQ
176

Passado Presente Futuro


Corpo Espaço Movimento
Sentir Pensar Agir
Oppresão Libertação Aspiração
Escuro Amarello Rubro e Branco

etc. etc. etc.

Q u a n t o á s I n t o n a ç õ e s , essas f o r m a m t r e s teclas, donde


t r e s escalas, t a m b é m , a n a l ó g i c a s mas distinctas :

I I (geratriz)

Tecla guttural Tecla labial


K (Chav& P (Chave)
\ G (guê) B
Ch F
J V

A p p ü c a n d o a S y u é s e ó r t h o l o g i c a á s Teclas oraes, como


se f e z r e l a t i v a m e n t e aos Sons, temos :

Tecla guttural Tecla dental Tecla labial


Gênese Mégaphorêma Métaphorêma
Objectivo Subjectivo Activo
^Ergonomia
Eídonomia Eimologia
(Erostergia

D e t a l h a n d o , e m f i m , o valor f r a c c i o n a l dos p h o n è m a s em
geral, obtem-se, por d e d u c ç ã o l ó g i c a , a expressão natural;—
de q u a l q u e r e s p é c i e de i m p r e s s ã o :—sensacional, emocional
ou accional.,. e a Lingua Universal está, emtim, racional-
mente instituída.
177

Exemplo perfunctorio:
K é a r a i z cie Corpo, concreto, etc.
A s i g n i f i c a o actual e acçãü,
d'onde :

A c t i v o : K A — o C o r p o q u e se a p r e s e n t a e se m ô v e .
e
Passivo : A K—o C o r p o que é impellido ou sofíre a a c ç ã o .
Wl é o s y m b o l o d o s e n t i r e a g i r ,
donde :

Passivo : A M—Eu=amo^sou...
e

A c t i v o ; WI A=Meu—mover—mãi, mulher. .. crear.


E u não o comprehendera muito bem. não comprehen-
dera mesmo nada. Magnus Sondhal porém foi intimo e
educador.

— V o u dar-lhe alguns nomes e s o t é r i c o s dos iniciados


da M a ç o n a r i a C a t h o l i c a . S o b e m a m i l l h a r e s , a l é m de a l g u n s
que f o r a m condemnados ao o l v i d o , a o au-tá...
Fez u m a pausa, depois como quem se confessa:
— E u d e v o d i z e r esotéricamente, o espirito que preside á
Propaganda da Razão. A m i n h a emancipação de O r t h ó l o g o ,
vai a u m e x t r e m o inaecessivel para a t o t a l i d a d e dos h o m e n s
c o é v o s . P o r isso, t u d o q u e e u f a ç o t o m a o aspecto jóco-serio,
d e s d e o d e b o c h e a t é o s a g r a d o , d e s d e a Orgia a t é o Culto da
N a t u r e z a ! . . . De f a c t o estou e x t e r m i n a n d o p e l o r i d í c u l o t o d a s
as v e l h a s e c a d u c a s c r e n ç a s e i n s t i t u i ç õ e s e t o d o s os p r e c o n -
ceitos, mesmo scientiíicos e p h i l o s o p h i c o s ! E m m i m a C o n -
sciência superior, a dignidade e a nobreza destruíram por
completo toda espécie de Veneração, Respeito ou Tole-
r â n c i a ! . . . M a s , v o l t e m o s aos n o m e s esotéricos.
17a

T o d o Iniciado na Maçonaria Catholica toma u m Nome,


p o r sua p r ó p r i a e s c o l h a , e m s u b s t i t u i ç ã o ao n o m e , sem sen-
tido, que lhe d e r a m s e u s p a i s Gorilhcts. Esse n o v o Nome é
a synthese de seu verdadeiro Ideal ou Aspiração superior
para o Progresso. E m torno desse n o v o S y m b o l o o I n i c i a d o
c o n s t r ó e a s u a n o v a E x i s t ê n c i a S u b j e c t i v a , i s t o é , o seu KARMA.

Q u e m s o u b e r i d e n t i f i c a r - s e c o m o seu N o m e de Regenerado,
e s t á , ipso facto, isento de toda e q u a l q u e r p e r t u r b a ç ã o sub-
jectiva, causada habitualmente pelos a t a q u e s malévolos da
Canalha humana. M a s a adopção v o l u n t á r i a do novo N o m e é,
a l é m disso, u m acto bellamente revolucionário, e u m pro-
t e s t o s o l e m n e c o n t r a t o d a s as velharias e c o n v e n ç õ e s hypo-
c r i t a s e p e r v e r s i v a s . Q u e m escolheu o seu próprio NOME, também
r o m p e u , ipso Jacto, com t o d a s as Imposições e Imposturas
que tendan a tyrannizar a sua V o n t a d e e t o l h e r a sua L i -
berdade de I n d i v í d u o ! . . . M i l outros motivos ha que advo-
g a m esse 'Rito da Adopção.

— Os nomes esotéricos! suppliquei, vendo que se


eíernisava n u m mysterioso fallar.
Elle sentou-se c o m u m papel e u m lápis.
— Antes de t u d o , é preciso conhecer o schema da fi-
g u r a d a L e i U n i v e r s a l , o u C y c l o d a M a t é r i a , d o n d e se d e d u z
a Orthologia, ou a Sabedoria Universal .
Diante daquelle lápis hostil, tremi.
—Os n o m e s s e m figuras, Magnus.
Elle coçou a ponta do nariz.

— Eil-os s

SUN, nome do HIEROPIIANTE (+) actual; Significa : —


Sol no NAD1R, ou Sol posto e, por extensão,
Lti% Invisível, i s t o é , Sol subjectivo.
170

E t y m o l o g i a ; — S . . . - s y m b o l o d e Fonte e de Brilho
e m sua m á x i m a i n t e n s i d a d e e, p o r t a n t o , s y m b o l o d e
S O L ; — N . . . s y m b o l o de i n f i n i t o e i n d e f i n i d o , de espa-
ç o e de e s p i r i t o , p o r t a n t o : num ponto indefinido do
Espaço. A quer dizer : —presente, ou visível, donde
S A N — S o l acima do horizonte visual. I significa o que
está para v i r e o que s ó b e , d o n d e S I N — o Sol que vai
nascer o u nascituro. U quer dizer o que está embaixo,
donde —SUN o Sol no Nadir.

BLUM-SAN-UR—A Flor que o Sol gerou. Nome de um


Areopagita, cujo symbolo é a cruz.
AM-VA—Viver para o Amor. N o m e de o u t r o Areopagita,
em S. P a u l o . .
UN-AN—O espirito de Origem, engerador. N o m e de outro
Areopagita, em Minas.

G V A M - I L —Viver, Amar e ser Livre. Nome de um ini-


ciado do 2 o
gráo.
A L - G A I — A q u e l l e que quer ~qug todos folguem. Nome de
u m scientista b o m e intelligente. I n i c i a d o do 2 0
gráo.
VAR-UN—A vida que palpita imperceptivelmente no seio da
Matéria. N o m e de u m d i s t i n c t o iniciado do i° gráo.
SIR-US—O Filho da Aurora Boreal. Nome de um com-
panheiro dedicadissimo que propulsionou a Propa-
ganda da R a z ã o no Estado do Paraná.
G A M - A R — Aquelle que vai alegrar-se e jolgar agindo com
enlhusiasmo pela Regeneração Humana.

U m i n s t a n t e c a l á m o - n o s . O hierophant.e. Sum, limpava o


suor. Mas dentro e m pouco c o n t i n u o u a fallar.
— T e m o s , disse, idealisados q u a t r o t e m p l o s para serem
erigidos no centro de c a d a u m a das q u a t r o partes e m que
180

dividimos a terra. Os t e m p l o s chamam-se os templos da


Razão.
Também em épocas que todos chamam das grandes
transformações os h o m e n s d e r a m t e m p l o s á Razão encar-
nada . . .
—Ha m u i t a gente iniciada? indaguei, afundando em
amargas c o m p a r a ç õ e s históricas.
— M u i t a . S ó agora, p o r é m , é que a iniciação d e i x o u de
ser g r á t i s . N ã o i m a g i n a c o m o p r o g r e d i m o s .
H a q u a t r o o u c i n c o a n n o s q u e e m M i n a s G e r a e s se f a z e m
festas sociolatricas. As p e r i p a t é a s ou excursões cultuaes
são communs em todos os Estados, maximé no Paraná.
—E aqui ?
— Vamos entre as a r v o r e s discutindo e conversan-
do...
P l a t ã o ! A r i s t ó t e l e s ! Jesus ! D e l l i l e ! Procurei acalmar o
m e u estado n e r v o s o . Assistira á missa negra, vivera entre
os n e g r o s orixalás, q u e s o b r e <r opelê d i z e m a vida da gente,
o u v i r a os e s p i r i t a s , os o c c u l t i s t a s , os g n o s t i c o s catholieos.
Essa r e f o r m a desorganisava-me.
— M a s isso t u d o f o i i n v e n t a d o p e l o s e n h o r ?
—Foi.
— E desde q u a n d o pensa na r e f o r m a .
Desde a idade de cinco annos, em que aprendi a ler
s ó s i n h o . S ó p o r é m e m 1884 é q u e c h e g u e i aos r e s u l t a d o s prá-
ticos e m Cataguazes.
— E ' brasileiro ?
—Descendente de islandezes, os v e r d a d e i r o s s descobri-
dores da A m e r i c a .
Recolhi meditando a q u e s t ã o . Aquelle h o m e m que apren-
dera a ler c o m t e n ç õ e s de r e f o r m a r a sociedade, a o r t h o l o g i a ,
181

as p e r i p a t é a s , a r e f o r m a d a t e r r a — t u d o isso a s s u s t a v a . R e -
f l e c t i e n t r e t a n t o . M a g n u s era u m vasto saber, c a l m o e p r a -
tico, formado em Kabala, tendo viajado o mundo in-
teiro.
S e a p e n a s n e s s a q u a l i d a d e dissesse t e r i n v e n t a d o o m o -
t u - c o n t i n u o n a s azas d a s b o r b o l e t a s , e u , d e p l o r a n d o - o , l e v a l -
o-ia ao h o s p í c i o . Mas Sondhal inventara u m a religião, a
r e l i g i ã o q u e é o b a l s a m o das almas, u m a religião brasileira,
e c o m o J e s u s á b e i r a d o l a g o T i b e r i a d e , e n s i n a v a aos inicia-
dos á beira d a l a g ô a R o d r i g o de F r e i t a s e d a l a g ô a dos P a t o s .
Era mais u m propheta, v e n e r e i - o , e a s s i m f a z e n d o q u i z sa-
ber q u e m c o m m i g o o venerava. A physiolatria é u m a re-
l i g i ã o d e d o u t o r e s ; n u m a l i s t a d e 200 o r t h o l o g o s , s e s s e n t a
por cento são b a c h a r é i s .
As listas s ã o feitas c o m p o m p a , e e m cada u m a eu l i : —
D r s . T o l e d o de L o y o l a , Tavares Bastos, Jango F i s c h e r , F l a v i o
de Moura, Luiz Caetano de Oliveira, Antônio Ribeiro da
Silva Braga, A d o l p h o Gome%de Albuquerque, Floripes Ro-
sas J ú n i o r , J o s é V i c e n t e V a l e n t i m , U l y s s e s F a r o , B a r b o s a R o -
d r i g u e s J ú n i o r . . . U m a s é r i e i n t e r m i n á v e l de b a c h a r é i s !
Tantos doutores devem assegurar a doutrina doutís-
sima. Fui então procurar o hierophante n o seu t e m p l o , q u e
tem percorrido varias casas n a C i d a d e N o v a . M a g n u s S o n -
d h a l r e c e b e u - m e c o m o seu i n a l t e r á v e l s o r r i s o e o seu i n a l t e -
rável pince-nez.
— H a t a n t o s d o u t o r e s n a s u a r e l i g i ã o , hierophante, que eu
a considero.
•—Pois, ergonte, u m a das i d é a s d a m i n h a r e l i g i ã o é acabar
c o m os d o u t o r e s !
S e n t á m o - n o s d i v i n a m e n t e e eu o i n t e r r o g u e i :
— A sua r e l i g i ã o t e m q u a l q u e r cousa de p o s i t i v i s m o ?
182

—Fui apóstolo d a H u m a n i d a d e seis a n n o s . S ó depois é


que comecei a propaganda da U n i ã o Universal, a p r i n c i p i o
com u m p h i l o s o p h o d i n a m a r q u e z , d e p o i s c o m os D r s . A d o l -
p h o de A l b u q u e r q u e , Silva B r a g a e o u t r o s A r e o p a g i t a s . A
physiolatria t r a n s f o r m a as p a l a v r a s e e x p r e s s õ e s d a s outras
l í n g u a s , t r a n s f o r m a n d o as i n s t i t u i ç õ e s h u m a n a s e x i s t e n t e s e
inexistentes e m factos positivos. Os p h e n o m e n o s sobrenatu-
raes t o r n a m - s e a t é s e n s í v e i s .

— A r e f o r m a é e n t ã o geral ?

— A t é no vestuário. A c r e d i t a o senhor que no f u t u r o


c o n t i n u a r e m o s a usar sobrecasaca ? Pois, n ã o !

As roupas d o s ergontes s e r ã o d e t e r m i n a d a s pelas esta-


ç õ e s d o a n n o c o m u m c u n h o s y m b o l i c o e as c o r e s t i r a d a s d a
figura universal. No verão, por exemplo, i estação, a
macro-
phisica e que representa o dia da v i d a , u s a r - s e - ã o as t r e s
cores fundamentaes; no outono, 2 e s t a ç ã o , a tarde da v i d a ,
a

cores sombrias; no inverno^, 3 a


e s t a ç ã o , microphisiçâo, a
noite da vida, roupas negras, e na p r i m a v e r a , a 4 a
estação,
roupas b r a n c a s p a r a c o r r e s p o n d e r ao a l b o r d a existência...

—Muito poético. A s n o s s a s casacas p a s s a r ã o a s e r em-


p r e g a d a s apenas nos bailes de mascaras, c o m o fantasias de
gosto. Também, que s e r i a d o vestido de M a r i a S t u a r t se
não fosse o Carnaval ? Consolemo-nos com a homenagem
dos f u t u r o s ergontes!

E m q u a n t o essas l o u c u r a s e r a m d i t a s , M a g n u s S o n d h a l
sorria.

— U m a r e l i g i ã o t ã o n o v a deve ter o seu culto especial.

— T e m , c o m e f f e i t o : o kratu, bu culto publico, e a Magia,


ou eufto intimo.
183

O Kratu tem u m quadro sypnotico.


Eil-o:
Karma
(Ou :—a Creação ou Transformação Ktorna, goradas e contempladas polo
AMOR).

;ETHOS
KOSMOS OXTOS e
ESTHETOS
(ERGONOMIA
EIDONOMIA o EIMOLOGIA ; e
EROSTERGIA
I Gráo 2° Gráo
o
3 Gráo
o

Physiolatria

IDOLATRIA BIOLATRIA PSYCHOLATRIA

1° Dia SOL Fecundação Sentir Amor


2* » LUA Gestação Conceber Sabedoria
3 »
o
TERRA Procroação Construir Poesia
4 »
o
MAR Nutrição ^ Mecânica Sensualismo
5" » AR Respiração Kimica Vitalismo
6° » CEO Lhòmição Al-Kimia Animismo
7 »
o
NOITE Subjectivação Hyper-Kimia Idealismo

Donde REFLEXÃO... CONSCIÊNCIA... MAGIA

A p a l a v r a M A G I A é e m p r e g a d a n o s e n t i d o de sua etymo-
l o g i a Altaica, isto é. d e r i v a d a de M A C — F o r ç a o u A c ç ã o e 1—
sobre ou para o F u t u r o . Representa o estado superior da
V i d a , e m q u e o E s p i r i t o o u a R a z ã o d i r i g e a Fo?-ça Inconsciente.
A magia começa a r e v e l a r - s e nas próprias iniciações
m a ç o n i c a s pela a d o p ç ã o de u m nome esotérico que liberta
das m á s influencias. S ó eu aposso empregar, porque sou o
ú n i c o a c o n h e c e r a h y p e r k i m i c a o r t h o l o g i c a , o u as leisnatu-
raes das i n f l u e n c i a s psychicas.
184

A h i p e r k i m i c a , d o hyper e da l i n g u a u n i v e r s a l kim, que


significa a parte invisível e indestructivel da matéria, tem
duas sciencias p r e l i m i n a r e s : a a l k i m i a , o u t r a t a d o da reacção
das m a t é r i a s e m estado das c o r r e n t e s puras, e akimia. O
p r i n c i p i o a l k i m i c o é que a m a t é r i a é u n a . vive, evolue e se
transforma. O principio unitário Lhôma- entra como causa
e m t o d a s as r e a c ç õ e s e por e l l e se explicam o phenomeno
m i c r o p h y s i c o das f u n c ç õ e s c e r e b r a e s , a f u n c ç ã o das imagens
interiores e a i n f l u e n c i a da m o r a l sobre o p h y s i c o .
M a s t u d o isso e s t á n o s n o s s o s l i v r o s : — A Reforma Socio-
cratica ea maior evolução do mundo, o Cathecismo Ortholo-
gico a Arte de Enriquecer ou extincção do pauperismo pela
instituição da plutometria em substituição á plutocracia a Expli-
cação de Deus ao Papa, a '•Prehiüoria segundo a Orthologia
e outros v o l u m e s . O essencial acha-se p o r é m num livro
manuscripto, que n ã o se i m p r i m e :—o Cathecismo Eso-
térico .
Depois paternalmente o 'hierophante
y
disse :
— V e n h a hoje ver u m a s e s s ã o de magia. Nós comme-
m o r a m o s a m o r t e de u m i n i c i a d o . O t e m p l o é u m a sala, mas
é de dever d e d u z i l - o da figura da L e i Universal ou Al-Miz :
ao n o r t e a l o j a a z u l , o u d o i ° g r á o ; a é s t e a l o j a a m a r e l l a , o u
d o 2° g r á o ; ao s u l a l o j a r u b r a , o u d o 3 g r á o ; a o é s t e o
0
dttmma,
o u sala n e g r a , n o c a n t o o t e m p l o o u e m p y r e o . O dumma e o
empyreo significam o branco e o negro, dous elementos
a n t i t h e t i c o s d o B i n a r i o U n i v e r s a l . . . V e n h a á s 11 1/2.
Eu f u i . Era u m a n o i t e h u m i d a , de c h u v a , n o dia 5 de
agosto. O i n i c i a d o que m o r r e r a , m e u amigo, u m gênio mu-
s i c a l , p a s s a r a p e l a v i d a a g a r r a d o a t o d a s as fantasias. E u f u i
e delirei tranquillamente. Tínhamos combinado estar na
pensão de Sondhal. Quando lá c h e g u e i , encontrai trese
185

h o m e n s de c h a p e l ã o desabado e manto negro. Pareciarn


c o n s p i r a d o r e s . A b r i o m a n t o de u m delles e vi que estava
f o r r a d o de seda r o x a , a b r i o de outro, t a m b é m , e todos
t i n h a m varrinhas no m ã o , onde brilhavam amethistas, a
pedra da magia ! Reparei e n t ã o que o hierophante era um
delles.
— D e q u e é f e i t a essa b a g u e t a ? i n q u i r i .
— De u m a liga m e t a l l i c a q u e é um segredo a l k i m i c o !
respondeu uma voz. E c o m o hierophante á frente, todos
deslisaram p e l o c o r r e d o r e s c u r o . E u os s e g u i a c o m o a s o m -
b r a d o s seus m a n t o s . De r e p e n t e p a r a r a m a u m s i g n a l secco
eeu retive u m grito. Na extremidade superior do sceptro do
hierophante c o m e ç a v a a bruxolearuma luz phosphorescente.
— M e u Deus !
—Cala-te, é a luz physica, é o au-lis!
T o d o s os magos ergueram v e r t i c a l m e n t e as baguetas
estendendo o braço direito para o ar e na e x t r e m i d a d e de
cada u m a , c o m o u m a m y s t e n p s a g a m b i a r r a de v a g a l u m e s , o
au-lis accendia a sua f u l g u r a ç ã o i n d i z i v e l . Nas copas dos
chapéos dos magos v i b r a v a o telegormo, q u e t r a n s m i t t e as
p a l a v r a s p e n s a d a s . A l u z p o r é m c e s s o u , as v a r a s a b a t e r a m - s e
e os t r e s e s a h i r a m p a r a a r u a c o m o s i m p l e s transeuntes.
N o c u r t o t r a j e c t o d o h o t e l á sala d o t e m p l o e u t i v e a i m -
p r e s s ã o d e u m ser á p a r t e , u m m u n d o á p a r t e , e q u a n d o c a -
vamente a p o r t a se f e c h o u n u m c a v o r e b ô o e s ú b i m o s aos
t r o p e ç o s as e s c a d a s , p a r e c e u - m e c a h i r o u t r a vez n a a m a d a
vida. A luz reapparecera.
Na sala, c h e i a d e s s a l u z , o hierophante s u b i u os t r e s d e -
g r á o s d o a l t a r , v o l t o u - s e p a r a os m a g o s , d e u n a a r a t r e s p a n -
cadas e f a l l o u . E r a a prece da E v o c a ç ã o . Agarrei-me a u m
portàl tremendo. C o m t o d a a s o l e m n i d a d e o h o m e m f o i ao
186

o u t r o canto e fez a segunda prece, a I n v o c a ç ã o . Depois, vol-


t a d o p a r a o o r i e n t e disse a E f f u s ã o . T e r m i n a d o q u e f o i , sen-
tou-se. Reparei e n t ã o que havia u m estrado e em cada
canto sentavam-se q u a t r o magos.
—Aquelle estrado ? fiz n u m sopro.
— E ' o p a l c o d o s P h a n t a s m a s , o u o lig-ôma !
De n o v o tres pancadas b a t e r a m . O hierophante, em pé,
fez o gesto sagrado, coliocando a m ã o esquerda sobre o co-
r a ç ã o , fonte do Viver e do Sentir, e a direita, ou da a c ç ã o , n a
fronte, centro p s y c h i c o . Depois u m gesto para o ar e p a r a
a fronte indicou o porvir e o ideai.
T o d o s os m a g o s b r a d a r a m :
— Au-ár l An-ár!
E a v o z d o hierophante abriu na treva:
— « P o b r e e triste h u m a n i d a d e de m o r t o s ! . . . Presentiste
o poder da alma humana, e inventaste a invocação, o culto
e a p r e c e ! . . . M a s , a q u e m te d i r i g i a s t u ? — A f i c ç õ e s i m p o -
tentes !
«Não conhecias a matéria no seu estado u n i t á r i o de
Lhôma, e m b o r a teus grandes philosophos chegassem quasi
a d e t e r m i n a r sua e x i s t ê n c i a .
« Q u e e r a o c u l t o d o Lhôma na Pérsia antiga e do Sôma,
na í n d i a , s e n ã o o grande vislumbre da grande m a g i a physio-
latrica ! . . .
«Mas agora o U n i v e r s o n o s e s t á r e v e l a d o , e m t o d a s as
suas m a r a v i l h o s a s m a n i f e s t a ç õ e s : — alkimicas, kimicas e hy~
perkimicas !....
«Pelo C é r e b r o , abalamos o L h ô m a , que penetra toda a
Matéria orgânica ou inorgânica ! . . .
«E o Cérebro é u m universo microphysico, o n d e os a t o -
moa v a l e m os a s t r o s d o e s p a ç o s i d e r a l ! . . ,
187

« E lá d e n t r o do craneo ha luz, p o r q u e é d o L h ô m a tene-


b r o s o q u e , p o r t o d a p a r t e , e l l a se g e r a ! . . .
«Que m a i s p o d e s u r p r e h e n d e r ao O r t h o l o g o ? ! . . . Onde
pôde haver u m c a n t o n o U n i v e r s o q u e sua V o n t a d e n ã o pe-
netre ?!... Onde um Ser o u F a c t o q u e sua M i c r o t a g i a n ã o
desvende ?!...
« H o m e n s m o r t o s ! . . . V i c t i m a s da F e i t i ç a r i a theolatrica
e d a n e g r a m a g i a das f o r ç a s brutas e inconscientes da M a -
t é r i a ! , . . Sede e t e r n a m e n t e malditos ! . . . Mostrai-vos alli!
no palco dos phantasmas, e m toda a nudez d o vosso h e d i -
ondo Soffrimento! . . . »
E u b a t i os d e n t e s c o m u m f r i o q u e t r a s p a s s a v a os o s s o s .
A l u z a c c e n d i a d e vez e m q u a n d o , e n a q u e l l e estrado, onde
os e s p i r i t o s m a i s d e v i a m e s t a r , e u v i a o v a z i o , o v a z i o horrí-
vel, o vazio doloroso.
— «Surgi. Vós também, ó Heróes do B e m , continuara
o m a g o , q u e v i v e r e i s e t e r n a m e n t e , i m p u l s i o n a n d o os Pro-
gressos q u e s ó a R a z ã o i n s p k a !
«Eil-os ! . . .
« E i s os quadros da vida humana!... torpe, mise-
rável ! . . .
« Q u e m é aquelle sublime LIC-UR, cercado de A m o r e s e
de H a r m o n i a s , e c u j a p r e s e n ç a de L u z dissipa e dissolve os
tenebrosos e e s t ú p i d o s NUROS c o r r u p t o r e s ? ! . . .
«E' o SAN-A'R. ..

