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campos cruzados

questões histórico-sociais &


antropológicas em debate
Universidade Federal do Maranhão
Prof. Dr. Natalino Salgado Filho
Reitor
Prof. Dr. Marcos Fábio Belo Matos
Vice-Reitor
Diretor
Prof. Dr. Sanatiel de Jesus Pereira

Conselho Editorial
Prof. Dr. Arkley Marques Bandeira
Prof. Dr. Luís Henrique Serra
Prof. Dr. Elídio Armando Exposto Guarçoni
Prof. Dr. André da Silva Freires
Prof. Dr. Jadir Machado Lessa
Profª. Dra. Diana Rocha da Silva

Revisão:
Jessilene Gonçalves Mota

Projeto gráfico:
Ronyere Ferreira
joabe rocha
silvan s. mendes
(organizadores)

campos cruzados
questões histórico-sociais &
antropológicas em debate

São Luís

2020
editora cancioneiro

Editora chefe
Eva P. Bueno - St. Mary’s University, Texas - EUA

Conselho editorial
Antonio Ozaí da Silva - Universidade Estadual de Maringá, Brasil
Diego Buffa - Universidad Nacional de La Plata, Argentina
Evaristo Falcão - Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil
Francisca Verônica Cavalcante - Universidade Federal do Piauí, Brasil
Giselle Menezes Mendes Cintado - Université Paris-Est Créteil, França
Héctor Fernández L’Hoeste - Georgia State University, EUA
Henrique Buarque de Gusmão - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Jakson dos Santos Ribeiro - Universidade Estadual do Maranhão, Brasil
Johny Santana de Araújo - Universidade Federal do Piauí, Brasil
Josenildo de Jesus Pereira - Universidade Federal do Maranhão, Brasil
Kátia Rodrigues Paranhos - Universidade Federal de Uberlândia, Brasil
Maria Simone Euclides - Universidade Federal de Viçosa, Brasil
Mario João Figueiredo, Sec. de Estado do Planejamento do Paraná, Brasil
Nancy Yohana Correa Serna - Universidad Nacional de Colombia, Colômbia
Sandra Melo - Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil
Silvia Coneglian - Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Silvia Glocer - Universidade de Buenos Aires, Argentina
Vincent Spina - Clarion University of Pennsylvania, EUA

Projeto gráfico e diagramação


Ronyere Ferreira

Capa
Alexandre Mesquita

Revisão
Jessilene Gonçalves Mota

Dados internacionais de Catalogação na Publicação


____________________________________________________________________
Campos cruzados: questões histórico-sociais & antropológicas em debate
/ Joabe Rocha, Silvan S. Mendes (Organizadores). — Teresina:
Cancioneiro; São Luís: EDUFMA, 2020.
312 p.: il.

ISBN - Cancioneiro: 978-65-89065-06-7 (impresso)


ISBN - Cancioneiro: 978-65-89065-07-4 (digital)
ISBN- EDUFMA: 978-65-86619-54-6 (impresso)
ISBN EDUFMA: 978-65-86619-53-9 (digital)

1. História – Aspectos sociais. 2. História – Aspectos antropológicos.


3. Sociologia. 4. Antropologia. I. Rocha, Joabe. II. Mendes, Silvan S.
CDD 907:301
CDU 930.2:3
_______________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Marcia Cristina da Cruz Pereira - CRB 13/418
O saber deve ser como um rio, cujas águas doces,
grossas, copiosas, transbordem do indivíduo, e se espraiem,
estancando a sede dos outros. Sem um fim social, o saber
será a maior das futilidades.
Gilberto Freyre
Sumário

Apresentação............................................................................................ 11
Márcio Douglas de Carvalho e Silva

Prefácio: Métier, Clio & Ciências Sociais: por uma


interdisciplinaridade possível e necessária.............................................. 13
Juarez Lopes de Carvalho Filho

Parte i: Educação, questões raciais e políticas públicas

“Educação do campo é direito e não esmola”: movimentos sociais e a


luta pela Educação do Campo.................................................................. 25
Aldina da Silva Melo; Iara Souza Silva

Educação & cor: um ensaio acerca da problemática do racismo no


sistema educacional brasileiro................................................................. 45
Cirila Regina Ferreira Serra

O protagonismo pertence aos brancos? O papel do negro na crítica de


Muhammad Ali e o Jesus diferente de Ariano Suassuna.......................... 59
Joabe Rocha de Almeida

Herdeiros do amanhã e condenados do ontem:


olhares cruzados e experiências compartilhadas de negros
africanos e brasileiros em São Luís do Maranhão................................... 79
Osmilde Augusto Miranda

Conflitos de poder: políticas públicas para a saúde indígena................. 101


Welitânia de Oliveira Rocha
Parte ii: Memória, festas, religiosidades e sociabilidades

“Morada dos mortos”: a construção dos cemitérios como


lugar de memória...................................................................................... 117
Aldeanne Silva de Sousa; Jakson dos Santos Ribeiro

Os botequins como forma de resistência aos fast foods: narrativas


orais de consumidores de Parnaíba-PI.................................................... 133
Ériton Luís Véras Lima

Uma religião afro-brasileira: algumas notas sobre questões


geracionais e entidades no Terecô............................................................ 153
Fladney Francisco da Silva Freire

Cosmovisão em jogo: a magia do futebol em Lourenço Marques.......... 165


Jandson Jouberth Maciel Rodrigues

A festa do mastro como um fato social total: uma etnografia da festa


de levantamento do mastro de São Bernardo.......................................... 183
Keliane da Silva Viana

Entre mulheres & bebidas: Bar da Lili e o prazer noturno no bairro


Refinaria (1970 a 1980)............................................................................ 201
Samara Fernanda da Silva Felismino; Rosane Apolinário Barbosa

Abolição festejada: o “Brazil Livre” e a comemoração do 13 de maio


em São Luís............................................................................................... 219
Silvan Sousa Mendes

Parte iii: Representações, cultura e narrativas

Homem, gibão & crina: fragmentos de histórias contadas e ouvidas de


vaqueiros no sertão Caxiense (1960-1980).............................................. 237
Auriele Pereira dos Reis; Benilton Torres de Lacerda
Da indústria cultural ao desaparecimento da infância: erotismo e
entretenimento no mercado cultural para crianças (1980-1990)........... 253
Diêgo Stéfano Araujo Souza

Narrativas de vida: a biografia de Marcelo Thadeu de


Assumpção (1950-1970)........................................................................... 269
Marcus André Chaves Soares da Silva

Trópico & homem: O mundo que o português criou de


Gilberto Freyre (1940).............................................................................. 291
Messias Araujo Cardozo

Sobre os organizadores e colaboradores.................................................. 307


Apresentação

A cada leitura que fazemos, permitimo-nos ser tocados por ideias, con-
ceitos e abordagens que, de algum modo, influenciam a nossa maneira de pen-
sar e refletir acerca dos acontecimentos e das manifestações humanas nos seus
mais variados sentidos. À medida que o homem age e expressa-se no tempo-
-espaço, os mais diversos ramos do conhecimento elaboram teorias e metodo-
logias para analisar os feitos e as características que são particulares à forma de
agir de cada indivíduo ou sociedade.
Neste livro, o leitor é agraciado com a reunião de textos que entrecruzam
campos diversos, conduzindo-o ao contato de lugares, pessoas e temporalida-
des múltiplas, através do uso de teorias, métodos e metodologias comuns às
pesquisas das áreas de estudos das ciências humanas e sociais. Sejam através
das lentes da história, do olhar da antropologia ou da sociologia, as formas de
expressões humanas, aqui contidas, revelam também possibilidades de pesqui-
sas através de um diálogo profícuo que, no seu conjunto, formam um caleidos-
cópio, atravessando fronteiras, proporcionando-nos histórias e experiências
em diversos espaços e contextos.
Talvez uma das proezas deste livro seja proporcionar uma leitura de tex-
tos que contemplam muitos temas e objetos bem próximos da nossa realidade,
fazendo-nos, assim, vivenciar, através da leitura escrita, muitas de nossas ex-
periências pessoais. É um livro que satisfaz aos interesses de um público leitor
variado, que, como não podia deixar de ser, é de autoria de pesquisadores com
formação diversa.
Usando uma linguagem que é própria da área em que é especialista, cada
autor(a) revela o seu compromisso de investigar e, acima de tudo, elaborar
conclusões que são significativas para compreendermos não somente o tema
analisado, mas nos situarmos no contexto mais amplo em que estamos inseri-
dos. Por mais que pareçam ser pesquisas localizadas, com foco em cidades do
interior do Brasil, são, na verdade, reflexões que, no sentido macro, revelam as
nossas raízes, as nossas influências, o nosso modo de pensar e agir e as formas
como nossa sociedade está constantemente transformando-se.
Encontramos o ser humano – em movimento – em todas as linhas deste
livro: está nas expressões memorialísticas dos cemitérios, nas práticas culturais
dos vaqueiros caxienses, nos festejos de Terecô em Bacabal, nas celebrações
católicas em São Bernardo, nos espaços de alimentação e lazer em Parnaíba, no
erotismo televisivo, nas narrativas acerca do bar da Lili e nos clubes de futebol
de Maputo. Está presente também em temas de maior responsabilidade polí-
tico-social como: na luta por direitos, no acesso à educação de qualidade, na
oferta de melhores condições de saúde aos indígenas e nas reflexões acerca da
situação da população negra no Brasil. Entrar em contato com esses sujeitos é
conversar com eles, com as suas manifestações e expressões cotidianas; é dialo-
gar com o nosso tempo.
Este livro chega ao público em um momento de dificuldade quase ge-
neralizada para todos os brasileiros e, de modo significativo, para estudantes e
pesquisadores. Já afetados pelos problemas políticos e institucionais que o país
atravessa, a pandemia que nos assola paralisou as aulas em todos os níveis da
educação, impactando muitas pesquisas em curso. Com todas as dificuldades
advindas da realidade posta e do negacionismo explícito em alguns setores da
sociedade, torna-se cada vez mais necessário reforçar e divulgar a importância
da pesquisa e da ciência para a humanidade.
Levar o resultado das investigações que compõem esta coletânea a pú-
blico é também um ato de resistência e responsabilidade social. Em uma época
obscura em que a ciência e, em especial, as ciências humanas e sociais são me-
nosprezadas, as universidades públicas sofrem com o descaso governamental,
e as publicações de livros estão ameaçadas com taxação, tornando essa valiosa
ferramenta ainda mais restrita, publicar uma obra como esta é mostrar que
estamos ativos e lutando para que o conhecimento continue sendo produzido e
colocado ao alcance do público leitor.

Márcio Douglas de Carvalho e Silva


Teresina, agosto de 2020.

12
prefácio
Métier, Clio & Ciências Sociais:
por uma interdisciplinaridade possível e
necessária

Muito louvável esse investimento que um grupo de jovens pesquisado-


res de diferentes Programas de Pós-graduação em História e Ciências Sociais,
em processo de formação do habitus e do métier de historiadores, sociólogos
e antropólogos, e que agora se materializa no livro que o leitor tem em mãos:
Campos Cruzados: questões histórico-sociais e antropológicas em debate.
Pelo intitulado do livro compreende-se que o projeto é um convite ao di-
álogo permanente entre a Ciência Histórica e as Ciências Sociais, notadamente
da História com a Sociologia e a Antropologia. Essa questão não é recente, ela
é histórica e envolve ao longo da história das disciplinas uma gama de figuras
emblemáticas nos dois campos disciplinares.
Podemos situar o problema no final do século XIX e início do século
XX, durante o processo de emergência do campo histórico e sua instituciona-
lização como saber autônomo e disciplinar – ciência e profissão –, ao mesmo
tempo em que a sociologia, sob a égide de Émile Durkheim, empreendia um
grande projeto de sua autonomização no interior das Ciências Sociais. Esse
diálogo é constituído de disputas e colaboração, ou seja, de distanciamento e
aproximação, com empréstimos de ambas as partes, mas cada uma guardando
suas fronteiras. Não se trata de reconstituir aqui esse debate, mas identificar as
principais questões que o envolvem.
A História e a Sociologia se elevaram ao status de disciplinas científicas
e acadêmicas, rejeitando, cada uma à sua maneira, a “reificação” do mundo
social. Desde meados do século XIX, a História se constituiu em domínio au-
tônomo de conhecimento, mostrando que as “coisas” que nos rodeiam – cons-
truções, instituições, objetos, arquivos etc. – eram traços inertes das atividades
do passado.
O método histórico, cujas grandes datam desse período, repousa sobre
o exame crítico desses traços. Ele tem por objetivo encontrar os indivíduos
em “carne e osso” por trás desses objetos inanimados. A Sociologia, por sua
vez, surgida no final do século XIX, desenvolveu a crítica de outra forma de
“reificação”, inscrita na linguagem e discursos, que consiste em considerar as
entidades coletivas – empresa, Estado, Igreja, escola, dentre outras instituições
– como se elas tratassem de pessoas reais. A tarefa da sociologia é desconstruir,
desnaturalizando essas entidades, a fim de apreender objetivamente os agentes
sociais e as relações que estabelecem entre si e que chamamos de laços sociais
(NOIRIEL, 2006)1.
Recuperar as grandes conquistas da ciência histórica nos faz encontrar
os pontos de interlocução entre ela e a ciência social. Desse modo, segundo Ja-
cques Le Goff, uma das grandes conquistas da ciência histórica foi a elaboração
de uma definição que permitiu à história ocupar seu espaço no conjunto das
Ciências Humanas e Sociais, desde o início do século XX. A definição de Fustel
de Coulanges (1830-1889), professor de Durkheim, foi acolhida e completada
por Marc Bloch na primeira metade do século XX: “A história é a ciência dos
homens no tempo”.
Os três termos, segundo Jacques Le Goff (2002), são igualmente impor-
tantes e sua força está na interconexão. O objeto da História são os homens
vivendo e agindo com todo o seu ser (corpo, sensibilidade, mentalidade...), em
todos os domínios (vida cotidiana, vida material, técnicas, economia, socie-
dade, crença, ideias, política...), segundo suas características individuais, mas
também e, sobretudo, coletivas (daí a importância do estudo das estruturas
sociais e do seu funcionamento) e, enfim, o tempo. Le Goff ressalta, dentro
dessa perspectiva levada em conta, a importância para o historiador de atentar
para a dinâmica das sociedades e da compreensão da história como ciência do
movimento e da mudança2.
Um dos pontos cruciais do debate entre História e Ciências Sociais, que
terá grande influência na formação de Marc Bloch e Lucien Febvre, consequen-
temente, na formação da École des Annales, foi o debate sobre questões de
1 Ver: NOIRIEL, G. Introduction à la socio-histoire. Paris: La découverte, 2006.
2 LE GOFF, J. L’histoire In L’histoire, la sociologie et l’anthropologie. Universités de tous les
savoirs. Vol. 2. Paris: Odile Jacob, 2002, p. 64-65.

14
método e a cientificidade da história, ocorrido no início do século XX entre os
durkheimianos, principalmente François Simiand e os historiadores Charles-
-Victor Langlois e Charles Seignobos.
Em 1903, o economista e sociólogo durkheimano François Simiand,
colaborador da revista Année sociologique, fundada por Durkheim em 1898,
publica, na Revue de synthèse historique, o artigo Méthode historique et sciences
sociales, reeditado na revista Annales em 1960, no qual apresenta uma crítica
contundente sobre o discurso tradicional do método histórico e responde às
críticas do livro de Charles Seignobos, La méthode historique appliquée aux
sciences sociales (1901, livro responsável pela formação de uma grande geração
de historiadores na França), que recusava o status de ciência social à sociologia,
reservando esse caráter apenas à economia e à estatística.
No artigo Méthode historique et sciences sociales, Simiand situa a história
no interior das Ciências Sociais ou da ciência social, como ele mesmo dizia, da
qual nada pode separar-lhe quanto ao projeto e aos métodos. Para ele, “a ciên-
cia social, em larga medida onde ela recorre para enriquecer sua experiência no
conhecimento do passado, trabalha com a mesma matéria da história”3.
O texto de Simiand, como relembra Jacques Revel (2006; 1989), é ape-
nas uma peça no grande debate entre historiadores e sociólogos e foi ocasião
de grandes comentários de historiadores (REVEL, 2006; 1989; BURGUIÈRE,
2006; LE GOFF, 2002; 1988). Uma das grandes análises desse debate foi apre-
sentada por Revel (1989; 2006), principalmente no artigo publicado em 2007,
Histoire et science sociale: lecture d’un débat français autor de 1900, na revista
Mil neuf cents. Revue d’histoire des intelectuels.
Como observa esse autor, a concepção da história contra a qual Simiand
se posiciona é denominada “historicizante” ou comumente chamada de “po-
sitivista”. Para Simiand, as técnicas críticas da História não definem de forma
nenhuma uma ciência positiva, limitando-se a levar a cabo um “processo do
conhecimento”; o empirismo reivindicado pelos historiadores repousa, de fato,
sobre escolhas que nunca são explicitadas. Desse modo, para Simiand, “a cons-
tituição de uma verdadeira ciência social passa por novas exigências conceitu-
ais, e em primeiro lugar, pela escolha de hipóteses que devem ser verificadas”.
Nessa perspectiva, o fato isolado não significa nada. Não é dado. “É
construído de forma a integrar-se em séries que permitirão determinar regu-
laridades e sistemas de relações”4. Inspirado na perspectiva de Bacon, Simiand
3 SIMIAND, F. Méthode historique et science sociale. In: Annales. Economies, sociétés, civil-
isations.15 année, N. 1, 1960, p 84.
4 REVEL, J. Histoire et sciences sociales: le paradigme des Annales In Un parcours critique:

15
denuncia três ídolos para os historiadores: o “ídolo político”, ou seja, o estudo
dominante dos fatos políticos, guerras, aos quais dão grande importância; o
“ídolo individual”, que é pensar a História como uma história dos indivíduos
que influencia as pesquisas em torno de um homem e não de uma instituição
ou fenômeno social; e o “ídolo cronológico”, que já se trata do costume de per-
der-se nos estudos de origem. Como lembra Le Goff, destronar a história po-
lítica “foi o objetivo número um da École des Annales e da ‘nouvelle histoire’”5.
Esse artigo de Simiand é considerado como um manifesto programático
que propõe repensar a maneira de fazer a investigação nas Ciências Sociais. De
todo modo, nos anos que seguem, as reivindicações de Simiand terão grande
recepção no projeto da École des Annales, fundada por Marc Bloch e Lucien
Fevbre, e atestado por vários historiadores. A revista Annales d’histoire écono-
mique et sociale, criada em 1929, deve sua performance à Revue de Synthèse
historique, dirigida por Henri Berr, e à L’Année sociologique que encarnaram no
início do século um esforço de reflexão epistemológica e de diálogo no seio das
Ciências Humanas, das quais Marc Bloch e Lucien Febvre reivindicam herança.
Da revista de Berr, eles se apropriam da ideia das pesquisas coletivas
como tradução experimental do projeto científico e interdisciplinar que eles
entendem promover. Da revista de Durkheim, ele retém a função estratégi-
ca das recensões de obras que dão oportunidade de desenvolver suas próprias
concepções confrontando-se com aquilo que se publica. Eles mesmos assumem
uma grande parte dessa tarefa, como Durkheim o fez para L’Année sociologique6.
Esta relação entre História e Sociologia não é presente somente no con-
texto francês. Na Alemanha, Max Weber consagra um vasto e importante lugar
à ciência histórica presente em toda sua obra, também caracterizada como uma
sociologia histórica. Homem de grande erudição, jurista, historiador, econo-
mista, sua obra se afirma tardiamente como sociologia. Ele descobre no ca-
minho a necessidade de uma sociologia geral, ao mesmo tempo descritiva e
sistemática. Suas obras mais famosas, A ética protestante e o “espírito” do capita-
lismo, bem como Economia e Sociedade na Antiguidade, decorrem da história
na medida em que elas não tratam do capitalismo em geral, mas sim a cada
uma de suas variantes, o capitalismo moderno de empresa no primeiro caso, o

douze exercices d’histoire sociale. Paris: Galaade Édition, 2006, p. 34-35; REVEL, J. História
e ciências sociais: o paradigma des Annales In Invenção da sociedade. Lisboa: Difel, 1989,
p. 20.
5 Ver: LE GOFF, J. L’histoire nouvelle In: La nouvelle histoire. Paris: Éd. Complexe, 1988.
6 Ver: BURGUIÈRE, A. L’École des Annales: une histoire intellectuelle. Paris: Odile Jacob,
2006.

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capitalismo na Antiguidade no outro caso.
Na Alemanha, Norbert Elias é mais um exemplo clássico de empreendi-
mento no diálogo bastante eficaz entre História e Sociologia. Sua teoria, tam-
bém classificada como uma sociologia histórica, inscreve-se na continuidade
da obra de Durkheim e Weber. Como estes últimos, Elias se volta para a Histó-
ria a fim de compreender a sociogênese do Estado contemporâneo. Questiona
o uso corrente de noções essencialistas tais como “nação”, “Estado”, “sociedade”
e “indivíduo”, como substantivos que agem ou pensam por si mesmos.
Esse vocabulário, segundo ele, ofusca o fato de que os indivíduos estão
sempre em relação uns com os outros. Ele retoma também, dos seus predeces-
sores, a ideia de que os laços sociais são relações de poder. Contudo, introduz
o conceito de “interdependência”, mostrando que é possível considerar o poder
como uma relação funcional entre indivíduos que ocupam uma posição domi-
nante ou outros que ocupam uma posição dominada; os primeiros não podem
existir sem os segundos e reciprocamente.
Assim é a relação de poder entre “patrões/empregados”, “pais/filhos”,
“governantes/governados”7. Cada uma dessas formas de domínio ele chama de
“configuração”, ilustrando-as com o jogo de cartas e xadrez. Numa perspectiva
próxima a de Durkheim, ele se interessa, ao longo de sua obra, pelo processo
de civilização da humanidade apreendido como um processo de longa duração.
Para Norbert Elias, a formação desse processo de civilização não se ex-
plica somente pelo desenvolvimento de meios repressivos monopolizados pelo
Estado. A sociologia elisiana consagra um espaço importante à psicologia. Nes-
se sentido, baseado em Freud, ele defende a ideia de que a personalidade do
indivíduo se forma à custa do recalque de suas impulsões. A sociogênese do
Estado nacional é completada pela psicogênese como desenvolvido na sua obra
A sociedade de Corte. Em Versailles, os cortesãos formam uma configuração
particular. O objetivo da competição que os opõe é obter os favores do rei. Isso
obriga a controlar os afetos, a linguagem e os comportamentos para apresentar-
-se em público. Esse constrangimento servirá de base para estabelecer as regras
da polidez e da sociabilidade que serão, por conseguinte, impostos às crianças
através da educação8. Esse processo ele chamará de “processo civilizador”9.

7 Ver: NOIRIEL, G. Introduction à la socio-histoire. Paris : La découverte, 2006.


8 Ver: ________. Introduction à la socio-histoire. Paris : La découverte, 2006.
9 Ver: ELIAS, Norbert. Processo civilizador: Uma história dos costumes. Norbert Elias; tra-
dução Ruy Jungman. revisão e a presentação, Renato Janine Ribeiro. v.1. 2. ed. – Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994; _______. Processo civilizador: Formação do Estado e Civili-
zação. Norbert Elias; tradução Ruy Jungman. revisão e apresentação, Renato Janine Ribeiro.

17
De volta à França, podemos citar Pierre Bourdieu, que entre os sociólo-
gos contemporâneos de renome internacional, lutou incessantemente reunin-
do o saber sociológico constituído desde o final do século XIX pela unidade
das Ciências Sociais. Recusando, como Durkheim e Mauss, a separação entre
Sociologia e Antropologia, ele consagra uma parte central da sua vasta obra à
história e à interdisciplinaridade. Seus diálogos com diversos historiadores, tais
como Braudel, Duby, Chartier, Charle, Darnton, E. P. Thompson, Hobsbawm,
Goody, Panofsky, Ginzburg, para citar apenas esses, estão registrados em seus
livros e em diversos colóquios.
É possível verificar esse empreendimento no grande instrumento de di-
vulgação de suas pesquisas e de seus colaboradores na revista fundada por ele
em 1975, Actes de la recherches en sciences sociales, que acolheu diversos artigos
de grandes historiadores. Como ilustração, dois números especiais em 1995/1-
2 (106-107) e 1995/3 (108) foram intitulados Histoire sociale des sciences so-
ciales. Assim observou também Hobsbawm (2004), seis dos nove artigos são
escritos por historiadores ou consagrados a objetos de história.
O historiador britânico advertia que apesar de sua gratidão a F. Brau-
del, que lhe acolheu na Maison des sciences de l’Homme, ele era muito crítico a
respeito dos intelectuais da École des Annales, pela falta de interesse de alguns
deles em empreender uma análise histórica dos conceitos utilizados na análise
do passado, quer dizer, para “o uso reflexivo da história”. Hobsbawm observa,
ainda, que a história para ele era uma ferramenta da crítica reflexiva, graças a
ela, pensadores tomam consciência da especificidade – ou da subjetividade –
do ponto de vista de todo observador da sociedade e de toda disciplina preten-
dendo ser uma “ciência social”. Nós abordamos nosso trabalho não enquanto
cérebro, mas enquanto homens e mulheres educados numa situação, em um
tipo de sociedade, em um determinado lugar do globo, em um determinado
momento da história10.
No livro Homo historicus: reflexões sobre a história, os historiadores e
as ciências sociais, Christophe Charle, historiador cuja influência da obra de
Bourdieu é muito marcante, propõe uma necessidade constante de cooperação
transdisciplinar entre as Ciências Humanas e Sociais. Ele retoma duas passa-
gens que resumem o projeto bourdieusiano. A primeira foi: “Posso dizer que
um dos meus combates mais constantes, sobretudo com a Actes de la recherche
v.1. 2. ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
10 HOBSBAWM, E. Sociologie critique et histoire sociale In BOUVERESSE, J. ROCHE,
D. LA liberté par la connaissance: Pierre Bourdieu (1930-2002). Paris: Odile Jacob, 2004, p.
282-284.

18
en sciences sociales, visa favorecer a emergência de uma ciência social unificada,
em que a História seria uma Sociologia histórica do passado e a Sociologia uma
História social do presente”11. E a segunda, explicita:

Trabalhei como um historiador por uma decisão metodológica prévia. Eu que-


ria romper com a imagem do sociólogo como revolucionário ou como policial.
Utilizei, assim, unicamente fontes escritas e públicas, ainda que frequentemente
o acesso a esse “público” não fosse fácil. [...] Minha maneira de proceder se
distingue, no entanto, do método dos historiadores. Creio que não se pode com-
preender o que se passa no campo universitário se não ressituamos num espaço
que se poderia chamar de campo do poder ou de espaço da classe dominante12.

Como observa Christophe Charle, o francês intelectual Bourdieu recusa


as barreiras disciplinares oficiais, o que implica combinar o método histórico
com a conceitualização sociológica, utilizando-se da visão dinâmica oriunda de
uma abordagem historicizada e relacional para corrigir esta última, que pode
levar ao anacronismo e ao imobilismo das estruturas13 (CHARLE, 2018, p. 80-81).
Essas orientações ou projetos de historiadores, sociólogos e antropólogos
clássicos e contemporâneos são verificados no volume aqui apresentado, o que
justifica as diferentes escalas de análises e as interlocuções esboçadas nos dezes-
seis capítulos do livro. Articulando temas como “memória fúnebre”, educação
e história dos movimentos sociais, educação, cor e racismo, a religião como
sistema social e simbólico em suas diferentes expressões, esporte e religião, por
exemplo, os autores mostram e justificam que esse conjunto de fenômenos que
podem ser classificados como “fatos sociais totais” só podem ser apreendidos
mobilizando diferentes perspectivas (história oral, narrativas de vida, nouvelle
histoire cultuerelle), sem as quais não é possível apreender relatos e memórias
das diferentes práticas e representações sociais e culturais.
Uma leitura atenta do presente volume permite identificar que somente
através do diálogo interdisciplinar é possível desvelar os jogos e disputas das
instituições de poder como a religião, o Estado, a política, a família, a escola e
seus diferentes dispositivos de dominação através da literatura, arte, esporte,

11 BOURDIEU, P. Sur les rapports entre la sociologie et l’histoire en allemagne et en France.


Actes de la recherches en sciences sociales, n. 160-107, p. 108-122, mars 1995, p. p. 111.
12 BOURDIEU, P. Les professeurs de l’Université de Paris à la veille de mai 1968. In CHAR-
LE, C. ; FERRÉ, R. (Orgs.) Le personnel de l’enseignementsupérieur en France aux XIXe-XXe
siècles.Paris: Éditionsdu CNRS, 1985, p. 177.
13 Ver: CHARLE, C. Homo históricus: reflexões sobre a história, os historiadores e as ciências
sociais.Rio de Janeiro, UFRGS Editora/FGV Editora, 2018.

19
dos meios de comunicação etc. Em outras palavras, as ciências históricas e so-
ciais (Sociologia, Antropologia, Sociologia histórica e Antropologia histórica)
são ferramentas para desconstruir e desnaturalizar os processos de constru-
ção histórica e social das estruturas de dominação legítima que nos impõem o
arbitrário cultural materializado nas oposições entre cultura erudita e cultura
popular, entre negros e brancos.
Oportuno e necessário é este presente trabalho que graças a esses pes-
quisadores chega às nossas mãos e que, sem dúvida, é uma grande contribuição
para as comunidades acadêmica e científica.

Juarez Lopes de Carvalho Filho


São Luís-MA, junho de 2020.

20
Parte i
Educação,
questões raciais
e políticas públicas
“Educação do campo é direito e não esmola”:
movimentos sociais e a luta pela Educação
do Campo

Aldina da Silva Melo


Iara Souza Silva

Não vou sair do campo


pra poder ir pra escola
Educação do Campo
é direito e não esmola.
(Gilvan Santos)

Novas geografias, conformadas em contextos pós-coloniais (AZEVEDO;


et. al., 2007), emergiram a partir das experiências dos movimentos sociais que
surgem entre as décadas de 1960 e 1990, período em que América Latina é ca-
racterizada por intensas lutas contra regimes ditatoriais e direitos sociais. Com
efeito, sobretudo a partir das últimas décadas do século XX, do Sul e do Norte
global, emergem não apenas novos movimentos sociais como também para-
digmas interpretativos originais que têm como objetos de análise esses movi-
mentos e as lutas desencadeadas por eles. Sujeitos outros, antes silenciados e es-
quecidos, passaram a organizar-se em movimentos coletivos de luta em prol do
direito à cidadania e contra as múltiplas formas de opressão. Esses movimentos
sociais também passaram a questionar o campo das fronteiras epistemológicas.
De fato, a exclusão e a desigualdade se dariam tanto na esfera social,
política e econômica, no campo do gênero, da “raça” e da classe, quanto se
revelariam, de modo ainda mais profundo, no âmbito do saber, no campo epis-
temológico. O saber passara a ser lido como poder. A ótica eurocêntrica que,
em grande medida, interpretou o mundo a partir de uma lógica dicotômica e
hierárquica – civilizados versus primitivos, norte versus sul, superior versus in-
ferior, cultura versus folclore, cidade versus campo – passara a ser questionada.
Buscou-se fazer emergir outras formas de ver e pensar as experiências sociais
de sujeitos que historicamente foram excluídos. A “história única” (ADICHIE,
2012), construída e narrada exclusivamente desde o lugar e a partir das visões
de mundo e perspectivas epistemológicas de homens europeus, passou a ser
questionada. Indígenas, mulheres, negros, empobrecidos das periferias e do
campo e excluídos em geral passaram a ser vistos como sujeitos ativos da histó-
ria e a reivindicarem outros espaços que lhes foram negados pela sobreposição
de um ideário de dominação econômica, sexual e de branquitude europeia.
É nesse contexto de reivindicações em prol da democracia, tanto polí-
tica quanto epistemológica, que não deixa de afetar o campo educacional, que
este trabalho pretende trazer algumas reflexões sobre a luta pela educação do
campo a partir da articulação dos movimentos sociais camponeses. Assim, al-
gumas das questões levantadas ao longo deste artigo são: o que caracteriza os
movimentos sociais? Qual o lugar ocupado por eles? Como o debate entre mo-
vimentos sociais e direito à educação tem sido problematizado, tendo como
palco de análise a experiência das lutas pela educação do campo no Maranhão?
Como os movimentos camponeses configuraram-se como movimentos fun-
damentais nas lutas por direitos sociais para o campo, a exemplo da educação
pública de qualidade?
O recorte espacial e temporal deste artigo se concentrou na década de
1990. Nessa contingência de espaço e tempo emergem em diferentes estados
brasileiros, a exemplo do Maranhão, movimentos sociais que enfocam as lutas
pela educação do campo.

1 Movimentos sociais: mosaico epistemológico

O que enseja a emergência dos movimentos sociais? Quais referências


temos nas Ciências Sociais e/ou Humanas sobre os movimentos sociais? Como
e de qual lugar emergem? Essas são algumas questões que ajudam a proble-
matizar os movimentos sociais desde a perspectiva de uma ecologia de sabe-
res, desde um diálogo heterárquico que interseccione as produções teóricas do
Norte e do Sul global.

26
Nos anos 1980, os movimentos sociais passam a ser compreendidos
como “ação coletiva sustentada por sujeitos que compartilham identidades ou
solidariedades no enfrentamento a estruturas sociais ou práticas culturais do-
minantes” (ABERS; BÜLOW, 2011, p. 53). Tal perspectiva está muito associada
aos teóricos dos Novos Movimentos Sociais (NMS), a exemplo de Alain Tou-
raine e Alberto Melluci, bem como àqueles ligados à perspectiva da Mobiliza-
ção Política (MP), como Sidney Tarrow (ABERS; BÜLOW, 2011). Mas essas
definições, embora amplas, não dão conta da dinamicidade e complexidade
presentes nos movimentos sociais, sobretudo quando novos personagens e no-
vas lutas entraram em cena (SADER, 1988), por exemplo, as lutas dos negros,
indígenas e trabalhadores rurais.
Entre as décadas de 1950 e 1990, quando novos sujeitos e lutas emergi-
ram no âmbito dos movimentos sociais, estes passaram a ser pensados a partir
de quatro perspectivas principais: I) aqueles defensores das culturas locais e
contrários aos efeitos devastadores da globalização; II) os reivindicadores de
ética na política; III) aqueles preocupados em adentrar e alcançar espaços e su-
jeitos na sociedade até então “esquecidos” pelas instituições públicas ou priva-
das; IV) aqueles impulsionadores de uma nova perspectiva sobre a autonomia,
no campo político e epistemológico (GOHN, 2013).
Há certo consenso no campo científico em afirmar que a temática dos
movimentos sociais tenha emergido para debate a partir do surgimento da
Sociologia enquanto ciência (GIDDENS, 2012; GOHN, 2010). Contudo, das
Ciências Sociais às Humanas, diversos são os estudos que se propõem a inter-
pretar os movimentos sociais em diferentes prismas. Não há uma única teoria
interpretativa que conceitue o que são os movimentos sociais.

Do ponto de vista teórico, a análise da bibliografia geral nas ciências sociais usu-
almente inclui os movimentos sociais como uma sessão dos estudos sociopolí-
ticos e tem como denominador comum analisá-los dentro da problemática da
ação coletiva. Na realidade, a temática dos movimentos surge como objeto de
estudo junto com o nascimento da própria sociologia. Segundo Scherer-War-
ren, ‘na sociologia acadêmica o termo movimento social’ surgiu com Lorens
Von Stein, por volta de 1840, quando este defende a necessidade de uma ciên-
cia da sociedade que se dedicasse ao estudo dos movimentos sociais, tais como
um movimento proletário francês e o do comunismo e socialismo emergentes’
(Scherer-Warren, 1987: 12). No século XX a temática passa a ser vista no uni-
verso dos processos de interação social dentro da ‘teoria do conflito e mudança
social’[...]. (GOHN, 2010, p. 328).

