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29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento

1999

ARMAS E ARMADILHAS
por John Manuel Monteiro

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29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento

Resumo

No Brasil, tornou-se comum retratar as sociedades indígenas como populações em


extinção, fadadas, cedo ou tarde, ao desaparecimento. De modo geral, para dar conta da
situação atual, fala-se dos índios de hoje como meros sobreviventes.  Não há como negar
que as sociedades nativas de fato sofreram cinco séculos de depredação e espoliação mas
reduzir essa experiência à simples caracterização das sociedades indígenas como vítimas
das iniquidades dos brancos é cometer mais uma injustiça.

Felizmente, a história desses povos vem sendo recuperada e repensada por um movimento
indígena emergente, através de pesquisas e debates acadêmicos. Lideranças políticas e
professores indígenas colocam em sua agenda a tarefa de apropriar-se do seu passado
como parte indispensável do processo de revitalização étnica, na defesa dos direitos
territoriais e, sobretudo, na reivindicação do direito de ser diferente.

Entretanto, o maior desafio que o historiador dos índios enfrenta é a necessidade de


desconstruir as imagens e os pressupostos que se tornaram lugar-comum nas
representações do passado brasileiro. Um dos aspectos mais importantes e problemáticos
do recente processo de “revitalização” étnica reside na reapropriação, pelas lideranças do
movimento, de uma cultura e uma história “autênticas”.

No Brasil, o estigma da aculturação, fruto de longa data do viés assimilacionista da


política indigenista e do indigenismo brasileiro, apresenta um desafio especial para as
lideranças e organizações. Assim, adereços ornamentais e práticas rituais, há muito
abandonados por índios “caboclos” ou “camponeses”, passaram a reintegrar o repertório
cultural dessas sociedades, muitas vezes para fundamentar estratégias de ação em
situações de confronto ou de reivindicação.

Para as lideranças e os professores indígenas, a história também se localiza


prioritariamente no espaço interétnico porque proporciona uma fonte de informações
sobre o processo de subordinação e sobre os direitos legais capazes de sustentar
reivindicações concretas no presente e estratégias políticas para o futuro, proporcionando,
assim, uma nova arma na articulação de uma nova espécie de resistência. Mas essa
concepção de história é bastante problemática. Se, como não podia deixar de ser, ela é
etnocêntrica, pois focaliza o passado através da experiência do grupo e de sua luta para se
manter coeso como povo, a história indígena tem que lançar mão de categorias analíticas,
de imagens e representações que são produtos do mundo dos brancos. Nesse sentido, o
uso da história está imbricado num discurso que é voltado para fora, porém com
implicações importantes como meio de reforçar a identidade interna.

O quinto centenário da viagem de Colombo, em 1992, apresentou uma oportunidade para


a articulação, ainda que confusa e pouco elaborada, de uma reflexão das lideranças e dos
professores indígenas sobre os usos da história. Reconstruir a história para construir o
futuro é algo que está, sem dúvida, na agenda de uma parte expressiva do movimento
indígena atual. Porém, é uma tarefa que exige uma reconfiguração radical das noções
ainda prevalecentes na história que se ensina hoje.

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Escrevendo no início dos anos 80, o intelectual indígena boliviano Ramiro


Reynaga Wankar afirmou: “Os brancos, ao porem um obstáculo no nosso caminho
para o passado, bloqueiam o nosso caminho para o futuro” (apud Rappaport,
1990, p. 1). Assim, negado o acesso a uma história, essa liderança nativa apontava
para a dificuldade de se articular um projeto prospectivo para seu povo. No Brasil,
até poucos anos atrás, a questão se punha de outra maneira, praticamente
invertida. Às sociedades indígenas se negava um futuro: uma longa sucessão de
leis, de políticas governamentais e de correntes do pensamento social tratava os
povos nativos como populações em extinção, fadadas, cedo ou tarde, ao
desaparecimento. Ao cabo destes primeiros quinhentos anos, no entanto, apesar
de perdas irrecuperáveis e transformações marcantes, diversas populações
portadoras de uma herança cultural, genética e moral que atravessou séculos de
riscos e incertezas estão aí a reclamar os seus direitos históricos e a sua alteridade
política.