«Eil-o sorridente e victorioso ! . . . victorioso da própria


Morte!
« Eil-o, sublime que nos a p o n t a o F u t u r o , o n d e f u l g u -
ra t a m b é m a nossa s u p r e m a na V i c t o r i a !
« A s s i m c o m o elle a n n u l l o u a c o r r u p ç ã o dos M o r t o s , nos
q u a d r o s tetephenicos do E s p a ç o sideral, n ó s t a m b é m a n n u l -
188

l a r e m o s a c o r r u p ç ã o d o s V i v o s d e c a d e n t e , q u e s ã o de mais na
superfície do Planeta!.,..»
D e m a i s ! os q u e s ã o de m a i s ! e u a l l i d e n t r o estava de
mais ! E n t ã o abri a porta, sahi, olhando para traz, aterra-
d o d o sati-ár, dos nuros, desci agarrado aos balaustres da
escada e q u a n d o sentei na soleira da porta, fatigado, com
o c é r e b r o vazio, senti que suava e que me ardiam as
faces...
No outro dia encontrei o physiolatra Magnus acompa-
nhado de vários iniçiados.
—Vou fundar uma Universidade no L y c ê o de Artes e
Officios. N ã o deixe de i r assistir ás conferência prepara-
tórias.
—Mas h o n t e m , h o n t e m que f i z e r a m vocês P
Houve u m a pausa.
—Aleditámos a t é de m a n h ã á beira da Sabedoria para
que a Sabedoria viesse.
E Magnus Soudhal, c o m usa v o l u m e de Nietzche de-
b a i x o d o b r a ç o , s e g u i o c o m os i n i c i a d o s p e l a r u a a f ó r a , c o m o
se f o s s e u m ser natural...
O M O V I M E N T O E V A N G É L I C O
V
I g r e j a F l u m i n e n s e
— A I g r e j a F l u m i n e n s e d a t a d e 1858. F o i a p r i m e i r a c o n -
g r e g a ç ã o e v a n g é l i c a estabelecida n o B r a s i l , g r a ç a s ao e s p i r i t o
de u m h o m e m rico e feliz.
O S r . R o b e r t R e i d Kalley t r a b a l h a v a na ilha da M a d e i r a
q u a n d o , e m 1855, l e m b r o u - s e d e v i r ao R i o d e J a n e i r o . Era
escossez, r n e d i c o , m i n i s t r o e v a n g é l i c o e p o s s u í a b e n s d e f o r -
t u n a . Ao deixar o c l i m a delicioso da i l h a p o r esta cidade,
naquelle tempo f ó c o de algumas moléstias terríveis, não o
e n v i a v a n e n h u m board estrangeiro, vinha espontaneamente
a p e n a s p o r a m o r d o e v a n g e l h o d e Jesus C h r i s t o .
O Brasil sempre f o i u m c e n t r o de r e u n i ã o de coloniãs
d i v e r s a s p r a t i c a n d o as s u a s c r e n ç a s c o m a m a i s i n t e i r a l i b e r -
dade.
E n t r e a pratica da religião, p o r é m , e a p r é g a ç ã o á g r a n d e
massa vai u m a d i f f e r e n ç a r a d i c a l . R o b e r t Kaley v i n h a para u m a
m o n a r c h i a c a t h o l i c a , e m q u e a I g r e j a era u m desdobramento
do Estado ; aportava a u m a t e r r a e m que cada data festiva
fazia repicar n o a r os s i n o s d a s cathedraes e desdobrava por
s o b r e a c i d a d e os p a l l i o s e as sedas r o x a s d o s p a r a m e n t o s sa-
c o s ; v i n h a p r é g a r ao p o v o , a m a n t e d e p r o c i s s õ e s , q u e r o j a v a
n a p o e i r a d a s r u a s q u a n d o p a s s a v a m as i m a g e n s s e g u i d a s d e
soldados. E K a l l e y v e i u e p r é g o u c o n t r a os p a l l i o s , c o n t r a as
imagens e contra o povo a rojar, escudado na doce crença
de Jesus...
í a m o s , os dous, eu e o Rev. Marques pelo asphalto
194

do campo da Acclamação. Muito c e d o a i n d a , os pássaros


cantavam i n d i f f e r e n t e s ao bulicio da grande praça, e eu,
c a d a vez m a i s e n c a n t a d o , i a a o u v i r t ã o s u a v e c o n v e r s a .
— E r a o d i l e t t a n t i s m o da e v a n g e l i s a ç ã o .
— E r a o c o n f o r t o m o r a l q u e a r e l i g i ã o d á . Se a t é h o j e o s
nossos e v a n g e l i s a d o r e s são apedrejados, se nos f e c h a m as
i g r e j a s , i m a g i n e a i m p r e s s ã o d o protestante naquelle t e m p o .
K a l l e y , o ousado capaz de a f f i r m a r m e i a d ú z i a de i d é a s des-
conhecidas, teve u m a série i n f i n d á v e l de i n i m i g o s .
— O protestante ! Que r e c o r d a ç ã o de é p o c a s históricas.
C a r l o s I X , os h u g u e n o t t e s , o ê x o d o p a r a a A m e r i c a , o h o r Y o r
das i m a g e n s . . .

— Os populares naquelle t e m p o não admittiam o fun-


ccionamentoregular, com entrada franca, dasigrejas e v a n g é -
licas. Kalley, tres annos depois da sua chegada, fundava
sem bulha, c o m alguns adeptos, o primeiro templo evangé-
lico, que c h a m o u F l u m i n e n s e .

Ha t e m p e r a m e n t o s de m i s s i o n á r i o s . Kalley era u m des-


ses. Olhe que podia viver m u i t o b e m na Escossia, á beira
d o s l a g o s , e n t r e os v e r d e s l i n d o s d o s v a l l e s . P r e f e r i u a n o s s a
c i d a d e de h a m e i o s é c u l o , b a r b a r a , f e i a , c h e i a de c a l o r , este-
ve vinte annos no Rio e só voltou á pátria q u a n d o teve a
certeza de d e i x a r u m a i g r e j a c o m p l e t a m e n t e o r g a n i s a d a .
— E deixou ?
— A o p a r t i r , e m 1876, a i g r e j a t i n h a u n s c e m membros,
havia u m pastor substituto, João Manuel G o n ç a l v e s dos San-
tos, eram presbyteros Francisco da Gama, Francisco da
Silva J a r d i m e Bernardo G u i l h e r m e da Silva e diaconos João
Severo de Carvalho, Antônio Soares de Oliveira, Manuel
Antônio Pires de Mello, Jdsé A n t ô n i o Dias F r a n ç a , Manuel
193

Joaquim Rodrigues, Manuel José da Silva V i a n n a e A n t ô n i o


V i e i r a de A n d r a d e . O e s f o r ç o f õ r a r e c o m p e n s a d o . Fructifi-
cara a semente e já outras igrejas i a m nascendo.
— A I g r e j a F l u m i n e n s e t e m m u i t a s filiaes ?
— Tem. H a o u t r a s i g r e j a s o r g a n i s a d a s p o r e l l a , e a essas
seria mais a p r o p r i a d o chamar igrejas congregacionaes. S ã o
essas a d e N i c t h e r o y , c u j o p a s t o r é o R e v . L e o n i d a s d a S i l v a ,
e q u e possue u m bello e d i f í c i o na r u a da Praia, t e n d o cerca
de c e m m e m b r o s ; a de P e r n a n b u c o , a de Passa-Tres, a de
S. J o s é de B o m j a r d i m e a que eu pastoreio no E n c a n t a d o ,
o r g a n i s a d a a 10 d e m a i o c o m 56 m e m b r o s .
Antônio M a r q u e s t e r m i n a r a a sua phrase c o m tal cari-
nho que o interrompi ;
— V e j o q u e a m a o seu r e b a n h o !
— N ã o ha m e l h o r ! . . . g e n t e s i m p l e s , boa, capaz de o u v i r
a palavra do Senhor. . .
Fez u m a pausa, s o r r i u .
— D e v o - l h e d i z e r q u e essas i g r e j a s t ê m t a m b é m as s u a s
missões. S ó a de Passa-Tres t e m no Cipó, no Arrôzal de
S. J o ã o Baptista e e m toda a zona mais p r ó x i m a do Estado
do Rio.
— A Igreja F l u m i n e n s e é só de nacionaes ?
— E ' a ú n i c a no Brasil que n ã o tem protecção estran-
geira, que vive dos seus próprios recursos apenas ; — é o
c o m p l e t o a t t e s t a d o d o nosso e s f o r ç o m o r a l . J á e d u c o u tres
jovens para o m i n i s t é r i o , sustenta tres m i s s i o n á r i o s , acabou
d e c o n s t r u i r u m t e m p l o e, a p e z a r d i s s o , a i n d a o a n n o pas-
sado teve n o seu « b u d g e t » u m saldo de o i t o c o n t o s . Sendo
n a c i o n a l , e n t r e t a n t o recebe na sua communhâo pessoas d e
a m b o s os s e x o s c r e n t e s e m Christo.
— E tem uma escola ?
196

— Tem duas: a dominical, de l e i t u r a bíblica, e uma


outra diária para as c r i a n ç a s , dirigida pelo S r . Joaquim
Alves e D . C a r l o t a P i r e s . A c a r a c t e r í s t i c a da igreja é a evan-
g e l i s a ç ã o d a c i d a d e , u m a e v a n g e l i s a ç ã o q u e v a i de p o r t a e m
p o r t a , levando auxillios, carinhos, paz m o r a l . Ha a Sociedade
de E v a n g e l i s a ç ã o , a U n i ã o B í b l i c a A u x i l i a d o r a de Moços, a
U n i ã o das S e n h o r a s , a U n i ã o das M o ç a s , das C r i a n ç a s . . . Os
templos congregacionaes t a m b é m t ê m i d ê n t i c a s sociedades.

N o E n c a n t a d o , a l é m de d u a s o u t r a s , n ó s , que estamos
e m c a m i n h o de ter u m templo, vamos organisar agora o
Esforço Christão Juvenil.
— Mas u m a evangelisação assim constante?
— Os rapazes d i s t r i b u e m f o l h e t o s , f a z e m a expedição
pelo Correio, vão de p o r t a e m p o r t a c o m s u b s c r i p ç õ e s para
m a n d a r c o m p a n h e i r o s e s t u d a r n a E u r o p a . E u l h e posso c i t a r
os n o m e s d e J o ã o M e n e z e s , Isaac G o n ç a l v e s , L u i z Fernandes
Braga, A n t ô n i o Maria de Oliveira... S ã o tantos! E todos bra-
sileiros.

H a v i a na voz d o pastor u m j u s t o o r g u l h o . E u e m m u d e c i
u m i n s t a n t e , a c o m p a n h a n d o - o . Nesta cidade de e o m m e r c i o ,
e m que o d i n h e i r o parece o único deus, homens moços e
f o r t e s p r é g a m a b o n d a d e d e p o r t a e m p o r t a , c o m o os p o b r e -
sinhos p e d e m p ã o ! O u eu d e l i r a v a , o u aquelle cavalheiro
c a l m o , de r e d i n g o t e de alpaca, dava-me o favo da illusào,
como outr'ora Platão entre arvores mais bellas e discípulos
mais argutos.
—A igreja t e m hoje u m p a t r i m ô n i o grande? fiz c o m o
desejo de v o l t a r á r e a l i d a d e .
— S e m p r e a u g m e n t a d o , mas r e g u l a d o a i n d a pelos esta-
t u t o s de 1886, a p p r o v a d o s pelo governo imperial, quando
197

ministro o barão H o m e m de Mello. O p a t r i m ô n i o creado


com donativos e legados consiste em prédios e titulos
da divida publica. A administração é eleita annualmente
d e n t r e os m e m b r o s d a i g r e j a , c o m p õ e - s e d e u m p r e s i d e n t e ,
dous secretários, u m thesoureiro e um procurador, que
t ê m a s e u c a r g o r e p r e s e n t a r a i g r e j a e m t o d o s os seus ne-
g ó c i o s . Deus t e m a b e n ç o a d o a nossa o b r a .
—As igrejas evangélicas abundam entre n ó s , pastor.
F j l l a m - m e agora numa seita, os m i g u e l i s t a s , q u e d i z e m
ter Jesus C h r i s t o v o l t a d o a o m u n d o , e n c a r n a d o no Dr. M i -
guel Vieira Ferreira. ..
—As verdadeiras igrejas evangélicas cio R i o s ã o a F l u -
minense, a Methodista, a Presbyteriana, a Baptista e a Epis-
c o p a l p a r a os i n g l e z e s e os a l l e m ã e s . N ó s p r o p r i a m e n t e , f i -
lhos da F l u m i n e n s e , somos congregacionistas. A religião é
uma s ó , h a v e n d o apenas d i f f e r e n ç a no r i t u a l e na f ô r m a do
governo ecclesiastico.
O nosso g o v e r n o é c o n g r e g a c i o n i s t a , c o m p o s t o de pastor,
presbytero e diaconos. Actualmente na Igreja Fluminense
o pastor é G o n ç a l v e s d o s S a n t o s , os p r e s b y t e r o s José No-
vaes, J o s é F e r n a n d e s B r a g a e G o n ç a l v e s L o p e s , os d i a c o n o s
A n t ô n i o de A s s u m p ç ã o , Guilherme Tanner, José Valença e
José Martins.
— M a u m a t a l s u b d i v i s ã o d e r i t o s e n t r e os e v a n g e l i s t a s . . .
—Nós nos r e g u l a m o s p o r 28 a r t i g o s d e f é . C r e m o s n a
e x i s t ê n c i a d e u m D e u s , n a t r i n d a d e d e pessoas,, n a d i v i n d a d e
de Jesus C h r i s t o , n a sua e n c a r n a ç ã o , n a s c e n d o de M a r i a e
sendo v e r d a d e i r o Deus e h o m e m .
Estávamos á esquinada rua Floriano Peixoto. Verda-
deiro homem! Ia perguntar, aprofundar a intenção da
phrase. O pastor, porém, continuava.
1U8

— A Biblia foi escripta por i n s p i r a ç ã o d i v i n a .


— N ã o ha d u v i d a .
— S ó a c r e d i t a m o s e m d o u t r i n a s q u e p o r e l l a p o s s a ser p r o -
vada. E p o r isso c r e m o s n a i m m o r t a l i d a d e d a a l m a , n a v i d a
f u t u r a , n a p u n i ç ã o e t e r n a dos q u e n ã o p e n s a m e m Jesus, n a
r e s u r r e i ç â o dos m o r t o s , no j u l g a m e n t o d o t r i b u n a l de Deus.
A n t ô n i o Marques p a r a r á defronte da igreja, u m c a s a r ã o
que t e m e m lettras grandes esteappello c o n v i d a t i v o . — V i n d e
e vêde!
— Custou muito ?
— Uns setenta contos.
— E o pastor a i n d a é o s u b s t i t u t o de K e l l e y ?
— Ainda. Conhece-o?
— E ' u m a n c i ã o d e m a n e i r a s seccas.
— O h ! t e m - s e e s f o r ç a d o t a n t o ! M a v i n t e e sete a n n o s q u e
t r a b a l h a s e m cessar. F o i a L o n d r e s e s t u d a r o m i n i s t é r i o , vol-
t o u e n u n c a mais nos d e i x o u . E ' o m a i s a n t i g o m i n i s t r o e v a n -
g é l i c o d o B r a s i l ^ ê h o j e os seus s e s s e n t a e d o i s a n n o s c u r v a m -
se a u m t r a b a l h o i n s a n o . E n t r e ; h o j e é o d i a d a communhão.
E n t r e i . U m a s o m b r a t r a n q u i l l a aquietava-se n a sala. Os
ruidos cie f ó r a , d a a l e g r i a m o v i m e n t a d a da rua, chegavam
apagados. No coro, n e m viva a l m a ; pelos bancos, alguns
p e r f i s e m e r g i n d o da s o m b r a , m u i t o s a t t e n t o s e c a l m o s ; ao
f u n d o , e m d e r r e d o r de u m a mesa o n d e h a v i a g a r r a f a s e p r a -
tos de p r a t a , v á r i o s s e n h o r e s . E n a q u e l l a paz vozes c a n t a v a m :
Disposta a mesa, ó Salvador,
V e m presidir aqui
Ministra o v i n h o , parte o p ã o
T y p o s , Jesus, d e t i !
D e p o i s , n o s i l e n c i o q u e se f i z e r a , o p a s t o r d i s s e :
— Bemclito Deus! ea prece evolou-se directa, pedindo
para q u e se rectificasse o facto e m m e m ó r i a cia m o r t e d e
Christo.Era a consagração.
G o n ç a l v e s d o s S a n t o s t o m o u d o p ã o e o p a r t i u , os p r e s -
b y t e r o s f o r a m pela sala c o m os pratos l a v r a d o s de prata,
o n d e b r a n q u e j a v a m os p e d a ç o s d o b o l o s e m f e r m e n t o .
— T o m a i isso e c o m e i !

S e n t e i - m e h u m i l d e n o u l t i m o banco, C o m o nos evange-


l h o s , e u v i a os h o m e n s d a r e m d e c o m e r o p ã o d e D e u s , e d a -
r e m a b e b e r o s a n g u e d e Jesus. E r a t o c a n t e , n a q u e l l e m y s t e -
r i o , n a paz d a vasta sala, q u a s i d e s e r t a . E, : o m g u l a , a cada
u m que eu seguia no g o s o cia s u p r e m a felicidade, parecia-
m e v e r o seu o l h a r , — o o l h a r , a janella da a l m a ! — v o l t a r - s e
p a r a o c é o n a certeza t r a n q u i i l a de u m r e p o u s o celeste.
Quando a c e r e m o n i a t e r m i n o u , c o m o u m r u f l o de azas
b r a n c a s , d e n o v o as v o z e s sussuraram.

Eu trouxe a salvação
Dos altos c é o s l o u v o r ,
E' livre o m e u perdão,
E' grande o meu amor.

