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BRASIL
PSICANÁLISE, FICÇÃO E MEMÓRIA
Design Gráfico: Flávio Wild
Sobre obra de Albert Eckhout “Mameluca”, 1641.
R454
Semestral
ISSN 1516-9162
CDU: 159.964.2(05)
616.89.072.87(05)
CDU: 616.891.7
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TEXTOS A IDENTIDADE NACIONAL:
O BRASIL ENTRE HISTÓRIA,
MEMÓRIA E FICÇÃO
Carmen Backes *
RESUMO
A identidade brasileira freqüentemente é pensada a partir do colorido nacio-
nal. A exemplo disso, podemos referir-nos a autores tais como José de Alencar
e Gonçalves Dias. A ficção memorialística, porém, é outra forma com a qual a
literatura pode ajudar a pensar o Brasil. Neste caso, faz-se referência, mais
especificamente, a Machado de Assis. Esta forma literária trata do instigante
cruzamento entre o que de fato aconteceu e o ficcional, portanto, entre histó-
ria e memória.
PALAVRAS-CHAVES: identidade; história; memória; ficção
ABSTRACT
Brazilian identity is often considered from the national colouring. As an example,
one can refer authors as José de Alencar and Gonçalves Dias. The memorial
fiction, although, is another way in which literature can help to think about
Brazil. In this case we refer, more specifically, to Machado de Assis. This literary
form deals with the instigating encounter between what happened in fact and
the fiction; therefore between history and memory.
KEYWORDS: identity; history; memory; fiction
*
Psicanalista, membro da APPOA, psicóloga do Deptº de Psicanálise do Instituto de Psicologia/
UFRGS, Mestre em Psicologia Social e Institucional. Autora do livro O que é ser brasileiro?,
da coleção O sexto lobo, São Paulo, Escuta, 2000.
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TEXTOS
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Melman descreve esses dois lugares no artigo A identidade histérica (Porto Alegre, APPOA,
1994. Material de circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre), numa refe-
rência às fórmulas da sexuação:
Essas fórmulas podem ser lidas da seguinte forma: do lado esquerdo, existe um (o fundador)
que é incastrado; logo, todos da linhagem que a ele se referem passaram pela castração. Do lado
direito, não existe um (fundador) que diga não à castração, logo não-todos passaram pela castra-
ção, ou sua castração não é autenticada pelo fundador.
A castração aqui referida tem suas origens fundadas na cena da refeição totêmica ou cena do
parricídio, que supõe, nas origens do totemismo, a existência de um pai violento e ciumento que
reserva para si todas as fêmeas (por isso incastrado, pois não sofre nenhuma interdição). Esse
pai todo-poderoso é quem dita as leis-tabu, cujas duas prescrições principais são: não matar o
pai e não ter acesso a nenhuma das mulheres a ele pertencentes. Os filhos nutrem por esse pai
um sentimento ambivalente: ao mesmo tempo em que o amam, respeitam e admiram, pois
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A IDENTIDADE NACIONAL...
assim obtêm proteção, também o odeiam por sua intensa autoridade, com a qual rivalizam.
Conforme vão crescendo, vão sendo expulsos, na medida em que podem representar um perigo
maior ao tirânico patriarca. Os irmãos expulsos reúnem-se, um dia, matam o pai e devoram seu
cadáver, colocando assim um fim à existência da horda primitiva. A conseqüência disso é que o
pai morto adquire um poder muito maior do que tivera em vida. Isso reforça também seus
mandamentos, e ficam ainda mais ratificadas suas leis, e é esse o ponto de partida das organiza-
ções sociais, das restrições morais e da religiosidade. A proibição se funda na culpa dos filhos
após a morte do pai da horda primitiva, porque, no nível inconsciente, a Lei é referida, antes de
mais nada, a uma instância idealizada; ou, melhor, a Lei é referida em seu Nome (Nome-do-
Pai). A partir daí, essa filiação, que impõe a castração (não ter acesso a todas as mulheres), é a
operação que limita e ordena o desejo do sujeito.
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TEXTOS
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Considerações extraídas do texto de Tadeu Chiarelli para o catálogo da exposição “Identida-
de/não-identidade: a fotografia brasileira atual”, realizada de 2 de setembro a 9 de outubro de
1997 no Centro Cultural Light, Rio de Janeiro.
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FISCHER, Luís Augusto. A questão da formação na literatura brasileira. Porto Alegre, 2 set.
1999. Palestra proferida na Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
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TEXTOS
A segunda não é uma geração, mas um autor: Machado de Assis, que repõe em
circulação a discussão sobre o que é o Brasil, mas não de modo ufanista. Ele traz para
dentro da estrutura de seus romances essa questão. Neste aspecto, esse autor é singu-
lar, e não há paralelo bem estabelecido entre o Brasil e outros países.
A terceira é a geração modernista, com centro em São Paulo, mas espalhada
pelo País. Lança seu primeiro grito em 1922, com a Semana de Arte Moderna, com
Mario de Andrade à frente, mais Oswald de Andrade e vários outros, tendo em
“Macunaíma” um expoente máximo, vindo em oposição ao índio como o bom selva-
gem descrito por José de Alencar. Logo em seguida, a partir da fundação da Universi-
dade de São Paulo, na década de 1930, nasce o grupo liderado por Antonio Candido,
que formula, em altíssimo nível, a discussão sobre a formação e lhe dá um estatuto
científico moderno. A obra de Candido vem a público na década de cinqüenta, no pós-
guerra, quando vários outros historiadores apresentam sua versão: Caio Prado Júnior,
também paulista, que publica sua “História econômica do Brasil”; Celso Furtado, nor-
destino, com “Formação econômica do Brasil”, e Raymundo Faoro, gaúcho, com “Os
donos do poder”. Podem ser citados ainda Sérgio Buarque de Holanda, trabalhando
desde os anos trinta (quando foi lançada sua obra “Raízes do Brasil”) e Gilberto Freyre,
pernambucano, que publica na mesma década seu “Casa grande & senzala”.
Essa terceira geração pode ser dividida em duas: uma correspondente às déca-
das de vinte e trinta, e outra, aos anos cinqüenta, mas os paulistas trabalham em se-
qüência. Antonio Candido é amigo de Mario de Andrade e trabalha em favor de –
como ele mesmo disse – validar o modernismo estético em seu trabalho, de forma a
impô-lo ao País, contra a tradição bacharelesca dos contemporâneos de Machado, os
parnasianos.
Enfim, tomando essas várias gerações, pode-se afirmar que a literatura brasi-
leira, vista desde esses grupos, é um sintoma da busca da nacionalidade.
