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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

História da África

Docente: Prof. Dr. Pablo de O. Mattos

Discente(s): Gabriel Pires Machado Corrêa & Marlon Coutinho da Silva Cubas

A QUESTÃO RACIAL NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE AFRICANA AO


FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX

As tentativas de conceber uma “identidade comum” ou “original” africana talvez


tenham sido tão relevantes quanto as lutas anticoloniais travadas internamente pelos
povos africanos para a construção da nossa visão sobre a África contemporânea. Contudo,
um longo caminho foi percorrido desde o século XIX até a libertação das diversas nações
africanas em meados do século XX. Nesse sentido, o presente trabalho tem por objetivo
compreender as formas de reconhecer esse vastíssimo continente, sobretudo no que diz
respeito aos autores diaspóricos como Edward Blyden, Alexander Crummell e W.E.B Du
Bois, suas implicações e suas problemáticas históricas.

Tendo nascido no caribe, Edward Blyden, um dos mais importantes intelectuais


diaspóricos do século XX, passou a maior parte de sua vida na Libéria. Possuía uma forma
muito particular de interpretar os caminhos necessários para a construção de uma
identidade africana. Para o autor, fazia-se necessário a criação de uma cultura “nacional”
africana, que “reafricanizasse” a África e que compreendesse todo o continente em
moldes puramente africanos. Nesse sentido, o caribenho rejeitava toda e qualquer
influência ocidental no continente, advogando por um regaste das tradições autóctones
baseadas na valorização da família, na vida coletiva, uso comum da terra, água e a
regulação das funções sociais (BARBOSA, 2020, p. 18-19). Apesar do epíteto de “pai do
pan-africanismo” ou até mesmo pioneiro do nacionalismo africano, Blyden coleciona
posições controversas. A despeito de toda sua defesa de um projeto endógeno para a
formação da identidade africana, o autor defendeu a colonização britânica no continente
como única forma de garantir o almejado autogoverno na região e não escondia seu
comprometimento com os interesses estadunidenses e britânicos na África. Barbosa
(2020, p. 20), todavia, aponta que esses posicionamentos possuem explicações que se
calçam em sua própria época, como o fato da visão fatalista de Blyden sobre a
impossibilidade de resistência ao jugo britânico, pleiteando uma “tutela” britânica ao
invés de uma “dominação”. Curiosamente, essa posição influenciaria, posteriormente, a
futura geração de “protonacionalistas”, cuja defesa de africanização das instituições sob
auxilio externo era uma característica constante (BARBOSA, 2020, p. 21)

Blyden não era o único a possuir tais controversas. Alexander Crummell, padre
liberiano nascido no Estados Unidos da América e posteriormente radicado na Libéria,
considerado um dos patriarcas do nacionalismo africano, também possuía posturas
discutíveis. Se para Blyden a cultura africana autóctone era valorizada e fator fundamental
para a identidade do continente, Crummell realizava uma defesa ferrenha do idioma
anglo-saxão, considerando-o superior aos demais dialetos e línguas. Em um discurso para
cidadãos do condado de Maryland, na Libéria, considerou a linha inglesa como uma
compensação divina à diáspora causada pelo tráfico de escravizados no atlântico
(APPIAH, 2007, p. 19). O que, na visão do missionário, seria o elemento norteador da
união entre os habitantes da África era a raça. A “África” de Crummell era a pátria-mãe
da raça negra, e cabia somente a estes ditar os rumos do continente. A divisão do autor
era bem clara: assim como a Inglaterra era a pátria do povo Anglo-Saxão, a Alemanha,
dos teutões, a África seria a do povo negro. A definição de “povo” de Crummell era a
mesma do nacionalismo romântico do século XIX, não havendo distinção alguma entre
as diversas culturas e etnias que compõem o território africano. Dessa forma, para o autor,
o povo africano seria um só: o povo negro (APPIAH, 1997, p. 22). Muryatan Barbosa
(2020, p. 27) corrobora com essa ideia. Foram muitas as vezes na qual os demais
intelectuais pan-africanistas (aqui Blyden está incluso) referia-se à África como “lar da
raça negra”. Não pensavam na África muçulmana, mas apenas na “África negra” sul-
saariana e “pan-negrista”. As referências da época eram corriqueiramente nesse sentido:
valorização de um passado grandioso de autogoverno negro (como no caso do Egito
Faraônico e da Etiópia); da beleza feminina da mulher negra e da cultura local
(BARBOSA, 2020, p. 27-28).

