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A PROPÓSITO DE UM ESTATUTO PARA A HISTÓRIA

LOCAL E REGIONAL: ALGUMAS REFLEXÕES *

A g n a l d o d e S o u s a B a r b o s a **

RESUMO: O presente artigo tem a intenção de refletir sobre os temas da temporalidade e da


espacialidade no trabalho com a História Local e Regional, bem como discutir o sentido e a
importância dessa modalidade de escrita da história no âmbito da historiografia. Propõe a definição
de um estatuto para a História Local e Regional embasado em categorias do conhecimento
histórico, como as noções de “tempo dos lugares” e “historicidade dos espaços”, em contraposição
às formulações correntes que buscam tal definição na Geografia.

Em todos os lugares, combina-se o moderno material com o autoritário do mando e desmando.


Como na Madeira-Mamoré, em Canudos, Contestado, Revolta da Vacina, ocupações de terras,
greves operárias, protestos contra desmandos. Uma história na qual a modernidade está mesclada
no caleidoscópio dos pretéritos, dos “ciclos” desencontrados de tempos e lugares, como se o
presente fosse um depósito arqueológico de épocas e regiões.

Octávio Ianni

O primeiro desafio a ser superado no trabalho com História Local é, infelizmente,


vencer preconceitos. Ainda que, nos anos 80, o surgimento e posterior consolidação por todo o
país de cursos de pós-graduação em História tenha contribuído enormemente para o
desenvolvimento de um conhecimento histórico que vislumbrasse as vivências das mais diversas
localidades brasileiras, abrindo espaço na academia para a emergência de uma
modalidade de história escrita a partir de realidades particulares, esse tipo de história é ainda
encarado com um certo mal-estar na Universidade, sob a mira de olhares arrevesados e, por
vezes, desconfiados.

A História Local e Regional, embora incorporada ao mitificado universo acadêmico


e, por conseguinte, concebida como modalidade aceitável do ofício de historiador, continua sendo
vista como uma história “menor”, de status inferior, que carece de legitimidade diante das “grandes
questões” que permeiam as preocupações do ambiente intelectual. Desse modo, é vista como de
interesse limitado e circunscrito às expectativas das comunidades que analisa recuperando atores
e fatos que haviam se perdido no tempo e na memória. Essa situação acaba gerando
posicionamentos tais que professores e estudantes empenhados no estudo do local e/ou do
regional passam a ser julgados como pesquisadores de segunda categoria, como se o simples
fato de um historiador se ocupar de um estudo da “macro-história”, da história “generalizante”,
bastasse para lhe garantir o título de bom profissional, lhe outorgando também reconhecimento
intelectual.

É importante ressaltar, por outro lado, que de maneira alguma tencionamos, com a
argumentação a ser desenvolvida neste artigo, desmerecer as formas de reflexão sobre a História
por meio de estudos que formulam explicações de grande amplitude, imbuídas do intuito de
entender as macro-estruturas de funcionamento das sociedades. Nossa intenção é demonstrar
que, assim como a história que pensa a dimensão mais visível da realidade – com base na qual
generalizamos a discussão de um tema –, a História Local e Regional apresenta inúmeras
possibilidades de descrição, de análise, de crítica, de interpretação e, ademais, de revisão
historiográfica.

Muito da atitude de soberba do mundo acadêmico frente à História Local e


Regional vem do desconhecimento que boa parte dos alunos e professores dos cursos de História
– e também das Ciências Sociais – tem em relação a essa modalidade de análise do processo
histórico. Poucos cursos se preocuparam em inserir esse tipo de reflexão histórica em sua grade
curricular1[1]. Mesmo entre aqueles que desenvolvem estudos de História Local e Regional há
muitas dúvidas e incompreensões sobre o seu sentido, sobre o seu significado no contexto
historiográfico e, o que é mais grave, sobre a metodologia aplicada a esse tipo de análise histórica.
Assim, uma série de problemas turvam a emergência de uma História Local e Regional que tenha
um estatuto próprio e claramente definido perante o conhecimento histórico como um todo. De um
lado, a crítica baseada no desconhecimento, fruto do preconceito que tende a depreciá-la como
uma história de preocupações menores, virtualmente debilitada por sua íntima relação com
“superficialidades” localistas e regionalistas; de outro, a insuficiência das definições e explicações
levadas a cabo por parte considerável dos historiadores do local e do regional.
É acerca de alguns desses problemas, que acabam por criar dificuldades à
afirmação da História Local como modalidade consolidada e séria do conhecimento histórico, que
pretendemos discutir neste artigo. A tarefa de redescobrir o Brasil a partir da apreensão das
diferentes realidades que compõem a sua dinâmica histórica passa, acreditamos, pela
demonstração das imensas possibilidades inerentes à História Local e Regional. Mas, para tanto, é
necessário que definamos o que ela realmente vem a ser.