27
É importante destacar que os movimentos sociais são, direta ou indire-
tamente, tratados em vasta literatura a partir de um olhar plural (GOHN, 2010;
HARVEY, 2014; MARX, 2008; ROLNIK, 2013; ARCARY, 2014; MELLUCCI,
2001; MEDEIROS, 1989). Não há uma única interpretação sobre os movimen-
tos sociais, mas sim diversas. Movimentos com demandas, agendas, pautas de
lutas e sujeitos diferentes. Há movimentos internacionais e nacionais, movi-
mentos populares do campo e da cidade, movimentos sindicais e estudantis,
movimentos identitários e culturais, movimentos pela educação e saúde públi-
ca, dentre vários outros com singularidades, heterogeneidades e especificida-
des nas lutas. Mas também são movimentos que vão tecendo redes de solida-
riedades que os conectam.
No campo científico, os conceitos de movimentos sociais variam nas
contingências do tempo e do espaço. Para compreender tais contingências, é
preciso considerar os paradigmas emergentes em cada tempo e espaço, pos-
to que os conceitos foram diretamente construídos no âmbito deles. Por pa-
radigma, compreende-se “[...] um conjunto explicativo em que encontramos
teorias, conceitos e categorias, de forma que podemos dizer que o paradigma
X constrói uma interpretação Y sobre determinado fenômeno ou processo da
realidade social” (GOHN, 2010, p. 13). Mas os paradigmas devem ser pensados
como dialéticos e outros paradigmas interpretativos podem emergir na medida
em que os antigos não conseguem mais explicar as novas dinâmicas sociais.
Os próprios movimentos sociais podem ser pensados como sujeitos im-
portantes na demanda de novas cartografias explicativas. Aqui, é possível citar
o protagonismo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
por exemplo, para sinalizar alguns dos movimentos de lutas da população do
campo que têm possibilitado novas cartografias, geografias e ecologias de sabe-
res na própria produção de conhecimento.
Em Teorias dos Movimentos Sociais, Maria da Glória Gohn apresenta um
panorama reconstitutivo das teorias dos movimentos sociais, dividindo-os em
três partes: Paradigma Norte-Americano, Paradigmas Europeus e Latino-A-
mericano. O enfoque das discussões de Gohn perpassa contextos variados que
vão dos debates clássicos aos contemporâneos.
O paradigma Norte-Americano é composto pelas teorias clássicas e con-
temporâneas sobre as ações coletivas1 e as teorias sobre movimentos sociais
1 Nas teorias clássicas sobre as ações coletivas, cinco enfoques podem ser citados para pen-
sar os movimentos sociais, a saber: I) movimentos sociais como reações psicológicas às
estruturas de privações socioeconômicas; II) Sociedade de massas; III) abordagens socio-
políticas; IV) comportamento coletivo sob a ótica do funcionalismo e V) teorias organiza-
cionais-comportamentais. Para mais informações, ver Gohn (2010).

28
na era da globalização com foco para a mobilização política (GOHN, 2010).
O paradigma Norte-Americano vê os movimentos sociais como “problemas”
e/ou “anomalias” na sociedade. A questão, nesse paradigma, foi inscrever os
movimentos sociais como “[...] elementos disruptivos à ordem social vigente”
(GOHN, 2010, p. 329), ocupando aqui os estudos sobre anomalia social, de
Émile Durkheim, lugar central nas análises.

A abordagem sobre as ações e os comportamentos coletivos dominou a socio-


logia norte-americana dos anos 20 deste século até os anos 60. As doutrinas do
interacionismo simbólico norte-americano viram os movimentos como proble-
mas sociais, um fator de disfunção da ordem. Elas se preocupavam em entender
o comportamento dos grupos sociais. (GOHN, 2010, p. 328).

O paradigma Norte-Americano é composto pelas teorias clássicas sobre


as ações coletivas, as teorias contemporâneas da ação coletiva e as teorias sobre
movimentos sociais na era da globalização com foco para a mobilização política
(GOHN, 2010). O principal foco na tradição dos estudos sobre movimentos
sociais nos Estado Unidos esteve mais preocupado em problematizar como os
movimentos sociais eram organizados (GIDDENS, 2012). “Nos Estados Uni-
dos, os movimentos sociais foram estudados usando alguma forma de teoria
das escolhas racionais, que pressupõe que os indivíduos tomam decisões ra-
cionais, ponderando as opções que têm em um dado momento” (GIDDENS,
2012, p. 715).
Até os anos 1950, a concepção de movimento social, na perspectiva nor-
te-americana, esteve atrelada à luta de classe (GOHN, 2010). Nos anos 1960,
apenas o movimento operário era foco das pesquisas, especificamente as lutas
sindicais (GOHN, 2010). Mesmo quando outros movimentos sociais começa-
ram a chamar a atenção de pesquisadores, eles ainda eram pensados desde a
chave analítica dos “distúrbios populares” (GOHN, 2010). Um dos problemas
em pensar as experiências dos movimentos sociais a partir de tal chave analíti-
ca é o fato dela desconsiderar os conflitos, contradições e heterogeneidades que
estão intrínsecos aos movimentos.

O surgimento de novas modalidades de movimentos sociais - como o dos direi-


tos civis nos Estados Unidos, ainda nos anos 50; os dos estudantes em vários pa-
íses europeus nos anos 60; os das mulheres, pela paz, contra a guerra do Vietnã
etc. - contribuiu para que novos olhares fossem lançados sobre a problemática.
O paradigma norte-americano, na matriz acionalista, passou a destacar o lado
positivo dos movimentos, como construtores de inovações culturais e fomenta-

29
dores de mudanças sociais. (GOHN, 2010, p. 331).

A emergência dessas novas modalidades de movimentos sociais lidera-


dos, em grande medida, pela juventude, “dá uma guinada” nos estudos sobre
a temática. As abordagens sobre os movimentos sociais defendidas pela pers-
pectiva Norte-Americana passaram a ser questionadas e novos paradigmas
emergiram. No contexto europeu, outras interpretações sobre os movimentos
sociais são acionadas. “Na Europa, ao falarmos sobre paradigmas, temos de
usar o plural porque há duas abordagens teóricas bem diferenciadas: a marxista
e a dos Novos Movimentos Sociais” (GONH, 2010, p. 14).
A teoria marxista tem como enfoque:

Os processos históricos globais, as contradições existentes e as lutas entre as


diferentes classes sociais. As categorias básicas construídas são: classes sociais,
contradições, lutas, experiências, consciência, conflito, interesses de classes, re-
produção de força de trabalho, Estado, etc. As noções e conceitos desenvolvidos
são: experiência coletiva, campo de forças, organização popular, projeto políti-
co, cultura política, contradições urbanas, movimentos sociais urbanos, meios
coletivos de consumo, etc. (GOHN, 2010, p. 14-15).

No campo do paradigma marxista, é possível citar os trabalhos do his-


toriador social inglês de orientação marxista do século XX, Edward Palmer
Thompson (1998), que apontara a cultura como elemento importante nas lutas
dos movimentos sociais. Thompson traz profundas reflexões para o campo da
cultura, tomando-a como espaço de análise de elementos conflitivos, dinâmi-
cos, complexos e contraditórios, que se defronta com as imposições da lógica
capitalista. A cultura parte da materialidade do social e é, geralmente, aciona-
da como mecanismo de reivindicação por justiça e igualdade social. A cultura
tem sido um mecanismo usado, sobretudo, pela classe trabalhadora e popular,
em distintas partes do mundo, para demandar e acessar políticas públicas de
diferentes naturezas, para denunciar situações de opressões e desigualdades.
“Experiências”, “lutas” e “resistências” da classe trabalhadora e popular são ca-
tegorias centrais que perpassam a escrita de Thompson.
Na chave analítica dos Novos Movimentos Sociais, compreendem-se os
movimentos sociais como “ação coletiva sustentada por sujeitos que compar-
tilham identidades ou solidariedades no enfrentamento a estruturas sociais ou
práticas culturais dominantes” (ABERS; BÜLOW, 2011, p. 53).
Os Novos Movimentos Sociais:

30
[...] Parte de explicações mais conjunturais, localizadas em âmbito político ou
dos microprocessos da vida cotidiana, fazendo recortes na realidade para ob-
servar a política dos novos atores sociais. As categorias básicas deste paradigma
são: cultura, identidade, autonomia, subjetividade, atores sociais, cotidiano, re-
presentações, interação política etc. Os conceitos e noções analíticas criadas são:
identidade coletiva, representações coletivas, micropolítica do poder, política
de grupos sociais, solidariedade, redes sociais, impactos das interações políticas
etc. (GOHN, 2010, p. 15).

Dentre os sujeitos que marcaram esse cenário, sobretudo a partir dos


anos 1960, temos os movimentos de estudantes e mulheres, por exemplo, que
deram origem ao que Offe chamou de “um novo paradigma da ação social”
(GOHN, 2010). Ora, mas será realmente que são “tão novos” os ditos “Novos
Movimentos Sociais”?

É preciso também ter a capacidade de leitura que nem tudo o que se passa nos
movimentos sociais é o novo, já que, por exemplo, nem o movimento indígena,
nem o movimento camponês foram invenções do século XX e continuam sendo
um componente importantíssimo na luta em oposição à hegemonia neoliberal,
com todas suas metamorfoses e indeformabilidades. (COSTA; DE’CARLI, 2013,
p. 159).

Em uma terceira chave analítica, situa-se o Paradigma Latino-Ameri-


cano. Marcado pelos movimentos emergentes entre o final dos anos 1970 e
1980, esse paradigma tem como palco o contexto dos países inscritos como de
Terceiro Mundo e apresenta novas reflexões,

Novos atores (Sader, 1988), novas problemáticas e novos cenários sociopolíti-


cos, mulheres, crianças, índios, negros e pobres em geral se articulam com clé-
rigos, intelectuais e políticos da esquerda para gerar ações coletivas que foram
interpretadas como a nova ‘força da periferia’ (Gohn, 1985), realizando ‘uma
evolução no cotidiano’ (Scherer-Warren, Krischke; 1987). Apesar de alguns es-
forços quanto ao tratamento conceitual (Camacho, 1987), a maioria dos estudos
foi histórico-descritivos. (GOHN, 2010, p. 333).

Cabe ressaltar que o paradigma Latino-Americano se constituiu a partir


da contribuição dos outros paradigmas. E, a priore, mesmo com esse caráter
histórico-descritivo no paradigma Latino-Americano, os movimentos sociais
são pensados a partir da ideia de emancipação social. As mudanças que vieram

31
com a globalização da economia e institucionalização de processos, quando da
redemocratização política no contexto latino-americano, a exemplo do Brasil,
possibilitaram o surgimento de um novo ciclo de movimentos e lutas, mais fo-
cados nas lutas contra os mecanismos de exclusão social (GOHN, 2010).
O filósofo marxista italiano Antônio Gramsci apresenta reflexões que
podem ser usadas para problematizar os movimentos sociais na América La-
tina. Para Gramsci, os intelectuais ocupam um lugar importante nos movi-
mentos sociais. No campo dos intelectuais dos movimentos sociais há aqueles
denominados de “orgânicos”. Para o filósofo, os grupos sociais criam para si,
organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais importantes pela con-
solidação da consciência da própria função em diferentes dimensões/campos,
seja no econômico, no social e no político (GRAMSCI, 1999). Cabe ressaltar
que os intelectuais de um determinado campo/dimensão social não emergem
a partir do “nada”. Eles emergem a partir de uma estrutura já pré-estabelecida,
pré-existente, indo ao encontro de certas esferas do social, tanto podem mos-
trar-se favoráveis e sustentadores da lógica capitalista, quanto configurarem-se
como oposição.
Para a filósofa húngara Agnes Heller, os intelectuais orgânicos são im-
portantes, sobretudo por possuírem lutas mais engajadas com o social. Heller
(1978), Karl Marx e Friedrich Engels (2008) propõem uma produção do conhe-
cimento engajada com o social, alinhando-se teoria e empiria. Marx, em Teses
sobre Feuerbach, afirmara que por muito tempo os “[...] filósofos têm apenas in-
terpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”
(MARX, 1982, p. 72). Para Marx, “a vida social é essencialmente prática. Todos
os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução
racional na práxis humana e no compreender desta práxis” (MARX, 1982, p.
72). Esse compreender da práxis deveria levar o sujeito a atuar no sentido de
refletir sobre as desigualdades sociais, mas também de transformar o mundo.
E, numa perspectiva gramscina, Heller nos convida a um movimento de cons-
trução de um intelectual orgânico comprometido com um mundo social civili-
zado, humanamente mais justo e menos desigual.
Esse intelectual orgânico deverá considerar a pluralidade das experi-
ências dos movimentos sociais, descentralizando as análises das perspectivas
eurocêntricas que, historicamente, pautaram-se numa lógica epistemológica
que é hierárquica e dicotômica. Nesse sentido, concorda-se com Barros (2018)
quando argumenta que:

32
[...] É preciso que se institua uma democratização epistemológica. Nas Améri-
cas, esta corrente de pensamento se relaciona, por exemplo, à filosofia e teolo-
gia da libertação latino-americanos (dentre os quais é possível destacar Enri-
que Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Immanuel Wallerstein e Ramón
Grosfoguel). Vários intelectuais africanos, como Appiah (1997), Mudimbe
(1994,1998), Mbembe (2001), Hountondji (1977) e Oladipo (2000) têm apon-
tado para essas questões ou problemas similares. Nessa perspectiva, entende-se
que a discussão epistemológica das ciências sociais e humanas e da filosofia vem
se pautando num modelo eurocêntrico que se pretende universal e imparcial,
embora seja localmente gestado (eurocentrismo). O conhecimento e as práticas
cognoscitivas e sociais produzidas são largamente baseados nesse paradigma,
em que o outro é visto como um objeto e não como um sujeito que pensa. (BAR-
ROS, 2018, p. 43).

Tal debate pode ser conectado aos paradigmas que se propõem pensar os
movimentos sociais, que se pretendem globais e imparciais, mas efetivamente
são locais e temporalmente gestados. Ora, os paradigmas foram produzidos
desde um lugar social e resultam de relações de poder que nem sempre consi-
deram a pluralidade do mundo, que homogeneíza e hierarquiza as experiências
dos sujeitos. Já na perspectiva das epistemologias do sul, de uma nova cartogra-
fia pós-colonial e de uma “ecologia de saberes”, é importante que se problemati-
ze as experiências dos movimentos sociais com um olhar multi e pluricultural,
heterogêneo e horizontal, e compreenda-se que eles têm um papel importante
na produção do conhecimento e na emancipação humana (MELUCCI, 1994).
Em Epistemologias do Sul, Boaventura Santos e Maria Paula Meneses (2009)
questionam o contexto cultural e político da produção e reprodução do co-
nhecimento e defendem a possibilidade de outras epistemologias, partindo do
pressuposto de que “toda experiência social produz e reproduz conhecimento
e, ao fazê-lo, pressupõe uma ou várias epistemologias” (SANTOS; MENESES,
2009, p. 9). Para os estudiosos, não há epistemologias neutras e as que reivin-
dicam tal status são as menos neutras possíveis, devendo-se empreender uma
reflexão epistemológica sobre as práticas de conhecimento e seus impactos em
outras práticas sociais.
A lógica na qual a sociedade tem sido estruturada, em grande medi-
da, tem (in)diretamente negado, anulado e banalizado vidas em prol de um
“desenvolvimento capitalismo”2, sobretudo com o avanço do conservadorismo
reacionário. Não houve apenas um modelo de conservadorismo nas histórias
2 A título de exemplo, é possível citar os dois crimes ambientais ocorridos recentemente em
Mariana (2015) e Brumadinha (2019), ambas situadas no Estado de Minas Gerais, Brasil.

33
das nações do sul, ou mesmo do norte do globo. Esses movimentos do conser-
vadorismo têm representado um avanço contra as alternativas emancipatórias
na América Latina. A experiência dos intelectuais orgânicos que atuam intrin-
secamente nos movimentos sociais de lutas contra a exploração, dominação e
humilhação da classe trabalhadora e popular, por exemplo, os da América La-
tina3, pode ser pensada como mecanismo de resistência ao conservadorismo,
ao direito do bem-viver e à ampliação da noção de cidadania e humanidade, da
qual comumente ainda são excluídas as pessoas não brancas e do campo.
É nesse contexto amplo e plural de debate sobre os movimentos sociais
que as Políticas Públicas Sociais são tomadas como respostas de resistência à
exploração, dominação e humilhação da classe trabalhadora e popular. E cabe
ressaltar ainda que a emancipação das classes e setores “subalternos”, mais pre-
cisamente das classes oprimidas, implica na própria emancipação da humani-
dade. Desse modo, sugere-se que as Políticas Públicas Sociais compõem um
conjunto de estratégias de superação e rompimento com um “não lugar” de
exclusão social que a lógica capitalista tem tentado aprisionar a classe trabalha-
dora e popular. Mas é preciso também pensar esses sujeitos para além das lentes
da vitimização, afinal, reconhece-se que eles estão envolvidos na resistência e
no desafio de fazer história (GROSSMAN, 1998).
É no bojo desse palco de reflexões que a educação do campo é problema-
tizada, desde a chave analítica dos movimentos sociais do campo, tendo “como
ponto de partida mais geral os problemas colocados pelo que poderíamos cha-
mar de desigualdade social e econômica, ocupando-se com a luta de classe e as
questões do mundo do trabalho” (BARROS, 2018, p. 243).

2 Educação do Campo como uma luta dos movimentos sociais camponeses

Os movimentos sociais do campo são importantes sujeitos na luta por


políticas públicas voltadas para o contexto camponês que visam melhorias
de vida da população do campo, a exemplo das políticas educacionais. Desse
modo, o que se pretende é chamar atenção para um diálogo entre os movimen-
tos sociais camponeses e a educação voltada para o campo. O questionamento
central é problematizar como esses movimentos sociais têm se mobilizado e
travado estratégias de luta para efetivação de uma educação que contemple a
realidade do sujeito camponês.
É somente na década de 1990 que os movimentos sociais da classe tra-
3 Movimento Negro Unificado, Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem
Terras, Movimentos de Mulheres e Feministas, Movimentos Indígenas, etc.

34
balhadora camponesa ganharam força e impulsionaram os debates contra as
políticas neoliberais de Estado, discutindo desde questões educacionais até a
organização política do Brasil. Dessa maneira, Gohn (1997, p. 95) afirma que os
movimentos sociais podem ser pensados enquanto “corpos organizativos que
produzem e difundem suas mensagens, uma mentalidade e culturas políticas”.
A fim de compreender a contribuição dos movimentos sociais para as políticas
públicas de educação do campo, é necessário pensa-los partir de suas lutas,
estratégias e resistências que visibilizaram sujeitos do campo e conquistaram
uma educação voltada para o contexto campesino.
Fato é que “a relevância dos movimentos sociais para a educação fica
evidente quando se compreende a educação como processo autoformativo da
sociedade” (STRECK, 2009, p. 22). E torna-se inviável compreender as políticas
públicas de Educação do Campo sem pensar os movimentos que a construíram
enquanto uma política pública educacional. Segundo Gohn (1995):

Um dos exemplos de outros espaços educativos é a participação social em mo-


vimentos e ações coletivas, o que gera aprendizagens e saberes. Há um caráter
educativo nas práticas que se desenrolam no ato de participar, tanto para os
membros da sociedade civil, como para a sociedade mais geral, e também para
os órgãos públicos envolvidos – quando há negociações, diálogos ou confron-
tos. (GOHN, 2011, p. 333).

Para Rocha (2007), é importante sinalizar que não se tem a intenção de


afirmar categoricamente que esses movimentos que despontaram as políticas
públicas educacionais são fenômenos orgânicos e/ou apenas ocasionais, visto
que o processo de produção do conhecimento é dinâmico sob os aspectos de
uma realidade imersa em contradições.
Os movimentos sociais, sobretudo o Movimento dos Trabalhadores Ru-
rais Sem Terra (MST), foram protagonistas em tecer estratégias de luta e resis-
tência por políticas públicas voltadas para o contexto campesino, a exemplo da
educação do campo, nos anos finais da década de 1990. Para Cavalcanti (2009),
essa luta dos movimentos sociais do campo traz para o sistema educacional
brasileiro a discussão acerca da peculiaridade da educação do campo, a qual
está relacionada às experiências e à produção de vida, conhecimentos e cultura.
Esse debate promove o destaque de ações direcionadas ao campo que possam
garantir processos de formação do/no campo, ou seja, estudar o e no lugar em
que vivem.
As políticas públicas direcionadas para a educação do campo precisam

35
atentar para a grande complexidade e diversidade da realidade brasileira. As-
sim, é importante refletir que para os trabalhadores que vivem no campo “a
educação é desenvolvimento e potencialidades [bem como], apropriação do
saber socialmente construído” (SILVA, 2007. p. 19). Nesse sentido, Cavalcanti
(2009, p. 172) afirma que “tratar a Educação do Campo como uma política
pública implica pensar, em [...] ações educacionais de forma ampliada, [...] nas
áreas rurais, mas nos diversos níveis de modalidade e educação”. Compreen-
dendo, assim, que os “conhecimentos devem servir de instrumento para com-
preensão e resolução dos problemas que afetam as pessoas e a comunidade”
(CALDART, 2012, p. 56).
O engajamento e a intensa luta dos movimentos sociais camponeses,
sobretudo do MST, são na tentativa de garantir alguns dos direitos sociais ao
povo do campo, por exemplo, educação pública e de qualidade, fazendo va-
ler o próprio texto da Constituição Federal de 1988, que menciona o direito
à educação para todos, como consta no capítulo III, artigos 205, 206 e 208,
respectivamente:

Art. 205: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será pro-
movida e incentivada com colaboração da sociedade, visando ao pleno desen-
volvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualifica-
ção para o trabalho. Art. 206: O ensino será ministrado com base nos seguintes
princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
VII – garantia de padrão de qualidade; Art. 208: O dever do Estado com a edu-
cação será efetivado mediante a garantia de: I – ensino fundamental, obrigatório
e gratuito, inclusive para os que a ele não tiverem acesso na idade própria.

Tratando-se das políticas nacionais para a educação do campo, é impor-


tante destacar que o Plano Nacional de Educação (2001) apresenta uma pro-
posta diferenciada à educação voltada para o contexto campesino, contendo
objetivos e metas que obedecem a formas flexíveis de organização para a edu-
cação camponesa, bem como “adequada formação profissional dos professores,
considerando as especificidades do alunado e as exigências do meio” (PNE,
2001, p.18).
Acerca dessa diretriz, percebe-se a intencionalidade da flexibilidade que
está para além da LBD, isto é, as muitas possibilidades no que diz respeito à
organização do ensino. Nessa perspectiva, os movimentos sociais do campo
estão “sustentados” pela Lei de Diretrizes e Bases Nacional de 20 de dezembro
de 1996, Lei nº 9.394/96, seus Artigos 1º e 28º afirmam que:

36
§ 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominante-
mente, por meio do ensino, em instituições próprias.
§ 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática
social.
39 Art. 28º. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de
ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades
da vida rural e de cada região, especialmente:
I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e
interesses dos alunos da zona rural; II - organização escolar própria, incluindo
adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climá-
ticas; III - adequação à natureza do trabalho na zona rural.
[...] O fechamento de escolas do campo, indígenas e quilombolas será precedi-
do de manifestação do órgão normativo do respectivo sistema de ensino, que
considerará a justificativa apresentada pela Secretaria de Educação, a análise
do diagnóstico do impacto da ação e a manifestação da comunidade escolar
(BRASIL, 1996, p. 8 -21).

Com esses direitos garantidos e legitimados, os movimentos sociais do


campo avançam no sentido de fortalecerem suas histórias, agora como agentes
de ação e não mais passivos de toda dinâmica que envolve um sentido ideo-
lógico e simbólico de quem detém os meios de produção. A luta pela terra,
dignidade, pelo direito à educação diferenciada, pelo acesso ao conhecimento,
ao trabalho, são centrais no seio desses movimentos. Ora,

Lutas e movimentos pela educação têm caráter histórico, são processuais, ocor-
rem, portanto, dentro e fora de escolas e em outros espaços institucionais. Lutas
pela educação envolvem lutas por direitos e fazem parte da construção da cida-
dania. O tema dos direitos é fundamental, porque dá universalidade às questões
sociais, aos problemas econômicos e às políticas públicas, atribuindo-lhes cará-
ter emancipatório. É a partir dos direitos que fazemos o resgate da cultura de
um povo e de uma nação, especialmente em tempos neoliberais que destroem
ou massificam as culturas locais, regionais ou nacionais. Partir da óptica dos
direitos de um povo ou agrupamento social é adotar um princípio ético, moral,
baseado nas necessidades e experiência acumuladas historicamente dos seres
humanos, e não nas necessidades do mercado. A óptica dos direitos possibilita-
-nos a construção de uma agenda de investigação que gera sinergia, não com-
paixão, que resulta em políticas emancipadoras, não compensatórias. (GOHN,
2011, p. 346-347).

A partir das lutas e organização em movimentos sociais, trabalhado-


res(as) rurais passam a enxergar-se enquanto sujeitos que vislumbram trans-

37
formações em várias dimensões da sociedade, envolvendo disputa de projetos
políticos, sejam eles de cunho ideológico, histórico, filosófico, epistemológi-
co, cultural, etc. Os movimentos sociais do campo podem ser pensados como
importantes grupos de pressões no processo de formulação, implementação e
avaliação da política educacional voltada para o campo, afinal, é importante
ressaltar que “o Estado ainda não tomou ações concretas e amplas para a imple-
mentação de uma política pública de educação do campo. Há de se reconhecer
o espaço de diálogo e de construção coletiva conquistado pelos movimentos
sociais do campo” (CAVALCANTI, 2010, p. 173). Efetivamente, a Educação do
Campo, pensada como novo paradigma, representa uma conquista que advém
das lutas de trabalhadores camponeses do Brasil.
De modo mais incisivo, pelo menos desde o final da década de 1980 e
início da década de 1990, as lutas da classe trabalhadora camponesa vem ga-
nhando visibilidade e “movimento uniforme” através de mobilizações, resistên-
cia ao agronegócio exportador e à exclusão social que expropria os povos do
campo.
Na perspectiva de Gohn (2008, p. 159) “só os movimentos sociais têm
a capacidade de reinventar e reorientar o Estado e suas políticas e exigir a su-
peração da submissão do Estado às políticas socioeconômicas contrárias aos
interesses de uma sociedade e de um povo”. Ademais,

Os comportamentos coletivos podem se expressar com valores previamente


orientados ou não. Os movimentos com valores orientados são ações coletivas
mobilizadas em nome de crenças geralmente imaginadas para a reconstituição
de valores perdidos; os movimentos não-orientados mobilizam-se em nome da
reconstituição de normas. (GOHN apud SMELSER, 1997, p. 9).

A demanda pela Educação do Campo nasceu no seio dos processos de


lutas sociais camponesas, sobretudo com o Movimento dos Trabalhadores Ru-
rais Sem Terra (MST). Por certo, “[...] novos valores, nova cultura, nova identi-
dade, nova consciência de dignidade, nova consciência de direitos” (ARROYO,
2005, p. 48) são acionados, (re)construídos e (re)afirmados durante o processo
de lutas sociais dos movimentos.
O processo de luta que foi tecido pelos movimentos sociais do campo
deu origem à Educação do/no Campo, assim, esse projeto educacional ganhou
visibilidade e ampliou-se com o I Encontro Nacional de Educação na Reforma
Agrária (ENERA), realizado em 1997 na cidade de Brasília - DF. Esse e outros
encontros, como a I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Cam-

38
po, realizada em 1998 na cidade de Luziânia – GO, e a II Conferência Nacional
por uma Educação do Campo que também aconteceu na cidade de Luziânia,
no ano de 2004, foram fundamentais para que outros movimentos sociais pu-
dessem integrar-se a essa luta, a exemplo da Associação em Áreas de Assenta-
mento no Estado do Maranhão (ASSEMA), Movimento dos Pequenos Agricul-
tores (MPA), Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), Movimento dos
Atingidos por Barragem (MAB) e demais movimentos em cujas representações
estão os indígenas, os quilombolas e as mulheres do campo.
Esses encontros e seus debates abriram caminhos para outros eventos
e demandas. Em 2004, o Estado começou a formular e sistematizar reflexões
sobre a Educação do Campo e as políticas públicas voltadas para esse setor.
Efetivamente, são “as políticas públicas que dão visibilidade e materialidade ao
Estado e, por isto são definidas como sendo o Estado em ação” (AZEVEDO,
1997, p. 60).
Para Cavalcanti (2010, p. 35), “[...] uma questão específica de um setor se
constitui enquanto política pública específica quando passa a ser reconhecida
pelo Estado à medida que são criados os mecanismos legais, financeiros e insti-
tucionais para garantir as demandas e necessidades daquele setor.”
Cabe lembrar que:

Os movimentos seriam sintomas de descontentamento dos indivíduos com a


ordem social vigente e seus objetivos principais seria a mudança dessa ordem.
Em determinadas condições, eles poderiam se tornar um perigo para a própria
existência dessa ordem social [...] assim, o acordo sobre valores e normas é a es-
sência da solidariedade social ou do senso de comunidade. (GOHN, 1997, p. 25).

Fato é que, a partir do fim do século XX até os dias atuais, os movi-


mentos sociais do campo alcançaram conquistas no que concerne à educação
para o meio campesino, a saber: aprovação das Diretrizes Operacionais para a
Educação Básica em Escolas do Campo; Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade (SECAD), criada pelo Ministério da Educação (MEC), em 2003;
Grupo Permanente de Trabalho de Educação do Campo, através da Portaria
Nº. 137/2003.
É fundamental debater acerca da Educação do Campo considerando não
ser ela o resultado de políticas públicas educacionais fechadas, mas uma pro-
posta educacional construída “de baixo para cima”, em movimento, a partir do
campo e para os sujeitos do campo. Isso não simplifica ou reduz seu alicerce
teórico-metodológico. Ao contrário. Dinamiza e democratiza a educação. As

39
novas concepções da Educação do Campo visam transformar os sujeitos e as
escolas do campo com vistas a um processo de emancipação social, sobretudo
humana. Assim, outras histórias podem (e devem) vir à tona, outras formas de
pensar o mundo e as experiências sociais.

Considerações finais

As reflexões desenvolvidas neste trabalho partiram, em grande medida,


de algumas ideias norteadoras. A primeira consistiu em reconhecer que os mo-
vimentos sociais ocupam lugar central no seio da sociedade contemporânea,
sendo fundamentais para a propagação da cidadania e do respeito à alteridade
humana e possuem estreita relação com as lutas por direitos sociais, como o
direito à educação do campo.
A segunda sugeriu que, em tempos de desigualdades sociais acirradas
que atingem fortemente a população do campo e negam-lhe a existência, pro-
blematizar as experiências dos movimentos sociais camponeses de luta pela
educação do campo torna-se importante, pois ajuda a compreender alguns as-
pectos da complexa teia das “necessidades humanas” (HELLER, 1978). Vale
dizer ainda que tratar das experiências dos movimentos sociais do campo tor-
na-se importante por contribuir no movimento de democratização epistemo-
lógica, que passou a considerar o olhar sobre o mundo dos sujeitos subalterni-
zados, de trabalhadores rurais, de homens e mulheres do campo.
É necessário perceber a luta que os movimentos sociais do campo têm
travado para que a população camponesa tenha acesso a uma educação que
contemple a realidade em que está inserida, uma educação libertadora que res-
peite a realidade dos sujeitos do campo. Nesse decurso, é fundamental com-
preender e reconsiderar a maneira como os sujeitos criam e recriam o contexto
campesino. É preciso repensar alguns paradigmas de hierarquização do conhe-
cimento que têm fomentado e estigmatizado o contexto camponês.
Nesse aspecto, os movimentos sociais do campo acreditam que para ha-
ver efetivamente uma democratização de acesso à educação no campo é preciso
assegurar cidadania com dignidade para todos, como consta no texto constitu-
cional do nosso país. Infelizmente, no Brasil ainda temos uma cidadania “ajus-
tada”, ou seja, de forma contrária à esperada. O percurso de direitos adquiri-
dos foram primeiramente os civis, políticos e ainda percorre-se o caminho de
garantir os direitos sociais, direitos esses que têm sido duramente violados no
atual contexto do país.
Os movimentos sociais do campo argumentam que, para os sujeitos

40
exercerem sua cidadania, o Estado “democrático de direito” tem a obrigação de
formular e implementar políticas públicas com eficácia e qualidade para todas
as esferas da sociedade. Os movimentos sociais do campo tecem seu processo
de luta em torno do exercício da cidadania do indivíduo. Nesse sentido, pontu-
am-se algumas indagações, a saber, que tipo de cidadania vem sendo oferecida
para esses(as) trabalhadores(as) do campo? O Estado realmente vem contem-
plando políticas públicas para a população campesina? Como tem sido o pro-
cesso de formulação, implementação e avaliação dessas políticas públicas de
educação? Nesse sentido, cabe sinalizar que poder e política se cruzam nesse
cenário (FOUCAULT, 1989).
Assim, a intenção deste trabalho foi, de um lado, trazer um mosaico dos
debates teóricos sobre os movimentos sociais, perpassando pelos paradigmas
predominantes; de outro lado, lembrar ainda que é preciso considerar a alte-
ridade humana nos estudos sobre os movimentos sociais, e isso implica em
olhar também para as experiências do Sul global, como aquelas desencadeadas
por sujeitos do campo. O convite deste ensaio foi no sentido de considerar,
primeiramente, que há movimentos sociais para além do Norte do globo e para
além das epistemologias do Norte, a exemplo do Movimento de Trabalhadores
Rurais Sem Terra que, dentre suas bandeiras de lutas, há a da educação pública
de qualidade para aqueles que vivem no/do meio rural.

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44
Educação & Cor:
um ensaio acerca da problemática do
racismo no sistema educacional brasileiro

Cirila Regina Ferreira Serra

Entre critérios de igualdades e diferenças cada nação construiu suas rela-


ções sociais, no que se refere ao contexto brasileiro, foram construídas a partir
da cor da pele. Tal construção se solidificou após a abolição da escravatura
(1888), em que as teorias raciais tornaram-se um meio de naturalizar as di-
ferenças por meio de características físicas e morais. Segundo análise de Lilia
Schwarcz (1993), “foi preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania,
é nesse sentido, que o tema racial, apesar de suas implicações negativas”, como
estigmas e estereótipos, “se transforma em um novo argumento de sucesso
para o estabelecimento das diferenças sociais” (SCHWARCZ, 1993, p. 24). Assim,
a condição de raça se consolidou como critério de diferença entre as pessoas,
estabelecendo uma hierarquia social no pós-abolição.
Em virtude desse fato, o conceito de raça tem definido socialmente as
pessoas desde o nascimento até a sua fase adulta, fazendo com que desde crian-
ça a cor ensine de “um modo ou de outro a enxergar o mundo a partir destas e
de outras diferenciações, as quais acabam se tornando por isto mesmo social-
mente significativas” (BARROS, 2009, p. 51), induzindo-nos a direcionar um valor
moral e social à cor da pele. Em vista disso, talvez, o caminho para a descons-
trução de uma sociedade condicionada a partir desse fato é a erradicação do
conceito de raça definindo todos a um só grupo social, pois as ações têm sido
direcionadas na busca por direito a uma igualdade racial.
Tal possibilidade traria muitas indagações, debates, conflitos e reflexões
necessárias, pois há quem entenda a extinção da definição de raça um retroces-
so, dado que a população negra perderia os benefícios conquistados, e há quem
entenda que essa seria a solução para os problemas relacionados à percepção
da cor. A questão que se coloca é: por que a permanência da identificação social
por via de raça ou cor?
Para Antônio Guimaraes (2008), a ideia de raça só faz sentido no discur-
so construído a partir da necessidade de que o homem tem de explicar sobre
as suas origens entre gerações. Assim, traços que definem fisionomia, atributos
morais e intelectuais são creditados como características que diferem raças en-
tre si. Para ele, esse é o campo específico às identidades sociais, em que o seu
estudo aborda os discursos sobre origem.
Conforme análise de Josenildo Pereira (2016), a discriminação não está
associada à cor, mas sim a uma ideologia racista que construiu o conceito de
“raça” como um meio de dominação humana. Como o próprio Pereira afirma:
raça “é uma invenção branca” (PEREIRA, 2016, p. 80). Nesse sentido, desconstruir
a ideia de raça e de cor seria o caminho para a desconstrução do racismo.
A partir da compreensão de Pereira (2016), o problema estaria em acre-
ditar no pertencimento a uma determinada raça, pois, quando se acredita per-
tencer a uma raça, automaticamente, enquadra-se às diferenças criadas para
ela, considerando o contexto histórico em que a raça foi construída como crité-
rio de diferença entre pessoas, transformando brancos e negros socialmente em
níveis de superioridade e inferioridade, a desconstrução do conceito de raça a
qual serve a uma ideologia de dominação apresenta-se como necessária.
Nesse sentido, a naturalização social da cor impede que se formule um
pensamento fora dessa perspectiva, pois a discussão não avança no sentido de
problematizar a permanência de uma sociedade compreendida a partir de raça
e cor, mas sim, no questionamento sobre a igualdade de direitos. Na análise de
Emília Viotti (2008), a questão escravista do negro não terminou com a aboli-
ção, o seu legado continuou. O que nos leva a compreensão de que a condição
desigual entre os identificados como negros e brancos é reflexo de um processo
que se renova por via do racismo que afeta diferentes setores, a exemplo, o cam-
po educacional, que é foco principal deste ensaio.
Assim, a estrutura social constituída no pós-abolição consolidou a iden-

46
tificação social por raça e cor. No que se refere ao campo educacional, a ideia
de raça e cor é utilizada para explicar a formação social, econômica e política
sem problematizar a sua construção histórica, como se tais diferenças fossem
naturais do ser humano, discutindo superficialmente as relações sociais entre
negros e brancos, seja no Brasil Colônia, Império ou Contemporâneo.
É nesse contexto que o presente ensaio tem o objetivo de analisar como
a educação foi fundamentada a partir dos critérios de raça e cor, o que contri-
buiu com o fortalecimento do racismo e suas variáveis, para assim compreen-
der como o sistema educacional brasileiro tem tratado da questão racial no
campo educacional. Para a construção da análise, como técnica de pesquisa,
fez-se uso das principais referências bibliográficas que tratam da problemática
da educação das relações raciais e do racismo, assim como se fez uso de pes-
quisa documental.
O presente ensaio não tem por intenção negar as lutas e reinvindica-
ção à igualdade de direito, seja no campo educacional ou qualquer outro, mas
sim, analisar a ausência do questionamento a respeito da concepção de raça e
cor como critério de identificação de grupos e pessoas no campo da educação,
quando se entende que a narrativa sobre o conceito de raça já havia sido supe-
rada entre outras dimensões.

