Você está na página 1de 6

Resenha - A categoria político-cultural de amefricanidade

(Lélia Gonzalez)

Em linhas gerais, o que Gonzalez propõe é, antes de mais nada,


uma nova perspectiva nos estudos de formação histórico-cultural do Brasil,
haja vista que a História de nosso país foi e é contada a partir da lógica
eurocristã colonial. O objetivo central da autora é convidar o leitor a se permitir
pensar o Brasil, bem como a parte sul da América, a partir das raízes
ancestrais do saber, da cultura, da língua, da filosofia, das tradições dos povos
africanos, possibilitando assim romper com a ideia “inconsciente” imposta a nós
de que nossa jornada histórica enquanto povo se inicia a partir da colonização
europeia e seus processos “civilizatórios”, bem como pelo imperialismo
estadunidense. Trata-se de um olhar novo e criativo no enfoque da formação
histórico-cultural do Brasil.

O texto busca chamar atenção para o processo de diáspora forçada


e da invisibilidade dos traços de africanização, propondo uma nova categoria
de pensamento, a partir da “amefricanidade”, que é um resgate
histórico/político/sócio/psíquico/linguístico/cultural de quem tem nas mãos a
carga de ter construído muito da cultura do Brasil.

A autora, logo no início do texto, tendo bebido da fonte freudiana da


psicanálise, expõe o conceito de “racismo por denegação”, que consiste no fato
de os brasileiros não entenderem, num primeiro momento, a lógica estrutural
do racismo e autoafirmarem-se não racistas num país em que a base das
relações socais é em função das nuances de raça.

Não se entender reprodutor da mazela social que é o racismo em


uma nação como o Brasil, é de certa forma se convencionar a lógica eurocristã
civilizatória, colonial e imperialista, é renegar o sangue de tantos derramado em
função dos processos cruéis de escravização dos povos negros, é desmerecer
a crítica ao falso abolicionismo sem reparação, é se subjugar ao negacionismo
estatal que falha nas ações afirmativas, é negar a luta periférica por
sobrevivência e moradia.
O conceito de “racismo por denegação” é justamente porque é a
negação inconsciente e consciente desses processos descritos acima que
resulta no pensamento da história única. Categoria freudiana de denegação
(Verneinung): “Processo pelo qual o indivíduo, embora formulando um de seus
desejos, pensamentos ou sentimentos, até aí recalcado, continua a defender-
se dele, negando que lhe pertença”.

González ainda aborda sobre o racismo “disfarçado”. O primeiro,


característico das sociedades de origem anglo-saxônica, germânica ou
holandesa, estabelece que negra é a pessoa que tenha tido antepassados
negros (“sangue negro nas veias”). De acordo com essa articulação
ideológica, miscigenação é algo impensável (embora o estupro e a exploração
sexual da mulher negra sempre tenham ocorrido), na medida em que o grupo
branco pretende manter sua “pureza” e reafirmar sua “superioridade”. Em
consequência, a única solução, assumida de maneira explícita como a mais
coerente, é a segregação dos grupos não brancos.

Já no caso das sociedades de origem latina, temos o racismo


disfarçado ou, como eu o classifico, o racismo por denegação. Aqui,
prevalecem as “teorias” da miscigenação, da assimilação e da “democracia
racial”. A chamada América Latina, que, na verdade, é muito mais ameríndia e
amefricana do que outra coisa, apresenta-se como o melhor exemplo de
racismo por denegação. Esse tipo de racismo pode se desenvolver para se
constituir numa forma mais eficaz de alienação dos discriminados do que a
anterior.

Tanto do ponto de vista racial quanto civilizacional, a presença


moura deixou profundas marcas nas sociedades ibéricas (como, de resto, na
França, Itália etc.). Por aí se entende por que o racismo por denegação tem,
na América Latina, um lugar privilegiado de expressão, na medida em que
Espanha e Portugal adquiriram uma sólida experiência quanto aos processos
mais eficazes de articulação das relações raciais. As sociedades que vieram a
constituir a chamada América Latina foram as herdeiras históricas das
ideologias de classificação social (racial e sexual) e das técnicas jurídico-
administrativas das metrópoles ibéricas.
O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para
manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das
classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a
ideologia do branqueamento. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade
branca demonstra sua eficácia pelos efeitos de estilhaçamento, de
fragmentação da identidade racial que ele produz: o desejo de embranquecer
(de “limpar o sangue”, como se diz no Brasil) é internalizado, com a simultânea
negação da própria raça, da própria cultura.

A segregação explícita, ao contrário do racismo por denegação,


reforça a identidade racial dos mesmos (movimento negro nos EUA, por
exemplo). Segundo González, é justamente a consciência objetiva desse
racismo sem disfarces e o conhecimento direto de suas práticas cruéis que
despertam esse empenho, no sentido de resgate e afirmação da humanidade e
competência de todo um grupo étnico considerado “inferior”. A dureza dos
sistemas fez com que a comunidade negra se unisse e lutasse, em diferentes
níveis, contra todas as formas de opressão racista.

O colonialismo é a culpa! É devido a ideia colonial de “civilizar povos


em estado selvagem”, de categorizar os povos em raças e colocar uma raça na
posição de superioridade, de demonizar os costumes e crenças de povos em
função do catecismo cristão do deus único que se tirou forçadamente o povo
africano de seu continente, trazendo nossa gente para terras estrangeiras em
insalubres condições, escravizando esses povos através da força bruta e
colonizando seus pensamentos e costumes.

