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A g n a l d o d e S o u s a B a r b o s a **
Octávio Ianni
É importante ressaltar, por outro lado, que de maneira alguma tencionamos, com a
argumentação a ser desenvolvida neste artigo, desmerecer as formas de reflexão sobre a História
por meio de estudos que formulam explicações de grande amplitude, imbuídas do intuito de
entender as macro-estruturas de funcionamento das sociedades. Nossa intenção é demonstrar
que, assim como a história que pensa a dimensão mais visível da realidade – com base na qual
generalizamos a discussão de um tema –, a História Local e Regional apresenta inúmeras
possibilidades de descrição, de análise, de crítica, de interpretação e, ademais, de revisão
historiográfica.
Iniciamos discutindo uma questão que é bastante cara a nós historiadores e que
constitui um dos primeiros passos – talvez até o mais importante – para a definição de um estatuto
para a História Local: a problematização da relação tempo-história. Aproveitamos o ensejo para
desfazer um equívoco que começou a ganhar forma há algum tempo e que se pauta pelo
argumento de que toda história é, em última análise, uma História Local ou Regional, haja vista o
fato de que as análises generalizantes tomam por base a dinâmica histórica de uma localidade
política, econômica ou culturalmente hegemônica em determinado momento histórico 2[2]. É uma
atitude complacente por parte do ambiente acadêmico, mas nada edificante no sentido de dar um
status próprio à História Local e Regional. Inadvertidamente, essa interpretação esvazia a História
Local e retira dessa modalidade de escrita histórica o seu principal mérito, que é a busca das
singularidades, da diversidade na história.
A classe operária de Franca não passou pelo mesmo tipo de experiência que a
historiografia apresenta como válida para o operariado brasileiro como um todo – que reflete,
sobretudo, a experiência da classe em São Paulo, pólo dinâmico da economia brasileira e principal
centro industrial e comercial. Seu tempo histórico é outro e se expressa no menor nível de
organização e na insignificante adesão às chamadas vanguardas políticas da classe 7[7]. Tentar
inserir o operariado francano, recém-constituído e formado em grande parte por massas recém-
chegadas do campo, na mesma tradição histórica do operariado de São Paulo, é forçar uma
situação histórica que não existiu. De igual modo, e de forma mais extrema, os problemas do
operário das carvoarias do Centro-Oeste podem ser analisados pelo mesmo prisma temporal
daqueles dos operariado paulista, que vive agora as vicissitudes geradas pela implosão da
legislação trabalhista? No caso dos primeiros, a sua inclusão no mundo dos direitos da Era Vargas,
cujo fim foi anunciado na posse do presidente Fernando Henrique Cardoso em janeiro de 1995,
nem chegou a ser vivenciada. Alcançar o estágio histórico da Era Vargas estaria ainda na
perspectiva desses homens e mulheres que trabalham mais de 14 horas por dia, sem direito a
férias, descanso semanal remunerado e décimo terceiro salário.
Diante do exposto acima, cremos ser decisiva a necessidade de se trabalhar
com o “tempo dos lugares”, esse tempo que é próprio de cada espacialidade e por isso diferente
da noção utilizada pela história que trabalha com explicações sob parâmetros macro-analíticos.
Procurando delinear “as bases para preparar uma adequada história local”, o historiador catalão
Antoni Gavaldà i Torrentes confirma esse nosso raciocínio: “a nova história local deve procurar o
re-tratamento da noção de tempo. Descartar a idéia de um tempo único, homogêneo e linear. Na
história sempre há muitos tempos sociais” 8[8]. Pensando o significado do local no campo da
investigação histórica, o sociólogo basco Jesus Arpal mostra compartilhar da mesma idéia ao
interpretá-lo “como o nível de construção/investigação da realidade em que as coisas adquirem
uma dimensão distinta, um ‘tempo’ específico” 9[9].
Não pretendo, com isso, fazer a defesa de uma História Local e Regional por assim
dizer “ensimesmada”, ou seja, que se explica por si mesma com sua própria noção de tempo.
