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Debaixo do Angu tem Carne

Valores Civilizatórios Africanos no Brasil e suas reverberações musicais

Texto de introdução ao curso ministrado por Paulo Dias

O que são valores civilizatórios africanos

A África permanece entre seus filhos diaspóricos como memória de afeto, como
história, como devoção, como manancial de arte-conhecimento modelando a vida em
sociedade e modulando a luta por plena liberdade. Do chão africano emanam forças
vitais que dimanam (fluem e se ramificam) desde o primeiro encarnado até os
descendentes atuais, onde quer que se encontrem.

A África foi arrastada para exílio forçado no Brasil pelo escravismo mercantilista
europeu, que tornou essa atividade justificável aos olhos do mundo com pretensos
axiomas teológico-políticos – como a maldição dos filhos de Cam, da Bíblia , ou a
doutrina da “Guerra Justa”. Assim, ficou natural situar a pessoa preta abaixo da
branca, explorá-la servilmente e transformá-la em mercadoria. Tudo santificado pela
luz da razão iluminista. No século 17, com a escravização mercantilizada de diversas
populações da África através do Atlântico, tem início (na Europa e nas colônias) o
processo de acumulação primitiva do capital obtida mediante a exploração de mais-
valia máxima da força de trabalho do escravizado. Forja primeira do capitalismo.

A mentalidade de dominação por raça, gênero, credo religioso, condição social...


...ainda tão persistente no Brasil como ideologia trans-colonial, não tem feito poucas
tentativas pra desenraizar das pessoas pretas as suas memórias identitárias - história,
tecnologias e ciências, culturas artísticas, fé, modos peculiares de ser e estar. Em
outras palavras, e em última análise, vem buscando apagar, em diferentes setores, a
contribuição da África para o conhecimento humano, tentando desqualificá-la como
válida e arrastá-la para a vala comum do “folclore” ou da “cultura popular”. Daí a
relevância da luta permanente dos negros africanos e afro-diaspóricos para dignificar e
defender esses bens preciosos ainda desconhecidos de muitos.

No contexto do escravismo, os conhecimentos e formas de expressão reelaborados a


partir de memórias coletivas dos diversos povos africanos deportados aqui resistiram à
brutal deculturação imposta pelo modo de produção escravista colonial e se ergueram
como contra-discurso afirmando a vida e a identidade entre as comunidades negras. E
também reverberaram para outros grupos oprimidos da população brasileira. Tratava-
se de restituir a dignidade humana em meio ao caos (in)civilizatório, de tentar
reconstruir a pessoa-sujeito. Assediados pelo terror racial diário, os negros
escravizados firmaram gunga no novo território, apoiados por espíritos ancestrais e
tutelares, assim como pelos que eram donos da terra, os indígenas e seus caboclos
encantados. Pela arte espiritualizada, as comunidades do Atlântico Negro – África,
Américas e Caribe - vêm construindo, ancoradas na fortaleza espiritual e visando a
conquista de espaços sociais em território dominado pela velha coerção racial, uma
nova visão estética, política e crítica das sociedades brancocráticas. Na caminhada por
promover o entendimento e a consciência urgente de que a Humanidade deve superar
de vez a reprodução da injustiça social baseada em raça - marco contraditório de uma
suposta “modernidade” protagonizada por nações “adiantadas”.

Com frequência o pensamento civilizatório africano coloca-se nos antípodas dos


valores europeus-ocidentais interessados no sucesso da pessoa como individuo a
despeito do viver coletivo, ancorados no pensamento racional como fonte única de
percepção do real, na prática da segmentação, hierarquização e correlata exploração
de seres humanos e de qualquer forma do existir na Terra .

A visão afrocentrada aponta para outras direções existenciais, enxergando a pessoa


humana como dimensão do grupo social (em línguas banto, bantu, coletividade
humana, é a forma plural ou coletiva de muntu, princípio de pessoalidade). Predomina
a cosmovisão holista que integra o humano ao natural, e o consequente respeito pelos
dons da Natureza. Também se diferencia do pensamento ocidental por vislumbrar
universos de percepção extra-racional, de natureza imaterial e vibratória; por
reconhecer continuidades e circularidades entre forças sociais, naturais e cósmicas,
espaço e tempo, vida e morte, matéria e energia. Isso está na base de
princípios éticos que dizem respeito às relações não somente entre os humanos, mas
deles com todos os seres animados e inanimados, materiais ou energéticos.