O romance memorialístico brasileiro merece atenção especial, pois, nele, o
narrador de memórias postula um eu enunciador. É primeiro necessário configurar um
eu para, a partir daí, narrar a história ficcional. Postula também um tu: o relato de
memória implica o leitor, pois uma história só pode ser narrada de um para o outro.
Por que era necessário às narrativas de memória brasileiras postularem um eu e um tu?
Para Fischer (1998, p.135):
“...porque pareceu aos escritores que não havia nem um eu digno de
falar e de ser ouvido, nem um tu disponível para a audição. Não estavam
dadas as posições nem do narrador (do escritor, em sentido amplo), nem
do leitor. O eu não havia porque não havia identidade.”
É esta insegurança sobre o eu que me faz estabelecer como um dos pressupos-
tos que norteiam este trabalho o fato de que o brasileiro sempre esteve preocupado em
dizer quem é, como se, por princípio, não fosse ninguém, conforme aqui evidenciado
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Gostaria de chamar a atenção sobre a origem grega da palavra alegoria: allós quer dizer outro,
e agourein quer dizer falar.
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TEXTOS
destas é profunda, sem ser óbvia.” Ele não se preocupava em descrever um tipo ou
exaltar coisas do Brasil; contudo, o funcionamento psíquico de seus protagonistas e
personagens laterais e sua inserção no contexto social davam muito mais informações
sobre o caráter nacional do que a voga indianista, por exemplo.
Segundo Costa5 , a ficção memorialística é a construção conjunta de nossa his-
tória, que permite uma compreensão específica do Brasil diferente da pura descrição
histórica ou construção de tipos. Da mesma opinião compartilha Schwarz (1989), co-
locando as memórias como uma sondagem da cena contemporânea a partir do modo
de ser social e também como uma intuição profunda do movimento da sociedade bra-
sileira.
Machado de Assis, muitas vezes, sofreu a crítica de que em suas obras faltava
o colorido nacional e de que ele se colocava um tanto desdenhoso para com o povo
brasileiro, crítica esta à qual o próprio autor (Assis, 1959, p.817) responde, em seu
artigo “Instinto de nacionalidade”:
“Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente,
deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua
região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobre-
çam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento
íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando
trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”
Machado, neste artigo, inaugura então o seu tão famoso sentimento íntimo de
brasilidade. Ora, um sentimento íntimo só se pode definir falando dele. A identidade,
portanto, está numa imbricação bastante forte com a narrativa, em especial com a
narrativa ficcional de memórias. É diferente quando o acento é colocado nas memóri-
as. As memórias, ao dizerem da identidade, porém de um modo particular, permitem-
nos ver que a identidade revelada por uma narrativa mostra um aspecto enunciativo.
Situo aqui a forma como utilizo o conceito de narrativa: a partir das articula-
ções feitas por Gagnebin (1999, p.74) em seu livro “História e narração em Walter
Benjamin”, narrativa se distancia do aspecto autobiográfico clássico, na medida em
que o eu representa o sujeito, mas não o é. Embora a narrativa possa ser tomada como
um relato autobiográfico6 , não restringe o sujeito à “afirmação da consciência de si,
mas o abre às dimensões involuntárias, diria Proust, inconscientes, diria Freud, da
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COSTA, Ana Maria Medeiros da. Ironia e identificação. Porto Alegre, out. 1999. Palestra
proferida no evento Dom Casmurro – 100 Anos, promovido pela Associação Psicanalítica de
Porto Alegre e Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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A autobiografia ressalta o caráter de sinceridade e fidelidade ao fenomênico do passado, numa
perspectiva linear, enquanto a narrativa não necessariamente se prende a isso; porém considera
o estatuto de passado/perdido/desaparecido, mas também, e justamente por isso, lembrado.
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TEXTOS
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TEXTOS
rico com uma história individual. É nesse sentido que se pode pensar o individual e o
coletivo articulados, dando conta de novas figuras ou novas constelações. O sujeito é
aquele que conta e aquilo que é contado.
O que se transmite, não é o acontecimento, mas o recalcado – recalcado, neste
contexto, no sentido de uma história não-reconhecida. A partir desta premissa, pode-
se pensar num tempo diferenciado do tempo cronológico, da história universal, do
princípio, meio e fim, do mito da veracidade da fonte historiográfica7 , da busca de
causa-efeito, determinante-determinado, diferenciado da “representação abstrata e vazia
do tempo histórico como sucessão infinita de pontos que somente a ordem de sua
aparição interligaria” (Gagnebin, 1999, p.15).
Talvez a metáfora da constelação utilizada por Benjamin (apud Gagnebin, 1999,
p.15) seja interessante para melhor situar essa questão: “Estes pontos isolados, os fe-
nômenos históricos, só serão verdadeiramente salvos, quando formarem uma conste-
lação, tais estrelas, perdidas na imensidão do céu, só recebem um nome quando um
traçado comum as reúne.” A palavra salvar é por ele usada no sentido de que esse
procedimento de interligar pontos inéditos, “que faz emergir momentos privilegiados
para fora do continuum cronológico”, é definido como a apreensão de uma constela-
ção. O que surge da reunião de vários pontos é um novo desenho, um novo objeto, até
então inexistente, mas que não deixa de incluir também os pontos ou estrelas já exis-
tentes, descreve Benjamin. Isto inclui, certamente, algo do rememorar.
A memória não é uma instância que sabe o que registra e acumula, mas um
lugar que jamais saberá por inteiro o que acumula. Esta noção se aproxima do que
Freud definiu como memória a partir do conceito de traço mnêmico. Ele vai utilizar
essa expressão, ao longo de toda sua obra, para designar a forma particular como os
acontecimentos se inscrevem na memória. Os traços mnêmicos subsistem de forma
permanente, mas só são reativados depois de investidos e retornam no sonho ou no
sintoma, o que inelutavelmente junta memória com recalque e também possibilita
afirmar que memória é o ato mesmo de apagar. Lembrar e apagar, nesse sentido,
indistinguem-se. Para lembrar é preciso apagar, e a forma como cada um vai lembrar
é peculiar e diz de sua construção ficcional, diz da forma como escreve sua história,
conforme Costa (1998). A memória realiza uma articulação peculiar que faz com que
uma história possa ser narrada ou contada, ou uma ficção, construída.
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Esse mito se funda na concepção nostálgica do passado ou, também, no fato de que a transmis-
são da história, na maioria das vezes, dá-se por elites dominantes, e é segundo seus critérios e
interesses que os fatos se transformam em história oficial.
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A IDENTIDADE NACIONAL...