— Que faz tão triste ahi? disse-me o pastor Antônio. Aos


m o ç o s q u e r Deus alegres! E eu que lhe f ô r a buscar uma
Biblia e o Christão, o nosso j o r n a l z i n h o ! V e n h a f a l l a r ao
pastor.
Ergui-me. M a n u e l G o n ç a l v e s dos Santos, com a sua
b a r b a a l v a d i a e o seu d u r o o l h a r , f i t a v a - m e .
Voltei do sonho para lhe reflorir u m a lisonja. E u já o
sabia u m p r o b o , p r a t i c a n d o o m i n i s t é r i o sem remuneração
de espécie a l g u m a . Santos conservava-se de gelo. Fallei da
ç o h e s à o das igrejas, da propaganda, do evidente progresso
200

do evangelismo no Brasil, com a sua simples essência de fé,


gabei o hospital que estão-a c o n c l u i r .
O pastor e n t ã o d i s c o r r e u . A única religião compatível
c o m a nossa Republica é exactamente o evangelismo chris-
t ã o . S u b m e t t e - s e á s leis, p r e g ã o c a s a m e n t o c i v i l , obedece ao
c ó d i g o e é, pela sua pureza, u m esteio m o r a l . A propaganda
t o r n a c a d a vez m a i s c l a r a s essas i d é a s , n o e s p i r i t o p u b l i c o aos
poucos se crystallisa a nitida c o m p r e h e n s ã o do dever reli-
gioso. Os evangelistas s e r ã o m u i t o brevemente u m a força
n a c i o n a l , c o m chefes intellectuaes, d i s p o n d o de u m a grande
massa. E, de repente, com convicção, o velho reverendo
concluiu:
— H a v e m o s de ter m u i t o breve na r e p r e s e n t a ç ã o naci-
onal u m deputado evangelista.
Apertei a m ã o do mais antigo ministro evangélico do
B r a s i l . D i a n t e dos e s f o r ç o s q u e me c o n t a r a A n t ô n i o Marques,
a m i n h a a l m a se e x t a s i a r a , d u r a n t e a c o m m u n h ã o , v e n d o o
grave g r u p o beber o sangue de Jesus, e u s e n t i r a o b a l s a m o
do sonho. Mas e m q u a n t o meus olhos o l h a v a m c o m inveja o
outro lado da vida, a margem diamantina da Crença, o
pastor sonhava com o dominio temporal e a Câmara dos
Deputados. ..
Eterna contradicção humana, que n ã o se explicará
nunca, n e m mesmo c o m o auxilio daquelle que no Apocalype
s o n d a o c o r a ç ã o e os r i n s e a n d a e n t r e s e t e c a n d i e i r o s d ' o u r o !
Eterna c o n t r a d i c ç ã o , q u e c a p t i v a a a l m a de u n s e faz as
r e l i g i õ e s t r i u m p h a r e m a t r a v é s dos s é c u l o s !
A I g r e j a P r e s b y t e r i a n a
A s é d e da Igreja Presbyteriana fica na r u a Silva Jardim
n . 15. E ' u m d o s mais lindos templos evangélicos do Rio.
A s a l a p o d e c o n t e r o i t o c e n t a s pessoas. T u d o r e l u z , as p a r e -
d e s b a n h a d a s d e s o l , as p o r t a s envernizadas, as fechaduras
nickeladas, o p ú l p i t o severo. Pelas a l é a s do j a r d i m , bruni-
d a s , ancla-se sob o d e s f o l h a r d a s r o s a s e d a m o n t a n h a a p i q u e
q u e l h e fica aos f u n d o s , d e s c e u m i n t e n s o p e r f u m e d e m a t t a .
A p r i m e i r a vez q u e e u l á e s t i v e , a sala e s t a v a a p i n h a d a , n ã o
h a v i a u m l o g a r ; e, p o r t r á s d e s o b r e c a s a c a s s e v e r a s , d e f a t o s
s o m b r i o s , na l u z c r u a dos f ó c o s , eu v i a apenas o gesto de u m
h o m e m de larga f r o n t e , descrevendo a d e l i c i a da m o r a l i m -
peccavel. Perguntei a u m cavalheiro que o ouvia embeve-
c i d o , q u a s i nas escadas.
— «Aiem é ?
O cavalheiro passou o l e n ç o pela testa alagada.
— A d m i r a n ã o o conhecer: é o D r . Álvaro Reis.
Á l v a r o Reis é o pastor actual da Igreja Presbyteriana do
R i o , essa i g r e j a p r o d u c t o d e u m a p r o p a g a n d a t e n a z e d e u m
l o n g o e s f o r ç o de quasi m e i o s é c u l o . N ã o ha de certo na h i s -
t o r i a dos nossos c u l t o s e x e m p l o t ã o f r i s a n t e de q u a n t o vale o
querer como essa vasta igreja. Fundada em 1861 { elos
Revs. Green Simonton, Alexandre Blackford e Francisco
Shneider, tres m i s s i o n á r i o s mandados p e l o board da igreja
204

P r e s b y t e r i a n a dos Estados U n i d o s para a e v a n g e l i s a ç ã o do


Brasil, q u a r e n t a e tantos annos depois tornou-se realidade ;
e a s e m e n t e g u a r d a d a n o c e l l e i r o d o S e n h o r , s o b o seu divino
olhar, b r o t o u e floriu e m arvore estrondosa. Quanto custou
isso ! S i m o n t o n e n s i n a v a grátis o inglez para, aprendendo o
p o r t u g u e z , i n o c u l a r nos d i s c í p u l o s os s ã o s p r i n c í p i o s da B í -
b l i a , cada s e r m ã o era u m acontecimento, marcava-se com
carinho o dia e m que professava u m n o v o s y m p a t h i c o . Os
p u r i t a n o s p r e g a v a m e m salas e s t r e i t a s e sem conforto. A l -
g u m a s vezes u m p a d r e c a t h o l i c o s u r g i a i n t o l e r a n t e , protes-
t a v a ; os p a s t o r e s i n t e r r o m p i a m - s e e as d u a s i g r e j a s com-
b a t i a m , a ver q u e m pela p a l a v r a melhor parecia estar c^m
Deus.
C o m o a Igreja Positivista, a propaganda c o m e ç o u numa
s a l a d a r u a N o v a d o O u v i d o r c o m dezeseis o u v i n t e s . Passou
depois á r u a do Cano, desceu á r u a do Regente, á praça da
A c c l a m a ç ã o , á r u a de Santa A n n a : c o m p r o u c o m s a c r i f í c i o s
e recursos americanos o barracão da f a b r i c a de velas de
c ê r a cia t r a v e s s a d a B a r r e i r a e a h i o r o u , p e d i u a D e u s e c o n -
t i n u o u a p r o p a g a r . Os m e i o s e r a m os usuaes de t o d a a f é
q u e q u e r p r e d o m i n a r . Os e v a n g é l i c o s f a z i a m versos, faziam
o b e m e e r a m tenazes. F o i u m a e v o l u ç ã o segura e l e n t a .

A i g r e j a teve m a r t y r e s . O s á b i o padre romano Manuel


da C o n c e i ç ã o a b j u r o u e ordenou-se presbytero.

Era u m a a l m a antiga. Ordenou-se elogocomeçouaevan-


g e l i s a r a p é pelas estradas. N ã o levava u m a m o e d a n a b o l s a ,
e d e p o r t a e m p o r t a , c o m a B i b l i a n a m ã o , r e v e l a v a aos homens
a verdade. Atravessou Minas assim, t r o p e ç a n d o ' p e l o s cami-
nhos ardentes, quasi sem comer, e onde parava o seu lábio
abria f a l l a n d o do prazer de ser puro. Em Campanha cor-
205

rei a m - n o á p e d r a . C o n c e i ç ã o , c o m a B i b l i a de e n c o n t r o ao
peito, t r o p e ç a n d o , f u g i a sob a saraivada, e a t u r b a só o
d e i x o u fóra da cidade q u a n d o o v i u e m sangue cambalear e
cahir. Ao chegar a Sorocaba, o martyr estava andrajoso,
q u a s i a m o r r e r , e, m o r t o , os seus ossos f o r a m exhumados,
p o r o r d e m do bispo D . L a c e r d a , para serem atirados fóra do
c e m i t é r i o , ao v e n t o . . .

Os pastores t r a b a l h a v a m t a n t o que S i m o n t o n m o r r e r a ,
aos t r i n t a e q u a t r o a n n o s , de cansaço. Eram os primeiros
tempos ! A a d h e s ã o religiosa v e m datenacidade. A tenaci-
d a d e dessas c r e a t u r a s d e a ç o a t t r a h i u os fiéis, d e s d e os a n a l -
p h a b e t o s aos h o m e n s i l l u s t r e s , a i g r e j a r e c e b e u n o seu seio
médicos, engenheiros, litteratos, architectos, professoras
p u b l i c a s , h o m e n s r u d e s , lentes de escolas superiores e cada
u m q u e d a q u i s a h i a l e v a v a p a r a as i g r e j a s d o s E s t a d o s com
a carta d e m i s s o r i a u m elemento de p r o p a g a n d a . Por ultimo
os p a s t o r e s foram brasileiros, a d e r r a d e i r a etapa estava
ganha, a igreja, p o n t o inicial da e v a n g e l i s a ç ã o brasileira, f o i
construida luxuosamente e o Rev. Trajano, com verdade
e poesia o a f f i r m o u :—depois cie p e r e g r i n a r p o r seis t e c t o s
e s t r a n g e i r o s , s ó n o s é t i m o a nossa i g r e j a d e s c a n ç o u .

F o i nesse d e s c a n ç o q u e eu d i a s d e p o i s v o l t e i a c o n v e r s a r
com o D r . Á l v a r o Reis. A casa do pastor fica ao l a d o es-
q u e r d o d o t e m p l o , o c c u l t a nos roseiraes. O protestantismo
t r o u x e p a r a os n o s s o s c o s t u m e s 1 i t i n o - a m e r i c a n o s n ã o sei se
a p u r e z a da a l m a , de q u e o m u n d o s e m p r e desconfia, mas o
asseio i n g l e z , o r e g i m e n i n g l e z , a s a t i s f a ç ã o de b e m c u m p r i r
os d e v e r e s r e l i g i o s o s e de v i v e r c o m c o n f o r t o .
L o g o q u e v i e r a m a b r i r a p o r t a e u t i v e essa i m p r e s s ã o .
— O Pastor?
206

O pastor n ã o estava, mas isso n ã o i m p e d i a q u e u m h o -


mem de Deus entrasse a r e f r e s c a r das a g r u r a s d o s o l . O D r .
Á l v a r o Reis é p a u l i s t a : na sua residência encontrei alguns
a m i g o s s e u s , p a u l i s t a s ; q u e m e r e c e b e r a m e n t r e as c o r t i n a s
eos tapetes, com u m a franqueza encantadora. Quando me
sentei na doce paz de u m a p o l t r o n a , c o m o u m v e l h o c a m a -
rada i r m ã o em Christo, estava c o n v e n c i d o de q u e ia beber
café e conversar largamente. N ã o h a c o m o os e v a n g e l i s t a s ,
e os e v a n g e l i s t a s b r a s i l e i r o s , p a r a g e n t i l e z a s . A' bondade
ordenada pela e s c r i p t u r a r e ú n e m essa e s p e c i a l e i n t i m a c a -
deia do brasileiro, q u e , q u a n d o q u e r ser bom, é sempre
mais que bom.

— A Igreja Presbyteriana, disse-me o substituto do Dr.


Á l v a r o R e i s , r e a l i s a , c o m o sabe, o t r a b a l h o de p r o p a g a n d a
nesta c i d a d e , h a 42 a n n o s . Actualmente, além do templo,
tem c o n g r e g a ç õ e s prosperas na rua da Passagem, e m B o -
tafogo, na r u a do Riachuelo e na P o n t a do C a j ú , o n d e exis-
t e m salas d e c u l t o m u i t o f r e q ü e n t a d a s . Foi c o m elementos
nossos q u e se o r g a n i s o u a i g r e j a d e N i c t h e r o y .
— E nos Estados ?

— A Igreja Presbyteriana do Rio ramificou-se por to-


d o s os E s t a d o s d o B r a s i l . Ha presbyterianos n o R i o Grande
do S u l , no P a r á , e m Minas, e m Goyaz, no P i a u h y e a t é nos
c o n f i n s de M a t t o Grosso. A propaganda f i c o u ao cuidado
da I g r e j a E v a n g e i l c a E p i s c o p a l . O n u m e r o de congregações
e d e t e m p l o s q u e se o r g a n i s a r a m d e p o i s d o n o s s o s o b e a 3 0 0 .
— E ha vários collegios?
— Vários ? Ha muitos. A Igreja Presbyteriana conseguiu
estabelecer no B r a s i l os s e g u i n t e s c o l l e g i o s : o M a c k e n z e a
E s c o l a A m e r i c a n a , e m S. P a u l o ; o C o l l e g i o de L a v a s , em
207

M i n a s ; o de C u r i t y b a , no P a r a n á ; o da B a h i a , da F r e i r a de
Santa A n n a , e o da Cachoeira, na B a h i a ; o das L a r a n j e i r a s ,
em Sergipe ; o do Natal, no Rio Grande do Norte ; e ainda
v a r i a s escolas gratuitas.
— E' natural que u m a t ã o copiosa propaganda tenha
u m a f o r m a d e g o v e r n o ? fiz v a g a m e n t e .
— T e m . A i g r e j a é g o v e r n a d a p o r u m a s e s s ã o de i g r e j a
p r e s i d i d a p e l o p a s t o r e c o m p o s t a d e seis o f f i c i a e s , q u e t ê m o
t i t u l o de presbyteros. A sessão da igreja apresenta annual-
mente a c t a s e r e l a t ó r i o s ao p r e s b y t e r i o d o R i o , c o n c i l i o su-
perior composto de t o d o s os m i n i s t r o s p r e s b y t e r i a n o s que
t r a b a l h a m no R i o , no sul de M i n a s e no E s p i r i t o Santo.

N o P r e s b y t e r i o , c a d a s e s s ã o se f a z r e p r e s e n t a r p e l o p a s -
tor e u m presbytero. Além d o P r e s b y t e r i o d o R i o ha o de
S ã o P a u l o , o de M i n a s , o d o oeste de S. P a u l o , o de P e r n a n -
b u c o e o d o S u l d o B r a s i l . Esses seis p r e s b y t e r i o s , r e u n i d o s
d3 tres e m tres annos e m u m a só a s s e m b l é a , f o r m a m o su-
p r e m o concilio da i g r e j a , c o m o n o m e de S y n o d o Presbyte-
riano Brasileiro. E' a h i q u e se d i s c u t e m os i n t e r e s s e s g e -
raes da causa.
— A defesa t e m jornaes }
— Alguns. Venha ver.

E n t r á m o s n a b i b l i o t h e c a de Á l v a r o Reis, u m a sala c o n -
f o r t á v e l , f o r r a d a de altas estantes de c a n e l l a . Por toda a
parte, em ordem, livros, papeis, b r o c h u r a s , cartas, photo-
graphias.
— V e j a . A q u i n o R i o t e m o s o Presbyteriano e o Puritano.
H a e m S . P a u l o % Revida das Missões Nacionaes, em Araqua-
ty 6 Evangelista, o Despertador e m R i o C l a r o , a Vida em Flo-
r i a n ó p o l i s e o Século no Natal.
208

— E c o m t a n t o s j o r n a e s os s e n h o r e s n ã o v i v e m e m guerra
constante ?

—Contra quem?

— C o n t r a as o u t r a s i g r e j a s , os b a p t i s t a s , os methodis-
t a s . . . U m j o r n a l s ó basta p a r a fazer a d i s c ó r d i a ; dez jornaes
fazem o conflicto universal!

— N ã o , fez o m e u interlocutor a sorrir, n ã o . Reina c o m -


pleta h a r m o n i a . A Igreja F l u m i n e n s e já existia q u a n d o c o m e -
ç á m o s a nossa c a m p a n h a . As r e l a ç õ e s c o n s e r v a m - s e cordiaes,
O pastor Santos m i n i s t r a a q u i a palavra de Deus sempre
q u e é c o n v i d a d o . E m q u a n t o o t e m p l o esteve e m c o n s t r u c ç ã o ,
a Igreja Fluminense p e r m i t t i u - n o s o uso da sua v a s t a sala
p a r a o n o s s o s e r v i ç o r e l i g i o s o . C o m os methodistas e ba-
ptistas a mesma c o r d i a l i d a d e existe O s p a s t o r e s d e lá f a l i a m
n o nosso p ú l p i t o , c o m o n ó s f a l í a m o s nos seus.

Depois, c o m tristeza:

— T a l v e z e n t r e os d e casa n ã o e x i s t i s s e essa h a r m o n i a h a
b e m p o u c o t e m p o . . . E- b e m s i m p l e s . N a u l t i m a r e u n i ã o d o
Synodo Presbyteriano houve uma scisão que se reflectiu
f r a n c a m e n t e na igreja d o Rio. U m m e m b r o do concilio i m a -
ginou que a maçonaria fazia p r e s s ã o nas d e l i b e r a ç õ e s do
S y n o d o , p r o p o n d o l o g o q u e a i g r e j a , banisse d o seu seio a
heresia maçonica. N ã o era verdade a pressão. O concilio dis-
c u t i u largamente e approvou a seguinte resolução- — « O Sy-
n o d o j u l g a i n c o n v e n i e n t e legislar sobre o a s s u m p t o ! » A t o -
l e r a n t e a p p r o v a ç ã o d e u e m r e s u l t a d o s e p a r a r e m - s e sete m i -
nistros, que formaram uma igreja independente e anti-
m a ç o n i c a . A ' nova igreja ligaram-se e x - m e m b r o s da nossa.

Elle fallava s i m p l e s m e n t e . E m t o r n o , faces tranquillas


209

approvavam e naquella atmosphera a g r a d á v e l eu não pude


d e i x a r de d i z e r :
— C o m o o g r a n d e p u b l i c o os i g n o r a , c o m o a p o p u l a ç ã o ,
a v e r d a d e i r a , a m a s s a , os c o n f u n d e n u m a c o m p l i c a d a reu-
n i ã o de c u l t o s !
Todos sorriam perdoando.
— S a b e m o s disso. E' natural! Oh! os p r o t e s t a n t e s !
Passam pela porta, pensam cousas i n c r i v e i s . . . Mas alguns
entram e encontram a tranquilliclade. Q u a l é , a f i n a l , sec-
camente, e m poucas palavras, o m o d o p o r q u e a Igreja Pres-
b y t e r i a n a d i f f e r e da Igreja R o m a n a ? N ã o considera o Papa
c o m o c h e f e , n e m t o l e r a a sua i n f a l l i b i l i d a d e , n ã o c r ê na i n t e r -
c e s s á o dos santos, que e s t ã o na g l o r i a i e n e n h u m poder t e m
neste m u n d o ; n ã o acceita o celibato clerical, considerando
uma innovação funesta...
— O h ! Funestissima!
— . . .de G r e g o r i o V i l , no s é c u l o X I ; n ã o a d i m f t e o culto
das i m a g e n s , u m a i n f r a e ç ã o ao 2 0
andamento do Decalogo ;
crê que Jesus C h r i s t o r e s u s c i t o u e está vivo e reina c o m o
ú n i c o chefe da sua i g r e j a ; c r ê n o ú n i c o f u n d a m e n t o , na ú n i c a
regra da Religião C h r i s t ã , a Palavra de Deus, a Biblia, e pre-
ga que Deus, omnipotente, omnisciente e omnipresente, é
ú n i c o a p t o a o u v i r as o r a ç õ e s dos h o m e n s . S ó acceita dous
s a c r a m e n t o s , o B a p t i s m o e a C o m m u n h ã o , os ú n i c o s i n s t i t u í -
dos p o r Jesus C h r i s t o ; s ó r e c o n h e c e o c a s a m e n t o c i v i l , so_
bre o q u a l i n p e t r a a b e n ç ã o de Dens; n ã o a d i m i t t e o pur-
gatório. ..
— O absurdo p u r g a t ó r i o !
— D i a n t e das santas e s c r i p t u r a s .
— Ah!
— P r o h i b e a s missas e m s u f f r a g i o das a l m a s , p o r q u e Jesus
210

n u n c a rezou missas, e c r ê que o homem é salvo de g r a ç a


pela fé viva, como crô na r e s u r r e i ç ã o , na regeneração, na
vida eterna e no juizo final. Todo o seu c u l t o .se resume
na l e i t u r a das e s c r i p t u r a s , e m s e r m õ e s explicativos, e m ora-
ções a Deus, e no p r i m e i r o d o m i n g o de cada mez na cele-
b r a ç ã o da E u c h a r i s t i a . . .
— Ha sociedades na igreja?
— Ha o E s f o r ç o Christão e u m a de accôrdo c o m todas
as i g r e j a s , o H o s p i t a l E v a n g é l i c o .
Nessa m e s m a noite eu ouvi, no t e m p l o cheio, Álvaro
Reis. A sua l a r g a f r o n t e parecia i n s p i r a d a e elle, d e s f a z e n d o
s u b t i l m e n t e as p h r a s e s d i a m a n t i n a s d a B i b l i a , n u m polvilho
de b e m , f a l l a v a d a Caridade, da Caridade que sustenta todos
os q u e c r ê e m e m Jesus, — d a Caridade suavemente doce
que protege e esquece.
I g r e j a M e t h o d i s t a
»

— Amados irmãos, estamos reunidos aqui á vista de


D e u s , e n a p r e s e n ç a d e s t a s t e s t e m u n h a s , p a r a u n i r este h o -
m e m e esta m u l h e r e m s a n t o m a t r i m ô n i o ; q u e é u m e s t a d o
honroso, instituído por Deus no t e m p o da i n n o c e n c i a do
homem, signirieando-nos a u n i ã o mystica que existe en
t r e C h r i s t o e a sua Igreja. Esse e s t a d o s a n t o , Christo a-
dornou-o c o m a belleza da sua p r e s e n ç a , fazendo o pri-
meiro milagre em Cana da Galiléa ; S. Paulo o recom-
menda c o m o u m estado honroso e n t r e os h o m e n s ; e p o r
isso n ã o d e v e ser e m p r e h e n d i d o ou c o n t r a h i d o sem refle-
x ã o , mas, sim, reverente, discreta, reflectidamente e no
t e m o r de Deus.
N o ar pairava u m suave p e r f u m e , senhoras de r a r a ele-
gância tinham physionomias i m m o v e i s , cavalheiros graves
p a r e c i a m o u v i r c o m a t t e n ç ã o a palavra do pastor e t u d o scin -
t i l l a v a ao b r i l h o dos focos l u m i n o s o s . E r a u m c a s a m e n t o n a
I g r e j a M e t h o d i s t a , na p r a ç a J o s é de A l e n c a r . A o f u n d o , v i a -
se, á m ã o d i r e i t a do pastor, o noivo, á esquerda a noiva, e
p o r t r á s , d o s v i t r a e s , lá f o r a , n a q u e l l e r e c a n t o o n d e c o r r e de
vagar um r i o , a t u r b a dos curiosos que não entram nun-
ca.
— Estas duas pessoas a p r e s e n t a m - s e , c o n t i n u a v a o m i -
nistro e v a n g é l i c o , para serem unidas nesse e s t a d o s a n t o . Se
a l g u é m sabe c o u s a q u e p o s s a ser p r o v a d a c o m o c a u s a j u s t a ,
pela q u a l estas pessoas n ã o d e v a m l e g a l m e n t e ser unidas,
queira dizer agora, ou do c o n t r a r i o — n u n c a m a i s falle sobre
isso.
Houve u m sussurro c o m o se e n t r a s s e p e l a p o r t a o g i v a l
u m a lutada de. a r . O pastor voltou-se para as pessoas
que casavam.
— E x i j o e o r d e n o de vós ambos ( como respondereis
no t e r r í v e l dia de juízo, quando os s e g r e d o s de t o d o s os
corações f o r e m desvendados ) que se a l g u m d e v ó s souber
de i m p e d i m e n t o pelo q u a l n ã o podeis l e g a l m e n t e ser uni-
dos pelos l a ç o s d o m a t r i m ô n i o , queira dizer agora, pois,
ficai b e m certo disto, que aquelles q u e se u n e m de um
modo differente daquelle que é auctorisado pela palavra
de Deus n ã o s ã o u n i d o s p o r D e u s , n e m o seu matrimônio
é legal.
Nem o noivo n e m a noiva responderam. Ella pare-
cia t r a n q u i l l a , elle s o r r i a u m sorriso mais ou menos irônico
entre as cerdas do bigode. O ministro então disse ao
noivo:
— Queres casar c o m esta m u l h e r p a r a v i v e r d e s j u n t o s ,
segundo a ordenação de Deus, no estado santo do matri-
mônio? Amal-a-ás, confortal-a-ás, honral-a-ás e guardal-
a-ás na doença e na saúde; e deixando tudo o mais
g u a r d a r - t e - á s para'ella somente, e m q u a n t o ambos v i v e r e m ?
— S i m ! fez o n o i v o .
— Queres c a s a r c o m este h o m e m p a r a v i v e r , segundo
a ordenação de Deus, no estado santo do matrimônio ?
Obedecel-o-ás, servil-o-ás, honral-o-ás e guardal-o-ás na
d o e n ç a e na saúde, e deixando t o d o s os outros guardar-
te-ás s o m e n t e p a r a elle e m q u a n t o a m b o s viverdes?
215

— Quero, disse a linda senhora.