Com certeza, a crescente visibilidade dos índios nos últimos anos tem deixado a
sociedade brasileira um tanto perplexa. Aprende-se, desde pequeno, que os índios
são coisa do passado, não propriamente da história, mas antes de uma distante e
nebulosa pré-história. Os manuais escolares e mesmo a historiografia profissional
tendem a liquidar rapidamente com as populações indígenas, dando-lhes um certo
destaque — como não podia deixar de dar — apenas nos anos iniciais da
colonização. Apesar de reaparecerem pontualmente em alguns episódios, por
exemplo, como valentes auxiliares dos luso-brasileiros na guerra contra os
holandeses, ou como vítimas dos excessos dos bandeirantes, ou, ainda, como os
protegidos do magnânimo Rondon no início deste século, as populações indígenas
de fato – contrapostas ao índio imaginado – são povos invisíveis em grande parte
da história que se ensina convencionalmente. De modo geral, para dar conta da
situação atual, fala-se dos índios de hoje como meros remanescentes,
sobreviventes, resquícios que continuam agarrados ao pouco que lhes resta após
cinco séculos de depredação e espoliação.

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Não há como negar que as sociedades nativas de fato sofreram reveses


monumentais diante do impacto fulminante do encontro – na verdade, encontrão
– com a expansão europeia. No entanto, reduzir essa experiência à simples
caracterização das sociedades indígenas como vítimas das iniquidades dos brancos
é cometer mais uma injustiça, que se soma a tantas outras. Há boas razões
políticas para a insistência nessa imagem: afinal, é assim que os movimentos
indígenas contemporâneos e os movimentos de apoio aos direitos dos índios têm
construído o quadro dramático que busca sensibilizar o público diante das
reivindicações de reparações pelos séculos de injustiça, expropriação e violência.
Porém, essa perspectiva oculta os múltiplos processos históricos de
questionamento, negação e reelaboração de identidades indígenas que
informavam e direcionavam as maneiras pelas quais diferentes segmentos sociais
nativos se posicionavam diante da nova ordem que começou a se instaurar com a
chegada dos primeiros navegantes portugueses, há quinhentos anos.

Essas experiências, vivências e estratégias indígenas vêm sendo esmiuçadas por


um crescente número de estudiosos, buscando aliar uma certa sensibilidade
antropológica às informações inéditas que emergem, em fragmentos dispersos, dos
arquivos que guardam e escondem os mistérios do passado. Este é um lado
importante daquilo que podemos chamar de nova história indígena, porque há um
outro lado, não menos importante, que é a investigação das diferentes
perspectivas nativas sobre o passado, muitas vezes codificadas em registros orais
que se distanciam do modo usual de se pensar a história (ver, por exemplo, Hill,
1988, e Gallois, 1993). Deve-se ressaltar, ainda, que se trata de uma “nova”
história indígena, porque esse tema não é nada novo na historiografia do país:
desde os tempos coloniais, os cronistas e outros escritores se indagaram a respeito
dela, e, no século XIX, a temática indígena foi crucial na elaboração de uma
mitografia fundacional do país, que se desdobrou em sucessivas ondas da
historiografia e do pensamento social brasileiro (Monteiro, 1996).

Dentro desse contexto, o problema da resistência indígena ganha um certo


destaque. No entanto, à medida que os antropólogos e os historiadores vão
descobrindo e esmiuçando um elenco cada vez mais extenso de atos de protesto,
contestação, reivindicação e mesmo de rebelião, esse tema se apresenta como um
verdadeiro desafio, sobretudo porque esbarra numa série de noções problemáticas
que dificultam o dimensionamento dessa questão.

