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A África permanece entre seus filhos diaspóricos como memória de afeto, como
história, como devoção, como manancial de arte-conhecimento modelando a vida em
sociedade e modulando a luta por plena liberdade. Do chão africano emanam forças
vitais que dimanam (fluem e se ramificam) desde o primeiro encarnado até os
descendentes atuais, onde quer que se encontrem.
A África foi arrastada para exílio forçado no Brasil pelo escravismo mercantilista
europeu, que tornou essa atividade justificável aos olhos do mundo com pretensos
axiomas teológico-políticos – como a maldição dos filhos de Cam, da Bíblia , ou a
doutrina da “Guerra Justa”. Assim, ficou natural situar a pessoa preta abaixo da
branca, explorá-la servilmente e transformá-la em mercadoria. Tudo santificado pela
luz da razão iluminista. No século 17, com a escravização mercantilizada de diversas
populações da África através do Atlântico, tem início (na Europa e nas colônias) o
processo de acumulação primitiva do capital obtida mediante a exploração de mais-
valia máxima da força de trabalho do escravizado. Forja primeira do capitalismo.
No Brasil, como em todo Atlântico Negro, músicas-danças são portas de entrada multi-
expressivas a partir do qual se articula o pensamento filosófico e os princípios
existenciais afro-diaspóricos... Comunidades organizadas/instituições como Quilombos
Rurais e Urbanos, Escolas de Samba, Bois e outras agremiações de folguedo, Casas de
religiões de matriz africana, Irmandades Católicas Negras, Terreiros e Quintais de
Batuques, Clubes Negros, Bailes, Posses e outras são as principais academias desses
conhecimentos acumulados portadores de forças ancestrais. São as Universidades a
que devemos nos dirigir se quisermos verdadeiramente adentrar os caminhos do saber
preto no enlace de suas vertentes filosófico-existencial, histórica, estética, político-
social e teológica. E o processo de aquisição desse conhecimento, como ocorre com
todo saber iniciático, possui muitas e longas etapas, e envolve grandes
responsabilidades da pessoa para com a coletividade.
Africanidade
1 – Comunitarismo
Nzambi mu kanda
Deus na Comunidade
Provérbio BaKongo
(citado por Bunseki Fu-Kiau)
Na ingoma só fica à toa quem quer. Todos, segundo sua competência, podem
participar da construção poética, melódica e rítmica : tocadores, cantor solista, coro,
palmas, cacos, e também fogueteiros, sineiros... A senioridade geralmente indica
quem são aqueles que vão desempenhar papéis de maior responsabilidade : abrir e
fechar a roda, tirar o canto, abrir uma voz, percutir as ingomas, fazer falar o tambor
maior...
-Time-line ou clave são idiofones que orientam a sincronia das frases rítmicas de cada
instrumento (gã, agogô, mucoco, matraca);
-Tambores de sustentação produzem uma levada curta e contínua, para a
manutenção do andamento (rumpi, lé, candongueiros, quinjengues e puítas). Por
vezes utilizados em pares (meião e crivador, chama e santaninha);
-Chocalhos emitem o pulso básico, a “pancada do ganzá” (xequerê, guaiá, ganzá);
-Tambor-mestre ornamenta a música e marca a coreografia com padrões rítmicos e
timbres variados (hum, tambu, caxambu, Santana, grande), propondo acentuações e
divisões por sobre o tapete contínuo dos tambores de sustentação.
Além de um tambor que não é bem tambor: o pé de dança que percute o solo e
desenha o ritmo. Reforçando isso às vezes vestem chocalhos de tornozelo com gungas
e paiás.
2- Oralidade
Na África, o homem vale quanto valem suas palavras. A palavra proferida se investe de
grandes poderes, tanto para construir como para destruir (uma fala deslocada provoca
uma guerra). A palavra é vetora da comunicação entre humanos, entre os mundos
material e espiritual, e é portadora e mantenedora das riquezas criadas pela
coletividade ao longo de sua história. Lembrando que a oralidade nas culturas
africanas e afro-diaspóricas se expande num sentido comunicacional ampliado
envolvendo a corporalidade, a música, a ritualística...