O conceito de amefricanidade, pois, é uma forma conceitual e


epistemológica de decolonialidade do saber! Amefricanidade vem “dar nome
aos bois”, vem categorizar políticoculturalmente uma nova forma de pensar as
nossas sociedades, que valoriza os traços de africanização que são
diretamente responsáveis pela construção da nossa cultura, da nossa língua,
da nossa pele, da nossa consciência ancestral.

Amefricanidade é colocada pela autora como uma categoria histórico-


políticocultural, que permite ao povo dessa Améfrica se pensar a
partir de suas origens, raízes e através das marcas latentes da
afreekanização. É um conceito em que a autora traz à tona a
realidade da identidade da América Latina, nomeada por ela como
“Améfrica Ladina”. Muito bem referenciada na psicanálise (e
encontramos Freud e Lacan no texto), Lélia coloca que a verdadeira
identidade do Brasil e dos países amefricanos, bem como de seus
sujeites, está marcada pelos traços fenotípicos, de linguagem e
cultura pela afreekanização, longe da origem branca, colonial e
europeia que nos é ensinada e colocada como verdade. E a partir
disso, busca resgatar para o cenário do conhecimento brasileiro os
sabres afro-brasileiros e as produções negras. E Lélia o fez se
fortalecendo com o povo negro a partir do movimento negro
propriamente dito, resgatando as nossas ancestralidades e
produzindo novas ecologias de sabres (SANTOS, B.) que denunciam
o racismo brasileiro. (RODRIGUES, 2021. p. 2)

Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de


amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica
cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que
é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu
modelo dominante; o Brasil e seus modelos iorubá, banto e ewe-fon. A
Améfrica, enquanto sistema etnogeográfico de referência, é uma criação nossa
e de nossos antepassados no continente em que vivemos, inspirados em
modelos africanos. Por conseguinte, o termo amefricanas /amefricanos
designa toda uma descendência: não só a dos africanos trazidos pelo tráfico
negreiro como a daqueles que chegaram à AMÉRICA muito antes de Colombo.

Embora pertençamos a diferentes sociedades do continente,


sabemos que o sistema de dominação é o mesmo em todas elas, ou seja: o
racismo, essa elaboração fria e extrema do modelo ariano de explicação, cuja
presença é uma constante em todos os níveis de pensamento, assim como
parte e parcela das mais diferentes instituições dessas sociedades. Como
explorado anteriormente, o racismo estabelece uma lógica de hierarquia racial
e cultural que opõe a “superioridade” branca ocidental à “inferioridade” negro-
africana. A África é o continente “obscuro”, sem uma história própria (Hegel).
Assim, dada a sua “natureza sub-humana”, a exploração socioeconômica dos
amefricanos por todo o continente é considerada “natural”.

A violência do racismo e de suas práticas nos despojou do nosso


legado histórico, da nossa dignidade, da nossa história e da nossa contribuição
para o avanço da humanidade nos níveis filosófico, científico, artístico e
religioso; o quanto a história dos povos africanos sofreu uma mudança brutal
com a violenta investida europeia, que não cessou de subdesenvolver a África;
e como o tráfico negreiro trouxe milhões de africanos para o Novo Mundo.

“Toda linguagem é epistêmica. Nossa linguagem deve contribuir para


o entendimento de nossa realidade. Uma linguagem revolucionária não deve
embriagar, não pode levar à confusão”, ensina Molefi Kete Asante, criador da
perspectiva afrocentrada.

Por tudo isso, e muito mais, acredito que politicamente é muito mais
democrático, culturalmente muito mais realista e logicamente muito mais
coerente nos identificarmos a partir da categoria de amefricanidade e nos
autodesignarmos amefricanos: de Cuba, do Haiti, do Brasil, da República
Dominicana, dos Estados Unidos e de todos os outros países do continente.
“Uma ideologia de libertação deve encontrar sua experiência em nós mesmos;
ela não pode ser externa a nós e imposta por outros que não nós próprios;
deve ser derivada da nossa experiência histórica e cultural particular.”

Lélia Gonzalez é uma importante personagem no cenário da


produção epistemológica negra brasileira, tendo sido grande precursora
militante do movimento negro brasileiro e de enorme relevância como mulher
negra intelectual. O uso recorrente de “Améfrica Ladina” ao falarmos de Lélia
revela desde “dentro” as conexões entre as experiências de resistências dos
povos originários e da diáspora, e entre os saberes ancestrais dessas
mulheres, dando visibilidade às histórias secularmente apagadas.

Traz o conceito de “pretuguês” como a marca de africanização do


português falado no Brasil (nunca esquecendo que o colonizador chamava os
escravos africanos de “pretos”, e de “crioulos” os nascidos no Brasil) é
facilmente constatável sobretudo no espanhol da região caribenha. O caráter
tonal e rítmico das línguas africanas trazidas para o Novo Mundo. Lélia tenta
explicar o processo de “criolização” da língua brasileira, no sentido de
compreender a fusão entre a língua dominante e as várias línguas dos grupos
dominados.

Obs: Epistemologia é o ramo da Filosofia que estuda a natureza do


conhecimento (incluindo o científico), também conhecido como Teoria do
Conhecimento.
Lélia afirma que a América Latina é uma construção eurocêntrica
que estabelece a cultura ibérica como sendo a matriz central. Quando ela traz
essas inversões – Ladino e Améfrica, ela traz para além do que é ibérico aquilo
também que é africano, que construiu a região! A autora busca, com inversões
linguísticas, tirar do apagamento a coisa que foi encoberta, trazer à tona a
importância dos povos originários na construção da história.

Lélia, juntamente com Beatriz Nascimento são autoras percussoras do


saber/pensamento da diáspora! Buscam abordar a dispersão de um povo em
consequência de preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica,

Você também pode gostar