Houve a cerimonia do annel, emquanto os a s s i s t e n t e s
abanavam-se. O ministro t o m o u - o , deu-o ao n o i v o , que o
enfiou no quarto dedo da m ã o esquerda da noiva, repe-
tindo as palavras do pastor :
— Com este a n n e l eu m e caso c o m t i g o e d o t o - t e d e
t o d o s os m e u s bens t e r r e s t r e s : e m n o m e do Pai, do Filho
e do Espirito Santo, Amen !
— Oremos! Pai nosso que estás no céo... Era u m
Padre-nosso... D e p o i s , j u n t a n d o as m ã o s d o n o i v o , o m i n i s -
tro disse:

— O q u e Deus a j u n t o u n ã o o separe o h o m e m . Visto


como têm consentido unir-se, e têm assim testemu-
nhado diante de Deus e das pessoas aqui presentes, e
portanto t ê m promettido fidellidade um ao o u t r o e a s s i m
d e c l a r a d o , j u n t a n d o as m ã o s , e u os d e c l a r o c a s a d o s n o n o m e
do Pai, do Filho, e do Espirito Santo.
Deus o pai, Deus o filho, Deus o Espirito abençoe,
preserve e guarde-vos; o Senhor misericordiosamente com
o seu f a v o r o l h e p a r a v ó s ; e a s s i m vos e n c h a de todas as
b e n ç ã o e g r a ç a s espirituaes, para que no mundo por vir
t e n h a i s v i d a e t e r n a , admen !
Estava terminada a cerimonia. Houve u m movimento,
c o m o nos templos catholicos, para felicitar o feliz par,
capaz de j u r a r e m t ã o p o u c o t e m p o tantos j u r a m e n t o s de
e t e r n i d a d e . A s s e n h o r a s a f i a v a m u m s o r r i s i n h o e os h o m e n s
iam em fila tocantemente indifferentes.
E d a féerie do templo, por cima d'agua, do mais
lindo t e m p l o evangelista, onde as luzes ardiam por trás
dos vitraes numa comfusa irradiação de cores, começaram
a s a i r os convidados. Carros estacionavam na e s c u r i d ã o
216

d a p r a ç a c o m os p h a r ó e s a c c e s o s , c a r b u n c u l a n d o . . . E u assis-
tira a u m casamento sensacional.
No dia seguinte fui á r e s i d ê n c i a do pastor Camargo.
N o a n n o d e 1739 f a l l a r a m c o m J o h n W e s l e y , e m L o n d r e s ,
o i t o pessoas q u e e s t a v a m c o n v e n c i d a s d o p e c a d o e anciosas
pela redempção. Essas creaturas tementes da ira futura
d e s e j a v a m q u e c o m ellas John gastasse algum tempo em
oração. Wesley marcou um dia na semana e dahi surgiu
a sociedade u n i d a . Aos que desejam entrar para a sociedade
só se e x i g e u m a c o n d i ç ã o : o desejo de f u g i r e m da ira v i n -
doura e de s e r e m salvos d e s e u s peccados.
Muita gente ha no Brasil receiosa da d i t a i r a . A I g r e j a
Methodista, que é u m desdobramento da episcopal, come-
ç o u os seus trabalhos, ha v i n t e e sete a n n o s , no Cattete,
n a casa onde está hoje installada a p e n s ã o A l m e i d a . T i n h a
a p e n a s sete m e m b r o s e o s m i s s i o n á r i o s m a n d a d o - : p e l o board
a m e r i c a n o , os R e v s . Ransom, Cowber, Tarbou Kennedy,
sabiam q u e desses sete j á q u a t r o eram methodistas nos
Estados U n i d o s . Hoje a Igreja conta cinco m i l membros,
t o d o s os annos o n u m e r o augmenta, as i g r e j a s surgem.
fundam-se collegios e as missões levam aos recessos d o
paiz, perseguidas, corridas á pedra, a p a l a v r a de C h r i s t o .
S ó o t e m p l o da p r a ç a J o s é de A l e n c a r c u s t o u 107 c o n t o s ; h a
missões e igrejasem Petropolis,naParahyba, em S.Paulo, em
ltapecerica, S. Roque, Piracicaba, Capivarv, Taubaté,
C u n h a , A m p a r o ; t o d o o E s t a d o de Minas e o Rio Grande
e s t ã o cheios de methodistas, e os missionários chegaram
até Cruz Alta e Forqueta, no desejo tenaz de prolongar
a fé.

Os m e t h o d i s t a s t ê m u m g r a n d e d i s p e n d i o annual. No
R i o c o n t r i b u e m p a r a as d e s p e s a s d o p a s t o r e m c a r ç o . pres-
217

bytero-presidente, bispos, missões domesticas, missões


estrangeiras, educação pensionados, Sociedade Biblica
A m e r i c a n a , pobres, actas, c o n s t r u c ç õ e s , casa publicadora,
ligas E p w o r t h , escolas dominicaes, sociedade auxiliadora
de s e n h o r a s , de m o d o que, sendo a m é d i a de cada contri-
buinte de v i n t e e nove m i l réis, a despesa g e r a l eleva-se
a n n u a l m e n t e a q u a n t i a s u p e r i o r a vinte contos. H a c i n c o e n t a
e seis s o c i e d a d e s e d e z e s e i s casas d e c u l t o , c u j o v a l o r é de
tresentos e dezenovecontos, oito r e s i d ê n c i a s e nove collegios,
e o v a l o r desses é d e q u a t r o c e n t o s e s e s s e n t a c o n t o s .
Quando cheguei á residência de Jovelino Camargo,
ordenado presbytero ha dous annos, estava edificado da
situação financeira da i g r e j a , dessa excellente situação.
Camargo é paulista, simples e a m á v e l . Recebeu-me no seu
g a b i n e t e d e t r a b a l h o , d o n d e se d e s c o r t i n a todo u m trecho
bello da praia de B o t a f o g o .
— Ha quanto tempo está aqui ?
— H a d o u s a n n o s ; os p r é g a d o r e s m e t h o d i s t a s n ã o l e v a m
m a i s de q u a t r o annos e m cada i g r e j a .
— Q u a e s s ã o os p r é g a d o r e s a c t u a l m e n t e n o R i o ?
— Revd. Parker, da Igreja E v a n g é l i c a ; Guilherme da
Costa, que préga em Villa Isabel e n o Jardim Botânico,
e eu.
Os methodistas têm uma grande quantidade de
m i n i s t r o s e de ofBciass de i g r e j a , bispos, presbyteros, pré-
gadores e m cargo e em circuito, diaconos itinerantes, pres-
byteroa itinerantes, prégadores supra-numerarios, locaes,
exhortadores, economos, depositários...
— Para cada districto; na cidade propriamente ha
a p e n a s os p r é g a d o r e s l o c a e s e os e c o n o m o s q u e tratam das
questões financeiras, u m a junta de sete membros, que.
218

a c t u a l m e n t e é c o m p o s t a dos Srs. Joaquim Dias, J o ã o M e -


d e i r o s , M a n u e l Esteves de A l m e i d a , J o s é P i n t o de Castro,
Antônio Joaquim e Elesbão Sampaio.
— H a vários jornaes methodistas ?
— A Revista da Escola Dominical, e m S. P a u l o ; O Expo-
sitor Christão, órgão da c o n f e r ê n c i a annual brasileira, d i r i -
g i d o pelos Srs. K e n n e d y e G u i l h e r m e da Costa ; O Juvenil,
O Testemunho. C o m o as outras igrejas evangélicas, a Me-
t h o d i s t a t e m sociedades internas que a p r o p a g a m ; a Socie-
d a d e M i s s i o n á r i a das S e n h o r a s n o E s t r a n g e i r o , a Sociedade
d e M i s s õ e s D o m e s t i c a s das Senhoras...
— A liga E p w o r t h . . .
— A liga E p w o r t h é u m m e i o de g r a ç a como o culto, a
o r a ç ã o , as e s c o l a s d o m i n i c a e s , as festas do amor. Temos
34 l i g a s E p w o r t h . A s l i g a s o r g a n i s a m - s e e m nossas c o n g r e -
g a ç õ e s para a p r o m o ç ã o da piedade e lealdade á nossaigreja
e n t r e a m o c i d a d e , p a r a a sua i n s t r u c ç ã o n a B i b l i a , na l i t t e -
r a t u r a c h r i s t ã , no trabalho m i s s i o n á r i o da igreja.
A j u n t a c o m p õ e - s e de u m b i s p o , seis p r é g a d o r e s itine-
r a n t e s e seis l e i g o s , s e n d o t o d o s e l e i t o s d e q u a t r o e m q u a t r o
a n n o s pela c o n f e r ê n c i a g e r a l , sob a n o m e a ç ã o d a commissão
p e r m a n e n t e * das ligas E p w o r t h . As ligas locaes e s t ã o sob a
d i r e c ç ã o do pastor eda conferência trimensal.
— Mas o m e i o da p r o p a g a n d a r
— E' quasi todo litterario, a liga é p r o p r i a m e n t e a dif-
f u s ã o d a litteratura evangélica.
— O mais admirável entre os m e t h o d i s t a s é o machi-
n i s m o , o f u n c c i o n a m e n t o da sua i g r e j a . . .
— Que é governada por c o n f e r ê n c i a s , jpode-se dizer.
Ha c o n f e r ê n c i a s da igreja, mensaes, trimensaes, districtaes,
annuaes e geraes de quatro em quatro annos.
219

Nessa o c c a s i ã o , J o v e l i n o C a m a r g o otfereceu-me café, e


sorvendo o nectar precioso, eu indaguei :

— M u i t o s casamentos na capella do Cattete ?


— A l g u n s . P a r a esses a c t o s os p a s t o r e s p r o c u r a m s e m -
p r e os t e m p l o s m a i s b e l i o s .
— H a m u i t a g e n t e q u e a c r e d i t a o vosso c a s a m e n t o u m a
v á l v u l a q u e a nossa lei n ã o p e r m i t t e . . .

— Mas é absolutamente falso, é u m a calumnia formi-


d á v e l . Os evangelistas r e s p e i t a m antes de t u d o a lei d o paiz
e m q u e e s t ã o . A t o t a l i d a d e dos nossos pastores n ã o casam
sem ver antes a c e r t i d ã o do acto c i v i l . A h ! meu caro, a
c a l u m n i a t e m c o r r i d o , os p e d i d o s são freqüentes aos m i -
nistros evangélicos para a realisação d o casamento de pes-
soas d i v o r c i a d a s , m a s n ó s n o s f u r t a m o s s e m p r e e a i n d a e s t e
mez C. Tacker, Álvaro dos Reis, A n t ô n i o M a r q u e s e F r a n -
klin do Nascimento fizeram p u b l i c o pelos jornaes que n ã o
p o d i a m l a n ç a r a b e n ç ã o r e l i g i o s a sobre nenhum casal q u e
n ã o tenha antes c o n t r a h i d o matrimônio.

Os m e u s c o m p a n h e i r o s K e n n e d y e G u i l h e r m e da Costa
c o m m e n t a r a m esse m a n i f e s t o q u e o m o m e n t o exigia. N ó s
t e m o s u m a l e i q u e n o s i n h i b e esse c r i m e . Q t f e r v e r ?
E r g u e u - s e , f o i cá e s t a n t e , a b r i u u m p e q u e n o l i v r o de ca-
pa p r e t a .
— E s t a é a nossa d i s c i p l i n a , leia.
Ambos curvámos a c a b e ç a , p r o c u r a n d o os c a r a c t e r e s á
luz fugace do anoitecer e ambos na m e s m a pagina lemos :
— « O s m i n i s t r o s de nossa i g r e j a s e r ã o p r o h i b i d o s de celebra-
r e m os r i t o s d o m a t r i m ô n i o e n t r e pessoas d i v o r c i a d a s , s a l v o
o caso d e pessoas i n n o c e n t e s , q u e t e m s i d o d i v o r c i a d a s pela
ú n i c a cousa de q u e falia a E s c r i p t u r a . . . »
220

Houve um longo silencio. As sombras da noite entravam


pelas j â n e i l a s .
— A causa ú n i c a de q u e falia a B i b l i a . . .
— E ' preciso afinal comprehender que n e m todas as
igrejas denominadas christãs e protesr.tes pertencem á A l -
liança Evangélica Brasileira e que n ó s n ã o podemos e m no-
me de C h r i s t o p r e g a r , por assim dizer, a dissolução m o -
ral .
Ergui-me.
— A p e z a r d a s i n j u s t i ç a s dos h o m e n s , a Igreja M e t h o d i s t a
caminha.
— E os c a s a m e n t o s h o n e s t o s s ã o e m g r a n d e n u m e r o .
Jovelino C a m a r g o desceu c o m m i g o a praia de B o t a f o g o .
V i n h a , como sempre, calmo, intelligente e simples.
— Onde vai ?
— A u m a festa de a m o r .
E s t a q u e i . M a s , S e n h o r D e u s , os m e t h o d i s t a s d a v a m - m e
u m a excessiva q u o t a de a m o r . N o d i a a n t e r i o r u m c a s a m e n -
to, m i n u t o s antes o casamento de n o v o , e a g o r a a!li, na s o m -
bra da noite, o pastor que me dizia, como u m velho noceur,
o l o g a r perigoso para o n d e ia !
— A u m a festa de a m o r ? i n t e r r o g u e i , f e r o z .
— S i m , é u m a festa nossa, t r i m e n s a l , fez a s o r r i r o p u r o
moço. V o u fazer o r a ç ã o e p a r t i c i p a r d o p ã o e da agua em
signal de a m o r f r a t e r n a l .
E simplesmente Jovelino Camargo desappareceu na
sombra, emquanto e u , o l h a n d o o c é o , o n d e as e s t r e l l a s p a l -
p i t a v a m , r e n d i a g r a ç a s a Deus p o r haver a i n d a neste t o r -
m e n t o s o m u n d o q u e m , p o r seu a m o r , a m e , r e s p e i t e e seja
honesto.
O s B a p t i s t a s
E disse o e u n i i e h o : E i s a q u i está a agua. Que emba-
r a ç o ha para que e u n ã o seja b a p t i s a d o ? E disse F e l i p p e :
Se c r ê s d e t o d o o t e u c o r a ç ã o , b e m p ó d e s . . . E d e s c e r a m os
dous, Felippe e o eunucho. á agua, e o baptisou . . .
Estava n a r u a de S a n t . A n n a , n o t e m p l o b a p t i s t a , severo
e r i g i d o nas suas l i n h a s gothicas. E r a de n o i t e . A' porta
u m c e r t o m o v i m e n t o , caras curiosas, gente a sahir, gente a
entrar, è u m velho blandicioso d i s t r i b u i n d o folhetos.
— Os baptistas ?
— Exactamante.
P é g o d e u m f o l h e t o , e m q u a n t o lá de d e n t r o p a r t e u m coro
louvando a gloria de Deus. Trata dó purgatório perante
as E s c r i p t u r a s S a g r a d a s e e s t á n a 2 a
edição. L e i o na p r i -
m e i r a p a g i n a : « E n t r e as d i f f e r e n t e s r e l i g i õ e s e x i s t e n t e s d i s -
t i n g u e m - s e a r e l i g i ã o d e Jesus, q u e nos o f f e r e c e o c é o , e a re-
ligião do Papa, que aponta o p u r g a t ó r i o . O Papa p r é g a o
p u r g a t ó r i o p o r q u e a m a o nosso d i n h e i r o . . . » C o m u m p o u c o
m a i s t e r í a m o s a Velhice do Padre Eterno !
A I g r e j a B a p t i s t a é, e n t r e t a n t o , u m dos ramos e m que
se d e v i d e o q u e o v u l g o geralmente chama protestantismo,
é uma das muitas divergentes interpretações dos Evan-
gelhos,
H a seis s e c u l o ã c h a m a v a - s e anabaptista.
224

Seita a n t i q u i s s i m a , c o m grandes soluções de continui-


d a d e , d e s a p p a r e c e n d o m u i t a vez n a h i s t o r i a s o b o martyrio
das p e r s e g u i ç õ e s , s e m d e i x a r d o c u m e n t o s , n u n c a de todo
se p e r d e u .
H o j e , c o m o as o u t r a s s e i t a s q u e a s s e g u r a m ser as únicas
e v e r d a d e i r a s i n t e r p r e t e s d a B i b l i a , o s e u f ó c o p r i n c i p a l é os
Estados Unidos, mas o m u n d o e s t á c h e i o de a n a b a p t i s t a s e
um magnífico serviço de propaganda na China, no J a p ã o ,
na Á f r i c a , tia Itália, no M é x i c o e no Brasil a u g m e n t a diaria-
m e n t e o n u m e r o de adeptos.
O m o v i m e n t o das m i s s õ e s é t ã o i n t e n s o q u e a t é t e m u m
j o r n a l i n f o r m a t i v o : The Yorking Mhsion Journal.
Isso n ã o i m p e d e q u e a c o n t r o v é r s i a os s e l e c c i o n e e q u e
a c r i t i c a os d i v i d a . N o s E s t a d o s U n i d o s a i g r e j a e s t á dividida
e m baptistas c h r i s t ã o s , novos baptistas, baptistas rigorosos,
baptistas separados, baptistas liberaes, baptistas livres, ana-
baptistas, baptistas crianças, baptistas geraes, baptistas
particulares, baptistas escossezes, baptistas nova commu-
nhão geral, baptistas negros, baptistas d o b r a ç o de ferro,
baptistas do s é t i m o dia e baptistas pacíficos.
Aos baptistas d a q u i , pacíficos, c h r i s t ã o s e m i s t u r a d o s .
bem se p ô d e c h a m a r : — d o b r a ç o d e f e r r o , d e s d e q u e b r a ç o
signifique a d e c i s ã o e a f o r ç a c o m q u e a r r e d a m as n u v e n s
da L u z . A historia da i g r e j a d o R i o c o m e ç ã e m 1884 c o m
a chegada d o S r . e da S r a . B a g b y .
O Sr. Bagby foi o patriarcha. Q u a t r o dias depois de
c h e g a r , o r g a n i s o u a i g r e j a n a p r ó p r i a casa, c o m q u a t r o o v e -
lhas, isto é, com quatro cidadãos. U m anrtò depois m u -
dava-se p a r a a r u a do Senado já c o m o u t r o s recursos, pas-
sava a p r e g a r na r u a F r e i Caneca, n a r u a B a r ã o de C a p a n e m a ,
quasi sem abandonar o rebanho, durante annos a fio, e,
225

passado o d é c i m o primeiro, installava-se n u m t e m p l o p r ó -


prio, edifício que custou cincoenta e u m contos.
Era nesse t e m p l o q u e e u e s t a v a , d e f r o n t e d a igreja da
S e n h o r a S a n f A n n a , l e n d o t r e c h o s d o t a l 'Purgatório, em que
uma i g r e j a solapa a o u t r a p o r a m o r do m e s m o C h r i s t o m i -
sericordioso. O velho blandicioso, p o r é m , apertando u m
m a ç o de Purgatórios debaixo do braço, empurrava-me com
u m ar de cambista depois do 2 0
acto.
— Entre, entre, o senhor vai p » r d e r !
F o i e n t ã o q u e e u e n t r e i . T o d o s os b i c o s d e g a z s i l v a v a m ,
enchendo de luz amarella as paredes nuas. N o f u n d o , e m
l e t t r a s largas, q u e p a r e c i a m alongar-se na cal da parede, esta
i n s c r i p ç ã o solemne n e g r e j a v a : — « Deus a m o u o m u n d o de tal
m a n e i r a q u e d e u a seu filho u n i g e n i t o para que todo aquelle
que nelle crer n ã o p e r e ç a mas tenha vida e t e r n a . » Na cathe-
dra n i n g u é m . Do lado esquerdo, o ó r g ã o e diante delle u m a
senhora c o m a physionomia paciente e u m cavalheiro irre-
prehensivel, sem u m a ruga no f a t o , sem u m cabello f ó r a da
pasta severa. Pelos bancos u m a sociedade complexa, uma
p a r c e l l a d e m u l t i d ã o ; i s t o é , o r e s u m o d e t o d a s as classes. H a
senhoras que parecem da v i s i n h a n ç a , em cabello e de ma-
ttnée, crianças trefegas, burguezes convictos, sérios e
limpos,nas primeiras filas,operários, malandrinsde tamancos
de bico r e v i r a d o , c o m o cabello empastado e m cheiros sus-
peitos, soldados de policia, um b o m b e i i o de cavaignac,
velhas pretas a d o r m i r , negros attentos, u m a d a m a de c h a p é o
c o m u m a capa crispante de lentejoulas, cabeças sem ex-
p r e s s ã o , e p a r a o fim, n a p o r t a , g e n t e q u e s u b i t a m e n t e entra,
o l h a e sai s e m c o m p r e h e n d e r . O templo está cheio.
O pastor parece concentrado, olhando o rebanho de
o v e l h a s , a m a i o r p a r t e i g n o r a n t e d o a p r i s c o . Nessa n o i t e n ã o
226

se p e r d e e m e r u d i ç õ e s t h e o l o g i c a s , nessa n o i t e c h a m a c o m
o órgão do Senhor os c a r n e i r o s s e m f é . E é u m a cousa que
se n o t a l o g o . A p r o p a g a n d a , a a t t r a c ç ã o d a I g r e j a é a m u s i c a .
Ganha-se mais fieis e n t o a n d o u m h y m n o que tazendo um
sábio discurso cheio de virtudes. O Sr. Soren, o pastor
calmo,irreprehensivel,parece comprehender osqueofrequen-
tam, s e m esquecer sua m i s s ã o e v a n g é l i c a . E ' p o s i t i v a m e n t e o
professor. S e m o p e r f u m e dos h y m n a r i o s e s e m aquellas l e t -
tras negras na parede, a gente e s t á como se e s t i v e s s e numa
aula de canto d o I n s t i t u t o de Musica, o u v i n d o o ensaio de
u m c ô r o p a r a q u a l q u e r creche mundana. . .
— V a m o s mais u m a vez, d i z elle c o m u m leve assento i n -
glez, Este h y m n o é m u i t o bonito! Cantado por duzentas
vozes faz u m e f f e i t o ! S a b e m a lettra? V a m o s . . . A d a m a , c o m
u m ar de bondade i n d i f f e r e n t e , c o r r e o teclado, acordando
no ó r g ã o g r a v e s e p r o f u n d o s sons q u e se p e r d e m n o ar va-
garosamente. Depois, receiosa,acompanhando cada aecorde,
a sua v o z , s e g u i d a d a d o p a s t o r , c o m e ç a :

Oh ! Se-e-e-nhor!...

Muitos lêem os versos, acompanhando a voz do pastor,


outros, nervosos, p r e c i p i t a m o a n d a m e n t o . Mas naquelle en-
saio, l o g o m e p r e n d e a a t t e n ç ã o u m p r e t o de casaco de b r i m
sem c o l l a r i n h o . O ó r g ã o d o m i n a - o c o m o u m s o m de v i o l i -
no d o m i n a os c r o c o d i l o s . N o s seus d e n t e s b r a n c o s , nos
olhos brancos, de u m b r a n c o a l b u m i n o s o , c o r r e m risos de
prazer. Sentado na ponta do banco, os l o n g o s b r a ç o s es-
c o r r e n d o e n t r e os j o e l h o s , a c a b e ç a m a r c a n d o o c o m p a s s o ,
e l l e s e g u e , c o m a s m a n d i b u l a s a b e r t a s , os s o n s e as v o z e s q u e
os a c o m p a n h a m . Depois, c o m o o Sr. Soren diz :
227

— Vamos repetir. J á se a d i a n t a r a m . U m , d o u s , t r e s !

Oh ! Se-e-e-nhor!. ..

o negro também, abrindo a fauce n u m repuxamento da


face i n t e i r a , c a n t o u ;

Oh ! Se-e-e-nhor!

