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Ponto cantado do espaço poético-político do Terreiro de

Umbanda em espaço de educação


PEDRO IVO CIPRIANO *

Resumo: Objetivo deste texto é apresentar possibilidades educativas das religiosidades


afrodescendentes no Brasil, em particular a Umbanda, em paralelo à educação escolar, usando o
ponto cantado nos terreiros de Umbanda como um mote criativo e detentora de conhecimento.
O significado que contém o conjunto de uma vivência religiosa na sociedade, tencionando a
obrigatoriedade da lei 10.639/03 nas escolas como reparação das humanidades vilipendiadas por
conta do racismo estrutural na sociedade brasileira inclusive no culto religioso, observa-se a arte
como conhecimento, a obra de arte como pensamento demandando uma educação dos sentidos,
prática continuada com base na ciência dos sentidos que sugere o diálogo das mesmas práticas
na educação formal. Em uma epistemologia da gira, maneira de cantar a vida, de pintar a vida e
descolonizar a mente, promove-se o uso da arte afrodescendente, macumbeira, fonte criativa e
inspiradora, para escrever uma história que visita os antepassados por via de um método
estético, tendo a arte como prisma. Proponho um deslocamento da macumba para a obra de arte.
A palavra associada ao ritmo, associada a uma performance afro, pensar o mundo partindo da
gira em uma educação afro que explora a arte como conhecimento e direito humano.
Palavras-chave: Gira; Estética; Educação; Arte; Direitos Humanos.
Singing point of the poetical-political space of the Umbanda Terreiro in education space.
Abstract: The objective of this text is to present educational possibilities of Afro-descendant
religiosities in Brazil, in particular Umbanda, in parallel with school education, using the
chanted point in Umbanda terreiros as a creative and knowledge-bearing motto. The meaning
that contains the set of a religious experience in society, intending the obligation of law
10.639/03 in schools as a reparation for the humanities vilified due to structural racism in
Brazilian society, including religious worship, art is observed as knowledge, the work of art as
thought demanding an education of the senses, a continued practice based on the science of the
senses that suggests the dialogue of the same practices in formal education. In an epistemology
of the gira, a way of singing life, painting life and decolonizing the mind, the use of Afro-
descendant art, macumbeira, a creative and inspiring source, is promoted to write a story that
visits the ancestors through a method aesthetic, having art as a prism. I propose a shift from
macumba to the work of art. The word associated with rhythm, associated with an Afro
performance, thinking about the world starting from the spin in an Afro education that explores
art as knowledge and human right.
Key words: Gira; Aesthetics; Education; Art; Human rights.

*
PEDRO IVO CIPRIANO é mestrando em Educação na Universidade Federal de Juiz de
Fora –UFJF, pós-graduado em Metodologia do Ensino de Artes pelo Centro Universitário Internacional –
Uninter, licenciado em Letras pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP. Artista plástico.
Macumbeiro pictórico. Membro do Museu da Memória Negra de Petrópolis. Membro do MIRADA-
Grupo de Estudo e Pesquisa em Visualidades, Interculturalidade e Formação Docente da Universidade
Federal de Juiz de fora – UFJF.

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O contexto histórico-social sempre enfrentamento contra o que Luiz Rufino
influenciou de maneira direta ou chama de “Carrego colonial” (2017,
indiretamente movimentos artísticos, p.30). Foi também a partir das artes
uma vez que os/as artistas são frutos do plásticas e da música que os terreiros re-
seu próprio tempo. As artes criadas e criam um lugar remanescente;
situadas nos nossos terreiros1, dançam resistente. Seria então, legítimo pensar
entre a religiosidade, a cultura, trazendo os pontos cantados nos terreiros de
outra sensação de mundo. Para se Umbanda como disparadores artísticos
conhecer bem uma determinada obra é na escola, espaço formal de educação?
necessário que se conheça o momento Esta pergunta será a flecha que guiará o
histórico em que a obra do autor (a) está texto.
inserida.
Como construir uma proposta
Os resultados de uma política pautada pedagógica de formação continuada
na colonialidade, geraram um para que professores possam utilizar os
comportamento de caráter racista em pontos cantados como repertorio de
todos os campos, inclusive, na abordagem cultural de matriz africana e
religiosidade. Em urgência pela afro-brasileira? Como trazer esse ponto
sobrevivência, grupos negros se cantado como metodologia ativa de
organizavam em seus Calundus2, para ensino em sala de aula que traga outros
reverenciar suas divindades e ancestrais, sentidos e significados em sala de aula?
resgatando suas narrativas, como modo
Desde o início da colonização, o Brasil
de produzirem resistência. As
fora palco de um sistema de produção
Umbandas fazem parte das
de trabalho escravo que assumia, cada
religiosidades, cuja matriz é africana,
vez mais, maiores proporções entre as
especialmente de origem banta e
forças dos grandes impérios coloniais os
também com a assimilação do culto aos
quais propiciou a institucionalização do
orixás jejê-nagô. Umbanda é uma
racismo, do terror da escravatura e da
palavra de origem no umbundo e no
morte. O tempo que elevava a negação
quimbundo que quer dizer arte de
da ciência e da cultura ao nível de
curandeiro, magia, ciência médica,
política de Estado e o racismo moldou-
medicina (LOPES, 2003). “Em uma só
se como uma tecnologia de dominação
religião temos justapostas as culturas
de outros seres. No passado colonial
brasileiras” (ARAÚJAO, 2015, p. 34).
mal resolvido, de escravização do povo
As religiosidades de matriz africana
negro, o Estado se apoia para impor um
tornaram-se a continuidade do
regime genocida, tendo o próprio
racismo como uma tecnologia de
1
MIRIM (p. 137): “Lugar em campo aberto ou dominação das vidas negras pelo terror.
arborizado e destinado à prática de Umbanda.
Para o Primado de Umbanda o Terreiro é a Por direta resistência dos colonizados, o
verdadeira Igreja (Casa de Deus) e por isto é Brasil acabou por mergulhar em
designado com o nome de Tupã-oca. Tenda, revoluções, em guerra de libertação
Centro, Cabana etc., lhe são equivalentes desde nacional e na guerra civil contra o
que aí se efetua nos rituais de Umbanda.”
2
LOPES, (2003, p.57): Denominação de antigos
regime escravista. Nesse período de
cultos afro-baianos. Local onde realizam esses invasão colonial no Brasil, o terreiro
cultos. Do quimbundo kilundu, ancestral, alma tornou-se o principal lugar de
de alguém que viveu em época remota, e que no resistência no qual procuravam
caso da primeira acepção, entendendo no corpo restabelecer o contato com as raízes do
de uma pessoa, a torna irritadiça, mal-
humorada, tristonha.
seu povo negro, utilizando a arte como