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Esta afirmação é feita por Luiz Eduardo Barichello, que é professor do Curso de Desenho
Industrial do Centro Universitário Franciscano de Santa Maria e participa de um Projeto de
Pesquisa que visa catalogar o mobiliário e a arquitetura da 4ª colônia.
9
Habitantes da Fenícia (Ásia antiga), ocupavam o litoral do que é a atual Síria, espremidos entre
o Mediterrâneo e a alta cadeia do Líbano.
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Roberto Schwarz, em entrevista a Cris Gutkoski, Caderno de Cultura, sábado 01 de julho de
2000, p.3.
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TEXTOS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Instinto de nacionalidade. Rio de Janeiro : Aguilar, 1959.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. In: _____. Obras Escolhidas. São Paulo :
Brasiliense, 1996. v.1
COSTA, Ana M. M. da. A ficção do si mesmo. Rio de Janeiro : Cia. de Freud, 1998.
COUTINHO, Afrânio. A literatura como fator de nacionalização brasileira. Rio de Janeiro :
Tempo Brasileiro, 1973.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo : Ed. 34, 1998.
FISCHER, Luís Augusto. Para fazer diferença. Porto Alegre : Artes & Ofícios, 1998.
GAGNEBIN, J. M. Por que um mundo todo nos detalhes do cotidiano? Revista da USP, São
Paulo, n.15, p.44-7, set./nov. 1992.
_____. História e narração em W. Benjamin. São Paulo : Perspectiva, 1999.
PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade, visões literárias do urbano. Porto Alegre :
Ed. Universidade/UFRGS, 1999.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo : Cia. das Letras, 1995.
SCHWARZ, Roberto. Que horas são?: ensaios. São Paulo : Cia. das Letras, 1989.
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TEXTOS
RESUMO
Como ponto de partida, o texto contrapõe a concepção de história da Antigüi-
dade clássica à do cristianismo. Neste, o tempo perde sua perspectiva cósmi-
ca, cíclica, e adquire, pela promessa de redenção que resgata a falta originá-
ria, a dimensão de desígnio divino. A autora analisa como a construção sim-
bólica e imaginária referente à noção de Providência Divina e à visão proféti-
co-milenarista do cristianismo concorrem, pelas circunstâncias históricas, para
a elaboração de nosso mito fundador.
PALAVRAS-CHAVES: história; cristianismo; mito; tempo
ABSTRACT
As a start point, the text opposes the conception of history from the classical
antiquity to the one from Christianity. In this one, time looses its cosmic, cyclic,
perspective and assumes, through the promise of redemption that rescues the
original fault, the dimension of divine designation. The author analyses how
the symbolic and imaginary constructions referring to the notion of the Divine
Providence and to the millenary prophetic vision of Christianity concur, through
historical circumstances, to the elaboration of our founding myth.
KEYWORDS: history; Christianity; myth; time
*
Trabalho originalmente publicado na Folha de São Paulo, Caderno Mais!, em 26/03/2000.
**
Professora de História da Filosofia e de Filosofia Política da USP, publicou “O que é ideolo-
gia”, “Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo: Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty” e
“Seminários: o nacional e o popular na cultura brasileira” (Ed. Brasiliense); “Cultura e demo-
cracia: o discurso competente e outras falas” (Ed. Moderna); “Sobre o medo”, in Os sentidos da
paixão, “Janela da alma, espelho do mundo”, in O olhar, e “Laços do desejo”, in O desejo (Ed.
Cia. das Letras).
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TEXTOS
HISTÓRIA E COMEMORAÇÃO
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BRASIL: O MITO FUNDADOR
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TEXTOS
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BRASIL: O MITO FUNDADOR
da verdade pela divindade), pois, com Daniel, primeiro, e João, depois, o segredo da
história é uma revelação divina feita diretamente pelo próprio Deus ao profeta e ao
evangelista. Essa revelação diz respeito prioritariamente ao Tempo do Fim ou ao Dia
do Senhor, como escreve São Paulo aos Tessalônicos. Nesse tempo do fim, quando o
Cristo virá pela segunda vez e vencerá o Anticristo, haverá um Reino de Mil Anos de
felicidade e abundância que prepara os santos para o Juízo Final e a entrada na Jerusa-
lém Celeste, fora do tempo ou na eternidade.
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TEXTOS
Eram esses intervalos que abrigavam o centro da história escatológica, pois neles ha-
veria nova revelação, inovação, acontecimento e preparação para o fim do tempo.
Pouco a pouco, porém, a concepção milenarista retorna, até que, no século XII,
ela se consolida na obra do abade calabrês, Joaquim di Fiori. A grande renovação
intelectual e religiosa do século XII foi contemporânea de acontecimentos que abala-
ram a cristandade e, por isso, não poderia deixar intacta a necessidade de conciliar
acontecimento e plano divino, mudança e ordem, estabilidade e contingência. Preci-
sou dar conta da desordem no mundo: Islã, cruzadas, cismas eclesiásticos, guerras
entre Império e Papado. A busca da ordem no mundo teve que enfrentar acontecimen-
tos cujo sentido não estava dado, mas que não podiam escapar à ordem providencial.
Tornou-se imperiosa a busca do conhecimento da estrutura secreta do tempo e de seu
sentido. A reordenação teológica do tempo se fez pela interpretação apocalíptico-
escatológica da história profética e milenarista.
A novidade maior dessa elaboração é a de que a obra do tempo é operação da
Trindade: a unidade das Três Pessoas garante a ordem imutável, enquanto a diferença
entre as operações de cada uma delas explica a variação temporal. Com isso, a
Encarnação deixa de ser o término da história para se tornar seu centro, o que significa
que algo mais ainda deve acontecer antes do Juízo Final. Esse algo mais é um tempo
duplamente facetado: é o do aumento da desordem e dos males, porque tempo do
Anticristo, mas é também o do aumento da perfeição e da graça, sob a ação do Espírito
Santo, como profetizou Daniel. Está pavimentado o caminho para o abade calabrês,
Joaquim di Fiori, com quem surge a imagem da apoteose terrena dos Mil Anos e a
idéia de que a história é a operação da Trindade no tempo, no qual uma última e
decisiva revelação-iluminação está reservada para a Sexta Era e para o Tempo do Fim:
a plenitude do tempo coincidirá com a plenitude do Espírito ou do saber.
