Você está na página 1de 18

Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

CAPOEIRA & RELIGIÃO: ALGUNS ELEMENTOS PARA UMA ABORDAGEM


TEÓRICA METODOLÓGICA1

Paulo César Almeida do Prado – mestre Puma2

Resumo:

Este trabalho aborda a questão do sincretismo religioso na capoeira mediante


um estudo comparativo, no qual analisamos os aspectos alegórico-religiosos
como parte constitutiva desta arte-luta. Ressaltamos a ideia de que os
aprendizados e os valores cultivados na capoeira têm sua base principal no
candomblé em confluência com os elementos hebraico-cristãos constituindo
um hibridismo religioso evidenciado através de suas linguagens. Partimos do
princípio de que mesmo não sendo uma religião, a capoeira não pode ser
compreendida fora dos aspectos religiosos que lhe define. Nosso objetivo é
evidenciar alguns elementos religiosos presentes na capoeira, mostrando suas
trocas de acordo com o “credo” de cada capoeirista que tem na sua
“correspondência” transcendente, elementos ideológicos configurados em suas
representações simbólicas, sons e imagens estruturadas que convergem em
uma perspectiva sociocultural. Mirando uma melhor exposição da temática, nos
apoiaremos em autores como Marcelo Mauss, no que se refere ao aspecto fato
social total e Mikhail Bakhtin com sua concepção de hibridismo. Com isso
queremos ressaltar a possibilidade de uma leitura da linguagem do jogo da
capoeira pelo viés teórico-metodológico que prioriza o hibridismo como
expressão plural da capoeira e consequentemente dos seus aspectos
religiosos. A partir da teoria de Bakhtin, no que se refere ao hibridismo cultural,
vislumbramos perspectivas para leituras do discurso simbólico que expressam
e respeitam as singularidades na linguagem dialógica. Estamos diante de uma
visão que toma a capoeira como uma prática redutora de fronteiras e pelo
fenômeno do hibridismo religioso presentes em suas linguagens, pode ser
compreendida associada à perspectiva de Mauss que enfatiza a polifonia como
ressignificação mediante acordos dos valores próprios daqueles que atualizam
suas crenças sob forma de jogo. Um hibridismo que tem sua porta de entrada
na língua e ritmos do candomblé, mas que permite a interação entre sujeitos de
fala que, segundo Bakhtin encontra na palavra o seu signo ideológico por
excelência. Finalmente, buscamos estabelecer o espaço da capoeiragem como
modo de viver e dizer o mundo. A Capoeira como expressão de motivação,
vivência e significação da vida daqueles que a praticam é algo constitutivo da
sua história. Os limites entre arte e luta também é marcada pela linguagem
simbólica e por elementos religiosos de múltiplas tradições. Isso torna a
capoeira não religião, mas espaço híbrido em que sujeitos exploram suas
relações de crenças, valores e tradições.

Palavras-chave: Capoeira; Religiões; Hibridismo; Linguagens; Bakhtin.

1
Resumo publicado nos anais do 12º encontro de Pós-graduação da Universidade Federal de Sergipe-
UFS. Revista Interdisciplinar de Pesquisa e Inovação: REVIPI, V.7, n.1 (2020). Editora: UFS. ISSN
2447-29481; E o Artigo foi publicado na revista NEGAÇA/GINGA, 2021. ISBN-978-65-5730-071-8.
2
Mestre em Ciências da Religião PPGCR/UFS/CAPES e Mestre de Capoeira da ABC/ABPC.
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

Introdução:

O objetivo desta pesquisa é trazer à tona alguns elementos religiosos


presentes na capoeira mostrando suas origens e como acontece a troca
desses, através das músicas e ritos práticos que de acordo com o “credo” de
cada capoeirista tem a sua “correspondência” sobrenatural. Para tanto,
buscamos abordar essas informações em seus aspectos ideológicos, isto é,
quanto às suas representações simbólicas, em sons e imagens que se
estruturam e convergem em uma perspectiva sociocultural. Visando uma
melhor exposição da temática nos apoiaremos em autores como Marcelo
Mouss, no que se refere ao aspecto fato social total, e Mikhail Bakhtin com sua
concepção de hibridismo.
O que chamamos de capoeira hoje, tem seus fragmentos de resistência
a muito tempo antes dos primeiros registros palpáveis, foi criada de forma
velada desde o século XVI, esponjosa culturalmente do escravo aos libertos, os
deserdados de todas as formas pela Paidéia dominante. Sua expressão como
estrutura coletiva, no entanto, se evidencia na segunda metade do século XVIII,
com a nova geração dos afro-brasileiros nas suas manifestações saudosas de
canto, dança, luta e religião que se estruturam através das “linguagens”,
estendendo-se por todos os a fazeres dos escravizados.
Vamos acompanhar neste artigo os costumes repassados pelos mais
velhos aos mais novos chegando aos nascidos e criados no Brasil, “o local”
termo direcionado aqui para os negros escravizados que sabiam falar
português e conheciam os costumes.
Eram chamados de "negros ladinos" (derivado de "latinos", mas
já com a conotação de "esperto"). Em geral, os escravos
mestiços eram apenas chamados de mulatos, já
subentendendo-se que sabiam falar português e conheciam os
costumes locais como os escravos crioulos. (RIBEIRO, 1995, p.
275).

Prováveis inventores da capoeira da forma que conhecemos,


responsáveis por boa parte da cultura popular brasileira, diásporos como diz o
mestre Pastinha, a história da capoeira se inicia com a vinda dos primeiros
escravos para o Brasil. Compare:
Os negros africanos, no Brasil colônia, eram escravos e nessa
condição tão desumana não lhe era permitido o uso de
qualquer espécie de arma ou prática de defesa pessoal que
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

pudesse pôr em risco a segurança de seus senhores. Viu-se


nessas circunstâncias a capoeira, tolhida em seu
desenvolvimento, sendo praticada nas escondidas ou
disfarçada, cautelosamente. (PASTINHA, 1988, p.28).