HISTORIADORES DOS ÍNDIOS


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Um primeiro conjunto de problemas ligados à história e à resistência dos índios


diz respeito à tarefa, própria dos historiadores, de identificar, documentar e
interpretar os eventos, processos e percepções que marcaram as experiências das
populações indígenas no passado. Tarefa nada fácil, diga-se de passagem,
tratando-se da história do Brasil. A documentação escrita e iconográfica, quando
comparada a outros países do continente americano, mostra-se pobre e cheia de
lacunas. Ainda assim, existe no país uma vastíssima quantidade de documentos
relevantes que, até o momento, aguardam, empoeirados, a atenção de algum
estudioso (Monteiro, 1994). Isso sem falar, é claro, dos enormes acervos, também
subaproveitados, em outros países.

Mas a descoberta de novos documentos ainda esbarra na resistência dos


historiadores à temática indígena. Para os índios, ditou o visconde de Porto
Seguro, autor de uma das mais importantes obras historiográficas no país, “não há
história, há apenas etnografia” (Varnhagen, 1980). Pouco mudou, com respeito a
essa questão, desde o tempo do visconde – que escreveu nos anos de 1850 – até os
dias de hoje. De fato, o interesse pela história dos índios se choca com posturas
historiográficas arraigadas desde longa data, que desqualificam os índios
enquanto atores históricos legítimos ou, quando muito, os deslocam para um
passado remoto. É sempre complicado para um professor de história explicar a
persistência de grupos indígenas no Brasil de hoje, quando a historiografia os
obliterou nos tempos coloniais: daí vem a ideia nociva e preconceituosa de que os
índios são hoje apenas os pobres remanescentes daqueles que tiveram um lugar,
embora incômodo, na história do país.

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Portanto, o maior desafio que o historiador dos índios enfrenta não é a simples
tarefa de preencher um vazio na historiografia mas, antes, a necessidade de
desconstruir as imagens e os pressupostos que se tornaram lugar-comum nas
representações do passado brasileiro. Há, desde longe, um binômio clássico que
opõe um tipo de índio resistente a um outro tipo de índio colaborador. Quando,
na primeira metade do século XVIII, Sebastião da Rocha Pitta escreveu em
sua História da América portuguesa que foi necessário ganhar a palmos aquilo que
havia sido doado em léguas, tamanha era a resistência dos índios bárbaros no
Nordeste, ele se reportava à imagem da muralha indígena, aquela massa informe
de selvagens que se opunham tenazmente a qualquer avanço da colonização
europeia (Pitta [1730], 1980). O lado inverso dessa imagem encontramos no
amável e hospitaleiro Tupi, que não apenas concedia mulheres aos colonizadores
para o crescimento populacional da América portuguesa, como também fornecia
um suporte militar para a destruição dos inimigos internos e externos dos
portugueses (ver, por exemplo, Caldeira, 1997). Radicalmente opostas e
complementares, essas imagens lembram a configuração paralela da história da
escravidão no país, oscilando entre Zumbi e Pai João, na provocativa abordagem
de Eduardo Silva (1989). Recentemente, uma historiadora do Amazonas parodiou
com bom humor essa construção, opondo Ajuricabas – referência ao líder dos
índios Manao que virou símbolo máximo da resistência regional no Amazonas – a
Canicurus, os execrados traidores e colaboradores dos colonizadores portugueses
no rio Negro (Sampaio, 1998).

Com certeza, a resistência muitas vezes é explicada como “reação” a forças


externas, cujo conteúdo programático é limitado pela rigidez das “estruturas”
nativas. A cultura indígena é a “rocha” – para usar a bela imagem introduzida pelo
historiador norte-americano Richard White, em seu livro The middle ground – que
é dilapidada e transfigurada pelo avanço do mar dos europeus, porém não
transformada em sua essência, que é dura, imóvel, resistente (White, 1991). Em
sua resistência a mudanças impostas por fatores externos, os atores nativos
tendem, nessa perspectiva, a manifestar um comportamento no mais das vezes
previsível, limitado que é pela visão de mundo paroquial e conservadora
frequentemente atribuída às sociedades tradicionais (Stern, 1987).