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comunicação com o invisível, o mito brasileira com a influência banto no
afro, que se expressava artisticamente português. Valentim reitera todo o
no terreiro de Umbanda e Candomblé. pensamento plástico herdado dos
A palavra Candomblé também de terreiros de Candomblé e Umbanda,
origem banta cujo significado é além do próprio português do Brasil,
celebração, festa desta tradição que traz a marca das africanidades em
(LOPES, 2003) se diferencia da sua formação. O Brasil é cheio de
Umbanda por conta do culto aos orixás africanidades, do semba5 ao sincopado
jejê-nagô de forma mais acentuada ao samba; do mito negro que nos liga ao
passo que Umbanda, outrossim, terá a continente africano, aos orixás, deuses
presença dos donos da terra os da cultura yoruba, trazidos da atual
indígenas e os pretos-velhos e pretas- Nigéria, entre tantas outras deusas,
velhas espíritos que foram escravizados deuses e modos de ser do continente
no Brasil. Os terreiros ainda hoje são Mãe. Também dentro destas
lugares de resistência negra no Brasil. O africanidades estão as línguas banto que
negro transformou a sua religiosidade e influenciaram muito nossa língua
transformou o seu arcabouço cultural brasileira que veio desse tronco
em uma “cultura de resistência social” linguístico o qual fundamentou a
(MOURA, 1992, p. 34). africanização do português falado no
Brasil, o “pretuguês” (GONZALEZ,
Africanidades são as heranças culturais,
2020).
materiais e imateriais, vindas do
continente africano com os mitos afros e É interessante visitar os terreiros de
o conceito de ancestralidade. Umbanda e Candomblé para perceber o
Ancestralidade – passado, presente, pensamento plástico-literário que
mundo invisível e futuridade – sempre pautou a cultura
fundamenta tal pensamento de afrodescendente6 brasileira. Significar
origem/destino de um tempo-espaço que
remete ao cultivo da agricultura, uma gravador. “Intuindo meu caminho entre o
das bases da humanidade, outro tempo- popular e o erudito, a fonte e o refinamento – e
espaço dos morto-viventes3 – orixás – depois de haver feito algumas composições, já
tempo-espaço que estamos vivenciando bastante disciplinadas, com ex-votos –, passei a
ver nos instrumentos simbólicos, nas
em processo, e outro, tempo-espaço dos
ferramentas do candomblé, nos abebês, nos
viventes que irão viver. Um tempo da paxorôs, nos oxês, um tipo de "fala", uma
ancestralidade que tem uma ideia de poética visual brasileira capaz de configurar e
sucessividade de geração em geração sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu
dos viventes em um território (CUNHA interesse como artista. O que eu queria e
continuo querendo é estabelecer um design
JÚNIOR, 2020). As africanidades
(RISCADURA BRASILEIRA), uma estrutura
passam e perpassam pelo nosso apta a revelar a nossa realidade – a minha, pelo
cotidiano o tempo todo, pois o Brasil foi menos - em termos de ordem sensível.”
formado e estruturado pelas mãos 5
LOPES, (2003, p. 203): Espécie de dança. Do
tecnologias afrodescendentes - seja no quimbundo semba, umbigada .
6
Na atualidade, o termo afrodescendente
conceito de riscadura brasileira, de
passou a visualizar um grupo de origem
Rubem Valentim4, ou na língua ancestral africana (independente do fenótipo), e
com relação à cultura negra, o termo passou a
3
Segundo Ramose, (1999, p.10-11): “O morto- abranger tanto a cultura africana quanto a da
vivente continuar a viver apesar de sua saída do diáspora. (2017, p. 9) “O termo afro-brasileiro –
mundo dos vivos.” do ponto de vista histórico, Cunha Jr (2005, p.
4
VALENTIM (2001, [s,d]): (Salvador/BA, 253) argumenta que esse termo nasceu,
1922 – São Paulo/SP, 1991). Escultor, pintor e sobretudo, em decorrência da falta de