Prática de nome capoeira, palavra usada anteriormente em situações


como a do jargão “foi pra capoeira”, usada para os desertores das forças
armadas ou boi fujão. De acordo com Edison Carneiro (1977), “do negro que
fugia dizia-se: foi para capoeira, caiu na capoeira, meteu-se na capoeira”.
Cumpre ressaltar que a palavra capoeira é polissêmica e possui uma
plurivalência viva frente à univocidade de um conceito fechado e nesse sentido,
ganha significado quando relacionada aos seus contextos, para Bakhtin (2006),
“ainda que haja tantas significações possíveis quantos contextos possíveis”...
Dessa forma um capoeira não era somente o negro fugitivo, esse tinha
outro nome: canhambora ou o mais conhecido quilombola. Entre os inúmeros
escravizados que se habilitavam a fugir, as maiores chances ficavam como os
mais espertos logicamente, ou aqueles que tinham uma certa “liberdade” como
os crioulos e mulatos, brasileiros confirma Ribeiro (1995, p. 275) “no Brasil do
século XIX e anterior chamava-se de crioulos os escravos não mestiços que
tinham nascido na terra, diferenciando-os daqueles nascidos na África”, o local
envolvido e envolvendo os costumes no seu dia a dia.
Costumes em processo de aculturação pelo hibridismo cultural, por
exemplo, o sincretismo envolvendo as religiões das várias etnias do continente
africano, aqui representadas pelos bantos e iorubás em contato com as etnias
indígenas envolvidos com os calundus, criando o candomblé junto aos credos
cristãos. Fornecedores de símbolos da tradição afro-brasileira em suas várias
formas de apresentação.
Desse modo, podemos associar as religiões individuais dos capoeiristas
na soma da religiosidade popular, aparecendo de várias maneiras em que a
devoção se expressa no jogo, proporcionando os elementos religiosos
envolvidos na capoeiragem pelos símbolos sincréticos e gestos dos negros,
crioulos e mestiços cuja a religião é o candomblé, que no contexto histórico
brasileiro encontrava-se em sincretismo, consequência da colonização e
escravização desses homens e mulheres, que em momentos de banzo
(saudade) transformavam essas ocasiões criando ritos, danças, músicas e
práticas esquecendo um pouco o sofrimento do cotidiano.
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

Com base nesse contexto de vida social brasileira acreditamos ter


encontrado os indícios do hibridismo religioso no dia a dia dos primeiros
negros, índios e colonizadores ao longo de suas histórias, fornecedores de
culturas para os crioulos e mestiços atribuindo-lhes as palavras, os gestos e
comportamentos que traduziriam seus sentimentos, ideias e regras
estabelecidas em seus convívios onde encontramos os capoeiristas nos
terreiros de candomblé da mesma forma nas missas católicas, que ao final das
liturgias combinavam com as orações de proteção de corpo e alma nos cultos
itinerantes, regados de instrumentos e cantos propícios as rodas de capoeira
de porta de igreja pela “fresta do muro hegemônico3”, momentos oportunos de
devoção aos santos católicos compartilhando os múltiplos sentidos pelo plural
religioso, movidos musicalmente mantendo por perto outros costumes como
samba de roda e culinárias… que inicialmente eram desprezados por nossa
sociedade, hoje é o bojo de nossa cultura, como nos diz Araújo:
Na ambiguidade de nossa história, são vítimas os negros,
numa sociedade que os exclui dos benefícios da vida social,
mas que, no entanto, consomem os deuses do candomblé, a
música, a dança, a comida. Uma cultura que guarda, através
de sua história, um rastro profundo de negros africanos e
brasileiros, mulatos e cafuzos, construtores silenciosos de
nossa identidade. (ARAUJO. 2007, p.5).

Identidades culturais em diálogo constante pelos rituais e receitas de


vida desses homens e mulheres de trabalhos velados até ontem obscuros!
Tendo como porta de saída os terreiros. No caso da capoeira chega às ruas e
praças sinuosamente em momentos oportunos como já falamos, o detalhe
possível seria nas saídas dos “candomblés itinerantes4” apresentando a
capoeira à sociedade moderna chegando à condição de prática esportiva sem
afastar o estigma social subalterno, sendo inclusive confundida pejorativamente
muitas das vezes como “macumba” ou coisa de vagabundos.
A luta virou jogo por intermédio da ginga, servindo de fronteira evitando
que os corpos entrem em contado direto, sendo possível oferecer e negar os
golpes no jogo de roda por ritmistas e capoeirista, ambiente mutuo que no

3
Melhor em: provocação histórica: Lindener Pareto recebe Luiz Antônio Símas. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=ZrhPnjNKUKs&list=WL&index=18. Acesso em: 16h, 04/10/20.
4
Termo usado por Vovô do Ilê, referindo-se os primórdios do carnaval da Bahia no documentário
Mojubá no www:portal.novafutura.com.br, no mesmo sentido, Roger Bastide em seu estudo “O
candomblé na Bahia” nomeia de o “candomblé de brincadeira na pescaria de Itapoan” conhecido
também pela puxada de rede. (BASTIDE, 1979, p.95).
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

individual pedem proteção de acordo com seus credos. Dos quais, os mais
expressivos vêm dos elementos sincréticos entre catolicismo e candomblé,
aculturação pela religião judaico-cristã e cosmovisão africana no
desdobramento caboclo de linguagem capoeirana. Nesse sentido, articulo com
as batidas dos atabaques.
Gerando som, marcando e regendo as atividades ancestrais,
resultando em várias culturas ao longo dos tempos, como
samba de roda que se desdobra no samba, regendo o
Carnaval, frevo e as capoeiras Regional e Angola. (PRADO,
2019, p. 41).

