Você está na página 1de 5

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Componente Curricular: Diáspora Africana nas Américas


Discente: Samile de Souza Carvalho
Docente: Dra. Isabel Cristina Reis

A Diáspora Africana nas Américas: A Territorialidade Como Forma de


Resistência

Introdução
Este texto é resultado da disciplina Diáspora Africana nas Américas, ministrada pela
Prof. Dra. Isabel Cristina Reis. Na disciplina as discussões versaram em torno da
experiência do povo negro nas américas, objetivando contemplar, dentro dos limites da
carga horária, as vivências que se denrolaram em países da América do Sul e Central,
trazendo à luz narrativas pouco estudadas e/ou desconhecidas pela historiografia
contemporânea brasileira.
Neste sentido, o texto aqui em questão, seguirá pela mesma lógica, onde o principal
objetivo é discutir a experiência diaspórica do povo negro com ênfase na construção das
territorialidades como estratégia de resistência. Como base, utilizei, além dos textos de
Joseph Miller (1997), Marquese e Parron (2011) e Klein (2012) - trabalhados na disciplina -,
bibliografias que tratam, mais especificamente, dos conceitos de diáspora, resistência e
territorialidade, com Sack (2011).
O não-protagonismo dos africanos e dos afrodescentes nas narrativas históricas da
historiografia tradicional é assunto que passou a ser discutido somente no final do século
XX, mas os vestígios históricos de que estes foram não só grandes protagonistas, mas
também pioneiros1 na construção da História do mundo evidenciam que esses
apagamentos são fruto de uma perspectiva eurocentrada da escrita histórica, fenômeno
ainda predominante no contexto atual brasileiro, tanto no ensino básico, quanto no superior,
vide as intensas discussões em torno da aplicabilidade das leis 10.639/03 e 11.645/08.
Sendo assim, discutir as experiências do povo negro na formação inicial de
professores é uma das saídas para possibilitar e estimular a reescrita da História e, ao
mesmo tempo, levar o protagonismo do povo africano e afrodescendente para dentro da
sala de aula.
A Diáspora Africana nas Américas

1
Aqui, me refiro aos povos Egípcios, que, segundo o que remontam os vestígios históricos, a partir
da narrativa de Jaime Pinsky (2001), foram os povos que organizaram as primeiras civilizações com
poder centralizado, tendo a agricultura como a principal forma de sustento e fortalecimento dessa
sociedade.

1
Primeiramente, compete aqui dialogarmos acerca do conceito de “diáspora” a
palavra faz referência ao deslocamento, ou melhor, dispersão de um determinado grupo
étnico. Essa dispersão que pode ser caracterizada como diáspora, segundo pontua o autor
Butler (2020), não é fruto de movimentações meramente aleatórias e nem individuais, ela
precisa estar relacionada a um contexto histórico que gera impacto, diretamente, em um
determinado coletivo. Além disso, devido ao que o autor chama de “fluidez”, a diáspora é
um processo do qual não é possível prender em uma caracterização pronta, com começo,
meio e fim, ao passo que a mesma sofre com mutações constantes.
Desta maneira, me encarrego aqui de discutir somente o contexto histórico do
deslocamento - para não dizer sequestro - do povo africano e dos desdobramentos que
envolvem os seus descendentes no continente americano. De acordo com Herbert Klein
(2012), todas as terras do continente americano que sofreram com a invasão europeia,
contou com um sistema escravista que guardava, em sua essência, lógicas similares,
portanto, não cabe, ao estudar a experiência da escravidão nas Américas, utilizar balanças
com fins de analisar o lugar onde a escravidão poderia se apresentar de forma mais “leve”
ou mais “pesada” - vide a narrativa que a historiografia tentou sustentar em meados do
século XX.
No entanto, é válido ressaltar, que todas essas sociedades poderiam apresentar
especificidades, como, por exemplo, a utilização maior da mão de obra indígena para a
produção de artesanatos nas colônias hispânicas ou um maior volume de utilização da mão
de obra de africanos escravizados nas colônias portuguesas e inglesas. Klein (2012)
também lança um olhar sobre as ocupações dos escravizados e as formas como elas
variaram de um país para outro, países que possuíam poucos trabalhadores brancos -
como era o caso do Brasil - os senhores tinham uma maior preocupação em investir em
uma mão de obra negra especializada. Mas, no que diz respeito à finalidade e às
motivações econômicas e à organização do trabalho escravo nas lavouras, observamos
pouquíssimas diferenças.
Ao estudar sobre o sistema escravista e observar algumas das informações aqui
discutidas até então, é fácil cair no erro de imaginar que o sistema seria algo completo e
com poucas variáveis, como se, desde o momento em que se iniciaram as “Grandes
Navegações”, no final do século XV, já existisse um projeto pronto para a construção de tal
sistema econômico à espera de ser implementado. Partindo deste pressuposto, o autor
Joseph Miller (1997) argumenta que o sistema escravista, com todas as suas variantes, é
resultado de um processo histórico, “que passou por etapas distintas e lugares distintos”
(MILLER, p.10, 1997).
Assim, é importante perceber que a escravidão surge como uma alternativa para os
europeus de concorrer com a atividade comercial comandada pelos muçulmanos, na África