Outro exemplo de diálogo, dessa vez com palavras-tambor, é o das baterias de escola
de samba, também presente nos blocos afros, maracatus e congos modernos. No
samba, a bateria e em especial a linha de tamborins, dialoga, realça e acompanha o
desenrolar do samba-enredo cantado . A chamada do repinique, instrumento de
comando (nos congos, o tamborinho), e a resposta da bateria se sucedem dialogando
em diferentes convenções - paradas ou breques de bateria, marcas r ítmicas
identitárias de cada agremiação.
3 Musicalidade.
O etnomusicólogo John Blacking, no livro “How musical is man ?”, utiliza exemplos da
sociedade Venda da África do Sul, entre os quais viveu. Entre o povo Venda, a exemplo
de muitos outros no continente africano, a música é valorizada como forma de
expressão das mais relevantes, e compartilhada, como conhecimento, entre todos os
membros do grupo social. O que não acontece, segundo o autor, na Inglaterra (um
país dito “desenvolvido”), onde só uma reduzida minoria está apta a apreciar
Beethoven. A musicalidade, o ser musical, é inerente ao humano, e pode ganhar
desenvolvimento quando se coloca ao seu alcance o conhecimento dos ritmos, das
alturas dos sons, das combinações entre melodias e ritmos, um repertório mitopoético
e as sequências próprias para cada evento . A sociedade Venda dá apoio à pessoa na
aquisição de uma musicalidade plural e complexa. Segundo Blacking, nas sociedades
ocidentais ocorre justamente o inverso, criam-se obstáculos ao desenvolvimento
musical dos seres humanos “comuns”, pela coerção da sociedade de classes e a
segmentação mercadológica dos gostos.
Assim como nas culturas musicais africanas tradicionais, nas sociedades afro-
diaspóricas brasileiras o ser humano e suas atividades sociais estão no centro das
preocupações; dentro dessa visão humanista, portanto, a música, “som humanamente
organizado” (Blacking), é estimulada desde berço, apropriada coletivamente e não se
torna cultivo exclusivo de uma elite. Se há músicos especialistas, a maioria das pessoas
é dotada de habilidade musical ou capaz de ouvir com inteligência e espírito crítico
uma performance musical dentro de sua comunidade. Por isso a música produzida
pelas comunidades negras ganhou tanta notoriedade internacional, porque essas
comunidades produziram massa crítica de competência musical.
4-Circularidade
a) As formações em roda
Em muitas tradições afro-brasileiras, a formação básica é a roda, com ou sem solista
ou par solista ao centro. A roda preserva em seu interior um acúmulo de energia vital.
A pessoa que dança ao centro da roda está fortalecida e protegida pelo axé coletivo
circundante. No ondjango angolano, senta-se em círculo ao redor de uma fogueira
para os debates comunitários, com a mediação de um osekulu – velho ou com
experiência vital.
No candomblé de ketu, a base rítmica do vassi é tocada com sete pancadas no agogô.
Mas a contagem se faz começando pela “última”, o 7, legitimando a continuidade. O 7-
1 é o “portal”, a emenda, a passagem entre o fim e o recomeço, daí a importância em
identifica-lo numericamente na contagem de tempo interior dos ogãs.
Há um modo simples de representar os padrões cíclicos africanos, em que xis é pulso-
som e ponto pulso-silêncio. O vassi tem doze pulsos básicos (representados por x/.)
7 1 23 4 5 6
X.X.XX.X.X.X
Os ciclos rítmicos de giro contínuo são a base da ideia de tempo na música africana e
afro-brasileira, e a organização das pancadas na linha circular do tempo permitem
identificar o toque, principalmente os claves ou sequências rítmicas de orientação.
Abaixo representação circular do vassi (com X figurando as pancadas), base rítmica de
muitos toques do Candomblé Ketu, do Tambor do Mina, do Nagô pernambucano etc.
