Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1999
ARMAS E ARMADILHAS
por John Manuel Monteiro
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 1/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
Resumo
Felizmente, a história desses povos vem sendo recuperada e repensada por um movimento
indígena emergente, através de pesquisas e debates acadêmicos. Lideranças políticas e
professores indígenas colocam em sua agenda a tarefa de apropriar-se do seu passado
como parte indispensável do processo de revitalização étnica, na defesa dos direitos
territoriais e, sobretudo, na reivindicação do direito de ser diferente.
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 2/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
Com certeza, a crescente visibilidade dos índios nos últimos anos tem deixado a
sociedade brasileira um tanto perplexa. Aprende-se, desde pequeno, que os índios
são coisa do passado, não propriamente da história, mas antes de uma distante e
nebulosa pré-história. Os manuais escolares e mesmo a historiografia profissional
tendem a liquidar rapidamente com as populações indígenas, dando-lhes um certo
destaque — como não podia deixar de dar — apenas nos anos iniciais da
colonização. Apesar de reaparecerem pontualmente em alguns episódios, por
exemplo, como valentes auxiliares dos luso-brasileiros na guerra contra os
holandeses, ou como vítimas dos excessos dos bandeirantes, ou, ainda, como os
protegidos do magnânimo Rondon no início deste século, as populações indígenas
de fato – contrapostas ao índio imaginado – são povos invisíveis em grande parte
da história que se ensina convencionalmente. De modo geral, para dar conta da
situação atual, fala-se dos índios de hoje como meros remanescentes,
sobreviventes, resquícios que continuam agarrados ao pouco que lhes resta após
cinco séculos de depredação e espoliação.
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 3/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 5/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
Portanto, o maior desafio que o historiador dos índios enfrenta não é a simples
tarefa de preencher um vazio na historiografia mas, antes, a necessidade de
desconstruir as imagens e os pressupostos que se tornaram lugar-comum nas
representações do passado brasileiro. Há, desde longe, um binômio clássico que
opõe um tipo de índio resistente a um outro tipo de índio colaborador. Quando,
na primeira metade do século XVIII, Sebastião da Rocha Pitta escreveu em
sua História da América portuguesa que foi necessário ganhar a palmos aquilo que
havia sido doado em léguas, tamanha era a resistência dos índios bárbaros no
Nordeste, ele se reportava à imagem da muralha indígena, aquela massa informe
de selvagens que se opunham tenazmente a qualquer avanço da colonização
europeia (Pitta [1730], 1980). O lado inverso dessa imagem encontramos no
amável e hospitaleiro Tupi, que não apenas concedia mulheres aos colonizadores
para o crescimento populacional da América portuguesa, como também fornecia
um suporte militar para a destruição dos inimigos internos e externos dos
portugueses (ver, por exemplo, Caldeira, 1997). Radicalmente opostas e
complementares, essas imagens lembram a configuração paralela da história da
escravidão no país, oscilando entre Zumbi e Pai João, na provocativa abordagem
de Eduardo Silva (1989). Recentemente, uma historiadora do Amazonas parodiou
com bom humor essa construção, opondo Ajuricabas – referência ao líder dos
índios Manao que virou símbolo máximo da resistência regional no Amazonas – a
Canicurus, os execrados traidores e colaboradores dos colonizadores portugueses
no rio Negro (Sampaio, 1998).
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 6/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 7/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
Essa perspectiva tem duas grandes desvantagens. Por um lado, tende a reafirmar
que a resistência só é possível na medida em que a sociedade mantenha uma certa
integridade em oposição a um outro bloco monolítico, que é a sociedade do
colonizador. Por outro, contribui para a invisibilidade de largos setores da
população colonial, que, embora de origem indígena, não correspondem aos
critérios de indianidade convencionalmente aceitos. Na Amazônia, por exemplo,
as tropas de resgate e outras expedições de apresamento e de descimento que
constantemente penetraram os rios e igarapés ao longo dos séculos XVII e XVIII
tiveram um impacto enorme sobre a configuração dos povos amazônicos,
provocando inclusive um fenômeno muito pouco estudado, que é da etnogênese
(Schwartz, 1996). De fato, um dos maiores problemas da história dos índios é a
perspectiva que pressupõe um caminho de via única para as populações que
sofreram as consequências do contato: a história deste ou daquele povo, em
termos tanto demográficos como culturais, se resume à crônica de sua extinção,
quando, na verdade, a construção ou recriação das identidades nativas e da
solidariedade social muitas vezes se dá precisamente em função das mudanças
provocadas pelo contato (ver, a respeito, Sider, 1994).