Com Joaquim di Fiori, podemos falar numa filosofia da história, isto é, no
tempo estruturado e escandido em três tempos progressivos rumo à apoteose. Essa
filosofia da história se oferece como concepção trinitária, progressiva e orgânica da
história como desenvolvimento de estruturas invisíveis. Trinitária: a história é obra do
Espírito através do Pai e do Filho, até a revelação final do Espírito. Progressiva: a
história é o desenvolvimento temporal do aumento do saber, cuja plenitude coincide
com o tempo do fim, quando será aberto “o livro dos segredos do mundo”. Orgânica:
a estrutura do tempo, simbolizada pela Árvore de Jessé, significa que o tempo não é
ciclo perpétuo de tribulações, não é agonia nem afastamento do absoluto, mas arbusto
florescente onde frutifica a semente divina da verdade efetuando-se como eternidade
temporal. Será impossível não reconhecer traços joaquimitas em toda a filosofia da
história posterior. Joaquim introduz dois símbolos não escriturísticos e que são suas
profecias próprias: o Papa Angélico (que prepara o caminho para o encontro final
entre Cristo e o Anticristo) e os homens espirituais (duas novas ordens monásticas de
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BRASIL: O MITO FUNDADOR
NOVO MUNDO
“Porque não é em vão, mas com muita causa e razão que isto se chama
Novo Mundo, e não por se ter achado há pouco tempo, senão porque é
em gentes e em tudo como foi aquêle da idade primeira.”
Carta de Vasco da Quiroga, 1535
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BRASIL: O MITO FUNDADOR
por quatro rios imensuráveis, rica em ouro e pedras preciosas, de temperatura sempre
amena, numa primavera eterna. Terra profetizada pelo profeta Isaías, quando escre-
veu: “Assim, tu chamarás por uma nação que não conheces, sim uma nação que não te
conhece acorrerá a ti” (Is. 55, 6). “Sim, da mesma maneira que os novos céus e a nova
terra que estou para criar subsistirão na presença, assim subsistirá a vossa descendên-
cia e o vosso nome” (Is. 66, 20).
No entanto, não é apenas Isaías que projeta sua sombra sobre os navegantes.
De igual importância será o profeta Daniel, não só porque o livro das Revelações
anuncia o Tempo do Fim, mas também porque esse tempo final será o advento da
Quinta Monarquia ou, como dirão os cristãos, do Quinto Império do Mundo, durando
mil anos de felicidade porque reino messiânico. No imaginário da conquista do Brasil,
Daniel é menos aquele que anuncia novas terras e mais aquele que anuncia o novo
tempo como Reino de Deus e tempo do saber, quando o homem esquadrinhará a terra
na direção dos quatro ventos e será aberto o Livro dos Segredos do Mundo: “Os
ímpios agirão com perversidade, mas nenhum deles compreenderá, enquanto os sábi-
os compreenderão” (Dan. 12, 10). “Feliz quem esperar e alcançar mil trezentos e trinta
e cinco dias. Quanto a ti, vai até o fim. Repousarás e te levantarás para tua parte da
herança, no Tempo do Fim” (Dan. 12, 12-13).
Entre 1647 e 1666, o Padre Vieira escreve “História do futuro”, obra que lhe
valerá a condenação de “herética e judaizante” pelo tribunal da Inquisição, pois “pro-
mete o reino de Deus nesta vida e muito cedo”, à maneira dos judeus que “o esperam
nesta vida presente de seus Messias, e perpétuo para sempre”. A origem da condena-
ção é o livro “Esperanças de Portugal”, parte da trilogia que inclui a “Chave dos pro-
fetas” e a “História do futuro”, inspirada em Daniel, no capítulo 18 de Isaías, nas
“Trovas do Bandarra” (em que o Encoberto D. Sebastião será o Imperador dos Últi-
mos Dias, vencedor das primeiras batalhas contra o Anticristo), e no milenarismo
trinitário de Joaquim di Fiori. A obra prevê a união de portugueses e judeus, o Reino
de Mil Anos e o retorno triunfal dos judeus a Israel. A interpretação do capítulo 18 de
Isaías, possivelmente recebida pelo jesuíta, das obras do franciscano peruano Gonzalo
Tenório, demonstra que Isaías profetizou não só a América, mas, pela quantidade de
detalhes e particularidades, profetizou o Brasil e não o Peru, como julgara Tenório.
Ambos, porém, interpretam as “gentes convulsas”, as “gentes dilaceradas” e as “gen-
tes terríveis”, de que fala Isaías, como sendo as Dez Tribos Perdidas de Israel, e o
motivo fundamental para essa interpretação é uma outra profecia de Isaías, segundo a
qual a redenção do “resto de Israel” só se dará depois que todo Israel se houver disper-
sado na direção dos quatro ventos e, evidentemente, a última direção somos nós.
Jesuítas e franciscanos se consideram as duas ordens monásticas profetizadas
por Joaquim di Fiori e, por isso, escrevem movidos pela certeza do fim da história e do
tempo do fim como tempo do Espírito Santo inteiramente revelado ao Reino de Deus.
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TEXTOS
O profetismo messiânico que os move os faz reafirmar, diante da Bíblia, que os “mo-
dernos são pigmeus sentados nos ombros de gigantes” e que, se podem ver mais longe
do que os antigos, é porque estes, mais próximos da revelação originária, sustentam
em seus braços os anões modernos. Grandes foram os que profetizaram. Pequenos os
que sabem reconhecer a realização das profecias. “Os futuros”, diz Vieira, “quanto
mais vão correndo, tanto mais se vão chegando a nós e nós a eles”.
O Brasil não é apenas “novos céus e novas terras” cumprindo a profecia do
alargamento da ciência e o anúncio do milênio como Era do Espírito: o Brasil é condi-
ção e parte integrante do milênio, isto é, do Último Império. As profecias de Daniel
e de Isaías, cumpridas com a descoberta e a conquista do Brasil, são fatos e provas da
consumação da revelação e do tempo. Nós somos a história consumada.
O MITO FUNDADOR
Vivemos na presença difusa de uma narrativa da origem. Essa narrativa, embo-
ra elaborada no período da conquista, não cessa de se repetir porque opera como nosso
mito fundador. Mito no sentido antropológico: solução imaginária para tensões, con-
flitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos na realidade.
Mito na acepção psicanalítica: impulso à repetição por impossibilidade de simbolização
e, sobretudo, como bloqueio à passagem à realidade. Mito fundador porque, à maneira
de toda fundatio, impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com
um passado que não cessa, que não permite o trabalho da diferença temporal e que se
conserva como perenemente presente. Um mito fundador é aquele que não cessa de
encontrar novos meios para se exprimir, novas linguagens, novos valores e idéias, de
tal modo que quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.