Iniciamos discutindo uma questão que é bastante cara a nós historiadores e que
constitui um dos primeiros passos – talvez até o mais importante – para a definição de um estatuto
para a História Local: a problematização da relação tempo-história. Aproveitamos o ensejo para
desfazer um equívoco que começou a ganhar forma há algum tempo e que se pauta pelo
argumento de que toda história é, em última análise, uma História Local ou Regional, haja vista o
fato de que as análises generalizantes tomam por base a dinâmica histórica de uma localidade
política, econômica ou culturalmente hegemônica em determinado momento histórico 2[2]. É uma
atitude complacente por parte do ambiente acadêmico, mas nada edificante no sentido de dar um
status próprio à História Local e Regional. Inadvertidamente, essa interpretação esvazia a História
Local e retira dessa modalidade de escrita histórica o seu principal mérito, que é a busca das
singularidades, da diversidade na história.

Ora, o erro está, e é justamente esta a principal questão da relação tempo-história,


no fato de como os historiadores que empreendem “generalizações” e dos que se debruçam sobre
estudos acerca do local – ou do regional – trabalham a noção de tempo. A história “generalizante”
trabalha com a noção de um tempo uniforme, comum a todos os espaços, o chamado “tempo do
mundo” na definição de Fernand Braudel; uma espécie de “superestrutura da história global”, que
o grande mestre francês apressou-se em dizer que “não é, não deve ser, a totalidade da história
dos homens” 3[3]. À História Local e Regional importa a apreensão do “tempo dos lugares”, o
tempo realmente vivido por cada localidade, composto por um amálgama de experiências distintas
dos pólos hegemônicos num mesmo momento histórico.

É fundamental ao historiador que queira investigar o local e o regional que ele


tenha em mente essa distinção de tempos históricos, sob pena de tentar buscar no território
particular que analisa explicações para determinados processos históricos que não lhe disseram
respeito ou, de igual forma equivocado, pelo menos não no momento histórico buscado. Como
exemplo dessa postura, é impraticável buscar na história da classe operária de Franca, cidade
industrial paulista4[4], ou de muitas outras localidades do interior brasileiro, as influências do
anarquismo, elemento político-social importante na constituição do movimento operário em São
Paulo 5[5], centro irradiador da dinâmica histórica brasileira neste século. Da mesma maneira, a
influência comunista, reconhecida como intensa no movimento sindical a partir de 1922 até a
instalação do Estado Novo, e depois de 1945 a 1964 6[6], pouco incidiu sobre o operariado
francano.