1 Educação e racismo

A ideia internalizada de cor consolidou-se mais definidamente no Brasil


após 1930, quando o discurso da mestiçagem naturalizou o critério de cor em
detrimento do critério de raça, fazendo com que se construísse a narrativa que
mais tarde passou a ser chamada de “democracia racial”. O que resultou num
atraso em relação às discussões sobre o reconhecimento do racismo a partir das
estruturas de poder. De acordo com Guimarães (2008), o antirracialismo foi a
ideologia fundante na narrativa de composição de uma nação brasileira em que
o critério “cor” prevaleceu. Tal narrativa ganhou força com o seu maior precur-
sor, Gilberto Freyre, em especial no seu livro Casa Grande e Senzala (1933),
que contribuiu para o discurso adotado pelo Estado Brasileiro de que não havia
racismo.
Ainda que, após Casa Grande e Senzala, a narrativa adotada pelo Es-
tado fosse a da mestiçagem, no campo da educação construiu-se um modelo
de escrita, que inclui os materiais didáticos e paradidáticos, em que a ideia de
raça e cor é tratada como um atributo natural1. E, a partir disso, a visibilidade
1 Na explicação dada por Guimarães, naturalizado “quer dizer totalmente nativo, pois quan-

47
do sujeito identificado como negro ficou condicionada ao sistema escravista,
reforçando o sinônimo de negro e escravizado, sem dar visibilidade histórica a
esse sujeito nos processos após a abolição.
Assim, as reinvindicações sobre o direito a uma educação que não exclu-
ísse a população de negros, na primeira metade do século XX, pairavam tam-
bém sobre a reformulação do currículo escolar, e para que conteúdos e mate-
riais didáticos deixassem de ter uma abordagem preconceituosa sobre a figura
do sujeito negro. Portanto, uma educação que (res)significasse a representação
dos identificados como negros e negras, em que as narrativas deveriam inter-
pretar o papel do sujeito negro em diferentes etapas da história que não fossem
apenas associadas ao período escravista.
Questionava-se sobre o fato de a cultura educacional brasileira não ter
oportunizado um local de fala ao protagonismo negro, dado que, mesmo após
os processos históricos que levaram à abolição da escravatura, à proclamação
da república, ao período varguista e demais governos, as experiências educa-
tivas não favoreceram a contribuição do negro para a história social. A busca
pelo direito a uma historiografia sobre a participação do negro nos processos
históricos para além da escravidão foi sendo discutida e reivindicada a partir da
ação de movimentos sociais de cunho racial para que se reformulasse o ensino
nas escolas.
Passou-se, então, a reivindicar uma pedagogia que trabalhasse as rela-
ções raciais no espaço escolar, que a abordagem teórica ocorresse sem visões
preconceituosas e negativas. Isso porque questionar o racismo é também com-
preender que reconhecer uma população a partir do seu estigma, nesse senti-
do por raça e cor, é contribuir para manter um sistema que segrega. Ademais,
quanto à compreensão de raça, entende-se como algo construído para oprimir,
“para naturalizar desigualdades, justificar segregação e o genocídio de grupos
socialmente considerados minoritários” (ALMEIDA, 2018, p. 24).
Nesse sentido, Sílvio Almeida (2018) esclarece:

No século XX, a antropologia constitui-se a partir do esforço de demonstrar a


autonomia das culturas e a inexistência de determinações biológicas ou cultu-
rais capazes de hierarquizar a moral, a cultura, a religião e os sistemas políticos.
A constatação é a de que não há nada na realidade natural que corresponda ao
conceito de raça. (ALMEIDA, 2018, p. 24).

to mais nativo é um conceito mais ele é habitual, menos ele é exposto à crítica, menos conse-
guimos pensar nele como uma categoria artificial, construída, mais ele parece ser um dado
da natureza” (GUIMARÃES, 2008, p. 68).

48
Para Guimarães (2008), a ideia de raça só faz sentido no discurso cons-
truído a partir da necessidade que o homem tem de explicar sobre as suas ori-
gens entre gerações. Assim, traços que definem fisionomia, atributos morais e
intelectuais são creditados como características que diferem raças entre si. Para
ele, esse é o campo específico às identidades sociais, em que o seu estudo abor-
da os discursos sobre origem.
A identificação a partir da raça e cor produziu um efeito tão profundo
na vida social e na mentalidade que se percebe uma dificuldade de desraciali-
zar os sujeitos, as relações sociais, a História. Problematizam-se os efeitos cau-
sados pelo racismo, mas não se problematiza “o porquê” da permanência em
identificar socialmente sujeitos a partir de critérios de raça e cor. O discurso
construído e aplicado, em especial pelos Movimentos Negros na segunda me-
tade do século XX, foi de positivação da raça, da cor, da cultura e pela busca da
igualdade de direitos.
Conforme Guimarães (2008), a determinação de raça como critério de
identificação social foi reivindicada pelo Movimento Negro Unificado - MNU
a partir dos anos 1970, como forma de deslegitimar o mito da democracia ra-
cial constituído nos anos 1930, e assim denunciar a existência do racismo, pois
na prática havia várias contradições.

Para o MNU, um negro, para ser cidadão, precisa, antes de tudo, reinventar sua
raça. A idéia de raça passa a ser parte do discurso corrente, aceito e absorvido de
certo modo pela sociedade brasileira, o que não se explica senão pelas mudan-
ças que ocorreram também na cena internacional, que tornaram esse discurso
bastante poderoso internamente. Mas o fato é que se introduz de novo a idéia de
raça no discurso sobre a nacionalidade brasileira. (GUIMARÃES, 2008, p. 75).

Contradições apontadas pelo movimento negro também se encontra-


vam no campo da educação, pois, embora o Estado Brasileiro tivesse adotado o
discurso da mestiçagem e do antirracialismo, tal discurso não se consolidou em
sua totalidade, já que a narrativa sobre a identificação por via da raça se fazia
presente nos materiais didáticos direcionados à instrução de profissionais e aos
bancos escolares – como o livro didático. A imagem do negro, proveniente de
uma raça atribuída como inferior, tinha os seus laços associados diretamente à
escravidão, o que fez com que o racismo contra a população identificada como
negra fosse assimilado do meio familiar ao espaço escolar. Desse modo, o livro
didático não ensinou a problematizar a construção de raças, operou no senti-
do contrário, de reforçar a identificação social por raças e cor e os seus efeitos

49
como o racismo e seus derivados.
Em uma análise mais ampla, os arranjos históricos que construíram a
colonização e a escravidão nos materiais de História eram explicados a par-
tir do argumento da suposta inferioridade dos povos africanos. Essa explica-
ção desconstruía o racismo como elemento fundador da noção de raça, assim
como os objetivos que o legitimaram, a ocupação de territórios e riquezas do
continente africano.
Nesse contexto, compreende-se a importância que o livro didático tem
na formação educacional e social, pois ele é, ainda hoje, um material didático
fortemente utilizado nas escolas públicas e privadas, sendo, portanto, um ins-
trumento importantíssimo para a construção do conhecimento, por ser for-
mado por algum viés ideológico pelo qual explica/define categorias sociais. Ele
pode educar construindo um senso crítico de diversidade, respeito e humani-
dade ou construindo preconceitos e discriminações.
Conforme Anderson Oliva (2007), a importância que o livro didático
alcançou na educação motivou pesquisas acerca do seu conteúdo.

O espaço “conquistado” pelos livros didáticos nos bancos escolares forçou os


pesquisadores ligados à área de Educação e da História, a partir do final dos
anos 1970 e ao longo de toda a década de 1980, a formular pesadas críticas ao
seu caráter hegemônico e ao processo de construção que envolvia sua formula-
ção. (OLIVA, 2007, p. 235).

Circe Bittencourt faz referência a uma produção crescente nos progra-


mas de pós-graduação sobre o interesse em pesquisas a respeito do livro didá-
tico, iniciada nos anos 1980 e que continua até a atualidade.

No Brasil, as pesquisas acadêmicas sobre livros didáticos tiveram um constante


crescimento em programas de pós-graduação a partir da década de 1980, com
análises desse material em diversas áreas e em várias disciplinas escolares. Um
levantamento sobre essa produção inicial foi realizado por pesquisadores da
Unicamp que publicaram O que sabemos sobre livro didático: catálogo analítico
com referências sobre teses e dissertações, além de importantes indicações sobre
as publicações da época (Unicamp, 1989). No Catálogo encontram-se, assim, as
primeiras referências de um conjunto de pesquisas sobre os livros didáticos de
História (LDH), assim como as publicações e indicações das participações em
eventos. Posteriormente, foram apresentados levantamentos das pesquisas so-
bre o tema em encontros da área do ensino de História, com balanços analíticos
da produção que serviam como textos introdutórios aos debates nos Grupos de
Trabalho de Livros Didáticos (GTs) criados Perspectivas do Ensino de Histó-

50
ria e no Encontro Nacional de Pesquisadores de Ensino de História (ENPEH),
alguns deles publicados nos anais dos eventos. Um balanço recente sobre as
apresentações dos trabalhos em tais eventos foi realizado por Flavia Caimi no
qual situa as principais tendências e fundamentações teóricas das pesquisas en-
tre os anos de 1999 e 2008 (Caimi, 2009) e destaca a pesquisa de Kenia Moreira
e Marilda Silva sobre as teses e dissertações produzidas no sudeste entre 1980 a
2000). (BITTENCOURT, 2011, p. 490).

Conforme Fúlvia Rosemberg (2003), “os estudos sobre preconceito ra-


cial e livros didáticos e paradidáticos no Brasil iniciaram-se na década de 1950
com a pesquisa de Dante Moreira Leite (1950): ‘Preconceito racial e patriotis-
mo em seis livros didáticos primários brasileiros’” (ROSEMBERG, 2003, p. 132).
Embora, nos anos 30, a temática já fazia parte das demandas defendidas pelos
movimentos sociais negros. Nos anos 70, os movimentos reivindicavam polí-
ticas públicas para o livro didático e que os historiadores da educação propor-
cionassem uma história com temas específicos sobre a população negra, que
os materiais didáticos e paradidáticos passassem por um processo de reescrita.
Assim, a educação, por via de materiais didáticos, mantinha preconceitos
e reproduzia a discriminação, fortalecendo o discurso de raças, perpetuando a
negatividade atribuída aos povos africanos e sua população descendente no
Brasil. Visto que, não se creditava aos personagens históricos negros2 partici-
pação positiva na história, pois eram apresentados nos materiais como pessoas
historicamente inferiores e condicionadas ao trabalho braçal, o que contribui
na absorção para uma autoimagem de inferioridade atribuída a partir da cor
da pele.
A construção dessa autoimagem negativa releva o que Anthony Appiah
(1997) caracterizou de racismo extrínseco, quando a base da discriminação se
caracteriza na “crença em que os membros das diferentes raças diferem em as-
pectos que justificam o tratamento diferencial” (APPIAH, 1997, p. 35). Assim,
características físicas, culturais, religiosas, atribuídas ou pertencentes a deter-
minados grupos ou raças são dispositivos utilizados pelo grupo dominante,
nesse caso, o branco, para produção de práticas racistas e discriminatórias.
Com o benefício que a ordem social estabelece favorecendo um grupo
ou raça em detrimento de outro, o grupo ou raça favorecido tende a desempe-
nhar um papel de justificação das vantagens que lhes são conferidas, negando
a existência de um lugar social de privilégio. Para Appiah (1997), essa incapa-

2 Personagens como Negro Cosme, Dragão do Mar, Zumbi do Palmares, Manuel Calafate,
Maria Firmina dos Reis, Luís Gama, André Rebouças, Carolina de Jesus, entre outros.

51
cidade de admitir vantagens e crenças que as justifiquem é o que caracteriza o
racismo extrínseco, o que ele definiu como sendo uma “deficiência cognitiva”.
Embora não seja a intenção de Appiah analisar os processos psicológicos
do racismo ao refletir sobre a inabilidade de admitir a manutenção de ideias
que favorecem bem-estar a uns perante o mal-estar de outros, ele observa que
essa postura está associada às questões humanas, o que acaba por caracterizar
a prática do racismo como uma ideologia e não uma teoria.

A incapacidade de mudar de idéia diante das evidências é uma deficiência cog-


nitiva, da qual todos nós decerto sofremos em algumas áreas de crença. Mas não
constitui, como afirmaram alguns, uma tendência que sejamos impotentes para
alterar. Para abalar as convicções daqueles cuja a incapacidade decorre desse
tipo de defesa ideológica, talvez seja útil lhes mostrarmos como sua reação se
encaixa no padrão geral. Na verdade, é em virtude de essas visões efetivamente
costumarem se enquadrar nesse padrão que chamamos de “racismo”- vindo o
sufixo “-ismo” indicar que o que temos em mente não é apenas uma teoria, mas
uma ideologia [...]. (APPIAH, 1997, p. 34).

Assim, a representação dos processos históricos e dos sujeitos históricos


no livro didático e paradidático estava organizada para sustentar e manter a
identificação social da raça, um viés ideológico de supremacia branca, refor-
çando as estruturas de permanência do racismo, sem problematização da raça
como critério de identificação dos grupos sociais, o que levou ao esforço de
denunciar os racismos contidos nessa ferramenta de ensino.
A reivindicação à reescrita da história da população dos demarcados
como negros e negras operou no sentido de positivação da história dos povos
africanos e de sua cultura, assim como o fortalecimento da identidade negra,
sem problematizar a leitura de enquadramento a uma raça. Pois o argumen-
to de positivação está na ideia de que, buscando o reconhecimento e visibi-
lidade histórica, tem como justificativa desconstruir a narrativa negativa e a
composição social de poder nos materiais didáticos. Porém, embora se entenda
a importância de desconstruir preconceitos, a história de África e dos povos
africanos precisa de uma abrangência maior do que servir apenas para tornar
positiva a história dos ditos negros.
O pensamento social construído na ideia de raças, ainda predominante
entre as relações sociais, econômicas, políticas e culturais no Brasil, determi-
nando assim o cotidiano dos brasileiros, tem o seu reflexo no espaço escolar e
nos materiais didáticos. Pois raça passou de um critério biológico construído
no século XVI para um critério político no século XIX, hierarquizando um

52
sistema criado para legitimar desigualdades, apropriação de terras, riquezas e
corpos.
Segundo Carlos Hasenbalg (1992), a permanência desse sistema de iden-
tificação social por raça e cor é “um fenômeno de atraso cultural, devido ao
ritmo desigual de mudança das várias dimensões dos sistemas econômico, so-
cial e cultural do país” (HASENBALG, 1992, p. 151). Esse atraso está associado
a uma cultura colonialista e escravocrata que se mantém até hoje. Para alguns
pesquisadores, essa hierarquia foi construída a partir do pertencimento a uma
raça branca – privilegiada – que detém o poder econômico e político, susten-
tando, assim, as desigualdades sociais ainda estabelecidas na ideia de raça e cor
contra aqueles que hoje são descendentes de africanos escravizados, nomeados
de negros.
Desse modo, fica evidenciado nos termos do documento oficial do go-
verno brasileiro enviado à III Conferência Mundial contra o Racismo e a Dis-
criminação Racial, o Xenofobismo e Outras Formas Correlatas de Insegurança,
ao afirmar que,

O racismo e as práticas discriminatórias disseminadas no cotidiano brasileiro


não representam simplesmente uma herança do passado. O racismo vem sendo
recriado e realimentado ao longo de toda a nossa história. Seria impraticável
desvincular as desigualdades observadas atualmente dos quase quatro séculos
de escravismo que a geração atual herdou3.

No contexto brasileiro, os percursos históricos da população identificada


como negra apontam para a construção de uma sociedade que fez do racismo
uma de suas bases de sustentação, característica das desigualdades que há entre
negros e brancos, atualmente. A existência de uma educação que, assim como
defendida pelos movimentos sociais negros e pesquisadores do tema, possi-
bilite imagem e história positivas dos povos africanos e seus descendentes no
Brasil e, com isso, possa promover a diminuição de práticas racistas, também é
importante que se problematize a relação entre raça e Estado Brasileiro, assim
como os aspectos centrais das estruturas sociais que legitimam o critério de
raça como elemento de identificação social.
Em face de explicitação de preconceitos, discriminações, estereótipos,
sobre os negros e a sua história, compreender o racismo à brasileira4 passou
3 Ministério da Educação/Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.
Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2010,
p. 18.
4 Expressão utilizada em livro: “Racismo à Brasileira: raízes históricas”, pelo autor “Marti-

53
a ser uma necessidade entre os pesquisadores. A partir do questionamento ao
mito de uma democracia racial, o enfrentamento ao racismo institucional foi
incorporado às discussões do universo político nacional, ainda que timida-
mente, sem assumir a dimensão que tal problemática requer. Mas os estudos
publicados provocaram uma discussão em vários setores sociais sobre o racis-
mo e isso incluía o questionamento acerca da produção dos livros didáticos.
Nos anos posteriores, as discussões sobre racismo no livro didático to-
maram uma dimensão que alcançou políticas públicas impulsionadas, em sua
maioria, por cobranças que vinham de movimentos sociais, em especial, do
Movimento Negro Unificado. A partir dos anos 1990, passou a ser reivindicado
com mais intensidade a introdução da História de África e cultura africana nos
currículos escolares, assim como o reconhecimento do racismo pelo Estado
Brasileiro.
Um ato de importância significativa foi a Marcha Zumbi contra o Ra-
cismo, pela Cidadania e Vida (em 20 de novembro de 1995), que culminou na
criação de um grupo de trabalho ministerial para propor políticas de valoriza-
ção do negro em todos os aspectos da cidadania, a partir do ato de reconhe-
cimento da existência do racismo no Brasil, no então governo de Fernando de
Henrique Cardoso - PSDB (1995-2003).
Uma segunda Marcha Zumbi foi realizada dez anos após a primeira, esta-
belecendo um marco na conquista de alguns direitos da população negra, que,
em sua maioria, foram reconhecidos no governo do PT, nas administrações do
presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016).
Esse movimento desencadeado pela Marcha Zumbi veio constituindo-se em
uma ação maior, mais complexa e organizada, desde a reabertura política com
a Constituição de 1988, mesmo ano do centenário da abolição.
Em 1996, o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH apresen-
tou como medida em curto prazo, “apoiar o grupo de trabalho interministerial
criado por Decreto Presidencial de 20 de novembro de 1995 com o objetivo
de sugerir ações e políticas de valorização da população negra”5 e, no contexto
educacional, como medida em médio prazo, “estimular que os livros didáticos
enfatizem a história e as lutas do povo negro na construção do nosso país, eli-
minando estereótipos e discriminações” (Ibid., p. 26). No PNDH - II (2002), em
sua nova revisão sobre os Direitos Humanos, na proposta 214 e 215, no que se
refere à educação, propõe novamente atenção aos livros didáticos, ao estabele-

niano José da Silva”.


5 BRASIL, PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS – PNDH, 1996, p. 25.

54
cer que:

214. Apoiar o processo de revisão dos livros didáticos de modo a resgatar a


história e a contribuição dos afrodescendentes para a construção da identidade
nacional.
215. Promover um ensino fundado na tolerância, na paz e no respeito à dife-
rença, que contemple a diversidade cultural do país, incluindo o ensino sobre
cultura e história dos afrodescendentes (BRASIL, 2002, p. 18).

Em 1996, foi formulado o primeiro Programa Nacional do Livro Didá-


tico, o PNLD, no qual as capas de livro, ilustrações, explicações científicas, a
função social do livro, o viés ideológico presente nas mensagens e interpreta-
ções passaram a ser direcionados a partir das normas estabelecidas por ele. E,
em 2003, houve a consolidação da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório nas
escolas públicas e privadas o “Ensino da História de África e Cultura Africana e
Afro-brasileira”. Tais movimentações sociais influenciaram discussões no cam-
po político, que desencadearam tais medidas.
Assim como analisa o material de Orientações e Ações para a Educação
das Relações Étnico-Raciais, produzido pela Secretaria da Educação Continu-
ada, Alfabetização e Diversidade – SECAD, sobre o papel da escola no que se
refere à problemática das relações raciais.

O silêncio da escola sobre as dinâmicas das relações raciais tem permitido que
seja transmitida aos (as) alunos (as) uma pretensa superioridade branca, sem
que haja questionamento desse problema por parte dos (as) profissionais da
educação e envolvendo o cotidiano escolar em práticas prejudiciais ao grupo
negro. Silenciar-se diante do problema não apaga magicamente as diferenças,
e ao contrário, permite que cada um construa, a seu modo, um entendimen-
to muitas vezes estereotipado do outro que lhe é diferente. Esse entendimento
acaba sendo pautado pelas vivências sociais de modo acrítico, conformando a
divisão e a hierarquização raciais (SECAD, 2010, p. 21).

Assim, a leitura construída ao longo dos anos pelo livro didático deu
permanência à construção da identificação social e cultural a partir da ideia
de raças, o que interferiu no processo de ensino-aprendizagem, reproduzindo,
assim, um conhecimento baseado na afirmação de uma estrutura social que se
realiza na existência de uma relação de dominação de brancos sobre negros.
O perigo de tal construção de conhecimento está na naturalização da relação
de dominação existente entre brancos e negros, assim como os seus efeitos na
sociedade contemporânea.

55
Considerações finais

Na primeira Conferência do Pan-africanismo, em 1904, William Du


Bois citou que “o problema do século XX é o problema da linha de cor”. Um
século se passou e a frase dita por Du Bois, no contexto brasileiro, ainda tem o
seu sentido, pois raça ainda define as estruturas das relações sociais, políticas e
econômicas, alimenta desigualdades e reforça o lugar social dos identificados
como negros e brancos.
Na análise apresentada neste ensaio, verificou-se que, no campo da
educação, o sentido de raça foi absorvido como um dado natural da condição
humana. Assim, o sistema educacional brasileiro foi construído com base nos
critérios de raça e cor. Nesse contexto, os livros didáticos e paradidáticos foram
alfabetizando crianças a se identificarem enquanto negros ou brancos.
As reinvindicações feitas, na segunda metade do século XX, ao Estado
Brasileiro, tanto por movimento de cunho racial quanto por pesquisadores, mi-
litantes e políticos ligados ao movimento negro, pairavam no reconhecimento
do racismo e no direito à construção de uma educação que desse representati-
vidade, protagonismo e reconhecimento à história dos identificados como ne-
gros e africanos. Essa ação resultou, nos anos 1990, em leis e medidas aplicadas
com o intuito de tornar a educação não racista e diversa.
Assim, com a promulgação da Lei 10.639/03, o ensino da cultura afro-
-brasileira e história de África passaram a ter reconhecimento na academia e
na educação básica, e, com isso, o ensino de África e a questão racial brasilei-
ra passaram a ser compreendidos na mesma medida, como sinônimos. Logo,
sem a devida problematização do racismo e da real condição de aplicação con-
creta dos termos e determinações dessa Lei no contexto educacional e social,
continuará criando a falsa impressão de estar combatendo o racismo e seus
derivados. Todavia, não se pode deixar de reconhecer que muito vem sendo
conquistado no sentido de trazer a discussão para a pauta.
Contudo, as dificuldades que permeiam o ensino no que se refere à ques-
tão racial evidenciam a dificuldade de lidar com o racismo, pois os desdobra-
mentos na modernidade de positivar a raça nos faz desconsiderar que raça é
uma construção do racismo, isto é, uma construção social, política e ideológica.
Por isso, temos que discutir racismo e essa discussão tem que incluir o Estado
e os seus organismos de poder. Pois a ausência da discussão do racismo pelo
Estado Brasileiro com a sociedade civil, academia e os organismos de poder faz
com que aqueles que sofrem diretamente as marcas do racismo continuem a

56
querer positivar a raça como se o problema estivesse apenas na raça e na cor da
pele. E foi com o objetivo de contribuir com uma reflexão acerca da problemá-
tica do racismo no contexto educacional na sociedade brasileira que o presente
ensaio se realizou.

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58
O protagonismo pertence aos brancos?
O papel do negro na crítica de Muhammad
Ali e o Jesus diferente de Ariano Suassuna

Joabe Rocha de Almeida

Por que eu quero ficar nessa casa? Porque aqui foi o único lugar que eu encon-
trei onde me senti gente. Nessa casa, não tem aquela maldita plaquinha onde
se ler: entrada de serviços. Fui criada assim, eu sei, mas sou tratada como
gente. A Dona Carlota outro dia até me beijou. No dia do meu aniversário fi-
zeram festa. Me deram presentes. Como se eu fosse da família. Eles me deixam
estudar. Eu faço meu curso de inglês. De corte e costura por correspondência.
Eu amo Dona Carlota. Amo Dr. Adalberto. Como se eles fossem meus pró-
prios pais. Na cor nós somos diferentes. No coração, não.
(Maria Clara. Novela Antonio Maria, 1968)1.

A sociedade,2 por meio de instrumentos e instituições de poder, constru-


íram e forjaram, desde os tempos remotos até a chamada contemporaneidade,
uma dominação dos brancos sobre os negros e tudo aquilo que estava atrelado
à cor branca sobre a negra. Essa condição de submissão passou a ser aceita pelo
próprio negro no processo histórico. Não a submissão física e de maus-tratos,
mas, a simbólica e cultural. Essa aceitação acontece, muitas vezes, através de
1 Fala da primeira atriz negra a ser protagonista, Jacira Silva, como papel de doméstica,
interpretando Maria Clara, na novela Antonio Maria de 1968/69, ressaltada no filme-docu-
mentário A Negação do Brasil: O negro na telenovela brasileira (2000), de Joel Zito Araújo.
2 A palavra “sociedade” está tomada aqui, neste estudo, como referência à sociedade brasi-
leira e aos Estados Unidos da América.
um invólucro disfarçado, como se nada estivesse acontecendo.
Seria capaz o negro de ter forças para ultrapassar essa barreira e tornar-
-se protagonista dos filmes americanos, nos desenhos criados pela Marvel, nas
novelas brasileiras, nas literaturas, na religião? Acredito que a melhor pergunta
no século atual seria: o negro está realmente preocupado em querer ultrapassar
essa barreira? Florestan Fernandes em “O negro no mundo dos brancos” explica
que na busca de atingir uma democracia racial o “negro e mulato tem de aceitar
a padronização e a uniformização” (2007, p. 16). Por isso que mesmo “as portas
do mundo dos brancos não são intransponível, para atravessá-las, porém, os
negros e os mulatos passam por um abrasileiramento que é, inapelavelmente,
um processo sistemático de branqueamento” (FERNANDES, 2007, p. 16).
O negro no passado, não muito distante do nosso, explica Darcy Ribei-
ro, que sua carreira “[...] foi desde o primeiro momento chamado à execução
das tarefas mais duras, como mão de obra fundamental de todos os setores
produtivos. Tratado como besta de carga exaurida no trabalho [...]” (RIBEIRO,
2015, p. 174). Mesmo depois de sua ascendência, vivendo na condição livre, o
negro ainda se encontra distante de uma integração social e cultural que torne
o seu papel central e não mais arraigado no exercício físico e não intelectual,
“na condição de subproletariado, [...] principalmente o de animal de serviço”
(RIBEIRO, 2015, pp. 174-5).
O campo historiográfico, a partir da chamada Nouvelle Histoire Culturelle
(mais precisamente entre as décadas de 1970 e 1980), concentrou seus olhares
para novos caminhos e objetos de estudos, tratamento diferente nos métodos
e abordagens das fontes e até mesmo a quebra dos limites da História, a fim de
suscitar outras perspectivas de análise em que até aquele momento vinha sendo
produzido no seio da ciência/disciplina histórica. O cinema, enquanto objeto
de estudo, acabou recebendo novas análises dos historiadores. Passou a ser re-
cebido como uma fonte de pesquisa capaz de mostrar como se deu (ou se dá) a
construção e representação de um lugar – político, econômico, religioso, social
–, sendo, dessa forma, um instrumento de poder. A religião também recebeu
novo tratamento pelo historiador.
Através das inquietações suscitadas acima e a partir dos entrecruzamen-
tos de fontes e campos diferentes, possibilitados pelo Métier dessa Nouvelle His-
toire Culturelle, procuro neste estudo – que se dá mais pelo viés de ensaio-crítico
acadêmico do que especificamente um artigo – analisar como os instrumentos
e as instituições de poder, pegando aqui o cinema como instrumento e a reli-
gião como instituição, desenharam uma arquitetura social em que a cor branca,

60
seja ela relacionada ao próprio sujeito ou objeto, está atrelada ao poder domi-
nador, à centralidade, à pureza, enquanto que o negro/cor negra é classificado
como algo ruim, que nasceu para ser dominado, escravizado, culturalmente e
simbolicamente, que não é sagrado, muito menos puro, buscando questionar
as formas de subalternização do negro e o que engendrou o protagonismo dos
brancos no decurso histórico.

1 Cinema como fonte metodológica do historiador: extensão do real ou


realidade do fato?

[o cinema] destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada


indivíduo se tinha constituído diante da sociedade. [...] A imagem,
as imagens [...] constituem a matéria de uma outra história que
não a História, uma contra-análise da sociedade.
(Marc Ferro apud Morettin)3

Com essa Nouvelle Histoire Culturelle, o historiador passou a incorporar


novas fontes para a construção da historiografia, apropriando-se até mesmo de
materiais que antes não faziam parte do interesse do historiador. É o que explica
Marc Ferro afirmando que o “historiador escolheu esse ou aquele conjunto de
fontes [...] de acordo com a natureza de sua missão, de sua época, trocando-os
como uma combatente troca de arma ou tática quando aquelas que utilizavam
perdem a eficácia” (FERRO, 1971 In LE GOFF; NORA, 1992, pp. 80-1).
O cinema, nascido no limiar do século XX, trouxe uma transformação
de comportamento em variados níveis sociais/culturais, passeando na tela mo-
vimentos que davam a entender que era a própria realidade, fazendo com que a
burguesia “num universo cultural que expressará o seu triunfo e que ela imporá
às sociedades [...]” (BERNADET, 1980, p.15). Somente na metade do mesmo
século que o campo da História sentiu a necessidade de colocar essa fonte em
seu universo disciplinar. Nos anos de 1970, o cinema passou de indiferentismo
e estranho para uma metodologia primordial, consolidado, assim, nos objetos
de estudos do ofício da Clio.
O pesquisador da História aceitou o cinema como valor documental
para construir seu trabalho historiográfico. Dá forças, reforça e responde certas
indagações que outras fontes não puderem responder. Como então entender e
interpretar o cinema como documento? A autora Mônica Kornis vai dizer que,
até meados dos anos de 1950, acreditavam que o cinema seria como “um espe-
3 FERRO, 1976, pp. 202-3 apud MORETTIN, 2003, p. 13.

61
lho que refletisse de maneira imediata, pura e simples a realidade e a verdade”
(KORNIS, 1992, p. 4 apud NAVARRETE, 2008, p. 22). Nesse viés, será que com
o amadurecimento do historiador diante de suas fontes, o cinema como uma
delas, é uma extensão do real (aquilo que realmente ocorreu) ou uma represen-
tação do real (interpretação/narrativa daquilo que ocorreu, chamado também
de realidade do fato)? O historiador tomaria esse tipo de fonte como verdade?
Tais indagações são importantes, pois concernem a relação intrínseca da pes-
quisa histórica, os pressupostos teóricos e a narrativa fílmica como caminho
metodológico que o historiador irá seguir.
Pegando o pensamento de Jacques Le Goff quando afirma que:

[...] Não existe um documento verdade. Todo documento é mentira. Cabe ao


historiador não fazer o papel de ingênuo. [...] É preciso começar por desmon-
tar, demolir esta montagem [a do documento], desestruturar esta construção e
analisar as condições de produção dos documentos-monumentos. (1992, p. 2).

Seguindo esse modo de análise legoffeano, o cinema pode ser uma re-
presentação do real (realidade do fato)4, ou seja, a narrativa fílmico-novelesca
interpreta o fato à maneira de quem traduziu o contexto em seu espaço-tempo
em que se situa o enredo, que, dependendo da dimensão e grau de importância
que dão a ela, acaba tornando-se uma extensão (construção) do real, tomado
como verdade e referência única. A arte cinematográfica, então, faz-se como
um produto de uma linguagem e teias de significados, selecionados a partir de
uma articulação entre o produtor do conhecimento (o roteirista), que monta as
cenas procurando aproximar o público de uma construção do real dos aconte-
cimentos históricos em que o filme está enredando, e a natureza da subjetivida-
de de quem a escreveu.
O cinema, nessa perspectiva, acaba tendo como caráter tanto a forma de
uma obra de arte em movimento quanto uma representação simbólica que (re)
produz significados sobre os acontecimentos no mundo, que tenta de variados
modos trazer para dentro das telas. Não nos faltam exemplos de filmes5, no-

4 Importante explicar que faço aqui uma diferenciação entre real e realidade. Enquanto o
real é o fato (ocorrido) em si, aquilo que realmente aconteceu na íntegra. Já a realidade é a
interpretação do fato, representação mais aproximada possível daquilo que ocorreu.
5 Abrindo aqui um parêntese, é o caso também dos filmes que se passam no Nordeste,
em que percebemos uma representação do real (realidade do fato), mostrando em sentido
único e direcional uma região seca, rural e de um marasmo socioeconômico. Filmes como
Vidas Secas (1963), Guerra dos Canudos (1997), Central do Brasil (1998), Abril Despedaçado
(2002), O Caminho das Nuvens (2003), Lisbela e o Prisioneiro (2003), Cinema, Aspirinas e

62
velas, desenhos animados, que têm o poder, consciente ou inconscientemente,
de construírem no público-alvo uma ideia/imagem como modelo de verda-
de única, tais como, por exemplo, o filme Tarzan, criação de 1912, na Revista
Pulp  All-Story Magazine, pelo escritor estadunidense  Edgar Rice Burroughs
e, posteriormente, lançado aos cinemas pela primeira vez em 1918, inclusive
Muhammad Ali não poupou críticas fortes sobre o enredo do filme, dizendo:
“Eu me perguntava: − Por que o Tarzan, o rei da selva, na África, era branco?
[...] Ele briga com africanos, quebra a mandíbula dos leões. E Tarzan fala com
os animais, enquanto os africanos que estão ali por séculos não conseguem
falar com os animais”6.
Um filme ou qualquer produção cinematográfica tem a capacidade de
exceder seu conteúdo, em que com a retina aguçada permitirá ver no espaço
do inapreensível e do não visível, ideologias, as representações, os tipos de dis-
cursos defendidos.

A crítica não se limita somente ao filme, integra-o no mundo que o rodeia e


com o qual se comunica necessariamente. [...] É necessário [...] analisar no filme
principalmente a narrativa, o cenário, o texto, as relações do filme com o que
não é o filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime. (FERRO, 1971
in LE GOFF; NORA, 1992, p. 203).

Para Marc Ferro, o filme é um agente da história, e não é só um produto:


“[...] Por um lado o filme parece suscitar, ao nível da imagem, o factual; por
outro, apresenta-se, em todos os sentidos do termo, como uma manipulação”
(In LE GOFF; NORA, 1992, p. 202). Para entender o filme não apenas no cam-
po cinematográfico, mas também como um documento importante de análise,
que se desloca “da obra escrita para o filme, e no filme, do texto para a imagem”
(Ibidem, p. 202), é preciso empreender-se na tentativa de desnudar o primeiro
plano das cenas, e, na mesma perseverança, atentar-se a uma imagem-objeto,
para um não visível.
Se, para Marc Ferro, a arte cinematográfica se faz como uma monta-
Urubus (2005), Ó Paí, Ó (2007), dentre outros, dão como pano de fundo uma nordestinida-
de de cultura única, população rude e envelhecida pelo sol e trabalhos árduos, de uma pai-
sagem que não muda – cerrado e semiárido. São narrativas transmitidas através do cinema
que petrificaram no seio da sociedade, criando estereótipos que, ao longo de uma afirmação
midiática, tornaram-se verdades de um caminho só.
6 Essa entrevista está disponibilizada na internet com o título: “Muhammad Ali - Por que
tudo é branco?”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6aodGt-XJqM&t=7s .
Acesso em: 17/11/2017. No próximo tópico, essa entrevista estará mais detalhada e com as
devidas observações e análises.

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gem, que por trás dela está uma busca ou aproximação do real (embora essa
ideia de Marc Ferro seja bastante aceita no que se trata do cinema como uma
extensão do real), o autor Eduardo Morettin diverge do pensamento de Ferro,
criticando-o e fazendo um percurso de óptica diferente. Segundo Morettin, o
cinema, tomado por ele mesmo, não pode ser entendido como uma ponte que
liga o filme – enredo, falas e cenas – ao real, como “um testemunho singular de
seu tempo” (MORETTIN, 2003, p. 13) e que “está fora do controle de qualquer
instância de produção” (Ibidem, p. 13), visto que, para Eduardo Morettin, tudo
é uma construção de sentidos; apenas uma representação.