E todo o seu ser irradiou no contentamento de ter de-


corado o verso b o n i t o .
• E u c u r v e i - m e p a r a o v e l h o , q u e passava c o m o u t r o m a ç o
d e Purgatórios debaixo do braço:
— V e m sempre aqui, aquelle?
— V e m , sim, é fiel. E u é que n ã o sou. . .
E confidencialmente, desappareceu.
E n t r e t a n t o o h y m n o acabara b e m . Quasi que houve pal-
mas. Estavam contentes.
O Sr. Soren consultou o relógio e aproveitou a boa
v o n t a d e dos i r m ã o s .
— Vamos, mais u m h y m n o . E' lindo! Estudemos só a
primeira parte. De Deus a t é S a l v a d o r .
A organista tocou primeiro a musica p a r a q u e os ba-
ptistas aprendessem o tom'e todos c o m e ç a r a m o novo h y m n o ,
as c r i a n ç a s , as s e n h o r a s , os h o m e n s g r a v e s , e m q u a n t o o ne-
g r o a b r i a as m a n d i b u l a s e u m a v e l h a f e c h a v a os o l h o s e n l e -
vados e somnclentos. Q u a n d o as v o z e s pararam num ul-
t i m o accorde, o Sr. Soren disse algumas palavras sobre a
g l o r i a d o S e n h o r e e s t e n d e u as mãos.
A m e n ! Estava acabado o estudo. A l g u n s crentes de-
moraram-se ainda, o negro sahiu dando grandes peruadas,
outros estremunhavam. M a n d e i e n t ã o o m e u c a r t ã o ao Sr.
S o r e n , q u e se a p o i a v a ao ó r g ã o r o d e a d o d e d a m a s v e n e r a v e i s .
228
**************

Esse h o m e m é a m a b i l i s s i m o . N a s c i d o n o R i o , de uma
f a m i l i a [ f r a n c e z a q u e f u g i a á s p e r s e g u i ç õ e s religiosas da F r a n ç a ,
e s t u d o u nos E s t a d o s U n i d o s e é b a c h a r e l . N o seu gabinete,
ao f u n d o , l i m p o e b r u n i d o , o n d e se m o v e c o m p a u s a , t u d o
r e s p i r a asseio e a u s t e r i d a d e . Soren mostra a bibliotheca,
encadernações americanas de p e r c a l i n e e c o u r o , bate nos
l i v r o s r e c o r d a n d o as d i f f i c u l d a d e s d o e s t u d o , a a r i d e z , o q u e
certos auctores custavam.
— P a r a t u d o isso h a a c o m p e n s a ç ã o d a v e r d a d e q u e c o n -
forta, diz.
A v e r d a d e d e v e c o n f o r t a r c o m o u m beef. Guardo, porém,
essa c o m p a r a ç ã o .
Os b a p t i s t a s , firmados na Bíblia, assim como p r a t i c a m
o baptismo por i m m e r s ã o , n ã o c o m e m carne c o m sangue...
L i m i t o - m e a dizer.
— A sua crença?
—Mas n ó s cremos que a Biblia f o i escripta por homens,
d i v i n a m e n t e inspirados, que t ê m Deus c o m o a u c t o r e salva-
ção como fim; c r e m o s q u e a s a l v a ç ã o dos peccados é t o t a l -
m e n t e d e g r a ç a p e l o s o f f i c i o s m e d i a n e i r o s do- filho d e D e u s ;
cremos que a grande b e n ç ã o do E v a n g e l h o q u e C h r i s t o as-
s e g u r o u é a j u s t i f i c a ç ã o ; e cremos na p e r s e v e r a n ç a , no E v a n -
gelho, no p r o p ó s i t o de g r a ç a , na s a t i s f a ç ã o que começa na
r e g e n e r a ç ã o e é sustentada n o c o r a ç ã o dos crentes.
O Sr. Soren p á r a u m instante.
— C r e m o s t a m b é m , c o n t i n u o u , q u e o g o v e r n o c i v i l é de
a u c t o r i d a d e d i v i n a , para o interesse e boa o r d e m d a socie-
dade e que devemos o r a r pelos magistrados...
— E c r ê e m n o fim d o mundo?
— . . . Q u e se a p p r o x i m a .
Emquanto, porém, o fim n ã o a p p a r e c e , a propaganda
229

baptista é feita c o m calor no Brasil: e m S. P a u l o , n a B a h i a ,


em P e r n a m b u c o , n o P a r á , n o A m a z o n a s . N o R i o e x i s t e m os
Srs. E n t z n i m g e r e esposa, D e t e r e esposa e o S r . Soren,
c r e a t u r a s d e p u r e z a e x e m p l a r . N a c i d a d e ha q u a t r o c o n g r e -
g a ç õ e s . Os pastores, dos quaes f o i sempre o principal o
Sr. Bagby, que se r e t j r o u em 1900, t ê m p r e g a d o n a rua
D . F e l i c i a n a , n o Estacio de S á , n o M a d u r e i r a , n o m o r r o d o
L i v r a m e n t o , e m S. C h r i s t o v ã o , na ladeira do Barroso, e m
Paula Mattos, e m Santa Thereza, na Piedade, no E n g e n h o
de D e n t r o , na r u a B a r ã o de S. Felix.
O Evangelho caminha.
— E s ã o g r a n d e s os p r o g r e s s o s ?
— Ricamente abençoado o trabalho. Pelos dados que
t e n h o , r e a l i s a r a m - s e e m 1903 c e r c a d e m i l b a p t i s m o s , f o r a m
organisadas dez igrejas novas, edificaram-se tres templos
novos e a c o n t r i b u i ç ã o das i g r e j a s f o i d e 5o:ooo$ooo. Ha
d o u s a n n o s q u e e s t a m o s n o B r a s i l . Os b a p t i s t a s augmenta-
r a m d e $00 a 5 . 0 0 0 , d e 5 i g r e j a s a 6 0 . A n o s s a c a s a p u b l i c a -
d o r a j á e d i t o u , a l é m d o Jornal Baptista e d o Infantil, mais de
u m m i l h ã o de paginas e m f o l h e t o s .
— Qual a publicação que t e m agradado mais ?
— O Cantor Christão !
A musica, o som que convence, a crença em har-
monia !
Os gregos admiráveis j á t i n h a m n o seu divino saber
descoberto a propriedade subtil, e na Lacedemonia os ra-
p a z e s r e c e b i a m o a m o r d a p á t r i a ao s o m d a s f l a u t a s , e m o d e s
puras ! J á nos iamos despedir. O pastor deu-nos o seu
jornal, c o m u m a r t i g o de D . A r c h i m i n a B a r r e t o , u m a eru-
dita senhora.
— S^omos t o d o s i g u a e s perante Deus. No templo pode
230

fallar o mais ignorante como o mais sábio. Deus deseja a


v i r t u d e a n t e s d e t u d o . D . A r c h i m i n a a l l i a as v i r t u d e s a u m
grande saber.
— E, a p r o p ó s i t o , aquella senhora organista é sua es-
posa ?
— N ã o , e u a i n d a v o u casar nos Estados U n i d o s .
E eu sahi encantado c o m a clara i n t e l l i g e n c i a desse
pastor, que espera c a l m o e v i r t u o s o o f i m d o mundo, em-
quanto, á porta, o velho blandicioso distribue Purgatórios
c o n t r a os p a d r e s e as m i s s a s .
A . A . C . 3 V L
-— O l h e ã s t e r r a s o n d e se p r o p a g a o E v a n g e l h o .

Desde um ao outro polo,


Da C h i n a ao Panamá,
Do a f r i c a n o solo
Ao alto Canadá

a A . C. M . c o n q u i s t a , suavisa, prestigia e guia...


N ó s a c a b á v a m o s cie j a n t a r e o m e ü l l l t l s t r e amigo, com
u m copo d'agua p u r a ha m ã o , d í z l a - m e cousas exceílerites.
— O nosso m o v i m e n t o , c o n t i n u o u , c o n t a e n t r e os seüs
amigos Eduardo da Inglaterra, o príncipe Bernadotti da
S u é c i a , o presidente dos Estados Unidos e Guilherme I I . Na
F r a n ç a , m i n i s t r o s de Estado acceitam Cargos d e adminis-
t r a ç ã o d a A . C . M . ; n a I n g l a t e r r a os seus e d i f í c i o s e r g u e m - s e
e m t o d a s as c i d a d e s c o m o os grandes lares da juventude
honesta, e p o r t o d a a p a r t e e l l a r e f o r m a os c o s t u m e s e p u r i -
fica as almas dos moços, tornando-os symetricos e bohs.
Voce n ã o t e r á u m a i d é a integral do m o v i m e n t o das citico
igrejas e v a n g é l i c a s d o R i o sem i r apreciar de p e r t o o cápitel
m a g n í f i c o dessa c o l ü m n a de b r a n c o m á r m o r e . A A . C. M . é
o r e m a t e a d m i r á v e l d a nossa o b r a de p r o p a g a n d a .
F l h q u e i os c o t O v e í l o s n a m e s a c o m c u r i o s i d a d e .
i* M á s ã ò f i g é m da* A . G. M i tio m ü h d d ? «
' ;
234

— S h u m a n , secretario geral e m Buenos Aires, disse-nos


n a c o n v e n ç ã o de 1903 essa o r i g e m . E m 1836 a p p a r e c e u na
cidade de B r i d g e w a t e r , na I n g l a t e r r a , u m rapazola de 15
annos, chamado George W i l l i a m s .Mandava-00 pai do campo
para aprender u m officio. George v i u que os seus sessenta
c o m p a n h e i r o s e r a m de m o r a l d u v i d o s a e s e m c r e n ç a e que
de um. m e i o t ã o g r a n d e s ó dous o u tres o r a v a m ao Redem-
p t o r . O r o u t a m b é m n o seu m i s e r o q u a r t o , por trás da offi-
c i n a , d u r a n t e u m a h o r a . A p r i n c i p i o f a z i a s ó esses e x e r c í c i o s ,
depois c o n v i d o u os companheiros, e cinco annos depois
estava e m L o n d r e s . L o n d r e s ! a c i d a d e mais populosa do
mundo !
C o n h e c e v o c ê os p e r i g o s d a s c i d a d e s , o d e s v a r i o , a l u x u -
ria, a p e r d i ç ã o , o jogo, a ambição desmedida dos grandes
c e n t r o s ? O n d e se c o n g r e g a m m a i s os homens, ahi entra
com m a i s certeza Satanaz, a h i grassa m a i s t e r r í v e l a epide-
m i a da p e r d i ç ã o . Williams na fabrica e m que se empregou
n ã o e n c o n t r o u u m só c h r i s t ã o . A o cabo de u m mez, p o r é m ,
a p p a r e c e u u m n o v o e m p r e g a d o , C h r i s t o f e r S m i t h , e os d o u s ,
ligados pela amisade, resolveram a c o n v e r s ã o dos compa-
nheiros, convidando-os para estudar a Biblia e orar. Em
p o u c o t e m p o as r e u n i õ e s c r e s c e r a m , e a 10 d e j u n h o d e 1844
r e p r e s e n t a n t e s dessas r e u n i õ e s e f f e c t u a r a m a o r g a n i s a ç ã o da
primeira Associação Christã de Moços. F o i seu fundador
u m a c r i a n ç a d e 20annos, m a n d a d a pelo S a l v a d o r a u m meio
c h e i o de vicios e de tentações para lhe dar o balsamo da
honestidade.
A pequena a s s o c i a ç ã o estendeu-se a t o d o s os p a i z e s do
m u n d o . H o j e h a m a i s d e 1.500 n a I n g l a t e r r a , d e i85iatéagora
1.600 f u n d a r a m - s e s ó n o s E s t a d o s U n i d o s . A ' p r i m e i r a con-
v e n ç ã o i n t e r n a c i o n a l c o m p a r e c e r a m 99 d e l e g a d o s d e 38 asso-
235

c i a ç õ e s e m s e t e p a i z e s ; e m 1902 e m Christiania assistiram


2 . 5 0 0 d e l e g a d o s d e 31 p a i z e s . H a 6 0 a n n o s a A . C . M . i n i c i o u
os seus t r a b a l h o s ; hoje só na A m e r i c a do N o r t e ha mais de
2 5 . 0 0 0 m o ç o s e s t u d a n d o a B í b l i a n a s classes d a s associações
e n u m s ó a n n o 3.560 p r o f e s s a r a m a sua fé convertidos na
A s s o c i a ç ã o e 9 . 6 0 0 o u t r o s se d e d i c a r a m a o s e r v i ç o d o S e n h o r .
— As A . C M . n ã o a d m i t t e m apenas crentes professos ?
— N ã o , a A s s o c i a ç ã o de L o n d r e s resolveu, em 1848, r e -
c e b e r c o m o s ó c i o s a u x i l i a r e s os m o ç o s d e b o a m o r a l . Actu-
a l m e n t e metade dos nossos s ó c i o s , cerca de 250.000, per-
t e n c e a essa classe. M a s , m e u c a r o , é e s t a u m a base l u m i -
n o s a d a p r o p a g a n d a , c h a m a r a s i os o l h o s d o m u n d o , m o s t r a r
a pureza num século de impurezas, tolerar e purificar.
E n t r e os e s t u d a n t e s d a s escolas, n a p r o f i s s ã o borboleteante
d o j o r n a l i s m o , nas r a ç a s m a i s estranhas, entre chins e ca-
b o c l o s s e l v a g e n s , n a classe u n i v e r s a l m e n t e c o n h e c i d a pela
sua i n t e m p e r a n ç a , nos e m p r e g a d o s das estradas de f e r r o d a
America, a propaganda alça por esse m e i o a branca flam-
m u l a da Associação.
O m e u illustre a m i g o calou-se. N o restaurant o borbo-
r i n h o c r e s c i a , s e n h o r a s c o m toilettes caras, h o m e n s contentes,
carvavam-se no prazer de c o m e r . Havia risos, criados pas-
s a v a m c o m os p r a t o s d e c h r i s t o f l e b r i l h a n d o á l u z d o s f ó c o s ,
e m b a l d e s d e m e t a l as g a r r a f a s g e l a v a m e d a s j a r r a s d e c r y s -
t a l as f l o r e s d e p a n n o p e n d i a m d e s o l a d a s a o p e s o d o p ó e d o
t e m p o . Todos alli conversavam de interesse, de ambição,
de a m o r , de si m e s m o . . . Senti-me superior, mandei vir
u m copo d'agua, bebi-o c o m pureza. Naquella grande feira
n ó s c o n v e r s á v a m o s da alma e do b e m universal!
— E a A . C. M . do Rio?
— A nossa A s s o c i a ç ã o t e m t a m b é m a sua e v o l u ç ã o . Os
236

p r i m e i r o s m o ç o s c h r i s t ã o s reuniram-se para ouvir S i m o n t o n


e K a l l e y h a t r a v e s s a das P a r t i l h a s . Foi ahi que germinou a
idcadeuma sociedade e v a n g é l i c a de m o ç o s . E m j u n h o cie
1866 c e r c a d e v i n t e c r e n t e s o r g a n i s a r a m a S o c i e d a d e Evan-
gélica A m o r á Verdade, que sé manteve durante quatro
annos.
Em 1871 a p p ã r e c e u u m a o u t r a s o c i e d a d e c o m fins idên-
ticos, f u n ç c i o n a n d o na travessa das Partilhas e na travessa
da B a r r e i r a . Esta chamava-se o G r ê m i o E v a n g é l i c o , tinha
u m a Officífiá de i m p r e s s ã o da q u a l e r a m t v p o g r a p h o s e i m -
p r e s s o r e s os p r ó p r i o s soei | , d i r i g i d o s p o r A n t ô n i o T r a j a n o .
A z a r o de O l i v e i r a . C a r v a l h o B r a g a e R i c a r d o H o l d e n .
M y r o n C l a r k , q u e f e z o h i s t ó r i c o desse m o v i m e n t o , c o n t a
ainda mais, ã n t e s da actual A s s o c i a ç ã o , a Boa Xova, dirigida
por A . Seabra, M . Diet e A n t ô n i o Meirelles, em 1^75; 0
Grêmio Evangélico Fluminense, o r g a n i s a d o p o r A n t ô n i o de
Oliveira, Severo de Carvalho, N o é Rocha e B e n j a m i n da
S i l v a , n a r u a cie S . P e d r o 97, c o m o ( i m d e m a n t e r u m jornal
d e p r o p a g a n d a , u r n a classe d e musica, bibliotheea, sessões
litterarias; a Associação Christã dos Moços, fundada na
m e s m a r u a de S. Pedro c o m u m a d i r e c i o n a c o m p o s t a pelos
Srs. J o ã o dos Santos, A n t ô n i o A n d r a d e . J o s é A n d r a d e . José
Luiz Fernandes Braga e S a l o m ã o G u i s b u r g o , que publica-
r a m o Bíblia, primeiro jornal evangélico a oecupar-se da
m o c i d a d e n o B r a s i l ; e a S o c i e d a d e E v a n g é l i c a de S. Paulo.
.A A . C. M . do Rio foi f u n d a d a a \\ d e m a i o de iSu^.
V i n t e e d o u s rriÒçÔÉ, r e p r e s e n t a n t e s das igrejas Methodista,
Presbyteriana, f l u m i n e n s e e Baptista. reuniram-se na rua
S e t e d e S e t e m b r o 79 e M y r o n C l a r k e T ü c k e r cxpüzeram o
fim d a r e u n i ã o . Dias depois a p p T o v a v a f n os e s t a t u t o s e e l e -
giam a dírêdòfia: Nicttíáo Úú G ô U t o , Antônio Meirelles,
237

Lüiz de Paula e Silva. M y r o n C l a r k é Irvirie. N à d ê p o s s í v e l


ter feito tanto e m t ã ô pouco tempo! E m 8 de agosto a As-
s o c i a ç ã o já estava installada na rua da Àssembíéa e come-
çava a pôr em áctividade os diversos departamentos cio
trabalho social.
Nem a revolta, nehios bombardêios, nem a agitação
apavorada da cidade conseguiram esfriar o santo enthu-
s i a s m o . Q u a n d o Os t i r b s e r a m m u i t o s , a A s s o c i á ç ã o f e c h a v a
as s u a s salas, p a r á no outro dia abril-ás; as aulas f ú h c c i o -
navam; e no dia r i de outubro, q ü a n d o toda a gente só
í a i l a v a e m t i r o t e i o s , os m o ç o s c h r i s t ã o s iam á Copacabana,
i n i c i a n d o u m d o s seus r a m o s de t r á b a l h o — a e x c u r s ã o s o c i a l .
— C o m o se r e á l i s o u a c o m p r a d o p r é d i o ?
O evangelista l i m p o u o lábio secco.
— E m 1895, o s e c r e t a r i o g e r a l s u g g e r i r a a conveniência
do projecto. A directoria approvou-o; na r e u n i ã o da v i -
gília os Revs. Leonidas da Silva e Domingos Sil-
v e i r a f a l t a r a m , p e d i n d o d o n a t i v o s è* c o m p r o m i s s o s m e n s a e s
para crear-se u n i f u n d o especial, e nesta o c c a s i ã o começa-
ram os t r a b a l h o s d a c o m m i s s ã o dos compromissos. A As-
s o c i á ç ã o t e m t i d o poderosos áuxilios estrangeiros, tem em
F e r n á h d e s Braga, u m a alma pura e nobre, u m grande es-
t e i o , m a s n o fim d ã r e u n i ã o d a coriimissão verificou-se que
a somma t o t a l dos c o m p r o m i s s o s era de 6 5 8 0 0 0 mensaes.
— D e u s cio C é o !
— O p a t r i m ô n i o da A s s o c i á ç ã o eleva-se h o j e a m a i s de
cem contos. Fernandes Braga c o m p r o u o terreno, James
L a w s o n offereceU-se para e m p r e s t a r o d i n h e i r o das obras,
abriu-se urna s u b s c r i p ç â o , B r a g a d e u dez corítos e L a w s o n
dous; a c o m m i s s ã o , composta de Fernandes' Braga Júnior,
Lyaànlás Gérqueirà Leite, Lüiz FéPfiâtidêi fírágã, Domingos
238

de O l i v e i r a e Oscar J o s é de Marcenes, m u l t i p l i c o u - s e . Dous


annos depois inaugurava-se o edifício, a casa dos moços, a
o b r a de Deus, como d i z o R v d m . T r a j a n o . A nossa satisfa-
ç ã o , p o r é m , m e u caro, n ã o v e m apenas da r e a l i s a ç â o desse
tentamen.
A A . G. M . do Rio accendeu nos evangelistas d o B r a s i l
o desejo de a s s o c i a ç õ e s i d ê n t i c a s . E u , s ó , posso c i t a r a A s s o -
c i a ç ã o C h r i s t â de M o ç o s de Bello H o r i z o n t e , a Sociedade de
M o ç o s C h r i s t ã o s de Castro (do P a r a n á ) , a A . C. M . de S o r o -
caba, a A s s o c i a ç ã o E d u c a d o r a da B a h i a , a de T a u b a t é , a L e -
g i ã o d a C r u z , a Milícia C h r i s t â , a A s s o c i a ç ã o de S a n t o André
no Rio Grande, a Associação Christâ dos Estudantes no
Brasil, filiada á F e d e r a ç ã o dos E s t u d a n t e s no U n i v e r s o , de
S. Paulo, a do Natal e a de N o v a F r i b u r g o .
— Dentro e m pouco estaremos como os E s t a d o s Uni-
dos.
— Prouvera a Deus !
Tinhamo-nos erguido.
— O n d e vai ?
— P o r a h i , passear, v e r .
— Pois venha c o m m i g o á A s s o c i a ç ã o , agora. S ã o 7 ho-
r a s , e s t ã o f u n c c i o n a n d o as a u l a s . V e n h a e t e r á u m a i m p r e s -
são do que é o centro do evangelismo no Brasil.
E sahimos pelas r u a s p o u c o illuminadas, em que a
chuva m i ú d a p u n h a u m v é o de nevoas.
A Associação n ã o é n e m u m a igreja n e m u m a sociedade
mundana, embora possua característicos profanos e se-
c u l a r e s : é a casa d o s m o ç o s , o s e g u n d o l a r q u e s u p p r e as n e -
cessidades intellectuaes c o m b i b l i o t h e c a , cursos, aulas, c o n -
ferências ; m a n t é m a sociabilidade da juventude e m salões
de d i v e r s õ e s , desenvolve-lhe o physico c o m gymnasticas, j o -
239

gos a t h l e t i c o s , passeios, pic-nics e, c o n j u n c t a m e n t e , l h e f a z