A classe operária de Franca não passou pelo mesmo tipo de experiência que a
historiografia apresenta como válida para o operariado brasileiro como um todo – que reflete,
sobretudo, a experiência da classe em São Paulo, pólo dinâmico da economia brasileira e principal
centro industrial e comercial. Seu tempo histórico é outro e se expressa no menor nível de
organização e na insignificante adesão às chamadas vanguardas políticas da classe 7[7]. Tentar
inserir o operariado francano, recém-constituído e formado em grande parte por massas recém-
chegadas do campo, na mesma tradição histórica do operariado de São Paulo, é forçar uma
situação histórica que não existiu. De igual modo, e de forma mais extrema, os problemas do
operário das carvoarias do Centro-Oeste podem ser analisados pelo mesmo prisma temporal
daqueles dos operariado paulista, que vive agora as vicissitudes geradas pela implosão da
legislação trabalhista? No caso dos primeiros, a sua inclusão no mundo dos direitos da Era Vargas,
cujo fim foi anunciado na posse do presidente Fernando Henrique Cardoso em janeiro de 1995,
nem chegou a ser vivenciada. Alcançar o estágio histórico da Era Vargas estaria ainda na
perspectiva desses homens e mulheres que trabalham mais de 14 horas por dia, sem direito a
férias, descanso semanal remunerado e décimo terceiro salário.
Diante do exposto acima, cremos ser decisiva a necessidade de se trabalhar
com o “tempo dos lugares”, esse tempo que é próprio de cada espacialidade e por isso diferente
da noção utilizada pela história que trabalha com explicações sob parâmetros macro-analíticos.
Procurando delinear “as bases para preparar uma adequada história local”, o historiador catalão
Antoni Gavaldà i Torrentes confirma esse nosso raciocínio: “a nova história local deve procurar o
re-tratamento da noção de tempo. Descartar a idéia de um tempo único, homogêneo e linear. Na
história sempre há muitos tempos sociais” 8[8]. Pensando o significado do local no campo da
investigação histórica, o sociólogo basco Jesus Arpal mostra compartilhar da mesma idéia ao
interpretá-lo “como o nível de construção/investigação da realidade em que as coisas adquirem
uma dimensão distinta, um ‘tempo’ específico” 9[9].
Não pretendo, com isso, fazer a defesa de uma História Local e Regional por assim
dizer “ensimesmada”, ou seja, que se explica por si mesma com sua própria noção de tempo.
Absolutamente, o que a História Local e Regional deve enfatizar é a existência de uma
multiplicidade de tempos históricos convivendo simultaneamente na realidade de um mesmo país –
ou de uma região –, que se interpenetram em virtude das próprias relações orgânicas entre os
espaços inerentes à constituição de um Estado nacional ou, em um sentido mais amplo, de um
mercado internacional, atendendo à exigência marxista de se pensar o local e o regional como
espaço de dinamização de um determinado modo de produção. O peso do “tempo do mundo” faz-
se repercutir nos espaços “à margem da história triunfante” – para usar uma outra expressão de
Braudel –, porém, esse tempo não se realiza em toda a sua potencialidade, seja em conseqüência
de especificidades políticas, econômicas, sociais ou culturais desse espaço que entravam esse
processo, seja, como é mais freqüente, em decorrência de uma força superior atribuída ao
capitalismo que define as áreas privilegiadas a estarem em sincronia com o “tempo do mundo”.
A descrição da cena de uma carroça presa aos trilhos do bonde que leva
advogados para escritórios no centro da cidade na São Paulo dos primeiros anos do século, feita
por Oswald de Andrade no poema “Pobre Alimária”, é bastante significativa dessa conjunção de
tempos históricos de que estamos falando. As palavras do ensaísta Roberto Schwarz, que
comenta o texto, dão a exata dimensão disso: “de um lado, o bonde, os advogados, o motorneiro e
os trilhos; do outro, o cavalo, a carroça e o carroceiro: são mundos, tempos e classes sociais
contrastantes, postos em oposição” 10[10]. Em última análise, tal situação ilustra os
constrangimentos e contradições resultantes da justaposição do atraso e do moderno – em outras
palavras, de dois tempos – no cotidiano de uma metrópole em formação ao sul dos
trópicos, ou seja, na periferia do capitalismo triunfante.
Também é certo, precisamos ressaltar, que muitas vezes o que ocorre não é uma
interpenetração de tempos – atraso/moderno, novo/antigo –, mas a sobreposição de um sobre o
outro. Quem quer que assista às seqüências do filme Central do Brasil (Walter Salles Jr.,
1998)11[11], passadas em Bom Jesus do Norte, no nordeste do país, percebe que naquele espaço
a predominância é de um tempo longínquo no passado, totalmente alheio à contemporaneidade da
dimensão material e dos valores da modernidade capitalista. Na distante e árida cidade persistem
ainda ritos e formas de sociabilidade pertencentes a um mundo pretérito, que subjuga
inapelavelmente o tempo da nossa modernidade, o “tempo do mundo”.

Ainda prosseguindo nesse primeiro raciocínio de busca de um estatuto para a


História Local e Regional, queremos enfatizar novamente o que entendemos ser a diferença
primeira no trabalho do historiador que empreende um estudo sobre o local e o historiador que
procura generalizar a análise de um tema. Enquanto esse último trabalha com a noção de um
tempo único, uniforme, o historiador que se lança na pesquisa sobre o local procura captar na
dinâmica histórica tida como geral, no “tempo do mundo”, a temporalidade específica do espaço
que estuda. Se assim não o fizer corre o risco de pensar o espaço que investiga descolado de sua
concretude, de sua vivência histórica real, criando, desse modo, um artificialismo histórico.