Manifestações em diálogo constante pela religiosidade afro-brasileira de


bojo cristã, um plural religioso onde encontramos os símbolos herméticos e
sagrados, elementos e sinais que podemos chamar de alguma forma de
mandinga no jogo da capoeira, pelas crenças dos antepassados como o uso do
patuá, dito como amuleto de proteção levando externamente uma estrela ligada
a cruz e o nome do orixá do devoto, internamente vai outros ingredientes como
vamos conferir mais à frente no texto, mostrando a importância desses
símbolos para os capoeirista marcando os lugares onde acontece o jogo de
roda, antes a ladainha contando uma história em forma de oração ouvida por
todos que respondem em couro… “iê viva meu mestre… iê viva meu Deus”…
no baixar do gunga… “iê vamos se bora…” é nesse momento que afloram os
credos individuais de proteção como o debalê, trindade e outras rezas…
Como exemplo, citamos o mestre Cobrinha Verde e suas preces,
encontradas no livro “Capoeira e Mandinga” do seu discípulo Marcelino, mestre
Mau, vejamos uma delas “Jesus nasceu da virgem, traz a virgem em seu
poder… minhas onze mil virgens, não me deixe padecer” (SANTOS, 1990,
p.26), oração de proteção individual viajando no tempo, assim como essa
existem outras tantas rezas e mandingas derivadas da capoeira de Santo
Amaro. Características dos primórdios da capoeira ainda nos moldes do
batuque, aculturando-se de acordo com o meio onde se estabelece um
verdadeiro devir. Sobre o que estamos aqui tratando nos diz Marco Antônio na
citação seguinte:
Supor que os elementos religiosos da Capoeira estão apenas
no canto é um engano: se tudo que o africano fazia no seu dia
a dia estava impregnado da sua cosmovisão e tinha um caráter
que o colonizador chamaria de religioso, o jogo da Capoeira
também deve ter sido criado com a mesma atitude. A Capoeira
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

não é uma prática religiosa, mais foi criada por pessoas para
quem tudo na vida tinha uma profunda ligação com o
sobrenatural e que, numa perspectiva euro centrada, seria
chamado de sagrado. “Desenvolvida num cenário frequentado
por diferentes etnias africanas escravizadas, a presença de
várias cosmologias e cosmovisões deve ter sido frequente,
cada vez que se fazia uma roda” (FONTES DE SÁ, 2018 n.32).

Assim foi cunhada a capoeira que conhecemos, dando e recebendo,


compondo um cenário em que os elementos religiosos se fundem em seus
contextos socioculturais carregando subsídios ideológicos múltiplos. Desse
modo veremos que a capoeira mesmo sem ser religião, incorpora os elementos
religiosos em suas práticas e que, sem esses elementos perderia “uma” das
partes em sua origem.
Nessa perspectiva este estudo se justifica na medida em que irá trazer
uma contribuição para o campo das Ciências da Religião, bem como para os
praticantes e interessados na arte capoeira. Diante dos escritos acima, vamos
para uma abordagem metodológica ligando a capoeiragem com a teoria de
Bakhtin do hibridismo cultural.

Hibridismo e linguagem religiosa

Para uma abordagem teórica metodológica do sincretismo religioso


proporcionado pela capoeiragem, faremos uma ligação com a teoria do
hibridismo cultural oferecendo perspectivas para leituras do discurso simbólico
da linguagem, através da música, ritos e práticas ocasionando singularidades
na linguagem dialógica durante as relações, explica Bakhtin:
As relações dialógicas são fenômenos muito mais amplos do
que as meras réplicas de um diálogo, apresentadas
composicionalmente no texto; um fenômeno quase universal, a
permear todo o discurso humano e todas as relações e
manifestações da vida humana, em geral, tudo quanto tem
sentido e significação. (BAKHTIN, 2011, p. 40).

Chamado de hibridismo cultural constituindo um fenômeno histórico-


social e natural que existe desde os primeiros deslocamentos humanos abrindo
fronteiras entre grupos distintos. O Brasil hibridiza no “descobrimento” pelos
contatos eminentes entre os pré-cabralianos e colonizadores, posteriormente a
escravização e outros imigrantes que chegam híbridos e diferentes, trazendo
seus costumes para as fronteiras das crenças e ritmos ao passo da primeira
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

partilha no cotidiano de procedimentos unificados e sistematizados de forma


aleatória compreendendo a mudança da linguagem nos momentos
imprevisíveis durante as atividades construtoras de identidades esclarece
Magalhães:
A mudança linguística não resulta de abstrações, mas de
ações de pessoas reais em seus fazeres é fenômeno natural
da constituição e evolução das civilizações através da
aculturação, prova de que, mesmo com todo esforço não
conseguimos preservar as primeiras formas culturais de uma
nação, como expressa “o homem está aberto a novas maneiras
de interagir culturalmente, como mais um recurso de
sobrevivência num mundo que tem a mudança como traço
essencial”. (MAGALHÃES, 2018, p.5-6).

