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Um dos mais notórios pupilos de Franz Boas nos Estados Unidos foi Melville
Herskovits, antropólogo que se dedicou à etnografia de sociedades africanas e ao estudo
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da cultura negra nos EUA e nas Américas. Em O mito do passado negro, Herskovits
estudou as culturas afro-americanas (em especial nos EUA, mas com uma perspectiva
comparativa que incluiu outras regiões americanas, com destaque para o Caribe, o
Suriname e, com menor presença, o Brasil) e o processo de aculturação aos padrões
culturais europeus vivenciado pelos negros escravizados.
Para os propósitos desta análise, O mito do passado negro será encarado a partir
de dois pontos de vista: por um lado, como um precursor das discussões de Mintz e
Price; por outro, como um continuador da reflexão boasiana. A partir da primeira
perspectiva, Herskovits foi praticamente o inaugurador dos estudos sobre a cultura
negra realizados nos EUA a partir de um enfoque etno-histórico, considerando a herança
cultural africana como relevante para o estudo do negro americano. Do segundo ponto
de vista, a eleição do processo de aculturação dos negros como objeto da análise levou
Herskovits a enfrentar, num estudo verticalizado, as aporias e contradições da
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HERSKOVITS, Melville J. The myth of the negro past. Boston: Beacon Press, 1990. Uma vez que esta
obra ainda não possui tradução para o português, traduzi todos os trechos citados do original.
teoria da difusão cultural de Franz Boas. Assim sendo, sua obra pode ser
proveitosamente encarada como um desenvolvimento de problemas tipicamente
boasianos exatamente no ponto que constituía, como vimos, uma das mais relevantes
provas de fogo de sua teoria: os contatos culturais. É no entrecruzamento dessas duas
perspectivas que pretendo analisar a obra de Herskovits como o elo entre os estudos
afro-americanistas e uma tradição teórica marcada por ambiguidades vigorosas, perenes
e intelectualmente férteis.
O livro de Herskovits, publicado pela primeira vez em 1941, foi o resultado de
suas pesquisas para um programa de estudos sobre o negro promovido pelo governo
norte-americano nos anos 1930. Seu objetivo expresso, conforme o próprio autor, era
discutir e desmontar aquilo que ele denomina “o mito do passado negro”, uma
construção ideológica a respeito dos negros norte-americanos que sustentava que eles
teriam sido completamente absorvidos pela tradição cultural europeia, e que portanto
haviam abandonado completamente sua herança cultural africana e teriam se tornado,
essencialmente, indivíduos sem passado. Esta era a visão dominante na academia norte-
americana sobre a “aculturação do negro” até os anos 1930, e Herskovits seria a figura
central no processo de questionamento e rejeição dessa interpretação.
Para Herskovits, o mito se sustentava em cinco pressupostos essenciais sobre os
negros: 1. eles teriam um comportamento mais infantil e estariam mais aptos a aceitar a
dominação branca em situações de escravidão (ao contrário dos indígenas); 2. os negros
escravizados na África eram os menos capazes e inteligentes entre seus conterrâneos, o
que explicaria sua inferioridade; 3. os negros americanos eram oriundos de regiões
africanas muito distantes e portavam bagagens culturais heterogêneas, de modo que não
haveria nenhum denominador cultural comum e as identidades tribais teriam se perdido;
4. os costumes europeus seriam naturalmente superiores à selvageria das culturas
africanas, fazendo com que estas fossem gradualmente abandonadas pelos negros; e,
como corolário lógico, 5. o negro americano seria um homem sem passado.
Contra essas teses, Herskovits destacava que 1. os negros resistiram ativamente à
escravidão de várias maneiras; 2. a captura dos escravos na África era essencialmente
não-seletiva e inclusive atingia membros das elites políticas e religiosas; 3. os escravos
provinham de regiões restritas da África, dentro das quais existia uma certa
homogeneidade cultural, ou ao menos denominadores culturais comuns que tenderam a
sobreviver à aculturação; 4. as culturas africanas traziam visões de mundo sofisticadas
que, a partir de um ponto de vista antropológico moderno, não podiam ser consideradas
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inferiores às européias; e finalmente 5. o passado africano é uma força viva na cultura
afro-americana do presente.