2
Ocidental. Com pouco capital e uma grande dificuldade de se estabelecer nas terras
colonizadas, escravizar indígenas e, pouco depois, africanos, utilizando-se de estratégias
desonestas e cruéis, foi o caminho encontrado pelos europeus para erguer rentáveis
empreendimentos nas terras colonizadas.
Os lucros do tráfico tornou-se, muitas vezes, maior do que o da própria atividade
agrícola, como ressalta Miller (1997), os escravizados eram oferecidos como garantia até
mesmo para a concessão de empréstimos de crédito. O que também nos interessa saber, é
que as pessoas negras não assistiram a tudo isso apaticamente. Houveram rebuliços, tanto
dos contemporâneos à escravidão, quanto dos seus descendentes, lutando contra a
herança histórica do sistema: o racismo.
Territorialidades e Resistências
Como posto acima, já é consenso na historiografia atual que as pessoas
escravizadas articularam durante a sua vida, constantes atos de resistência, o que, por sua
vez, não significa, necessariamente, a organização de lutas armadas, mas em resistências
cotidianas como o simples ato de aprender a ler.
Assim, ao observar as experiências diaspóricas protagonizadas por pessoas negras,
percebemos que a sua resistência é remodelada não só através de um movimento de
resgate, ela também caminha para a construção do novo e este, por sua vez, está
intimamente relacionado com o tempo e o espaço, ou seja, o contexto e o território. Neste
sentido, é possível dizer que, dentro do movimento da diáspora, há também a construção
de um sentimento de pertencimento, que passa pela relação do sujeito(a) com a
terra/território. Dessa maneira, entendemos que territorializar-se vai além de ocupar um
território, é apropriar-se do mesmo e construir, a partir de interações com a natureza e com
a sociedade, relações políticas, econômicas e culturais (SACK, 2011).
Dentre diversas narrativas discutidas acerca da diáspora, escolhi tratar, nas poucas
linhas que me restam dentro deste texto, da trajetória de Frederick Douglass, André
Rebouças e Argélia Laya, personalidades negras, que apesar de serem fruto de tempos e
espaços diferentes, compartilham o fato de serem sujeitos da diáspora.
A apropriação do território e a construção de uma identidade que, ao passo que é
incapaz de desgarrar-se da ancestralidade, é também uma reconstrução e todo esse
movimento pode estar ligado, ainda que de forma subjetiva, à luta cotidiana. Isto pode
revelar-se com Frederick Douglass, o intelectual e abolicionista estadunidense,
supostamente nascido, na condição de escravizado, em 1817 ou 1818. A história de vida de
Douglass é relatada pelo mesmo no livro “Narrativa de vida de Friederich Douglass: um
escravo americano, escrita por ele mesmo”, a leitura do livro nos leva a imaginar as
complexidades que os cercou em diversas fases da sua vida. Aqui prefiro me ater ao seu
contato com a escrita. Douglass aprendeu a ler quando ainda era um escravo, o seu contato