Dessa forma o sujeito que depara analisa e relata a convivência entre


culturas, línguas e tradições distintas entre si promovem o encontro de ideais e
costumes. Como no caso dos distintos povos do continente africano e outros
que aportaram no Brasil de posse de suas identidades culturais e seus
históricos particulares em contato com os “índios” que também, eram e são
possuidores de identidades em suas várias nações do território brasileiro.
O Brasil é referência apontadora de etnias na formação do seu povo
apresentando um hibridismo cultural de crenças, mitos e ritos, fenômenos
esses ocorridos na conquista do país onde as forças se aniquilaram até
harmonizar culturalmente, é importante ressaltar uma não-finalizibilidade, como
disse Bakhtin (2011) “não havendo ápice da história”. Uma interação constante
com o outro confirma o filósofo russo:
O outro nos constitui por pertencermos a relações sócias
históricas complexas e contínuas. Não há como escapar das
alteridades que a história concreta em que vivemos nos
descortina. E quando evitamos alteridades específicas, é
porque elas já passaram a fazer parte de nossa trajetória. Ser
meio para outro, e através do outro para si mesmo. Uma
pessoa não tem território interno soberano, está sempre e
totalmente na fronteira; olhando para dentro de si mesma, ela
olha nos olhos do outro com os olhos do outro. (BAKHTIN,
2011, p. 287).

Bakhtin atribui ao outro toda a parte verbal de nosso comportamento se


referindo a linguagem exterior ou interior evitando ser conferida a um sujeito
individual considerado isoladamente. Assim podemos trabalhar com o que
Bakhtin chamou de Metalinguística, uma disciplina nas fronteiras da linguística,
da filosofia da antropologia, da teologia e dos estudos literários capazes de
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

interpretar formas de pensar e agir de maneira aberta. Lembrando que a


diversidade é o elo de encontro das diferenças e dos antagonismos com
resultados sempre imprevisíveis. O dialogismo ou polifonia é a não-
finalizibilidade onde as teorias de acordo com Bakhtin (2007) “podem ser
resistências inventivas indicando processos criativos vivendo nos subterrâneos
de uma história que se cansa do excesso de controle, repetição e formalidade”.
Ficando claro na teoria de Bakhtin “que a sempre algo à espreita no
processo da cultura que quebra a linearidade do discurso, abrindo as portas
para o hibridismo cultural”, possibilitando a leitura da linguagem do jogo da
capoeira embalada pela música, ritos e suas diversas práticas de cunhos
religiosos, dentro e fora da roda como vamos conferir no tópico seguinte.

A capoeira como espaço de múltiplas experiências religiosas

A capoeira torna-se dialógica culturalmente por conta de seus


relacionamentos sociais e psicológicos ligados aos praticantes, dando e
recebendo do entorno tecido por uma linguagem cultural diversificada
envolvendo luta-arte-religião, que não necessariamente precisa obedecer a
esta ordem, e sim relacionada ao credo do capoeirista como já falamos!
Deste modo, um fato social total interagindo com as necessidades
espirituais em suas práticas redutoras de fronteiras se direcionando ao
hibridismo religioso por meio da linguagem construindo ou narrando os
acontecimentos, “fatos complexos misturando tudo o que constitui a vida social,
com as sociedades que antecederam as nossas. São chamados de fenômenos
sociais totais, abastecendo-os e sendo abastecido”. (MOUSS, 2003).
Como de fato! Não seria de todo absurdo pensar que em raros
momentos de socialização e repouso os escravizados movidos por sentimento
nostálgico dançavam em qualquer lugar fazendo uma roda de batuque que
naturalmente evoluía para uma dança animada. Carneiro é enfático ao tratar
desse tema:
A competição mobilizava um par de jogadores de cada vez.
Estes, dado o sinal, uniam as pernas firmemente, tendo o
cuidado de resguardar os órgãos sexuais. Havia golpes como
encruzilhada, em que o atacante atirava as duas pernas contra
as do adversário, a coxa lisa, em que o jogador golpeava coxa
contra coxa, acrescentando ao golpe um rapa, e o baú, quando
as coxas do atacante davam um forte solavanco nas pernas do
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

adversário. Todo o esforço dos jogadores concentrava-se em


ficar em pé, sem cair. Se perdesse o equilíbrio, tombasse, o
jogador teria irremediavelmente perdido. Era comum, por isso,
ficava os batuqueiros em banda solta, equilibrados em uma
única perna, a outra no ar, tentando voltar à posição primitiva.
Nesse cenário são elucidativos ao afirmar que o batuque é o
pai da capoeira. (CARNEIRO, 1976, p.112).

No bater dos couros surgem as manifestações populares no suor do


preto pelo branco insinuando seus valores religiosos e outros costumes e
saberes preenchendo a cultura brasileira durante seu processo civilizatório,
“impregnado de traços culturais africanos valorizando os modos de ser e viver.
Pode-se afirmar que a África e suas matrizes culturais estão entre nós” (LIMA,
2010). Por sua vez o pintor, desenhista Jean-Baptiste Debret (1768-1848) em
seu livro “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, detalha o que viu:
O escravo parava na rua e começava a cantar; outros, que
eram seus compatriotas, reuniam-se em torno dele e
acompanhavam-no com um refrão ou certo grito, um tipo de
refrão estranho articulado em dois ou três sons. Após o canto,
começava uma pantomina improvisada por aqueles que iam
para o centro do círculo. Durante a encenação, as faces dos
atores ficavam possuídas por ‘delírio’. Outros ainda batiam
palmas, duas batidas rápidas para uma lenta. Com o fim da
canção, o encantamento desaparecia; cada um seguia seu
caminho friamente, pensando no açoite do senhor e na
necessidade de terminar o trabalho que fora interrompido pelo
delicioso intermezzo. (DEBRET, 1834, p.39).