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Outro problema, de certo modo ligado à noção da rigidez estrutural, diz respeito


ao enfoque no sujeito coletivo como móvel da resistência. É a ideia de que os
índios – ou, genericamente, o índio – são naturalmente resistentes, não no sentido
biológico e epidemiológico, no qual são frágeis, mas no sentido da rebeldia e da
oposição obstinada. Essa perspectiva possui um elemento bastante nocivo na
medida em que esvazia qualquer discussão sobre a política de atores nativos, a
qual, como sabemos, nem sempre acontece no sentido da defesa dos interesses
coletivos “tradicionais”. O antropólogo William Fisher, por exemplo, ao estudar a
militância das lideranças kayapó-xikrin, coloca em causa o “ambientalismo” dessas
lideranças. Conclui que, muito embora “as relações sociais kayapó envolvam certas
relações com o meio ambiente”, o “ambientalismo” que vem orientando parte
significativa de sua militância política em anos recentes tem mais a ver com os
espaços de negociação e conflito proporcionados pela conjuntura política do que
com alguma defesa da natureza que fosse intrínseca à “cultura indígena” (Fisher,
1994, p. 229). Ou seja, frequentemente se atribui aos índios certos valores
supostamente intrínsecos que, na verdade, são apreendidos e instrumentalizados
pelas lideranças com a finalidade de abrir espaços de diálogo com interlocutores
externos.

Se é nesse espaço intermediário que se articula a “resistência” dos índios, um


outro problema que vem à baila reside na insistência em tratar as sociedades
indígenas como sempre exteriores e radicalmente opostas à sociedade colonial e,
posteriormente, nacional. Existe uma certa singularidade nas representações que
predominam no Brasil para definir a indianidade; aliás, não apenas nas
representações, como também na própria legislação, chegando a seu ponto
culminante – ou talvez o seu ponto mais baixo – na elaboração do Estatuto do
Índio, de 1973. De todo modo, pode-se sublinhar um certo modelo de contato que
tem criado imagens problemáticas que oscilam do mais puro índio isolado ao mais
descaracterizado índio assimilado. Também de forma atípica no quadro mais geral
das Américas, há um distanciamento apressado entre o mestiço e suas origens
indígenas. Essa singularidade certamente tem suas raízes nos projetos coloniais
dos séculos XVII e XVIII, porém também tem muito a ver com a construção de uma
história nacional depois da Independência, na qual a mestiçagem sempre ocupou
um lugar de destaque.

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Essa perspectiva tem duas grandes desvantagens. Por um lado, tende a reafirmar
que a resistência só é possível na medida em que a sociedade mantenha uma certa
integridade em oposição a um outro bloco monolítico, que é a sociedade do
colonizador. Por outro, contribui para a invisibilidade de largos setores da
população colonial, que, embora de origem indígena, não correspondem aos
critérios de indianidade convencionalmente aceitos. Na Amazônia, por exemplo,
as tropas de resgate e outras expedições de apresamento e de descimento que
constantemente penetraram os rios e igarapés ao longo dos séculos XVII e XVIII
tiveram um impacto enorme sobre a configuração dos povos amazônicos,
provocando inclusive um fenômeno muito pouco estudado, que é da etnogênese
(Schwartz, 1996). De fato, um dos maiores problemas da história dos índios é a
perspectiva que pressupõe um caminho de via única para as populações que
sofreram as consequências do contato: a história deste ou daquele povo, em
termos tanto demográficos como culturais, se resume à crônica de sua extinção,
quando, na verdade, a construção ou recriação das identidades nativas e da
solidariedade social muitas vezes se dá precisamente em função das mudanças
provocadas pelo contato (ver, a respeito, Sider, 1994).