Absolutamente, o que a História Local e Regional deve enfatizar é a existência de uma
multiplicidade de tempos históricos convivendo simultaneamente na realidade de um mesmo país –
ou de uma região –, que se interpenetram em virtude das próprias relações orgânicas entre os
espaços inerentes à constituição de um Estado nacional ou, em um sentido mais amplo, de um
mercado internacional, atendendo à exigência marxista de se pensar o local e o regional como
espaço de dinamização de um determinado modo de produção. O peso do “tempo do mundo” faz-
se repercutir nos espaços “à margem da história triunfante” – para usar uma outra expressão de
Braudel –, porém, esse tempo não se realiza em toda a sua potencialidade, seja em conseqüência
de especificidades políticas, econômicas, sociais ou culturais desse espaço que entravam esse
processo, seja, como é mais freqüente, em decorrência de uma força superior atribuída ao
capitalismo que define as áreas privilegiadas a estarem em sincronia com o “tempo do mundo”.
A descrição da cena de uma carroça presa aos trilhos do bonde que leva
advogados para escritórios no centro da cidade na São Paulo dos primeiros anos do século, feita
por Oswald de Andrade no poema “Pobre Alimária”, é bastante significativa dessa conjunção de
tempos históricos de que estamos falando. As palavras do ensaísta Roberto Schwarz, que
comenta o texto, dão a exata dimensão disso: “de um lado, o bonde, os advogados, o motorneiro e
os trilhos; do outro, o cavalo, a carroça e o carroceiro: são mundos, tempos e classes sociais
contrastantes, postos em oposição” 10[10]. Em última análise, tal situação ilustra os
constrangimentos e contradições resultantes da justaposição do atraso e do moderno – em outras
palavras, de dois tempos – no cotidiano de uma metrópole em formação ao sul dos
trópicos, ou seja, na periferia do capitalismo triunfante.
Também é certo, precisamos ressaltar, que muitas vezes o que ocorre não é uma
interpenetração de tempos – atraso/moderno, novo/antigo –, mas a sobreposição de um sobre o
outro. Quem quer que assista às seqüências do filme Central do Brasil (Walter Salles Jr.,
1998)11[11], passadas em Bom Jesus do Norte, no nordeste do país, percebe que naquele espaço
a predominância é de um tempo longínquo no passado, totalmente alheio à contemporaneidade da
dimensão material e dos valores da modernidade capitalista. Na distante e árida cidade persistem
ainda ritos e formas de sociabilidade pertencentes a um mundo pretérito, que subjuga
inapelavelmente o tempo da nossa modernidade, o “tempo do mundo”.
Num outro cenário, mas bem próximo do tipo de preocupação que aqui nos
interessa, Roberto Schwarz, referindo-se à escrita da obra literária, constrói, em texto que se
tornou clássico, pensamento semelhante ao que acabamos de desenvolver. Chamando a atenção
para a importância da apreensão da peculiaridade do processo histórico de diferentes espaços –
Brasil e Europa – em uma mesma época, Schwarz assinala que enquanto o velho mundo vivia, no
século XIX, a civilização da ciência, das Luzes, do Progresso, do Liberalismo, da Humanidade, “no
Brasil domina o fato ‘impolítico e abominável’ da escravidão”; estávamos fora do sistema da
ciência, “estávamos aquém da realidade a que esta se refere” 12[12]. Todavia, mesmo que de
maneira deslocada e no mais das vezes cumprindo um papel apenas ornamental, nossas elites
insistiram, impropriamente, em difundir em solo brasileiro as idéias européias. Conforme observa
Schwarz, no Brasil tal arcabouço ideológico estava “fora de
centro, em relação ao seu uso europeu”. A explicação histórica para esse estranhamento “envolvia
as relações de produção e parasitismo no país, a nossa dependência econômica e seu par, a
hegemonia intelectual da Europa, revolucionada pelo Capital” 13[13].
* Este artigo é uma versão modificada e ampliada de comunicação apresentada na mesa redonda
intitulada “Redescobrindo o Brasil: os desafios da História Local e Regional”, na XII Semana de
História da UNESP/Franca, em outubro de 1998.