Outra especificidade civilizatória afromatricial é manter e divulgar um saber coletivo


ancestralmente acumulado cuja base é corpo-oral. As oralituras acionam, segundo a
rainha de reinado e escritora Leda Martins, enunciados que se espraiam para muito
além da fala. No dizer do educador angolano Martinho Kavaya, entre seu povo
ovimbundo a oralidade se desdobra em palavras-cântico, palavras-corpo, palavras-
tambor...

No Brasil, como em todo Atlântico Negro, músicas-danças são portas de entrada multi-
expressivas a partir do qual se articula o pensamento filosófico e os princípios
existenciais afro-diaspóricos... Comunidades organizadas/instituições como Quilombos
Rurais e Urbanos, Escolas de Samba, Bois e outras agremiações de folguedo, Casas de
religiões de matriz africana, Irmandades Católicas Negras, Terreiros e Quintais de
Batuques, Clubes Negros, Bailes, Posses e outras são as principais academias desses
conhecimentos acumulados portadores de forças ancestrais. São as Universidades a
que devemos nos dirigir se quisermos verdadeiramente adentrar os caminhos do saber
preto no enlace de suas vertentes filosófico-existencial, histórica, estética, político-
social e teológica. E o processo de aquisição desse conhecimento, como ocorre com
todo saber iniciático, possui muitas e longas etapas, e envolve grandes
responsabilidades da pessoa para com a coletividade.

Africanidade

Em sua vasta dimensão territorial, a África abriga múltiplas e milenares civilizações de


grande projeção histórica. Sempre bom lembrar que é desse continente que emergiu o
primeiro homo sapiens, onde foram dados os primeiros passos daquilo que chamamos
Humanidade. Não admira que a primeira Universidade do mundo tenha sido fundada
na África (em Tombuctu, no Mali) e destinava-se a compartilhar o conhecimento
produzido no mundo entre pessoas de diferentes etnias e religiões. Em sua longa
caminhada histórica, as culturas africanas dão prova de marcada diversidade, desde o
nível microrregional ao continental. Porém tal diversidade não impede que a maior
parte delas compartilhe núcleos de sentido civilizacional de forma bastante
homogênea, fato que vem despertando a atenção de estudiosos insiders e outsiders e
aponta para a existência, em meio à diversidade cultural, de princípios gerais
recorrentes ou valores civilizatórios comuns à maioria dos povos africanos. Pode-se
usar o termo africanidade para definir em conjunto esses valores, como apontou o
antropólogo Fábio Leite. Ou amefricanidade, como sugere Lélia Gonzales referindo-se
às diásporas negras nas Américas em sua especificidade.

Com as diásporas ou dispersões africanas perpetradas pelo escravismo colonial,


ocorridas do século XVI ao XIX, as idéias pretas, suas formas expressivas e modos de
comunicação irradiaram pelo continente americano a partir dos núcleos de
escravizados fixados em diferentes pontos do território. De acordo com Paul Gilroy em
seu “Atlântico Negro”, as culturas das comunidades negras diaspóricas, especialmente
as musicais, se expandiram e mundializaram em contatos transoceânicos, através dos
navios que singravam de lado a outro do Atlântico – continuando mesmo após a
suspensão do tráfico escravista e o advento das guerras de independência na África. A
circulação internacional de artistas e intelectuais negros trouxe grande prestígio aos
países onde estavam fixados, não obstante a continuidade das políticas de exclusão e
preconceito racial. Depois da horrenda travessia nos negreiros, houve muitos negros
trabalhando em navios nas marinhas de guerra e mercante, em países imperialistas
como a Inglaterra e em colônias como o Brasil. E para Gilroy, a embarcação que
navega entre as costas de África, Américas e Europa é símbolo dinâmico da
convergência e intercambio de móbiles culturais pretos transatlânticos.