As rodas de capoeira nos centros urbanos e outros lugares… tornaram-


se corriqueiras. Apesar disso, os leigos pensam que é macumba, talvez por
conta da batida do atabaque acompanhando os berimbaus, características
semelhantes aos cultos das religiões afros. Aumentam essa ideia os embalos
das canções, exaltando os santos católicos; o que é corriqueiro nas portas das
igrejas, onde se cantam as ladainhas e são feitas rezas, tidas como forte na
proteção do capoeirista, como exemplo a oração do mestre Cobrinha Verde,
enfatizada no livro do mestre Marcelino:
Meu anjo da guarda, semelhança do senhor, eu peço aos
benditos do amparo guardador, que do laço do demônio queira
me defender, hoje, por toda noite, amanhã, por todo o dia, meu
corpo não seja preso, nem minha alma perdida, nem meu
sangue derramado, nem perdido nem achado, doce Jesus da
minha alma, Senhor do meu coração a vós confesso a minha
culpa, para ver quantas elas são, que vós me dês o perdão e
também a ressurreição. Nesta vida eu quero paz e na outra
salvação! (SANTOS, 1990, p.28).
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

Mestre Cobrinha Verde segundo seus relatos foi aluno de Besouro


Mangangá que foi aluno de Tio Alípio de Santo Amaro. Cobrinha deixou um
legado de orações e rezas para as novas gerações de mandingueiros, desse
ou daquele modo a capoeira passou a ser um jogo matreiro cheio de malícia no
qual a violência cedeu o lugar a ludibriação no jogo de roda dos ociosos após o
trabalho braçal nos cantos de mercado e rampas de beira de cais.
Momentos de trocas entre os africanos e outros mestiços libertos,
liberando suas partilhas de costumes nesses encontros itinerantes de capoeira,
podendo ser entendida da mesma forma que as irmandades religiosas durante
as “reuniões de batuque como um espaço construído por escravos e libertos,
africanos e crioulos, como afirmação de apoio e de solidariedade entre os
membros de um mesmo grupo”. (MATTOS. 2008, p.185).
Aglomerações como a registrada na tela “Danse de La guerre” de
Johann Moritz Rugendas possivelmente desenhada entre os anos 1824 a
1834; mais à frente, aproximadamente 60 anos depois a capoeira aparece na
forma que a conhecemos como mostrou Augusto Januário em seu livro
“Capuêra e a arte da capueragem” salienta o mestre Onça:
a primeira referência de uma roda de capoeira pública se deu
na praça em frente à igreja de nossa senhora da Purificação no
município de Santo Amaro no dia 12 de abril de 1882, tendo
como mestre o Tio Alípio”. (SILVA, 2003, p.117).

O registro é feito seis anos antes da abolição da escravatura, a


informação se agrega a outros estudos indicando epistemologicamente os
indícios da capoeira para a essa região portuária baiana, rica de cultura negra!
A cultura no recôncavo é de origem africana, tendo influências
dos Cabinda, Benguela, Jeje, e outros que falavam seus
idiomas maternos. Também era local de embarque e
desembarque de mercadorias, assim, mantiveram vínculos
importantes com os grandes centros comerciais partindo do
porto de Salvador, daí para o restante do mundo, sendo a
região que deu apoio à Revolta dos Malês. Supostamente de
acordo com os historiadores, Ali surge à deriva do batuque a
capoeira como luta e dança. (PRADO, 2019, p.14).

O mestre Augusto Januário diz que a capoeira é uma coisa de faz de


conta no espaço social simulando “uma negociação política travada entre os
negros e os brancos no Brasil em busca de autonomia e reconhecimento no
longo processo da escravização” (SILVA, 2003, p.118), ainda com o mestre dona
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

Onça chamando nossa atenção para música do mestre Nilton Macumba


representando as circunstâncias de uma sociedade presa ao pensamento
eurocêntrico, vejamos o lamento: “No tempo do cativeiro quando o senhor me
batia, eu rezava por nossa senhora meu Deus, como a pancada doía”, a
canção representa sofrimentos abafados por religiões, principalmente a cristã!
A música na capoeira é responsável pelo ritmo do jogo, mais também
pelas histórias, estórias e rezas ditas de proteção, o cantador se deixa levar
pela emoção da roda libertando seu espirito de guerreiro através das ladainhas,
chulas, quadras e corridos que tem as suas lógicas de acordo com os
costumes repassados dos mestres para os alunos, as cantigas são recheadas
de signos religiosos e relatos dos velhos mestres, assim como o entorno
contextual social.
Como realidade contextual podemos falar de Besouro Mangangá, esse
era o apelido do famoso capoeirista natural de Santo Amaro, sua capoeira tinha
ligação com a magia da cosmovisão africana e catolicismo popular por meio
dos valores do candomblé. Ainda hoje se cantam suas façanhas nas rodas de
capoeira “zum, zum, zum besouro mangangá bateu foi na polícia de soldado a
general” música de domínio público, igualmente a outras cantadas nas rodas
em homenagem ao aluno e sobrinho do mestre Alípio do recôncavo baiano.
Besouro homem de fé carregava um amuleto no pescoço para manter
seu corpo fechado contra objetos perfurantes de metal. O colar já aculturado de
nome patuá, originário das escrituras do alcorão de uso dos hauças e
mandingas e outros islamizados, negros que sabiam ler e escrever assumiam
cargos de confiança podendo ser domésticos e outros, como o de capitão do
mato, esse último surge principalmente após o aumento das fugas dos
escravizados, implicando na criação dos quilombos.
Dessa forma ou de outra, o colar que antes tinha as escrituras do
alcorão, é aculturado no pescoço de outros escravizados não islamizados,
consequentemente como desface na tentativa de ludibriar o perseguidor. As
vezes era descoberto a farsa no ato de ler as escrituras. Com o tempo o
talismã islâmico virou o patuá do candomblé baiano, daí o velho ditado: “quem
não pode com mandinga não carrega patuá” sincretismo religioso envolvendo
várias etnias e suas crenças no âmbito do candomblé, chegando na capoeira a
confiança do corpo fechado.
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