sentir a necessidade da religião. Ha nessa instituição de
f o n t e i n g l e z a o desejo de u m e q u i l í b r i o , a v o n t a d e de crear
o m o ç o s y m e t r i c o , o d e s e n v o l v i m e n t o h a r m o n i o s o , n u m ser
vivo, da intelligencia, do p h y s i c o , da natureza social e da
alma.
O h o m e m nas g r a n d e s cidades perde-se. A Associação
a m p a r a - o , serve-lhe de escola, de c l u b , de lar, de templo,
dá-lhe b a n h o , c o n v e r s a s m o r a e s , ping-pong, d a n ç a s , aulas
nocturnas, ensina-lhe a Bíblia, põe-lhe á d i s p o s i ç ã o os j o r -
naes d o m u n d o , fal-o assistir a conferências sobre assum-
ptos diversos. O moço deixa o lar p a t e r n o e, emquanto
por sua vez n ã o f ô r m a o u t r o l a r , f i c a nesse ambiente de
honestidade, n ã o só se tornando o typo admirável do
equilíbrio como preservando das avarias e dos s o f f r i m e n -
tos a p r o l e f u t u r a .
A A s s o c i a ç ã o é o c o n f o r t o , a paz e o b r o q u e l d a honesti-
d a d e p o r estes t u r v o s t e m p o s . Tudo quanto ensina é útil,
t u d o q u a n t o diz é honesto, t u d o q u a n t o faz é para o b e m .
A o s u b i r as a l t a s e s c a d a r i a s , recordei a phrase do m e u
amigo. A A s s o c i a ç ã o é o c a p i t e i , é a r a z ã o d e ser d a f u t u r a
propaganda, é o centro do evangelismo, a m a n e i r a efficaz
por que t o d a s as igrejas evangelistas demonstram na sua
perfeita integridade a vida do christão.
Q u a n d o c h e g á m o s l á e m c i m a , f u n c c i o n a v a m as a u l a s :
n a s a l a d e d i v e r s õ e s j o g a v a - s e o crokinole e o carroms ; a um
canto conversava-se. T o d o s estavam b e m dispostos e riam
com prazer. O m e u illustre amigo apresentou-me ao p r e s i -
dente, Braga Júnior, u m moço intelligente, extremamente
m o d e s t o ; ao s e c r e t a r i o , de uma distíncção perfeita ; e os
dous mostraram-me, simples e sem exaggeros, os vastos
240

salões, o de gymnastica, o das c o n f e r ê n c i a s , o de estudos


b í b l i c o s , as a u l a s , a s e c r e t a r i a , a b i b l i o t h e c a .
A g e n t i l e z a p e c u l i a r aos e v a n g e l i s t a s c a p t i v a v a n a q u e l l e
vasto p r é d i o , cheio de v i d a e de m o c i d a d e . Cada phrase do
secretario era u m a n o ç ã o exacta, cada reflexão do presi-
d e n t e t i n h a u m g r a n d e ar de b o n d a d e e de m o d é s t i a . As m o -
bílias e r a m novas e p o r toda a parte os c o n s e l h o s christãos
abundavam.
— N ã o a d m i r e a q u i , disse o m e u a m i g o , s e n ã o a vida
d o c i v i l i s a d o e d o h o n e s t o . V o c ê c o n v e r s o u c o m os p a s t o r e s ,
esteve com os m i s s i o n á r i o s , a s s i s t i u ao c u l t o nas nossas
i g r e j a s , v i u o e s f o r ç o das m i s s õ e s . V e j a a g o r a a p e n a s a v i d a .
Estes que a q u i e s t ã o , m e u a m i g o , livres e s t ã o dos tres h o r -
r e n d o s a n i m a e s d a v i s ã o d a n t e s c a . N ã o os a t e r r a m a p a n -
thera da litteratura pornographica, o leão do jogo e a loba
da lascívia. E, por isto, salvos por Christo, serão maiores
a m a n h ã e mais fortes.
Senhor! parecia uma conversão! Apertei-lhe a m ã o ,
d e i x e i - o j o g a n d o ping-pong, d e s c i os d o u s a n d a r e s . N a r u a
ventava u m a chuva fria e penetrante. A loba, a lascívia, a
panthera, a pornographia, o leão, o jogo, a eterna vida !
Q u a n t o s n e s t e m u n d o se s a l v a r a m d o s a n i m a e s symbolicos
na grande banalidade da e x i s t ê n c i a , quantos ?
C o m o apertasse a c h u v a , e m b r u l h e i - m e m a i s n o paletot,
a t r a v e s s e i as r u a s e s c u r a s r e c o r d a n d o a a p p a r i ç â o q u e f i z e r a
r e c u a r o D a n t e a t é lá dove'l Sol tace.
Más sem g r i t a r e sem ver o vulto da salvação, porque
talvez a tivesse d e i x a d o n o s a l ã o de d i v e r t i m e n t o s , n a d q ç e
paz daquellas almas f o r t e s e t r a n q u i l l a s .
I r m ã o s e a d v e n t i s t a s
Na p r ó p r i a A. G. M . eu soube que o evangelismo
a i n d a t i n h a d u a s i g r e j a s n o R i o , os i r m ã o s e os s a b b a t i s t a s .
Dos i r m ã o s , apezar dessa c l a s s i f i c a ç ã o t ã o p a t e r n a l , o meu
i n f o r m a n t e só conhecia um probo negociante da r u a do
Hospício.
Esse n e g o c i a n t e era um homem baixo, simples e mo-
desto, vendendo relógios e amando a Deus. Recebeu-me
por trás do mostrador, e quando soube que tinha sob
os o l h o s u m c u r i o s o pasmou.
— Interessa-lhe m u i t o saber o q u e s ã o os c h r i s t ã o s ?
— Os i r m ã o s . . .
— P e r d ã o , os christãos.
— E r a para m i m u m grande favor.
Elle coçou a cabeça, allegou u m a grande ignorância,
com h u m i l d a d e . Depois, c o m o eu continuava diante delle,
resolvido a n ã o sahir, resignou-se.
— Os i r m ã o s q u e se r e ú n e m á rua Senador Pompeu
n . 121 denominam-se christãos.
N ã o precisa p e r g u n t a r p o r q u e . Leia os actosdos Após-
t o l o s c a p i t u l o n , v e r s í c u l o 26. E x i s t e m n o R i o , h a v i n t e e c i n -
co annos. N ã o t ê m t e m p l o próprio, reunem-se e m casa d e
u m i r m ã o , c o m o d e v e s e r . L e i a a E p í s t o l a d e S . P a u l o aos
R o m a n o s , c a p i t u l o 16, v e r s í c u l o 5. O s seus e s t a t u t o s , a sua
2U

r e g r a d e f é s ã o as E s c r i p t u r a s e a sua divisa é n ã o ir além


dellas. Leia a i a
Epístola aos C o r i n t h i o s , c a p i t u l o 4 , versí-
c u l o 6.
— E o pastor, quem é ?
— Reconhecemos como ú n i c o p a s t o r a Jesus Christo.
L e i a S. João, c a p i t u l o 10, v e r s í c u l o s 11 e 16. O governo
d a i g r e j a e s t á ao cuidado dos a n c i ã o s o u m a i s velhos, q u e
f a z e m esse s e r v i ç o s e m o u t r a r e m u n e r a ç ã o q u e n ã o s e j a m o
respeito e a honra da i g r e j a . Leia os Actos... Como não
nos a c h a m o s a u c t o r i s a d o s pelas e s c r i p t u r a s , n ã o c e l e b r a m o s
casamentos, reconhecemos o instituído pelas potestades
legalmente c o n s t i t u í d a s , a q u e m buscamos obedecer, desde
que n ã o c o n t r a r i e m as d e t e r m i n a ç õ e s de Deus. Leia a
Epístola aos Romanos versículos 1 a 6. Naturalmente
c u i d a m o s dos p o b r e s e dos e n f e r m o s , f a z e n d o collectas e se
g u i n d o o e n s i n o d a s E s c r i p t u r a s . V e j a a E p í s t o l a aos Corin-
thios.
— C o m o se p r a t i c a o culto
— N o p r i m e i r o dia da semana congregamo-nos para
celebrar a festa da Paschoa c h r i s t â , o u a ceia do Senhor,
á s 11 d a m a n h ã com pão e vinho. Nessa occasiáo adora-
mos a Deus , entoando hymnos e lendo as Escripturas,
interpretando-as e edificando a alma com muitos outros
dons do Espirito Santo. Basta ler a este r e s p e i t o S.Paulo
e os Actos e o E v a n g e l h o s e g u n d o S. Matheus. Reuniram
nos t a m b é m aos domingos das 5 1/2 ás 6 1/2 da tarde
para e s t u d a r as E s c r i p t u r a s . Das ó 1/2 á s 7 1/2 préga-se
ao Evangelho.
Era simples, puro, primitivo. Aquelle relojoeiro, que a
cada palavra parecia a m p a r a r a sua auetoridade na pala-
vra da Bíblia, enternecia.
245

— E q u e se d i z nessa h o r a de d o m i n g o aos pobres


peccadores e irmãos?
— Vede os A c t o s , S. Paulo, S. João... S ó ha um
Salvador, s ó ha um meio para o perdão dos peccados e
s ó e x i s t e u m m e d i a d o r e n t r e D e u s e os h o m e n s — é n a s c e r de
novo, é nascer do Espirito Santo. Esperemos a sua che-
gada.
— E n t ã o , Christo está para chegar.
Gravemente o honesto i r m ã o olhou-me.
— Talvez demore. Talvez venha a h i . . . A c o r r u p ç ã o é
t a n t a q u e s ó elle a p ô d e e x t i n g u i r .
Sahi m e i o a f f l i c t o . E ' possivel que ainda se encontre
um christão de c o n t o catholico e m plena cidade do vicio,
é p o s s i v e l essa candura.
Estava de tal fôrma nervoso que, sabendo obter de u m
crente em N i c t h e r o y i n f o r m a ç õ e s sobre os adventistas,
escrevi logo u m a carta espectaculosa, p e d i n d o - l h e n o t a de
effeito.
N o d i a s e g u i n t e l i a esta r e s p o s t a l a c ô n i c a e s e c c a : — « M m .
Sr.—Se q u i z e r c o m p r e h e n d e r a verdade de Deus, v e n h a V.
S. a t é o nosso t e m p l o , e m C a s c a d u r a . »
Era uma recusa ? E r a u m a licçâo ? Guardei a carta
humilhado, porque grande c r i m e é para mim maguar a
c r e n ç a de qualquer, e estava, domingo, tristemente lendo
quando á porta surgiu um h o m e m de negra barba cer-
rada, v e s t i d o n u m a r o u p a de x a d r e z . Olhou-me fixamen-
te, l i m p a m e n t e e a sua voz, de u m a inédita doçura,
disse:
— E u sou o crente a q u e m ha tempos escreveu !
Levantei-me nervoso. A tarde de inverno cahindo,
p u n h a p e l a sala u m a a r a g e m a l g i d a e a m i n h a pobre alma
246

estava n u m desses m o m e n t o s de sensibilidade em que se


crê n o m a r a v i l h o s o e nos espaços. F u i excessivo de gen-
tileza. Pedia perdão de n ã o ter obedecido ao c o n v i t e , mas
era t ã o l o n g e , t ã o vago, e m Cascadura...
O crente fervoroso sentou-se, p o u s o u a sua mala no
c h ã o , encostou o velho guarda-chuva á parede.

— Não é bem em Cascadura, fica entre Cupertino e


essa e s t a ç ã o , d e i x e i d e m a n d a r - l h e as n o t a s porque n ã o me
achava c o m c o m p e t ê n c i a p a r a as d a r . S . J o ã o d i s s e : T e m e i
a Deus e dai-lhe Gloria. Eu sou m u i t o humilde, só lhe
posso d a r a m i n h a crença.
— Mas u m a simples i n f o r m a ç ã o ?
— E r a p r e c i s o c o n s u l t a r os m e u s i r m ã o s .
Eu ficara na sombra, a luz batia-lhe e m cheio no ros-
to. Reparei então nos t r a ç o s dessa p h y s i o n o m i a . O lábio
era quasi i n f a n t i l , os d e n t e s b r a n c o s , p e q u e n o s , cerrados,
e toda aquella espessa b a r b a negra parecia sellar poten-
temente a ineffavel bondade d o seu p e r f i l . D e resto o c r e n t e
era t i m i d o , cada p a l a v r a sua vinha como um apostolado
q u e se d e s c u l p a e a sua voz persuasiva ciciava b a i x i n h o a
crença do Infinito, com u m conhecimento dos livros sa-
grados extraordinário.
— Mas a o r i g e m dos á d v e n t i s t a s ? indaguei eu.
O crente p u x o u mais a cadeira.
Uma d i s c u s s ã o q u e se l e v a n t o u n a America em 1840 c
n a q u a l G u i l h e r m e M i l ler o c c u p o u l o g a r s a l i e n t e . Os a d v e n -
tistas e s p e r a v a m o fim d o m u n d o e m 1844, p o r q u e a pro-
phecia de Daniel no capitulo 8 v e r s í c u l o 14, d i z q u e o
s a n t u á r i o s e r á j u s t i f i c a d o o u p u r i f i c a d o ao fim d o d e c u r s o do
p e r í o d o p r o p h e t i c o de 2.300 dias.
247

— Deus ! e m tã pouco t e m p o o ?
— Dias propheticos equivalentes a u m a n n o . Os aclven-
tistas j u l g a v a m que 02.300 era o anno de 1844 e q u e a
justificação ou purificação do s a n t u á r i o i m p o r t a r i a e m ser
queimada a t e r r a c o m a v i n d a de C h r i s t o .
Esperavam pois a v i n d a de Jesus.
Olhei o crente. O s seus o l h o s eram beatos como os
olhos dos puros.
— O r a o t e m p o passou e C h r i s t o n ã o veiu...
— S i m , fez elle, e claro ficou o erro. Ou houvera
falta na contagem dos 2.300 dias ou a purificação do
s a n t u á r i o n ã o era a p u r i f i c a ç ã o d a t e r r a na segunda v i n d a de
Christo. Mas a q u e s t ã o agitara o estudo. A cousa f o i exa-
m i n a d a e d u a s o p i n i õ e s se f o r m a r a m . Uns j u l g a v a m que o
p e r í o d o prophetico ainda n ã o decorrera, outros, c o m lento
trabalho, chegaram á convicção de que o erro existia na
palavra santuário.
— Então o santuário?
— Não tem applicação á terra, mas verdadeiramente
a o c é o , o n d e J e s u s C h i s t o e n t r o u n o fim desse período de
tempo, para purifical-o com o seu p r ó p r i o sangue, con
forme está descripto.
A classe q u e acceitou essa i n t e r p r e t a ç ã o é a que se
chama adventistas do 7 ° d i a . Não marcamos tempo nem
cremos que qualquer periodo prophetico assignalado na
B i b l i a se estenda a t é n ó s .
— Então a c c e i t a m c o m o base d a f é .
— A Biblia Sagrada, a palavra de Deus, sem tradi-
ções e a auctoridade de qualquer igreja. Christo é o
Messias promettido, só por e l l e se o b t é m a salvação. As
pessoas s a l v a s o b s e r v a m os d e z m a n d a m e n t o s , inclusive o
248

4°, c e l e b r a m a santa ceia d o S e n h o r , em connexâo com o


acto de h u m i l d a d e p r a t i c a d o p o r Jesus C h r i s t o , c r ê e m na
resurreição, q u e os m o r t o s d o r m e m a t é esse m o m e n t o ,
c o n f o r m e as p a l a v r a s d o S a l v a d o r e m S . João...
— A resurreição?
— S i m , a dos justos f a r - s e - á na segunda v i n d a de C h r i s -
to, a dos í m p i o s m i l annos depois, c o m u m grande fogo que
os q u e i m a r á e p u r i f i c a r á a t e r r a !
— E n t ã o n ã o é t ã o cedo ?...
— i n f e l i z m e n t e , parece. N ó s fazemos o b e m , temos u m a
missão medica, que envia facultativos a toda a parte do
mundo, fundámos s a n a t ó r i o , e, c r e n d o q u e a e d u c a ç ã o in-
t e l l e c t u a l n ã o basta, c o n s e g u i m o s escolas índustriaes.
A' semelhança d o c h r i s t i a n i s m o nos t e m p o s a p o s t ó l i c o s
o adventismo tomou u m r á p i d o i n c r e m e n t o , elevando-se o
numero de crentes a 80.000, segundo as prophecias sa-
gradas.
— E a obra no Brasil ?
— A obra no Brasil c o m e ç o u e m 1893,contando hoje u m
numero de m e m b r o s leigos de 800 a 900 espalhados na
maioria pelos Estados de P a r a n á , Santa Catharina, Rio
Grande do Sul, c o n t a n d o o seu c o r p o ecclesiastico : tres
pregadores ordenados, tres licenciados, dous m i s s i o n á r i o s
m é d i c o s , dous professores directores de escolas missioná-
rias e onze professores de escolas p a r o c h i a e s , sete col-
p o t o r e s e v a n g e l i s t a s , u m a r e v i s t a O Arauto da Verdade e um
reclactor.
Na sua o r g a n i s a ç ã o outros membros o e c u p a m cargos
segundo os dons manifestados e conforme a necessidade
d o t r a b a l h o na o b r a de D e u s .
T e m q u i n z e egrejas orgariisadas,
249

O actual presidente do trabalho é um medico missio*


n a r i o D r . H . F . Graf, (residente e m T a q u a r y — R i o Grande,
do Sul e o secretario-thesoureiro o i r m ã o A . B . Stauffer,
residente no Districto Federal e m Cascadura.
lia ainda u m a commissão administrativa composta de
sete pessoas, d u a s escolas m i s s i o n á r i a s , u m a e m T a q u a r y e
(Rio Grande do Sul) outra e m Brusque (Santa Catharina), e
o n z e escolas p a r o c h i a e s .
Elle levantara-se. Terminada a informação, partia como
um personagem de lenda. Pegou da mala, do guarda-
chuva.
— Bernardino Loureiro, quando quizer...
A p e r t e i - l h e a m ã o c o m r e c o n h e c i m e n t o . Se h a n o m u n -
do m o m e n t o s fugazes de sinceridade, a p r e s e n ç a desse va-
r ã o , m'os t i n h a dado c o m extrema paz que v i n h a d a sua
palavra.
— D i g a - m e u m a cousa, u m a u l t i m a . E Christo?Quando
v e m Christo?
— Os signaes que d e v i a m p r e c e d e r a sua v i n d a , c o n -
f o r m e Elle mesmo predisse em Matheus, cumpriram-se.
E ' de c r e r q u e a sua v i n d a esteja p r ó x i m a .
— Quando?
— A i n d a nesta g e r a ç ã o , talvez a m a n h ã , q u e m sabe?
T o r n o u a a p e r t a r - m e a m ã o , suririu-se. Passara c o m o o
a n n u n c i a d o r , apagara-se c o m o u m r a i o de sol.
A n o i t e c a h i r a de todo. As trevas subiam lentamente
pelas paredes e a brisa humida, entrando pelas janellas,
sacudia as f o l h a s cie p a p e l e s p a r s a s , n u m t r e m o r a s s u s t a d o .
O E S P I R I T I S M O
E n t r e o s s i n c e r o s
O m a r e c h a l E w e r t o n Q u a d r o s esperava u m b o n d para a
c i d a d e , q u a n d o u m b o n d passou i n t e i r a m e n t e vazio.
— P o r q u e n ã o t o m a este? perguntaram-lhe.
O marechal mergulhou mais a face a d u n c a nas barbas
mathusalenicas:

— N ã o é p o s s i v e l . E s t á c h e i o d e e s p i r i t o s m á o s ! e, c o m o
apparecesse o u t r o i n t e i r a m e n t e c h e i o , a g a r r o u - s e ao balaus-
t r e e veio d e p é a t é á c i d a d e .
D e s d e q u e se d e i x a a traficancia do baixo espiritismo,
q u e se c o n v e r s a n a s r o d a s i n t e l l e c t u a e s c u l t i v a d a s , esse e s t a -
do allucinante torna-se n o r m a l .
Ao subirmos as escadas da F e d e r a ç ã o , o m e u a m i g o i a
dizendo.

There are more things in heaven and earth


( Horado )

There are dreamt of in your philosophy.

Esses melancólicos versos, temerosos do mundo invisí-


vel, r e s u m e n o nosso estado m e n t a l .
Muita cousa ha no m u n d o de q u e n ã o c u i d a a nossa v ã
p h i l o s o p h i a , m u i t a cousa ha neste m u n d o i n v i s í v e l . . .
J á n ã o s e c o n t a o n u m e r o d e e s p i r i t o s o r t h o d o x o s , c o n t a se
a a t t r a c ç ã o dos nossos c é r e b r o s m a i s l ú c i d o s pela sciencia d a
evelação. A marinha, o exercito, a advocacia, a m e d i c i n a ,
256
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o professorado, o grande mundo, a imprensa, o commercio


t ê m m i l h a r e s de espiritas. H a h o m e n s q u e n ã o f a z e m m y s t e -
rio da sua crença. Os generaes G i r a r d e Piragibe, o m a j o r
Ivo do Prado, o a l m i r a n t e M a n h ã e s Barreto, Q u i n t i n o Boca-
y u v a , F e l i x B o c a y ü v a , E d u a r d o S a l a m o n d e , os D r s . G e m i n i a -
n o Brasil, Celso dos Reis, M o n t e G o d i n h o , A l b e r t o C o e l h o ,
Maia Barreto, Oliveira Menezes, Alfredo Alexander procla-
m a m a p u r e z a d a sua f é . A F e d e r a ç ã o t e m 800 s ó c i o s e a i n d a
o a n n o p a s s a d o e x p e d i u 48 m i l r e c e i t a s .
Os q u e não praticam a moral acceitam a parte pheno-
m e n a l . E ' ao c h e g a r a essa e s p h e r a q u e se c o m e ç a a t e m e r a
phrase do catholico: «O espiritismo é u m abysmo encantador;
foge ou de lá n u n c a m a i s s a h i r á s w . S e na sociedade b a i x a , c e n -
tenas de traficantes enganan a c r e d u l i d a d e c o m uma incon-
sciente m i s t u r a de f e i t i ç a r i a e catholicismo, entre a gente
e d u c a d a h a u m n u m e r o t a l v e z m a i o r d e salas o n d e seestudam
o pheilomeno psychico e a a d i v i n h a ç ã o do futuro, com cor-
r e s p o n d ê n c i a para L o n d r e s e u m ar s u p e r i o r m e n t e conven-
cido.
Decerto, em parte, a f r i v o l i d a d e q u e f a z s e n h o r a s ele-
gantes c i t a r e m poetas francezes e c o n v e r s a r e m de o c c u l t i s m o
nosgutiersuiwerna.es faz de a l g u m a s dessas s e s s õ e s u m d i -
vertimento idêntico á l a n t e r n a m á g i c a e a o Uzv-tennis; de
c e r t o h a e n t r e os m a i s convictos B u v a r d , Pecuchet e mes-
m o o conselheiro Accacio ; mas, frivolos e tolos f o r a m sem-
pre meios inconscientes de expansão de umacrença,eo
e s p i r i t i s m o s c i e n t i f i c o d e l l e s se s e r v e p a r a t r i u m p h a r . . .
Nas rodas m a i s e l e g a n t e s , e n t r e sportmen intelligentes,
lavra o desespero das c o m m u n i c a ç õ e s espiritas, como em
Paris o automobilismo.
A i n d a ha a l g u n s m e z e s s e n h o r e s d o t o m ao v o l t a r d o L v -
257