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 8/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 9/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
ÍNDIOS HISTORIADORES
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 10/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 11/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 12/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
noite nem dia e tão pouco relógio para marcar o tempo” (Wayuri, nº 26, 1994).
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 13/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 14/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
O boletim da FOIRN também abriu espaço para outras manifestações das culturas
rio-negrinas, publicando mitos, lendas e mesmo piadas – a maioria de conteúdo
étnico – para a diversão de seus leitores. Essas matérias também possuíam uma
motivação didática, sempre buscando articular a problemática histórico-cultural à
questão política, na qual elementos míticos ou fictícios servem como metáforas
para o movimento indígena. Num dos boletins, o líder Maximiliano Menezes
contou uma fábula tukano, em que seis marianitos se juntam para derrotar um
gavião real. “Diante desta fábula”, concluiu Maximiliano, “podemos analisar que o
povo indígena e suas organizações só alcançarão seu objetivo principal, que é a
demarcação de terras, das áreas que lhe pertencem, quando estivermos lutando
juntos com todas as organizações indígenas contra os políticos governamentais
que não aceitam e desrespeitam o artigo 231 da Constituição brasileira. Mas se o
povo indígena e suas organizações começarem a se dividir ou desistir da luta, o
fracasso vai vir e os poderosos irão conquistar as nossas terras e de tudo que nela
existe, como já vêm fazendo há quinhentos anos, invadindo, violentando,
dominando e exterminando os nativos deste continente americano.” [Wayuri, nº
10, 1991]
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 15/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
Essa tarefa, de um dia “escrever a própria história”, também foi explicitada por
Gersem Baniwa, num relato que descrevia uma viagem, algo paradoxal, a
Portugal, onde foram expostas ricas peças da cultura material rio-negrina, que
tinham sido extraídas da Amazônia havia mais de duzentos anos, na “viagem
filosófica” de Alexandre Rodrigues Ferreira. Para essa liderança indígena, o
passado guardava lições para o futuro do movimento: “Essa realidade precisa ser
levada como ponto de reflexão em nossa prática de luta e trabalho que pode nos
ajudar a reerguer nossos olhos, nossos corações e com união e solidariedade
reconstruir nossa história e nosso futuro e, embora visivelmente fracassados,
estamos vivos e conscientes de que lutaremos para viver ao longo dos tempos
assim como a natureza viverá conosco” (Wayuri, nº 27, 1994).
Reconstruir a história para construir o futuro é algo que está, sem dúvida, na
agenda de uma parte expressiva do movimento indígena atual; porém, é uma
tarefa que exige uma reconfiguração radical das noções ainda prevalecentes na
história que se ensina hoje. Assim, o caminho pela frente ainda é longo, até
porque, voltando para a citação no início deste texto, o caminho para o passado
também está cheio de obstáculos.
COMENTÁRIO FINAL
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 16/17
29/03/2023, 16:14 Armas e armadilhas - Artepensamento
À ESPERA DO OUTRO
por Frank Lestringant
Analisando, em “Histoire de lynx”, uma família de mitos relacionados ao tema gemelar, Claude Lévi-Strauss observa...
O PRINCÍPIO DA TIRANIA
por Jean-Michel Rey
O “Discurso da servidão voluntária” é um texto conciso, condensado, difícil de entender, pois propõe de maneira...
A SELVAGERIA CULTA
por Philippe Descola
Quando descobrem os ameríndios das terras baixas da América do Sul, os europeus ficam mais espantados com a selvageria...
https://artepensamento.ims.com.br/item/armas-e-armadilhas/ 17/17