5- Corporalidade
O corpo é templo, e ori o seu altar. É no corpo que os adeptos das religiões afro-
brasileiras acolhem as irradiações das entidades espirituais – guias, encantados, orixás,
voduns, inkisses. Nas culturas africanas e afro-descendentes, o corpo é um santuário
vivo, a ser glorificado, perfumado, paramentado. De onde o forte preconceito contra o
corpo espiritualizado negro manifestado pela moral cristã, que instaura a
espiritualidade dissociada do corpo (considerado séde do pecado, do profano).
Dentro dos conjuntos de percussão africanos e afro-brasileiros, o tambor mais grave
costuma ser o tambor-mestre, aquele que faz a marcação da dança. O tamboreiro-
mestre comunica-se diretamente com os dançantes e cantantes, e seus comandos
sonoros induzem uma gama de movimentos corporais e marcam diferentes etapas
coreográficas. Por vezes, o que se vê são verdadeiras narrativas míticas tamboriladas,
como acontece na interação do alabê que toca o atabaque hum com os rodantes nas
danças rituais dos orixás.
6- Espititualidade/ancestralidade
No âmbito de rituais sagrados ou profanos, a potência vital do tambor faz dele um elo
poderoso : ele assume a somatória das forças dos três reinos da natureza.
Os tambores são, portanto, de natureza sagrada. Costumam ser guardados em locais
sagrados, como altares, gongás e popelês. Nos candomblés os atabaques são
saudados ritualmente por todos que adentram o barracão, prática comum também em
relação às angomas nas rodas de jongo.
Há diversos relatos orais afro-brasileiros que aludem ao poder dos tambores.
Por exemplo, o relato de origem do Reinado mineiro, em que Nossa Senhora do
Rosário sai das águas atraída pela força dos tambores dos africanos. Há também
narrativas de tambores que “se vingam” daqueles que fazem pouco deles, como na do
Barão Unouê, sufocado pela fumaça dos tambores que mandara queimar (do
Quilombo Matição, MG).
7 – Ludicidade
A Inteligência é força vital que flui circularmente entre mente e corpo. A pedagoginga,
conforme cunhou o escritor angoleiro Allan da Rosa, é a didática dialética do corpo
pensante, com sua lúdica gingada de avanço e recuo, na busca do equilíbrio de uma
teoria suada que fundamente de maneira multifacetada o conhecimento humano.
Belo e bom é estar em movimento; o estático, o puro, não vibra - não vive.
A criança desde cedo é solicitada pelos mais velhos a assumir funções nas celebrações,
mesmo as de grande responsabilidade como a participação nos conjuntos de música
ritual. Nos intervalos entre as celebrações anuais, é no brincar que as crianças,
batendo em latas de leite, ensaiam os cantos, danças, toques, gestos rituais nos quais
experimentam o que vão acumulando nas rodas.
8- Tradicionalidade dinâmica
As culturas musicais afro-brasileiras mantêm tradições antigas, porém sem nunca
perder de vista o diálogo delas com a contemporaneidade. É a vida da comunidade
respirando os ares do tempo, seguindo seu curso histórico.
“Essas tradições africanas que tanto dialogam com outras culturas, entre elas, as
nativas do Brasil, formam uma relevante crítica prática aos processos de colonização
física ou epistêmica. São propostas decoloniais plenamente antenadas aos mo-
vimentos de libertação contemporâneos, o que revela que ser de cultura tradicional
não é estar preso a um passado remoto, mas manter o diálogo histórico com o tempo
presente, sem que se percam os princípios civilizatórios bantu “.
E, após a abolição:
“a princesa deu cama pra nós dormir/mas não deu cadeira pra nós sentar” (a Isabel
pôs fim à condição legal de “escravo” mas não garantiu aos negros um lugar na
sociedade).
E inda hoje a grande dama Anecide Toledo canta, em qualquer Batuque que ela for,
sempre pondo os pingos nos is em relação ao apartheid vigente no oeste paulista :
“São João que me perdoe/Do que eu vou falar aqui/Precisa acabar racismo/ dentro de
Capivari”...