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novamente o samba afro e reiterar o negros no Brasil. No terreiro de
pensamento negro nas artes visuais e Umbanda, tem arte. Os terreiros de
literárias no Brasil pode ser uma chave Umbanda e Candomblé se utilizam de
de virada para, de fato, pensar o país e arte como tecnologia de comunicação
suas outras possibilidades, suas com o invisível. A comunicação se dá
multiplicidades. com as várias experiências de mundo
possível presente neste espaço-tempo
O terreiro é uma denominação do lugar
onde a ancestralidade é mote das
onde são praticados e vivenciados os
práticas do povo de santo. Igualmente
cultos afrodescendentes no Brasil.
para pensar os direitos humanos
Toponímia esta que, em si, já nos dá
indícios de o quão complicado fora a contidos nas práticas de terreiro (que em
si já são Direitos Humanos), só tem
manifestação das religiosidades que, por
um ato trapaceiro, autoriza e sentido em campo ampliado, pois faz
parte dos Direitos Humanos fomentar e
desautoriza, ao mesmo tempo, as
manifestações culturais religiosas afros reiterar os conhecimentos e saberes dos
grupos. Em um campo ampliado,
ao passo que os templos católicos7
poderiam ser erguidos. Daí uma porque os humanos pensados na
religiosidade que só podia ser celebrada declaração de 1948 não atenderiam de
no terreiro, que, por sua vez, fato os Direitos Humanos, pois fora
ressignifica o próprio nome, e hoje se uma declaração pensada dentro da
faz potente na denominação de uma estrutura colonial trazendo uma ideia
África possível no Brasil. dicotômica da sociedade formada neste
contexto (VIOLA; ZENAIDE, 2019,
Mostra-se urgente trazer o terreiro como p.87). “Todos os homens nascem livres
lugar de resistência para se pensar e iguais, em dignidades e direitos. São
outros Brasis e suas tensões e dotados de razão e consciência e devem
reparações necessárias para os povos agir em relação uns ao outros com
espírito de fraternidade” (VIOLA;
ZENAIDE, 2019, p.87). Tais humanos,
conhecimento e da necessidade de se relacionar
o passado africano com a história do Brasil. Este
tais direitos nos levam a pensar para
autor explica que a razão disso era que muitos quem, para qual sociedade? Porque se
intelectuais desinformados da realidade racial alguns humanos não entram neste
brasileira utilizavam o termo afro-brasileiro e pensamento é porque não há Direitos
enchiam de teorias raciais a cultura de base Humanos dentro deste mecanismo
africana.” (2017, p. 8) “O termo preto – esta
palavra é mais recente. Apareceu no século
colonial gerador de política opressora
XIX, designando uma pessoa de pele mais como o escravismo. O pensamento afro
escura, particularmente originária da África presente nos terreiros nos ajuda a
subsaariana.” (2017, p. 5) “O termo negro – ampliar o conceito de Direitos Humanos
Etimologicamente, este termo vem do latim exatamente entendendo a humanidade
Níger da margem do rio Níger/nigeriano), e está
associado ao sistema de classificação racial de
como um todo se espraiando para a
seres humanos com fenótipo da pele mais natureza, indo na contramão do
escura, em relação a outros grupos raciais. pensamento colonial.
(NUNES, 2017, p.9)
7
BRASIL. Carta de Lei 25 de março de 1824. A educação passa pelos Direitos
Art. 5. A Religião Católica Apostólica Romana Humanos, porque é um direito de todos
continuará a ser a Religião do Império. Todas as (as) ter acesso à educação. Passa por
outras Religiões serão permitidas com seu culto fomentar a existência dos seres no
doméstico, ou particular em casas para isso
mundo visível. E talvez as comunidades
destinadas, sem forma alguma exterior do
Templo. de terreiro possam nos apontar novas

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encruzilhadas, não encruzilhadas como ancestralidade, por assim dizer, é esse
impossibilidade de caminhos, mas como espírito de intimidade com a natureza”
possibilidade de outros caminhos de se (OLIVEIRA, 2007, p, 265). Uma
pensar o ser humano no mundo e em cultura que, através da arte, encanta a
relação com o mundo. No terreiro, vida e en-canta a vida com
aprende-se que se pode viver em gira8 conhecimentos. O ser humano só é
em relação com o mundo. A gira aí sendo em relação com o outro: ser-
como gráfico-metáfora do universo que sendo10 no mundo integrado – Ubuntu11.
nos transporta para um espaço-tempo Intercruzados pelas artes: canto, dança e
onde há uma universação9 de literatura.
conhecimentos vindos da escola da vida No tocante às literaturas
(MIRIM, [s.d.]). Na gira existe uma
afrodescendentes brasileiras e
ideia de inclusão, que é inerente ao indígenas, há uma urgência em serem
modo africano de compreender o contempladas nos espaços formais de
mundo. Os povos africanos têm a educação. Em um cumprimento às leis
cordialidade como um dos princípios da
10.639/2003 e 11.645/2008. A primeira
vida, o parentesco entre sociedade e lei tratando da cultura afrodescendente
natureza; uma humanidade ampliada
no Brasil e a segunda porque altera a
para todos, ideia de tudo integrado ao primeira incluindo em seu título as
todo e há uma soma de movência vital culturas indígenas. Tais leis causam a
na natureza (DOMINGOS, 2011). A tensão necessária no ensino atual,
gira como lugar onde o diferente se dá, ensino este que por divisões em
pois, várias agências estão acontecendo categoria deixa de fora a literatura
em concomitância com a harmonia dos afrodescendente brasileira e indígena. A
saberes e conhecimentos dos seres cultura produzida nos terreiros de
visíveis e invisíveis. Os diferentes são Umbanda e Candomblé no contexto
bem-vindos e integrados à vida, escolar vem para reivindicar a
mediados pela arte. importância de um cumprimento de lei,
A epistemologia afro pode nos ajudar a reforçando a tratativa de questões
dialogar de maneira franca e aberta étnico-raciais no Brasil.
sobre a relação da sociedade com a Usando os pontos cantados no terreiro
natureza e com o universo, de uma de Umbanda como disparadores
forma ampliada sobre humanidade, sem artísticos para se pensar mundos e
a dicotomia de ser humano versos
natureza, mas humano mais natureza,
10
humano com a natureza, humano- Segundo Ramose, (2002, p.1-2) “De acordo
com esse entendimento, a condição do ser-sendo
natureza (DOMINGOS, 2011). “A
com respeito a toda entidade significa que ser é
ser na condição de dade. Tudo que é percebido
8
Gira é um movimento circular que dá nome à como um todo é sempre uma total-idade no
manifestação do rito umbandístico, culto às sentido de que ex-iste e per-siste em direção ao
entidades. Palavra que na língua umbundo chila que ainda está para ser.”
11
ou tjila, dançar, baila, da mesma raiz de ochila, Ubuntu é à base da filosofia africana. Uma
lugar da dança (LOPES, 2003). experiência no mundo que não está
9
Universação é um neologismo, cunhado desvinculado do agir no mundo de forma
através da arte que pratico que significa relacional. As raízes da árvore do indivíduo
universo de sensação e sobre tudo o universo estão atreladas ao coletivo, o ser de todo ser
em ação. Pensado em todas as percepções do passa por uma ciência do conhecimento coletivo
corpo e não somente na percepção visual, mas ligado ao passado, presente, e futuridade, uma
sim em: tato, olfato, paladar, audição e o que o filosofia que está estabelecida em e través de
corpo sente. agências no mundo (RAMOSE 1999).

