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Resenha 3 – parte II

Luiz Gustavo

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In Por um


feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Flavia Rios e
Márcia Lima (Orgs.). 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p.127-138.

A autora volta seu olhar para a influência negra na formação histórico cultural do
continente americano. Ao observar similaridades em manifestações culturais e
linguísticas por todo o continente americano, Lelia Gonzalez (2020) joga luz sobre essa
questão tão pouco explorada e destaca que a região – o Brasil, sobretudo – não vem a ser
o que afirma: um local cujas formações do inconsciente são exclusivamente europeias,
brancas. Com o suporte da psicanalise, com destaque para categorias freudianas e a
perspectiva lacaniana, a autora enxerga a presença de um processo de negação de desejos,
pensamentos e sentimentos da nossa “ladino-amefricanidade” por meio do racismo e da
ideologia do branqueamento. Na música, nas danças, nos sistemas de crença, na cultura
popular, no folclore e na modificação do espanhol, português e inglês falados na região
são constatáveis elementos inconscientes, porém recalcados, da importância da
contribuição negra por mais que tenha sido minimizada.

As muitas marcas que evidenciam essa presença negra na construção cultural do


continente levaram-na a elaborar uma categoria a qual não ficasse restrita ao caso
brasileiro. De modo a levar em conta as demandas da interdisciplinariedade, a autora
sugere uma abordagem mais ampla cujos parâmetros não ficassem restritos ao caso
brasileiro e elabora a categoria da amefricanidade. Tal categoria, ainda assim, é fruto da
reflexão de processos históricos, evolvendo o racismo, o colonialismo, o imperialismo e
suas consequências especificas nas américas.

Como um todo, o colonialismo europeu na sua visão se desenvolve no decorrer


do século XIX, com o racismo se constituindo enquanto “ciência” da superioridade cristã
(branca e patriarcal) pautada pelo modelo ariano como referencial das classificações
positivistas das então nascentes ciências do homem. Esse processo, no entanto, se
desenvolveu no terreno fértil da tradição etnocêntrica pré-colonialista a qual via como
“absurdas, supersticiosas ou exóticas as manifestações de povos selvagens” (Gonzalez,
2020, p. 129). O decorrer do século XIX viu uma transformação dessa tradição em
explicação racional dos “costumes primitivos”, tendo como norte uma questão de
racionalidade administrativa das colônias. Não é casual a naturalidade da violência
etnocida das forças do colonialismo europeu, levando essas questões em conta; ainda
assim, convém ressaltar que, em face da resistência dos colonizados, a violência assumiu
novos contornos mais sofisticados, se confundindo assim como uma intrínseca
superioridade capaz de ter efeitos de alienação e internalização dessa superioridade sobre
os colonizados.

A autora menciona faces de elementos táticos do racismo com vista a viabilizar a


exploração e a opressão das quais configuram duas conhecidas formas se destacam: o
racismo aberto e o disfarçado. As sociedades de origem latina, na sua visão,
diferenciariam das anglo-saxônicas na qual prevaleceu a segregação dos grupos não
brancos com sentido de manter a pureza da raça e reafirmar a superioridade dos grupos
dominantes. Sociedades de origem latina, por outro lado, se caracterizaram pelo racismo
disfarçado ou, como classifica a autora, “racismo por denegação” (Gonzalez, 2020, p.
131), aonde teorias da miscigenação, assimilação e democracia racial ganharam corpo.

A formação histórica dos países ibéricos em sua análise ganha peso singular para
compreender esse tipo específico de racismo como uma maneira mais eficaz de alienação
das pessoas discriminadas. No caso de Espanha e Portugal, as marcas profundas da
presença moura estão na raiz da sólida experiência acumulada no que tange aos processos
eficazes de articulação das relações raciais. Sua formação histórica decorreu de uma
trajetória de reconquista contra a presença de invasores que se diferenciavam não somente
pela fé que professavam, mas por serem majoritariamente negras. As sociedades ibéricas,
a partir desse processo, se estruturaram por meio de um modelo rigidamente hierárquico,
com grupos étnicos diferentes, tais quais mouros e judeus, sujeitos a violento controle
social e político. Por conseguinte, as sociedades que se formaram na chamada América
Latina foram as herdeiras históricas das ideologias de classificação racial e sexual e das
técnicas jurídico-administrativas das metrópoles ibéricas. Estratificadas racialmente, não
fizeram uso de formas abertas de segregação na medida em que as hierarquias garantem
a superioridade dos brancos enquanto grupo dominante.

Não obstante, a eficácia do racismo, tal qual se manifesta na região latino-


americana, em subordinar negros e índios nas condições subalternas de classes
exploradas, se da pela forma ideológica que aqui ganhou corpo: a ideologia do
branqueamento. É a mesma que através dos meios de comunicação de massa e aparelhos
ideológicos tradicionais perpetua a visão de que as classificações e os valores do Ocidente
branco são únicos, verdadeiros e universais.