No Brasil, após séculos de luta nos fóruns políticos, organizados em movimentos


como Frente Negra Brasileira e Movimento Negro Unificado, as comunidades negras
conquistam em 2003 a promulgação da Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino de
História e Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas. E a pressão política dos povos
indígenas leva, em 2008, à promulgação da lei 11.645 incluindo história e culturas
indígenas do Brasil nos currículos. Referenciada na Lei 10.639, a mandala elaborada
pela educadora Azoilda Trindade, do Geledés - Instituto da Mulher Negra-, dá uma
ideia sintética dos princípios a que se convencionou chamar valores civilizatórios
africanos (projeto A Cor da Cultura.
Os valores civilizatórios africanos estão centrados no convívio harmônico e
solidário da pessoa humana com seu grupo social, e das sociedades humanas com
universos naturais e cósmico-espirituais, pois só o equilíbrio entre eles pode assegurar
paz e felicidade gerais. Esses fundamentos ontológicos, ou princípios filosóficos do ser,
geralmente são desprezados ou ocultados pela branquitude intelectual, que no geral
os pré-concebe como primitivos ou ultrapassados, na falta de uma compreensão ainda
que mínima de seus significados. Ademais, a visão humanizante afrocentrada será
sempre um atentado contra o sacrossanto individualismo fomentado pelo sistema
capitalista. As universidades e outros centros de produção e reprodução de
conhecimento têm sistematicamente negado a inclusão das epistemologias (sistemas
de conhecimento) africanas e afro-descendentes, mesmo sabendo-se que a ainda
pouco difundida cotização racial deve necessariamente ser acompanhada por uma
política de cotas epistêmicas– a universidade deve aprender a pensar com a cabeça do
preto, com a cabeça do indígena. Porque a imagem naturalizada que ainda se quer
passar do africano e do afro-descendente é a do escravizado, e a da África, o lugar do
atraso, está fora de cogitação a Universidade reconhecer o valor intrínseco das
contribuições fundamentais e pioneiras desses povos para o desenvolvimento global
humano. No Brasil, a luta pelo fim do epistemicídio das culturas pretas vai dando seus
primeiros passos, com projetos como o Encontro do Saberes implantada há mais de
dez anos na Universidade de Brasília por iniciativa do etnomusicólogo e ativista José
Jorge de Carvalho (que também lutou pelas cotas na UNB).

Nas sociedades diaspóricas do Atlântico Negro, a reorganização, resistência e


resiliência das formas de expressão de matrizes africanas foi a principal mantenedora
de identidade para os grupos afrodescendentes. Ao afirmar um modo de ser peculiar,
com formas culturais próprias atuando como modelos integradores de convívio social,
a manutenção de uma cultura viva devolvia aos negros o ser pessoa que a dominação
colonial e escravista tentava lhes retirar. Se fosse permitido, o livre desenvolvimento
dessas tecnologias alternativas pretas da vida em sociedade poderia ser, nos tempos
atuais de anomia e terror político, de imensa valia para a redenção e felicidade
humanas.

...debaixo do angu tem carne/quero ver quem vai tirar

Memórias da escravidão: para comerem carne, os escravizados escondiam a


preciosa proteína em baixo do angu no panelão onde era cozida a comida rala de todo
dia. Utilizando essa imagem metafórica, o ponto de jongo vem lembrar que as riquezas
da tradição não se colocam ao alcance da vista, mas só se revelam para aqueles que se
decidem e dedicam a procurar conhecê-las. Achar a carne embaixo do angu remete
aos aspectos e conhecimentos situados além das aparências daquilo que nos rodeia.

Em camadas mais profundas das musicalidades de matriz africana em terras


brasileiras, ressoam padrões de organização fundamentados nos valores civilizatórios
africanos - a carne por trás do angu. A ideia que orienta o som que orienta a ideia.
Para além de representarem tradições de música e dança, as expressões afro-
brasileiras projetam e repercutem visões de mundo por meio de valores existenciais
herdados de África e aqui adaptados ao cotidiano dos povos diaspóricos.
Nas culturas musicais de comunidades negras no Brasil esses valores ou princípios
ontológicos de africanidade são recorrentes em diferentes campos: por exemplo, na
motivação dos encontros musicais, na forma e estrutura de organização desses
eventos, na relação deles com a ancestralidade e a espiritualidade e no fato de
manterem vivo e respirando esse legado, dialogando com a realidade histórica e social.

Mais especificamente, na própria estrutura da música esses fundamentos reverberam,


irradiados na forma e no sentido das práticas musicais.