2 Cinema, negro e religião: Muhammad Ali e a reflexão-crítica da


construção social dos negros e brancos

Começarei com a reflexão-crítica deixada pelo boxeador americano


Muhammad Ali7, numa entrevista em 1971, em que ressaltou, de forma bas-
tante incisiva, que os grandes personagens das sociedades são pertencentes à
cor branca. Já adianto que, por conta do espaço curto que tenho neste ensaio-
-crítico acadêmico, frisarei a primeira parte da entrevista quando ele critica a
ausência negra no mundo da religião, principalmente voltada para a discussão
de um Cristo com traços europeus. Nesse sentido, a proposta aqui caminhará
mais nas suscitações de questionamentos do que propriamente responder pos-
síveis inquietudes.
Segundo Muhammad Ali:

7 Cassius Marcellus Clay Jr., mais conhecido como Muhammad Ali, nascido na cidade de
Louisville, 17 de janeiro de 1942, Estados Unidos da América, foi um dos maiores expoentes
boxeadores do mundo em seu tempo. Não por acaso, o escritor e jornalista David Remnick,
ao fazer um livro de sua biografia, chamou-o de “O rei do mundo: Muhammad Ali e a as-
censão de um herói americano” (1988). Não somente ficou reconhecido por suas atuações
no ringue, como também por sua personalidade forte e subversiva ao sistema religioso e
político americano, dando várias entrevistas bem polêmicas e ousadas no seu tempo, inclu-
sive, sobre os motivos de sair do Cristianismo e aderir à religião mulçumana (o Islamismo),
como desertar na guerra do Vietnã e sua luta contra o racismo. Na sua cidade de origem,
estado de Kentucky, havia uma segregação forte entre brancos e negros, protegida por lei.
O boxe nas décadas de 1960 a 1980, considerado um ícone de uma representação de força
social, econômica e de poder na sociedade americana, fez com que Muhammad Ali, sendo
negro, usasse a força que ele possuía para lutar bravamente contra o protagonismo do bran-
co e a subordinação e humilhação que os negros sofriam em várias instituições de poder. No
dia 3 de junho de 2016, após 32 anos de uma luta, não mais nos ringues e nos microfones,
mas sim uma luta contra a doença de Parkinson, Muhammad Ali morreu aos 74 anos, de-
vido a problemas respiratórios, no hospital de Phoenix, cidade onde estava residindo com
a família.

64
Eu sempre perguntava para a minha mãe: − mãe, por que é tudo branco? Por que
Jesus é branco de olhos azuis? Por que na última ceia, todos são brancos? Maria,
inclusive os anjos. Perguntei: − mãe, depois de morrermos vamos para o céu? Ela
disse: − claro que vamos para o céu. Eu respondi: − então, o que aconteceu com
todos os anos negros? Eu continuei: − Eu sei. É porque se os homens brancos
estão no céu, os anjos negros estão na cozinha preparando o leite e o mel. Eu
me perguntava: − porque o Tarzan, o rei da selva, na África, era branco?. [...]
Ele briga com africanos, quebra a mandíbula dos leões. E Tarzan fala com os
animais, enquanto os africanos que estão ali por séculos não conseguem falar
com os animais. Eu me perguntava: − por que a Miss Estados Unidos era sempre
branca? Tantas mulheres lindas e negras do país, lindos bronzeados e silhuetas,
por que escolhem a branca com tanta diversidade? [...] E a Miss Universo era
sempre branca. E também as coisas: charutos da Casa Branca, Sopa de Cisne
Branco, Sabão do Rei Branco, Papel de Nuvens Brancas, Peixes de Anéis Bran-
cos, cera de piso, Tony Branco, tudo era branco. E o bolo do anjo era branco,
enquanto a torta do diabo era de chocolate. E eu me perguntava: − o presidente
dos EUA mora na Casa Branca, e a Branca de Neve, e o Papai Noel era branco. E
tudo que era ruim era negro. O patinho feio era negro, o gato preto é o do azar
[...]. (Grifos meus)8.

Muhammad Ali, ao falar da imposição de uma cor sobre outra, em que


brancos se sobrepõem sobre a cor negra, convida-nos a discutir como os ne-
gros foram (e estão) sendo representados pelas instituições e instrumentos de
poder. Tal reflexão nos faz lembrar do pensamento de um grande representante
da chamada Nova História Cultural, o historiador francês Roger Chartier, no
seu texto, O Mundo como Representação (1989), que defende a ideia de uma
“dominação simbólica” que permeia na sociedade. O que seria essa dominação
simbólica? Para o autor, toda representação social aspira à hegemonia de um
grupo, que a todo o momento tenta legitimar-se e impor aos grupos mais fracos
(socialmente ou economicamente) seus valores, crenças, regras, conceitos.
O “Mundo” a que se refere Chartier são as “coisas”, em outras palavras,
são as instituições de poder – Religião, Estado, Política, Família, Escola – e os
instrumentos de poder – Cinema, Literatura, Arte, Veículos midiáticos. Nessa
perspectiva, Muhammad Ali desenha muito bem em sua fala o papel do negro
em vários lugares sociais, principalmente no cinema, mostrando como a cor
negra foi e está sendo representada e construída historicamente como inferior

8 Essa entrevista está disponibilizada na internet com o título: “Muhammad Ali - Por que
tudo é branco?”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6aodGt-XJqM&t=7s .
Acesso em: 17/11/2017

65
à branca nos palcos do entretenimento televiso.
Ressalta Kênia Freitas que:

Há cerca de 100 anos, o cinema narrativo clássico começava a se estabelecer em


Hollywood, nos Estados Unidos da América. [...] Relembrar uma historinha
ou um deslize pontual no surgimento do cinema como indústria, é uma forma
de perceber como o cinema não nasce ideologicamente neutro. As artes e as tec-
nologias são frutos do trabalho e das relações humanas que se dão em sociedade,
influenciadas por fatores econômicos, históricos e estruturais que organizam essa
sociedade. [...] Essa predominância histórica da ideologia racista desde o estabe-
lecimento do cinema como forma artística e narrativa muito tem a dizer sobre
a realidade da representação do negro na tela grande ainda atualmente. (FREI-
TAS, 2016, p. 12). (Grifos meus).

O cinema9, como produção midiática, não deixa de ser, desde sua cria-
ção, uma produção industrial de ideologias e de discursos subjetivos, que tem
forças de promover representações pictóricas estereopatizadas ou preconceitu-
osas, no qual a “olho nu” não dá para entender o verdadeiro corpus do filme,
desenho ou novela. Mas, como explica Foucalt, por trás de um discurso existe
“o não-dito que involuntariamente recobrem, a abundância de pensamentos,
imagens ou fantasmas que as habitam” (FOUCALT, 2008, p. 124), que faz com
que os discursos e as possíveis intenções e determinações de papéis sociais não
possam ser interpretados nas linhas, mas sim nas entrelinhas do que está sendo
enunciado.
A grande escritora moçambicana, Paulina Chiziane, deu uma importan-
te entrevista na plataforma eletrônica Buala, cujo título “Os anjos de Deus são
brancos até hoje”, na qual fala abertamente sobre os diversos aspectos culturais,
políticos e econômicos que existem na relação entre negros e brancos, tanto na
África como na relação entre Portugal e Brasil (no colonialismo e pós-colonia-
lismo).
Um trecho dessa entrevista nos chama muita atenção no que se trata da
problemática discutida neste estudo:

Doris Wieser -[...] Qual era a imagem estereotípica dos portugueses no tempo
colonial e como mudou esta imagem desde então?
Paulina Chiziane - [...] Nos livros de escola, quando eu estudei no tempo colo-
nial, o branco era representado com chapéu, roupa de safari e uma arma, todo
orgulhoso. E o negro era representado com uma saia de peles, sempre uma ima-
9 O conceito de cinema neste estudo não se refere ao espaço físico, mas aos filmes, desenhos
e novelas, e tudo aquilo que é transmitido de forma imagética (em movimento) à sociedade.

66
gem caricata. Não me lembro de ter visto imagens bonitas de africanos nos li-
vros do tempo colonial. Osindivíduos da raça negra eram sempre retratados de
maneira à demostrar inferioridade. E quando se fala do confronto entre raças
há ainda uma imagem que circula, dos pretos à volta de uma fogueira, e um
grande pote com um branco de chapéu e uma arma lá dentro para mostrar que
os negros eram canibais.
[...] Frequentei uma escola primária católica e, quando comecei a ir à igreja, Deus
era branco e o diabo era preto. Com o tempo isso foi desaparecendo, mas ao mes-
mo tempo continua. Os anjos de Deus são brancos até hoje, anjos pretos ainda
não há. (CHIZIANE, 2014, s.p.). (Grifos meus).

É o caso dos filmes que tratam da vida de Jesus ou dos personagens das
narrativas bíblicas, ressaltado, inclusive, no começo da fala de Muhammad Ali:
“[...] mãe, por que é tudo branco? Por que Jesus é branco de olhos azuis? Por
que na última ceia, todos são brancos? Maria, inclusive os anjos [...]”. Embora
Jesus tenha nascido em Belém,  província judaica governada pelo Império Ro-
mano, que hoje faz parte do Oriente Médio, todas as características da imagem
de Jesus, sua mãe Maria e dos discípulos, tomam como ponto de referência as
origens europeias.
Essas características, (re)inventando a imagem de Jesus nos cinemas e
dos personagens bíblicos, levam-nos a crer que podem ter sido uma criação ro-
mana. Tais inferências são tomadas a partir do pressuposto quando analisamos
a construção das representações das figuras religiosas através da arte pictórica
encontrada séculos depois nos vestígios do tempo, que partia sempre de quem
estava no poder de Roma. Temos, por exemplo, o Papa Calisto I (165-222), no
século III, mais conhecido como São Calisto I, que aderiu à ideia de um Cristo
na aparência de um pastor sem barba (muito comum entre os romanos daquela
época), pele bem clara e roupas longe de serem parecidas com as dos judeus10.
O Imperador Constantino (306-337), no século IV, também não ficou de fora
dessa arte de inventar a imagem de Cristo. Usando a força imperial que possuía,
inclusive para encerrar a perseguição aos cristãos com o Édito de Milão, man-
teve a figura de Cristo nos moldes da mesma iconografia de seus antecessores,
com o intuito de agradar os conservadores religiosos que já tinham fixado um
“filho de Deus” com as aparências de um descendente europeu (STOCKTON,
2015).
10 Foi encontrada nas catacumbas de São Calisto (Catacombe di San Callisto), mais conhe-
cidas como Cemitério de Calisto, em Roma, uma figura da imagem de Cristo. Ver imagem
em: STOCKTON, Richard. How Did Jesus Become White?, 2015. Disponível em: http://
allthatsinteresting.com/white-jesus. Acesso em: 26/04/2018.

67
Assim como em cada livro considerado Evangelho da Bíblia, a personali-
dade e missão de Jesus foram abordadas de formas diferentes, embora nenhum
dos evangelistas descreveu a figura humana do Messias, os meios de comu-
nicação televiso não foram diferentes. Há uma enorme variação de represen-
tações da figura de Jesus nos filmes – alguns deles com uma feição bem mais
moderna do que as pessoas que viveram na sociedade antiga –, principalmente
os hollywoodianos, “[...] numa gama quase que ad infinitum de interpretações:
o Jesus da Era Cristã, da Idade Média, do Renascimento, da época moderna”
(COSTA, 2012, p. 43), fazendo-nos enxergar uma relação intrínseca entre a
produção industrial do cinema (capitalista e mercadológica) e os frutos das
artes iconográficas deixados pelos vestígios do processo histórico-político dos
imperadores e figuras régias.
Destarte, os filmes cinematográficos não escapam da representação da
imagem de um Cristo loiro, com barbas claras, olhos azuis e com a fisiono-
mia de um europeu ocidental, como, por exemplo, o filme “A paixão de Cristo
(2004)”, com o ator Mel Gibson, e “Jesus - O Filme: Segundo o Evangelho de
Lucas (1979)”, com o ator Brian Deacon, mostrando a nós que Cristo e todos os
personagens religiosos da Bíblia, incluindo aqui as divindades celestiais – Deus
e os querubins –, foram construídos e produzidos através do olhar do branco
europeu, marginalizando, excluindo em muitos casos, a cor negra. Criando for-
ças de imposição simbólica na sociedade de que o branco pertence ao sagrado,
ao religioso e a cor negra ao profano e ao duvidoso. Que o branco pertence à
posição de protagonista e o negro ao papel de figurante.

3 O “Jesus diferente” no imaginário de Ariano Suassuna

Seria possível jogar a crítica de Muhammad Ali feita à sociedade ameri-


cana para a cultura brasileira e assim enxergarmos como está formada (ou se
formou)? Para isso, peguei como base o exemplo do Jesus negro do filme O
Auto da compadecida, adaptação da peça teatral do escritor Ariano Suassuna11,

11 Ariano Vilar Suassuna, mais conhecido como Ariano Suassuna, nasceu em João Pessoa,
Paraíba, no dia 16 de junho de 1927. Teve uma infância conturbada após seu pai, João Suas-
suna, governador do Estado (na época era chamado o cargo de presidente do estado), ter
sido assassinado durante a Revolução de 1930, fazendo com que a família fosse morar em
Taperoá. Durante sua vida, publicou diversas obras literárias, como a famosa obra O Auto
da Compadecida (1955) e O Auto Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-
-e-Volta (1971). Além do ofício de escritor e professor de “Estética”, na Universidade Federal
de Pernambuco, em 1956, foi também secretário do Ministério de Cultura de Pernambuco
entre os anos de 1994 a 1998, depois secretário de assessoria do governo de Eduardo Cam-

68
de 1955, depois lançado em 1999 em forma de minissérie na Rede Globo, com
quatro capítulos, e, no ano seguinte, devido ao sucesso, transformada em filme,
como explicou o cineasta e roteirista Arnaldo Jabor, entrevista feita pelo Jornal
S. Paulo sobre o sucesso de O Auto da Compadecida no cinema:

Esse seriado para adolescentes teve uma grande importância, pois libertou a
narrativa das sequências e as personagens das motivações críveis e da moral
familiar. O que surgiu como comédia de surfe virou sem querer um marco na
TV. “O Auto da Compadecida” é filho de “Armação Ilimitada” com as trapalha-
das medievais de saltimbancos populares. [...] Eu creio que o resultado desta
operação TV-filme inova formalmente o cinema no Brasil. (JABOR, 2000, s.p.).

Esse Jesus negro e visto por um olhar esquivo dos telespectadores brasi-
leiros, chamado de “Jesus diferente”, foi motivo de ironias quando se apresentou
a João Grilo no julgamento. No filme, João Grilo fala a Jesus: “Eu não quero
faltar com respeito a uma pessoa tão importante, mas se não me engano aquele
sujeito acaba de lhe chamar o senhor de Manuel”. E continua João Grilo: “O
senhor que é Jesus? Porque não é lhe faltando com respeito, mas eu pensava
que o senhor era muito menos queimado”. Depois que Jesus diz algumas pala-
vras bem eruditas, João Grilo termina com um discurso de preconceito: “Muito
bem! A cor não pode ser das melhores, mas o senhor fala bem que faz gosto”12.
Complementando ainda essa parte do enredo, pegamos a fala de Jesus
(Manuel), na obra de Ariano Suassuna, que conclui dizendo a João Grilo:

[...] Você é cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque
sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci branco e
quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim, tanto faz um branco
como um preto. Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?
(SUASSUNA, 2004, p. 148)13.

pos. Formou-se em 1950 no curso de Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito
de Recife (hoje Universidade Federal de Pernambuco), mas nunca atuou na área. Sempre
percorreu para o campo da literatura. Não por acaso, durante sua graduação, já escrevia
peças de teatro, como, por exemplo, escreveu sua primeira peça Uma Mulher do Vestido de
Sol, recebendo até o prêmio Nicolau Carlos Magno e a peça Auto do João da Cruz em 1950,
recebendo o prêmio Martins Pena. Fez Parte de várias Academias de Letras: eleito em 1993
para assentar a cadeira 18 na Academia Pernambucana de Letras; em 1990, convidado para
ocupar a cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras e a cadeira 35 na Academia Paraibana
de Letras. Morreu aos 87 anos, em 23 de julho de 2014, devido a problemas de AVC e uma
parada cardíaca.
12 Essa parte foi retirada literalmente do filme e não do enredo escrito na peça.
13 Quando Jesus fala: “Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?”,

69
Diferentemente dos filmes da vida de Jesus, em que neles há uma pro-
dução industrial e mercadológica, na história do escritor Suassuna, tanto o dis-
curso no filme quanto a fala de Jesus retirada da própria obra de Suassuna, a
ideia se inscreve de forma oposta. Num caminho em que o cinema brasileiro
como, por exemplo, a TV Globo, acostumada a “fazer novelas e seriados den-
tro da tradição do naturalismo psicológico do cinema americano, na linha das
velhíssimas (e infalíveis) regras aristotélicas da narrativa que, desde a Grécia
até Hollywood, nunca decepcionou produtores” (JABOR, 2000, s.p.), o filme
de autoria de Suassuna mostra que há uma necessidade de problematizar como
estão sendo fabricadas as produções cinemáticas e como elas foram construí-
das ideologicamente na sociedade, principalmente as telenovelas, em que nelas
percebemos uma demasiada valorização da chamada “matriz euro-descenden-
te”, ou seja, o branco como espelho da intelectualidade e como referência da
bela estética.
Colocar um Jesus negro num enredo narrativo brasileiro foi, de certa
forma, subversivo ao modelo cinematográfico, pois explicita toda uma mentali-
dade coletiva que, apesar de muitas vezes aparecer de forma oculta e disfarçada,
em que a própria sociedade aparentemente nega ser preconceituosa, porém,

Ariano Suassuna estava fazendo uma crítica ao movimento segregacionista que ocorria na
parte sulista dos Estados Unidos, nas décadas de 1950 e 1960. Tal movimento, que ocorreu
por motivos de racismo e exclusão da raça negra em vários setores institucionais, foi uma
das causas que fez o escritor Suassuna colocar um Jesus de cor negra na sua peça, como
ele, anos depois, explicou: “durante os dias em que escrevia a peça estava acontecendo, nos
Estados Unidos, uma campanha destinada a impor legalmente a presença de crianças ne-
gras nas escolas brancas. Em revide, os brancos racistas organizavam manifestações contra
a integração; e eu vi na revista ‘Life’ a fotografia de um desses comícios: na frente do grupo
de ‘brancos, anglo-saxões e protestantes’, uma mulher (aliás, e não por acaso, horrorosa-
mente feia) exibia um cartaz no qual se lia: ‘Ao criar raças diferentes, Deus foi o primeiro
segregacionista’. Foi nesse momento que, movido por uma daquelas indignações a que me
referi a princípio, resolvi apresentar como um negro a figura de ‘Manuel’, isto é, a imagem
popular do Cristo que iria aparecer em minha peça”. (SUASSUNA, 2000, s.p.). Vale frisar
que por muito tempo os negros americanos estavam segregados dos brancos, fazendo com
que, obrigatoriamente, nascessem em hospitais destinados exclusivamente para os negros
e jamais poderia uma mãe negra dar à luz dentro de um hospital construído para as pes-
soas brancas. As escolas, os tipos de trabalho, os cemitérios e até dentro dos ônibus havia
segregação de cor. Martin Luther King e Rosa Parks foram dois grandes líderes dessa luta
por direitos civis. Rosa Parks, uma mulher negra, ficou conhecida após sentar no ônibus na
parte reservada para as pessoas brancas em 1955, negando ceder o lugar a um homem bran-
co que, consequentemente, foi expulsa e detida. Essa segregação foi abolida, pelo menos no
ato da lei, pois simbolicamente e culturalmente permaneceu por muitas décadas depois,
com resquícios até mesmo nos dias atuais, no dia 2 de julho de 1964, pelo vice-presidente
Lyndon B. Johnson, que assumiu a presidência logo após o assassinato de John F. Kennedy.

70
percebemos que esse “Jesus diferente” foi recebido pela plateia brasileira (re-
presentada pelos personagens do enredo como pelas críticas e vários questio-
namentos da imprensa) de uma forma burlesca e fora dos padrões de uma re-
ligião pertencente ao mundo dos brancos, como ressaltou Joel Zito Araújo, em
entrevista ao Programa Salto (Rede Brasil), que “as pessoas, inconscientemente
partilham a visão de que o belo, o culto, o desejável, o ser moderno, o ser Pri-
meiro Mundo, é ser branco” (ARAÚJO, 2004, s.p.).
Foi esse “culto ao ser branco”, essa devoção à cor branca, que tudo aquilo
que estava atrelado à negritude foi jogado para o indesejável, ou para o sentido
de “trabalhos de sobras”, ou seja, para papéis sociais que subalternizam o ne-
gro e o identificam como inferior ao branco. É o que vai falar Joel Zito Araújo
no filme-documentário A Negação do Brasil: O negro na telenovela brasileira
(2000), que “as dificuldades que tive que guardar na memória a presença de
atores negros nas novelas daquela época certamente veio de minha recusa em
aceitar ver o meu grupo racial somente em papéis de pessoas em situações de
inferioridade social e cultural”. Por muitos anos e, para ser mais preciso, por
décadas esses papéis não só foram construídos pela indústria cinemática como
de formas ideológicas e imposições simbólicas foram aceitos até mesmo pela
classe negra.
Joel Zito Araújo, ao fazer um resgate do passado no filme-documentá-
rio, explica como a sociedade brasileira dava muita importância aos programas
televisivos, principalmente as telenovelas. É o caso, por exemplo, quando re-
lembra a dimensão midiática que a novela O Direito de Nascer causou na sua
primeira passagem em 1964/6514:

Refaço aqui as imagens que restaram em minha memória daqueles momentos


em que no final de minha infância assistíamos televisão pela primeira vez no
lugar em que nasci. Um pequeno vilarejo na divisa entre Minas e Bahia. Aquelas
pessoas, e em sua maioria negros e mulatos como eu, disputavam todas as noites
um espaço nas janelas do meu tio para se atentar com O Direito de Nascer15.

Ainda no filme-documentário, Joel Zito Araújo faz uma colocação im-


portantíssima sobre a protagonista da novela O Direito de Nascer:

14 Novela foi transmitida pelas extintas TV Tupi-São Paulo e TV-Rio, entre os dias 7 de
dezembro de 1964 a 13 de agosto de 1965, no horário das 21h30.
15 ARAÚJO, Joel Zito. A Negação do Brasil: O negro na telenovela brasileira. Filme-do-
cumentário de Joel Zito Araújo, 2000. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=PrrR2jgSf9M&t=166s. Acesso em: 10/04/2018.

71
A atriz Isaura Bruno foi imortalizada pela sua performance como mãe Dolores.
Uma personagem que parecia ser uma combinação perfeita entre dois estere-
ótipos clássicos: a mãe negra da literatura e do teatro brasileiro e a mami do
cinema norte-americano. A cena final em que mamãe Dolores revelou os pais
verdadeiros de seu filho de criação foi vista por um milhão e meio de telespec-
tadores [...]. Mas, a coincidência do primeiro sucesso de audiência da telenovela
brasileira e a paixão despertada por essa personagem negra não se constituiu
nenhum sinal e que teríamos a partir dali um futuro promissor para os atores
negros. Depois de atuar somente em três novelas nos seis anos seguintes, Isaura
Bruno morreu pobre e como uma desconhecida, vendendo doce na Praça da Sé
em São Paulo. A história de Isaura Bruno já prenunciava o drama de reconhe-
cimento que viveriam todos os atores negros da TV brasileira. [...] A criação da
democracia racial e o desejo de branqueamento, tão forte naquele período, nos
impediram de perceber o desfecho trágico de Isaura Bruno16.

Através de todo esse enredo, entrelaçado e contraditório, a mesma in-


dústria cinemática que enaltece a importância do negro na sociedade, tanto no
sentido de mercado de trabalho quanto na atuação nos palcos da arte cinema-
tográfica, é ela que cria uma imagem negativa dos negros a partir dos papéis de
atuações que desempenham na história que está sendo narrada.
Nesse caminho, num Brasil que há uma forte autolegitimação do bran-
queamento como sendo a única cor capaz de dominar espaços sociais/institu-
cionais, Jesus representado por um negro (Maurício Gonçalves) expõe de ma-
neira clara todo um público brasileiro recheado de estereótipos e que sempre
tenta de várias maneiras subjazer a cor negra com papéis de segundo plano e
marginalizados. Enquanto a ideia cristalizada é de que o herói (personagem-
-objeto) da narrativa se constrói como sujeito/objeto com características de do-
minador, com forças de libertar e nunca de ter sido no passado escravizado ou
colocado como pertencendo àquilo que é ruim, pecaminoso, Ariano Suassuna,
propositalmente, faz surgir um conflito entre essa ideologia dominante: “O po-
der outorgado ao ‘Cristo Negro’, como a própria fala do personagem afirma,
vem para escandalizar, causar estranhamento e quebrar aquele paradigma bar-
roco de leitura do Cristo branco, europeizado” (MORAES, 2006, p. 95).
Ariano Suassuna foi tão perspicaz em sua escrita que no final da peça
o mesmo Jesus negro que fez o julgamento, juntamente com sua mãe Maria,
de João Grilo e todos os que morreram (Padeiro Eurico e sua mulher Dora, o

16 ARAÚJO, Joel Zito. A Negação do Brasil: O negro na telenovela brasileira. Filme-do-


cumentário de Joel Zito Araújo, 2000. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=PrrR2jgSf9M&t=166s. Acesso em: 10/04/2018.

72
Padre João e o Bispo, Cangaceiro Severino, etc.), aparece novamente, mas agora
na terra e com vestes bem humildes, despido de seu poder divino, pedindo até
mesmo um pouco de comida a João Grilo, Chico e sua esposa Rosinha. Ao dar
um pedaço de bolo do seu casamento para o Cristo negro e ver que João Grilo
retruca a ajuda, dizendo que ele não era o filho de Deus, Rosinha fala: “Jesus
às vezes se disfarça de mendigo para testar a bondade dos homens”. João Grilo
bem ironicamente diz: “Pode até acontecer, mas aquele ali não era não. Jesus?
Pretinho daquele jeito?”. E, na mesma sequência, numa das histórias fantasio-
sas de Chicó, ele conclui dizendo: “Eu conheço um sujeito em Cabeceiras que
se encontrou com Jesus Cristo. [...] Ele me falou que o paraíso é pelos lados da
Bahia. Por isso que Cristo é escurinho”17.
Toda essa parte mostra que João Grilo representando, nesse caso, a pró-
pria postura do homem branco, apoia-se no negro para alcançar seus objetivos.
Depois que consegue, desconhece e rejeita totalmente a negritude. É o caso,
por exemplo, quando João Grilo precisava ser absolvido para não ir ao infer-
no. Mesmo Cristo sendo negro, reconhece-o como filho de Deus, tomado de
autoridade divina, pois sabia ele que naquele momento somente esse “Jesus
diferente” poderia ajudar.
João Grilo, de volta à terra, quando não precisava mais de um homem
negro, retoma todo o seu modo de pensar preconceituoso que tinha proferido
no julgamento, inclusive reforçando a ideia de que Cristo não pode ser “preti-
nho”. Já a fala de Chicó representa a mentalidade pré-fixada na cultura brasi-
leira, ao dizer que Cristo veio da Bahia, pois além do estado ocupar o segundo
lugar no ranking de maior composição negra do país18, ele usa o termo “escuri-
nho”, dando uma irônica tonalidade ao racismo.
Por isso que Ariano Suassuna sabia o que estava fazendo. Ele queria real-
mente mostrar de alguma maneira que existe um modus operandi de uma fron-
teira invisível, porém, bem perceptível e culturalmente fixa, do branco domi-
nador e do negro figurante, criado pelas instituições e instrumentos de poder,
como explica Lília Schwarcz, que a ideologia do branqueamento continua ain-
da bem sólida “no cotidiano das pessoas, internalizadas e eficientes por serem
invisíveis e silenciosas” (1998, p. 67). Enfim, Ariano Suassuna quis revelar que a
sociedade se autoafirma em saber diferenciar o “Cristo da fé” e o “Cristo Cine-
mático”, no entanto, não parece confirmar no sentido prático e stricto sensu das
relações sociais: “Os meios de comunicação venceram o embate pela imagem
17 Essa parte foi retirada literalmente do filme e não do enredo escrito na peça.
18 Segundo dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, no
Censo Demográfico de 2010.

73
de Jesus Cristo” (VADICO, 2016, p. 8).

Considerações finais

Pegando o pensamento de Jacques Le Goff quando afirma que “[...] não


existe um documento verdade. Todo documento é mentira. Cabe ao historia-
dor não fazer o papel de ingênuo. [...] É preciso começar por desmontar, de-
molir esta montagem [a do documento], desestruturar esta construção e ana-
lisar as condições de produção dos documentos-monumentos” (1992, p. 2) e
seguindo esse modo de análise legoffeano, o cinema pode ser entendido como
uma representação do real, ou seja, a narrativa fílmico-novelesca interpreta o
fato à maneira de quem traduziu o contexto no espaço-tempo em que se situa
o enredo, e, dependendo da dimensão e grau de importância que dão a ela,
acaba tornando-se uma extensão (construção) do real, tomado como verdade
e referência única19. A arte cinematográfica, então, faz-se como um produto de
uma linguagem e teias de significados, selecionados a partir de uma articulação
entre o produtor do conhecimento (o roteirista), que monta as cenas procuran-
do aproximar o público de uma construção do real dos acontecimentos histó-
ricos do qual o filme está enredando, e a natureza da subjetividade de quem a
escreveu.
Tracejar entre esses três espaços – cinema, religião e negro –, objetos
deste estudo e, ao mesmo tempo, (de)codificar as relações tênues que existem
entre o campo cinematográfico e as questões de religião e negritude, construí-
das através de todo um fio emaranhado de um processo histórico que, por meio
de um sujeito, “produtor de conhecimento” (NAVARRETE, 2008, p. 21) e que
é “um sujeito denso, imbuído de valores e ideologias, próprios de seu contexto
histórico e da posição que ocupa” (ibidem, p. 22), desse criador de falas/escritas
e cenas, faz-nos entender que existe uma simbiose entre cinema e história, e
que por esse entendimento percebemos nitidamente uma forte imposição da

19 Abrindo aqui um parêntese, é o caso também dos filmes sobre o Nordeste, que per-
cebemos uma representação do real (realidade do fato), mostrando em sentido único e
direcional um Nordeste apenas seco, rural e de um marasmo socioeconômico. Filmes como
Vidas Secas (1963), Guerra dos Canudos (1997), Central do Brasil (1998), Abril Despedaçado
(2002), O Caminho das Nuvens (2003), Lisbela e o Prisioneiro (2003), Cinema, Aspirinas e
Urubus (2005), Ó Paí, Ó (2007), dentre outros, dão como pano de fundo uma região de
cultura única, população rude e envelhecida pelo sol e trabalhos árduos, de uma única pai-
sagem – cerrado e semiárido –. São narrativas como essas, transmitidas através do cinema,
que petrificaram no seio da sociedade, criando estereótipos que, ao longo de uma afirmação
midiática, tornaram-se verdades de um caminho só.

74
cor branca como representação única no campo religioso, criando, assim, esté-
ticas de realidades.
Se é que não podemos fugir à regra que no decorrer dos séculos houve
várias maneiras de diferenciação simbólica que foram construídas “no inte-
rior das atividades enunciativo-discursivas” (COSTA, 2012, p. 38) e que, con-
sequentemente, conferiu à “raça branca um status de supremacia em relação à
raça negra, inclusive na expressão do sagrado, da religião” (Ibidem, p. 38), po-
demos afirmar que um dos mecanismos que aproveitou de seu poder influen-
ciador na sociedade foi a industrial cinemática. Nesse viés, o ethos que existe
por trás do espaço da arte cinematográfica, seja brasileira, americana ou de
qualquer lugar, seja nos filmes e desenhos ou nas novelas escritas pelos punhos
dos roteiristas brasileiros, pode nos revelar todas as formas de representações,
tentativas de criar uma imagem-objeto ao público-alvo, muitas delas recheadas
de estereótipos.
Este estudo teve como intenção mostrar que o historiador da Nouvelle
Histoire, condicionado a uma nova consciência crítica, teórico-metodológica,
sobre suas novas fontes e abordagens, analisa o cinema enquanto documento
relevante para o entendimento histórico, pegando o produto (a obra cinemá-
tica) e as intenções por trás da produção bem como questionando as ideolo-
gias e os tipos de discursos do produtor. As narrativas cinematográficas, nesse
sentido, passaram pelo crivo do cientista social não mais como um objeto de
divertimento e expressão artística, mas, desde o enredo de comédia à tragédia,
são identificados momentos de representações, linguagens tendenciosas que,
muitas delas, plasmam ou distorcem a verdadeira interpretação de mundo.

Referências

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78
Herdeiros do amanhã e condenados do ontem:
olhares cruzados e experiências compartilhadas
de negros africanos e brasileiros em São Luís do
Maranhão1

Osmilde Augusto Miranda

O afastamento das singularidades de ‘classe’ ou ‘gênero’ como ca-


tegorias conceptuais e organizacionais básicas resultou em uma
consciência das posições do sujeito - das raças, gênero, geração,
local institucional, localidade geopolítica, orientação sexual - que
habitam qualquer pretensão à identidade no mundo moderno.
(BHABHA, 2013, p. 20)

Afinal, o que é ser negro em São Luís do Maranhão? Durante a minha


estadia em São Luís me deparei com a categoria “negro” sendo utilizada como
um marcador muito significativo para seus residentes na representação iden-
titária que atribuíam a mim. Nesse mesmo processo, pude conhecer muitas
pessoas negras com as quais tive o prazer de conviver. Com o passar do tempo,
fui entendendo que essas pessoas eram de diferentes lugares, o que me insti-
gou a fazer esta pesquisa. Inicialmente, busquei entender quem eram os negros
africanos que residiam em São Luís e como eles se viam representados nas TVs
brasileiras. Agora, procuro trabalhar tanto com os africanos como com os bra-
1 Este trabalho é resultado do último capítulo da minha dissertação no Programa de Pós-
-graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Maranhão, de título: Olhares
cruzados e experiência compartilhadas de negros (as) africanos (as) e brasileiros (as) na cida-
de de São Luís do Maranhão.
sileiros negros em São Luís do Maranhão.
Teço aqui algumas linhas referentes à minha experiência e que alimen-
taram os questionamentos presentes no trabalho. Ao chegar a São Luís, eu me
via simplesmente como angolano que se mudara de seu país de origem para
o Brasil. Isso, no entanto, ajudou-me a refletir a minha pessoa no seu aspecto
jurídico, enquadrando-me então como um imigrante. Tinha noção das minhas
fronteiras enquanto estrangeiro angolano. Mas, ao adentrar na Universidade
Federal do Maranhão e ter que me relacionar com outros estudantes do conti-
nente africano, percebi que não se tratava somente de ser estrangeiro angolano,
mas também de ser africano. Em outras palavras, o meu reconhecimento en-
quanto pessoa passou a ser feito a partir da nomenclatura do continente para
designar todos que lá habitam. Isso me levou a entender o quanto a identida-
de é construída através das relações que estabelecemos com outras pessoas ou
grupos diferentes (WOODWARD, 2012), de tal modo que procuro entender
melhor as razões da representação simplificada de uma realidade tão complexa.
Assim sendo, busquei compreender o processo de construção da identi-
dade e representação social de negros africanos e brasileiros na cidade de São
Luís do Maranhão a partir do método etnosociológico, isto é, considerando a
história ou narrativa de vida dos entrevistados por meio de pequenos frag-
mentos particulares da vida desses sujeitos, levando em conta a sua realida-
de histórica e social (BERTAUX, 2010). Como afirma também a pesquisadora
alemã Gabriele Rosenthal (2014), “o enfoque deste tipo de pesquisa possibilita
a percepção tanto de padrões interpretativos atuais ou perspectivas subjetivas
dos agentes no cotidiano quanto de suas histórias de ação entrelaçadas com
o universo social.” De tal modo, analiso seis (6) casos específicos de negros
residentes em São Luís, dos quais três são de países africanos (Cabo-Verde,
Guiné-Bissau e Nigéria) e outros três brasileiros.
A partir do relato de experiências de vida nos países de origem e no
Brasil é que analiso de que modo esses sujeitos constroem as suas identidades
e veem-se representados enquanto negros. Assim, destaco que as marcas ob-
jetivas e subjetivas dos modos pelos quais eles vivenciaram ou vivem dentro
de suas famílias, escolas e em outros espaços como pessoas negras são dados
analíticos relevantes no empreendimento teórico-metodológico desta pesqui-
sa. Conforme reforça Bernard Lahire (2017), pensar os contextos em ciências
sociais corresponde a apreender os contextos históricos que, por sua vez, são
relativamente singulares, e ainda construídos a partir de perspectivas pertinen-
tes ao olhar do pesquisador sobre o objeto estudado, buscando tornar inteligí-

80
veis, assim, os fatos sociais estudados.