O mito da superioridade branca demonstra a sua eficiência com os efeitos que gera
de fragmentação da identidade com base na internalização do desejo de embranquecer;
enquanto a face do racismo por denegação tem como efeito contrário o reforço da
identidade racial dos grupos discriminados. Na comparação das sociedades nas quais se
manifestou o racismo sem disfarces e aquelas nas quais imperou o racismo por denegação,
seriam as primeiras aonde a consciência objetiva do racismo e o conhecimento direto de
suas práticas cruéis se tornaram a força motriz da luta pelo resgate e afirmação da
identidade e competência de um grupo ético considerado inferior. Nas segundas, a força
cultural se distinguiu como o melhor veículo de resistência, ainda que não a única e que
vozes efetuando análises e denúncias do sistema vigente tenham se erguido, tais quais
Franz Fanon e Abdias do Nascimento. Não é por acaso que a categoria da amefricanidade
tem como caraterística ser político-cultural.

Sua elaboração surge como um caminho para refletir também acerca de uma
contradição presente nas formas de luta e resistência negra no novo mundo: a passividade
em face da postura político-ideológica da potência imperialista da região, os Estados
Unidos da América; sobretudo quando se leva em conta as grandes similaridades que
apresentam o Brasil e a região caribenha. Os olhares da autora se voltam para a influência
da minoria estadunidense, vitoriosa em suas principais reivindicações, cuja movimento
inspirou pessoas negras de outras regiões a se organizarem e lutarem pelos seus direitos.
Tal povo discriminado aceitou e rejeitou uma série de termos de autoidentificação os
quais a autora buscou avaliar as contradições presentes nas expressões “afro-american” e
“african-american”.

O questionamento promovido é das limitações persentes nesses termos. Ambos


vinculam a ideia da presença de negros somente aos Estados Unidos e não em todo o
continente, isto sem falar da reprodução inconsciente da posição imperialista de que
aquela região se constitui como “A América”. Só haverá a possibilidade de atingir uma
consciência efetiva de si própria para a população negra caso não se fique cativo de uma
linguagem restritiva. A proposta da amefricanidade é a solução oferecida enquanto uma
categoria com implicações políticas e culturais de fato democráticas. Esse termo permite
ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico cuja consequência
é abrir novas perspectivas para um entendimento mais profundo da região americana
como um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Ademais, acategoria da amefricanidade,
para além de sua proximidade com o pan-africanismo, incorpora um processo histórico
de intensa dinâmica cultural afrocentrada de adaptação, resistência, reinterpretação e
criação de novas formas, referenciada por diferentes modelos tais quais o Akan na
Jamaica, os iorubá, banto, ewe-fon no Brasil. Por fim, seu valor metodológico traz a
possibilidade de retomar uma unidade específica historicamente engendrada dentro de
sociedades de uma determinada parte do mundo.

A Améfrica é uma criação particular de um determinada parte do mundo; um


sistema etnogeográfico de referência feito no continente e inspirado em modelos
africanos. Amefricanas/os é uma designação capaz de englobar uma descendência de
forma mais completa, desde aqueles que foram trazidos pelo tráfico negreiro até aqueles
que chegaram muito antes de Colombo. A elaboração da amefricanidade envolve pessoas
oriundas de diferentes países atravessadas em comum pela experiência histórica da
diáspora e que, apesar de pertencerem a diferentes sociedades no continente, entendem o
racismo como o mesmo sistema de dominação em todas elas. E diante da hierarquia racial
e cultural estabelecida por esse sistema busca se opor à “superioridade” branca
ocidental/”inferioridade” negro-africana e à exploração socioeconômica dos amefricanos
por todo o continente ao reconhecer a violência que o racismo e suas práticas tiveram em
nos despojar do nosso legado histórico e de nossa contribuição para o avanço da
humanidade nos níveis cientifico, filosófico, artístico e religioso.

Autora pontua, finalmente, que enquanto descendentes a herança africana foi uma
fonte de força para a resistência e criatividade na luta contra a escravização, o extermínio,
a exploração, a opressão e a humilhação por parte do amefricanos, fazendo com que
tenhamos contribuições específicas a oferecer ao pan-africanismo. Assumir a nossa
amefricanidade é também uma forma de ultrapassar uma visão idealizada da África e
voltar a nossa capacidade de observação para a realidade em que vivem todos os
amefricanos do continente. Identificar-se e autodesignar-se a partir da categoria da
amerfricanidade é “politicamente mais democrático, culturalmente mais realista e
logicamente mais coerente” (Gonzalez, 2020, p.127). Uma linguagem revolucionária que
evita confusões e hierarquias e uma ideologia de libertação que encontra sua experiência
não de forma externa e sim como derivada de uma trajetória histórica e cultural própria.
Abandona as reproduções do imperialismo e reafirma a particularidade da experiencia
vivida na América como um todo sem perder a consciência dos laços profundos que se
tem com a África. Reconhecer a amefricanidade é, nesse sentido, perceber um trabalho
de dinâmica cultural cujo destino não nos leva para o outro lado do atlântico, mas que nos
trás desse local e nos transforma no que somos hoje.

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