Credos que se arrastam desde os primeiros passos até antes do meio


do século XX com o novo cenário da capoeira, um divisor de águas a partir do
mestre Bimba e seus acadêmicos na sequência mestre Pastinha e seus
discípulos. Mestres que iniciam em Salvador uma escalada a descriminalização
uma espécie de dissociação da religião na prática da capoeira por meio da
sistematização e organização através das escolas em espaços fechados, os
centros desportivos, vejamos o que disse o mestre Bimba: “Em 1918, não havia
escola de capoeira, havia roda de capoeira nas esquinas e portas dos
armazéns e no meio do mato, a polícia proibia” Almeida (1994, P.17). Situação
desconfortável até a inauguração dos centros: de Cultura Física Regional-
CCFR e o Esportivo de Capoeira Angola-CECA. Essas escolas estabeleceram
maneiras de ensino com base em antigas tradições e inovações.
Ambos os mestres são urbanos e foram os responsáveis por boa parte
da socialização e ensinamentos praticados hoje nos grupos e academias de
capoeira, os saudosos mestres Bimba e Pastinha fizeram suas conexões do
passado com presente possibilitando esta conversa de termos êmicos, uma
ligação com a ancestralidade. Na prática legitima um capoeirista ou uma escola
por meio dessas vinculações com os saudosos mestres via pertencimento das
linhagens sobre isso, vejamos o que diz o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional:
Reconhecendo sua ligação com práticas ancestrais africanas,
fortalecendo ações que vinculam uma política de reparação do
processo de apagamento da memória afro-brasileira e do
genocídio do povo negro. A preservação do Patrimônio Cultural
Imaterial adota à capoeira e abrangem as expressões culturais,
as tradições guardadas em respeito da sua ancestralidade,
para as gerações futuras. “São exemplos de patrimônio
imaterial: os saberes, os modos de fazer, as formas de
expressão, celebrações, músicas, costumes e as tradições”
(IPHAN, decreto 3.551, 2000).

Quanto às formas de expressão, celebrações, músicas e costumes e as


tradições, buscaremos traçar alguns limites e semelhanças entre os mestres e
seus estilos Regional e Angola: o mestre Bimba era candomblezeiro atuante,
Ogân e evitava misturar religião com capoeira na CCFR, provavelmente
envolvido com a luta propriamente dita; posteriormente por incentivo do seu
aluno Decanio, foi introduzido o signo de Salomão como brasão da academia,
o desenho já popular encontrado facilmente nos patuás, chapéus de
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

cangaceiros e nas carroças de tração animal e muros da periferia de Salvador,


o símbolo misterioso sincrético circula no Brasil desde 1900, formado por uma
estrela de cinco pontas anteriormente, com o toque do mestre Decanio passa a
ter seis pontas idêntica à dos judeus, mantendo a cruz cristã na ponta superior
do centro.
De tal modo o símbolo popular dos deserdados brasileiros do início do
século XX é ressignificado na CCFR e devolvido as ruas pela capoeira, hoje o
símbolo é encontrado na maioria das rodas como proteção e adorno das
escolas e dos capoeiristas. Vejam o que diz seu ex-aluno Osvaldo de Souza
um dos últimos a conviver com o mestre Bimba na cidade de Goiânia:
O Signo do Salomão, padroeiros dos capoeiristas é usado no
braço, perna ou peito, como tatuagem ou em uma bolsinha que
se prende ao pescoço, também chamada de patuá, que
segundo a crendice vigente defende o portador contra
malefícios, mormente contra as tramas dos desafetos, a morte
no combate e fecha o corpo das facas e tiros. Além do signo, a
bolsinha contém um pedacinho de alho, raiz de Dandá, miloma
ou arruda, cravo ou qualquer objeto sagrado para o orixá a
quem o capoeirista é consagrado. (SOUSA, 1996, p. 48).

Voltando a CCFR e o uso do brasão dando visibilidade a capoeira regional:

De uniforme branco com bordado azul no centro da camisa na


altura do peito, o brasão Símbolo do São Salomão,
representando a escola, uma ideia do seu aluno Ângelo
Augusto Decanio Filho, conviveu 36 anos com o Mestre, um
dos colaboradores da Regional. (PRADO, 2019, p.36).

Decanio ressignifica os valores daqueles que atualizam suas crenças


sob forma de jogo, um hibridismo em andamento desde os primeiros
capoeiristas pelas trocas na “dialética da mandinga”, modo de proteção que
nunca é demais, mesmo nos momentos de camaradagem. Podendo ser
problematizada essa interação pela palavra, “o signo ideológico por excelência
e também uma ponte entre mim e o outro, possível pela troca de experiências
tornando um signo adequado às condições”. Bakhtin (2003, p. 132).
A troca é principal característica da história cultural problematizada pela
linguagem, entendendo-a como instância geradora de sentidos e influências
externas em contato com as normas sociais dos grupos, um verdadeiro devir
se estendendo na linguagem dos capoeiristas perante seus “protetores”,
representados pelos signos nos levando acreditar que além do jogo atlético
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

está embutido outros significados na roda de capoeira, vejam o que o mestre


Pastinha disse: “a capoeira é muito mais do que uma luta, capoeira é ritmo é
música é malandragem é poesia é um jogo é religião é mandinga é malicia é
tudo que a boca come”, gravado em 1969 no seu LP “Capoeira Angola e sua
Academia” as palavras que ecoando no tempo, filosofias do mestre do
pelourinho reverberando na capoeira não se limitando ao domínio dos
movimentos, contudo a abrangência na totalidade do Ser capoeirista, o qual na
capoeira Regional é iniciado pelo batismo, momento de enfrentar um
capoeirista formado ao som do berimbau, na sequência recebe o apelido ou
nome de guerra, mestre Itapoan comenta o batismo na academia de mestre
Bimba:
Era um momento de grande emoção, pois se tratava de jogar
capoeira pela primeira vez na roda amimada pelo berimbau.
Era escolhido um formado ou um aluno mais velho da
Academia que estivesse na aula, que como padrinho
incentivava ao afilhado a jogar, e após o jogo o Mestre no
centro da roda levantava a mão do aluno e então era dado um
apelido com o qual passaria a ser conhecido na capoeira.
(ALMEIDA, 2019, p. 37).