1 Construção dos perfis dos(das) negros(as) africanos(as) e brasileiros(as)


em São Luís do Maranhão

A construção da identidade percorre um processo contínuo de afirma-


ção ou reconhecimento das variações sociais que, por sua vez, condicionam os
sujeitos no modo de pensar, agir e relacionar-se com outras pessoas ou grupos
em um determinado tempo-espaço. Ao questionar quem são os negros afri-
canos ou brasileiros que residem em São Luís do Maranhão, inexoravelmente,
pergunto a essas pessoas as formas pelas quais se afirmam identitariamente.
Assim, descrevo cada elemento identitário considerando que esses sujeitos são
frutos de um processo de colonização há séculos, o que os torna sujeitos de
identidades complexas, uma vez que a descolonização é um fenômeno violento
em todos os âmbitos. Assim como ela usurpa uma parte nós, ela também nos
impinge a nos identificarmos com coisas que nós não somos (FANON, 2005).
Considerando isso, procurei fazer um estudo de forma liminar2,reconhecendo
as heranças coloniais de cada sujeito entrevistado. Conforme reforça Quijano
(2002), as relações entre colonizador e colonizado se deram a partir de um de-
terminado espaço ou malha de relações sociais de exploração, dentro de uma
perspectiva de dominação articulada de conflitos em busca do controle da exis-
tência social.
Começo por apresentar os itinerantes africanos residentes em São Luís
do Maranhão, respeitando uma ordem histórica. A escolha dos entrevistados
3
foi com base no tempo de permanência no Brasil, em particular, em São Luís
do Maranhão. Doutro lado, procurei focar nas experiências de vida deles exclu-
sivamente, mas distinguindo-os a partir das ordens atreladas nas experiências
dos seus países de origem até o país anfitrião. O que deixa, talvez, a pesquisa
mais heterogênea. O primeiro entrevistado com quem tive o privilégio de com-
partilhar experiência foi o Professor de Engenharia Química da Universidade
Federal do Maranhão, nascido na Guiné Bissau, na capital de Bissau, de aproxi-
madamente 40 anos de idade e 10 anos de vivência no Brasil. A segunda entre-

2 A categoria ‘liminar’ é usada, neste trabalho, a partir da perspectiva de Quijano (2002),


para compreender as hibridizações presentes nas sociedades colonizadas.
3 A escolha dos entrevistados negros africanos e brasileiros em São Luís foram com base em
uma ordem de variáveis sociais como a raça, a classe social, a profissão e o gênero. Penso que
é impossível falar da identidade e os modos de representação dos negros e deixar de olhar as
variações sociais que nas suas narrativas são inexoravelmente presentes.

81
vistada é a Missionária e Pastora da Igreja Deus do Momento, nigeriana, nas-
cida na cidade de Lagos, com cerca de 50 anos de idade e 30 anos de vivência
no Brasil. A terceira entrevista foi a Médica Cabo-verdiana, de Santiago, com
25 anos e 7 anos de vivência no Brasil. Doutro lado, os espaços de sociabilidade
deles, nos seus países de origem e no Brasil, tornam ainda mais relevante todo
o processo da construção analítica.
Para os entrevistados brasileiros residentes em São Luís4do Maranhão,
pude contar também com três pessoas. O primeiro entrevistado foi o Professor
de Medicina, Membro do Centro de Cultura Negra do Maranhão, nascido no
território Quilombola chamado Chapada-Bebedouro, no Maranhão, com 73
anos de idade. A segunda entrevistada que tive oportunidade de conhecer a sua
experiência de vida foi a Assistente Social, nascida em Pindaré Mirim-Mara-
nhão, com cerca de 40 anos de idade. A última e terceira entrevistada brasileira
foi a Psicóloga de São Luís do Maranhão, que vem desenvolvendo pesquisas
voltadas para o atendimento clínico e inclusão, e que tem 30 anos de idade.
Todos eles têm mais de três décadas de vivência em São Luís do Maranhão.
Como pude demonstrar, a partir das apresentações acima mencionadas,
o perfil dos entrevistados é bastante complexo. Não me refiro simplesmente aos
africanos, mas a africanos nascidos em determinado país de África, de deter-
minado grupo étnico, classe social e grupo regional. Ou, ainda, não me refiro
a brasileiros nascidos ou residentes em São Luís do Maranhão, mas de pessoas
que ocupam um espaço social, profissional, nome e outros adjetivos, o que,
por sua vez, torna a construção identitária deles cada vez mais heterogênea e
complexa. Construir o perfil dos entrevistados ajuda-me a entender, principal-
mente, quem são, de onde falam, do que falam e porque falam de um jeito em
detrimento de outro.
Questionar a história da África, dos africanos e dos negros brasileiros
é, no entanto, não a aceitar como algo dado, mas, através de uma perspectiva
compreensiva e de uma arqueologia epistêmica do passado do próprio sujeito,
considerando ainda o contexto do qual ele faz parte ou vive atualmente, possi-
bilita-nos alcançar pequenas nuances que no dia a dia passam despercebidas.
Não pretendo entrar em um jogo crítico, sem antes apreender a diversidade e a
complexidade que cada sujeito apresenta a partir de sua experiência socio-his-
tórica. É necessário entender o processo da construção identitária de cada um,
4 É relevante destacar que os entrevistados brasileiros não foram escolhidos por terem nas-
cido em São Luís necessariamente, mas pelo tempo de vivência na Capital Maranhense.
Assim aconteceu com o Médico de Chapada-Bebedouro e a Assistente Social de Pimdaré
Mirim.

82
para assim analisar de forma coerente os pilares estruturais atuais. Antes, po-
rém, considero formidável conhecer a realidade familiar e escolar como ponto
de partida para entender o contexto do processo identitário de cada entrevista-
do. Isso se torna imprescindível, principalmente, para entendermos o uso dos
conceitos de ‘identificação’ e ‘representação’ nas teorias sociais e culturais a par-
tir de um viés não essencializado ou estático (HALL, 2012).

2 Contexto familiar dos(as) negros(as) africanos(as) e brasileiros(as)

Quando questionei os entrevistados sobre como era a vida familiar deles


nos seus países de origem, pude ouvir do Professor de Engenharia Química da
UFMA, nascido em Bissau, capital da Guiné-Bissau5, que ele viveu entre os me-
andros dos bairros periféricos perto da centralidade, o que tornava a realidade
social dele cada vez mais complicada no que toca à ausência de acessibilidade
a alguns direitos enquanto cidadão, e numa família alargada, com mais de cin-
quenta membros, entre eles: avós, pais, tios, tias, primos e primas, sobrinhos,
etc. Filho de antigo guerrilheiro- para luta de libertação nacional- e de uma
mãe doméstica, que comercializava produtos para sustentar os filhos. Para ele,
a vida familiar estava relacionada à conciliação de toda conjuntura social, eco-
nômica, política e cultural, ou seja, essa realidade tornava a relação familiar
mais alargada, coesa e cada vez mais marcante. Como ele nos conta:

[...] Era uma vida de muita correria entre os amigos no bairro, se não era com a
família era com os amigos do bairro, ou quando você estava no colégio [escola
pública] tentando aprender alguma coisa. Uma vida que o bairro inteiro fazia
parte da sua vida e você fazia parte do bairro. Você não é mais filho do fulano
tal[...] todo mundo sabia quem eram os meus pais no bairro[...], se arrumava
ou fazia alguma coisa (de errado) corria risco do bairro inteiro te dar uma surra
para você andar no caminho (certo). (Trecho da entrevista concedida pelo Pro-
fessor e Engenheiro Químico da UFMA em abril de 2018).

Já a Pastora e Missionária nigeriana, filha de cristãos, nascida nas me-


diações da cidade Lagos6, conta que a sua experiência de vida dentro de sua

5 Guiné-Bissau, oficialmente República da Guiné-Bissau, é um país da África Ocidental que


faz fronteira com o Senegal ao norte, Guiné ao sul e ao leste e com o Oceano Atlântico a
oeste. O território guineense abrange 36.125 quilómetros quadrados de área, com uma po-
pulação estimada de 1,6 milhão de pessoas.
6 O estado de Lagos é uma divisão administrativa da Nigéria, localizada na parte ao sudo-
este do país, criado em 27 de maio de 1967. Sua capital é a cidade de Ikeja. É o menor dos

83
família sempre foi marcada pela educação cristã. Assim, ela conta que: “Nasci
numa família cristã, essa coisa de juventude, balada e namorar não participei
em tudo, minha mãe não deixava e nem meu pai, a gente ia atrás de coisa da
igreja.” Ou seja, a base da formação identitária estava relacionada a uma pers-
pectiva cristã. A Médica cabo-verdiana, nascida em Santiago - Tarrafal, filha de
professores do ensino médio, cujo pai era professor de língua portuguesa e a
mãe de expressões plásticas, relata que a vida em Cabo Verde foi “normal” - ou
seja, ela se refere que não teve muitas coisas além de sua própria realidade, mas
destaca que existia algumas diferenças entre os grupos sociais:

É uma mistura. Primeiro que lá é dividido em barla vente e souta vente. Tipo o
mapa de Cabo Verde são dez ilhas, de cima da linha do equador são barla vento,
da ilha divisora para baixo são souta vento, só que Santiago que é a minha ilha,
a gente fala criolo que é badiu, a ilha de São Vicente fala padiu que é um criolo
que eu não percebo muito bem. As pessoas dessas ilhas são relativamente mais
claras e o cabelo mais cacheado. (Trecho da entrevista concedida pela Médica
em julho 2018).

Porém, ela afirma ainda que essas diferenças não são reforçadas institu-
cionalmente, ou seja, elas não crescem aprendendo que são barla vente ou souta
vente, nem que a cor da pele diferenciada influencia de algum modo na forma
de relacionar-se entre os grupos sociais. É importante, portanto, destacar que
a construção identitária dos africanos negros, nos seus países de origem, não
é acionada a partir de um dispositivo ou uma variável necessária de distinção
social atrelada à cor da pele.
Doutro lado, procuro, a partir de uma leitura comparativa, apreender
a realidade familiar dos negros brasileiros de São Luís do Maranhão. Para o
Médico e membro do Centro de Cultura Negra, filho de pai negro e mãe bran-
ca indígena, ambos analfabetos e trabalhadores de roça, nascido no quilombo
de Bebedouro, a realidade não era muito diferente de algumas realidades de
África: “O meu pai trabalhava de roça. A minha mãe também de roça e parte
doméstica. E ela também fazia artesanato, peneira, quibano7, e alguns dias ela
costurava [...]. Na realidade, o que ocorria no quilombo uns ajudavam aos ou-
tros”. A vida no quilombo é, em geral, de pouca assistência política, econômica
estados da Nigéria, Lagos é o segundo estado mais populoso depois de Kano, e indiscutivel-
mente o estado economicamente mais importante do país, Lagos contém a maior área ur-
bana nacional. Em 2012, a população era 11.009.520 habitantes, numa área de 3.475,1 km².
7 Quibano: é um objeto arredondado feito de palha da palmeira, geralmente usado no inte-
rior do nordeste para catar/escolha e secar arroz.

84
e social.
A precariedade em alguns setores, principalmente o educacional, fez
com que ele tivesse uma vida familiar em constante transição. Ora estava com
os pais, ora com a tia em Santa Teresa-Brejo. “Eu fiquei na comunidade qui-
lombola de Bebedouro até 6 a 7 anos e aí fui para outra comunidade chamada
Santa Teresa e lá me criei a partir dos 7 anos”. Mas aponta que, depois de ter
saído do Quilombo de Bebedouro para Brejo, a realidade mudou. A vida em
Santa Teresa era, por sua vez, marcada por divisão de classes sociais e raciais.
Por ser uma cidade pequena, a realidade era mais estruturante e menos visível.

A cidade de Brejo é uma cidade antiga, onde as classes abastadas, resquícios


da escravocrata, é uma cidade [que] tinha muito preconceito e racismo, veja
nas festas, tinha de primeira de pessoas elites brancas, festas de segunda e festa
de terceira. (Trecho da entrevista concedida pelo Médico e membro Centro de
Cultura Negra em maio de 2018).

Já a Assistente Social, filha de quebradeira de coco e de agricultor, neta


de indígena com negros, nascida em Pindaré Mirim e criada no Bairro de Fáti-
ma- localizado na periferia de São Luís, com um número relevante de popula-
ção negra-, filha de Pai de Santo e de uma família negra humilde, conta que não
é fácil ser ou fazer parte de uma família negra no Brasil.

Toda família negra nesse país nunca teve uma vida fácil e uma coisa que os pais
sempre falavam pra gente que única coisa que tem pra deixar era o estudo. Só
que eu fui me envolvendo com as questões sociais. Eu sempre fui encrenca com
relação a isso, e fui construindo a minha trajetória [...] A minha família não era
de militante sobre questões raciais, pelo contrário, nós tínhamos todos precon-
ceitos. (Trecho da entrevista concedida pela Assistente Social em julho de 2018).

O que, por sua vez, difere da realidade da Psicóloga, descendente de in-


dígena- avós por parte do pai e negra por parte da mãe-, filha de uma médica,
residente no bairro Parque Shalom, um bairro organizado de classe média e
próximo da zona nobre da cidade, “tenho muita memória da mamãe indo via-
jar, é a memória que eu mais tenho, ela toda de branco e batendo essa porta.
Mas eu recordo que diferente de hoje”:

[...] Vitor [irmão mais novo] toda hora sentado no computador. Eu tinha uns
amiguinhos aqui. Eu tinha uma amiga preferida que era Bia, a gente brincava
lá em embaixo de elástico. Eu ia a casa dela. A gente jogava vídeo game e eu

85
sempre jogava com os amigos dele, então, sempre estava no monte de meninos.
(Trecho da entrevista concedida à Psicóloga em fevereiro 2018).

Pude perceber que as respostas de cada entrevistado tiveram uma singu-


laridade própria, uma vez que a pergunta estava atrelada ao ambiente familiar
de cada um. Os africanos relatam uma experiência mais de obstáculos pessoais
ou problemas sociais - atrelada à ausência de uma estrutura política, como é
o caso do guineense, e que difere da realidade da nigeriana -, mas os brasilei-
ros, além dos socioeconômicos, ainda apresentam a variável racial como uma
barreira relevante na construção de suas identidades. Isso é relativamente mais
visível nas respostas dos brasileiros, com exceção da Psicóloga.
O processo de construção identitária de cada um foi marcado por dife-
rentes marcas sociais. A partir de uma abordagem complexa sobre o indivíduo
e as diferenças, Martya Sem (2015, p.41) destaca que “estamos todos individu-
almente envolvidos em identidades de vários tipos, em condições díspares em
nossas respectivas vidas, que surgem de nossos antecedentes, associações ou
atividades sociais”. Para alguns, as memórias dos obstáculos da comunidade
transpareceram mais, enquanto para os outros, as marcas das origens e a ques-
tão racial foram mais acentuadas. Assim, entendo que a identidade opera por
meio da diferença e a marcação de fronteiras subjetivas ou objetivas de uma
determinada experiência individual ou coletiva produzem efeitos simbólicos
(HALL, 2012). Dessa feita, procurei perceber como era o ambiente escolar8 de
cada entrevistado para entender melhor a relação entre o espaço escolar e as
suas vivências.

3 Contexto escolar dos(as) negros(as) africanos(as) e brasileiros(as)

A escola é um lugar onde as pessoas têm o privilégio de se relacionarem,


conhecerem e compartilharem diferentes tipos de valores. Depois da experiên-
cia familiar, busquei saber sobre as relações estabelecidas de cada entrevistado
no espaço escolar, isto é, questionando como era a vivência dos africanos ou
brasileiros nesse espaço. E a partir de cada relato que soube a significância de
cada caso. Ao direcionar a questão para o Professor de Engenharia Química
da UFMA sobre a sua experiência em Bissau, ele relata que a escola sempre foi
uma barreira para os africanos, principalmente nos países onde a colonização
8 Quanto ao ambiente escolar, refiro-me a todo processo de formação primária até o ensino
médio completo, uma vez que marca uma temporalidade importante para entender a mi-
crorrealidade de cada sujeito entrevistado.

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teve uma durabilidade, visto que acabou influenciando na estrutura até os dias
atuais.

Foi-nos negado a oportunidade de estudar pelos colonizadores, eu cresci ven-


do os meus pais com essa realidade [...] minha mãe não teve oportunidade de
estudar [...], e o meu pai teve oportunidade de estudar do ensino primário até
a quarta classe... Eu tomei aquilo como... possas! Não vou andar pelos mesmos
caminhos, eu vou tentar superar essa barreira na família que não teve ninguém
a formação de ensino médio completo.

Percebi que as marcas coloniais transparecem nas falas dos entrevistados


africanos. O legado herdado por uma geração de baixa escolaridade, devido
ao processo colonial, influenciou, de algum modo, em várias famílias de Bis-
sau. Assim sendo, o ambiente escolar do Professor de Química foi feito num
período de muita dificuldade, em que as escolas, na sua maioria, não tinham
uma boa infraestrutura e, as poucas que tinham, somente as pessoas com mais
recursos podiam ter acesso, o que, doravante, não era o caso dele. Já a Pastora
e Missionária nigeriana teve toda formação nos melhores colégios de Lagos.
O fato de o país passar por um processo difícil de colonização não afetou de
forma drástica sua vida escolar- as condições de classes perpassam como um
aspecto de distinção para os africanos.
Para a Médica cabo-verdiana, o ambiente escolar sempre a ajudou a
construir boas referências, tanto com os professores quanto com os colegas de
turmas, porém, quando a questionei se havia a distinção entre o souta vente e
barla vente, ela respondeu: “Não existe uma divisão clara, mas tudo meio que
sutilmente. Não é uma coisa assim escancarada”, disse.

Talvez que acontece um pouco de bullying e chamar a pessoa de amarelinha, por


exemplo dizer que outro é preto ou branco [...], quando a pessoa é pouquinho
branca que normal a gente fala ‘branca man papaia zendu’. Tipo chamar a pes-
soa que é branco demais para a realidade. A questão de tratar mal mesmo não.

O que se percebe em toda essa experiência é que os fatores como coloni-


zação, a desigualdade socioeconômica de alguns países africanos e os tipos ou
grupos familiares dos entrevistados acabam tendo um impacto forte na forma-
ção identitária desses indivíduos. Não se fala de uma divisão racial clara, não se
fala tão profundamente de crises de identidade racial, mas se fala da ausência
de infraestrutura, de ausência de melhores condições socioeducacionais e lega-
dos coloniais estruturantes- marcas relativas do moderno/tradicional. Doutro

87
lado, percebi que as diferentes classes sociais de cada entrevistado tornavam a
experiência individual mais heterogênea, de modo que cada indivíduo tinha
uma leitura diferencial do seu país de origem e do continente africano.
Depois de entender os relatos dos africanos sobre as experiências esco-
lares, busquei compreender a dos brasileiros. Para o Médico e representante
do CCN, as mudanças constantes desde o Quilombo até São Luís deixaram-no
com diferentes memórias ou experiências nos ambientes escolares. Primeiro,
conta ele, “fui para escola que não era particular, mas uma escolinha que não
pagava nada e fiz a alfabetização[...] depois eu passei a estudar no colégio edu-
candário Rio Doce9 que era um colégio da Paróquia”. Apesar da mudança cons-
tante, pude observar, a partir dos relatos do Médico, quão importante foi essa
transferência para Brejo, pela vulnerabilidade estrutural que ele encontrava no
Quilombo de Bebedouro.
Quando falo que a relação escolar de cada entrevistado apresenta um
diferencial em termos de abordagens, refiro-me a esses côncavos sociais em que
cada um teve que passar para construir-se enquanto sujeito social. Como é o
caso da Assistente Social e filha de terreiro, que destaca algo importante sobre
sua experiência nas escolas públicas de São Luís. Para ela, é impossível vencer o
racismo sem antes vencer a pobreza, uma vez que a realidade escolar foi muito
precária, desde cedo teve que fazer parte de militância para vencer as duas re-
alidades, “eu sempre estudei em escolas públicas e... entrei para o movimento
social [...], estava com 14 anos, no Movimento Estudantil para entender melhor
a questão da pobreza”.
A partir do relato da Psicóloga, pude ouvir sobre um conjunto de experi-
ências escolares que se diferenciou dos dois primeiros, uma vez que ela estudou
da alfabetização até o ensino médio completo na escola particular, “eu estudei
numa escola só, desde o Jardim a vida toda até me formar - Colégio Batista”, um
estabelecimento de ensino tradicional em São Luís, reconhecido pela qualidade
e pelo alto valor das mensalidades. Quando se percebe as experiências esco-
lares vigentes, compreende-se quão complexo é o processo de construção de
identidade dos sujeitos negros africanos e brasileiros no contexto atual. Seria,
todavia, impossível engendrar um modelo de negro que desse conta de uma

9 Segundo o entrevistado, o colégio Rio Doce era um dos melhores da época em Santa
Maria-Brejo para estudar, “[...] Educandário Rio Doce da paróquia era o melhor da região
da cidade de Brejo e é a mais velha e mais importante daquela época, tudo corria pra lá de
economia dos outros municípios. Então, alguns jovens que tinham poder aquisitivo, como
fazendeiros, Chapadinha, Urbano Santos, São Benedito” (Trecho de entrevista do Médico e
membro do CCN concedida em maio de 2018).

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realidade complexa como a de cada entrevistado presente. Portanto, procuro,
através de um olhar mais heterogêneo, apreender as estruturas nas quais cada
sujeito se fez e contextualizar a partir das realidades que vivenciam.
Assim sendo, pude perceber que o processo de estadia escolar, sendo
escola esse espaço de produção de sujeitos diferenciados, contribuiu na cons-
trução ontológica de cada sujeito no que toca à questão identitária de modo
diferenciado também. Isto é visível tanto nos entrevistados africanos quanto
nos brasileiros, o que só reforça a questão da necessidade de fazer uma análise
das dinâmicas identitárias deles em tempos-espaciais, reconhecendo, assim, as
variáveis sociais, os bens econômicos e culturais como elementos sine qua non
na configuração identitária de cada entrevistado, ou seja, pensar a partir das
formas estruturais condicionantes na escolha- opção de vida e no processo de
identificação desses sujeitos na sociedade ludovicense.

[...] A estrutura do estilo de vida característico de um agente ou de uma classe de


agentes [...], a unidade que se dissimula sob a diversidade e a multiplicidade do
conjunto das práticas realizadas em campos dotados de lógicas diferentes, portan-
to, capazes de impor formas diferentes de realização. (BOURDIEU, 2008, p. 97).

De tal razão que entendo que o tempo-espaço que eles passaram com
suas famílias ou nas escolas é imprescindível para compreender o modo pelo
qual eles se veem enquanto pessoas nos dias de hoje, seja coerente ou não.

4 Olhares cruzados e experiências compartilhadas de negros(as)


africanos(as) e brasileiros(as)

Pensava que a diáspora seria apenas mais um lugar que poderia viver
como outros lugares já vividos antes. Não esperava encontrar memórias ou
práticas que me remetessem ao passado dos meus ancestrais. É difícil exercitar
a psique para compreender a diáspora por ela mesma sem, antes, observar e
experienciar como um modo de apreender cada elemento mínimo que a rea-
lidade objetiva nos oferece, o que em outras palavras Grada Kilomba chamara
de experiência atemporal (2019). Dessa forma, penso que o diálogo das experi-
ências de cada entrevistado evidenciou o que pretendo mostrar agora. Assim,
ao tentar responder a construção ou a configuração identitária dos negros afri-
canos e brasileiros, coloco a seguinte questão: como eles se tornaram negros ou
consideraram-se negros? Será que eles já nasceram negros? Como foi o proces-
so de ‘enegrecimento’ de cada um?

89
Ora, começarei, primeiramente, a apresentar as respostas do Professor
de Engenharia Química que relatou nunca ter parado para pensar a questão
de ser africano, negro, enquanto morava na Guiné-Bissau, visto que ele nunca
sentiu necessidade de acionar essas variáveis:

[...] Eu na Guiné (Bissau) nunca parava para discutir essa questão de africanida-
de e a negritude, era algo alheio ao nosso dia a dia, tínhamos a certeza que éra-
mos negros, pretos e africanos. Convivíamos com as nossas diferenças étnicas
da melhor forma possível. Não me lembro de ter acusado algum colega meu do
continente, você é fula, mandiga e manjaco, nunca! Porque não era necessário.

Distante da realidade do Professor Guineense, pude observar que a si-


tuação do negro no Brasil que, dependendo do contexto social, político e eco-
nômico, aprende, desde muito cedo, a lidar com os questionamentos raciais,
principalmente quando o encontro com a diferença é constante. Isso se dá tanto
para negação ou afirmação de sua identidade negra. Assim, relatou a Assistente
Social e filha de terreiro que:

A família não era militante sobre as questões raciais, pelo contrário, nós tínha-
mos todos os preconceitos. Tudo que a gente era ensinada todas aquelas coisas,
como, afina o nariz, alisar o cabelo- as minhas irmãs, todas tiveram cabelo alisa-
do [...]. Realmente, eu comecei a me deparar com essas questões raciais dentro
da universidade.

Também transparece no relato da Psicóloga, para ela, é muito compli-


cado escapar das discussões sobre as questões raciais. Ela destaca que desde a
sua infância teve mais contato com pessoas brancas, desde o jardim de infância
até o ensino superior. Isso impossibilitou que ela se apercebesse de acionar ou
recorrer à sua identidade negra para afirmar-se em alguns espaços, mas, doutro
lado, havia os traumas psicológicos sobre estética ou aparência quando ela es-
tava com os colegas brancos ou mesmo com os amigos de trabalho da mãe que
também eram todos brancos.

[...] Sempre estudei em colégio particular, então, só tinha branco no colégio,


conto nos dedos os meninos [...]. os amigos de mamãe todo mundo era branco
só a [minha] família que era preta. Aqui no prédio mesmo, coisa! os meus ami-
gos eram brancos [...]. Quando passei a ir no Centro de Cultura Negra, adentrar
no Movimento Negro, foi aí que aumentou a minha consciência e levou muito
tempo para me identificar, é muito difícil.

90
Percebi que falar sobre a questão racial a partir das experiências rela-
tadas requer um cuidado epistêmico com o processo histórico social de cada
sujeito. Mas, destaco, que em nenhum momento minimizo a relevância estru-
tural que muitas vezes condiciona ou tem um peso na vida desses sujeitos, pelo
contrário, apresento essas narrativas de formas contextualizadas para entender
o quanto, às vezes, o mesmo tempo-espacial pode nos levar a diferentes contex-
tos identitários. Por essa razão, achei imprescindível considerar a análise dessas
narrativas através de outras variáveis sociais relevantes, como o lugar de origem
e a classe social. Ou seja, foi a partir do exercício reflexivo que pude compre-
ender que a identidade de cada entrevistado não é um elemento essencializado
ou inato a eles, mas está em constante dinâmica de construção em prol de um
reconhecimento em um dado tempo-espacial (HALL, 2012).

4.1 Conflitos identitários

Durante as entrevistas havia alguns encontros e desencontros entre os


africanos e brasileiros. Primeiro, relato as experiências dos africanos que se
descobriram africanos e negros a partir do Brasil, e os brasileiros negros ti-
veram de lidar com a imagem de si distorcida historicamente como marca de
afirmação do próprio eu-identitário em prol de uma causa, em busca de um
reconhecimento. Isso vai estar mais visível no que identifiquei como conflito
ou crise identitária (HALL, 2012), ou seja, os conflitos ou crises de afirmação
identitária no que tange à disposição dos sujeitos nos espaços de vivência.
Os conflitos aparecem normalmente na dúvida e autonegação do sujeito,
enquanto parte de uma sociedade estruturalmente racista que nega de forma
ontológica, epistemológica e ética a existência da pessoa negra. Percebi, duran-
te as entrevistas, que os conflitos identitários dos entrevistados eram com mais
relevância no lado dos brasileiros- relativo ao reconhecimento da identidade
negra- e considero o tempo e espaço, mais uma vez, como aporte diferencial
dessa experiência, isto é, de forma extrínseca ou intrínseca (APPIAH, 1997).
O modo extrínseco- refiro-me aos aspectos relacionados aos traços ex-
ternos da pessoa, como lábio, cabelo e o corpo como um todo- associado a um
determinado grupo racial. Intrínseca: relativa aos aspetos como intelectualida-
de ou caráter da pessoa relacionados a um determinado grupo racial. Podemos
ver, por exemplo, a questão da afirmação da identidade extrínseca como algo
relevante, presente no depoimento da Psicóloga entrevistada.

91
Eu me sentia feia. Acho que se descrevia o que eu sentia, me sentia insegura, me
sentia diferente, e nunca parei para pensar e para entender que eu me sinto as-
sim, porque, realmente, pelo fato de ser mulher negra que estão me estranhan-
do. A questão era que eu sou muito feia e as pessoas me olham que eu sou feia.

Ou, ainda, como observo em alguns casos em que as pessoas reduzem a


identidade intrínseca de uma pessoa através da sua cor de pele. Como mostra a
Médica cabo-verdiana quando foi ao plantão e por coincidência apareceu outra
médica brasileira que a olhou e questionou como se ela fosse enfermeira, o que
muitas vezes a deixou confusa com o seu lugar de atuação profissional (capaci-
dade intelectual) a partir da experiência à brasileira.

Ela perguntou pra mim se fizesse enfermagem. Eu disse que não, eu faço me-
dicina. Ela com a cara de espanto disse- Ham, tá bom! As pessoas não falam de
ser técnica de enfermagem para uma negra à toa, como uma pessoa negra não
pudesse ter uma capacidade de ser médico, de ser engenheiro, de qualquer coisa
que se diz nobre.

Igualmente aconteceu com o Professor de Engenharia Química. Ele rela-


ta sua experiência na sala de aula e os desafios de ter que enfrentar um grupo de
estudantes que duvida do seu conhecimento, “[..] era notório a negação. Você
observava as expressões das pessoas como dissessem assim pra você- aqui não
é o teu lugar e você não é pra estar aí”. Isso transparece na dúvida constante que
leva a autonegação do sujeito, por um problema estrutural e contraditório da
negação histórica do homem negro em determinadas sociedades colonizadas.
Os conflitos também apareceram nas escolhas das pessoas, isto é, tanto para
aqueles ‘mais conscientes’ ou daqueles ‘menos conscientes’ da situação identi-
tária, acabam sofrendo pelas opções identitárias que escapam da linha reduzida
aos aspectos extrínsecos ou intrínsecos de um determinado grupo racial.

Então, eu fui considerada uma louca por ser, por exemplo, católica, uma vez me
perguntaram isso na capoeira, tu não lê história? Foi um amigo e como amigo
me perguntou desse jeito ‘tu não lê história?’. Leio, mas é onde eu me sinto bem,
é o que eu conheço na verdade. Fui considerada por ter um pensamento relati-
vamente branco. Aos poucos fui considerando algumas coisas, e me mudando
também. Mas antes fui considerada alienada. (Trecho da entrevista concedida
pela Psicóloga em fevereiro de 2018).

Isso, todavia, pude perceber de forma mais clara a partir da questão esté-
tica das mulheres negras em São Luís do Maranhão. O conflito constante con-

92
sigo mesmas através de um padrão violento estrutural e estruturante relativo à
beleza feminina. Como mostra a Assistente Social e filha de terreiro:

Eu vejo assim os meninos mais jovem aí [...] Bleckão, sem nenhum dilema. Um
cabelo desse quando eu era pequena a mamãe mandava cortar logo, porque esse
cabelo é difícil de pentear. A minha geração ela foi criada dessa forma, criada
para alisar o cabelo, criada pra se afastar de tudo que se dizia da sua origem. Eu
tinha todos os preconceitos possíveis com relação a minha cor. A tudo relacio-
nado a minha cor e ao meu povo.

Ou, ainda, quando esse sofrimento estrutural exige mudanças radicais


em prol da pseudoinclusão nos espaços sociais.

Eu recordo na minha infância que não lembro do meu cabelo, mas com cinco
anos fui levada no salão, na verdade, fui eu quem pediu para fazer química qual-
quer que deixa com o cabelo solto [...] quando eu cheguei em casa estava com o
cabelo deste tamanho (grande demais) e jurei nunca mais querer o cabelo solto.
(Trecho da entrevista concedida pela Psicóloga em fevereiro de 2018).

Enfim, o conflito do desejar extrínseca ou intrinsecamente uma pessoa


que ‘aparentemente’ faz parte do seu grupo racial, relacionando com caracte-
rísticas como ‘raça’ ou ‘nível intelectual’, atrelado à sua condição racial, tem
sido um desafio contemporâneo nas relações inter-raciais, conforme afirma a
Psicóloga:

Eu tive problema sério de me relacionar com o homem [branco] que eu me rela-


ciono hoje, porque tinha um relacionamento que posso chamar de afrocentrado
né. O meu último relacionamento que passei um milhão de anos, eu me apai-
xonei por que ele era lindo, não me apaixonei porque ele era negro ou branco,
tinha a ver com outras coisas, tinha pernas grossas, tinha cabelo cacheado, mas
com o decorrer do relacionamento essas questões raciais foram aparecendo
[...] o que vou fazer quando a minha filha nascer e ser mestiça, como vou edu-
car uma criança mestiça que não vai saber se é branca ou preta e eu morria de
medo[...], chegou um momento da minha vida que não queria me relacionar
com homem branco. (Trecho da entrevista concedida pela Psicóloga em feve-
reiro de 2018).

É importante perceber que os conflitos identitários acontecem a partir


de uma dinâmica constante de configuração social entre os sujeitos em deter-
minado tempo-espaço, na maioria dos casos. Como destaca o sociólogo inglês
Anthony Giddens (2002), ao referir-se aos conflitos identitários constantes nas

93
sociedades em que a modernidade é tardia [colonizadas para o nosso contex-
to], como, por exemplo, o caso de muitos países Africanos, Latino-americanos
e outros. De tal modo, cada entrevistado apresentou os seus dilemas a partir
de um contexto próprio, o que me levou a perceber que por mais que vivamos
numa sociedade estruturalmente racista, os desafios, as crises ou conflitos ra-
ciais acontecem na relação de diferenças e numa dinâmica constante.
Assim aconteceu com certas políticas públicas, como por exemplo, as co-
tas, que possibilitaram não só o encontro das diferenças, mas também o desafio
epistemológico de romper certos mitos existentes entre os grupos antagônicos.
Diria que a riqueza do conflito está no exercício da não incubação da violência
ou negação da violência ontológica, epistemológica e ética entre pessoas ou
grupos que têm uma história de vida, cultura ou hábitos totalmente diferentes.
“Um sentimento de identidade pode ser uma fonte não só de orgulho e alegria,
mas também de força e segurança” (SEN, 2015, p. 21), para que possamos en-
tender os obstáculos existenciais de cada sujeito social, isto é, respeitando as
diferenças éticas individuais.

4.2 Conflitos raciais

O preconceito e o racismo são duas categorias importantes aqui. De um


lado, porque ajudam a perceber quão é difícil desconstruir uma categoria social
e histórica das pessoas que convivem com a diferença a partir de uma margem
de conflito, isto é, desde o conforto dos desencontros e o desconforto dos en-
contros. De outro lado, porque demonstram a dificuldade do negro para autoa-
firmar-se enquanto negro numa sociedade estruturalmente construída nas ba-
ses do estranhamento sobre a diferença. Procuro entender o racismo como uma
forma sistemática de discriminação que tem a raça como a base fundamental
de atuação e manifesta-se de forma inconsciente ou consciente, enquanto o
preconceito aparece como o juízo baseado nos estereótipos acerca de indivídu-
os ou grupos através de sua raça (ALMEIDA, 2018).

Tá claro que o preconceito e o racismo naquela época era sutil, está aberto já...
como se diz na gíria os racistas estão saindo do armário, mas já existia e era
constante, não se discutia...não era se falava. Mas sabia que tinha [...] pela pró-
pria dinâmica da sociedade tinha racismo. Onde que estava o negro e onde es-
tava o branco. Onde trabalhava o negro e onde morava o negro, continuam nos
bairros mais simples. (Entrevista concedida pelo Médico e membro do CCN em
maio de 2018).

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Os traumas raciais, por sua vez, possibilitaram a visibilidade dos confli-
tos psicossociais das relações estabelecidas entre os sujeitos negros e os brancos
em São Luís, de tal modo que a Assistente Social e filha de terreiro narra que,
antes, as coisas eram na sutileza e na cordialidade.

Antes a gente não sabia, antes a gente tinha o branco cordial, aquele cara muito
bacana, muito teu amigo, mas namorar com a minha irmã não dá, ou então,
você é legal como amigo, mas esse trabalho aí pra ser engenheiro não combina
contigo. Antes a gente tinha isso, hoje não, hoje a gente já consegue perceber
as pessoas descaradamente, falando que não gostam e que não querem e nos
odeiam.

Isso vai estar presente no depoimento do Professor de Engenharia Quí-


mica da UFMA que relatou que foi tratado como ladrão na instituição que ele
trabalha.