Pelas circunstâncias históricas de sua construção inicial, nosso mito fundador
é elaborado segundo a matriz teológico-política e, nele, quatro constituintes princi-
pais se combinam e se entrecruzam, determinando não só a imagem que possuímos do
país, mas também nossa relação com a história e a política. O primeiro constituinte,
para usarmos ainda uma vez a expressão de Sérgio Buarque de Holanda, é a “visão do
paraíso” ; o segundo é oferecido pela história teológica, elaborada pela ortodoxia cris-
tã, isto é, a perspectiva providencialista da história; o terceiro provém da história
teológica profética cristã, ou seja, do milenarismo de Joaquim di Fiori, e o quarto é
proveniente da elaboração jurídico-teocrática da figura do governante como “rei pela
graça de Deus”.
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BRASIL: O MITO FUNDADOR
suas gentes que “não lavram nem criam (…) e andam tais e tão rijos e tão nédios que
o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos”, como se lê na “Carta
de Pero Vaz de Caminha a El rei Don Manuel sobre o achamento do Brasil”. É dessa
carta a passagem celebrada: “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira graciosa
que, querendo-se aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”.
Quando se examinam relatos aparentemente descritivos, não se pode deixar de
notar que certos lugares-comuns se encontram em todos eles. O Brasil é sempre des-
crito como imenso jardim perfeito: a vegetação é luxuriante e bela (flores e frutos
perenes), as feras são dóceis e amigas (em profusão inigualável), a temperatura é sem-
pre amena (“nem muito frio, nem muito quente”, repete toda a literatura e Pero Vaz de
Caminha), aqui reina a primavera eterna contra o “outono do mundo”, o céu está pe-
renemente estrelado, os mares são profundamente verdes, e as gentes vivem em estado
de inocência, sem “esconder suas vergonhas” (diz Pero Vaz), sem lei e sem rei, sem
crença, e pronta para a evangelização. Esses lugares comuns literários possuem um
sentido preciso que não escaparia a nenhum leitor dos séculos XVI e XVII: são os
sinais do Paraíso Terrestre reencontrado.
Nascido sob o signo do Jardim do Éden, o mito fundador não cessará de repô-
lo. Três exemplos podem ajudar-nos a perceber a permanência desse, muito depois de
encerrada a exegese mítica da descoberta-conquista.
Praticamente quase todas as bandeiras nacionais, criadas nos vários países du-
rante o século XIX e início do século XX, são bandeiras herdeiras da Revolução Fran-
cesa. Por isso são tricolores (algumas poucas são bicolores), as cores narrando aconte-
cimentos sociopolíticos dos quais a bandeira é a expressão. A bandeira brasileira é a
única não tricolor produzida nesse período. Possui quatro cores. Ora, quando se per-
gunta qual o significado dessas cores, não se responde que o verde, por exemplo,
simbolizaria lutas camponesas pela justiça, mas sim que representa nossas imensas e
inigualáveis florestas; o amarelo não simboliza a busca da Cidade do Sol, utopia de
Campanella da cidade ideal, mas representa a inesgotável riqueza natural do solo pátrio;
o azul não simboliza o fim da monarquia dos Bourbons e Orléans, mas a beleza perene
de nosso céu estrelado, onde resplandece a imagem do Cruzeiro, sinal de nossa devo-
ção a Cristo Redentor, e o branco não simboliza a paz conquistada pelo povo, mas a
ordem (com progresso, evidentemente). A bandeira brasileira não exprime a política
nem a história. É um símbolo da Natureza: floresta, ouro, céu, estrela e ordem. É o
Brasil-jardim, o Brasil-paraíso terrestre.
O mesmo fenômeno pode ser observado no Hino Nacional, que canta mares
mais verdes, céus mais azuis, bosques com mais flores e nossa vida de “mais amores”.
O gigante está “deitado eternamente em berço esplêndido”, isto é, na Natureza como
paraíso ou berço do mundo, e é eterno em seu esplendor.
E, terceiro exemplo, a poesia ufanista que toda criança aprende a recitar na
escola, como o poema do Conde Afonso Celso, “Porque me ufano de meu país”, ou os
33
TEXTOS
sonetos parnasianos de Olavo Bilac: “Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!/
Criança, jamais verás país como este!/ Olha que céu, que mar que floresta!/ A nature-
za, aqui perpetuamente em festa,/ É um seio de mãe a transbordar carinhos.”
Esta produção mítica do país-paraíso nos persuade de que nossa identidade e
grandeza se encontram predeterminadas no plano natural: somos sensíveis e sensuais,
carinhosos e acolhedores, alegres e, sobretudo, somos essencialmente não-violentos.
O primeiro elemento da construção mítica nos lança e nos conserva no reino da Natu-
reza, deixando-nos fora do mundo da História.
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BRASIL: O MITO FUNDADOR
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TEXTOS
Isso explica uma das componentes principais de nosso mito fundador, qual
seja, a afirmação de que a história do Brasil foi e é feita sem sangue, pois todos os
acontecimentos políticos não parecem provir da sociedade e de suas lutas, mas direta-
mente do Estado, por decretos: capitanias hereditárias, governos gerais, independên-
cia, abolição, república. Daí também uma outra curiosa conseqüência: os momentos
sangrentos dessa história são considerados meras conspirações (“inconfidências”) ou
fanatismo popular atrasado (Praieira, Canudos, Contestado, Pedra Bonita, Farroupilhas,
MST).
Dessa maneira, o mito fundador opera de modo socialmente diferenciado:
1 – do lado dos dominantes, opera com a visão de seu direito natural ao poder
e na legitimação desse pretenso direito natural por meio do ufanismo naciona-
lista e desenvolvimentista, expressões laicizadas do Paraíso Terrestre e da teo-
logia da história providencialista, assegurando a imagem do Brasil como co-
munidade una e indivisa, ordeira e pacífica, rumando para seu futuro certo,
pois escolhido por Deus;
2 – do lado dos dominados, realiza-se pela via profético-milenarista, que pro-
duz dois efeitos principais: a visão do governante como salvador e a sacralização-
satanização da política. Em outras palavras, uma visão da política que possui
como parâmetro o núcleo profético-milenarista do embate final, cósmico, entre
a luz e treva, bem e mal, de sorte que o governante ou é sacralizado (luz e bem)
ou satanizado (treva e mal).
É evidente, portanto, que o mito fundador opera com uma contradição insolú-
vel: o país-jardim é sem violência e, pela história providencialista, ruma certeiro para
seu grande futuro; em contrapartida, o país profético está mergulhado na injustiça, na
violência e no inferno, à procura de seu próprio porvir, na batalha final em que vence-
rá o Anticristo. Entre ambos, cava fundo o humor das ruas: “Quem foi que descobriu
o Brasil?\ Foi seu Cabral, foi seu Cabral\ No dia 22 de abril\ Dois meses depois do
carnaval!”.
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TEXTOS BRASIL: MELANCOLIA OU
CRIAÇÃO?