r i c o , e n c a s a c a d o s e cie g a r d ê n i a a o p e i t o , c o m m u n i c a v a m - s e
no hotel dos Estrangeiros comas almas do o u t r o m u n d o ,
por intermédio d e u m a c a n t o r a , médium ultra-assombroso.
A ' t a r d e n a C o l o m b o , esses s e n h o r e s c o m b i n a v a m a partic
de plaisir, e á n o i t e nos corredores d o L y r i c o , e m q u a n t o o
Caruso r o u x i n o l e a v a c o r p u l e n t a m e n t e para e n c a n t o das a l -
m a s s e n t i m e n t a c s , elles p r e l i b a v a m as r e v e l a ç õ e s s o m n a m -
b u l i c a s d a médium musical.
Esses tactos s ã o r a r o s , p o r é m , e as e x p e r i ê n c i a s assom-
b r o s a s m u l t i p l i c a m - s e ; os médiuns curam creaturas a mor-
rer, L e o n c i o de A l b u q u e r q u e , q u e tratava c a r i d o s a m e n t e a
Saúde e m peso, anuuncia,sem tocar no doente, o p r i m e i r o
caso d e peste b u b ô n i c a , e c a d a vez m a i s a u g m e n t a o n u m e -
ro dos crentes.
O meu amigo dizia-me :
— N u n c a se v i u u m a c r e n ç a q u e c o m t a l r a p i d e z a s s o m -
b r a s s e c r e n t e s . S e o Figuro dava para Paris c e m m i l espiri-
tas, o R i o deve ter quasi igual s o m m a de fieis. O Brasil,
pela j u n c ç ã o de u m a raça d e s o n h a d o r e s c o m o os p o r t u -
guezes c o m a phantasia dos negros e o pavor i n d i a n o d oi n -
visível, está f a t a l m e n t e á beirados abysmos de ondese entre-
vê o além. A Federação publicou u m a e s t a t í s t i c a de jornaes
espiritas no m u n d o inteiro. Pois b e m . E x i s t e m n o m u n d o
96 j o r n a e s e r e v i s t a s , s e n d o q u e 56 e m t o d a a E u r o p a e 19 s ó
no Brasil...
— C o m o se r e c o n h e c e m as n o s s a s aptidões litterarias !
— N ã o r i a . T u d o n a t e r r a t e m a sua d u p l a s i g n i f i c a ç ã o .
— E q u a e s s ã o essas r e v i s t a s e j o r n a e s ?
—Mensageiro, e m M a n á o s , A m a z o n a s . Luze FéeSophia,
e m B e l é m , P a r á . A Cruz, e m A m a r a n t e , P i a u h y . Doutrina de
Jesus, e m Maranguape, Ceará. A Semana, (sciencias e l e t -
258

t r á s ) , n o R e c i f e , P e r n a m b u c o . A Verdade, e m Palmares, Per-


n a m b u c o . O Espirita Alagoano, A Sciencia, e m Maceió, Alagoas.
Revista Espirita, e m S. S a l v a d o r , B a h i a . Reformador, n o R i o de
Janeiro. Fraternisação, Verdade e Luz, A Nova'Revelação, O
AlviãoQ A Doutrina, e m C u r i t y b a , P a r a n á . Revista Espirita,
e m P o r t o A l e g r e , R i o G r a n d e d o S u l . A Regeneração, no Rio
G r a n d e . OAllan Kardec, em Cataguazes, Minas Geraes.
— C o m o c o m e ç o u esta p r o p a g a n d a no B r a s i l ?
— Homem, o Sr. C a t ã o d a C u n h a d i z q u e os primeiros
espiritas brasileiros appareceram n o C e a r á ao m e s m o t e m -
po que e m F r a n ç a . A propaganda propriamente só c o m e ç o u
na Bahia, no anno de 1865, com o Grupo F a m i l i a r do
Spiritismo.
E r a o e s p i r i t i s m o e m f a m i l i a , ab ovo, p o r q u e aos quatro
annos depois surgiu o p r i m e i r o j o r n a l , d i r i g i d o pelo Dr.
L u i z O l y m p i o Telles de Menezes, m e m b r o do I n s t i t u t o His-
tórico da Bahia. E s s e j o r n a l i n t i t u l a v a - s e O Echo de Além
Túmulo. A p r o p a g a n d a t e m sido r á p i d a .
A i n d a e m 1900 n o s e u r e l a t ó r i o ao C o n g r e s s o E s p i r i t a e
Espiritualista de Paris, a F e d e r a ç ã o accusava a d h e s õ e s de
setenta e n o v e a s s o c i a ç õ e s e o a p p a r e c i m e n t o de t r i n t a e d o u s
jornaes e revistas d e p r o p a g a n d a , e n t r e os q u a e s o Refor-
mador, que c o n t a v i n t e e q u a t r o annos de existência.
Basta esse relatório para affirmar a força latente da
crença.
V a m o s á F e d e r a ç ã o , o c e n t r o o n d e se p r a t i c a m t o d a s as
virtudes do espiritismo. Verá com os seus p r ó p r i o s o l h o s .
A Federação fica na rua do Rosário 97. E ' u m grande
p r é d i o , c h e i o de luz e de c l a r i d a d e . C u m p r e m - s e a h i os p r e -
ceitos da o r t h o d o x i a espirita ; não ha r e m u n e r a ç ã o de t r a -
balho e nada se recebe pelas c o n s u l t a s . A d i r e c t o r i a gasta
259

parte do dia a servir os i r m ã o s , tratando da contabi-


lidade, da b i b l i o t h e c a , do j o r n a l , d o s doentes. A i n s t a l l a ç ã o é
m a g n í f i c a . N o p r i m e i r o p a v i m e n t o ficam a b i b l i o t h e c a , a sala
de entrega do receituario, a s e c r e t a r i a , o s a l ã o cie e s p e r a d o s
c o n s u l t a n t e s e os c o n s u l t ó r i o s . S e i s médiuns psychographico s

prestam-se duas horas por dia a r e c e i t a r , e as salas c o n s e r -


vam-se s e m p r e cheias de u m a m u l t i d ã o de doentes, m u l h e -
res, homens, crianças, figuras dolorosas c o m u m laivo de
esperança no olhar.
A casa e s t á s o n o r a d o r u m o r continuo, mas t u d o é sim-
ples, caridoso e sem espalhafato. Q u a n d o e n t r a m o s n ã o se
lhe altera a v i d a nervosa. A F e d e r a ç ã o parece u m banco de
caridade, installado á b e i r a do o u t r o m u n d o . Os h o m e n s
agitam-se, andam, conversam, os d o e n t e s esperam q u e os
espiritas venham r e c e i t a r p e l o b r a ç o d o s médiuns, e os mé-
diuns, sob a a c ç ã o p s y c h o g r a p h i c a , f a l i a m e conversam em-
q u a n t o o b r a ç o escreve.
A t r a v e s s a m o s a sala dos clientes, e n t r a m o s n o c o n s u l -
tório do Sr. R i c h a r d . Ha u m a h o r a q u e esse h o n r a d o c a v a -
l h e i r o , e s p i r i t a c o n v e n c i d o , escreve e já r e c e i t o u p a r a q u a -
r e n t a e sete pessoas.
— H a curas ? p e r g u n t a m o s n ó s , o l h a n d o as fileiras de
doentes.
—- M u i t a s . N ó s , p o r é m , n ã o t o m a m o s n o t a .
— M a s o s e n h o r n ã o se l e m b r a de ter c u r a d o n i n g u é m ?
— A m i m me d i z e m que puz b o a u m a pessoa d a f a m í -
l i a d o g e n e r a l A r g o l l o . M a s n ã o sei n e m d e v o d i z e r . E ' o p r e -
ceito d e D e u s .
Deixamol-o receitando, já perfeitamente normalisados
c o m aquelle ambiente estranho, e i n t e r r o g a m o s . Ha m i l h a -
res d e c u r a s . A S r a . G e o r g i n a , esposa d o S r . Gesar Pacheco,
260

d e p o i s de l o u c a e cega, ficou boa e m dez dias; o Sr. Júlio


César Gonçalves, morador á r u a d e S a n t ' A n n a n . 26, q u e
t i n h a o corpo n u m só d a r t h r o , curou-se e m dous mezes c o m
passes m a g n é t i c o s ; D . J e s u i n a de A n d r a d e , viuva, quasi
tisica, e m t r i n t a dias salva, e o u t r o s , o u t r o s muitos.
Q u e v a l o r t ê m essas d e c l a r a ç õ e s ? O s d o e n t e s e n f i l e i r a -
dos parece crerem e o Sr. R i c h a r d é a fé e m pessoa. E '
q u a n t o basta talvez :
No segundo pavimento, encontramos desenhos de
homens ignorantes inspirados pelos g r a n d e s p i n t o r e s . R a -
phael guia a m ã o de operários em movimentados quadros
de batalhas, e outros p i n t o r e s m o r t o s , sob i n c ó g n i t o , f a z e m
desenhos e x t r a o r d i n á r i o s p o r i n t e r m é d i o de m a c h i n i s t a s d a
armada...
Essas cousas nos e r a m explicadas s i m p l e s m e n t e , c o m o
se t r a t á s s e m o s d e c o u s a s naturaes.
— Q u a n d o ha s e s s ã o ? p e r g u n t o u o nosso a m i g o .
— Hoje, á s 7 horas. P o d e m ver, é a s e s s ã o de e s t u d o .
N ó s a i n d a o l h á m o s p h o t o g r a p h i a s de espiritos, o r e t r a t o
de D. Romualdo, um sacerdote que de a l é m t ú m u l o v e m
sempre v i s i t a r a F e d e r a ç ã o , e e s p e r á m o s a s e s s ã o de estudo,
a t t r a h i d o s , q u e r e n d o ver, q u e r e n d o ter a doce paz daquelles
entes.
A s e s s ã o c o m e ç o u á s 7 1/2, n a sala d o M a n d a r , t o d a m o -
b i l i a c l a d e c a n e l l a cirée c o m f r i s o s d e o u r o . N a s c a d e i r a s , ca-
valheiros de sobrecasaca, senhoras, demoiselles. Os b i c o s
A u e r accesos b a n h a v a m de l u z c l a r a t o d a a sala, e pelas j a -
nellas abertas o u v i a m - s e na r u a o estalar de chicotes e g r i t & í
de cocheiros.
Sem as v i s i t a s d o irmão Samuel, ninguém diria uma
sessão spirita. Depois de lida e a p p r o v a d a a a c t a da s e s s ã o
261

a n t e r i o r , c o m o na C â m a r a dos Deputados, Leopoldo Cirne,


o p r e s i d e n t e , q u e ao c o m e ç o n o s d i s s e r a u m a d e u s i n h o , perr
feitamente mundano, t r a n s f i g u r a - s e e a sua v o z t o m a sua-
vidades inéditas.
— Concentremo-nos, irmãos!
I m m e d i a t a m e n t e todos fechamos olhos, como querendo
concentrar o pensamento numa ú n i c a idéa. As senhoras ta-
p a m o r o s t o c o m o l e q u e e t ê m os o l h o s c e r r a d o s . D e r e p e n -
te, c o m o m o v i d a p o r t o d a s aquellas vontades, a m ã o d o ps\ -
chographo cai, apanha o papel, o l á p i s , e escreve rapida-
m e n t e linhas adelgadas. No silencio ouve-se o lápis roçando
o papel de leve; e é nesse s i l e n c i o q u e o l á p i s p á r a , o médi-
um e s f r e g a os o l h o s e c o m e ç a a l e i t u r a d a c o m m u n i c a ç ã o .
— « Paz ! I r m ã o s . Deus seja comvosco. As palavras do
philosopho grego: conhece-te a ti mesmo...»
E'Samuel o espirito que falia, achando que para c o m -
prehendera vida e o b e m é n e c e s s á r i o antes de t u d o c o n h e -
c e r m o - n o s a n ó s m e s m o s . L e o l p o d o C i r n e n ã o se m o v e .
Quando Samuel t e r m i n a , ouve-se e n t ã o a sua voz deli-
cada, t r e m u l a de h u m i l d a d e .
E ' elle q u e m f a z o c o m m e n t a r i o .
— M e u s i r m ã o s , essas p a l a v r a s q u e S ó c r a t e s m a n d o u i n -
serir n o t e m p l o de D e l p h o s . . .
E esse h o m e m , q u e n ó s v e m o s t ã o c o r r e e t o e t ã o m u n d a -
no, gostando de E ç a de Queiroz e lendo Verlaine, surge-nos
o pastor, o r a b b i , o i n i c i a d o r . O seu s e m b l a n t e e s p i r i t u a l i s a -
se e m a t t i t u d e s extaticas, a sua v o z é a b l a n d i c i a mesmo
que nos acaricia a a l m a p r é g a n d o a bondade e a d e m o l i ç ã o
das v a i d a d e s . A s s e n h o r a s o u v e m - n o anciosas ; ao nosso l a d o
dizem-no inspirado, actuado pelos e s p i r i t o s . De t a l f ô r m a é
jsubtil o seu r a c i o c í n i o , de t a l f ô r m a desfaz velhas crenças
202

no incensario de um Deus espiritual cpue, de certo, se oactuam


e s p i r i t o s , f a l i a p e l a sua b o c c a P o n c e de L é o n .
E l l e cala, e n x u g a a face. Depois, nc estudo do Evange-
lho, no trecho d e Jesus c o m os e s c r i b a s e p h a r i s e u s s o b r e o
alimento da alma, de novo a sua voz c o r r e c o m o u m f i o
d'agua entre sombras macias, sorvida por toda aquella gente
a t t e n t a e s ô f r e g a . L e o p o l d o C i r n e acaba n u m s o p r o , t ã o b a i x o
que m a i s parece u m a vaga h a r m o n i a .
Em seguida falia o Sr. R i c h a r d , que c o n d e m n a alguns
dos nossos males, entre os q u a e s o p a t r i o t i s m o , — p o r q u e
n ã o se p ô d e a m a r u n s m a i s d o q u e o u t r o s , q u a n d o t o d o s s ã o
i g u à e s perante Deus.
— T e r m i n á m o s o nosso estudo. N ã o ha m a i s q u e m q u e i -
ra fallar ?
L e o p o l d o C i r n e e r g u e u a loira c a b e ç a de S a l v a d o r , f i x a n -
d o os o l h o s n a m i n h a p o b r e p e s s o a . E r a a a t t r a c ç ã o d o a b y s -
m o , u m a explicação indirecta, feita c o m o q u e m . m u i t o can-
s a d o d a t r a v e s s i a p o r m u n d o s i g n o r a d o s , viesse a c o n v e r s a r
á beira da estrada c o m o viandante descrente.
« O E s p i r i t i s m o , f e z e l l e , o u r e v e l a ç ã o cios e s p i r i t o s , s y s -
tematisada e m d o u t r i n a p o r A l l a n K a r d e e , q u e r e c o l h e u os
seus ensinos acerca d o u n i v e r s o e d a v i d a e d a s l e i s q u e os
r e g e m , e c o r n o s q u a e s f o r m o u as o b r a s d i t a s f u n d a m e n t a e s
O Livro dos Espiritos— O Livro dos médiuns — O Céo eo In-
ferno— A Gênese — O Envmlgelho segundo o Espiritismo,
r e ú n e o t r í p l i c e aspecto desciencia, p h i l o s o p h i a e m o r a l ( o u
religião ).
Como sciencia de o b s e r v a ç ã o e s t u d a , n ã o s o m e n t e os
p h e n o m e t o o s e e s p i r i t a s , d e s d e os m a i s s i m p l e s , c o m o os ruí-
dos e perturbações (casas m a l assombradas) e os e f f e i t o s
p h y s i c o s ( d e s l o c a r ã o d e o b j e c t o s s e m c o n t a c t o ) e t c , a t é os

\
2m

mais transcendentes, como as m a t e r i a l i s a ç õ e s de espiritos


( o b s e r v a ç õ e s de C r o o k e s , A k s a k o f , Z o e l l n e r , D r . G i b i e r , etc.)
como t a m b é m t o d o s os phenomenos da natureza, i n v e s t i -
gando a g ê n e s e de t o d o s os s e r e s , n u m a vasta synthese, e
nelles b u s c a n d o a o r i g e m d o p r i n c i p i o e s p i r i t u a l , dos estados
m a i s r u d i m e n t a r e s aos m a i s c o m p l e x o s — p o i s q u e u m g e r -
men, u m esboço dessa n a t u r e z a parece c o n s t i t u i r a e s s ê n c i a
d e t o d a f ô r m a . E m t a e s c o n d i ç õ e s r e l a c i o n a - s e c o m t o d o s os
ramos das sciencias h u m a n a s : a physica, a c h i m i c a , a bio-
logia, a historia n a t u r a l , e t c , sem esquecer a p r ó p r i a astro-
n o m i a , p o r isso que igualmente sonda o universo sideral,
« as d i v e r s a s m o r a d a s d a casa d o P a i » d e q u e f a l l o u J e s u s ,
e q u e s ã o os mundos habitados, disseminados no i n f i n i t o .
Ao lado de taes o b s e r v a ç õ e s , procura fixar as l e i s d o
u n i v e r s o e d a v i d a . das quaes a d a e v o l u ç ã o é a c h a v e , estan-
d o t u d o s u b m e t t i d o ao p r o g r e s s o , na o r d e m p h y s i c a , m o r a l
e intellectual.
Como p h i l o s o p h i a , sobre esses dados da o b s e r v a ç ã o
d e s d o b r a as mais lógicas inducções, partindo do infinita-
mente pequeno e dos raciocínios mais elementares para o
infinitamente grande e atéásmais transcendentesconsequen-
cias, isto é, a t é á d e m o n s t r a ç ã o da e x i s t ê n c i a de Deus.
Sobre aquelle principio da evolução universal, prova
coma pluralidade dos m u n d o s a p l u r a l i d a d e das e x i s t e q -
cias da a l m a , a i m m a n e n c i a d a lei e t e r n a de j u s t i ç a , e m v i r t u -
de da q u a l o espirito, depois de c a d a e x i s t ê n c i a , c o l h e as
lições da e x p e r i ê n c i a ( de resto, p e r m a n e n t e na vida quoti-
d i a n a ) e s o f f r e as c o n s e q ü ê n c i a s d e seus a c t o s b o n s o u m ã o s ,
sendo assim feliz ou d e s g r a ç a d o , trazendo para a outra exis-
t ê n c i a , e m u m a n o v a e n c a r n a ç ã o , as s u a s a c q u i s i ç õ e s d o p a s -
sado, q u e se d e n u n c i a m nas t e n d ê n c i a s e aptidões innatas.
264

guardando assim latente a r e m i n i s c e n c i a substancial desse


p a s s a d o , c o m e s q u e c i m e n t o a p e n a s d o circumstancial, isto é,
dos f a c t o s c o n c r e t o s e dos i n c i d e n t e s , a l é m d e t u d o p o r q u e
n o c é r e b r o a c t u a l s ó se a c h a m g r a v a d a s as i m p r e s s õ e s d e s s a
nova vida. T u d o o m a i s e s t á g u a r d a d o nas p r o f u n d e z a s d a
sub-consciencia, podendo reapparecer nos estados de so-
m n a m b u l i s m o e, e m g e r a l , e m todos os casos d e d e s d o b r a -
m e n t o ( e x p e r i ê n c i a s d o m a g n e t i s m o e de p s y c h o l o g i a t r a n -
scendental).
Assim prosegue, de vida em vida, a evolução insefinita?
do espirito, sendo-lhe accessiveis t o d a s as perfeições, que
c o n q u i s t a r á pelo p r ó p r i o e s f o r ç o .
Com a e v o l u ç ã o d o s i n d i v í d u o s e, p o r c o n s e g u i n t e , d a s
h u m a n i d a d e s , c o i n c i d e a e v o l u ç ã o dos m u n d o s p h y s i c a m e n -
te, d e v e n d o a n o s s a t e r r a , c o m o t o d a s as d o e s p a ç o , a o a p e r -
feiçoamento já assignalado das épocas p r e h i s t o r i c a s aos
nossos dias accrescentar novos e constantes a p e r f e i ç o a m e n -
tos, em harmonia com essas m a r a v i l h o s a s l e i s d a c r e a ç ã o ,
que c o n s t i t u e m o lado mais bello do estudo philosophico do
Espiritismo.
C o m o m o r a l o u r e l i g i ã o e no sentido de favorecer a reali-
s a ç ã o . d o s e u i d e a l p h i l o s o p h i c o , o E s p i r i t i s m o se p r o p õ e o
r e s t a b e l e c i m e n t o d o E v a n g e l h o de Jesus, q u e a i g r e j a d e t u r -
pou e fez c a h i r no olvido.
O seu l e m m a é: « E ó r a da c a r i d a d e n ã o h a s a l v a ç ã o ».
E' por c o n s e g u i n t e t o l e r a n t e e, fiel á s m á x i m a s c h r i s t ã s f u n -
damentaes: « N ã o f a ç a s aos o u t r o s o q u e n ã o q u e r e s q u e t e
f a ç a m » , —a A m a o t e u p r ó x i m o c o m o a t i m e s m o » , n ã o h o s t i -
lisa n e n h u m a crença, respeitando t o d a s as c o n v i c ç õ e s sin-
ceras.
E ' , sob qualquer dos seus a s p e c t o s , p a r t i d á r i o d o l i v r e
265

exame, nada recommendando q u e seja a c c e i t o e admittido


sem a sancçâo do raciocínio, porque sabe, c o m o M e s t r e
Allan Kardec, que « a ú n i c a fé inabalável é aquella que pode
encarar a razão f a c e a f a c e , e m t o d a s as é p o c a s d a h u m a n i -
d a d e ».
O E s p i r i t i s m o , e m s u m m a , s o b r e e x p l i c a r t o d a s as a p p a -
r e n t e s a n o m a l i a s d a v i d a , v e m o f í e r e c e r o c o n f o r t o e a espe-
r a n ç a aos q u e s o f f r e m , aos q u e e r r a m e se t r a n s v i a m n o m a l ,
cedendo á s suas m ú l t i p l a s ciladas; v e m esclarecer acerca das
suas r e s p o n s a b i l i d a d e s , d a n d o á v i d a u m o b j e c t i v o alto, n o b r e
e digno, sobranceiro ás torpes materialidades e ás transito
rias v i c i s s i t u d e s ; aos que procuram lealmente a verdade
p r o p o r c i o n a u m i d e a l q u e u l t r a p a s s a as m a i s e x i g e n t e s a s p i -
r a ç õ e s da intelligencia e da razão.
A todos o f f e r e c e a c a l m a | i n t e r i o r , a paz, a r e s i g n a ç ã o , a
p a c i ê n c i a e a f é i n a b a l á v e l n o f u t u r o . E", p o i s , o p r o b l e m a d a
r e g e n e r a ç ã o e da felicidade h u m a n a que v e m resolver.»
H o u v e u m l o n g o silencio, U m h o m e m m a g r o levanta-se e
c o n t a q u e v e i u d a casa d e u m i r m ã o a g o n i s a n t e . O i r m ã o d e -
s e j a u m a o r a ç ã o e p e d e aos a m i g o s n ã o o d e i x e m d e ver.
— C o n c e n t r e m o - n o s ! d i z de n o v o a voz e x p i r a n t e do
presidente.
A s f r o n t e s c u r v a m - s e , o médium toma o lápis. E' Samuel
que volta.
— Paz ! d i z elle, a v a i d a d e é u m m o n t e q u e nos separa
do b e m . Entretanto, irmãos...
Com a presença d o espirito de S a m u e l , levantam-se t o -
dos e R i c h a r d faz a o r a ç ã o pelo i r m ã o agonisante p a r a que o
g u a r d e e m bons céos.
Depois u m arrastar de cadeiras, apertos de m ã o , r i s o ,
conversa. Está acabada a sessão. Leopoldo Cirne volta da
266

sua t r a n s f i g u r a ç ã o , r e c o b r a n d o a voz h a b i t u a l e a c o r t e z i a de
sempre.
F a ç o , r e c e i o s o , u m c u m p r i m e n t o aos seus d o t e s sagrados.
— A h ! s i m ? f a z e l l e , p a s m a d o , c o m o se n u n c a se t i v e s s e
ouvido.
E n t ã o p e g u e i n o c h a p é o s o r r a t e i r a m e n t e . Esse c o n s t a n -
t e e s t a d o f l u c t u a n t e e n t r e a r e a l i d a d e e o i n v i s í v e l , essas f u g i -
d a s ao espaço p a r a c o n v e r s a r c o m os e s p i r i t o s , a c a r i d a d e
evangelicado h o m e m á beira do real, e r a m allucinantes. Desci
as e s c a d a s d e v a g a r , aquellas escadas p o r o n d e s u b i a s e m p r e
a r o m a r i a cios e n f e r m o s ; n a r u a e n x u g u e i a f r o n t e , o l h a n d o
o edifício, menoamvsterioso que qualquer club p o l í t i c o . E
c o m o passasse u m b o n d i n t e i r a m e n t e v a z i o , r e f l e c t i q u e esse
b o n d p o d i a b e m ser c o m o o d o m a r e c h a l Q u a d r o s e v o l t e i , a
p é , d e v a g a r , p a r a n ã o d a r e n c o n t r õ e s nas pessoas q u e t a l v e z
c o m m i g o tivessem passado t o d o a q u e l l e d i a d o o u t r o m u n d o .
O s e x p l o r a d o r e s
False Sphinx ! False Sphinx! by reedy Styx
Old Charon learning on his oar
Waits for my coin. Go thou before ...