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Para se repensar a resistência dos índios, faz-se necessária uma reinterpretação


abrangente dos processos históricos que envolviam essas populações. Mais do que
isso, é preciso também reavaliar como os diferentes atores nativos criaram e
construíram um espaço político pautado na rearticulação de identidades,
contemplando evidentemente não apenas as formas pré-coloniais de viver e de
proceder, como também e especialmente a sua inserção – ou não – nas estruturas
envolventes que passaram a cercear cada vez mais as suas margens de manobra.
Assim, tanto as sociedades que se mantinham avessas ao contato, por assim dizer,
como as que foram mais intensamente envolvidas nos esquemas coloniais tiveram
que adotar novas formas de resistência, muitas vezes lançando mão de estratégias,
retóricas e materiais buscados entre os europeus. Por exemplo, não é por acaso
que os Guaikuru e os Payaguá se apresentavam como os mais formidáveis
adversários da expansão portuguesa nos séculos XVII e XVIII; tanto uma como
outra sociedade desenvolveram a sua resistência a partir de adaptações e
inovações tiradas dos brancos: cavalos, no caso dos Guaikuru, ferro, no caso dos
Payaguá. Tanto um grupo como outro também construíram a sua identidade pós-
contato a partir das relações com os europeus, não só manipulando imagens de
bravura e ferocidade, como também explorando para sua vantagem as relações
ambíguas que existiram na área de fronteira entre a América portuguesa e a
espanhola (Vangelista, 1991). Outro exemplo interessante dessas relações de
integração e recusa é o dos Mura, que, segundo o jesuíta João Daniel, tinham
aceito o aldeamento por parte dos jesuítas mas, quando descobriram que isso
apenas os deixava expostos à escravização, fugiram e recusaram novos contatos,
desenvolvendo um ódio visceral contra os brancos (Sweet, 1992). São abundantes
os exemplos desse tipo de mito de envolvimento prévio com os brancos, que serve
para explicar a opção da oposição, inclusive militar.

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De fato, desde os primeiros encontros, no século XVI, o processo de envolvimento


com a sociedade colonial ou nacional sempre recolocou, para as sociedades
indígenas, a questão de sua organização política. A emergência de novas
lideranças apresentou novos desafios, à medida que se tornava cada vez mais
difícil dissociar os processos decisórios internos das articulações externas. A
bibliografia histórica e etno-histórica apresenta inúmeros exemplos das tensões,
estratégias e soluções decorrentes das disputas entre formas de autoridade. A
nomeação de capitães índios, por exemplo, remonta ao primeiro século da
colonização, estabelecendo uma categoria que se revestia de poder sem
precedentes pré-coloniais. No Nordeste, os capitães-mores dos aldeamentos, desde
o período colonial, eram, em geral, índios “tendo sob suas ordens um efetivo de
homens armados – que em muitos casos se elevava a mais de uma centena de
índios que, além de arcos e flechas, dispunham de armas de fogo […]” (Dantas et
alii, 1992, p. 449). Mesmo no século XIX, companhias militares integradas e
muitas vezes chefiadas por índios lutaram ao lado de facções políticas regionais
nas repetidas revoltas que marcaram a primeira metade do século. É interessante
observar que o engajamento de participantes indígenas nessas “brigas de brancos”,
na frase do historiador pernambucano Marcus Carvalho, não apenas servia os
interesses dos aliados brancos como também podia fornecer uma base para a
negociação de interesses propriamente indígenas, inclusive direitos territoriais
(Carvalho, 1997; Dantas et alii, 1992, pp. 449-50).

Estratégias semelhantes, tanto no passado remoto como na atualidade imediata,


mostram como os recursos de reivindicação, protesto e revolta – categorias
geralmente enfeixadas sob a rubrica da “resistência” – alternam com outras opções
políticas, frequentemente denominadas “colaboração” ou “acomodação”. Cabe aos
estudiosos da história dos índios romper com as abordagens que enxergam na
resistência apenas a reação anônima, coletiva e estruturalmente limitada. Novas
leituras do espaço intermediário poderão revelar os sinuosos caminhos por onde
passou – e passa – a resistência.