A questão racial também foi um tema de importância para Blyden. A ida do


caribenho para a Libéria foi motivada por sua crença na “regeneração da raça negra” a
partir do próprio continente. A partir desse contato, Blyden iniciou a defesa de um
autogoverno africano que se iniciaria a partir da Libéria e Serra Leoa e expandir-se-ia
gradualmente para toda a África. Enquanto defendia esse projeto nacionalista para o
continente, no caso liberiano, Blyden tornou-se crítico da pigmentocracia — ideia na qual
havia um favorecimento dos povos mestiços e seus descendentes sobre os povos africanos
nativos (BARBOSA, 2020, p. 19). No caso do autor caribenho, suas definições sobre raça
não são muito claras. Não sabemos, portanto, se esta se encontrava livre do romantismo
racialista romântico ou até mesmo do racismo científico do século XIX (BARBOSA,
2020, p. 20).

Na segunda metade do século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial,


a questão da identidade africana ficou cada vez mais forte. Durante os anos de guerra,
diversos africanos serviram nos exércitos metropolitanos em nome da liberdade onde,
costumeiramente, eram referidos apenas como “africanos”, gerando um certo censo de
comunidade e camaradagem. Mas apenas isso não explica a guinada nacionalista vista no
continente. De acordo com Appiah (2007, p. 23), foi no dito Novo Mundo (américas) que
o pensamento pan-africanista ganhou contornos mais fortes.

Muito distantes do continente de origem, a ancestralidade em comum situada na


África era o que havia de mais palpável na construção de uma identidade negra nas
américas. Aliado a isso, influenciados pelas teorias raciais populares, os intelectuais
diaspóricos — estes em sua maioria educados em universidades americanas e europeias
— alicerçaram na “solidariedade racial dos negros”. Dessa forma, um impasse,
naturalmente, foi criado. Os perigos das teorias raciais desnudados pelos horrores nazistas
impossibilitaram a criação de qualquer organização sociopolítica baseadas puramente na
raça e, ao mesmo tempo, o intercâmbio cultural com os brancos no Novo Mundo era um
processo extremamente doloroso para os indivíduos que sofriam diariamente com as
formas mais brutais de discriminação. Na África, o cenário foi um pouco diferente. A
principal questão política era como resolver a situação do negro e a experiência trazida
dos traumas da guerra não foram os “perigos do racismo”, mas a falsa oposição entre
“modernidade branca” e “barbaridade não-branca” (APPIAH, 2007, p. 24). A experiência
regional também diferia bastante dos afro-americanos. Os negros africanos viviam em
espaços de maioria negra, onde as normas sociais eram regidas pela cultura locais não
havendo, portanto, a mesma preocupação com o ressentimento ao colono branco
(APPIAH, 2007, p. 24-25). Também no pós-guerra foram criadas noções mais bem
delimitadas de negritude. Dentre os conceitos de solidariedade para com todos os povos
negros do mundo (aqui justificados pela ancestralidade e história comum), estava a luta
anticolonial e assimilação pelo ocidente (BARBOSA, 2020, p. 48). A questão da noção
sobre raça no pensamento pan-africanista é complexa, já que esta deriva de concepções
de autores diaspóricos do Novo Mundo. Já no contexto de teorização da descolonização
da África, autores como W.E.B Du Bois, diferentemente de Crummell que não possuía
uma definição de “raça” tão articulado teoricamente, apresenta discursos sobre raça negra
muito mais enfáticos. Para o autor, cada raça possuiria sua individualidade regida pelas
leis da vida racial. E, quando analisado em uma totalidade, essa vida racial tenderia a
homogeneidade e integração dos indivíduos perante o sangue (APPIAH, 2007, p. 29).

Em conclusão, a questão racial desempenhou um papel fundamental na criação da


identidade pan-africanista nos séculos XIX e XX. A busca por uma identidade coletiva e
a solidariedade entre os povos africanos e afrodescendentes permitiram a resistência e a
luta contra a opressão racial, o colonialismo e a escravidão. Em que pese as controvérsias
e problemáticas históricas, O movimento pan-africanista transcendeu as fronteiras
geográficas e uniu pessoas de diferentes partes do mundo em torno da luta por liberdade,
igualdade e justiça. Ao destacar a herança cultural e histórica compartilhada, o pan-
africanismo promoveu o fortalecimento da autoestima e a valorização das contribuições
dos africanos e afrodescendentes para a humanidade. No entanto, a questão racial na
identidade pan-africanista também destacou a persistência das desigualdades e da
discriminação racial enfrentadas pelos africanos e afrodescendentes em todo o mundo. A
luta por igualdade continua a ser uma batalha constante, exigindo o enfrentamento das
estruturas de poder e a busca por políticas inclusivas e reparadoras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APPIAH, Kwame Anthony. Na Casa de Meu Pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.
BARBOSA, Muryatan. A razão africana. Porto Alegre: Todavia, 2020.

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