Vou começar pela última, fica mais fácil de lembrar, agora como professor da
Universidade Federal do Maranhão do curso de engenharia sanitária passei por
situação meio cômico e triste, o segurança que me conhece e me vê todos os
dias da semana dentro da universidade [...]achou que era bandido dentro da
universidade. E você vai perguntar, não, ele tem olho clínico, foi treinado para
detectar quem é bandido, fica difícil entender essa concepção, porque como se
pode identificar quem é bandido? Só pela aparência física[...] eu saí da minha
sala, abro a porta do prédio que dá acesso a minha sala e, passo por ele, dou boa
tarde ou boa noite, ele me responde educadamente boa noite, me deixa andar
300 metros até perdê-lo de vista e manda outro segurança me abordar, porque
eu estava tentando arrombar a porta.

Ou, ainda, isso pode acontecer de forma antagônica nas esferas das re-
lações internas dos grupos sociais, quando, por exemplo, os grupos que fazem
parte tratam algum negro de forma diferenciada através do status social que
essa pessoa ocupa em uma determinada instituição, mas o obstáculo epistê-
mico do reconhecimento do outro enquanto parte de uma história distorcida
cada vez mais é acionado de forma inconsciente. Como é o caso da Médica
cabo-verdiana que relata as experiências com os colegas da área de saúde nas
festas ou outros espaços de lazer:

Eles pensam que se um negro está neste lugar é porque ele é diferenciado, é
aquele negro que tem dinheiro, aquele que deu sorte, ou...enfim. Eu tenho um
amigo que sempre fala que eu tenho um gosto requintado [rebuscado], e eu as

95
vezes digo isso, só porque sou preta e pobre quer dizer que eu não tenho que
gostar dessas coisas.

Ou, ainda, quando certos manifestos culturais aparecem ou são discri-


minados simplesmente por fazerem parte de um determinado grupo racial.

Lembro que quando meu pai tinha algumas manifestações espirituais, isso na
vizinhança era um choque, então, nós éramos como os macumbeiros que não
queriam meio se misturar muito com a gente. Se desse alguma coisa de errado
foram os macumbeiros da rua. Esses preconceitos... Tinha casos meio de exa-
gerado, casos racistas por conta dessa religião. (Trecho da entrevista concedida
pela Assistente Social e filha de terreiro em julho de 2018).

As experiências compartilhadas pelos africanos não são casos distantes


e isolados com relação à vivência dos brasileiros. A questão da cor da pele tor-
na, todavia, as relações assimétricas entre ambos em decorrência do espaço.
Mas, vale salientar, com relação ao espaço social, nesse caso São Luís, que para
os africanos acontece duplo sofrimento. Primeiro, pelo estereótipo global por
ser africano, e segundo por ser considerado como um povo sem civilização. O
segundo recai com mais veemência quando é acionada a memória histórica do
negro no Brasil, que está sempre associada à negação da história da África e
atrelada a uma história unicamente direcionada à escravidão. Como destaca o
Médico e membro do CCN, “praticamente a África não existia, não se falava de
África como um continente importante. Não se falava como se fala hoje, que a
civilização antiga é importante [...], só se falava de escravidão.” Essa memória
reflete mais ou menos os desafios raciais que, hoje, tanto os africanos quanto
brasileiros têm que lidar no seu dia a dia, o que, por sua vez, reflete no modo de
representação na sociedade ludovicense.

5 Construção da representação social dos negros africanos e brasileiros

Como pensar a questão da representação dos negros africanos e brasi-


leiros em São Luís frente a uma violência histórica que a comunidade negra
assimilou durante séculos? Como o negro brasileiro ou africano se vê repre-
sentado socialmente na sociedade de São Luís? Procuro entender a questão da
representação dos negros africanos e brasileiros a partir da leitura durkheimia-
na, numa primeira instância. Para ele (1994), a representação pode ser mental
ou social. As representações mentais são aquelas que só existem quando exte-
riorizadas da psique, ou seja, quando são compartilhadas com outros sujeitos.

96
Por isso entendo que a compreensão das representações existe, num primeiro
momento, na experiência individual de cada entrevistado que vive e conhece
os fatos concernentes à situação de negro em São Luís do Maranhão. Como
destaca o Médico e membro do CCN, a representação dos negros em São Luís
ainda deixa a desejar e que não é mera imaginação passiva.

Ele está entrando em alguns espaços, mas ainda há muitos que não são para os
negros, como, shopping, grandes hotéis. Construíram para ele ser funcionário,
porque quando chega um jovem negro Black Power corre risco de ser barrado
pelos vigilantes que às vezes são negros e que estão aí a serviço do Estado ou do
sistema e nem é a culpa do negro.

Isso vai estar presente na fala da Médica cabo-verdiana que destaca que
a representação social do negro em São Luís ainda é um desafio a tomar-se em
diversas áreas sociais, mas com mais relevância ao seu campo de atuação - saú-
de.

As pessoas negras aqui têm uma vida bem mais difícil. Tu vês o negro sendo co-
brador de ônibus, sendo motorista de ônibus, não hierarquizando as profissões
que as pessoas acham que são nobres. Tipo quantas vezes eu já entrei no centro
cirúrgico, eu interna, e as pessoas perguntarem se fui fazer consulta.

As representações mentais, como apresenta Durkheim, quando compar-


tilhadas se tornam sociais, ou seja, é a partir da materialização ou objetivação
delas com outros seres e por meio da comunicabilidade que as pessoas tornam
as representações mentais em social. Assim, a representação social é, todavia,
esse processo do qual os sujeitos trocam ou compartilham experiências idên-
ticas ou não, a partir de um terminado tempo-espacial. A Assistente Social ao
demonstrar que a estrutura representacional do negro em São Luís ainda é uma
utopia e que por isso é necessário lutar por ela, a partir do compartilhamento
de uma cadeia relacional dos espaços. Ela observa que a ausência constante de
pessoas negras em espaços de poder, que é importante no que toca às represen-
tações dos negros na sociedade ludovicense, confirma como a representação
coletiva não é algo apenas imaginário, mas também concreto na realidade ob-
jetiva dos entrevistados.
A gente consegue circular algumas informações entre a gente e tal, mas
a gente não consegue adentrar. A gente não consegue adentrar nas instituições.
As instituições continuam extremamente racistas, extremamente brancas, não
só na sua representatividade de indivíduo e de pessoas, mas no pensar, no fazer

97
institucional é extremamente branca. E não consegue furar porque são instan-
cias de poder. Eu penso assim por mais que a gente luta com os avanços de
organizações e de espaços, mas os campos estratégicos de poder continuam
brancos.
Essas experiências são expressas também na afirmação da Psicóloga.
Para ela, os negros estão cada vez mais representados em aspectos culturais do
que nas áreas importantes de ‘poder’, “a gente vê os negros quando é carnaval,
na turma do Quinto, a gente vê...enfim, só culturalmente. Dificilmente tem al-
guém sendo entrevistado (como alguém importante), pode ser por ser a mino-
ria (termos de Direito) mesmo.” Esses depoimentos relacionados à questão da
representação individual e coletiva de cada sujeito entrevistado demonstram o
quanto a imagem construída sobre o negro ainda repercute de forma estrutural
nas mentes das pessoas e na reprodução institucional de forma negativa.
Percebo que o habitus estrutural e estruturado de forma estruturante na
vida dos negros que moram em São Luís está condicionado a limitações ou
possibilidades de atuação através da cor da pele, demarcada de forma socio-
-histórica por um determinado grupo social, que demonstra também as des-
vantagens históricas (BOURDIEU, 2011). Como destaca a Assistente Social, “o
Maranhão é um dos Estados mais racista, não por não ter negro, mas por estes
negros estarem ausentes de uma porrada [conjunto] de coisa”. Portanto, penso
que a questão da representação [ontológica, epistemológica e ética] dos negros
perpassa não simplesmente pelo compartilhamento individual ou social, mas
por um conjunto de linguagem. É a partir da linguagem que as pessoas trocam
os pensamentos, ideias e sentimentos que, por sua vez, estão materializados
na cultura de um determinado povo ou grupo social (HALL, 2016), e que essa
linguagem está materializada nas práticas sociais de cada indivíduo ou grupo
social, seja negro, branco, amarelo ou vermelho, que convive com a diferença
racial de forma indiferente.

Considerações finais

A partir das experiências individuais, pude perceber o quanto a cons-


trução do negro em São Luís é um produto arquitetado histórica e socialmen-
te através das relações interpessoais e grupais dos diferentes tempos-espaços,
que refletem de forma estrutural e estruturante na construção da identidade
e na representação das pessoas negras na sociedade ludovicense, mas que a
percepção delas deve sempre ser apreendida enquanto metodologia de análi-
se em duas dimensões, uma individual e outra coletiva (observando as repre-

98
sentações institucionais), como forma de abordagem da experiência empírica,
para entender de forma micro/macro como a desigualdade racial é um produto
histórico, cultural, econômico e social, e que envolve o reconhecimento das
diferenças epistêmicas.

Referências

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SEN, Amartya. Identidade e violência: ilusão do destino. Trad. José Antônio


Arantes. São Paulo: Iluminuras, 2015.

100
Colonialismo & conflitos de poder:
políticas públicas para a saúde indígena

Welitânia de Oliveira Rocha

O presente trabalho tem como tema central a problemática da assistên-


cia à saúde indígena. Objetiva-se refletir acerca da aplicabilidade das políticas
públicas na saúde indígena, como também a relação conflituosa da medicina
ocidental com a medicina tradicional, sobretudo no que se refere a não aceita-
ção da cultura Tradicional Indígena pelos órgãos de saúde do Estado do Tocan-
tins, em especial, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Tentando,
sobretudo, refletir sobre as formas de poder imbricadas nessa relação, eviden-
ciando que toda essa sobreposição de conhecimento está ligada diretamente
com a colonialidade do poder. Ademais, é fundamental ressaltarmos que ana-
lisar criticamente a forma que a saúde indígena é implementada e organizada
não nos coloca como defensores do fim de políticas públicas de inclusão como
essa, ao contrário, o interesse real é a transformação de um modelo hierárquico
e colonizador por um modelo de saúde que seja representativo, participativo e
eficaz para a saúde dos Povos Indígenas no Brasil.
No que tange à assistência à saúde indígena no Brasil, é importante res-
saltar que ela passou por diversas formulações antes e depois da Constituição
de 1988. Considerando que as políticas públicas de atendimento às comunida-
des indígenas restringiram-se à tentativa de integração forçada dos índios na
sociedade nacional. Mormente, quando conseguimos perceber esse ato como
uma estratégia colonial, de assimilação e enquadramento dos povos indígenas
dentro da esfera nacional, como um povo tutelado, com grande necessidade de
assistencialismo. No entanto, com o advento da Constituição de 1988, a cons-
tituição cidadã, que proporcionou a inclusão de vários direitos sociais na le-
gislação brasileira, surgiram novas formulações sobre as Políticas Indigenistas,
sobretudo, na assistência à saúde indígena.
No que se refere à assistência à saúde indígena, a Constituição 1988 pre-
ver um atendimento diferenciado e capaz de atender as especificidades dos
povos indígenas, com respeito à diversidade dos povos e em diálogo com os
conhecimentos das medicinais tradicionais das mais de 305 etnias. Diante dis-
so, vê-se a necessidade de pensar em uma estratégia que possa possibilitar a
parceria dos profissionais da saúde com os conhecedores da medicina tradicio-
nal dos povos indígenas, na tentativa de construir uma saúde diferenciada e de
qualidade.
No entanto, sendo a saúde indígena objeto de controle e muitas vezes de
extermínio, observa-se isso a partir das constantes mortes durante o período
de contato. E, assim, por ser fruto de uma estrutura de opressão e manipulação,
entende-se que o estabelecimento de diálogo e a própria aplicabilidade da polí-
tica pública caminham distantes do que é previsto na legislação. Nesse sentido,
várias são as estratégias usadas pelos povos indígenas como meio de coexistir
dentro da estrutura dominante que é o estado brasileiro. Com isso, podemos
ver a mobilização dos Pajés e dos/as conhecedores/as da cultura, da medicina
e do conhecimento tradicional como uma forma de enfrentamento da colonia-
lidade do poder.
O objetivo deste trabalho é investigar questões relativas à aplicação das
políticas públicas para populações indígenas, bem como refletir sobre as rela-
ções de poder imbricadas nesse contexto desde a colonização do Brasil. E, com
isso, levantar questões que estejam vinculadas à colonialidade do poder, veri-
ficando as formas de enfrentamento que os povos indígenas constroem para
lidar com as problemáticas da saúde indígena, seja na sua aplicabilidade e/ou
na falta de assistencialismo e efetivação dessa política pública.
Talvez ainda não encontremos, de fato, uma solução para o problema
da estrutura colonizadora das políticas públicas. No entanto, isso não é motivo
para deixarmos de refletir: por que reproduzimos modelos de opressão entre
os povos e por que temos uma extrema direita conservadora comandando um
país que precisa refazer-se do caos que foi a invasão do território? Tais pergun-
tas não são fácies de responder, mas acreditamos que possam conduzir à cons-
trução de pensamento que seja capaz de olhar que esta nação carrega em si as
mazelas e as desigualdades reificadas na colonização do que chamamos hoje de
Brasil, e que precisamos urgentemente encontrar estratégias para romper com

102
a estrutura montada pelo e para o colonialismo.
Assim, é essencial pensarmos de que forma podemos conciliar a luta por
uma saúde indígena que dialogue com a ancestralidade e a forma de conheci-
mento produzido pelos povos indígenas nos seus cuidados, frente ao desmonte
que o governo eleito em 2018 vem sendo exercitado simultaneamente à sua
entrada na presidência.
É importante frisar que estamos em um momento que é essencial tra-
varmos disputas que queremos, nesse sentido, pensamos que a saúde indígena
ainda precisa melhorar muito, e a saída é a transformação do sistema, ou seja,
a transformação de uma estrutura de poder, não a proposta esdrúxula do pre-
sidente do Brasil que propõe e produz o enfraquecimento do subsistema de
saúde indígena, logo, a derribada da SESSAI. Não é esse o posicionamento,
o que é que a pauta do movimento seja atendida, e que tenhamos uma saúde
indígena de qualidade e exista um diálogo entre os conhecimentos coexistentes
neste país.

1 Dados do histórico da saúde indígena

No Brasil, desde a colonização, as políticas públicas voltadas para os po-


vos indígenas sempre visaram, de alguma forma, a integração deles à sociedade
nacional. Nesse sentido, foram criados órgãos e organizações responsáveis por
realizar esse processo. Com isso, a partir da cartilha sobre a saúde indígena,
publicada pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI, em 2013, é possível
apresentarmos dados relativos à criação dos diversos órgãos que fazem parte
do processo histórico da constituição da saúde indígena no Brasil.
Segundo Altini (2013), foi em 1910 que foi criado o Serviço de Proteção
aos Índios- SPI. Órgão que na época estava vinculado ao Ministério da Agricul-
tura. Seu objetivo central era promover o processo de “pacificação” e integração
progressiva dos índios à comunhão nacional. Nesse contexto, muitos eventos
desastrosos ocorreram, foram genocídios, extermínios de etnias, invasões e de-
vastações dentro dos territórios tradicionais. Os dados apontados pela Carti-
nha evidenciam que nesse período a assistência à saúde dos povos indígenas
era realizada de maneira desorganizada, exercida de forma precária, e a maioria
das ações só ocorriam em casos emergenciais, dificultando, assim, processos de
recuperação de epidemias, o que acabava por intensificar as contaminações e
proliferação de doenças.
Só no ano de 1950 que criaram o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas
(SUSA), diferente do SPI, a SUSA estava vinculada ao Ministério da Saúde.

103
Segundo Altini (2013), o objetivo era prestar assistência na área de saúde aos
povos indígenas e rurais, em áreas que eram consideradas de difícil acesso.
Suas ações estavam ligadas ao “combate às epidemias e vacinação, atendimento
odontológico, controle de tuberculose e outras doenças transmissíveis”. (ALTI-
NI, 2013, p. 7).
Em 1967, foi criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o motivo
da sua criação foi devido às frequentes denúncias quanto à ação do antigo SPI.
Dentro da FUNAI constituíram o que foi denominado de Equipes Volantes de
Saúde (EVS). Elas eram responsáveis por realizar “serviços médicos, e super-
visionavam os poucos trabalhos de saúde existentes nas aldeias, serviço estes
prestados quase que exclusivamente por auxiliares ou atendentes de enferma-
gem.” (ALTINI, 2013, p. 8).
Segundo Altini (2013), a data de 1986 marca um grande evento para saú-
de indígena. É nesse contexto que acontece a primeira Conferência Nacional
de Proteção à Saúde do Índio. Nesse período, estava no cenário a VIII Confe-
rência Nacional de Saúde, que traz os princípios que serão fundamentais para
o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que é aprovado durante a
Assembleia Constituinte de 1988. Com isso, cria-se um modelo de assistência
específico e diferenciado e, com esse, inicia-se um processo para a implantação
do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS), o qual estaria nas
responsabilidades do Ministério da Saúde.
Nesse mesmo contexto, cria-se a Constituição Federal de 1988, conheci-
da como “constituição cidadã”, dando novas formulações às políticas indigenis-
tas no Brasil. “Aprovou-se a mudança no paradigma da relação entre o Estado
brasileiro e os povos indígenas, substituindo a perspectiva da integração pelo
respeito à especificidade cultural e social de cada povo.” (ALTINI, 2013, p. 9).
É importante ressaltar que apesar de a constituição prezar pelos direitos às di-
versidades e respeito à organização social e cultural dos povos, na prática, os
povos indígenas ainda tiveram que continuar lutando para que a legislação fos-
se respeitada e aplicada, garantindo, assim, os seus direitos. O outro ponto que
merece menção quando da criação da Constituição de 1988 foram os esforços e
articulação do movimento indígena na luta pelo reconhecimento de seus direi-
tos. Foi a partir de várias ações e estratégias que conseguiram que seus direitos
estivessem previstos dentro da Constituição de 1988.
Segundo Altini (2013), foi em 1991 que o Governo Federal transferiu a
responsabilidade pela coordenação das ações de saúde indígena da FUNAI para
o Ministério da Saúde (MS). Isso ocorreu a partir do Decreto nº. 23/91 da Pre-

104
sidência da República. Depois disso, construíram a Coordenação de Saúde do
Índio (COSAI), que estava sob a subordinação do Departamento de Operações
da Fundação Nacional de Saúde (DEOPE/FNS), com o objetivo de implantar
um novo modelo de atenção à saúde indígena e em parceria com a FUNAI.
No ano 1993, através das constantes articulações do movimento indíge-
na, foi possível a realização da segunda Conferência Nacional de Saúde para
os Povos Indígenas, que trouxe como pauta a “defesa do modelo dos Distritos
Sanitários Especiais Indígenas (DSEIS) como base operacional no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS) para a política de atenção à saúde das popula-
ções indígenas.” (ALTINI, 2013, p. 10).
Ocorre que, em 1997, a Comissão Intersetorial de Saúde Indígena do
Conselho Nacional de Saúde (CISI/CNS) procura o Ministério Público Federal
(6ªCCR/MPF) para denunciar as várias falhas na implantação e aplicação da
política pública de assistência à saúde indígena pelo Governo Federal. Como
veremos na citação abaixo:

Como consequência do aumento das pressões, o governo federal editou em


1999 o Decreto nº. 3.156 e promoveu junto ao Congresso Nacional a aprovação
da” Lei Arouca” (Lei nº. 9.836, de 23 de setembro de 1999). Esta lei foi escrita
pelo Deputado Sérgio Arouca, um dos líderes da Reforma Sanitária, regulamen-
tando as diretrizes aprovadas na II Conferência Nacional de Saúde Indígena,
e estava engavetada no Congresso Nacional desde 1994. A política de saúde
indígena passou a ser responsabilidade exclusiva do Ministério da Saúde: “O
Ministério da Saúde estabelecerá as políticas e diretrizes para a promoção, pre-
venção e recuperação da saúde do índio, cujas ações serão executadas pela Fu-
nasa”. A Lei Arouca determinou que o governo federal instituísse o Subsistema
de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS), tendo por base os Distritos Sanitários
Especiais Indígenas (DSEIS). Foram então criados os 34 DSEIS através da Por-
taria 852/1999. (ALTINI, 2013, p. 11).

Percebe-se, com a explanação sobre a Lei Arouca, que a assistência à


saúde passa a ser de responsabilidade do Mistério da Saúde. Vinculado a isso,
estava o objetivo que era, com essa transferência, conseguir:

Garantir aos povos indígenas o acesso à atenção integral à saúde, de acordo com
os princípios e as diretrizes do Sistema Único de Saúde, contemplando a sua
diversidade social, cultural, geográfica, histórica e política, e que essa atribuição
estaria a cargo da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). (ALTINI, 2013, p.
11).

105
Com isso, a FUNASA estabelece novas formulações para a saúde indíge-
na, no ano de 2004, a partir das portarias n° 69 e 70. Com as novas diretrizes,
o objetivo era “recuperar a execução direta e reduzir o papel das convenia-
das, limitando-as à contratação de pessoal, ao deslocamento dos indígenas das
aldeias, e à compra de combustível para a realização desses deslocamentos.”
(ALTINI, 2013, p. 12). Com a criação do Fórum de Presidentes dos Conselhos
Distritais de Saúde Indígena em 2006, acreditava-se que existiria mais vigilân-
cia quanto à aplicação das políticas públicas, no entanto, nem sempre era possí-
vel. A ideia era que com o FPCDSI fosse possível assegurar a participação “em
caráter consultivo e propositivo, e em consonância com as demais instâncias
decisórias do SUS”. Segundo Altini (2013), mesmo com a criação do SASI-SUS
e dos DSEIS, quase todos os serviços de saúde (atenção básica, prevenção e
saneamento) continuavam com os mesmos problemas de descaso. Com isso,
a assistência à saúde indígena foi sendo paulatinamente desconsiderada por
grande parte dos gestores, o que intensificou as questões ligadas aos espaços de
organização dos serviços de saúde.
Por causa desses fatos e com a mobilização de várias conferências dis-
tritais foram apresentadas propostas para a criação da Secretaria Especial de
Saúde Indígena (SESAI), justamente pelo não cumprimento das formulações
estabelecidas pela política pública de saúde, e motivos ligados à corrupção e má
gestão da FUNASA. Mas, segundo Altini (2013), quando a proposta foi levada
à plenária não obtiveram grande sucesso, e com uma pequena porcentagem de
votos a proposta foi derrotada. Diante disso, no final do ano de 2008:

Foi apresentado o Projeto de Lei nº. 3.958 com vistas a alterar a Lei nº.
10.683/2003 que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos
Ministérios de criar a Secretaria de Atenção Primária e Promoção da Saúde, na
qual ficaria abrigada a saúde indígena. (ALTINI, 2013, p. 13).

Com a apresentação dos motivos da proposição, acaba ocorrendo a


transferência “das competências e atribuições exercidas pela Funasa para
essa secretaria, isto através da ordem do ministro da saúde”. (ALTINI, 2013,
p.14). Após intensas mobilizações e pressões do movimento indígena, cria-se
um Grupo de Trabalho com a participação de lideranças indígenas (portarias
3.034/2008 e 3.035/2008 - GAB/MS), “cujo objetivo foi o de discutir e apresen-
tar propostas, ações e medidas a serem implantadas no âmbito do Ministério
da Saúde, no que se refere à gestão dos serviços de saúde oferecidos aos povos
indígenas” (ALTINI, 2013, p. 13). Em seguida, ao passarem exatamente dois

106
anos, o governo edita a Medida Provisória nº 483, aprovada pelo Congresso
Nacional e transformada na Lei nº. 12.314/2010, e no dia 19/10/2010 foi edita-
do o Decreto nº. 7.336/2010, a partir dele se oficializou a criação da Secretaria
Especial de Saúde Indígena (SESAI).
Nesse contexto, surge um novo modelo de gestão da saúde indígena, que,
por sua vez, possui uma secretaria especial, atrelada diretamente ao Ministério
da Saúde. No que se refere às atribuições da SESAI estão:

Criar as condições necessárias para que os distritos tenham autonomia admi-


nistrativa e financeira e sejam, com isso, transformados em unidades gestoras
do SUS; garantir orçamentos próprios e administrados através dos Fundos Dis-
tritais de Saúde; ter um plano de carreira específico para os profissionais de saú-
de indígena, com condições trabalhistas adequadas às complexas e diferentes
realidades dos DSEIs; assegurar que os chefes ou coordenadores dos distritos
sejam aprovados pelos conselhos distritais; garantir que o controle social seja
efetivo, com participação indígena legítima em todas as instâncias de decisão;
formar um quadro estável de recursos humanos (servidores públicos), adequa-
do às necessidades estratégicas da gestão, através de concurso público diferen-
ciado e que assegure a participação indígena nos processos de seleção; e assegu-
rar que no órgão gestor da saúde indígena os servidores tenham perfil técnico
independente das ingerências políticas (ALTINI, 2013, p. 14).

Como vemos, a assistência à saúde indígena passa a ser de total respon-


sabilidade da SESAI, com a incumbência de garantir todo o material e pessoal
necessário para promoção de uma saúde específica de qualidade e respeito aos
povos indígenas.
No entanto, após todo esse período de implantação e construções le-
gislativas, mudanças de órgãos responsáveis pela aplicação da política pública
voltada para a saúde da população indígena, ainda encontramos muitos pro-
blemas. Tendo em vista que a forma como essas políticas foram construídas
perpassa as formas engendradas pela estrutura colonial e, por assim ser, tentar
articular uma maneira que seja mais humana e que respeite as práticas tradi-
cionais de conhecimento não surge como uma articulação possível, mas como
uma chave nos conflitos entre a estrutura dominante (aqui caraterizada pelo
Estado Nacional e sua legislação).
Com isso, a questão central para pensarmos essa situação é refletir sobre
a forma que a medicina ocidental chega à população indígena, pensando, so-
bretudo, como é estabelecida essa relação entre a medicina vigente no âmbito
nacional e a medicina local, a medicina feita pelos pajés e pelas parteiras a par-

107
tir do seu conhecimento ancestral.

2 Políticas públicas: a situação da saúde dos povos indígenas no Tocantins

O Estado brasileiro é caracterizado por seu autoritarismo e conservado-


rismo. Segundo Bacelar (2003), esse perfil autoritário e conservador também
se traduz na maneira como tradicionalmente são pensadas as políticas públicas
para povos indígenas. Nesse processo, procura-se pensar essas questões co-
locando-as frente ao modelo construído a partir da colonialiadade do poder.
Tendo em vista que, “[...] colonialidade do poder refere-se à constituição de
um padrão de poder em que a ideia de raça e o racismo se constituíram como
princípios organizadores da acumulação do capital em escala mundial e das
relações de poder no sistema-mundo.” (BERNARDINO- COSTA, 2016, p.5).
Nesse sentido, percebe-se que a estrutura justaposta pela Medicina Ocidental
enquadra-se no perfil criado pelas novas formas de colonização. Sendo assim,
dialogamos com Quijano (2005), quando nos aponta que:

A privilegiada posição ganhada com a América pelo controle do ouro, da prata


e de outras mercadorias produzidas por meio do trabalho gratuito de índios,
negros e mestiços, e sua vantajosa localização na vertente do Atlântico por onde,
necessariamente, tinha de ser realizado o tráfico dessas mercadorias para o mer-
cado mundial, outorgou aos brancos uma vantagem decisiva para disputar o
controle do comércio mundial. (QUIJANO, 2005, p. 119).

Com isso, queremos evidenciar que a medicina também é um dos ele-


mentos de disputa, e neste contexto encontra-se em pleno controle dos bran-
cos, transformada em mais uma das formas de opressão do sistema capitalista
contra os colonizados. Nesse sentido, a luta dos povos indígenas é constante,
pois como aponta Fanon (2006):

O indígena é um ser encurralado, o apartheid é apenas uma modalidade da


compartimentação do mundo colonial. A primeira coisa que o indígena apren-
de é a ficar no seu lugar, não ultrapassar os limites. [...] Durante a colomização,
o colonizado não cessa de se libertar entre nove horas da noite e seis horas da
manhã. (FANON, 2006, p. 39).

Quanto à política de assistência à saúde, ela é centralizada, o que faz


com que seu tratamento seja homogeneizado. Com isso, as propostas em sua
maioria são feitas de cima para baixo, e, com essa hierarquia, tornam-se mais

108
distantes da realidade dos povos indígenas. Ademais, é importante evidenciar
que isso é uma tradição das políticas sociais no país, que cria e amplia as difi-
culdades de promover a participação da sociedade, excluindo-a do processo de
formulação das políticas públicas que serão ofertadas para solucionar questões
da própria sociedade.
Tania Bacelar (2003) aponta: “o essencial das políticas públicas estava
voltado para promover o crescimento econômico, acelerando o processo de
industrialização, o que era pretendido pelo Estado brasileiro, sem a transfor-
mação das relações de propriedade na sociedade brasileira.” (BACELAR, 2003,
p. 2). Nesse sentido, conseguimos perceber o quanto a inoperância das políticas
de assistência social aos povos indígenas está ligada à forma como é feita a polí-
tica brasileira, e, com isso, perceber que os elementos que guiam e fazem parte
da construção dessas políticas têm uma relação direta com a colonialidade, so-
bretudo, na questão da assistência à saúde indígena.
A atenção à saúde indígena no Brasil, desde o anúncio da criação da Se-
cretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) pelo Ministério da Saúde no ano
de 2008, tem se caracterizado por uma grande inoperância e omissão, agravan-
do ainda mais o cenário da crise interminável que atinge a saúde das popula-
ções indígenas, nas últimas décadas.
No que se refere à saúde dos povos indígenas do Tocantins, podemos
evidenciar a precariedade de seu funcionamento, e a falta de diálogo com os
povos indígenas do Estado. O que implica bastante na aplicabilidade das políti-
cas públicas voltadas à saúde desses povos, pois, sem um dialogo, não é possível
saber quais os reais interesses da comunidade no que se refere ao tratamento da
saúde indígena. O sistema é precário, não consegue cumprir com as atividades
que lhe foram atribuídas. Nesse sentido, os dados de Garnelo (2012) apontam
que:

[...] o atendimento à população aldeada é descontínuo e de baixa qualidade


técnica, que há elevada rotatividade e/ou falta de profissionais para realizar o
atendimento, ao lado da escassez de materiais e equipamentos necessários ao
desenvolvimento das ações de saúde. (GARNELO, 2012, p. 31).

É nesse sentido que percebemos as dificuldades que os povos indígenas


vêm enfrentados, pois, a política de saúde indígena ainda é precária. Nesse sen-
tido, é necessário criar estratégias que possibilitem mudanças reais na estrutura
política. Mudanças que só serão possíveis através de atitudes como a propos-
ta por Bispo (2015), atitudes contra colonizadoras, que podem ser entendidas

109
como: “E vamos compreender por contra colonização todos os processos de
resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contra colonizadores,
os símbolos, as significações e os modos de vida praticados nesses territórios.”
(BISPO, 2015, p. 25).
Nesse sentido, marcamos o I Encontro de Wajahgás/Pajés, realizado en-
tre os dias 12 e 14 de junho de 2014, na Aldeia Apinajé do Prata, localizada
no município de Tocantinópolis – TO, como uma forma de enfrentamento às
estruturas dominastes e um ato de reflexão sobre os sistemas de opressão. Isso
fica evidente na fala do Pajé Xerente sobre o uso da medicina ocidental:

Eles(os colonizadores) que nos ensinou a ir para os hospitais, mas agora quando
a gente precisa, eles dizem que não tem verba, e não tem remédio, mas a gente
sabe que tem verba, por isso é importante ter o Pajé e ter as plantas e as razies
para curar as doenças.

A fala do Pajé evidencia a falta de atendimento de qualidade, mas tam-


bém enfatiza a importância da medicina tradicional. Com isso, percebemos o
anseio do povo para efetivação de uma saúde que possa oferecer-lhes melhores
condições vida, e que tenha compromisso com a causa indígena. No entanto, é
necessário o reconhecimento e valorização do conhecimento tradicional. Ade-
mais, surge nesse contexto a necessidade da SESAI trabalhar em parceria com
os pajés e as parteiras, tendo em vista que:

Os povos indígenas desde os tempos anteriores à colonização europeia possuem


seus sistemas tradicionais de saúde indígena, que articulam os diversos aspectos
da sua organização social e da sua cultura, a partir do uso das plantas medici-
nais, rituais de cura, e práticas diversas de promoção da saúde, sob a responsabi-
lidade de pajés, curadores e parteiras tradicionais. (ALTINI, 2013, p. 4).

Podemos perceber isso na fala do Pajé Krahô:

Eu sou conhecedor da medicina, aprendi há muito tempo, a usar as plantas e


as cascas para curar as doenças, e agora nós estamos sendo mal recebidos pelos
Kupên1 nos hospitais. Falta tudo, falta médico, falta atendimento, falta huma-
nidade.

As falas deixam, ainda, mais enfática a grande falta de compromisso


com a saúde para os povos indígenas. Mostrando que a SESAI não consegue
cumprir com seus objetivos centrais, tornando fundamental a construção de
1 É a forma como o povo Krahô e o povo Apinajé se referem às pessoas não indígenas

110
objetivos que efetivamente contemplem o interesse dos povos indígenas. Nesse
sentido, que contemple a valorização da cultura tradicional indígena, para que,
assim, construa-se uma relação intercultural, e que essa estratégia seja uma for-
ma de compartilhar saberes e proporcionar a interlocução entre os povos, para
que a ação do curar seja compartilhada entre a medicina ocidental e a medicina
tradicional dos povos originários. Ademais, que possibilite a ampliação dos co-
nhecimentos necessários para uma saúde diferenciada e de qualidade.
Contudo, o Estado deve tomar as medidas necessárias para atingir pro-
gressivamente a plena realização desse direito. Para que a assistência à saúde
indígena esteja verdadeiramente de acordo com os princípios organizadores
da LEI Nº 8.080, que dispõe sobre o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena
(incluído pela Lei nº 9.836, de 1999), como se observa na citação do Art. 19.
Abaixo:

Art. 19-. Dever-se-á obrigatoriamente levar em consideração a realidade local e


as especificidades da cultura dos povos indígenas e o modelo a ser adotado para
a atenção à saúde indígena, que se deve pautar por uma abordagem diferenciada
e global, contemplando os aspectos de assistência à saúde, saneamento básico,
nutrição, habitação, meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária e
integração institucional. (Incluído pela Lei nº 9.836, de 1999).

Com isso, vemos que os povos indígenas têm direito a manter suas práti-
cas de saúde, bem como desfrutar de uma saúde vinculada ao SUS, e que tenha
qualidade e respeite a diversidade dos povos. Porém, na prática, o que vemos
é um descaso quanto à aplicabilidade da lei, pois, não há essa integração que o
art. 19 dispõe, e quando existe é com o intuito de impor a esses povos a medi-
cina ocidental, como hegemônica e verdadeira. Tendo em vista que, apesar de
saber que a saúde é um direito e tem a obrigatoriedade de ser ofertada à popu-
lação indígena de maneira diferencia e específica, ainda é um instrumento de
dominação e perpetuação das estruturas coloniais. Sendo assim, é complexo
pesarmos em uma prática vinculada à interculturalidade, levando em conside-
ração que as possibilidades de interação entre a medicina ocidental e a medici-
na tradicional são diminutas.
Ademais, o que temos é sua saúde sucateada de todas as formas possí-
veis. Sobretudo, no que se refere à falta de infraestrutura, falta de profissionais
da saúde, medicamentos, ambulância, etc. Além do que a precariedade da es-
trutura física dos postos de saúde e o serviço prestado pela Secretaria Especial
de Saúde Indígena (SESAI) contribuem para a inoperância da prestação de as-

111
sistência adequada para os povos indígenas.