ÍNDIOS HISTORIADORES

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Um segundo conjunto de problemas surge a partir da apropriação da história


como elemento estruturador de um discurso propriamente indígena, em que a
questão da resistência é nodal. De fato, um dos aspectos mais importantes e
problemáticos do recente processo de “revitalização” étnica reside na
reapropriação, pelas lideranças do movimento, de uma cultura e uma história
“autênticas”. Em seu interessante estudo sobre a etnopolítica na Amazônia
colombiana, Jean Jackson demonstra que a afirmação de uma “cultura tradicional”
constitui um passo necessário para que os índios possam se posicionar no campo
da política interétnica. A reapropriação dessa cultura tradicional, no entanto,
muitas vezes tem como ponto de partida justamente a noção de indianidade
produzida pela própria situação interétnica e pela história do contato (Jackson,
1995). No Brasil, o estigma da aculturação, fruto de longa data do viés
assimilacionista da política indigenista e do indigenismo brasileiro, apresenta um
desafio especial para as lideranças e organizações. Assim, adereços ornamentais e
práticas rituais, há muito abandonados por índios “caboclos” ou “camponeses”,
passaram a reintegrar o repertório cultural dessas sociedades, muitas vezes para
fundamentar estratégias de ação, em situações de confronto ou de reivindicação.

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Para as lideranças e os professores indígenas, a história também se localiza


prioritariamente nesse espaço interétnico. Isso porque a história proporciona uma
fonte de informações sobre o processo de subordinação e sobre os direitos legais,
capazes de sustentar reivindicações concretas no presente e estratégias políticas
para o futuro, proporcionando, assim, uma nova arma na articulação de uma nova
espécie de resistência. Mas essa concepção de história é bastante problemática. Se,
como não podia deixar de ser, ela é etnocêntrica, pois focaliza o passado através
da experiência do grupo e de sua luta para se manter coeso como povo, a história
indígena dos índios tem que lançar mão de categorias analíticas e de imagens e
representações que são produtos do mundo dos brancos. Nesse sentido, o uso da
história está imbricado num discurso que é voltado para fora, porém com
implicações importantes como meio de reforçar a identidade interna. Para um dos
editores do jornal indígena Waguri (boletim informativo da Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN), em artigo não assinado sobre “O
caminho das organizações indígenas”, é fundamental o novo papel da história: “[O
movimento indígena] é, sem dúvida, um processo em curso, marcado pela
diversidade [de] conceitos, valores e estratégias. Mas também de esperança e
otimismo, na medida em que lideranças e organizações indígenas cada vez estão
passando de co-autores para autores da política indígena, construindo uma nova
história nos moldes dos princípios das realidades indígenas e derrubando
conceitos ultrapassados de apoio, assessoria e tutela” (Wayuri, nº 20, 1993).

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Nessa e em outras publicações das organizações, as incursões pela história


indígena demonstram a adoção daquilo que Dominique Gallois identificou, entre
os Waiãpi, como “fala para os brancos” (Gallois, 1993). O líder Braz França, um
dos editores do Wayuri, publicou um interessante artigo sobre “O índio e a
civilização do rio Negro”, que, em poucas linhas, transforma o “índio ecológico” do
período pré-contato na inocente vítima dos brancos. “Até os anos 1700 no rio
Negro, desde Manaus até o rio Cassiquiare na Venezuela, o grupo baré
predominava vivendo uma vida feliz, em plena harmonia com a natureza. O seu
universo era um paraíso com muita fartura de peixe, caça e frutas em geral. O
povo fazia grandes festas, o grupo crescia e era muito respeitado pelos outros
grupos e abençoado por ‘Purnaminary’ .” A partir do contato, o que se registra na
memória dos índios são dois personagens: o comerciante “Papo Amarelo” com seu
calibre 44 e o missionário. No entanto, é a resistência dos índios que ganha
destaque, apesar da dominação exercida por esses agentes externos, pois o
comerciante “não conseguiu escravizar os índios conforme suas intenções” e o
máximo que o missionário “conseguiu foi transformar os índios em eternos
pecadores”. A conclusão do artigo reveste-se de um discurso profético-cristão, com
a promessa do deus criador Tupana de que “cada um seguirá para um local onde
ninguém terá fome, não terá