Momentos que lembram a catequização e outras influências religiosas


frequentes pelas trocas internas e externas aparentes na capoeira, sejam no
estilo que for, no caso do batismo é obrigatório na Regional cuja sua filosofia
vem das parábolas do mestre Bimba, semelhante a CECA do mestre Pastinha
aparentemente cristão e de boa filosofia pelas várias citações notáveis que se
espalham no mundo da capoeira, por exemplo “quando as pernas fazem
mizerêr” entendido por Decânio como algo sobrenatural de acordo com sua
interpretação e relatos nos livros da coleção São Salomão de sua autoria: “O
Transe Capoeirano” e “A Herança de Pastinha” (1993, p.39) escritos fazendo a
ponte espiritual pelas frases do mestre angoleiro: “esse faz de conta vai-mais-
não-vai”… disse Decanio, “é o verdadeiro fundamento da capoeira”, acrescenta
Pastinha “o capoeirista não é aquele que sabe movimentar o corpo e sim o que
se deixa movimentar pela alma”, definindo a capoeira como “mandinga de
escravo e ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

inconcebível ao mais sábio capoeirista…” o mestre deixou a entender a não-


finalizibilidade da capoeira, reforçando a ancestralidade disse:
Com fé e coragem para ensinar a mocidade do futuro estou
apenas zelando para esta maravilhosa luta, deixando de
herança adquirida da dança primitiva dos caboclos do batuque,
e candomblé, originado pelos africanos. (FILHO, 1993, p.39).

No pensamento de Pastinha a capoeira deriva dos ritmos e movimentos


dos africanos e caboclos, interagidos no batuque do candomblé, confirma Erico
Tavares da Universidade Estadual de Campinas em sua tese de doutorado,
“Capoeira Angola: Cultura Popular e o Jogo dos Saberes na Roda”, se
aproximando das palavras do angoleiro e nos diz:
A principal característica da capoeira reside na valorização de
sua herança africana através de um sistema ético-estético
próprio, calcado em valores específicos que guardam relação
com a religiosidade afrodescendente. Partindo do pressuposto
de que a capoeira é uma prática altamente dinâmica, resultante
de um processo histórico. (CARVALHO, 2004, p.173).

Historicidade de acordo com as trocas entre as etnias formadoras da


religiosidade popular apresentando-se de várias formas, sempre com o pé
atrás na espreita, dessa forma não se entra em uma roda sem antes pedir
proteção aos deuses ou aos orixás. Na capoeira não existe filosofia ou arte
distante do sagrado são contribuições ancestrais que chegaram até os dias
atuais por meio dos legados dos saudosos mestres baianos que de alguma
forma preservaram, inovaram e repassaram as tradições do jogo de roda e
suas fusões estético-religiosas na música pelos instrumentos ancestrais nos
toques de São Bento pequeno e grande levando os cantos acompanhados de
palmas.
O ritual é seguido de movimentos corporais protegidos por rezas em
forma de cantigas invocando os santos católicos e os orixás no amparo
individual de cada capoeirista, assim como no coletivo constatando a presença
do hibridismo religioso, afirma Galvão,
desde os primórdios, “até nossos dias, assistimos a uma
constante mistura de elementos religiosos versando sobre a
fusão de catolicismo com candomblé quanto sobre a
sobrevivência de crenças indígenas. (GALVAO,2006, p.12).

Sincretismo ou polifonia simbólica religiosa que segundo Bakhtin revela


os encontros culturais que se realizam em contextos específicos, mas que
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

determinam às práticas e formas de compreensão dos fenômenos em que se


inserem. Por meio dessa abordagem teórica preliminar da presença de
elementos religiosos e das diferentes correntes de crenças, observando a
historicidade dos fenômenos, buscamos entender a importância da noção de
hibridismo religioso preenchendo a capoeiragem.
Tratamos aqui de um conjunto de representações construídas pelos
grupos sobre si mesmos e sobre os outros, estabelecendo percepções e
fronteiras classificatórias de pertencimento em sincretismo religioso,
enquadrando-se como fato social total pelas religiões envolvendo a capoeira.
Logo entendemos que a religião é individual e a roda abastada de significados,
dos quais nos limitamos aos preceitos mais expressivos com relação ao
sagrado de um capoeirista podendo ser diferente aos demais participantes da
roda e assim sucessivamente. Diante da pluralidade de crenças religiosas a
capoeira passa a ser uma parte fundamental na construção social dos
indivíduos pelo ambiente diverso-cultural da capoeiragem dando espaço a
identidade religiosa na roda.
Nessa relação com as diferentes crenças os indivíduos vão criando suas
próprias representações individuais não tendo como ser controladas
absolutamente por nenhuma instituição religiosa. E não é o interesse, até por
que a religião não é da capoeira e sim do capoeirista. A questão da
religiosidade na capoeira pode ser também problematizada por intermédio da
concepção do discurso “já que se trata da produção constante de enunciados
que pretendem ser verdadeiros acerca da vida, do mundo, da ordem social, da
vivencia religiosa e outros”. Michel Foucault (1969) fazendo compreender que o
gingado da capoeira não é só uma base móvel de lançamento dos golpes
desequilibrantes e traumatizantes, assim como esses movimentos não são
somente golpes, os ajustes vêm na interpretação da linguagem complexa
envolvendo múltiplas relações socioculturais, as quais requer maior
aprofundamento.
Dessa forma a capoeira ressurge na modernidade tornando-se multi-
referencial e étnico-patrimonial nos modos de viver e dizer o mundo, como
vimos neste artigo através símbolos envolvendo elementos herméticos ou
sagrados nas músicas e ritos práticos e outros valores, tendo suas
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