Considerações finais

As políticas públicas brasileiras ainda estão longe de alcançar o patamar


de uma intervenção que priorize realmente o social, especialmente, no que se
referem ao atendimento dos povos indígenas, quilombolas, camponeses, entre
outros.
O Estado ainda não possui mecanismos de verificação das políticas pú-
blicas, tanto no sentido de verificar com os povos o que eles querem/desejam,
como também para averiguar se estão sendo cumpridas as ações propostas por
essas políticas, para que, através da avaliação, seja possível garantir a aplicabi-
lidade delas.
Contudo, o que podemos perceber é que as políticas públicas no Brasil
passam pela lógica da dominação. Nesse sentido, não são vistas como uma ação
necessária para o bem-estar social, mas como mais uma estratégia de domina-
ção, usada por muitos para conseguir votos e, por vezes, ser reeleito. Ademais,
é necessário que a sociedade participe de todo o processo de implementação
das políticas, para que conheça os trâmites e contribua efetivamente no proces-
so, almejando a construção de uma política feita com o povo, para o povo. No
entanto, para que isso ocorra, é necessária a existência de uma parceria entre
Estado e sociedade civil, a fim de construir com eficiência o bem-estar social.
Nesse sentido, os povos indígenas organizam-se pela conquista de uma
saúde que contribua para o tratamento de seu povo. As articulações desses po-
vos são no sentido de conseguir visibilidade do Estado, para que possa, a partir
do diálogo com o povo indígena, construir políticas públicas que realmente
levem em consideração a realidade. Ademais, que o conhecimento tradicional
seja respeitado, pois é a forma como esses povos realizam seus processos de
cura, fazem seus rituais e realizam suas práticas sociais e culturais.
Os povos indígenas possuem atores centrais para a realização dos pro-
cessos de cura através da medicina tradicional, no entanto, ignorados/das
pelas instâncias governamentais. São os pajés e as parteiras. Os pajés com os
conhecimentos das plantas fitoterápicas e suas técnicas tradicionais de trata-
mento promovem a cura aos doentes, manipulando seus saberes imemoriais.
Já as parteiras exercem funções e mobilizam conhecimentos (também imemo-
riais) extremamente importantes durante os partos e no período de gestação
da parturiente. É necessário, pois, que haja uma valorização e reconhecimento
da função dos pajés e parteiras, evidenciando a necessidade de eles trabalha-

112
rem em parceria com a SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) no aten-
dimento à população indígena. Com isso, percebemos que é de fundamental
importância o estabelecimento dessa parceira, pois visa o bem-estar de toda a
comunidade, já que a equipe médica tem que executar suas funções tratando
esses povos de maneira a valorizar também o conhecimento deles.
Contudo, é preciso ser repensada a atuação desses profissionais da saú-
de indígena, principalmente os profissionais não índios que atuam nos postos
de saúde indígena, para que suas ações estejam imbricadas na associação da
medicina ocidental e da medicina tradicional, para que elas, juntas, possam
possibilitar uma visão ampliada dos conhecimentos, concedendo aos profissio-
nais da área da saúde a capacidade de lidar com a realidade dos sujeitos, com
as demandas específicas de cada povo para um atendimento à saúde indígena
verdadeiramente diferenciado.

Referências

ALTINI, Emília. et. al. A Política de Atenção à Saúde Indígena no Brasil Breve
recuperação histórica sobre a política de assistência à saúde nas comunidades
indígenas. Publicação do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, 2013.
ARAÚJO, Tânia Bacelar. As Políticas Públicas no Brasil: heranças, tendências e
desafios. Rio de Janeiro: FASE, 2003.
BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramón.“Decolonialidade e
Perspectiva Negra”. Sociedade e Estado, v. 31, n.1, 2016. pp. 15-‐24.
Bispo, Antonio. Colonização, Quilombos,2015.
BRASIL. LEI Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições
para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funciona-
mento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 20 set. 1990.p.18055.
FANON, Frantz (2006). Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: EdUFJF.
GARNELO, Luiza. Política de Saúde Indígena no Brasil: notas sobre as tendên-
cias atuais do processo de implantação do subsistema de atenção à saúde. In:
GARNELO, Luiza; PONTES, Ana Lúcia (Org.). Saúde Indígena: uma introdu-
ção ao tema. 22. Ed. Brasília, DF: MEC-SECADI, 2012.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina.
In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas lati-
no-americanas. Buenos Aires, CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales, 2005.

113
Parte ii
Memória, festas,
religiosidades e
sociabilidades
“Morada dos mortos”: a construção dos
cemitérios como lugar de memória

Aldeanne Silva de Sousa


Jakson dos Santos Ribeiro

Neste capítulo, abordar-se-ão os cortejos que eram realizados pela so-


ciedade caxiense, durante as décadas de 60 e 70. Eles eram bem organizados,
geralmente, tinham o acompanhamento das bandas do Divino, para aqueles
de família abastarda. E mesmo que não tivessem esses acompanhamentos, mas
esse ato no rito fúnebre era realizado com muito respeito e zelo pelos familia-
res, amigos e vizinhos.
Em vista disso, emerge um espaço novo na cidade, pois, até meados dos
século XIX, os sepultamentos eram realizados nas Igrejas, e com o processo de
urbanização e higienização das cidades, essa prática estava sendo proibida, e os
mortos deveriam ser transferidos para fora do meio urbano, com isso, nasce o
cemitério, local em que as famílias prestariam os cultos pós-morte, criando um
local de lembranças e recordações.
Na cidade de Caxias, nesse contexto em que estamos realizando nossa
abordagem, já havia dois cemitérios que eram e são bem tradicionais, pois fo-
ram os primeiros, o cemitério de São Benedito e o de Nossa Senhora dos Remé-
dios, ambos pertenciam às Irmandades que cuidavam tanto dos sepultamentos
como da organização.
No cemitério de Nossa Senhora dos Remédios tem algo instigante, ele
foi divido em dois, onde no primeiro eram enterrados os de famílias ricas, que
eram associados da confraria; e no segundo, as pessoas de classe média ou po-
bre. Essa diferença pode ser percebida pelas ornamentações e modelos das se-
pulturas, pois, na primeira parte do cemitério, os túmulos são belos, represen-
tando a própria distinção social, tais túmulos expressam a ostentação e riqueza
dos caxienses que morriam e eram pertencentes à chamada elite caxiense. Já
no outro cemitério, é perceptível a condição social das pessoas, pela própria
ornamentação dos túmulos, pois eram constituídos de menos ornamentos, de-
monstrando que não eram pessoas ricas. Assim, foi criando um imaginário de
que no primeiro cemitério são enterradas as pessoas ricas da cidade e no segun-
do as pessoas pobres, e essa concepção até nos dias atuais está viva.

1 Da velação a caminho da última morada

Mas a produção fúnebre interessava sobretudo aos vivos, que por meio dela
expressavam suas inquietações e procuravam dissipar suas angústias. Pois, em-
bora variando em intensidade, toda morte tem algo de caótico para quem fica.
Morte é desordem e, por mais esperada e até desejada que seja, representa rup-
tura com o cotidiano. Embora seja seu aparente contrário, a festa tem atributos
semelhantes. Mas, se a ordem perdida com a festa retrona com o final da festa,
a ordem perdida com a morte se reconstitui por meio do espetáculo fúnebre,
que preenche a falta do morto ajudando os vivos a reconstruir a vida sem ele1.

Assim como todos os momentos dos ritos fúnebres, a ida ao cemitério


era marcada e envolvida de representações e sentimentos, pois são os instantes
finais em que os familiares da pessoa que está sendo velada fazem as últimas
homenagens. Quando o enterro estava prestes a sair, começavam as despedi-
das, pois aproximava-se da última hora, ou seja, esse era o momento final em
que os filhos, parentes e amigos iriam ver a pessoa querida.
Assim, é perceptível que as pessoas naquele contexto, no momento final
do velório na residência, mostravam-se de forma mais significativa e com uma
conotação simbólica muito forte, pois configurava-se na última homenagem e
nos últimos momentos que estavam juntas.
Durante o caminho para o cemitério, a princípio e em muitos casos, era
feito a pé, as pessoas iam cantando, rezando, o que, por sua vez, caracterizava
a chamada marcha fúnebre. Além dessa marcha ser marcada por cânticos que
visam a preparação do morto para sua última e nova morada, há outro aspecto

1 REIS, op. cit., p. 138.

118
muito forte nesse momento do ritual: as pessoas que se faziam presentes nas
ruas onde o cortejo fúnebre estava passando. Nas portas, janelas, calçadas, pes-
soas trafegando pelas ruas paravam como forma de respeito à família enlutada
e à própria pessoa que seria enterrada. Essas atitudes eram práticas frequentes
na sociedade caxiense, além disso, em alguns cortejos, havia as bandas de mú-
sicas que faziam o percurso até o cemitério, como explica senhor Manoel de
Páscoa Medeiros Teixeira:

[...] Quando as pessoas eram funcionário, aliás eram sócios da União do Centro
e eram operários que faziam parte dessas casas históricas da cultura popular,
então vinha a banda né, nesse tempo era a banda chamada, banda Guanabara,
a Guanabara vinha e tocava né, as música, cantava bonito, quando ia saindo o
caixão, eles faziam silêncio né, na porta da casa, ficava seis dum lado e seis do
outro, tocava aquele silêncio, era tão penoso, que parecia que você tava sendo
assim mermo conduzido a entrar numa introspecção de sentimentos viu, e ali
saia e o pessoal rezava um mistério do terço, aí cantava um cântico religioso,
cantava um mistério do terço e tal e sempre, sempre ia uma cruz bem na frente
né, uma cruz, as vez o padre num tinha muito padre, mas o padre vinha né, dava
a benção, confortava os donos dos mortos e conduzia-o2.

Assim, podemos perceber como as questões sobre morte na sociedade


caxiense eram marcadas por uma forte crença, pois havia uma mobilização
por parte da população em fazer-se presente nos cortejos e de proporcionar
momentos bonitos, mesmo que o morto não pudesse ver. Como também um
momento em que a distinção social ficava demarcada pela própria utilização de
bandas, pois apenas pessoas que faziam parte das estruturas de poder tinham o
privilégio de serem acompanhadas pelas bandas de músicas, geralmente, eram
famílias tradicionais, tal tradição vem desde os tempos das Irmandades que
havia na cidade de Caxias.
Mesmo quando o cortejo não era acompanhado pela banda de música,
mas sempre havia as rezadeiras, rezadores e era acompanhado por muitas pes-
soas, pois em meados das décadas de 60 e 70 do século XX, perdurando por
mais alguns anos, as pessoas gostavam de ir aos velórios mostrar solidariedade
e sentimentos, tanto para o morto quanto para os familiares. Se o morto fosse
uma pessoa muito conhecida na cidade, a distância não era empecilho para que
seus amigos e conhecidos fossem fazer a última homenagem.
Ainda existia a tradição de quem iria levar o caixão. Quando era o en-
2 Manoel de Páscoa Medeiros Teixeira. Entrevista concedida a Aldeanne Silva de Sousa, em
28 nov. 2012.

119
terro de uma criança, só quem poderia levar o caixão eram os seres puros e de
bom coração, consequentemente, fala-se das crianças. Os jovens eram carrega-
dos pelos jovens, que poderiam ser da família ou colegas. O cortejo era bem or-
ganizado e todos os que acompanhavam demonstravam respeito e sentimentos
para o moribundo e os familiares.
Como em Caxias havia a prática de fazer o enterramento em redes e
caixões, em cada um tinha uma maneira diferente de como o defunto seria
carregado, pois os cortejos eram feitos em caminhada, e os defuntos eram car-
regados, como rememora o senhor Manoel de Páscoa Medeiros Teixeira:

O enterro era muito bonito. Os enterro era levado nas costas, quatro pessoas,
eles tinham almofadas, tinha uma, uma escada, fazia aquela grade, da altura
dessa mesa com os pés, e do lado tinha uma grade, como se fosse uma cama,
colocava o caixão no meio e ali tinha uma coisa que atracava assim, apertava o
cartão, o caixão e naquele pau pra frente e pra trás os quatro, com andor, tinha
uma almofada arredondada assim, de pano de seda viu, que metia pra colocar o
braço. Então ali levava, os passos eram iguais.... era uma coisa muito bonita, era
um respeito podia ser pobre, podia ser preto, rico, homem ou mulher, o enterro
era tudo desse caráter assim sabe? Então aparecia do enterro daqui pra Olaria
cinqüenta homens pra levar o caixão sabe, eles ficavam bem próximo viu, ao es-
quipe pra poder fazer a mudança, quando você ouvir um fazer (slap!) num sabe,
ai você chegava lá metia ombro e trocava, e o caixão não parava.... e os caixões
ia aberto.... aberto né, ia aberto era muito bonito os caixões ia aberto né, muitas
flores, colocavam muitas flores nas tampas3.

Através dessas lembranças, pode-se perceber que havia um objeto em


que se carregavam os caixões, além disso, os cortejos eram como um evento
social em que apareciam muitas pessoas, mesmo que não fossem da família ou
amigos, mas que demonstravam um sentimento por aquele ser que já não ha-
bita o mundo dos vivos. Havia algumas particularidades como os cortejos que
se restringiam aos grandes proprietários, o caixão era carregado nos carros de
boi, escolhia-se o boi mais vistoso da fazenda, o carro era todo coberto com um
lençol branco que ficava muito bonito e, em alguns casos, tinha o acompanha-
mento do Divino que só abrilhantava o cortejo, ele fazia o percurso cantando:
“eles chegavam e cantavam ‘te alevanta corpo morto’ sabe (cantando) Te ale-
vanta corpo morto, Dan, Dan Dan, todas aquelas músicas”4, fazendo, assim, do
3 Manoel de Páscoa Medeiros Teixeira. Entrevista concedida a Aldeanne Silva de Sousa, em
28 nov. 2012.
4 Idem.

120
enterro também um momento festivo.
Entretanto, percebe-se que a sociedade caxiense mostra zelo e prestígios
aos defuntos, mas nem todos os mortos tinham a sorte de serem enterrados
em caixão, como já foi mencionado neste trabalho. Os moradores de Caxias,
em sua maioria, vinham da zona rural e passavam por dificuldade financeira,
e como o caixão era um objeto caro, muitas pessoas eram enterradas em suas
próprias redes. Havia pessoas que eram tão pobres que os familiares faziam
questão de que a rede fosse devolvida para ser utilizada por outro membro.

E o enterro na rede era uma coisa muito engraçado, pegavam um pau longo,
como daqui acho que naquele sofá, um pau, tirava ele bem verde, tirava a casca,
limpava e amarrava a rede lá e aqui. Quando levantavam o defunto, esperavam
assentar, aí pegavam um lençol branco e colocava a altura dos ombros viu, por
cima da rede e amarrava sabe por baixo da rede, amarrava bem arrochado pra
não sair que na parte dos ombros ficava o pano preso nisso aqui né, aí você via
só essa parte aqui, aí saía direitinho, o pé pra frente né, até chegar no cemitério,
aí chegava no cemitério eles ficavam em cima da cova, um agarrava no meio, ou-
tro ficava aqui, segurava três lá, aí ia desatando aquelas cordas, ela ia longa que
era pra desatar as cordas e já ia descendo de acordo com as sepulturas de cima5.

É possível perceber que mesmo quando se fazia o sepultamento nas re-


des, mostrava-se um zelo, apreço por aquele momento, havia todo um processo
para a chegada do corpo ao cemitério, preocupação de que o morto estivesse
sendo bem preparado para esse momento de passagem para a outra vida.
O ato de fazer sepultamento na rede era comum também nos interiores
da cidade caxiense, como em suas recordações fala a senhora Maria das Graças
de Araújo, que na década de 60 residia no interior chamado Barriguda, comen-
ta como acontecia o cortejo nessa localidade:

Levava na rede correndo e cantando uma música assim que deixa a gente bem,
eu só sei um pouquinho eu já esqueci mais, mas diz assim, naquele desespero de
correr, aquela coisa feia eles diziam “Chega um, Chega dois, chega três... chega
quatro, chega cinco, chega seis... ai dava aquele gritão, e dizia chega irmão das
almas”, quer dizer estava chamando uma, duas, três, até seis alma e diz que na-
quela hora, diz que naquele momento o corpo ficava maneiro que parece que ia
levando só pau com a rede, como aquele que eles tinham chamado6.

5 Idem.
6 Manoel de Páscoa Medeiros Teixeira. Entrevista concedida a Aldeanne da Silva Sousa, em
21 dez. 2012.

121
Mesmo que tivessem algumas delimitações devido à questão financeira,
“as famílias se esforçavam por fazer dos enterros de seus membros um impor-
tante acontecimento social”7, pois era o momento em que parte da cidade se
manifestava, comparecendo a esses eventos, principalmente em cidade peque-
na como Caxias.
Quando chegava ao destino final, fazia-se o último ato do rito que se
compôs por uma oração, dava-se espaço para, se alguém quisesse, falar algo a
respeito do moribundo, prestando sua última homenagem, após isso, dava-se
o sepultamento, em alguns se jogavam flores ou um punhado de terra como
sinal de solidariedade, ritual que pode ser observado até hoje, mas em menor
frequência8.

Sepultamento, quando chegava lá a pessoa da família levava água benta, jogava


no túmulo né, a água benta, a pessoa fazia jogar mermo a água benta, o pessoal
jogava muito ramalhete de flores dentro das covas aí botava o caixão e as pessoas
enchiam a mão de areia, ainda hoje ainda tem isso , num tem? Você enchia a
mão de areia, cada um jogava um pouquinho, quer dizer, eu tô fazendo parte do
sepultamento do meu parente, do meu irmão, do meu amigo. Era muito bonito
as coisas passadas, as tradições se não tivessem desaparecido, o mundo era me-
lhor, muito melhor9.

Com o sepultamento, fechava-se um ciclo no processo dos ritos fúne-


bres. Agora por diante, haveria os chamados ritos pós-morte, que são as missas,
as visitas ao cemitério e os terços que são rezados na casa do morto. Como em
sua maioria os sepultamentos aconteciam pela manhã, já pela tarde, dirigia-se
para a casa do morto, onde se rezava o terço durante alguns dias, para a alma
do defunto descansar em paz e fosse para um bom lugar, encerrava com a missa
do sétimo dia e sua frequência ficava cada vez mais rara.
Tal ação era realizada desde a Idade Média, como escreve: “o ritmo das
missas e das preces era então cada vez mais frouxo e seu tempo era limitado:
três dias, sete dias, um mês, um ano, raramente mais”10, isso ainda é presente,
percebe-se que a memória do morto vai ficando cada vez mais distante, porém,
não deixa de ser esquecida.
Outra forma de a família mostrar respeito pelo defunto era no luto, seus
7 REIS, op. cit., p. 129.
8 CANTANHEDE, op. cit., p. 21.
9 Referência.
10 SCHMITT, Jean Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1990, p.14.

122
familiares passavam determinado tempo usando somente roupas pretas, não
saiam para festas, não ouviam música, deixavam de realizar algumas atividades
consideradas inapropriadas para os parentes do defunto. Esse período variava
de acordo com o grau de parentesco e o sentimento que a pessoa tinha, podia
ser de anos ou meses, mas havia essa demonstração de deferência à memória
do morto. Até mesmo os vizinhos e amigos em respeito usavam uma fita preta
com um alfinete, mostrando amor ao defunto, além de ser uma forma de outras
pessoas saberem que alguém que se gostava havia falecido.
Os ritos pós-morte a cada dia modifica-se e adequa-se à sociedade, pois
atualmente a questão do luto e as missas estão cada vez mais esquecidas, as
pessoas vivas não demonstram zelo por seus mortos, não se sente mais o amor,
dedicação na realização do preparo do velório, a escolha da vestimenta, da or-
namentação do ambiente, das comidas que iram ser servidas para aqueles que
viriam dar suas condolências. Todas essas ações que, até a década de 70 e me-
ados de 80, na sociedade caxiense, familiares e amigos eram os agente ativos
para que o morto tivesse uma passagem digna para outra vida.

2 Cemitério como espaço de memória

Em outubro de 1828 foi promulgada a lei imperial que regulamentava a estru-


tura, funcionamento, eleições, funções e outras matérias referentes às câmaras
municipais do Império do Brasil. Trata-se de uma longa lei, com noventa arti-
gos. Interessa-nos particularmente o Título III, art. 66, segundo o qual as câ-
maras teriam “a seu Cargo tudo quanto diz respeito à Polícia, e Economia das
Povoações, e seus termos [...]”. O artigo reafirma a secular função das câmaras
de redigir e fazer respeitar as posturas policiais, ou seja, as leis locais que orde-
navam o cotidiano dos habitantes do município11.

Com a lei que foi promulgada em outubro de 1828, que buscava regula-
mentar a estrutura e funcionamento urbano, havia como propósito uma orga-
nização no setor urbano, desde a higienização, limpeza, saúde da cidade, além
de reparos e segunça nas ruas e, em meio a esse processo de higienazação, há
uma mudança nos locais dos sepultamento.
Até meados do século XIX, havia a prática de os sepultamentos serem nas
igrejas, pois existia no imaginário social que os corpos enterrados ali tinham
mais chance de se salvarem, e na sociedade caxiense havia a mesma concepção.
Além do processo de organização higiênica pública, a cidade estava crescendo

11 REIS, op. cit., p. 275.

123
e não haveria lugar suficinte para que todos fossem enterrados nas igrejas.
Com essa lei, as práticas de sepultamentos seriam proibidas, porque as
igrejas eram locais públicos e as pessoas que as frequetavam estavam vulnerá-
veis às doenças12 que os corpos poderiam gerar, quando estavam em decompo-
sição. Com isso, os mortos deveriam mudar de lugar, deveriam estar em locais
arborizados, altos e que não ficassem no centro urbano para não oferecerem
risco à população.

Ia se desenvolvendo gradativamente a idéia do caráter pernicioso da morte,


sendo os enterros realizados nos templos religiosos objeto agora de inúmeras
discussões, haja vista que as igrejas recebiam um grande fluxo de pessoas que
conviviam diariamente e de forma muito próxima com os defuntos que eram
ali sepultados. Esta aproximação entre vivos e mortos seria uma das principais
causas de doenças físicas aos vivos, pois os cadáveres exalavam odores que pre-
cisavam, a partir de então, ser combatidos, fazendo-se necessário a transferência
dos enterros para cemitérios extramuros das igrejas, evitando-se assim a prolife-
ração de vapores considerados nocivos à saúde dos vivos13.

Com a disseminação desse ideário, emergia, a princípio, um imaginário


de medo, pois os vivos deveriam evitar o contato com seus mortos, porque eles
agora ofereciam perigo para a saúde. Além disso, ficaria mais difícil a realização
dos ritos fúnebres por não estarem em seu meio e cotidiano.
Assim, emergia um novo espaço na cidade, mesmo que a priori fosse
afastado do centro, pois os mortos, a partir de então, teriam uma nova mora-
da. O processo de sepultamentos nos cemitérios começou a ser realizado em
Caxias em 1858, encarado como a nova morada, o que, por sua vez, iria consti-
tuindo uma nova representação acerca da nova morada dos mortos.
Em vista disso, iria lapidando-se um novo lugar para a memória do de-
funto, ao estar em um espaço livre e que se restringia somente a ele. Os vivos
iam apenas para visitas e realização dos ritos funéreos, pois mesmo os mortos
transferindo-se de lugar, a memória estaria viva, como escreve Bosi: “Podem
12 Como diz Oliveira, acerca da prática dos sepultamentos nas Igrejas: “Para os médicos,
os mortos representavam um sério problema de saúde pública porque a decomposição dos
cadáveres produzia gases pestilênciais que poluíam o ar, contaminando os vivos, causando
doenças e epidemias. Estes deviam se cuidar transferindo os mortos para cemitérios locali-
zados fora do perímetro urbano”. Cf. OLIVEIRA, Anne Karinne dos Santos. Das portas do
sagrado aos portões do público: Ritos fúnebres e a nova moradia dos mortos em Caxias no
século XIX (1830-1862). (Monografia) Universidade Estadual do Maranhão, Caxias, 2012.
13 COE, Agostinho Junior Holanda. A morte e os Mortos na Sociedade Ludovicense (1820-
1855). (Monografia) Universidade Estadual do Maranhão, São Luís, 2005, p. 26.

124
arrasar as casas, mudar o curso das ruas; as pedras mudam de lugar, mas como
destruir os vínculos com que os homens se ligavam a elas? Podem suprimir sua
direção, sua forma, seu aspecto, estas moradias, estas ruas, estas passagens”14.
Por conseguinte, a memória não está ligada somente ao lugar material,
palpável, mas a relações que foram vivenciadas nele, uma vez que os lugares, os
acontecimentos e as pessoas são como fios que vão entrelaçando-se e formando
uma “rede” de memórias.

Os lugares de memória acoplam-se, formam encruzilhadas, retas, transversais,


cada um deles formando “mundos”, à parte, passíveis de ser colocadas em co-
municação pela memória. Mundos intermitentes e vacilantes, integrados como
um caleidoscópio, pelos poderosos movimentos da memória15.

O cemitério é esse espaço revestido de memórias, mesmo que sejam de


grupos diferentes, mas, quando se encontram nesse local, compartilham de
sentimentos semelhantes, pois vão prestar homenagens aos seus entes queridos
que já não habitam o mundo dos vivos, em meio a essas vistas, percebemos
conversas. Essas atividades podem ser bem percebidas no dia 2 de novembro,
dia reservado para cultuar os mortos.

Figura 1: Cemitério Municipal Aluízio Lobo (2012)


Fonte: Acervo da Pesquisadora

Através da imagem, é possível percebe que o vivo tem zelo pela nova mo-
rada do seu familiar, amigo, mas, além disso, esse lugar representa um espaço
14 BOSI, Eclea. Memória e sociedade:lembranças de velhos. 2. ed. São Paulo: Editora
Universidade de São Paulo, 1987, p. 34.
15 SEIXAS, op. cit., p. 50.

125
de lembranças, mesmo elas não sendo boas.

Assim a afirmação sedutora de Pierre Nora de que, se ainda habitássemos nossa


memória, não haveria necessidade de lhe consagrar lugares específicos descon-
sidera um traço instituidor da memória, que é precisamente a espacialização
do tempo, e precisamente, o exprimir-se, materializar-se e atualizar-se através
de lugares. Os lugares de memórias, nesse sentido, representariam menos uma
ausência de memória ou a manifestação de uma memória historicizada do que
irrupções afetivas e simbólicas da memória em seu diálogo sempre actual com
a história. É porque habitamos ainda nossa memória –tão descontínua e frag-
mentada quanto são as experiências da modernidade- e não porque estejamos
dela exilados que lhe consagramos lugares, cada vez mais numerosos e, freqüen-
temente inusitados16.

Com a sociedade moderna, em que as transformações e mudanças ocor-


rem de maneira rápida, é preciso criar locais de lembranças para que suas me-
mórias não sejam esquecidas, além de manter algumas tradições, como acon-
tece nos cemitérios, que, apesar dos anos, ainda existe a prática de cultuar os
mortos.

3 Cemitério Nossa Senhora dos Remédios: as distinções sociais na morada


dos mortos

Os processos de sepultamento, antes da implantação dos cemitérios,


eram feitos nas igrejas, e havia uma entidade específica para cuidar dos rituais
da morte que eram as Irmandades, através delas buscava-se a “boa morte”, pois
o imaginário que se tinha era que aqueles que tivessem associados em alguma
confraria teriam todos os ritos funéreos e que assim seria mais fácil de alcançar
a salvação.
Na cidade de Caxias-MA, havia algumas Irmandades, como a Santís-
simo Sacramento, Irmandade de São Vicente de Paula e das Santas Almas, na
Igreja da Matriz de Nossa Senhora da Conceição e São José; Irmandade do
Glorioso São Benedito e Santíssimo Sacramento, na Igreja de São Benedito;
Irmandade Nossa Senhora dos Remédios, que atuou na Igreja de mesmo nome;
e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na Igreja de Nossa
Senhora do Rosário.
Dentre elas, as Irmandades que apreciavam a preferência da elite caxien-

16 SEIXAS, op. cit., p. 44.

126
se eram: a do Santíssimo Sacramento, das Santas Almas e de São Vicente de
Paula, da Igreja da Matriz de Nossa Senhora da Conceição e São José, a de
Nossa Senhora dos Remédios e a do Glorioso São Benedito. A Irmandade Nos-
sa Senhora dos Remédios emergiu devido ao elevado número de negociantes
existentes na cidade.

Dada a proporção e a importância alcançada pelo comercio na vila de Caxias,


a poderosa classe dos negociantes, dominada quase exclusivamente por por-
tugueses, levou os mesmos, a semelhança dos seus patrícios na Capital, que
haviam tomado Nossa Senhora dos Remédios como protetora do comércio, a
reunirem-se em uma irmandade com a mesma invocação17.

Assim, duas Irmandades foram contempladas para que pudessem erguer


os seus respectivos cemitérios, que foram a Irmandade de Nossa Senhora dos
Remédios e a de São Benedito, mas este trabalho tem como foco o cemitério de
Nossa Senhora dos Remédios.

A Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios no mês de junho de 1861 deu


princípio á edificação de um cemitério, sendo colocada a primeira pedra pelo
Pedreiro Leocádio Lopes de Carvalho. Foi benzido em 14 de junho de 1862 pelo
Padre Raimundo João Morais Duarte, e a sua capela em 15 de agosto do mesmo
ano18.

O cemitério de Nossa Senhora dos Remédios, como era de uma Irman-


dade, as pessoas que são sepultadas geralmente são associadas ou membros de
suas famílias. Assim, com o passar dos anos, foi criando no imaginário caxiense
que aquele era o cemitério “de dono”, pois nas décadas de 60 e 70, como relem-
bra o senhor Leônidas Nunes de Almeida, 75 anos, que trabalha nesse cemité-
rio há mais de quarenta anos, as pessoas eram enterradas em sua maioria sócia,
no momento do cortejo eram elas que carregavam o caixão. Alguns cortejos
eram acompanhados de músicas, o cortejo organizado e bonito para prestar
essa última homenagem ao membro da entidade.
As pessoas que não pertenciam à entidade poderiam ser enterradas nes-
se cemitério, mas deveriam pagar uma taxa, pois o cemitério era um local pú-
blico e toda a população tinha direito de ser enterrada. Como o enterramento
de pessoas não associadas ficava muito restrito, para resolver essa situação, o
prefeito da cidade dividiu a cemitério, como conta o senhor Leônidas Nunes
17 IPHAN apud OLIVEIRA, op. cit., p. 27.
18 Estatuto da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios.

127
de Almeida, “o cemitério tem um quilômetro de cemitério viu, isso aí é do ce-
mitério dos Remédios, cemitério dos Remédios, aí então um prefeito chamado
Aluízio Lobo dividiu os dois cemitério, que esse lá ficou com os ricos e os da cá
fico com os pobres viu”19.
Essa divisão só veio colocar a diferença e reforçar o imaginário de que
as pessoas que são enterradas no primeiro cemitério são ricas e pertencentes à
elite caxiense; e no segundo, a classe mais abastarda.
Quando questionado acerca dessa divisão, o senhor Manoel de Páscoa
Medeiros Teixeira faz uma explanação de como era o cemitério dedicado aos
associados, onde havia características portuguesas:

[...] Aliás dois cemitérios, São Benedito e Remédios, eles eram da igreja né,
quando a família que fundou essas igrejas, porque a igreja dos Remédios era
uma irmandade e as irmandade da, da, da boa morte, assim que eles chama-
vam tinha um cemitério e aquele cemitério ele era de um caráter português, ali
dentro tinha as, as virtudes teologais, eu ainda conheci lindas virtudes teologais,
eram todas de porcelana de dois metros de altura. Fé, esperança, caridade, for-
taleza, amor, é... a justiça, fé, esperança, caridade, amor, a justiça, é... a tempe-
rança, elas , elas dividiam, você entrou no cemitério mais ou menos como daqui
naquela parede lá viu, lá tinha as colunas com as estátuas e os dois vasos, um
vaso honorífico, que ta lá no museu da Balaiada, e o outro era um vaso em sím-
bolo de devoção, esses dois vasos bonitos de porcelanas portuguesas guardavam
águas né, água, e daquela parte pra cá era nobreza, a nobreza portuguesa que
morava em Caxias, os nomes das pessoas que tinham brasão, tinha o brasão,
tinha realmente em respaldo, depois do lado de lá tinha uma divisão, pra lá era
enterrado a classe média20.

E essa diferença pode ser percebida até na estrutura, como foram cons-
truídos em épocas diferentes. O primeiro teve sua edificação no século XIX,
com ostentação tanto na arquitetura como nas suas sepulturas.

19 Leônidas Nunes de Almeida. Entrevista concedida a Aldeanne da Silva de Sousa, em 21


dez. 2012.
20 Manoel de Páscoa Medeiros. Entrevista concedida a Aldeanne da Silva de Sousa, em 28
nov. 2012.

128
Figura 2:Cemitério Nossa Senhora dos Remédios.
Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Caxias-IHGC

Figura 3: Cemitério Municipal Aluízio Lobo (2012)


Fonte: Acervo da Pesquisadora.

Mesmo com essa diferença de épocas, o cemitério titulado como Cemi-


tério Municipal Aluísio Lobo, conhecido como Nossa Senhora dos Remédios,
não apresenta a ornamentação que o primeiro possui, até as suas sepulturas são
diferentes, pois, o da primeira foto, muitas de suas sepulturas eram feitas de
mármore e azulejos vindos de Portugal, como relata o senhor Leônidas Nunes
de Almeida21, que esses objetos eram comprados pelos ricos, então, eram man-
21 Leônidas Nunes de Almeida. Entrevista concedida a Aldeanne Silva de Sousa, em 21
dez. 2012.

129
dados para São Luís, só depois que vinham para Caxias. Antes da construção
da estrada de ferro, o transporte era feito de navio, com a implantação do trem,
vinham nele e quando chegavam à cidade, para ir para o cemitério, iam carre-
gados em carroças.
Isso mostra o quanto era trabalhoso fazer essa ornamentação nas sepul-
turas, mas todo esse processo era preciso para que tivesse um túmulo que re-
presentasse o zelo e que a última morada do seu ente querido fosse bela. Até
o espaço do próprio cemitério tinha sua ornamentação, pois havia esculturas,
imagens de anjos que serviam de enfeites desse espaço, passando imagens de
paz, serenidade, em que se podiam descansar em paz.

Figura 4: Cemitério Nossa Senhora do Remédios ( 2012).


Fonte: Acervo da Pesquisadora.

Figura 5:Cemitério Nossa Senhora do Remédios ( 2012).


Fonte: Acervo da Pesquisadora

130
Atualmente, as famílias tradicionais tentam manter essa tradição de
construírem sepulturas que demonstrem zelo, cuidado e ostentação, demons-
trando, assim, a preocupação para que seu ente querido esteja confortável. Há
muitas sepulturas reservadas a familiares, ou seja, túmulos que são enterradas
mais de uma pessoa. Na visita ao cemitério, é possível perceber algumas sepul-
turas que têm o marido e a esposa, outras já estão reservadas.

Figura 6:Cemitério Municipal Aluízio Lobo (2012)


Fonte: Acervo da Pesquisadora

No segundo cemitério, a diferença no interior dele é bem visível através


de suas sepulturas que não evidenciam riqueza e opulência, mas, dentro de suas
limitações, procuram demonstrar carinho ao defunto por meio da tradição de
visitas, rezas e o cuidado com o local da sepultura.

Referências

BOSI, Eclea. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 2. ed. São Paulo. Edi-
tora Universidade de São Paulo, 1987.

CANTANHEDE, José Luís. Memórias fúnebres da sociedade caxiense de 1900


e 1950: uma abordagem sobre pensamento católico. (Projeto Monográfico)
Caxias: CESC/UEMA, 2007.

COE, Agostinho Junior Holanda. A morte e os Mortos na Sociedade Ludovicen-


se (1820-1855). (Monografia) Universidade Estadual do Maranhão, São Luís,
2005.

131
ESTATUTOS DA IRMANDADE NOSSA SENHORA DOS REMÉDIOS. Insti-
tuto Histórico e Geográfico de Caxias.

OLIVEIRA, Anne Karinne dos Santos. Das portas do sagrado aos portões do
público: Ritos fúnebres e a nova moradia dos mortos em Caxias no século XIX
(1830-1862). (Monografia) Universidade Estadual do Maranhão, Caxias, 2012.

REIS, João José. A morte é uma festa: Ritos fúnebres e a revolta popular no Bra-
sil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

REIS, João José. O Cotidiano da Morte no Brasil Oitocentista. In: NOVAIS,


Fernando A. (Org.). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.

SCHMITT, Jean Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo:


Companhia das Letras, 1990.

Entrevistados

Leônidas Nunes de Almeida. Entrevista concedida a Aldeanne da Silva de Sou-


sa, em 21 dez. 2012.

Manoel de Páscoa Medeiros. Entrevista concedida a Aldeanne da Silva de Sou-


sa, em 28 nov. 2012.

Leônidas Nunes de Almeida. Entrevista concedida a Aldeanne Silva de Sousa,


em 21 dez. 2012.

132
Os botequins e a resistência aos fast foods:
narrativas orais de consumidores de
Parnaíba-pi1

Ériton Luís Véras Lima

Este artigo tem por objetivo analisar questões relacionadas à resistência


cultural dos bares, botecos e botequins de Parnaíba, já que passaram a con-
correr, desde 2012, com estabelecimentos fast foods. A chegada desses novos
empreendimentos na cidade promoveu transformações sociais, espaciais e co-
merciais provenientes da inserção de uma lógica mercadológica voltada pri-
meiramente para grandes centros urbanos, mas que tem se expandido por ci-
dades com economia em ascensão.
A vida noturna parnaibana, até pouco tempo, resumia-se em frequentar
uma lanchonete de rua para lanchar, pois a cidade não possuía grande quanti-
dade de locais voltados ao entretenimento noturno. Ficava a cargo da principal
avenida, São Sebastião, onde se localizam os tradicionais botequins2, receber
grande parte do público que procurava um lugar calmo para conversar, “matar
a fome” ou simplesmente jantar fora de casa como forma de lazer.
1Trata-se de Trabalho de Conclusão de Curso, em História, na Universidade Estadual do
Piauí (UESPI), concluído em julho de 2014.
2 Entendo por botequim os espaços sociais, não franqueados, como: bares e quiosques po-
pulares que se encontram ao longo da Avenida São Sebastião, em Parnaíba, cujas calçadas
estão repletas de cadeiras e mesas.
A possibilidade de comida rápida, propagada pelas franquias fast food
Bob’s e Subway, e o fetichismo das marcas que só existiam em cidades com
maior nível industrial impactaram a cidade: engarrafamentos, estabelecimen-
tos lotados, festas, propagandas em outdoors e o processo acelerado de serviço
e alimentação3.
Dentro desse processo, pesquisei o choque provocado por esses empre-
endimentos à cidade de Parnaíba e a modificação dos hábitos alimentares na ci-
dade, engendrada pelas franquias, ao mesmo tempo em que procurei perceber
a resistência de frequentadores dos bares e botequins, conformados por outra
temporalidade e por outro conceito de sociabilidade.