noite nem dia e tão pouco relógio para marcar o tempo” (Wayuri, nº 26, 1994).

O quinto centenário da viagem de Colombo, em 1992, apresentou uma


oportunidade para a articulação, ainda que confusa e pouco elaborada, de uma
reflexão das lideranças e dos professores indígenas sobre os usos da história
(Grupioni, 1994). Através do Wayuri, os dirigentes da FOIRN aproveitaram o
momento para chamar atenção para a importância da história: “A sociedade
branca está se preparando para festejar em 1992 a ‘Descoberta’ da América e sua
‘catequização-civilização’. Mas, para nós, índios, aquela data foi o começo da
invasão, da destruição, da resistência. Tudo isso já durou quinhentos e ainda
continua”. Qualquer semelhança entre essa assertiva e a historiografia missionária
que circulava desde o final dos anos 70 não é mera coincidência, diga-se de
passagem. Mas o texto vai além da linha oficial do crMr, apropriando para si o
papel de participante em vez do de vítima:

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A Wayuri tem o objetivo de sensibilizar e conscientizar todos nós, índios, sobre a


importância e o valor que têm a nossa história, nossa cultura, nossa resistência e
nossa organização e apresentar alternativas para a nossa problemática atual […] É
para você, irmão índio, ter um conhecimento cada vez mais profundo e descobrir
aos poucos a verdadeira história do Brasil e a nossa situação, hoje. É para você
não se sentir sozinho, fraco, pessimista, é para você saber que não está no final de
uma história, mas bem no meio dela, e ter confiança no futuro de seu povo, lutar
por isso. [Wayuri, nº 5, 1990]

É interessante observar que, nesse discurso, há uma preocupação explícita em


desconstruir os elementos constitutivos da visão pessimista que marcou o
indigenismo branco – oficial e civil – desde o século XIX: a fragmentação do
sujeito, a fraqueza da vítima, a falta de perspectivas para o futuro. No quadro
atual do movimento indígena no Brasil, a elaboração – ou reelaboração – da
história por parte das lideranças e dos professores mostra-se um recurso
potencialmente poderoso nas lutas pela afirmação de uma identidade política e
pela posse da terra. Trata-se da apreensão, por parte das lideranças nativas, da
inovação conceitual apresentada pela Constituição de 1988, ou seja, o abandono
de uma perspectiva assimilacionista e sua substituição pelo princípio do direito à
diferença.

Na apresentação do Wayuri, no início do ano do Quinto Centenário colombiano,


os líderes da federação apelam novamente para a história que lhes foi roubada: “a
FOIRN caminha para o seu quinto ano de luta e pouco a pouco vai se
consolidando e buscando alternativas de vida capazes de recuperar o sentido de
vida para os povos indígenas desta região que durante mais de cem anos foram
obrigados a esquecer a sua história e entregar nas mãos de estranhos o seu
destino” (Wayuri, nº 12, 1992).

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Agentes de seu próprio destino, faltava-lhes ainda uma agenda política


consensual. Gersem Baniwa, um dos principais articuladores da FOIRN e redator
do boletim da federação nesse período, procurava, em seus editoriais, apresentar a
discussão do movimento indígena numa perspectiva crítica: “A questão que se
coloca é se as organizações e os próprios índios que as fazem querem apenas agir
no sentido simples de resistência diante da sociedade etnocêntrica e
discriminatória ou têm para si um horizonte próprio a ser construído […] O
movimento indígena precisa urgentemente rever seus princípios, seus objetivos, e
procurar enxergar com nitidez suas perspectivas. De outra forma não será possível
pensar em nenhum projeto futuro para os povos indígenas, que não seja sua
própria integração e extinção” (Wayuri, nº 26, 1994).