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patrimônio imaterial que vá ao encontro Numa educação democrática que passa
de corpos oprimidos humanizando-os na por uma educação de igualdades e
sociedade. Pensando dentro da diferenças, os Direitos Humanos
literatura-terreiro um liame de ética reiteram uma educação no espaço
estética – nós diríamos estética-ética12 – formal de igualdade de direitos de
da produção desde o corpo negro, existir. Uma educação que contribui
permeada pelo pensamento de como se para o processo de formação de sujeitos
criou o universo pelo prisma africano e como sociais promovendo de forma
afrodescendente brasileiro. Ligado à individual e coletiva um conhecimento
elaboração dos conhecimentos que gira de si e do outro de maneira especial dos
nas religiosidades de matriz africana em grupos marginalizados e discriminados
um processo expansivo que não é (CANDAU; SACAVINO, 2013).
somente literatura oral, mas uma Essa perspectiva supõe
literatura contendo e sendo várias potencializar grupos ou pessoas que
formas diaspóricas (SANTOS, 2014). historicamente têm tido menos
Poder dizer sua palavra poder na sociedade e se encontram
dominados, submetidos, excluídos
Tudo o que é humano interessa à arte e ou silenciados na vida cotidiana e
tudo o que é arte interessa ao humano. nos processos sociais, políticos,
(CIPRIANO, 2020). A educação está econômicos e culturais.
contida nos Direitos Humanos, assim (CANDAU; SACAVINO, 2013, p.
uma educação para o sensível passa 62).
pelos direitos do humano de existir e Poder dizer sua palavra (FREIRE, 2013)
manifestar-se artisticamente seja pela é poder dizer a sua literatura. Literatura
palavra cantada, escrita ou dançada. É por conta da utilização da linguagem
promoção dos Direitos Humanos artística – oralidade e corporeidade –
pensarem as universações no terreiro de como comunicação com o invisível
Umbanda, este como lugar de afro. A língua no Brasil acaba por ser
resistência de um sistema opressor de ressignificada por conta das amálgamas
suas existências. Educação é afro-luso-indígena em multiplicidades
fundamental para formar uma ideia de textos produzidos nestes espaços
sobre Direitos Humanos que vá de fato onde o próprio corpo negro é um texto
ao encontro dos direitos das vivo a produzir sentidos de reinvenção
humanidades não só no campo teórico, do mundo indo de encontro à
mas no campo do cotidiano. dominação imposta pela invasão
Também assinala que a educação colonizadora.
em Direitos Humanos se assenta O corpo negro é um grande texto. A
num tripé: conhecer e defender seus
imagem do preto é texto – Pretexto. Um
direitos; respeitar a igualdade de
direitos dos outros; e estar tão
documento com cor, história e
comprometido quanto possível com contextualidade, que nos remete à
a defesa da educação em Direitos África, a qual possa ver todos os dias ao
Humanos dos outros. (CANDAU; olhar-se no espelho. Corpo cartografia
SACAVINO, 2013, p.61) de afeto que ultrapassa as fronteiras, um
corpo que grava um mítico que anuncia
sentidos (NASCIMENTO apud
12
RATTS, 2006). A palavra como
Há uma estética uma percepção do mundo por
via dos sentidos que vem antes da relação do
humanizadora (FREIRE, 2013) numa
homem como o meio e o todo. possibilidade de descolonizar as mentes