Num outro cenário, mas bem próximo do tipo de preocupação que aqui nos
interessa, Roberto Schwarz, referindo-se à escrita da obra literária, constrói, em texto que se
tornou clássico, pensamento semelhante ao que acabamos de desenvolver. Chamando a atenção
para a importância da apreensão da peculiaridade do processo histórico de diferentes espaços –
Brasil e Europa – em uma mesma época, Schwarz assinala que enquanto o velho mundo vivia, no
século XIX, a civilização da ciência, das Luzes, do Progresso, do Liberalismo, da Humanidade, “no
Brasil domina o fato ‘impolítico e abominável’ da escravidão”; estávamos fora do sistema da
ciência, “estávamos aquém da realidade a que esta se refere” 12[12]. Todavia, mesmo que de
maneira deslocada e no mais das vezes cumprindo um papel apenas ornamental, nossas elites
insistiram, impropriamente, em difundir em solo brasileiro as idéias européias. Conforme observa
Schwarz, no Brasil tal arcabouço ideológico estava “fora de
centro, em relação ao seu uso europeu”. A explicação histórica para esse estranhamento “envolvia
as relações de produção e parasitismo no país, a nossa dependência econômica e seu par, a
hegemonia intelectual da Europa, revolucionada pelo Capital” 13[13].

Qual a implicação disso para o trabalho do escritor? Segundo Schwarz, o


profissional das letras pode até permanecer indiferente quanto a esse deslocamento das idéias,
ignorando ou fazendo tábula rasa da sua reprodução social fora do lugar, contudo, sua obra “só
alcança uma ressonância profunda e afinada caso lhes sinta, registre e desdobre – ou evite – o
descentramento e a desafinação”14[14]. Procedimento análogo é o que propomos como tarefa
para o historiador do local e do regional: que ele sinta e registre o descompasso – ou, se for o
caso, a harmonia – de tempos entre as espacialidades que ditam a medida do “tempo do mundo” e
os seus desdobramentos nos mais diversos lugares.

Um segundo aspecto a ser discutido é o problema da definição do espaço a ser


estudado na reflexão sobre o local e/ou regional. Algumas críticas já foram tecidas valendo-se do
argumento que o historiador que se ocupa do local e do regional trabalha com uma definição a
priori do espaço que investiga, aceitando a sua configuração oficial, na maioria das vezes pautada
na geografia política – cidade, município, região administrativa, estado, etc. –, como um dado
aceito e acabado. A critica é justificada e aqueles que assim desenvolvem suas pesquisas fazem
por merecê-la. Tal postura acaba por resultar na tomada dos recortes espaciais pela sua
configuração externa, ou seja, por determinações impostas a partir da política ou da geografia – no
caso das regiões naturais.