A carnavalização necessária
Miriam Chnaiderman*
RESUMO
Vários psicanalistas têm buscado chaves interpretativas para pensar o que é
ser brasileiro. Comparando essas leituras com aquelas realizadas por alguns
pensadores que se dedicaram ao tema (Gilberto Freyre, Sergio Buarque de
Holanda), chegamos à conclusão de que a leitura feita por psicanalistas é
melancolizante. Através do trabalho com as cartas de Colombo, com a ques-
tão da origem de Portugal, nossa confusão de línguas vai ficando evidente. É
na recuperação do conceito de mito tal como foi pensado por Lévi-Strauss, ou
seja, como estrutura que passa pela música, que podemos resgatar algo de
lúdico neste pensar o Brasil.
PALAVRAS-CHAVES: origem, repetição, identidade, alteridade, criação
ABSTRACT
Several psychoanalysts have been seeking interpretative keys to think what it
is to be brazilian. Comparing these readings with the ones by some thinkers
that considered the issue (Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda), we
come to the conclusion that the reading by the psychoanalysts is depressing.
Through the work with Columbu’s letters, with the question of Portugal’s origin,
our language confusion turns clear. It is in the rescue of the concept of myth as
thought of by Lévi-Strauss, that is, as structure that passes through music,
that we can rescue some of the playful in this thinking about Brazil.
KEYWORDS: origin, discovery, repetition, identity, creation
*
Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, pesquisa-
dora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Programa de Pós-Graduação em Psico-
logia Clínica da PUC-SP, doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da USP, pós-
doutorado na PUCSP, autora dos livros “Ensaios de Psicanálise e Semiótica” (Ed. Escuta) e “O
hiato convexo: literatura e psicanálise” (ed. Brasiliense). Diretora do curta-metragem “Dizem
que sou louco”.
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TEXTOS
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BRASIL: MELANCOLIA OU CRIAÇÃO?
A DESCOBERTA DA AMÉRICA
Marilena Chaui (2000)1, em importante ensaio publicado no Caderno Mais,
relata: “No dia 6 de janeiro de 1492, Fernando e Isabel entram em Granada e recebem
das mãos do califa as chaves da Alhambra. Fazem hastear o estandarte real e erguer o
crucifixo no mais alto parapeito.” De Barcelona, os embaixadores genoveses enviam
uma carta de louvor às majestades católicas: “Não é indigno nem sem razão que vos
asseveramos, reis grandíssimos, que lemos o que predisse o abade Joaquim Calabrês,
que a restauração da Arca de Sião seria feita pela Espanha” (apud Chauí, op.cit.).
De fato, o abade Joaquim di Fiori, no séc. XII, afirmara que o Reino de Deus na
Terra, a era do Espírito Santo, começaria com a vitória de Cristo contra o Anticristo,
identificado por ele como Saladino, que acabara de invadir a Espanha no mesmo mo-
mento em que Jerusalém caía nas mãos dos árabes. Assim, os embaixadores saúdam
menos a expulsão dos mouros e mais o primeiro sinal do milênio, do tempo do fim do
tempo, aberto pela vitória de Castela.
No dia 3 de agosto desse mesmo ano, Colombo parte de Palos. O relato da
primeira viagem se abre com a exposição de motivos: os reis o enviaram ao Oriente
pelo Ocidente para “combater a seita de Maomé e todas as idolatrias e heresias” e para,
nas regiões da Índia e da China, ver príncipes, povos e a “disposição deles” para que
encontrasse meios de convertê-los “à nossa fé”.
É com o abade calabrês Joaquim de Fiori que surge a imagem da apoteose
terrena dos Mil Anos e a idéia de que a história é a operação da Trindade no Tempo, na
qual uma última e decisiva revelação-iluminação está reservada para a Sexta Era e
para o Tempo do Fim: a plenitude coincidirá com a plenitude do Espírito ou do saber.
A história, nessa concepção, é o desenvolvimento temporal do aumento do
saber, cuja plenitude coincide com o tempo do fim, quando será aberto “o livro dos
segredos do mundo”. É também orgânica: “a estrutura do tempo, simbolizado pela
árvore de Jessé, significa que o tempo não é ciclo perpétuo de tribulações, não é ago-
nia, nem afastamento do absoluto, mas arbusto florescente onde frutifica a semente
divina da verdade efetuando-se como eternidade temporal” (Chaui, op.cit.).
É central em todo o pensamento de di Fiori a idéia de que haverá ainda uma
fase final da história, um tempo abençoado ainda por vir. O apogeu da história, preen-
1
Texto publicado também neste número da Revista.
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TEXTOS
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BRASIL: MELANCOLIA OU CRIAÇÃO?
a gastar a renda que poderiam obter das Índias na conquista de Jerusalém...” Las Casas
deixou uma imagem célebre de Colombo, em que situa bem sua obsessão pelas Cruza-
das no contexto de sua profunda religiosidade: “Quando lhe traziam ouro ou objetos
preciosos, ele entrava em seu oratório, ajoelhava-se como as circunstâncias exigiam, e
dizia: “Agradecemos Nosso Senhor que nos tornou dignos de descobrir tantos bens.”
A religiosidade de Colombo é arcaica para a época, ou seja, nada moderna.
Para Todorov, é um traço da mentalidade medieval de Colombo, que faz com que ele
descubra a América e inaugure a era moderna.
Para Colombo, descobrir é uma ação intransitiva: “O que quero é ver e desco-
brir o máximo que puder”.
Todorov aponta que o importante em Colombo é a força da crença em si, pois
ele acredita também em sereias, cíclopes, amazonas e homens com caudas. E até en-
contra tais seres....
A crença mais surpreendente em Colombo é de origem cristã: refere-se ao Pa-
raíso Terrestre. Ele leu, no Imago Mundo de Pierre d’Ailly, que o Paraíso Terrestre
devia estar localizado numa região temperada, além do Equador. Este tema se trans-
forma em obsessão. Na terceira viagem, Colombo chegou mais perto do Equador.
Achou que haveria uma irregularidade na forma redonda da terra: “Descobri que o
mundo não era redondo da maneira como é escrito, mas da forma de uma pera que
seria toda bem redonda, exceto no local onde se encontra a haste, que é o ponto mais
elevado; ou então como uma bola bem redonda, sobre a qual, em um certo ponto,
estaria algo como uma teta de mulher e a parte deste mamilo fosse a mais elevada e a
mais próxima do céu, e situada sob a linha equinocial, neste mar Oceano, no fim do
Oriente” (Carta aos Reis, 31. 8. 1498). Um mamilo sobre uma pera! O Paraíso terres-
tre estava aí!