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como uma arte desde o terreiro. Com a Assim como no terreiro, em que vamos
arte feita no terreiro, esta metáfora da elaborar nossos pensamentos-
África no Brasil (SODRÉ, 2017), desenhos13 para um fim que é a
“África pode tornar-se Brasil como ancestralidade afro. A gira tem a
devir do que somos, não como fixidez, técnica como produtora de
mas como força intempestiva: no conhecimento em uma ritualística. O
tempo, contra o tempo e em favor de círculo da gira tem como característica
um tempo vindouro” (SANTOS, 2013, não excluir e sim incluir todos em uma
p. 56). A arte como tecnologia de integração e horizontalidade. O interior
comunicação com mundos visíveis e da gira abarca todos visíveis e invisíveis
invisíveis na escola da natureza tendo em uma integração em roda numa
esta literatura multimodal afro como complementaridade relacionada,
disparador de conhecimento. dialogada. Embalada pelo curimbeiro14
o terreiro não distingue ciência de arte,
A escola da vida é pautada pela tradição
oral que resgata todos os aspectos da política de religiosidade (OLIVEIRA,
2007).
própria vida. Para os desavisados
acostumados a um pensamento Uma literatura-terreiro, como nos diz
cartesiano que costuma categorizar Henrique Freitas (SANTOS, 2013), que
tudo, pode parecer confuso. Na nos dá disparo para pensar valores
oralidade preta, o visível e o invisível civilizatórios de um povo que se faz
não estão separados, tudo está ao vivo nos terreiros de Umbanda e
alcance. Toda a magia é feita na frente Candomblé tendo a gira como
na evidência de todos. Uma fusão de movimento e imagem gráfica de fato de
religião; conhecimento; ciência da todos estes conhecimentos em diálogo.
natureza; arte; história; alacridade, ao Levar os pontos cantados, pontos
passo que a gira permite remontar à riscados15, o texto produzido nos
unidade com todos universos terreiros de Umbanda como imagem
(HAMPATÉ-BÂ, 1982). para escola é fazer um exercício de
Epistemologia da gira cidadania integral, ao passo que ser
cidadão é ter liberdade de reiterar sua
A gira encontra-se dentro do padrão da
existência, no nosso caso a existência
circularidade que toda a cultura afro
negra no país. Os poemas laudatórios
apresenta. Dentro da gira há
procedimentos para se alcançar uma
finalidade que, grosso modo, está ligada 13
Pensamos um traço-afro-artístico – traço afro
a uma cerimônia religiosa ou cível. contínuo poético-político ancestral, para fazer
Uma sequência de palavras e gestos que um desenho-pensamento ou um pensamento-
desenho afro que dão pistas para pensar
se utiliza da repetição para compor uma maneiras de lidar com as identidades negras no
celebração constitui-se rito, podendo Brasil.
atualizar o mito, e é uma técnica de 14
LOPES(2003, p.88). Curimbeiro vem de
comunicação com o invisível que está curimba que procede, provavelmente, do
preocupada em se alçar uma finalidade. quimbundo kuimba, correspondente ao umbundo
o kuimba, cantar.
Utilizamo-nos de uma ritualística para 15
O ponto riscado é um diagrama afro que
um fim que não tem fim: a ultrapassa a geografia, obedecendo às
ancestralidade é sucessão de palavras e singularidades e aos coletivos do tempo-espaço
gestos elaborada de maneira repetida. no mundo, na relação verbal e não verbal com o
invisível reforçando uma ideia ainda não
materializada – intuição –, desaguando em uma
imagem-escrita.

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nos terreiros de Umbanda apresentam- africano, entendendo a extensão da
se como um processo de cura deste África na diáspora.
modelo civil herdado da escravização,
Pensamento-desenho que pensa a
seja cultural seja político (SANTOS,
escrita, herdeira do desenho, sendo a
1996/1997), que tanto subjuga os corpos
escrita uma tecnologia de comunicação
negros e suas práticas. Trabalhar com os
de origem africana (VIEIRA, 1981),
poemas laudatórios da Umbanda, indo
que, neste caso, é vista como imagem,
ao encontro de um pensamento
que é a materialização de um
antirracista, vislumbra retirar os negros
pensamento plástico - o ponto cantado é
e negras dos guetos de onde foram
uma fala cantada que faz referência ao
relegados, para situar suas existências
passado ancestral e conta os feitos dos
de modo digno, ao declamar suas
antepassados para nos potencializar,
memórias ancestrais.
vivificar, para fazer-nos vigorosos de
A arte é um conhecimento que envolve nós mesmos. O ponto cantado quando
uma metodologia no campo das escrito torna-se ponto riscado e, ao
experiências sensoriais, portanto a mesmo tempo, não deixa de ser o
estética. “Afro não designa certamente poema laudatório.
nenhuma fronteira geográfica e sim a O ponto cantado neste trabalho surge
especificidade de processos que
como um motivo criativo para se pensar
assinalam tanto diferenças para com os
em uma descolonização das mentes que
modos europeus quanto possíveis
há tempos é colonizada por um sistema
analogias” (SODRÉ, 2017, p.16). Afro
de exclusão de alguns indivíduos e sua
que nos remete a uma retomada da
cultura. Tal palavra cantada é
África, que não necessariamente um
decodificada, artisticamente, para
retorno fisicamente, mas sim um retorno
ressignificar na escola uma prática que
a valores africanos como uma ideia de
pulula conhecimentos de um passado
arte coletiva. Arte que traz em si a
mítico, nos ajudando a pensar as
coletividade como uma síntese de andanças do presente. O terreiro coabita
singular e plural que retoma os a tela do artista, em uma performance-
aforismos afros como os pontos ritual. Os pontos cantados, os pontos
cantados nos terreiros brasileiros. Afro riscados – escrita dos caboclos16 a gira
também que retoma o pensamento pan- como imagem gráfica. Os pontos têm
africano que “significa a luta para a uma força histórica, tudo isso na
libertação dos povos africanos em todos representação pictórica. Há uma
os lugares onde se encontrem” contribuição imagética por via de uma
(NASCIMENTO, 1981, p.74), seja no acústica, uma imagem acústica que
próprio continente, seja na diáspora. “A conta uma história. História de quem já
África para os africanos, na própria estava na terra e de quem chegou
pátria e no exterior”, lema do Marcos sequestrado: os negros com os orixás
Garvey (NASCIMENTO, 1981, p. 74)
que, como tal lema, reitera o conceito
de negritude que bebe em África para se
fortalecer, tendo em vista todo o
processo de apagamento do povo negro 16
DANDARA; LIGIÉRO (2000, p. 130). A
na diáspora brasileira para sobreviver e palavra “caboclo” provavelmente deriva do
viver o voltar à África. A abordagem do termo quicongo, que literalmente significa:
aquele que vive no fundo da floresta; entidade
pan-africanismo na proposta de beber
de temperamento rebelde e destemido, cultuado
no conhecimento do continente pelos bantos desde tempos imemoriais.