Ao chegar á praça Onze, tomámos por uma das ruas


transversaes, escura e lobrega. Ventava.
— E ' a q u i , m u r m u r o u cansado o nosso a m i g o , parando
á p o r t a de u m sobrado de a p p a r e n c i a duvidosa.
Havia oito dias já andávamos n ó s e m p e r e g r i n a ç ã o pelo
baixo e s p i r i t i s m o , Elle, i n t e l l i g e n t e e esclarecido, dissera:
— Ha pelo menos cem m i l espiritas no Rio. E ' preciso,
p o r é m , n ã o confundir o espiritismo verdadeiro com a explo-
r a ç ã o , c o m a falsidade, c o m a crendice ignorante. O espiri-
tismo data de 1873 entre n ó s , da c r e a ç ã o da Sociedade de
C o n f u n c i o s . Talvez de antes ; data de u m a s curiosas sessões
d a casa d o D r . M e l l o M o r a e s Pai, a bondade personificada,
um h o m e m que andava de c a l ç õ e s e sapatos c o m fivelas de
p r a t a . M a s , d e s d e esse t e m p o , a r e l i g i ã o s o f f r e d a i n c o m p r e -
h e n s â o de quasi todos, substitue a f e i t i ç a r i a e a magia

F o i e n t ã o q u e c o m e ç á m o s a m b o s a p e r c o r r e r os c e n t r o s ,
os f o c o s d e s s a t r i s t e z a .
O R i o e s t á m i n a d o d e casas e s p i r i t a s , d e p e q u e n a s s a l a s
m y s t e r i o s a s o n d e se e x p l o r a m a m o r t e e o d e s c o n h e c i d o . Esta
270

pacatacidade,que h a 50 a n n o s f e s t e j a v a a p e n a s a c o r t e c e l e s t e
e tinha como supremo m y s t e r i o a m a n d i n g a o preto escra-
v o , é h o j e c o m o B y z a n c i o , o c i d a d e das c e m r e l i g i õ e s , l e m b r a
a R o m a d e I l e l i o g a b a l u . o n d e t o d a s a s s e i t a s e t o d a s as c r e n ç a s
existiam. O e s p i r i t i s m o d i f f u n d i u - s e na populaça, enrai-
zou-se, s u b s t i t u i n d o o b r u x e d o e a f e i t i ç a r i a . A l é m dos r a "
ros grupos onde se p r o c e d e com relativa honestidade, os
d e s b r i a d o s e os v e l h a c o s s ã o os seus a g e n t e s . Os médiuns ex-
ploram a c r e d u l i d a d e , as s e s s õ e s m a s c a r a m c o u s a s t o r p e s e
d e c a d a u m desses v i v e i r o s d e f e t i c h i s m o a l o u c u r a b r o t a e a
hysteria surge. Os ingênuos e os s i n c e r o s , q u e se j u l g a m
com qualidades de m s d i u m n i d a d e , a c a b a m presas de p a t i -
fes c o m a r m a z é n s de cura para a e x p l o r a ç ã o dos c r é d u l o s ;
e a v e l h a c a r i a e a s e m - v e r g o n h i c e e n c o b r e m as c h a g a s v i v a s
com a capa santa d o e s p i r i t u a l i s m o . Q u a n d o se c o m e ç a a
estudar esse m u n d o d e desequilibrados é c o m o se v a g a r o -
s a m e n t e se descesse u m abysmo torturante e sem f u n d o .
A p o l i c i a sabe mais ou menos as casas dessa g e n t e sus-
p e i t a m a s n ã o as o b s e r v a , n ã o as a t a c a , p o r q u e a m a i o r i a d a s
auctoridades tem medo e fé. Ainda ha tempos, u m delega-
do moço freqüentava a casa d e u m e s p i r i t a d a praia For-
mosa para se curar d a s y p h i l i s . Se os d e l e g a d o s s ã o a s s i m
apavorados do f u t u r o , reduzindo a mentalidade á crença
n u m a p a n a c é a m y s t e r i o s a , o pessoal s u b a l t e r n o d e l i r a . . .
— Veja você, disse-nos o a m i g o e s p i r i t a , t o d a a nossa
religião r e s u m e - s e nas palavras de C h r i s t o á S a m a r i t a n a :
« D e u s é e s p i r i t o e e m e s p i r i t o q u e r ser a d o r a d o » . E s s a g e n -
te n ã o c o m p r e h e n d e n a d a disso, m a r a v i l h a - s e apenas c o m a
parte phenomenal, com a canalhice e a magia. E' h o r r í v e l .
Os proprietários dos estabelecimentos de c u r a a n i m i c a a
preço reduaido exploram; o p o v a r é o v a i t o d o , a l l i a n d o aa
271

crendices do novo ás bagagens antigas. S â o catholicos ou


p e r d i d o s a servirem-se dos espiritos c o m o de u m b a r a l h o de
cartomante.
Com effeito, todas as casas e m que entrámos esta-
vam sempre cheias. Na maioria frequentam-nas pessoas
d e b a i x a c l a s s e , m a s se p u d é s s e m o s c i t a r as s e n h o r a s , as d a -
mas do high-lije q u e se a r r i s c a m a t é l á , a l i s t a abrangeria
t a l v e z m e t a d e d a s c r e a t u r a s r a d i o s a s q u e f r e q ü e n t a m as r é c i -
t a s d o L y r i c o . A l g u n s desses l o g a r e s e q u i v o c o s n ã o s ã o s ó e n -
godos da c r e d u l i d a d e , s e r v e m de mascaras a o u t r a s conve-
n i ê n c i a s . A s e s s ã o f i c a n a sala d a f r e n t e , m a s o r e s t o d a casa,
com camas largas, é alugado por hora a a l g u n s pares de i r -
mãos. O médium, nesses m o m e n t o s , deixa o estado som-
n a m b u l i c o p a r a s e r v i r o f r e g u e z , e u m c e n t r o e s p i r i t a reves-
tido de m y s t e r i o , c o m o a p p a r a t o das p o r t a s f e c h a d a s , dos
passes e d a s v e l a s a c c e s a s , t r a n s f o r m a a c r e n ç a , c u j a o b l a t a é
a virtude máxima, numa n o d o a de descaro sem n o m e .
N ó s v i s i t á m o s u n s c i n c o e n t a desses m i l h a r e s d e c e n t r o s .
A c i d a d e e s t á coalhada delles. Ha e m algumas ruas dous e
tres. E s t i v e m o s no A n d a r a h y Grande, na rua Formosa, na
e s t a ç ã o d o R o c h a , n a r u a cia I m p e r a t r i z , n o m o r r o d o P i n t o ,
na praia Formosa, no Engenho de D e n t r o , na r u a Frei Ca-
neca, na rua Francisco E u g ê n i o , assistindo ás sessões e o u -
vindo a visinhança, que é sempre o t h e r m o m e t r o da m o r a -
l i d a d e de q u a l q u e r casa.
U m p o u c o cie s c e p t i c i s m o o u d e s i m p l e s c r e n ç a b a s t a p a r a
comprehender a p u l h i c e dessas p a n t o m i m a s l u g u b r e s .
A s s i m , ha u m a t r o p a de m u l h e r e s , a G a l d i n a da r u a da
A l f â n d e g a , a negra Rosalina da r u a da A m e r i c a , a A q u i l i n a
da rua do Cunha, a Amélia do A r a g ã o , a Zizinha Viuva
da rua Senhor de Mattosinhos, a Augusta da rua Pre-
2TT

sidente Barroso, a Thomazia, da rua Torres Homem n. 14,


que estabelecem o c o m m e r c i o c o m consultas de 500 réis
para c i m a e p r a t i c a m cousas h o r r e n d a s , abortos, v i o l a ç õ e s a
p r e ç o fixo e t ê m trabalhos em que são acompanhadas d e se-
cretarias; ha espiritas a m b u l a n t e s , como o negro Samuel,
q u e j á f o i c o z i n h e i r o , m ó r a n a r u a S e n a d o r P o m p e u n . 157 e
v a i d e casa e m casa f a z e r passes; h a m u l a t o s p e r n ó s t i c o s , o
Z i z i n h o d a r u a d e S. J a n u á r i o , o C l a u d i n o d a r u a d e S a n f A n -
na, o J o ã o s i n h o da r u a Sorocaba, c o m consultas nocturnas;
ha portuguezes como u m tal Sr. C a r n e i r o , da Praia F o r -
mosa, e o S i m õ e s , d a r u a V i s c o n d e d e I t a u n a , q u e e x i g e m 20$
por consulta e m a n d a m os d o e n t e s comprar uma vela de
cera e t o m a r u m b a n h o de cevada... H a de t u d o , a t é synetas,
rapazes de passinho r e b o l a d o , q u e q u a n d o n ã o p r e s t a m m a i s
p a r a o c o m m e r c i o p u b l i c o estabelecem-se nas r u a s d o m e r e -
trício c o m a d i v i n h a ç õ e s espiritas !
E nesse c o m p l e x o n o t a m - s e os centros familiares, u m a
p o r ç ã o de centros, alguns dos quaes d ã o bailes mensaes e,
q u a n d o n ã o s ã o casas d e f a b r i c a ç ã o d e loucuras levando á
h y s t e i ia s e n h o r a s indefesas, servem para a mais desfaçada
i m m o r a l i d a d e e a mais ousada e x p l o r a ç ã o .
N o m o r r o d o P i n t o a f e i t i ç a r i a i m p e r a N u m a sala b a i x a ,
i l l u m i n a d a a k e r o s e n e , a s s e n t a m - s e os fieis, m u l h e r e s des-
grenhadas, m u l a t i n h a s bamboleantes, negras de lenço na
c a b e ç a c o m o o l h a r a l c o ó l i c o , h o m e n s de c a l ç a s abombacha-
das, valentes c o m m e d o das almas do o u t r o m u n d o , que ao
sahir dalli o u alli m e s m o n ã o t r e p i d a r i a m e m enfiar a faca
nas entranhas do p r ó x i m o . As luzes d e i x a m sombras nos
cantos sujos. No momento e m que entramos, o médium,
e m c h i n e l l a s , é p r e s a d e u m t r e m o r c o n v u l s o . D i a n t e d o es-
trado, u m a p o r t u g u e z a , c o m o o l h a r de gazella assustada
na face v e l l u t i n e a , espera. A pobre casou, o marido deu
p a r a b e b e r e, d e s g r a ç a d a v i d a ! b a t e - l h e d e m a n h ã , á n o i t e ,
deixa-a derreada.
E ' a m ã i dessa m u l h e r q u e e s t á d e n t r o d o médium. To-
dos t r e m e m , de o l h o s arregalados.

D e r e p e n t e , o médium e s t a r r e c e e p o r t i á s d o s seus d e n -
tes, o u v e - s e u m a voz de p a l h a ç o :
— C o m o e s t á s , m i n h a f i l h a , vais b e m ?
— A m ã i ! A m ã i ! m u r m u r a a p o r t u g u e z i t a infeliz, ater-
r a d a , e m m e i o o palpitante silencio.
— Q u e deve fazer sua filha ? pergunta o evocador.
— Ter c o n f i a n ç a e m Deus. E u devia estar n o i n f e r n o . A
misordia perdoou a m ã i delia. T o d a a d e s g r a ç a v e m de u m
b r u x e d o que puzeram na soleira da p o r t a . . .
— Q u e m f o i ? faz a p o r t u g u e z a n u m a voz de m e d o .
— Uma m u l a t a escura que gostado seu h o m e m . E l l e
vai ficar b o m . D ê - l h e o r e m é d i o que eu receitar e crave um
p u n h a l no travesseiro tres noites a fio...

U m homem magro, parecido com o general Quintino,


f a z u n s passes ; o médium v o l t a a si n u m s o r r i s o i m b e c i l .
— Está satisfeita? p e r g u n t a o e s p e r t a l h ã o dos passes.
— A m ã i ! a p o b r e da m ã i t ã o boa ! A p o r t u g u e z a rebenta
n u m choro convulso ; u m a negra epiléptica, velha, e s q u á -
l i d a , c o m e ç a a g r i t a r n u m a crise t r e m e n d a , e n q u a n t o o h o -
mem magro brada:

— E s t á c o m o espirito m á o ! Está mesmo !


Essas scenas s i n i s t r a s s ã o c o m p e n s a d a s p o r o u t r a s mais
a l e g r e s . N u m d o s n o s s o s b a i r r o s , o médium d á s e s s õ e s de m a -
n h ã , e v o c a os e s p i r i t o s p a r a s a b e r q u a l é o bicho que ganha
e, c o m o é v i d e n t e , v ê os e s p i r i t o s c o m f ô r m a s d e animaes.
274

— E ' o b u r r o , é o b u r r o ! g r i t a e m estado s o m n a m b u -
lico, e a rodinha toda joga no b u r r o .
No Andarahy Grande o curandeiro é d i v e r t i d o e baila-
r i n o . E m v é s p e r a s de S. J o ã o dá u m b r o d i o de estalo c o m
c e i a c o p i o s a e v i n h a ç a de p r i m e i r a . Este t e m a especialidade
d a s m u l h e r e s b a r a t a s . A r u a d e S. J o r g e , a d a C o n c e i ç ã o , a
d o S e n h o r d o s Passos, a do V i s c o n d e de I t a ú n a lá estrava-
sam a a l m a s e n t i m e n t a l das m e r e t r i z e s , dos soldados e dos
rufiões. O nosso h o m e m cura tudo : darthros, feridas m á s ,
constipações, amores mal r e t r i b u í d o s , ódios. E' phantastico!
As m u l h e r e s t ê m - l h e u m a íé doida. O e s p i r i t i s m o p a r a ellas
é o milagre, a i n t e r v e n ç ã o dos e s p i r i t o s j u n t o de u m poder
s u p e r i o r . A n t e s de i r á c o n s u l t a , a j o e l h a m n o o r a t ó r i o e v ã o
com t o d o s os seus b e n t i n h o s , as figas de g u i n é , o espanta
m á o olhado das negras m i n a s . Alas o c a v a l h e i r o d o A n d a -
r a h y é sagrado. T o d a e s s a f é e m a n a , d i z e m , de u m a sua p r e -
dicçâo feliz. U m a m u l h e r que voltava da M i s e r i c ó r d i a rece-
b e u p o r seu i n t e r m é d i o c o m m u n i c a ç ã o de q u e seria honesta;
etres mezes depois u m h o m e m s é r i o levou-a. A s u b u r r a do
R i o v e n e r a - o , f r e q u e n t a - l h e as f e s t a s e s u s t e n t a - o .
— S ã o i n f a m e s . O l e m m a d o e s p i r i t a é: s e m c a r i d a d e n ã o
ha salvação. Seja a c a r i d a d e delles. Q u a n d o n ã o s ã o isso,
f a z e m das s e s s õ e s , c o m o o T o r t e r o l l i , s e s s õ e s de o r g i a p u b l i -
c a . . . N ã o posso m a i s !
Afinal, naquella noite t í n h a m o s resolvido acabar a t r a -
vessia pelos bas-fonds da crença, com a alma entristecida
p e l a v i s ã o d e salas indenticas, onde o espiritismo substituía
a bisca, os espiritos servem de f e i t i c e i r o s e d ã o r e m é d i o s
p a r a p e s c a r a m a n t e s ; d a s salas q u e , c o m o n a r u a d e S. D i o g o ,
m a s c a r a m as casas d e q u a r t o s p o r h o r a . A casa d a r u a t r a n s -
versal á p r a ç a Onze seria a u l t i m a a v i s i t a r .
275

— E n t r e , disse o m e u a m i g o .
Enfiámos por u m corredor escuro, s u b i m o s . No pata-
m a r u m b i c o de gaz s i l v a v a , b a t i d o pelo v e n t o d a r u a .
— P a p a i , d o u s h o m e n s , b r a d o u u m a voz de c r i a n ç a .
L o g o appareceu, e m m a n g a s de camisa, u m m u l a t o de
b i g o d e s c o m p r i d o s , q u e se d e s m a n c h o u e m r i s o e a m a b i l i d a -
des p a r a o m e u companheiro.
— A q u e d e v o as h o n r a s ? d i s s e s i b i l a n d o os ss.
— As honras, c o m o d i z , d e v e - a s a l l i ao i r m ã o . E ' u m
sympathico que q u e r crer e anda, na d u v i d a , á p r o c u r a da
verdade. Que diz você da verdade ?
— Verdade ? Ora esta ! V e r d a d e é o e s p i r i t o !
— Bravo !
F o m o s e n t r a n d o p a r a a sala de j a n t a r , c o m m o v e i s de v i -
nhatico e garrafas p o r t o d o s os a p a r a d o r e s .
— N e m de preposilo, fez o cabra. O médium está alli
proseando c o m a gente.
O médium é um t y p o d e hèbèté, de quasi c r e t i n o . L o i -
r i n h o , d e u m l o i r o d e e s t o p a , c o m a f a c e c ô r d e o c a e as g e n -
g i v a s s e m d e n t e s , é c a r t e i r o de 2 classe dos C o r r e i o s . T e m a
a

f a r d a s u j a e a g r a v a t a de l a d o . D u r a n t e t o d o o t e m p o e m q u e
o mulato n o s c o n t a as s u a s c u r a s , e l l e sopra monosyllabos
e remexe a cabeça, dolorosamente, c o m o se lhe estivessem
e n t e r r a n d o alfinetes na nuca.
Um mal estar nos i n v a d e , c o m o o a n n u n c i o de u m a
grande desgraça.
— IIa typos que u s a m hervas para fingir que é espirito,
diz o curandeiro. E u n ã o ; cá c o m m i g o é a verdade. U m
desses araras p õ e n o x v o m i c a n a a g u a p a r a os d o e n t e s l a n ç a -
r e m e d i z q u e é o e s p i r i t o l i m p a n d o lá d e n t r o . Peccado! A p r e !
E u a g o r a t e n h o u m d o e n t i n h o , V e i u - l h e u m a febre de q u e i -
276

m a r . A m ã i n ã o t e m quasi d i n h e i r o , mas n ã o o gasta na p h a r -


macia. E u o curo logo.. .
De repente p a r o u . Pela escada subia u m t r o p e l , e u m a
m u l h e r m a g r a , l i v i d a , aos s o l u ç o s , e n t r o u n a s a l a .
— E n t ã o q u e ha ?
— O pequeno está m a l , m u i t o m a l , r e v i r a n d o os o l h o s .
S a l v e - m o ! Salve-m"o !

— E ' o t a l q u e e u l h e s d i z i a . N ã o se a s s u s t e , D . A n n i n h a .
E u j á l h e disse q u e o p e q u e n o ficava b o m ; os e s p i r i t o s q u e -
r e m . . . E para n ó s : v e n h a m ver.
L e v o u - n o s ao t e r r a ç o , ao f u n d o , m e r g u l h o u u m l i t r o v a -
zio numa tina dágua, encheu-o, collocou-o e m c i m a da
mesa.
— Durma, Zezé, d u r m a !
E e s f r e g o u as m ã o s na cara do carteiro, s u b i t a m e n t e e m
p r a n t o . O h o m e m r e v i r a v a os o l h o s , s a c u d i a a c a b e ç a .
— E' o espirito ; veiu, quer q u e seu filho fique bom.. .
E d e r e p e n t e o d i a b ó l i c o c o m e ç o u a e s t e n d e r as m ã o s d o c a r -
t e i r o c h o r o s o ao g a r g a l o do litro.

— N ã o está vendo o espirito entrar ? o l h e . . . No litro


cheio bolhasde oxygenio subiam vagarosamente e a pobre
mulher, agarrando a m e s a , c o m os o l h o s j á e n x u t o s , s e g u i a
anciada o m i l a g r e q u e lhe ia salvar o filho.
De r e p e n t e , p o r é m , u m a voz e s t a l o u e m b a i x o , n a v e n t a -
nia :
- - M a m ã i ! M a m ã i . De pressa! J o ã o s i n h o e s t á m o r r e n d o ,
Joâosinho morre !
Essas p a l a v r a s produziram u m tal choque que n ó s sai-
m o s desvairados, de r o l d ã o , c o m o m u l a t o e a m u l h e r , sen-
t i n d o u m t r a v o r de m o r t e nos l á b i o s , a n g u s t i a d o s , l e m b r a n d o
dessa c r i a n ç a q u e a i n e o n s c i e n c i a d e i x a r a m o r r e r . E na v e n -
t a n i a c o r t a d a de c h u v a , e n t r e as v a r i a d a s r e c o r d a ç õ e s d e s s a
v i d a d e o i t o clias h o r r e n d o s pelos a n t r o s escuros onde viceja
o e s p i r i t i s m o f a l s o , a viscão d e s s a c r i a n ç a p e r s e g u i a - n o s c r u -
c i a n t e m e n t e , c o m o o r e m o r s o de u m g r a n d e e i n f i n i t o m a l . . .
Í N D I C E

A Religião ' i
A o Mundo
r
dos Feitiços 3
Os Feiticeiros 5
As í a u ô iç
O Feitiço 31
A Casa das A l m a s 43
Os n o v o s f e i t i ç o s de S a n i m 55
O Satanismo 67
Os satanistas 69
A missa negra 81
Os exorcismos 93
A igreja positivista .- 105
As Synagogas 117
A Nova Jerusalém 1-27
O Culto do Mar 137
As Sacerdotizas do F u t u r o 147
Os M a r o n i t a s 161
Os P h y s i o l a t r a s . . (71
O Movimento Evangélico 189
A Igreja Fluminense 191
A Igreja Presbyteriana. 201
A Igreja Methodista 21 r
Os Baptistas 221
A. A . C. M . 2
3 x

I r m ã o s e adventistas 241
O Espiritismo • 25 r
E n t r e os s i n c e r o s 253
Os exploradores 267

FIM
i

I
!
*•
I

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