Colombo não se preocupa em entender melhor as palavras que dirigem a ele,
pois já sabe que encontrará cíclopes, homens com cauda e amazonas. Ele vê que as
“sereias” não são, como se disse, belas mulheres, no entanto, em vez de concluir pela
inexistência das sereias, troca um preconceito por outro e corrige: as sereias não são
tão belas quanto se pensa.
Colombo era mais perspicaz quando observava a natureza que quando tentava
compreender os indígenas. Quando não estava navegando, ele apenas procurava con-
firmações para verdades já conhecidas, ou seja, tomava o desejo por realidade.
Colombo não descobriu a América, apenas a encontrou onde “sabia” que esta-
ria. Como bem observa Todorov, porém, a interpretação “finalista” não é obrigatoria-
mente menos eficaz do que a interpretação empirista: os outros navegadores não ousa-
vam empreender a viagem de Colombo, porque não tinham a sua certeza.
Mas Colombo não tem nada de científico nem nada de “moderno”. Suas inter-
pretações se baseiam na pré-ciência e na autoridade. Sua admiração intransitiva da
Natureza, porém, é mais próxima de nós.
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TEXTOS
Todorov faz uma distinção entre os sinais da natureza – que são associações
estáveis entre duas entidades – e os sinais humanos, as palavras da língua, que não
unem diretamente um som a uma outra coisa. Nestas, há necessidade da mediação do
sentido, que é uma realidade intersubjetiva. Os nomes próprios se assemelham aos
indícios naturais. E parece que Colombo só nota os nomes próprios, haja vista as
inúmeras vezes em que mudou seu próprio nome. Colombo, assim como muitos de
seus contemporâneos, acredita, portanto, que os nomes, ou, pelo menos, os de pessoas
excepcionais, devem ser a imagem de seu ser. E ele tinha conservado em si mesmo
dois traços dignos de figurar até em seu nome: o evangelizador (Cristovan) e o coloni-
zador (Cólon). Esta atenção excessiva para com o próprio nome encontra um prolon-
gamento natural em sua atividade de nominador, durante as viagens. Colombo apaixo-
na-se pela escolha dos nomes do mundo virgem que está vendo; os nomes devem ser
motivados. Sabe que as ilhas já têm nome, mas as palavras dos outros não lhe interes-
sam. Quer rebatizar os lugares em função do lugar que ocupam em sua descoberta,
dar-lhes nomes justos. A nomeação, além disso, equivale a tomar posse. O primeiro
gesto de Colombo em contato com as terras recentemente descobertas (conseqüente-
mente, o primeiro contato entre a Europa e o que será a América) é uma espécie de ato
de nominação de grande alcance: é uma declaração, segundo a qual as terras passam a
fazer parte do reino da Espanha. Todorov observa que os nomes próprios constituem
um setor muito particular do vocabulário: desprovidos de sentido, servem somente
para denotar, mas não servem diretamente para a comunicação humana: dirigem-se à
natureza (o referente), não aos homens. São, como os índices, associações diretas
entre seqüências sonoras e segmentos do mundo. A parte da comunicação humana que
prende a atenção de Colombo é, pois, precisamente o setor da linguagem que serve
unicamente, pelo menos num primeiro momento, para designar a natureza.
Colombo não se interessa pelo resto do vocabulário e revela sempre sua con-
cepção ingênua da linguagem, já que sempre vê os nomes confundidos às coisas: toda
a dimensão de intersubjetividade, do valor recíproco das palavras (por oposição à sua
capacidade denotativa), do caráter humano, e portanto arbitrário, dos signos, escapa-
lhe. Comporta-se como se o espanhol fosse o estado natural das coisas.
Diante de uma língua estrangeira, só há dois comportamentos possíveis e com-
plementares: reconhecer que é uma língua e se recusar a aceitar que seja diferente ou,
então, reconhecer a diferença e se recusar a admitir que seja uma língua... Os índios
que ele encontra logo no início, a 12 de outubro de 1492, provocam uma reação do
segundo tipo: “para que aprendam a falar” (estes termos chocaram tanto os vários
tradutores franceses de Colombo que todos corrigiram: “para que aprendam nossa
língua). Mais tarde, consegue admitir que eles têm uma língua, mas não chega a con-
ceber a diferença e continua a escutar palavras familiares em sua língua, falando com
eles como se devessem compreendê-lo. Las Casas afirma, nas margens do diário de
42
BRASIL: MELANCOLIA OU CRIAÇÃO?
Colombo: “Estavam todos no escuro, pois não compreendiam o que os índios dizi-
am”. Isto não chega a ser chocante nem surpreendente, ao contrário, o que choca e
surpreende é o fato de Colombo agir o tempo todo como se entendesse o que lhe
dizem.
A DESCOBERTA DO BRASIL
Também Portugal tem um mito de origem: o Milagre de Ourique. A aparição
de Cristo a Afonso Henriques, às vésperas da batalha de 1139, foi um “evento”
construído aos poucos, desde o séc. XV, tomando sua forma final e importância no
séc. XVII. Cristo, ao anunciar a vitória dos portugueses contra os “hereges” mouros,
também garantira a conservação do reino português como povo escolhido, em substi-
tuição aos pecadores judeus. Como prova dessa eleição divina, o reino de Portugal
adotou as chagas de Cristo (representando a cruz que aparecera no céu de Ourique) no
seu brasão e em sua bandeira. O mito de Ourique colocava em evidência que a “mis-
são universal dos portugueses” estava anunciada desde a fundação do reino. Vieira
retoma o mito, afirmando que esse destino figurado desde o início seria o Quinto
Império e a redenção do mundo, justificando (e provando) a necessidade da separação
de Castela e de se continuar a empresa colonial (apud Lima, Luís Filipe S., 2000).
Entre 1647 e 1666, o Padre Vieira escreve “História do Futuro”, que será con-
siderada como “herética e judaizante” (apud Chauí, 2000) pelo tribunal da Inquisição,
pois “promete o reino de Deus nesta vida e muito cedo”, como os judeus. A “História
do Futuro”, bem como o livro “Esperanças de Portugal” e “Chave dos Profetas”, ins-
piram-se em Daniel, no capítulo 18 de Isaías, nas “Trovas de Bandarra” (em que o
encoberto D. Sebastião será o Imperador dos Últimos Dias, vencedor das primeiras
batalhas contra o Anticristo) e no milenarismo trinitário de Joaquim di Fiori. Segun-
do Vieira, Isaías teria profetizado não só a América, mas, pela quantidade de detalhes,
o próprio Brasil.