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iorubanos, inquices do povo banto17; e ser de todo ser passa por uma ciência do
as entidades, como os pretos-velhos conhecimento coletivo ligado ao
assim como as entidades indígenas, os passado, presente, e futuridade, uma
caboclos. Há uma função de educar por filosofia que está estabelecida em e
via dos conhecimentos das matas, das através de agências no mundo
memórias. As músicas contêm uma (RAMOSE 1999). E a gira sendo a
memória do ponto de vista do caboclo, manifestação do ubuntu. A gira é a
do africano, o que somos, o que grande metáfora do universo. O lugar
fazemos e onde queremos chegar. O onde o som do tambor e da palavra
terreiro nos ensina o poder da oralidade, cantada faz harmonia com o todo que se
a escuta, o exercício da memória, modula aos corpos e ao espaço. A
ensina-nos a ver o invisível no visível. música é uma maneira de pensar o
Saravá18 o invisível mundo trazendo em si a ideia de
movência, uma primazia da agência no
Ponto cantado é uma fala cantada que mundo, agimos porque somos. A
faz referência ao passado ancestral que agência não elimina o conflito na
conta os feitos dos antepassados para natureza. A natura age em conflitos de
nos potencializar, vivificar, para fazer- seres que se esbarram, tocam-se,
nos vigorosos de nós mesmos. São atritam-se e assim gera o movimento:
aforismos que nos apontam um melhor Exu.
proceder na vida, acima de tudo
reiteram a vida no cotidiano sem a Escrita, som e imagem: linguagens.
separação do sagrado e do profano, mas Tato - observação da espacialidade, o
sim um sagrado da vida em uma toque do tambor. O olfato - os cheiros
metafísica da materialidade. Ponto das ervas como elemento de cura.
cantado é uma experiência de Paladar – as comidas dos ancestrais
pensamento que tem a arte como como sabores do saber, do conhecer.
tecnologia de comunicação com o Visão – o invisível manifestado no
invisível e que me leva a um coletivo visível com a materialidade da palavra
que como seres viventes e não viventes cantada: as entidades. Uma estética que
mais que por via arte, arte do tempo que pressupõe uma ética, colocando a nossa
o canto ativa as movências dos seres – própria experiência artística como
Ubuntu. Essa é uma palavra dentro do sujeito, metodologia de investigação de
tronco linguístico banto que quer dizer uma macumba pictórica. O que
humanidade. Uma humanidade que se chamamos de macumba pictórica é essa
faz na relação. O ser em processo de ser relação entre o fazer artístico e o
com o outro estendido pela natureza. A pensamento ancestral manifestado
base da filosofia africana. Uma plasticamente de maneira criativa em
experiência no mundo que não está risco, canto e gesto afro (CIPRIANO,
desvinculada do agir no mundo de 2020).
forma relacional. As raízes da árvore do SARAVÁ IOFÁ19
indivíduo estão atreladas ao coletivo, o
19
A saudação é apresentada nos Terreiros de
17
LOPES (2003, p.118). Divindade dos cultos Umbanda em Giras de Pretos Velhos e/ou nas
de origem banta correspondente ao orixá nagô. Festas de Pretos Velhos. Considero um aspecto
Do quicongo nkisi, nkixi, entidade sobrenatural. cultural importante dos Terreiros porque
18
Segundo Lopes (2003), saravá é uma identifica os países africanos e os estados
interjeição, saudação dos umbandistas, brasileiros que receberam muitas pessoas
significando “salve!”. Bantoização do português africanas e o local de trabalho ancestral dos
salvar, saudar. Pretos Velho. (FRANCISCO, p. 118) Iofá,