3
com o mundo das letras só foi possível a partir das diversas estratégias traçadas por ele
mesmo, é através da leitura e da escrita que o abolicionista sustenta sua luta e desenvolve
caminhos para se movimentar dentro da dura sociedade racista.
Diferentemente de Douglass que tinha nítido em suas palavras e ações a noção de
que a escravidão estaria associada à uma lǵica racial, o, também intelectual e abolicionista,
André Rebouças evitou falar sobre isso durante um bom tempo da sua vida. Mas é inegável
que isto não diminui o legado da sua contribuição para o fim da escravidão e do seu projeto
abolicionista. Rebouças nasceu em uma família livre, no Recôncavo da Bahia, filho do
advogado autodidata Antônio Rebouças, tornou-se engenheiro e amigo próximo do
imperador D. Pedro II - talvez esta condição o tenha feito se afastar do discurso sobre o
preconceito racial. Ele foi um dos poucos abolicionistas negros, como pontua a autora Anita
Soares (2017), a construir um projeto abolicionista que pensasse o contexto do
pós-abolição para além dos aspectos econômicos, propondo, inclusive, um projeto de
Reforma Agrária.
O projeto de Reforma Agrária proposto por André Rebouças, se colocado em
prática, poderia amenizar, em muitos sentidos, os resultados do abandono institucional que
afeta os afro-brasileiros até os dias atuais. O apagamento e as situações de vulnerabilidade
da qual as pessoas negras são vítimas hoje em dia é resultado de estratégias políticas e até
científicas como a eugenia e, mais tarde, a ideia de democracia racial. Essas ideias não são
particularidades brasileiras, a Venezuela também é um país onde a população negra, sente
até hoje, o abandono institucional e, pior, o silenciamento, quando o assunto é racismo. É
em um contexto como este que Argélia Laya surge como uma liderança política muito forte
que visava defender o direito das mulheres e das pessoas negras. Argélia assegura, a partir
da sua narrativa e dos seus discursos, notáveis contribuições para a luta afro na Venezuela
e, especialmente, das mulheres negras. Inserida em um contexto onde as mulheres -
negras, majoritariamente, em decorrência da sua maior vulnerabilidade social - não tinham
liberdade para escolher os seus caminhos e a luta negra estava mal articulada, onde ser
considerado afrodescente tinha um peso negativo, Laya se coloca, reivindicando a sua
ancestralidade e o direito de ser protagonista da sua própria vida.
Considerações Finais
Assim, a partir do que foi exposto no texto, cabe concluir que a experiência
diaspórica do povo negro no continente americano é, não só fruto de um processo histórico,
mas elemento importante para a remodelagem das identidades individuais e coletivas a
partir da interação com o tempo e o espaço. Com isto, percebemos que as pessoas negras,
ao longo da história, sempre se colocaram enquanto sujeitos do seu destino, mesmo
quando as concessões e as barganhas eram sua ferramenta de luta e/ou de sobrevivência.
Referências

4
BUTLER, Kim. Definições de Diáspora: Articulação de um Discurso comparativo. Diásporas
Imaginadas: Atlântico negro e Histórias Afro-brasileiras. In.: BUTLER, Kim;
DOMINGUES, Petrônio. 1ªed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2020. Cap.1
DOUGLASS, Friederich. Narrativa de vida de Friederich Douglass: um escravo
americano, escrita por ele mesmo. In: VIDAL, Leandro P (tradutor). 2012.
SOARES, Anita. “O Negro André”: a questão racial na vida e no pensamento do
abolicionista André Rebouças. Revista Plural. v.24. n1. São Paulo, 2017.
MILLER, Joseph. O Atlântico escravista: açúcar, escravos e engenhos. Revista Afro-Asia.
Bahia, 1997.
MARQUESE; PARRON. Internacional escravista: a política da Segunda Escravidão.
Revista Topoi. v. 12, n. 23. Rio de Janeiro, 2011.
KLEIN, Herbert. A Experiência Afro-Americana Numa Perspectiva Comparativa: A Situação
Atual Do Debate Sobre A Escravidão Nas Américas. Revista Afro-Asia. Bahia, 2012.
SACK, R. D. O significado de territorialidade. Territorialidades Humanas e Redes Sociais.
In: DIAS, L. C.; FERRARI, M. (Org.). Florianópolis, 2011.

Você também pode gostar