Longe de pretendermos a apreensão formal do meio como continente histórico,


propomos que a delimitação dos recortes espaciais seja feita levando-se em conta a historicidade
dos espaços. Assim, a definição do que é o local ou a região vale-se, criteriosamente, da
observação das relações orgânicas que determinada espacialidade mantém com outra em
diferentes momentos históricos. Desta maneira, a noção de espaço local ou regional é flexível e
suas modificações derivam dos movimentos e do curso da história. Nossa idéia apenas ratifica
uma assertiva do geógrafo Milton Santos, segundo a qual o espaço é “o testemunho de um
momento do mundo”. Quanto à relação tempo-espaço, o argumento por nós desenvolvido na
primeira parte deste artigo corrobora um outro pensamento de Santos: “o espaço é o resultado de
uma acumulação desigual de tempo” [15].
Inserindo a discussão na órbita da reflexão marxista, ressaltamos também o fato
de que o modo de produzir de uma determinada sociedade – em determinado tempo – produz uma
organização peculiar do espaço. Nesse sentido, e tomando mais uma vez como exemplo o
processo histórico da cidade de Franca, a definição que temos do local e do regional na sua
relação com essa espacialidade no nordeste paulista sofreu diversas mutações no tempo e,
confirmando nosso argumento, em conseqüência do tempo. O processo histórico, exprimindo o
modo de produção que estrutura uma sociedade em uma época, produz um espaço específico que
é a expressão da sociedade que o organiza. Não há, então, como falarmos de um mesmo espaço
para tratarmos de Franca no inicio do século XIX, quando a cidade conformava um eixo importante
na rota do sal, atravessada que era pelo chamado Caminho dos Goiazes, e no final deste mesmo
século, momento em que adentra economicamente no arcabouço da economia cafeeira.
Tampouco podemos utilizar de qualquer um dos recortes novecentistas para configurar a
sociedade industrial que é edificada a partir dos anos 20-30. A forma como essa localidade se
inseriu e a posição ocupada por ela no interior do modo de produção dominante em três momentos
históricos distintos gerou vínculos com espacialidades diferentes que vieram a conformar o local e
o regional em cada uma das épocas.
Os conflitos que tiveram lugar em Franca entre os habitantes (sobretudo membros
das elites locais) do centro da cidade e do bairro da Estação em fins do século XIX e princípios
deste século, demonstram significativamente a fluidez da conformação dos espaços. A título de
esclarecimento denotamos que o bairro da Estação, em Franca, constituiu-se enquanto pólo
urbano de forma agregada ao terminal ferroviário local, virtualmente destinado, como em tantas
outras localidades cafeicultoras do interior paulista, a abrigar o novo centro dinâmico do município.
No entanto, o que provocou o antagonismo entre setores da elite francana, no que diz respeito à
organização do espaço urbano, foi o fato de que os velhos estratos da classe dominante local
resistiram à transferência dos motores da vida econômica da cidade para o novo espaço;
preferiram manter ativo o antigo centro, valorizando-o por intermédio “do direcionamento de
melhoramentos urbanos e construção de grandes prédios públicos e privados, a fim de manter a
supremacia desta área sobre o resto da cidade” [16]. De outra parte, os comerciantes, os agentes
de negócios do café e os industriais que se instalaram junto à ferrovia, fizeram do bairro da
Estação um novo centro econômico, polarizando a urbe em torno de dois centros hegemônicos.

O que se pode inferir dessa situação é, inequivocamente, a confrontação entre o


“antigo” e o “ novo” espaço, ou seja, o antagonismo entre o habitat da oligarquia terratenente e
uma espacialidade que traz consigo os componentes de uma sociedade moderna em gérmen, qual
seja, a ferrovia e as massas proletárias, entre outros. O que estava em jogo, no caso, era a
hegemonia de um espaço sobre o outro. O conhecimento desse processo histórico nos permite
concluir que o que houve não foi, como havia de se esperar, a sobreposição de um deles, mas a
interpenetração, conjugando atraso e moderno na dinâmica de configuração desses
espaços.

Por fim, gostaria de refletir sobre o sentido, o significado da História Local e


Regional, enquanto parte do campo historiográfico. Alguns dos historiadores que se ocupam da
História Local e Regional ainda o fazem tendo em mente a idéia equivocada de construção de uma
história nacional a partir da somatória das diversas histórias locais. À constante representada pela
história interpretada a partir do que se tem como geral em relação a certo tema, tratam de buscar
adicionar a história particular que desenvolveram. Esse comportamento tem provocado confusões
sobre o real significado da História Local e Regional que, acreditamos, não é esse que acabamos
de descrever. O objetivo dessa modalidade de escrita da História é fornecer elementos
imprescindíveis para a compreensão das diversas variáveis que constituem o sistema global de
relações dentro do Estado nacional e, também, elementos que tornem possível submetermos a um
exame crítico as grandes generalizações da nossa história, não apenas nacional, mas, de certo
modo, do próprio “Ocidente”.
Ao falarmos de exame crítico, não queremos dizer também que a finalidade da
História Local e Regional seja a de testar a plausibilidade das grandes generalizações e
teorizações estabelecidas acerca dos processos históricos, como defendem alguns historiadores,
muitos deles seriamente engajados em uma militância favorável à história dos locais – este é um
outro problema que tem gerado incompreensões nada salutares ao desenvolvimento de um
estatuto para a História Local e Regional. Um exemplo significativo nesse sentido pode ser
encontrado na reflexão da historiadora Vera Alice Cardoso Silva, sobre o sentido da História Local
e Regional. Para a historiadora, “as grandes teorias sociais, econômicas e políticas representam
arquétipos que destacam os elementos essenciais nos processos de organização e dinâmica das
instituições. A verificação da plausibilidade e da força explicativa de cada uma depende em última
análise do teste histórico”. Assim, para ela, a História Local e Regional representaria “um dos mais
eficazes instrumentos de teste de teorias estabelecidas”; enfatizando o caráter comparativo desse
tipo de história, diz ainda que a história dos locais “fornece os elementos de comparação que (...)
devem ser os materiais a serem usados pelos cientistas sociais na construção e revisão de
teorias” [17].
Ora, dessa forma a História Local e Regional existiria apenas como um apêndice
da história que se ocupa das macro-estruturas e sua razão de ser seria unicamente o fato de que
constitui uma espécie de laboratório que verifica se as grandes considerações tecidas acerca de
um tema encontra aplicabilidade em realidades locais as mais diversas. Encontrando desvios, o
papel da História Local e Regional seria o de tornar possível o diagnóstico do que convencionou-se
determinar como geral no que diz respeito a um determinado tema. Como se pode apreender
disso, a História Local e Regional não deixaria de ocupar uma posição secundária no ambiente
historiográfico.
Contrariamente a essa postura, que só faz obstar ainda mais a afirmação de uma
História Local e Regional com noções e preocupações próprias, o que propomos é que essa
modalidade do conhecimento histórico esteja sempre imbuída do objetivo de lançar luz sobre às
vivências concretas de homens e mulheres em contraponto ao vôo panorâmico da história que
constrói explicações mais amplas e gerais, que engloba diferentes realidades num mesmo
arcabouço padronizado de experiências. O que se deve pretender não é o teste de teorias, mas
apreender toda a diversidade de experiências históricas que compõe o objeto sobre o qual elas
versam.