Herskovits acreditava que essa mitologia sobre os negros norte-americanos era
um dos mais eficazes sustentáculos do preconceito racial e das políticas de segregação
racial então existentes nos EUA. Como ele ressalta, por muito tempo a discussão sobre a
questão do negro esteve vinculada ao pressuposto de que as culturas africanas seriam
intrinsecamente inferiores à civilização ocidental européia, constituindo uma herança
vergonhosa da qual os negros deveriam se libertar. Nesse contexto, a ideia de que o
passado africano (supostamente bárbaro) ainda estaria presente na vida dos negros
americanos parecia um argumento de detração dos negros, de modo que a negação do
passado africano foi adotada inclusive pelos intelectuais negros como uma forma de
defesa e auto-afirmação. Contudo, numa cultura em que a história e a tradição são
critérios centrais de avaliação do valor e da legitimidade de um grupo social, essa
ausência de passado não poderia ter outro efeito senão a definição de uma condição de
minoridade para os negros no presente, legitimando comportamentos excludentes e
discriminatórios. Nas palavras do autor, “o mito do passado Negro é um dos principais
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suportes do preconceito racial neste país.” E, mais adiante:
37 Ibid., p. 1.
38 Ibid., p. 32.
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compreender como o abandono de toda identidade cultural especificamente negra
poderia ser vista como via de acesso à cidadania, analogamente ao que ocorria nos
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EUA. Herskovits apontou com lucidez, no início dos anos 1940, como essa
desvalorização tácita da herança cultural africana não poderia desembocar em outro
resultado que não a condição de minoridade dos negros como um grupo social no
presente.
Por isso, para Herskovits, o primeiro passo para a reversão desse quadro passaria
necessariamente por uma revalorização das culturas africanas através de seu estudo
cientificamente neutro, sem considerá-las como naturalmente inferiores e abandonando
as hierarquias valorativas pré-concebidas no estudo das culturas. Com isso, Herskovits
fazia um apelo explícito à adoção, para o estudo das culturas africanas, do paradigma
antropológico relativista sistematizado por Boas. Apenas então seria possível um estudo
mais rigoroso do processo aculturativo. Herskovits acreditava no poder transformador e
redentor da ciência antropológica em relação à questão racial norte-americana e
empreendeu esforços nesse sentido.
Nisso também, como ressalta Sidney Mintz, seguia os passos do mestre Boas,
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que havia fundado em Columbia um programa de estudos do negro. Em 1906, durante
uma tentativa de obter apoio para a fundação de um instituto para o estudo científico do
negro e para a divulgação do conhecimento sobre as sociedades africanas, Boas afirmou
explicitamente que o conhecimento científico sobre as sociedades africanas não
comprova nenhuma inferioridade intrínseca dos negros, e que a divulgação desse
conhecimento contribuiria para mudar as atitudes dos brancos e amenizar os problemas
do racismo nos EUA. Como argumentou para um dos patrocinadores em potencial,
“parece plausível que a atitude do nosso povo em relação ao negro poderia ser
materialmente modificada se conhecêssemos melhor o que o negro fez e realizou em sua
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terra natal.” É difícil saber em que medida Boas enfatizou esse ponto com o intuito de
angariar apoios político e financeiros, mas o fato é que Herskovits viria a advogar o mesmo
ponto de vista em O mito do passado negro, recorrendo ao relativismo antropológico
boasiano para desintegrar as bases da “mitologia” da inferioridade negra.
Permanência vs. Mudança: Padrão cultural e
aculturação
Atendo-se à separação entre raça e cultura e à noção de que as culturas eram resultados
de processos históricos de incorporação de materiais exógenos através de processos de
difusão, Herskovits podia defender que os negros haviam adotado os elementos da
cultura europeia no longo processo de aculturação. Por outro lado, observando a
sobredeterminação do “espírito” de uma cultura aos materiais exógenos que lhe eram
ofertados, Herskovits viria a privilegiar a noção de sobrevivências africanas na
América, mostrando que as culturas africanas permaneceram estáveis, ou sobreviveram,
dentro das possibilidades do contexto escravista.