Valores civilizatórios africanos nas práticas musicais afro-brasileiras

1 – Comunitarismo

Nzambi mu kanda
Deus na Comunidade

Provérbio BaKongo
(citado por Bunseki Fu-Kiau)

Um princípio filosófico bantu recorrente da vida em sociedade é o do ubuntu : eu sou


porque nós somos. Alguém só é diante do outro, em relação ao outro. Uma pessoa só
é muntu (pessoa) na interação com seu bantu (grupo de pessoas) - sua kanda,
comunidade. A comunidade apóia a pessoa e a pessoa apóia a comunidade. As
sociedades tradicionais africanas são sociedades de princípios éticos, e para se chegar
a ser cidadão, todo jovem tem de passar por várias etapas de iniciação (mu-kanda),
onde aprende as regras de convívio solidário.

Diz o filósofo e batuqueiro Antonio Filogênio Junior:


Na filosofia, o ubuntu = o ser sendo, o ser com o outro, revela a maneira como o bantu
compreende a sua permanência e ligação com a vida. É a filosofia que potencializa a
capacidade de comunicação, integração, solidariedade e de comunidade; com isso,
alimenta uma narrativa de vida que se opõe ao discurso opressor do individualismo, da
dominação e da exclusão, ou seja, a narrativa de morte proposta pela colonização. O
ubuntu tem sua referência no comunitarismo e na valorização permanente do outro.
“Ngoma Chamou”, pag. 14.

A música africana e afro-brasileira é no geral coletiva, uma música social, onde as


relações entre as pessoas se dá mediante a garantia de um lugar para todos na roda.
Na própria articulação solidária entre os membros de comunidades negras que
marcam os momentos de celebração podemos notar a complementaridade de
responsabilidades e ações entre as pessoas: por exemplo, nos cortejos musicais das
festas de Reinado em Minas Gerais (Congos, Moçambiques, Catupés etc), o capitão da
guarda puxa o canto e a dança apropriados para cada ocasião, os caixeiros de guia e de
contraguia introduzem os batidos corretos, os dançantes de fileira respondem a
cantiga e executam a coreografia.

No campo da música vocal, existe uma forma especificamente africana de interação


entre os participantes: a forma responsorial ou responso. Ela coloca em relação
complementar o cantor solista ou puxador e a resposta, coro dos participantes, cada
qual entoando uma parte do cântico (dinâmica de pergunta-e-resposta). A maioria do
repertório vocal afro-brasileiro utiliza diferentes versões da forma responsorial, na
qual observamos mais uma vez o confronto de muntu (solista) com bantu (coro) em
intervenções alternadas. Nas ocasiões em que o coro se abre em polifonia há, ainda,
uma rica diversidade nas partes vocais superpostas interpretadas por cada pessoa ou
grupo de pessoas, como ocorre, por exemplo, nos Congados e nas Folias de Reis.

Na ingoma só fica à toa quem quer. Todos, segundo sua competência, podem
participar da construção poética, melódica e rítmica : tocadores, cantor solista, coro,
palmas, cacos, e também fogueteiros, sineiros... A senioridade geralmente indica
quem são aqueles que vão desempenhar papéis de maior responsabilidade : abrir e
fechar a roda, tirar o canto, abrir uma voz, percutir as ingomas, fazer falar o tambor
maior...

Nos conjuntos de tambores africanos e afro-diaspóricos fica patente a


complementaridade de funções no plano rítmico, sobretudo mediante o uso do
contraponto rítmico ou polirritmia. Separadas, as frases instrumentais parecem
“simples”; o que faz sua complexidade é o encaixe de uma na outra. O virtuosismo
está em tocar em relação ao outro (ubuntu) : uma música de natureza coletiva e
relacional.

Há certos elementos estruturais que recorrem nos diferentes conjuntos de tambores


afro-brasileiros. Eles foram estudados por etnomusicólogos com Kwabena Nketia
(Gana) e Gerhard Kubik (Austria) nas culturas musicais africanas, e reaparecem com
todo o vigor nas diásporas africanas das Américas. Os instrumentos percussivos são
entendidos por seus intérpretes como participantes de uma trama segundo funções
específicas:

-Time-line ou clave são idiofones que orientam a sincronia das frases rítmicas de cada
instrumento (gã, agogô, mucoco, matraca);
-Tambores de sustentação produzem uma levada curta e contínua, para a
manutenção do andamento (rumpi, lé, candongueiros, quinjengues e puítas). Por
vezes utilizados em pares (meião e crivador, chama e santaninha);
-Chocalhos emitem o pulso básico, a “pancada do ganzá” (xequerê, guaiá, ganzá);
-Tambor-mestre ornamenta a música e marca a coreografia com padrões rítmicos e
timbres variados (hum, tambu, caxambu, Santana, grande), propondo acentuações e
divisões por sobre o tapete contínuo dos tambores de sustentação.
Além de um tambor que não é bem tambor: o pé de dança que percute o solo e
desenha o ritmo. Reforçando isso às vezes vestem chocalhos de tornozelo com gungas
e paiás.