15[1] Esse problema é verificado até mesmo em países onde os estudos de História Local e
Regional se encontram em nível mais avançado e gozando de razoável prestígio, como a
Espanha. O diretor da seção de história local da revista catalã L’Avenç, Jesús Mestre i Campi,
observa que, entre os espanhóis, “nas universidades tem-se observado uma mudança de atitude
dos professores e estudantes, porém, não ao nível da instituição, que segue sem incorporar nos
departamentos ou nos programas temas de história especificamente locais”. Cf. MESTRE i
CAMPI, J. “La historia local en Catalunya: antecedentes y situación actual”. In: MESTRE i CAMPI,
Jesús et al. Perspectivas de la historia local en Catalunya. Bilbao: Universidad del País Vasco,
Servicio Editorial, 1993, (European Local and Regional Comparative History Series, 4), pp. 15-29.
16[2] Cf. BENTIVOGLIO, Júlio César. “ A chamada História Regional”. In: Escritos de Historia.
Franca, v. 2, n. 1, 1998, pp. 8-18.
18[4] Localizada no nordeste do Estado de São Paulo, com população aproximada de 250 mil
habitantes, a cidade de Franca ganhou projeção no cenário nacional ao se tornar um dos maiores
centros produtores de calçados masculinos do país e importante pólo de exportação do produto
para os EUA e Europa nos anos 70 e 80. Seu parque fabril coureiro-calçadista, base da economia
local até os dias atuais, tem origens que remontam ao final da década de 1920 e início do decênio
posterior, se consolidando já nos anos 50, quando a cidade passa a ser conhecida como a “Capital
Nacional do Calçado” – título que ainda ostenta não obstante o visível declínio de sua indústria.
19[5] A bibliografia sobre a cultura política anarquista no Brasil é bastante vasta e diversificada.
Para uma visão de sua influência na formação e consolidação do movimento operário no país veja-
se, por exemplo, GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. SP: Vértice, 1988 (em
especial a 1ª. Parte) e HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, nem Patrão! (Vida Operária e
Cultura Anarquista no Brasil). SP: Brasiliense, 1983.
20[6] Cf. PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da Ilusão – A Revolução Mundial e o Brasil
(1922-1935). SP: Companhia das Letras, 1991 e SEGATTO, José Antonio. Reforma ou
Revolução – As Vicissitudes Políticas do PCB (1954-1964). RJ: Civilização Brasileira, 1995.
23[9] ARPAL, J. “Localidad y procesos de localización (Reflexiones desde las Ciencias Sociales)”.
In: Tokiko Historiaz Lehen Ihardunaldiak (Primeras Jornadas de Historia Local). San
Sebastián: Eusko Ikaskuntza (Sociedad de Estudios Vascos), 1990, pp. 13-25.
24[10] SCHWARZ, R. Que Horas São? – Ensaios. SP: Companhia das Letras, 1987, pp. 14-16
(grifos nossos).
25[11] Em Central do Brasil, Walter Salles conta a história da viagem de uma mulher (Dora) e um
menino (Josué) da cidade do Rio de Janeiro ao interior do Nordeste. O itinerário percorrido por
uma professora aposentada, que é “escrevedora” de cartas na principal estação ferroviária da
capital carioca, com o objetivo levar um garoto que perde a mãe a Bom Jesus do Norte, Ceará,
para conhecer o pai, é o pano de fundo utilizado pelo diretor a fim de mostrar os contrastes sociais
e de desenvolvimento econômico entre o norte e o sul do país (a distinção de tempos), assim como
para chamar a atenção para as contradições da metrópole, que convive de forma íntima e profunda
com o moderno e o atraso (a interpenetração de tempos).
26[12] SCHWARZ, R. “As idéias fora do lugar”. In: Ao Vencedor as Batatas. 3ª. Ed. SP: Duas
Cidades, 1988, p. 13.
28[14] Idem.
29[15] SANTOS, M. Por Uma Geografia Nova: da Crítica da Geografia a uma Geografia
Crítica. SP: HUCITEC, 1978, p. 138.
30[16] FOLLIS, Fransérgio. Estação: o Bairro-Centro. Franca: Fundação Mário de Andrade, 1998,
p. 129.