Com isso, Herskovits voltava aos impasses entre permanência e mudança que já
observávamos na teoria da aculturação e da difusão cultural em Boas. Num prefácio a O
mito do passado negro, datado de 1958, em que reavalia retrospectivamente sua obra e
o impacto que ela teve sobre a discussão racial nos EUA, Herskovits deu sua própria
formulação ao dilema que enfrentou:
Não é difícil observar que Herskovits descreve, nesse trecho, sua passagem da
noção boasiana de cultura como o resultado histórico de adições e colagens derivadas
de processos de difusão, para uma noção – igualmente boasiana – de cultura como todo
Reinterpretações
africanos protestantes nos EUA, pois as formas africanas da possessão extática, dos
cantos e das danças teriam sobrevivido, adaptadas a sanções europeias: a teologia e as
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crenças cristãs definidas em torno do monoteísmo. Numa confluência dos termos
herskovitsianos e boasianos do problema, a reinterpretação tanto podia concorrer para a
preservação dos espíritos africanos (o que seria condizente com o caráter orgânico das
culturas) quanto para a adoção do espírito europeu pelos negros (o que seria condizente
com a noção de aculturação e com a formação histórica das culturas por composição de
influências).
A primeira opção – a reinterpretação de formas europeias segundo sanções
africanas – esbarraria num problema relativo à formação histórica e demográfica das
populações negras americanas. Isto porque o tráfico teria trazido escravos de regiões
africanas diferentes, portadores, portanto, de culturas bastante heterogêneas. Assim
sendo, o contato cultural colonial e escravista não poderia ser concebido como o
confronto entre o espírito europeu e um único espírito africano. Como falar, então, na
preservação de uma sanção africana dentro da comunidade negra se os escravos que a
formavam não compartilhavam as mesmas concepções e sanções? A questão remete a
um dos elementos do “mito do passado negro”. A primeira resposta de Herskovits está
ancorada em um estudo dos padrões do tráfico de escravos: para ele, os escravos não
eram provenientes de toda a África, mas de uma faixa litorânea que se estendia do
Senegal até Angola, com influência mais decisiva das costas do Ouro e dos Escravos. A
preponderância das culturas dessas duas áreas centrais seria comprovada, para o autor,
pela inexistência de cultos afro-americanos a divindades oriundas de fora dessa área,
salvo exceções isoladas. Se apenas este núcleo restrito, que ele denomina “culturas
focais”, for considerado, suas populações tinham uma notável homogeneidade cultural,
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o que simplesmente afastaria o problema da heterogeneidade.
Por outro lado, a heterogeneidade não poderia ser completamente ignorada se se
considerasse a área do tráfico como um todo, incluindo não apenas as “culturas focais”
das costas do Ouro e dos Escravos, mas também todas as outras “culturas periféricas”
que forneceram escravos para as sociedades americanas. Contudo, mesmo ao longo
dessa extensa faixa litorânea, as populações compartilhariam certos traços ou
orientações culturais mais profundas, padrões de comportamento subjacentes a todas as
culturas, nos quais Herskovits pensa em termos de uma “gramática da cultura”, que
49 Ibid., p. 214.
50 constituiria uma unidade basilar que teria permitido o estabelecimento de
padrões de convergência entre costumes específicos. Para ele, existiria “um grau
suficiente de similaridade nas culturas de toda a área, de modo que um escravo de
qualquer parte dela não teria dificuldade em se adaptar a quaisquer formas específicas
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de comportamento africano que ele viesse a encontrar no Novo Mundo.” Recorrendo
ao paralelo linguístico, “se é possível comparar similaridades na gramática das línguas
em toda a região da África Ocidental com o que podemos chamar de uma gramática da
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cultura, percebe-se uma situação semelhante.”
A gramática da cultura africana se organizava, para o autor, em torno das
seguintes orientações gerais: a importância dos grupos familiares e o sistema unilinear
de descendência com residência patrilocal; a geritocracia; a economia dominada pelo
trabalho agrícola exercido por homens no preparo dos campos e por mulheres no
cultivo, de acordo com a divisão da terra em unidades familiares; a existência de grupos
profissionais especializados em tarefas artesanais; a importância do culto aos ancestrais;
a sofisticação dos sistemas legais e de justiça; a concepção de um mundo comandado
por grupos de grandes deuses com um importante papel da adivinhação e da magia na
vida religiosa; e, por fim, uma grande importância das manifestações artísticas e
estéticas.
No nível teórico, essa “gramática” resolvia a questão da heterogeneidade dos
espíritos, pois ela constituiria, no limite, um único “espírito profundo” da cultura
africana, o que tornaria possível, mais uma vez, pensar o encontro cultural a partir do
modelo de confronto entre dois espíritos: o europeu e o africano. É possível notar que a
definição do espírito africano ocorria prioritariamente em termos de interesse,
importância ou orientação, seguindo a tendência boasiana. Com essa formulação,
Herskovits conseguiria explicar a formação das culturas afro-americanas como um
processo de reintepretação de formas europeias segundo sanções africanas – ou seja,
como uma determinação do espírito africano sobre as aquisições formais europeias.