77
Velho tava cochilando proceder da família, da família
na porteira da fazenda estendida que é o terreiro. Há uma
quanto mais velho cochila relação intrínseca com o invisível.
mais ele está trabalhando. Aruanda e o terreiro se cruzam o tempo
Aruanda20 tá trabalhando,
todo. Há um convívio constante com as
Aruanda tá trabalhando.
(Ponto cantado)
entidades, arquétipos dos negros
escravizados no Brasil. “Um
pensamento de diátese média” como diz
A repetição como uma proposta Muniz Sodré (2017, p.73), um
metodológica de memorização e pensamento que parte do corpo. O
também indo ao encontro de uma ideia próprio corpo se pinta e pinta-se no
de circularidade presente nos terreiros mundo.
de umbanda, (ponto cantado para preto-
velho que faz presente na Tenda Narrar-se para se fazer. A vida é mais,
Espírita Mirim – filial nº 12, Ladeira “ou seja, é imperioso reconstruí-la,
Carlos Bitencourt, nº 33, Mosela- reinventá-la, principalmente por meio
Petrópolis-RJ). Por via do ponto da arte.” (SODRÉ, 2017, p. 95). O
cantado, poema laudatório podemos terreiro nos ensina outra realidade,
perceber neste patrimônio imaterial não outros mundos possíveis. O terreiro nos
só uma retomada a um lugar mítico ensina que o sagrado é cotidiano, cada
afro, mas também um gatilho para “canto” tem um santo. Nunca estamos
refletirmos acerca da condição de um sozinhos, o preto-velho manifestado é o
pensamento de outra materialidade onde “cavalo”21 e é o preto-velho: duas
o trabalho continua, a vida continua, instâncias em um. Há uma proteção
mesmo quando o velho cochila, constante. Aprendemos o valor da
ultrapassando o contexto da religião e palavra, ela pode curar e pode destruir.
assentando uma ideia de mundo. O Dentro do universo que lhe é
convívio mais próximo dos ancestrais próprio nessas sociedades, a palavra
no tempo-espaço com a geração do emerge como fator ligado à noção
presente. Os ancestrais do tempo-espaço de força vital e, em seu aspecto
no presente em processo. Os ancestrais mais primordial, tem como
principal detentor o próprio
do tempo-espaço na futuridade. A ética
preexistente. Nesse sentido, não
do pai morto-vivente, os pretos-velhos. raro, a palavra aparece como
É o morto-vivente que fala o melhor substância da vitalidade divina
utilizada para a criação do mundo,
igualmente, quer dizer a aplicação da vida, a confundindo-se com o chamado
experiência de pensamento manifestada – sopro ou fluido vital, sendo que no
filosofia (MIRIM, [s.d]) homem essa herança manifesta-se,
20
Segundo Lopes (2003, p. 32), morda mítica em uma de suas formulações,
dos orixás e entidades da Umbanda. De Luanda, através da respiração. (LEITE,
topônimo [“ARUANDA, forma toponímia 1996, p. 3)
feminina através da qual a memória coletiva do
negro brasileiro teria conservado a A música é um conjunto de tecnologia,
reminiscência de São Paulo de Luanda, capital conjunto de maneira de fazer, que
de Angola, porto africano do tráfico de aglomera as pessoas. Um elemento de
escravizados (...). Como o tempo, deixou de
significar o porto de Angola, para se
importância e fundante da experiência
transformar em lugar utópico, passando, como
21
utopia, a abranger toda a África: pátria distante, “Cavalo” no terreiro de Umbanda é a
paraíso da liberdade perdida, terra da denominação para o médium que dá
promissão” – Encicl. Delta-Larousse, 1970]. incorporação ao espírito – entidade.

78
de pensamento afro. É pela música, o gira. Curimbeiro é o declamador do
canto, tambor que os ancestres se poema cantado neste espaço poético-
manifestam e compartilham seus político que é a gira no terreiro, nesse
conhecimentos. O curimbeiro é aquele lugar, que cria e recria corpos com a
que dá o tom da harmonia no terreiro na palavra cantada.

Cipriano. É pras almas! Técnica mista sobre tecido lençol. 220X197cm, 2020.

O ponto cantado que se faz ponto dúvida, possuem uma carga simbólica
riscado surge de processos artísticos forte, pois o carvão vegetal é muito
enunciados na proposta de desenhos que utilizado para os desenhos artísticos,
nos interessam acerca da simbologia do conhecido como sangue preto nos
material que se soma ao conceito terreiros, em que desemboca na ideia de
empregado nele: o pó xadrez preto, a
cal, o carvão vegetal, a pemba22, sem
pemba, cal. O giz branco é utilizado nos cultos
afros, fazendo referência ao emi, hálito, pó da
22
Pemba (LOPES, 1942, p.174) do quicongo vida ou ao sopro da vida dos Candomblés e
mpemba, giz, correspondente ao quimbundo Umbandas.