Esse modelo de inter-relação musical põe em evidência princípios subjacentes de


comunitarismo, ou seja, a busca pela integração harmônica do indivíduo na
coletividade. Tocando tambores de diferentes tamanhos e timbres, os músicos
produzem vozes rítmicas e melódicas complementares, como princípios de
pessoalidade (muntu) que se encaixam e dialogam, formando um todo orgânico
(bantu).

2- Oralidade

Na África, o homem vale quanto valem suas palavras. A palavra proferida se investe de
grandes poderes, tanto para construir como para destruir (uma fala deslocada provoca
uma guerra). A palavra é vetora da comunicação entre humanos, entre os mundos
material e espiritual, e é portadora e mantenedora das riquezas criadas pela
coletividade ao longo de sua história. Lembrando que a oralidade nas culturas
africanas e afro-diaspóricas se expande num sentido comunicacional ampliado
envolvendo a corporalidade, a música, a ritualística...

A integração de formas expressivas num todo significante (que a cultura ocidental


normalmente tende a separar em “artes autônomas”) é um espelho das relações
sociais solidárias, assim como da visão integrativa da cultura humana à Natureza e ao
Cosmo. Na África existem profissionais da palavra, os griots (animadores públicos), que
utilizam a multiperformance como veículo de fala, interagindo com diferentes públicos
na difusão da arte-conhecimento ancestral. Esse termo vem sendo utilizado no Brasil
para designar o mestre tradicional desde o advento do Programa Cultura Viva.

Uma outra base integrativa nas performances da oralitura é o exercício da dialogação,


presente nas cantorias afro-sudestinas. No jongo, no candombe e no batuque
tradicionais, cada ponto ou moda proposta por um cantor normalmente é respondido
ou “desatado” por outro cantor. Através de um jogo dialógico canto-poético, os
jongueiros “conversam” entre si, referindo-se a fatos e pessoas da comunidade ou
entrando em pleno debate por prestígio. O uso de linguagem simbólica/proverbial nos
pontos e modas (“um falar e dois entender”) preserva as pessoas implicadas de
exposição perante a coletividade, ao passo que as formas de diálogo por via da
circunlocução (nunca ir “direto ao ponto”) ampliam as possibilidades de semiose, ou
seja, a produção significados que podem variar de acordo com o contexto. Essas
formas curtas, proverbiais, acionam sabedorias muito antigas, valorizadas como voz
dos ancestrais, e seu uso no momento apropriado traz prestígio ao cantador.

A fala jongueira dialogada exemplifica a presença fundante de estruturas de


pensamento angolanas no Brasil. Em Angola ondjango ou jango é a “casa da conversa”
comunal das aldeias– o lugar que centraliza a fala dialogada, onde todos deliberam
sentados em roda, de igual para igual. É o lugar por excelência da emissão de
provérbios, adivinhas, anedotas - formas alusivas e concentradas de veiculação do
saber ancestral. Há diferentes categorias de diálogo no onjango (conversa ritual,
conversa solta, debate, julgamento etc) assim como se percebem em formas
diaspóricas a ele relacionadas - Jongo, Batuque e Candombe - tipos diferenciados de
enunciação poética dialogada (pontos de louvação, visaria, goromenta etc).

Outro exemplo de diálogo, dessa vez com palavras-tambor, é o das baterias de escola
de samba, também presente nos blocos afros, maracatus e congos modernos. No
samba, a bateria e em especial a linha de tamborins, dialoga, realça e acompanha o
desenrolar do samba-enredo cantado . A chamada do repinique, instrumento de
comando (nos congos, o tamborinho), e a resposta da bateria se sucedem dialogando
em diferentes convenções - paradas ou breques de bateria, marcas r ítmicas
identitárias de cada agremiação.