Ou seja, a descoberta do Brasil, assim como a da América, é envolta em pro-
funda religiosidade. Carmen Backes historia a questão, apresentando a polêmica entre
a tese de casualidade e a tese da causalidade. O Brasil já teria sido descoberto antes,
tendo sido intencional o desembarque de Pedro Álvares Cabral em nossas terras, ou
teria sido mero acaso. Indaga-se Carmen Backes: “que diferença radical faria hoje,
para nós, que a chegada de Cabral em terras brasileiras tivesse se dado por acaso, ou
de forma intencional? Ou será que ainda nos preocuparíamos com o desejo que estaria
na origem?”
Mas, de qualquer modo, nas várias leituras que se faz da descoberta do Brasil,
é enfatizado o aspecto mercantilista, ou seja, foi a intensificação das atividades comer-
cias que impulsionou Portugal em direção ao Brasil. Pouco se fala da religiosidade
que presidiu essas descobertas. Octávio de Souza (1994), a partir de Sérgio Buarque
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TEXTOS
de Holanda, mostra como o mito do Paraíso Terrestre “perde a perspectiva quase que
retórica que possuía na Idade Média e ganha valor de projeto orientador das ações
humanas’. Isso implica uma mistura de concepções modernas e medievais, e é esse
“amálgama de passado e futuro que fornece o material de que as utopias são
construídas”.
NOSSA ORIGEM PORTUGUESA
Paulo Prado (1997) assim começa seu precioso livro, “Retrato de Brasil”: “Numa
terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a
revelaram ao mundo e a povoaram.” Para o autor, há dois impulsos que dominam a
psicologia da descoberta: a ambição do ouro e a sensualidade livre que a Renascença
ressuscitara.
Gilberto Freyre inicia seu grandioso livro, “Casa Grande & Senzala” (1992),
com um rasgado elogio aos portugueses. Já no primeiro parágrafo lemos: “Quando em
1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira já foi depois de um
século inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; demonstrada na Índia e na
África sua aptidão para a vida tropical. “. Ocorre, então, uma mudança de rumo na
colonização portuguesa, de mercantil para colonial, pois o Brasil oferecia condições
mais estáveis. A união do português com a mulher índia foi incorporada à cultura
econômica e social do invasor.
Freyre fala em exclusivismo religioso e também em “espírito político e de rea-
lismo econômico e jurídico que aqui como em Portugal foi desde o primeiro século
elemento decisivo de formação nacional...”, o que depois foi bastante discutido. A
explicação para o sucesso do português no Brasil é explicado, segundo Freyre, pelo
seu passado étnico, “de povo indefinido entre a Europa e a África”: a influência africa-
na fervendo sob a européia e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, à
religião.... um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura
as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval;
tirando os ossos ao Cristianismo... Freyre cita Alexandre Herculano falando dos por-
tugueses: “População indecisa no meio dos dois bandos de contendores (nazarenos e
maometanos), meio cristã, meio sarracena, e que em ambos contava parentes, amigos,
simpatias de crenças ou de costumes”. Há uma indecisão étnica e cultural entre a
África e a Europa, bicontinentalidade que Freyre compara à bissexualidade no indiví-
duo. Em Portugal não há um tipo determinado, e é essa imprecisão que permite ao
português reunir dentro de si tantos contrastes “impossíveis de se ajustarem em um
perfil mais definidamente gótico e europeu”.
Convivem no português as duas culturas, a européia e a africana, a católica e a
maometana. Além disso, na formação da nação portuguesa há a presença semita, “gente
de uma mobilidade, de uma plasticidade, de uma adaptabilidade tanto social como
física que facilmente se surpreendem no português navegador e cosmopolita do sec.
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BRASIL: MELANCOLIA OU CRIAÇÃO?
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TEXTOS
Buarque, nossa “bagunça” não é de hoje: “os elementos anárquicos sempre frutifica-
ram aqui...”
Sérgio Buarque de Holanda, porém, é radical, pois não acredita que uma volta
à tradição seja um acerto. Aqueles que propõem uma volta à tradição pensam apenas
que há uma ausência de uma única ordem que lhes parece eficaz: “a hierarquia que
exaltam é que precisa de tal anarquia para se justificar e ganhar prestígio”. E radicaliza:
“As épocas realmente vivas nunca foram tradicionalistas por deliberação.”
O fato é que a hierarquia nunca se impôs aqui.
CONCLUSÃO
É interessante observar como as leituras psicanalíticas desconsideram as leitu-
ras que exaltam nossa confusa origem – como se houvesse algo melancolizante na
leitura de um destino de impossibilidade de circulação nos lugares de colonizado.
Melancólica a psicanálise ou melancólico nosso destino? Para Melman, um destino de
impossibilidade de sair do lugar de colonizado. Para Contardo Calligaris, a repetição
dos lugares de colonizador e colonizado. Nosso destino, porém, é de realizar os mil
anos de felicidade. Nossa origem tem a ver com portugueses ligados à África e aos
mouros... Por que um destino de impossibilidade? O que fica em questão nisso tudo é
como a psicanálise vem lidando com a questão da repetição, com tiché e ananké.
Lacan traduziu tique por “encontro do real” (Lacan, 1985). Afirma: “O real está para
além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos ve-
mos comandados pelo princípio do prazer. O real é o que vige sempre por trás do
autômaton... O que se repete é sempre algo que se produz como por acaso”. Em Lacan,
a repetição demanda o novo. É a diversidade mais radical que constitui a repetição em
si mesma. Jerusalinsky (1999) apontou quanto a visão de um destino intransponível
vai contra qualquer concepção de ato analítico e apontou para uma impossibilidade
européia de pensar sobre o nosso lugar, fora do já conhecido. Não muito diferente do
que Todorov aponta em Colombo.
A necessidade do mito é sempre uma busca de dar conta desse encontro com
um real inominável. Lévi-Strauss, em seu ensaio “A estrutura dos mitos”, afirma que
o sentido do mito é dado pela maneira pela qual os elementos enumerados por uma
análise estrutural são combinados, sendo que a linguagem no mito manifesta proprie-
dades específicas, propriedades estas que só podem ser pesquisadas acima do nível
habitual de expressão lingüística. Em suas análises, Lévi-Strauss sempre chega a dois
aspectos da construção mítica: as seqüências e os esquemas. Seqüências seriam o con-
teúdo aparente do mito, os acontecimentos que se sucedem na ordem cronológica. Os
esquemas seriam constituídos pelas seqüências organizadas em planos de desigual
profundidade, superpostas e simultâneas: “assim como uma melodia escrita para vári-
as vozes deve respeitar um duplo determinismo: o de sua própria linha, que é horizon-
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BRASIL: MELANCOLIA OU CRIAÇÃO?
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