52 Ibid., p. 298.
levam, em última instância, a enfocar mais verticalizadamente as sobrevivências
de africanismos mais tópicos nas diversas esferas da vida cultural afro-americana,
transformando seu estudo em um rol de sobrevivências mais ou menos dispersas e
independentes.
Embora o conceito de reinterpretação apresente implicações que permitiriam
considerar a permanência e a mudança como concomitantes (como exigia Boas),
Herskovits não abandona a dicotomia um tanto mecânica entre comunidades negras
aculturadas e comunidades africanizadas. Começando com aquelas onde a retenção de
africanismos é maior, até aquelas onde a aculturação foi mais completa, ele situa as
diversas regiões da América em sua “escala de aculturação”: Suriname, Guiana, Haiti,
São Domingos, Índias Ocidentais, sul dos Estados Unidos e, por fim, com os negros
mais aculturados aos padrões euro-americanos, o norte dos Estados Unidos.
A aculturação completa e a reinterpretação acabam, no fim das contas, não sendo
plenamente compatíveis. No prefácio escrito em 1958 a O mito do passado negro,
Herskovits reconhece que o princípio da tenacidade cultural, teoricamente, faria com
que os contatos culturais resultassem mais frequentemente em processos de adição e
síntese cultural, e não de substituição de uma cultura pela outra. Por isso, nessa
avaliação posterior de sua obra, ele reconhece a importância de fenômenos de
sincretismo, termo que ele extrai da obra de Arthur Ramos e que não aparecera em O
mito do passado negro 17 anos antes. Com o reconhecimento do sincretismo (marcado
pela sobreposição e pela adição de elementos, mais do que pela substituição), o modelo
bipolar da aculturação (substituição/preservação) seria perturbado pelo fenômeno
sincrético (na chave da adição e da síntese), sugerindo um modelo tripolar: substituição-
síntese-preservação.
A princípio, seria possível pensar no sincretismo/síntese como uma espécie de
“intermediário” entre a substituição cultural completa e a preservação cultural absoluta.
Assim, a síntese seria encarada como um “estágio” do processo aculturativo, como
sugere o Memorando para o estudo da aculturação publicado em 1936 pela American
Anthropological Association – memorando do qual Herskovits participou como
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signatário. Rejeitando um modelo unicamente unilateral, o memorando sugere que a
aculturação deve ser encarada com transformação bilateral das culturas em contato, e
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REDFIELD, Robert; LINTON, Ralph; HERSKOVITS, Melville J. Memorandum for the study of
acculturation. American Anthropologist, Nova York: American Anthropological Association, New Series, v.
38, n. 1, p. 149-151, jan.-mar. 1936.
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indica três desdobramentos ou “fases” possíveis do processo: a “aceitação”,
caracterizada pelo abandono quase completo da cultura original; a “reação”, um
movimento contra-aculturativo no qual a cultura doadora é rejeitada e se busca a
preservação da cultura original; e, como um intermediário entre os dois, a “adaptação”,
na qual traços de ambas as culturas se combinam para construir um mosaico. O
memorando antecipa, em forma embrionária, alguns dos problemas que Herskovits viria
a enfrentar mais tarde em O mito do passado negro, enunciando explicitamente a
distinção entre “traços” e “padrões culturais” e sugerindo a noção de reinterpretação
como um fenômeno que pode ocorrer em dois sentidos e que pode modificar as
orientações profundas das culturas em contato. Ao enunciar as possibilidades de
integração de traços exógenos nos padrões culturais de uma cultura receptora em
situações de aculturação, o memorando enumera:
55 Ibid., p. 151.
56 RAMOS, Arthur. As culturas negras no Novo Mundo. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1979, p. 244-8.
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medida em que a tenacidade da cultura no plano do espírito dificultava pensar em fenômenos
de substituição, e requereria que o processo fosse pensado mais como adição ou síntese e
menos como combinação. A síntese poderia, talvez, ser um modelo proveitoso para pensar
situações de reinterpretação, mas neste caso seria necessário explicar como ela conduziria,
num segundo momento, à substituição que caracterizaria as comunidades aculturadas. A obra
herskovitsiana, contudo, jamais conseguiu elaborar um modelo teórico que desse conta dessa
transição.
Conclusão