3 Musicalidade.

O etnomusicólogo John Blacking, no livro “How musical is man ?”, utiliza exemplos da
sociedade Venda da África do Sul, entre os quais viveu. Entre o povo Venda, a exemplo
de muitos outros no continente africano, a música é valorizada como forma de
expressão das mais relevantes, e compartilhada, como conhecimento, entre todos os
membros do grupo social. O que não acontece, segundo o autor, na Inglaterra (um
país dito “desenvolvido”), onde só uma reduzida minoria está apta a apreciar
Beethoven. A musicalidade, o ser musical, é inerente ao humano, e pode ganhar
desenvolvimento quando se coloca ao seu alcance o conhecimento dos ritmos, das
alturas dos sons, das combinações entre melodias e ritmos, um repertório mitopoético
e as sequências próprias para cada evento . A sociedade Venda dá apoio à pessoa na
aquisição de uma musicalidade plural e complexa. Segundo Blacking, nas sociedades
ocidentais ocorre justamente o inverso, criam-se obstáculos ao desenvolvimento
musical dos seres humanos “comuns”, pela coerção da sociedade de classes e a
segmentação mercadológica dos gostos.

Assim como nas culturas musicais africanas tradicionais, nas sociedades afro-
diaspóricas brasileiras o ser humano e suas atividades sociais estão no centro das
preocupações; dentro dessa visão humanista, portanto, a música, “som humanamente
organizado” (Blacking), é estimulada desde berço, apropriada coletivamente e não se
torna cultivo exclusivo de uma elite. Se há músicos especialistas, a maioria das pessoas
é dotada de habilidade musical ou capaz de ouvir com inteligência e espírito crítico
uma performance musical dentro de sua comunidade. Por isso a música produzida
pelas comunidades negras ganhou tanta notoriedade internacional, porque essas
comunidades produziram massa crítica de competência musical.

4-Circularidade

A roda é afirmação do princípio de continuidade. Nas formações circulares todos se


encontram equidistantes, de igual-para-igual.
A roda representa o movimento contínuo dos ciclos vitais e cósmicos, o regresso das
chuvas, das estações, das colheitas, das celebrações. A roda da vida movimenta uma
circularidade comparada aos movimentos do sol em seu percurso celeste, no ciclo dos
nascimentos, mortes e reencarnações, como mostra o cosmograma BaKongo
divulgado por Fu-Kiau.

a) As formações em roda
Em muitas tradições afro-brasileiras, a formação básica é a roda, com ou sem solista
ou par solista ao centro. A roda preserva em seu interior um acúmulo de energia vital.
A pessoa que dança ao centro da roda está fortalecida e protegida pelo axé coletivo
circundante. No ondjango angolano, senta-se em círculo ao redor de uma fogueira
para os debates comunitários, com a mediação de um osekulu – velho ou com
experiência vital.

b) Estruturas circulares nas práticas musicais.


Também no interior das próprias estruturas da música nos deparamos com a noção de
circularidade : por exemplo, nos ciclos rítmicos .

No candomblé de ketu, a base rítmica do vassi é tocada com sete pancadas no agogô.
Mas a contagem se faz começando pela “última”, o 7, legitimando a continuidade. O 7-
1 é o “portal”, a emenda, a passagem entre o fim e o recomeço, daí a importância em
identifica-lo numericamente na contagem de tempo interior dos ogãs.
Há um modo simples de representar os padrões cíclicos africanos, em que xis é pulso-
som e ponto pulso-silêncio. O vassi tem doze pulsos básicos (representados por x/.)

7 1 23 4 5 6
X.X.XX.X.X.X

Os ciclos rítmicos de giro contínuo são a base da ideia de tempo na música africana e
afro-brasileira, e a organização das pancadas na linha circular do tempo permitem
identificar o toque, principalmente os claves ou sequências rítmicas de orientação.
Abaixo representação circular do vassi (com X figurando as pancadas), base rítmica de
muitos toques do Candomblé Ketu, do Tambor do Mina, do Nagô pernambucano etc.
5- Corporalidade

Circularmente, o movimento do corpo se traduz em música, e a música em movimento


do corpo. O corpo é vivo e, durante o fazer musical, com seu movimento coloca em
vibração instrumentos e vozes que, por sua vez, interferem na ordem do mundo
ondulatório das forças vitais. Quando associada à música, a palavra torna-se mais forte
em seu potencial de realização; se cantada em coro e ritmada pelas engomas, é ainda
mais poderosa.