funcionalidades sobrenatural no jogo, no canto, no toque dos instrumentos


como motivações para estar em uma roda de capoeira.
Finalmente mesmo com todo este simbolismo religioso, entendemos que
a capoeira não é religião, aparece como espaço sociocultural de fenômenos
em que o religioso apresenta seu caráter híbrido, abrindo as portas para o
pluralismo religioso brasileiro ou religiosidade popular. Dessa forma a religião é
do capoeirista, assim na capoeiragem como um fato social total podendo ser
visualizado e compreendido como um processo em que os sujeitos se
constroem ao tempo em que constroem suas relações com o mundo, levando a
crer que a roda de capoeira é maior que a própria roda… extensões das
expressões dinâmicas dos valores e crenças daqueles que a fazem o lugar de
convivência em objeto de reflexão contínuo. Antes de finalizar gostaria de
informar que este estudo não tem maiores pretensões deixando o caminho
para outras pesquisas sobre o tema. A história nunca está encerrada, há um
jogo a mais, há possibilidades abertas… Iê vamos se bora…

Bibliografia:

ALMEIDA, Raimundo César Alves. A Saga de Mestre Bimba. Salvador: Ginga,


1994.
ARAÚJO, Fábio Moreira. A Capoeira e Sua Formalização. In: Iê, Capoeira! nº
7, On Line Editora, ano I, 1999.
BAKHTIN, M. (1927) Freudism. Nova York: Academic Press, 1976. (1926) Le
discours dans la vie et dans la poésie. In: TODOROV, T. Mikhaïl Bakhtine: le
principe dialogique. Paris: Éditions du Seuil, 1981. Os originais foram escritos
entre 1934 e 1935.
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem, série Janua Linguarum
(Haia-Paris,1972) e traduzida para o inglês (Nova Iorque, 1973), 12ª Edição
HUCITEC, 2006.
CARNEIRO, E. A Sabedoria Popular. Rio de Janeiro: Edição de Ouro (1948),
Civilização Brasileira, 1978.
DECÂNIO FILHO, Ângelo Augusto. A herança de Pastinha. Salvador: Coleção
São Salomão, Salvador, BA. 1996.
DORNE, V. D. De sinal a signo: a palavra (discurso) em Bakhtin, IV EPCP,
2009.
FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin:
conceitos chave. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 2008.
FIORIN, José Luiz. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAITH, Beth
(Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 161-
193.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1997.
Academia Brasileira de Capoeira – ABC – Mestre Puma

FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª edição. Rio de


Janeiro. Nova Fronteira. 1986.
GEERTZ, Clifford, 1926- A interpretação das culturas / Clifford Geertz. - I. ed.,
IS. Reimprimido - Rio de Janeiro: LTC, 2008. 323p.
GALVAO, W. N. Hibridismo religioso na literatura brasileira. Imaginário, São
Paulo, v. 12. 2006
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - decreto 3.551,
2000.
MAGALHÃES, A. C. DE M. Contribuição da teoria de Bakhtin ao estudo das
linguagens da religião. HORIZONTE- Revista de Estudos de Teologia e
Ciências da Religião, v.16, n. 51, p. 1023, 31 dez. 2018.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. in: Mauss, M. Sociologia e
Antropologia. SP, Cosac Naif, 2003.
MARTINS, Bruno Rodolfo GRIFO: Faculdades Integradas Simonsen
Departamento de História Curso de Pós-Graduação em História da África e da
Diáspora Africana no Brasil. RAÍZES ÉTNICAS DA CAPOEIRA Rio de Janeiro,
2010.
PRADO, (Mestre Puma). Capoeira Regional: Luta do Mestre Bimba,
contribuição ao Estudo. Paulo Prado. Aracaju: Infographics, 2019.
PASTINHA, Vicente Ferreira. Capoeira Angola. Salvador: Escola Gráfica N.
Senhora do Loreto, 1964.
PASTINHA, Vicente Ferreira. LP capoeira angola academia do mestre Pastinha
Polygram, Salvador, BA,1969.
RIBEIRO, D. “O Brasil crioulo” In: O povo brasileiro: a formação e o sentido do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SILVA, A.J.P. A capuêra e a arte da capueragem. Salvador, BA. 2003.
SOUSA, O. Capoeira Regional com mestre Osvaldo. Gráfica Kelps. Goiânia,
GO. 1996.
SANTOS, M. Capoeira e mandinga: Cobrinha Verde. A Rasteira, Gráfica Santa
Barbara. Salvador BA. 1990.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano – A Negregada Instituição, Os Capoeiras no
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:1994.
TAVARES, Luiz Carlos Vieira – Virando o jogo: Mestre Bimba, de carvoeiro a
educador. 1. ed.- Curitiba, CRV, 2014.
Teses:
ABIB, P.R.J. Capoeira Angola: Cultura Popular e o Jogo dos Saberes na Roda.
Campinas, SP. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, SP,
2004.
BASTIDE, Roger, O candomblé da Bahia (Rito Nagô), trad. Maria Isaura
Pereira de Queiroz, São Paulo: Ed. Nacional, 1978.
Site:
Site:

https://www.youtube.com/watch?v=ZrhPnjNKUKs&list=WL&index=18. Acesso
em: 16h, 04/04/20.

Você também pode gostar