79
desenhar, de riscar, que muito nos forma diálogos complexos com o
interessa um desenho primeiro das espaço. Assim, importa destacar que:
coisas. A pemba, o sangue branco nos Repetir é provocar a manifestação
terreiros, que nos lembra o invisível das da força realizante. É inelutável a
coisas, a instância do espiritual das repetição: nos fenômenos naturais,
coisas; a horizontalidade que o desenho no ciclo das estações e dos dias, na
pede provoca um gesto sobre o suporte, linguagem, no amor, na própria
que remete à reverência que os pretos- dinâmica do psiquismo (Freud
velhos fazem para realizarem suas insiste, por exemplo, no caráter
escritas de força – pontos riscados, repetitivo da pulsão). Acentuar o
desenhos recados – no terreiro ao se caráter repetitivo da existência é
desenhar sobre o chão e não sobre a também entrar no jogo da
encantação ou do mito que resistem
mesa; o carvão também pode servir de
ao efêmero, ao passageiro. O mito
comparação ao negro, que risca o implica a eterna reiteração de uma
tempo-espaço e aponta possibilidades; a mesma forma, de um destino, mas
tinta cal transforma o branco do tecido, dando margem a variações
que apresenta um tingimento do próprio (SODRÉ, 1988, p.131).
branco em linhas brancas
É no desenho vindo do ponto cantado
movimentadas, e ao mesmo tempo, não
que faremos encanto, é no pensamento-
cobre toda a superfície.
desenho afro que vamos encantar,
A cal ainda transmite uma ideia de transformar-nos em um desenho assim
morte, porém uma morte viva, assim como a criatura se torna o criador.
como a pemba é o elemento do Quando olhamos um desenho, quando
espiritual na arte viva remetendo ao tal escutamos um ponto cantado, já somos
morto-vivente, que é cultivado nos eles todos encantados, como quando
cultos afros, os espíritos dos Charbonnier apud Merleau-Ponty
antepassados. Desse modo, para falar do (1969) fala que já é uma floresta ao se
suporte, remete-me a própria ideia de estar nela. Já se é desenho e canto ao
desenho subordinado ao tempo para ser pensar no desenho e no canto.
riscado, esperando para servir de base
No interior da gira existem
de uma história que ainda não foi
procedimentos para um fim que é a
escrita, não foi cantada, não foi
ancestralidade afro. O movimento da
declamada.
gira tem como característica não deixar
Além disso, tratamos da repetição no de fora ninguém e sim integrar na
ato de desenhar na imagem que se horizontalização com o direito humano
sobrepõe ao trabalho, seja a repetição de existir em totalidade. O centro da
onde o significante – tinta pó xadrez gira abarca todos os mundos possíveis –
preta – enquanto material é macerado visíveis e invisíveis – em roda numa
no suporte, seja o seu significado que a complementaridade dialogal. Diálogo
própria cor traz somando seu conceito este que se apresenta na gira com os
ao próprio material, criando gestos pontos cantados para os pretos-velhos
repetitivos, na repetição que forma a como uma possibilidade de cura de uma
imagem gestoalística23 que, por sua vez,
não visível. Pensado no movimento do corpo
23
Gestoalística é um neologismo, cunhado não somente na percepção automática de
através da arte que pratico, que significa gesto inscrição do corpo, mas movimento meramente
referendado no terreiro de Umbanda que nos orientado dentro de um rito sem perder o cunho
remete uma ritualística de comunicação com o artístico.

80
sociedade adoecida pelo racismo que é Logo, o que pinçamos neste trabalho é
fruto da exploração do trabalho somente a reprodução de um dos muitos
colonial: a escravização. A gira se pontos de sentido no que tange aos
apresenta como espaço poético-político processos de criação artística, de
de cidadania de liberdade para ser quem memória, em que temos a ciência de
se é e poder ser em relação. Logo a gira que outros pontos de sentir surgirão,
vai ao encontro de uma educação porque a criatividade poética pictórica
antirracista atrelada aos Direitos não existe fora de um contexto, porém
Humanos que têm como dever reiterar a forma o texto das obras de arte crítica.
existência de todos e apontar mundos Assim, as considerações que
possíveis. costuramos falam a respeito do processo
Considerações finais criativo dos sujeitos afrodescendentes
(onde me incluo), situado nas práticas
Criamos este escrito como uma reflexão culturais afro, nesse caso, o terreiro de
de que o ponto cantado no terreiro de Umbanda que serve como disparador
Umbanda pode servir como disparador crítico das existências que não estão nas
das nossas observações estéticas na escolas por conta um apagamento
escola. Escola como espaço formal e o histórico. Servindo estas poéticas de
terreiro, também, como espaço de reparação histórica nos espaços formais
educação não formal. No decorrer de de educação.
sua urdidura, alguns dados de cunho
formal e de conteúdo acerca da arte afro Desta forma, este trabalho discorre
foram evidenciados. Este texto constitui sobre uma escrita que possibilite um
uma parte da nossa pesquisa pictórica e diálogo com a obra de arte poesia e
educacional e até mesmo de escrita. pintura, somando-se à sua produção,
fruição e reflexão para pensar, em outra
Contemplamos o trabalho como uma instância, a arte desde o terreiro, sem
tentativa de pensar as africanidades deixar de considerar os aspectos
constitutivas de um processo poético e próprios da pintura e da poesia e sua
pictórico, tencionando a aplicabilidade performance como identidade cultural.
da lei que incentiva o ensino de cultura, Seria uma forma de o indivíduo se
arte e história africana e apropriar de sua história, criando outra a
afrodescendente no Brasil. Percebemos partir de uma escrita pela arte.
que podem ser desdobrados e
ampliados, uma vez que a problemática As identidades resvalam em papéis
conceitual servirá de combustível para sociais e figuras visíveis e invisíveis dos
prosseguir e dentro de uma ideia de vários “eus” que somos em vários
Direitos Humanos, ao passo que tempos-espaço. Na tessitura social,
educação é direito humano. Portanto, muitos se tornaram aquilo que não
desenvolvemos ideias inventivas que gostariam de ser por pertencerem
trazem no âmago o zelo de não as fixar culturalmente a um grupo, a um gênero.
no lugar do pronto e acabado, deixando No entanto, a práxis, o desdobramento
aberto para novas possibilidades do social e a mudança da comunidade não
sentir, no campo do sentir que são as estão separados da vida individual.
artes. O que desenhamos aqui está livre Deste modo, falamos de arte de uma
ao diálogo com os pensamentos de maneira geral e única, pincelando no
outros sujeitos que abarcam esta mundo uma ordem corrente em sua
pesquisa de outra forma. pedra fundamental, firmada no limite de
território. No terreiro de Umbanda, no

81
culto ao ancestral, abundam práticas e CUNHA JÚNIOR, Henrique. Urbanismo
outras maneiras de contar a história da Africano: 6000 mil anos construindo cidades
(uma introdução ao tema). Revista Teias v. 21
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