O corpo é templo, e ori o seu altar. É no corpo que os adeptos das religiões afro-
brasileiras acolhem as irradiações das entidades espirituais – guias, encantados, orixás,
voduns, inkisses. Nas culturas africanas e afro-descendentes, o corpo é um santuário
vivo, a ser glorificado, perfumado, paramentado. De onde o forte preconceito contra o
corpo espiritualizado negro manifestado pela moral cristã, que instaura a
espiritualidade dissociada do corpo (considerado séde do pecado, do profano).
Dentro dos conjuntos de percussão africanos e afro-brasileiros, o tambor mais grave
costuma ser o tambor-mestre, aquele que faz a marcação da dança. O tamboreiro-
mestre comunica-se diretamente com os dançantes e cantantes, e seus comandos
sonoros induzem uma gama de movimentos corporais e marcam diferentes etapas
coreográficas. Por vezes, o que se vê são verdadeiras narrativas míticas tamboriladas,
como acontece na interação do alabê que toca o atabaque hum com os rodantes nas
danças rituais dos orixás.

Já no batuque, a umbigada é marcada pelo toque agudo de beirada do tambu,


precedida pelo som grave do meio, balizando no tempo a relação de uma
corporalidade coletiva entre pares dançantes. No Jongo, as sequências de sons open
do tambu terminando em slap indicam os giros dos dançantes que desembocam no
miaço de umbigada.

6- Espititualidade/ancestralidade

É fortemente africana a percepção do universo como rede de forças vivas em


interação, energias de caráter ondulatório [miniká, miniênie dos BaKongo] irradiadas
por tudo o que existe. Na diáspora brasileira, essas forças vitais foram chamadas axé
ou gunzo nos candomblés, segundo a nação seja Nagô/Ketu ou Angola.

Os maiores detentores dessa energia são os arqui-ancestrais divinizados e os


antepassados no mundo de lá, e as pessoas mais velhas no mundo de cá. Por isso a
valorização dos velhos e sua experiência vivencial nas sociedades africanas e afro-
diaspóricas. Assim como da cadeia de transmissão da força vital que dimana desde o
preexistente até os viventes atuais.

Nas sociedades tradicionais africanas a noção de realidade é percebida como


decorrente de uma continuidade entre o mundo sensível, dos vivos ou viventes, e o
mundo espiritual, dos ancestrais, antepassados e deidades. Através da interação ritual
chega-se a um contato pleno com a espiritualidade.

A música é importantíssima nessa comunicação entre esferas. Ela é de essência


evanescente, propaga-se como ondas e ressoa nos entes espirituais, que se
manifestam como forças vitais. Os cantos carregam poder de realização, como as que
se utlizam para cantar folha nos candomblés – sem a cantiga correta o poder da folha
não é despertado para utilização ritual. Por isso o grande cuidado em resguardar esse
axé nos terreiros. A ancestralidade é sempre lembrada ao se iniciar qualquer
celebração ou ritual envolvendo música. É vasto repertório cantado e tamborilado
para saravar (saudar) antepassados, ancestrais e divindades : guias espirituais,
encantados, orixás, voduns, inkisses.

No âmbito de rituais sagrados ou profanos, a potência vital do tambor faz dele um elo
poderoso : ele assume a somatória das forças dos três reinos da natureza.
Os tambores são, portanto, de natureza sagrada. Costumam ser guardados em locais
sagrados, como altares, gongás e popelês. Nos candomblés os atabaques são
saudados ritualmente por todos que adentram o barracão, prática comum também em
relação às angomas nas rodas de jongo.
Há diversos relatos orais afro-brasileiros que aludem ao poder dos tambores.
Por exemplo, o relato de origem do Reinado mineiro, em que Nossa Senhora do
Rosário sai das águas atraída pela força dos tambores dos africanos. Há também
narrativas de tambores que “se vingam” daqueles que fazem pouco deles, como na do
Barão Unouê, sufocado pela fumaça dos tambores que mandara queimar (do
Quilombo Matição, MG).

7 – Ludicidade

A Inteligência é força vital que flui circularmente entre mente e corpo. A pedagoginga,
conforme cunhou o escritor angoleiro Allan da Rosa, é a didática dialética do corpo
pensante, com sua lúdica gingada de avanço e recuo, na busca do equilíbrio de uma
teoria suada que fundamente de maneira multifacetada o conhecimento humano.
Belo e bom é estar em movimento; o estático, o puro, não vibra - não vive.