A importância da História Local e Regional está, assim, no fato de que enquanto a


história generalizante destaca as semelhanças, homogeneizando o amálgama de vivências dos
locais, a história elaborada com base nas realidades particulares dos locais trabalha com a
diferença, com a multiplicidade. Essa modalidade de escrita da história tem ainda a capacidade de
apresentar o que há de concreto na dinâmica social e no cotidiano das pessoas que viveram longe
dos grandes centros, das metrópoles. As grandes “generalizações” históricas bem ao gosto da
escola dos Annales, comuns à produção historiográfica nacional até avançados os anos 70,
acabaram por esvaziar a historicidade das localidades do interior do país, tornando-se
inadequadas e insuficientes para a tarefa de explicar a dinâmica peculiar que envolve a formação
social, política, econômica e cultural do interior brasileiro. A história escrita a partir de um
dimensionamento que prima pela generalização dos resultados obtidos na reflexão sobre espaços
política e/ou economicamente hegemônicos acabou operando um reducionismo histórico, que
muitas vezes soa falso e sem sentido se comparado à verdadeira realidade de inúmeras
localidades.

Não pretendemos com nossa reflexão negar a importância da história que


generaliza. Sem sombra de dúvida, ela continua sendo de vital importância para se traçar
parâmetros que embasam a idéia que devemos ter de um “tempo do mundo”. O que pretendemos
aqui é retirar a História Local do limbo historiográfico e alçarmo-la à condição de elemento também
de primeira grandeza na tarefa de recuperar a vitalidade da experiência histórica brasileira e,
assim, discutir os destinos do país. Para isso, tentamos traçar algumas linhas que esboçam a
existência de um conjunto sistematizado de procedimentos que norteiam o trabalho com a história
dos locais. O historiador que trabalha com o local e com o regional não traça os seus caminhos a
“olho nu”. Pelo contrário, ele pode contar com todo um instrumental analítico que torna a sua
história tão consistente, do ponto de vista teórico e historiográfico, quanto qualquer outra realizada
com competência.

* Este artigo é uma versão modificada e ampliada de comunicação apresentada na mesa redonda
intitulada “Redescobrindo o Brasil: os desafios da História Local e Regional”, na XII Semana de
História da UNESP/Franca, em outubro de 1998.

** Mestre em História pela UNESP/Franca e Professor do Departamento de História da


Universidade Federal de Uberlândia.

15[1] Esse problema é verificado até mesmo em países onde os estudos de História Local e
Regional se encontram em nível mais avançado e gozando de razoável prestígio, como a
Espanha. O diretor da seção de história local da revista catalã L’Avenç, Jesús Mestre i Campi,
observa que, entre os espanhóis, “nas universidades tem-se observado uma mudança de atitude
dos professores e estudantes, porém, não ao nível da instituição, que segue sem incorporar nos
departamentos ou nos programas temas de história especificamente locais”. Cf. MESTRE i
CAMPI, J. “La historia local en Catalunya: antecedentes y situación actual”. In: MESTRE i CAMPI,
Jesús et al. Perspectivas de la historia local en Catalunya. Bilbao: Universidad del País Vasco,
Servicio Editorial, 1993, (European Local and Regional Comparative History Series, 4), pp. 15-29.