O boletim da FOIRN também abriu espaço para outras manifestações das culturas
rio-negrinas, publicando mitos, lendas e mesmo piadas – a maioria de conteúdo
étnico – para a diversão de seus leitores. Essas matérias também possuíam uma
motivação didática, sempre buscando articular a problemática histórico-cultural à
questão política, na qual elementos míticos ou fictícios servem como metáforas
para o movimento indígena. Num dos boletins, o líder Maximiliano Menezes
contou uma fábula tukano, em que seis marianitos se juntam para derrotar um
gavião real. “Diante desta fábula”, concluiu Maximiliano, “podemos analisar que o
povo indígena e suas organizações só alcançarão seu objetivo principal, que é a
demarcação de terras, das áreas que lhe pertencem, quando estivermos lutando
juntos com todas as organizações indígenas contra os políticos governamentais
que não aceitam e desrespeitam o artigo 231 da Constituição brasileira. Mas se o
povo indígena e suas organizações começarem a se dividir ou desistir da luta, o
fracasso vai vir e os poderosos irão conquistar as nossas terras e de tudo que nela
existe, como já vêm fazendo há quinhentos anos, invadindo, violentando,
dominando e exterminando os nativos deste continente americano.” [Wayuri, nº
10, 1991]

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29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento

Ainda é bastante incipiente qualquer discussão sobre a história dos índios,


geralmente apresentada de forma bastante polêmica nesse contexto. Num artigo
veiculado no Boletim da COIAB, da Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira, o autor anônimo buscou mostrar o laço entre o passado e o
futuro, assim afirmando o sentido político de uma história cuja lógica e estratégia
discursiva vêm essencialmente de um espaço interétnico: “O objetivo dos povos
indígenas é claro, no sentido de unificar e intensificar cada vez mais as suas
organizações para alcançar uma verdadeira autonomia. Para tal, os povos
indígenas devem enfrentar a difícil realidade para um dia poder- escrever a sua
própria história preservando a sua cultura e contribuindo com os seus
conhecimentos e saber tradicional para a construção de uma sociedade mais justa
e igualitária” (Boletim da COIAB, nº 12, 1992).

Essa tarefa, de um dia “escrever a própria história”, também foi explicitada por
Gersem Baniwa, num relato que descrevia uma viagem, algo paradoxal, a
Portugal, onde foram expostas ricas peças da cultura material rio-negrina, que
tinham sido extraídas da Amazônia havia mais de duzentos anos, na “viagem
filosófica” de Alexandre Rodrigues Ferreira. Para essa liderança indígena, o
passado guardava lições para o futuro do movimento: “Essa realidade precisa ser
levada como ponto de reflexão em nossa prática de luta e trabalho que pode nos
ajudar a reerguer nossos olhos, nossos corações e com união e solidariedade
reconstruir nossa história e nosso futuro e, embora visivelmente fracassados,
estamos vivos e conscientes de que lutaremos para viver ao longo dos tempos
assim como a natureza viverá conosco” (Wayuri, nº 27, 1994).

Reconstruir a história para construir o futuro é algo que está, sem dúvida, na
agenda de uma parte expressiva do movimento indígena atual; porém, é uma
tarefa que exige uma reconfiguração radical das noções ainda prevalecentes na
história que se ensina hoje. Assim, o caminho pela frente ainda é longo, até
porque, voltando para a citação no início deste texto, o caminho para o passado
também está cheio de obstáculos.

COMENTÁRIO FINAL

Antropologia Comportamento Costumes Crise História Política Razão Tempo

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