O aprendizado do legado tradicional afro-brasileiro não se dá como em uma sala de


aula. As ocasiões de transmissão do aprendizado são geralmente os eventos festivos e
celebrativos, onde têm lugar as performances musicais-coreográficas.
No pé dos tambores, o jovem aprendiz observa e escuta, vê e experimenta com
paciência.

A criança desde cedo é solicitada pelos mais velhos a assumir funções nas celebrações,
mesmo as de grande responsabilidade como a participação nos conjuntos de música
ritual. Nos intervalos entre as celebrações anuais, é no brincar que as crianças,
batendo em latas de leite, ensaiam os cantos, danças, toques, gestos rituais nos quais
experimentam o que vão acumulando nas rodas.

Fórmulas mnemônicas são uma forma lúdica de se transmitir os toques de tambor,


pois procuram reproduzir com palavras ou sílabas (não raro com bom-humor) os
ritmos e os timbres produzidos pelos instrumentos. No Batuque, o tambu diz: “quando
eu morrer minha mulher pra quem fica”, o quinjengue: “fica comigo, fica comigo”, a
matraca: “traga pra cá”. Já no Candomblé de Ketu utilizam-se sílabas mnemônicas que
configuram um verdadeiro solfejo, semelhante às utilizadas na música indiana. Para o
toque mojuba (pra Exu), por exemplo, o solfejo é: gan tun gan ko tun gan-ka ka - ka - ,
cada uma das sílabas com fonética alusiva ao timbre tirado do tambor hum.

Na aprendizagem pela lúdica se incentiva a prática dos desafios, do enfrentamento em


duelos corporais ou verbais. Para jogar capoeira ou jogar verso, é preciso entender o
outro, em sua movimentação, ou no simbolismo oculto dos seus pontos. Procurando
compreender o oponente através do jogo é que se aprende a lidar com desafios. Assim
é que se cresce como pessoa, tendo permanentemente um olhar para seu
interlocutor.

8- Tradicionalidade dinâmica
As culturas musicais afro-brasileiras mantêm tradições antigas, porém sem nunca
perder de vista o diálogo delas com a contemporaneidade. É a vida da comunidade
respirando os ares do tempo, seguindo seu curso histórico.

Para Antônio Filogênio Jr.,

“Essas tradições africanas que tanto dialogam com outras culturas, entre elas, as
nativas do Brasil, formam uma relevante crítica prática aos processos de colonização
física ou epistêmica. São propostas decoloniais plenamente antenadas aos mo-
vimentos de libertação contemporâneos, o que revela que ser de cultura tradicional
não é estar preso a um passado remoto, mas manter o diálogo histórico com o tempo
presente, sem que se percam os princípios civilizatórios bantu “.

Durante as restrições comunicativas da escravidão, jongos e batuques sudestinos


foram instrumentos de articulação nas senzalas e terreiros, permitindo a veiculação de
avisos e diretrizes entre a coletividade cativa. Foram, portanto, importantes canais de
resistência naquele momento histórico em que se tornava iminente o fim da
escravidão (segunda metade do século 19). Os pontos de jongo/candombe e as
modas/carreiras de batuque têm caráter de crônica dos acontecimentos, avisando de
maneira discreta sobre fatos importantes em articulação nas comunidades de
escravizados:

“eu quero cantar um pouquinho/na linha do tatu pombinho/de dia esconde no


mato/de noite sai no caminho” (carreira de batuque avisando da presença do capitão
do mato)

“tanto pau no mato/embaúva coroné” (ponto de jongo - os podres poderes de um


coronel prepotente – como a embauva é podre por dentro)

“tava durumindo/cangoma me chamou/vê se levanta povo/cativeiro já acabou”


(aviso sobre a libertação)

E, após a abolição:

“a princesa deu cama pra nós dormir/mas não deu cadeira pra nós sentar” (a Isabel
pôs fim à condição legal de “escravo” mas não garantiu aos negros um lugar na
sociedade).

E inda hoje a grande dama Anecide Toledo canta, em qualquer Batuque que ela for,
sempre pondo os pingos nos is em relação ao apartheid vigente no oeste paulista :
“São João que me perdoe/Do que eu vou falar aqui/Precisa acabar racismo/ dentro de
Capivari”...

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