16[2] Cf. BENTIVOGLIO, Júlio César. “ A chamada História Regional”. In: Escritos de Historia.
Franca, v. 2, n. 1, 1998, pp. 8-18.

17[3] BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo (Séculos XV-XVIII).


Vol. 3. SP: Martins Fontes, 1996, p. 8.

18[4] Localizada no nordeste do Estado de São Paulo, com população aproximada de 250 mil
habitantes, a cidade de Franca ganhou projeção no cenário nacional ao se tornar um dos maiores
centros produtores de calçados masculinos do país e importante pólo de exportação do produto
para os EUA e Europa nos anos 70 e 80. Seu parque fabril coureiro-calçadista, base da economia
local até os dias atuais, tem origens que remontam ao final da década de 1920 e início do decênio
posterior, se consolidando já nos anos 50, quando a cidade passa a ser conhecida como a “Capital
Nacional do Calçado” – título que ainda ostenta não obstante o visível declínio de sua indústria.

19[5] A bibliografia sobre a cultura política anarquista no Brasil é bastante vasta e diversificada.
Para uma visão de sua influência na formação e consolidação do movimento operário no país veja-
se, por exemplo, GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. SP: Vértice, 1988 (em
especial a 1ª. Parte) e HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, nem Patrão! (Vida Operária e
Cultura Anarquista no Brasil). SP: Brasiliense, 1983.

20[6] Cf. PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da Ilusão – A Revolução Mundial e o Brasil
(1922-1935). SP: Companhia das Letras, 1991 e SEGATTO, José Antonio. Reforma ou
Revolução – As Vicissitudes Políticas do PCB (1954-1964). RJ: Civilização Brasileira, 1995.

21[7] Cf. BARBOSA, Agnaldo de Sousa. Política e Modernização em Franca (1945-1964).


Franca: UNESP, 1998.

22[8] GALVADÀ i TORRENTS, A. “La integración de la historia local en el diseño curricular:


referencias catalanas”. In: MESTRE, Jesús et al. Op. cit., pp. 59-81.

23[9] ARPAL, J. “Localidad y procesos de localización (Reflexiones desde las Ciencias Sociales)”.
In: Tokiko Historiaz Lehen Ihardunaldiak (Primeras Jornadas de Historia Local). San
Sebastián: Eusko Ikaskuntza (Sociedad de Estudios Vascos), 1990, pp. 13-25.

24[10] SCHWARZ, R. Que Horas São? – Ensaios. SP: Companhia das Letras, 1987, pp. 14-16
(grifos nossos).
25[11] Em Central do Brasil, Walter Salles conta a história da viagem de uma mulher (Dora) e um
menino (Josué) da cidade do Rio de Janeiro ao interior do Nordeste. O itinerário percorrido por
uma professora aposentada, que é “escrevedora” de cartas na principal estação ferroviária da
capital carioca, com o objetivo levar um garoto que perde a mãe a Bom Jesus do Norte, Ceará,
para conhecer o pai, é o pano de fundo utilizado pelo diretor a fim de mostrar os contrastes sociais
e de desenvolvimento econômico entre o norte e o sul do país (a distinção de tempos), assim como
para chamar a atenção para as contradições da metrópole, que convive de forma íntima e profunda
com o moderno e o atraso (a interpenetração de tempos).

26[12] SCHWARZ, R. “As idéias fora do lugar”. In: Ao Vencedor as Batatas. 3ª. Ed. SP: Duas
Cidades, 1988, p. 13.

27[13] Ibidem, p. 24.

28[14] Idem.

29[15] SANTOS, M. Por Uma Geografia Nova: da Crítica da Geografia a uma Geografia
Crítica. SP: HUCITEC, 1978, p. 138.

30[16] FOLLIS, Fransérgio. Estação: o Bairro-Centro. Franca: Fundação Mário de Andrade, 1998,
p. 129.

31[17] SILVA, V. A. C. “Regionalismo: o enfoque metodológico e a concepção histórica”. In: SILVA,


Marcos. República em Migalhas – História Regional e Local. SP: Marco Zero, 1990, pp. 43-49.

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