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Luiz Gustavo
A autora volta seu olhar para a influência negra na formação histórico cultural do
continente americano. Ao observar similaridades em manifestações culturais e
linguísticas por todo o continente americano, Lelia Gonzalez (2020) joga luz sobre essa
questão tão pouco explorada e destaca que a região – o Brasil, sobretudo – não vem a ser
o que afirma: um local cujas formações do inconsciente são exclusivamente europeias,
brancas. Com o suporte da psicanalise, com destaque para categorias freudianas e a
perspectiva lacaniana, a autora enxerga a presença de um processo de negação de desejos,
pensamentos e sentimentos da nossa “ladino-amefricanidade” por meio do racismo e da
ideologia do branqueamento. Na música, nas danças, nos sistemas de crença, na cultura
popular, no folclore e na modificação do espanhol, português e inglês falados na região
são constatáveis elementos inconscientes, porém recalcados, da importância da
contribuição negra por mais que tenha sido minimizada.
A formação histórica dos países ibéricos em sua análise ganha peso singular para
compreender esse tipo específico de racismo como uma maneira mais eficaz de alienação
das pessoas discriminadas. No caso de Espanha e Portugal, as marcas profundas da
presença moura estão na raiz da sólida experiência acumulada no que tange aos processos
eficazes de articulação das relações raciais. Sua formação histórica decorreu de uma
trajetória de reconquista contra a presença de invasores que se diferenciavam não somente
pela fé que professavam, mas por serem majoritariamente negras. As sociedades ibéricas,
a partir desse processo, se estruturaram por meio de um modelo rigidamente hierárquico,
com grupos étnicos diferentes, tais quais mouros e judeus, sujeitos a violento controle
social e político. Por conseguinte, as sociedades que se formaram na chamada América
Latina foram as herdeiras históricas das ideologias de classificação racial e sexual e das
técnicas jurídico-administrativas das metrópoles ibéricas. Estratificadas racialmente, não
fizeram uso de formas abertas de segregação na medida em que as hierarquias garantem
a superioridade dos brancos enquanto grupo dominante.
O mito da superioridade branca demonstra a sua eficiência com os efeitos que gera
de fragmentação da identidade com base na internalização do desejo de embranquecer;
enquanto a face do racismo por denegação tem como efeito contrário o reforço da
identidade racial dos grupos discriminados. Na comparação das sociedades nas quais se
manifestou o racismo sem disfarces e aquelas nas quais imperou o racismo por denegação,
seriam as primeiras aonde a consciência objetiva do racismo e o conhecimento direto de
suas práticas cruéis se tornaram a força motriz da luta pelo resgate e afirmação da
identidade e competência de um grupo ético considerado inferior. Nas segundas, a força
cultural se distinguiu como o melhor veículo de resistência, ainda que não a única e que
vozes efetuando análises e denúncias do sistema vigente tenham se erguido, tais quais
Franz Fanon e Abdias do Nascimento. Não é por acaso que a categoria da amefricanidade
tem como caraterística ser político-cultural.
Sua elaboração surge como um caminho para refletir também acerca de uma
contradição presente nas formas de luta e resistência negra no novo mundo: a passividade
em face da postura político-ideológica da potência imperialista da região, os Estados
Unidos da América; sobretudo quando se leva em conta as grandes similaridades que
apresentam o Brasil e a região caribenha. Os olhares da autora se voltam para a influência
da minoria estadunidense, vitoriosa em suas principais reivindicações, cuja movimento
inspirou pessoas negras de outras regiões a se organizarem e lutarem pelos seus direitos.
Tal povo discriminado aceitou e rejeitou uma série de termos de autoidentificação os
quais a autora buscou avaliar as contradições presentes nas expressões “afro-american” e
“african-american”.
Autora pontua, finalmente, que enquanto descendentes a herança africana foi uma
fonte de força para a resistência e criatividade na luta contra a escravização, o extermínio,
a exploração, a opressão e a humilhação por parte do amefricanos, fazendo com que
tenhamos contribuições específicas a oferecer ao pan-africanismo. Assumir a nossa
amefricanidade é também uma forma de ultrapassar uma visão idealizada da África e
voltar a nossa capacidade de observação para a realidade em que vivem todos os
amefricanos do continente. Identificar-se e autodesignar-se a partir da categoria da
amerfricanidade é “politicamente mais democrático, culturalmente mais realista e
logicamente mais coerente” (Gonzalez, 2020, p.127). Uma linguagem revolucionária que
evita confusões e hierarquias e uma ideologia de libertação que encontra sua experiência
não de forma externa e sim como derivada de uma trajetória histórica e cultural própria.
Abandona as reproduções do imperialismo e reafirma a particularidade da experiencia
vivida na América como um todo sem perder a consciência dos laços profundos que se
tem com a África. Reconhecer a amefricanidade é, nesse sentido, perceber um trabalho
de dinâmica cultural cujo destino não nos leva para o outro lado do atlântico, mas que nos
trás desse local e nos transforma no que somos hoje.