1 Os fast foods e a globalização

O sistema de fast foods encontra-se consolidado nos grandes centros ur-


banos mundiais e está em crescimento principalmente em países em desenvol-
vimento, onde marcas importantes como o McDonald’s tornaram-se símbolos
do capitalismo e da democracia estadunidense. Dessa forma, a chegada das
redes de fast food relaciona-se a um fenômeno da globalização e da produção
mercadológica flexível e automatizada, o que nos faz perceber o quanto as refe-
rências culturais estão em pleno processo de mundialização, de modo que ca-
racterísticas culturais, objetos, símbolos e gostos estão sendo cotidianamente,
e de maneira crescente, sendo compartilhados em todas as partes do mundo.
As redes de fast foods, por meio da mídia audiovisual, principalmen-
te, são responsáveis pela difusão de valores e costumes norte-americanos que
orientam o processo de globalização. Entretanto, é necessário lembrar que a
compreensão do espaço e do tempo oferecida pelo processo de mundialização
não o torna um sistema de unificação. Esse pensamento mostra suas fissuras
quando se percebe que esse processo também torna as disparidades sociais
mais evidentes. Na medida em que nos oferecem tecnologias, conforto e abun-
dância, a exclusão é provocada já que, dentre outras coisas, segrega-se financei-
ramente grande parte dos consumidores que possuem baixa renda. Concordo
com Zygmunt Bauman quando afirma que:

[…] O que parece para alguns como mundialização significa localização para

3 Esta pesquisa entende que fetichismo é um conjunto de valores e ideias que inseridos em
um produto transmuta-o em mercadoria e faz brotar o desejo do consumidor. A noção
de fetichismo baseia-se no conceito de Karl Marx, na obra O Capital, segundo o qual ela
corresponde ao processo em que as mercadorias mediam as pessoas de forma econômica e
simbólica, transformando os consumidores em coisas.

134
outros; o que é sinal de uma nova liberdade para alguns se impõe a outros como
um destino cruel. […] a liberdade de circulação que sempre foi uma vantagem
rara e desigualmente repartida, torna-se rapidamente o principal fator de estra-
tificação social da idade moderna e pós-moderna. (BAUMAN, 2001, p. 9).

Atualmente, ocorre um enfraquecimento da compreensão do ser social,


ou seja, as pessoas estão perdendo a capacidade de identificar e diferenciar seus
direitos e deveres. O capitalismo globalizado gera o desnorteio entre as esco-
lhas individuais enquanto consumidores e seres cívicos, de modo que as pesso-
as formem o que Bauman chamou de “sociedade de consumo”.
A globalização não foi o principal tema desta pesquisa, no entanto, foi
necessária a percepção de sua ação no mundo neoliberal. Como um aspecto
prioritário no qual ocorre a difusão da ideologia do capitalismo financeiro, no
caso aqui por meio dos fast foods, como Subway e Bob’s, recém instalados na
cidade. Nesse sentido, esta pesquisa tratou de abordar temáticas como a his-
tória da alimentação, cara à Nova História e Micro História, tendo Parnaíba
como cenário. Utilizando a história oral, procurou-se ouvir os frequentadores
de fast food e dos botequins, além da observação de seus comportamentos nes-
ses estabelecimentos, o que permitiu perceber contradições provenientes da
inserção de cadeias de fast foods, suas estratégias de publicidade, seus discursos
e a recepção por parte da população parnaibana.
Foram realizadas entrevistas individuais com seis (6) frequentadores,
por considerar que suas leituras sejam representativas – do ponto de vista
qualitativo – de diferentes olhares sobre a chegada dos fast foods na cidade e
seus efeitos sobre a vida noturna dos moradores; os sentimentos sobre o am-
biente frequentado, a sociabilidade, a qualidade do local, os valores ligados ao
comportamento dos consumidores, a diferença entre fast food e botequins e
seus hábitos noturnos. É necessário ressaltar dois pontos importantes sobre as
entrevistas. O primeiro é dizer que o critério preestabelecido na escolha dos
entrevistados foi o fato de estarem nos locais tratados e serem seus frequen-
tadores. Aqui, importou menos a quantidade e mais as possíveis leituras feitas
por eles, na medida em que suas opiniões não são meramente individuais, mas
compartilhadas em grupos sociais.
Nesse sentido, baseio-me em Alessandro Portelli (1996), quando diz que
uma narrativa pode ser representativa de um grupo, uma vez que as percepções
fazem parte de intersubjetividades; ou seja, as falas são construídas a partir de
discursos anteriores, compartilhados cotidianamente na família, no trabalho,
nos espaços sociais. Assim, admite-se que as opiniões dos entrevistados podem

135
encontrar oposição e discordância, o que não as desqualifica e não as torna
inválidas, uma vez que o que se procura é o sentido de suas percepções sobre
os fast foods.
Em segundo lugar, de modo a evitar problemas jurídicos, os colaborado-
res foram mencionados pelo primeiro nome, já que a autorização das entrevis-
tas encontra-se apenas em áudio.

2 História do tempo presente

Esta pesquisa está inserida na ótica da História do Presente. Ela norteia a


forma como vislumbramos nosso objeto que, mesmo com a proximidade entre
pesquisador e fatos, não deve deixar de ser analisado. A História, no âmbito da
ciência, cria, desenvolve e analisa as conjunturas da sociedade humana em suas
diferentes temporalidades, incluindo aí o tempo presente.
Foi no século XIX, no entanto, que a História passou a ser vista como
ciência pelos positivistas e, portanto, passível de investigação e análise. Erudita,
baseou-se em documentos escritos, diplomáticos e oficiais, firmada em fatos
heroicos e monumentais, promovidos por uma elite, a partir da concepção li-
near e progressista de tempo.
Em 1929, a revista dos Annales foi criada por Lucien Febvre e Marc Blo-
ch, historiadores preocupados com os “homens no tempo”, ou seja, o homem
ordinário por trás das categorias de classe ou de grandes personagens. Esse
acontecimento deu início à abertura e ampliação horizontal dos objetos, pro-
blemas e das fontes históricas pelas quais os pesquisadores passaram a traba-
lhar a História, em conjunto com outras ciências como a Sociologia e a Antro-
pologia, pois de acordo com Peter Burke (1992, p. 27), Febvre e Bloch “estavam
cercados por um grupo interdisciplinar extremamente atuante”.
No entanto, em seus primórdios, a Escola dos Annales que daria origem
à chamada Nova História, em sua terceira geração, ainda tratava os aconte-
cimentos de longa duração com uma importância maior do que os de curta
duração, uma vez que o contexto de meados do século XX – a crise de 1929 e
as guerras mundiais – trazia novos questionamentos sobre rupturas e perma-
nências. A História passou a ser entendida como uma ciência em constante
construção, enquanto “história-problema”, delineada por questionamentos do
presente e do cotidiano, para além dos fatos imediatos, dos grandes persona-
gens ou categorias econômicas. Para Jean-Pierre Rioux:

No entanto, guerras e crises mundiais, descolonização, guerra fria, a partilha do

136
mundo, em 1919 e em 1945, e as agitação tecnológicas de um progresso vindou-
ro, parecem ter incitado o desejo de se fazer e obter uma investigação explica-
tiva, fazendo a história do presente surgir sem dúvida bem mais de uma impa-
ciência social do que de um imperativo historiográfico. (RIOUX, 1999, p.46).

Em crítica à historiografia do tempo presente, Jean Lacouture (1990, p.


215) afirma que fazer história imediata é ser como Georges-Jacques Danton,
levado ao cadafalso, falando ao povo de sua relação com a Revolução Francesa
e explicando o significado da sua morte. Segundo o autor, o envolvimento do
personagem, comparado a um historiador em sua relação com o acontecimen-
to, é inevitável e demonstra ser difícil manter-se em uma perspectiva analítica.
Na História do Tempo Presente, o historiador estaria imerso em um aconte-
cimento do qual participa e ao mesmo tempo sofreria ativa ou passivamente
as ações de seu objeto. É um trabalho que tem como peculiaridade o fato de
desenvolver-se, na maioria das vezes, a partir de “arquivos vivos”, o próprio ser
humano, em constante mudança e cuja experiência está em aberto.
Diante da crítica de Lacouture, é preciso lembrar que não se pode me-
nosprezar a produção da História do Tempo Presente, pois ela não foge aos
procedimentos metodológicos da historiografia em geral. Ela não significa uma
ruptura epistemológica com o que se tem praticado tradicionalmente e sim a
abertura para novas possibilidades de leitura do mundo e da própria história.
Sobre isso, afirma Rodolfo Fiorucci:

Se numa história trabalha-se com o distanciamento do objeto de análise, ou


seja, no luto que o historiador representa o ausente, na outra, se representa o
presente, tornando-o inteligível. Tanto nessa como naquela, os resultados cien-
tíficos se apresentam parcialmente, presos aos limites de como os objetos se dão
a entender, de acordo com as necessidades e inquietações contemporâneas do
pesquisador. (FIORUCCI, 2011, p. 116).

O pesquisador é testemunha ocular da análise histórica, o que parece de-


finir essa especialidade: sua proximidade com seu objeto. Assim, uma das con-
tribuições desse tipo de abordagem é que o historiador, enquanto pesquisador
do passado imediato e das práticas sociais permeadas por questões do presente,
pode apontar possibilidades históricas e diagnósticas em prol da sociedade em
que vive.
Essas perspectivas, que podem ou não acontecerem, já representam
um benefício para a vida social, na medida em que convidam a pensar sobre
as problemáticas de seu tempo. Assim sendo, o trabalho do historiador é um

137
contínuo processo entre as interjeições sobre o passado, o qual ele analisa, e o
futuro que recebe suas projeções. Em outras palavras, no tempo presente, o his-
toriador toma posição, assume a função política de sua pesquisa e media esse
processo de “viagem temporal” entre o passado e o futuro.
Dessa forma, a ação de pesquisar o presente também provém dos proble-
mas que rodeiam o historiador, por ele próprio ser um cidadão, que, diante das
angústias sociais de sua contemporaneidade, dispõe-se a refletir e interpretar
os fatos, sejam eles do presente ou do passado, entendidos como entrelaçados.
O estudo da História do Tempo Presente mostra a preocupação que o pesqui-
sador sente em relação aos problemas nos quais ele próprio, muitas vezes, está
inserido e os quais busca analisar e compreender. Esse é o meu caso, como
historiador e cidadão parnaibano.

3 O botequim e a resistência

Sob esses pressupostos, foi preciso pensar de que forma se constitui a


identidade local parnaibana frente ao avanço dos elementos globalizantes de
consumo e padronização de gostos. Em seus hábitos, os habitantes de Parnaíba
parecem não estar inseridos ainda em uma realidade de grande centro urbano,
pois seu cotidiano ainda é marcado por uma identidade com elementos tra-
dicionais rurais, em certos hábitos, mesmo que atravessados pela chegada de
práticas capitalistas.
É possível imaginar uma identidade instável ou fragmentada entre os
parnaibanos? Questionamentos como: “o que é ser parnaibano?” São difíceis
de serem respondidos, quando não se resumem a apenas “morar na cidade de
Parnaíba”. Para Zygmunt Bauman (2005), a identidade é muito mais do que
pertencer a um lugar, estar ligado a ele territorialmente. Ela pressupõe vínculos
simbólicos e práticas culturais.
As comidas típicas de Parnaíba como “baião de dois”, “Maria Izabel”,
“carne de sol”, os espetinhos, entre outros, estão diretamente ligadas a um ritmo
e aos comportamentos alimentares e de sociabilização ainda com característi-
cas familiares. Esses tipos de alimentos encontrados em alguns botequins da
Avenida São Sebastião possuem preços mais atrativos do que outros alimentos
comprados em um fast food e, muitas vezes, com maior valor nutricional, em-
bora a propaganda promovida pela lanchonete Subway, por exemplo, pregue
o contrário. Em outro aspecto, esses alimentos que são vendidos no período
noturno estão ligados à satisfação do consumidor que busca comer no jantar

138
alimentos que normalmente não são servidos no almoço, em uma quantidade
que não o deixe “empanzinado”, para não atrapalhar a digestão durante a hora
de dormir.
Preocupado em entender se a presença dos fast foods em Parnaíba seria
uma confirmação de que a cidade está inserida no processo de globalização,
ou procurando entender até que ponto a busca do parnaibano pelos alimentos
dos botequins pode indicar tentativa de resistência à padronização alimentar,
abordei os entrevistados sobre os fast foods. Sobre isso, Hélcio, professor de 43
anos, explicou:

A forma, o tratamento do estabelecimento de fast food é o que realmente difere


dos demais. Lógico não podemos considerar que Parnaíba tenha um leque de
opções pra esse tipo de comida, fast food, que particularmente não deixa a de-
sejar para a cidade. A demanda não deixa impor isso e hoje estou aqui porque
é domingo, a família está presente e é uma forma diferente da gente se divertir.
O que muda ai é, digamos assim, é o nível econômico. Existe um público que é
diferenciado pelo preço, tem gente que vem aqui regularmente, tem gente que
vem aqui é de tempos em tempos. Então o que muda é a classe social, as classes
daqui diferem um pouco, lógico que tem gente que encontra-se em um outro
local e que tem um nível socioeconômico interessante, elevado. Mas aqui é um
público mais seleto, mais fechado até porque são pessoas que já conhecem esse
tempo de fast food, já conhecem como é que o procedimento, acha mais inte-
ressante.

A narrativa chama a atenção para a questão da diferenciação que as ca-


deias de fast foods, por terem práticas sistematizadas de atendimento, oferecem.
Por estarem envolvidas com a ideia de “novo” – velocidade, eficiência e moder-
nidade - interligam o imaginário social a aspectos voltados ao lazer e à diversão,
mesmo que as alternativas do botequim possam oferecer algo semelhante, na
prática. Hélcio também faz referência às relações socioeconômicas que dão a
impressão ao consumidor de certo status social em relação aos frequentadores
dos botecos. A própria ambientação das cadeias de fast foods atrai um público
com poder aquisitivo mais alto, dando a impressão de ser um ambiente mais
seletivo e excluidor de “grupos sociais indesejáveis”.
Impressão oposta apresentou Eduardo, que enxerga no botequim uma
forma de socialização mais democrática, com a vantagem do preço. Para ele, o
Bob’s e o Subway têm como marca a elitização. A oportunidade de trocar ideias
e de ter acesso a uma comida feita fora dos padrões “fordistas” equivalem ao
que ele entende como qualidade dos bares na São Sebastião, “procuramos ge-

139
ralmente o lugar pelo preço e também pela qualidade porque tu vai comer mais
e pagar pouco.”
O botequim, que está presente no cenário parnaibano, possui suas par-
ticularidades que o diferenciam dos fast foods em vários aspectos e que são
lembrados por seus frequentadores. Bares, botecos e quiosques, ao longo da
Avenida São Sebastião, são lugares em que as pessoas se sentam nas calçadas ao
ar livre e podem comer lanches e também alimentos regionais. Ali, costumam
passar a noite e ultrapassar a madrugada conversando ou assistindo aos tele-
visores expostos, pelos quais veem a novela ou os jogos de futebol; ou, ainda,
ouvem música ao vivo ou mesmo se reúnem com instrumentos para tocar o
forró, traço local.
Proveniente da segunda metade do século XIX, o botequim possui uma
origem antiga no Brasil e tem uma expansão geralmente associada ao aumen-
to do operariado assalariado urbano, quando se iniciava a República Velha, a
transição e o fim do sistema escravista no país. Cabem aqui citar Sidney Cha-
lhoub e seu livro Trabalho, lar e botequim (2001), que procura compreender o
dia a dia e os conflitos dos trabalhadores que viviam no Rio de Janeiro fora do
espaço de trabalho.
O autor utiliza como fontes processos criminais, impressos oficiais, códi-
go penal dos Estados Unidos do Brasil e jornais da época, tendo como objetivo
compreender quais pensamentos, estruturas e interesses a classe trabalhadora
suburbana tinha. Ele mostra como o boteco foi transformado pelos trabalha-
dores num espaço fora das fábricas, em que podiam estabelecer relações de
ajuda mútua, com regras próprias e redes de solidariedade. O trabalho media-
do pelo tempo nas pequenas cidades provocou a formação identitária entre o
trabalhador e o botequim, para onde se dirigia para conversar e até mesmo or-
ganizar-se. No caso de Parnaíba, o botequim parece preservar-se como espaço
dos trabalhadores, num contexto de sedução dos fast foods, pois não há tanto a
preocupação com a vestimenta mais elaborada, por exemplo, ou com compor-
tamentos mais padronizados.
Uma matéria de Luiz Antônio Simas para seu blogger chama a atenção
para os diversos aspectos identitários provenientes desses pontos de encontro4:

O botequim é, portanto, e não abro mão do hífen, o anti-shopping center, a an-


ti-globalização, a recusa mais veemente ao corpo-máquina dos atletas olímpicos
ou ao corpo pau-de-virar tripa das anoréxicas – corpos que se confundem na
4 <http://www.hisbrasileiras.blogspot.com.br/2009/11/do-porto-ao-botequim.html> Aces-
so em:2/04/2014

140
doença comum desse mundo desencantado: Metáforas da morte. Ali, no velho
boteco, entre garrafas vazias, chinelos de dedo, copos americanos, pratos feitos e
petiscos gordurosos, no mar de barrigas indecentes, onde São Jorge é o protetor
e mercado é só a feira da esquina, a vida resiste aos desmandos da uniformiza-
ção e o Homem é restituído ao que há de mais valente e humano na sua trajetó-
ria. (Novembro de 2009).

Locais como os botequins são pontos de encontros típicos de grandes e


pequenas cidades e abrangem o público em geral, não selecionando as pessoas
por poder aquisitivo. Individualmente ou acompanhadas da família ou amigos,
a possível identificação é imediata, ora pelo ambiente, por outras pessoas co-
nhecidas que por vezes passam nos arredores ou estão em outras mesas. Entre
as entrevistas realizadas, o jantar acompanhado foi uma característica comum
entre elas. As pessoas socializam-se, conversam, comem ou passam o tempo.
Os colaboradores Eduardo, 26 anos, formado em administração de empresas,
e Bruna, 23 anos, estudante, trataram de questões relacionadas ao tempo pas-
sado nos botequins. Enquanto o primeiro afirmou que passa “cerca de uma a
duas horas em média geralmente. Depende da quantidade de pessoas que vêm
comigo. Quando vem um grupo maior, geralmente a gente passa mais tempo
socializando”, a segunda afirma que costuma “passar bastante tempo aqui, pois
devido à ‘rapidez’ do atendimento costumamos passar umas quatro horas”.
As redes de fast foods, através de um rígido sistema, produzem uma
imagem padronizada em todas as suas lanchonetes. Na maioria dos trabalhos
realizados na cozinha desse tipo de rede, as máquinas substituem o trabalho
do ser humano com o objetivo de poupar tempo, desse modo, atendendo a
principal característica do fast food: a velocidade. O tom irônico de Bruna é um
fator importante, pois reafirma a questão da temporalidade mais diferenciada e
não globalizada, a importância da sociabilidade promovida pelos botequins. O
tempo, nesse sentido, deve ser valorizado, experimentado, ao contrário da ideia
de “ganhar tempo”, pela ideia de comida rápida e utilitária. Comer como meio
para o encontro é a marca do botequim, enquanto no fast food alimentar-se é
um objetivo em si mesmo. Quando comparadas as temporalidades revelam a
discrepância. José, outro entrevistado, diz que “quando a gente vem, passamos
cerca de 1 hora. Mas frequentamos bastante o driver”.
Os fast foods que possuem um drive-thru encarnam o processo globali-
zante, proporcionando uma aceleração e uma comodidade entre as pessoas e a
comida, porém, castram possíveis momentos de descontração e confraterniza-
ção que são oferecidos nos botequins. Rômulo, advogado de 23 anos, descreve

141
que “a diferença entre a comida do Bob’s pra comida de bar na São Sebastião é o
pão, a carne e os muros. Ali as pessoas vêm mais pra comer e logo vão embora.
Não existe tanta conversa na mesa”.
As palavras de Rômulo revelam um aspecto importante da diferença en-
tre o botequim e o fast food: a existência de muros no último. A ausência de
muros no botequim torna a relação com a cidade mais aberta, enquanto o muro
isola e cria um ambiente à parte, desconectado com o que está fora. O mundo
criado dentro do Bob’s é fantasioso: espaço alegre, colorido, repleto de imagens
festivas e bem construído, além do pequeno playground que distrai as crianças,
enquanto os pais descansam.
O botequim coloca as diferentes gerações no mesmo espaço, próximos à
rua, e exige dos usuários maior atenção sobre os gestos infantis, que dentro dos
fast foods são restritos aos brinquedos e vigiados constantemente pelos moni-
tores uniformizados e sorridentes.
Além disso, Eduardo chama a atenção para a desqualificação dos pro-
dutos a partir da padronização das franquias, opondo-se à imagem construída
pela propaganda de um alimento mais saudável:

A questão do atendimento porque nem em todo lugar o atendimento é bom


tem uns que nem pela qualidade nem pelo preço tem como. O atendimento
não é tão rápido como o Bob’s ou o Swbway, mas é mais barato e em qualidade
é melhor pra gente, porque o outro é comida congelada, não tem tanto sabor.

As mudanças ocorridas a partir do processo de crescimento das cidades


e a globalização, o ato de alimentar-se passou e continua passando por várias
modificações, afetando, desse modo, a qualidade dos alimentos produzidos e
industrializados. A escolha de novos alimentos é proveniente de imposições de
um novo estilo de vida e as expectativas de consumos individuais, mas ao mes-
mo tempo de massa. Para Hobsbawm, na obra A era dos extremos:

[...] Nesta transição de final e início de milénio há o triunfo do indivíduo so-


bre a sociedade, ou melhor, o rompimento dos fios que antes ligavam os seres
humanos em texturas sócias. É o estilo jovem de vida que triunfa, estilo este
que passou a ser marca mundial, isto é, a juventude, praticamente, deixa de ser
uma etapa da vida, mas se constitui como um estilo de vida. O jeans, o rock, o
hambúrguer, a coca cola, a batata frita e a pizza são expressões simbólicas desta
nova cultura. Os adolescentes ganharam maior autonomia e isto é vislumbrado
pela indústria que vê aí um mercado promissor. (Apud SANTOS, 1991, p. 10).

142
O aporte gustativo e nutricional incitado pela globalização e a fetichi-
zação da mercadoria impõem novos costumes, hábitos e práticas alimentares,
procurando atingir indivíduos, mas com um discurso generalizado. É a cultura
de massa, em que os desejos são construídos arbitrariamente pela Indústria
Cultural, fazendo parecer naturalizado algo que é fruto das relações merca-
dológicas. Retomando o exemplo da propaganda do Bob’s e da Subway, com o
slogan “É gostoso”, o que se promove é uma certeza anterior ao paladar, ao gos-
to pessoal. Tão forte como “Beba felicidade”, da marca Coca-Cola. Fontenelle
explica que “hoje, pode-se pensar que as mercadorias são dotadas de uma alma,
e a marca publicitária seria, por essência, o lugar da ‘alma das coisas’” (2002.
p. 177). A marca particulariza, define e diferencia um produto do outro, para
além de seus aspectos físicos, agregando valores, os quais assumirão o lugar
que outrora era do produto em si. Os consumidores desses empreendimentos
identificados com a imagem da marca sob o produto associam os fast foods a
um local onde a alimentação é de procedência confiável, mesmo sem nenhuma
garantia disso. Como Hélcio explica:

Há qualidade do que se come. O ambiente é muito agradável e particularmente


não vejo nenhuma desvantagem, porque é o seguinte: em relação ao Bob’s, ele
é diferenciado dos botequins, ele é de outra categoria. O preço ele difere, mas,
digamos assim, é uma opção.

Os hambúrgueres e os diversos alimentos que os fast foods propagan-


deiam são idênticos em todos os restaurantes de uma mesma cadeia, exceto em
grandes países com grandes tradições culinárias ou religiosas, como na Índia,
que forçam as lanchonetes a se adaptarem ao gosto local. De acordo com Nes-
tor Canclini, “a globalização não só unifica e interliga, mas também ‘estaciona’
de modo diferente em cada cultura” (apud DINIZ, 2007. p. 51). Entretanto,
no Brasil, apesar das grandes disparidades regionais, religiosas, econômicas e
gustativas, não ocorrem modificações nessas redes, exaltando uma homogenei-
dade em tudo que se come nesses empreendimentos.
Categoricamente, no âmbito do processo de homogeneidade alimentar
que as redes de fast foods impõem, nota-se a internacionalização da alimen-
tação como aspecto do processo de globalização à medida que esses empre-
endimentos causam uma homogeneidade, os locais que sofrem o processo se
tornam modernos com particularidades norte-americanas.
Diante dessas questões, percebe-se que esse procedimento opera de for-
mas políticas, sociais, militares e culturais. Nas entrevistas realizadas, questões

143
formuladas sobre a recomendação dos fast foods e dos botequins, feitas aos
consumidores, como Hélcio e Eduardo, tiveram diferentes respostas:

Recomendo, porque é um local que tem qualidade. É uma, digamos, opção de


entretenimento que é padrão. Não vou dizer nem que é padrão nacional. Isso
acontece em outros países. É, digamos assim, essa qualidade, essa forma do tra-
tamento, o tipo de produto que se oferta... Então, é o Bob’s, ele não deixa a
desejar. (Hélcio).
Indicaria os botequins, pois são locais bons! Acho que transmitiriam uma boa
imagem do local né!? Um point pra reunir a turma pra um momento de confra-
ternização. (Eduardo)

As narrativas indicam um aspecto importante na análise sobre a chega-


da dos fast foods em Parnaíba: a defesa das lanchonetes, como Bob’s, ressalta
aspectos mercadológicos, recaindo a abordagem sobre qualidade no sentido do
ambiente e da mercadoria. Rapidez, higiene e conforto, salientados pela propa-
ganda, são os fatores apontados pelos consumidores das franquias. No caso dos
frequentadores dos botequins, a qualidade estaria justamente no tempo lento,
que permitiria o encontro e a troca de ideias, o descanso depois de um dia de
trabalho, e não exatamente a aparência dos alimentos ou do ambiente.
Diante dos pontos discutidos sobre a globalização e as entrevistas reali-
zadas, percebeu-se certa possibilidade de resistência à padronização alimentar.
Considerada fator de modificação dos hábitos locais, a homogeneidade das re-
des de fast foods encontra, por exemplo, em Parnaíba, outros elementos como
os botequins e a aceitação social que dificultam a difusão pelo cenário local. De
acordo com Fernanda Diniz:

Marconi e Presotto (2005) argumentam que diante do processo de difusão, nem


sempre tudo é aceito existem rejeições em relações a traços culturais, portanto. É
comum ocorrer “uma modificação no traço de uma cultura tomado de emprés-
timo pela outra, havendo reinterpretação posterior pela cidade que o adotou”
[…] “Desse modo há uma adaptação nos traços culturais”. (DINIZ, 2007. p. 56)

As mudanças impostas podem ser interpretadas como um desvio das


normas sociais preestabelecidas, em primeiro momento, pelo “entusiasmo” ou
mesmo pela curiosidade, passando, depois, por um processo de adaptação, ou
sendo subjugado pelo desprezo ou desaprovação. Esse processo de mudanças
é notado por aqueles que participam da sociedade que está sofrendo a ação
globalizante, mas que ainda resistem. O entrevistado Rômulo diz: “acho que o

144
paladar tá começando a ser modificado”.
Desse modo, podemos perceber a relação entre a tradição cultural e a
identidade dos indivíduos, nesse caso, ligados à resistência e à alimentação glo-
balizada das cadeias de fast foods. Podemos notar isso na entrevista de Eduar-
do, que revela grande apreço pelos botequins e os relaciona com a imagem da
cidade, considerada por ele mais calma do que os centros urbanos e ponto de
valorização da cultura local. “Os botequins são locais bons! Acho que trans-
mitiriam uma boa imagem do local, né!? Um point pra reunir a turma pra um
momento de confraternização”.
A associação do botequim a um local de sociabilização é constante por
possuir uma temporalidade mais vagarosa, não inserida no processo de glo-
balização capitalista. A tradição cultural local desses espaços valida a contri-
buição aos hábitos sociais, às práticas de lazer e à identidade de um território.
No entanto, isso não significa, como afirma David Harvey, que “[...] podemos
considerar a cultura como um plano alheio à dinâmica capitalista, em que as
pessoas e grupos constroem sua história de maneira especial e inesperada, a de-
pender apenas de seus valores, tradições e normas”. (apud MASCARENHAS,
2003, p. 138)
A economia está presente em todos os aspectos nos processos consti-
tutivos do cotidiano e das experiências de vida. A alimentação industrial, pro-
veniente do sistema de produção em série, constituiu o âmago das cadeias de
fast foods, em que os hambúrgueres e as batatas fritas se sobressaem. De acordo
com Mitzy Reichembach:

O gosto da batata frita de um fast food é determinado em grande medida pelo


óleo utilizado. Durante décadas a McDonald fritou sua batata numa mistura
composta por 7% de óleo de semente de algodão e 93% de sebo de boi. Era essa
mistura que dava as batatas fritas um sabor único e um teor de gordura animal
saturada ainda mais alto que o do hambúrguer. (Apud SANTOS, 2007. p. 7).

De modo a atrair clientela, os fast foods procuram modificar o sabor dos


alimentos para que se tornem mais saborosos, inserindo produtos químicos
para melhorar o aroma. Porém, essa “indústria do sabor”, por fazer parte de
uma série de insumos de uma lógica mercadológica e alimentícia, não prima
pela nutritividade de sua produção, mas pela lucratividade gerada. Quando
questionado sobre o que diferencia os fast foods dos botequins, em relação à
alimentação, o colaborador Rômulo explica que: “há uma diferença no sabor.
O pão, a carne e os molhos. A única vantagem pra mim seria o local, o produto

145
que pra mim é diferenciado. E a desvantagem seria só porque não é saudável”.
Mesmo considerando vantajoso alimentar-se no Bob’s, o entrevistado
percebe a desvantagem da falta de qualidade no alimento, ao contrário do que
propagandeia a publicidade. Aqui, a mercadoria ganha valor simbólico e o fe-
tichismo se revela: a imagem da limpeza, da higiene e do próprio status de co-
mer um sanduíche em uma lanchonete padronizada ganha um valor simbólico,
mais do que o valor nutricional. Caberia, nesse sentido, perguntar: o que leva
um consumidor, mesmo sabendo da falta de valor nutricional, a comer num
fast food? O processo de globalização, além de difundir o sistema de franquias,
propagandeia informações científicas voltadas para os hábitos de uma alimen-
tação saudável, mesmo que consumidores como Rômulo percebam o embuste.
Diante desse quadro, os fast foods buscam enquadrar-se na mentalidade local e
buscam ofertar produtos ligados a esses hábitos, por exemplo, saladas de frutas,
iogurtes, cenouras, água de coco, para atender aos interesses de pessoas como
José:

No meu entendimento, hoje eu tenho mais cuidado com a minha saúde, com
minha alimentação, sim. Quando morei em Teresina, eu me alimentava em
qualquer lugar. Não tinha muito esse cuidado que tenho com a minha alimenta-
ção noturna. Comia qualquer tipo de alimento pesado... hoje não! Tenho outro
olhar sobre essa preocupação.

Durante o consumo de um refrigerante, batata frita e um hambúrguer,


diversas cargas de marketing empresarial são impostas às pessoas. Dessa ma-
neira, o consumidor, possivelmente, pode ser induzido a adquirir um produto
de uma marca específica, aferindo preferências. A alimentação industrial é uma
das maiores investidoras do mundo, no que diz respeito à marca e às propagan-
das. Dessa maneira, os grandes insumos propagados pela difusão do marketing
estimulam novos hábitos alimentares e valores engendrados em seus produtos.
Ainda que seja algo recente, a alimentação assentada no discurso da saú-
de, da estética corporal, do diet e da agricultura orgânica, ou seja, sem o uso de
agrotóxicos, a cozinha dos fast foods, que estão em um processo de moderni-
zação, continua implementando novas técnicas e novas formas de consumo e
emite o “discurso do saudável e do gostoso”. Enfim, uma nova característica é
apresentada de modo a responder à adaptação para o consumo. Ao falar das re-
des Subway e Bob’s, o entrevistado Rômulo afirma que: “Apesar dos dois serem
produtos industrializados, pra mim, o Subway é mais natural”.
O entrevistado confirma a ideia de Santos, que afirma que estamos “dian-

146
te de certa ditadura dietética” (2006. p. 13)? A cozinha multicultural constrói, a
partir de discursos terapêuticos implementados, uma análise logística de certos
tipos de alimentos receitados cientificamente, enquanto contrapõe e condena
outros? A adaptação das redes às culturas locais seriam estratégias de imposi-
ção de produtos ou revelam as resistências regionais aos gostos padronizados?
De outro ponto de vista, “externo” ao mundo globalizado e padronizado,
os botequins, mesmo adaptando-se às novas regras mercadológicas, como o
uso de recursos tecnológicos para anotações de pedidos e o uso progressivo de
máquinas de cartões de créditos, permanecem em uma constante resistência
contra a temporalidade capitalista. No sentido em que ainda há a espera e a
sociabilização entre os consumidores, que entre outras coisas, procuram trocar
experiências diárias, buscam o estabelecimento pelo sabor, frescura do alimen-
to, além de valorizar a comida típica regional.
Os botequins são a oportunidade de reforçarem os laços locais entre as
pessoas e a cultura parnaibana, reafirmarem as identidades em torno de prá-
ticas de alimentação tradicionais. Nas festas locais, inclusive, como os festejos
juninos, a festa do Bumba Meu Boi e as celebrações religiosas com as quer-
messes costumam ainda valorizar os botecos que muitas vezes se deslocam e
realocam-se nos locais das festividades. Para lá, levam o creme de frango, o
cuscuz, o baião de dois, entre tantas comidas locais, em torno dos quais é pos-
sível observar o grande contingente de pessoas que, ao comerem, integram-se
e identificam-se.
À procura de lazer, vão aos fast foods de maneira esporádica, em alguns
casos apenas para autoexibição, uma marca de certo status e integração à cha-
mada modernidade. Como explicam Bruna e Eduardo, sobre os botecos:

O atendimento não é tão rápido como o Bob’s ou o Subway, mas é mais barato e
em qualidade é melhor pra gente, porque o outro é comida congelada, não tem
tanto sabor. Lá (fast food) é aquele atendimento rápido, tu chega, pega, faz o
pedido, come e vai embora. Geralmente não é um ambiente que tu goste de ficar
pra conversar. Em Parnaíba tu só sai pra ver gente. Nem sempre é pra comer.
Nos botequins é mais sociável. Geralmente as pessoas que vão no fast food, vão
tirar foto e alguma coisa pra postar no facebook. Os que vãos nos barzinhos da
São Sebastião, vão lá pra conversar, pra socializar. (Bruna)
Locais como Bob’s ou Subway pelo menos aqui na cidade, eles tendem a ser
pontos mais elitizados da cidade, tanto que nos outros botequins são locais bem
mais informais. A gente percebe que as pessoas que nestes outros locais (bote-
quins) vão bem mais à vontade, se sentem bem mais à vontade, enquanto que
nos outros, tipo Bob’s e Subway, a gente nota as pessoas com uma maior poli-

147
dez... (Eduardo)

A cozinha tradicional e lenta, o ambiente aberto, não elitizado e “natu-


ral”, e o tempo desacelerado dos botequins estão enraizados no cenário local,
exploram produtos da região e proporcionam uma reafirmação de hábitos e
costumes cotidianos.
Essas características atraem os consumidores locais, transformando as
lanchonetes fast foods em um local mais esporádico, de visitação menos ro-
tineira, quando comparado aos botequins que se relacionam principalmente
com a sociabilização pouco encontrada nos fast foods. Nestes últimos, não se
trata somente da “limpeza” de ambiente e produtos, mas também da simplifi-
cação das relações humanas, padronizadas ao tempo rápido e utilitário, próprio
para liberar o consumidor também para o trabalho e novos consumos.
A cidade de Parnaíba, ainda não inserida satisfatoriamente à velocidade
do capital – enquanto produção e consumo –, não parece estar padronizada aos
ditames do fast food, com uma lógica própria das pequenas cidades. Eduardo
afirma que:

Semanalmente, eu frequento este local junto com alguns amigos. Com amigos
professores, amigos vizinhos. A gente costuma se reunir uma vez por semana
para frequentar este local a fim de fazer uma confraternização. Pelo atendimen-
to, por ser um lugar acessível, por ter valores dentro da média dentre os outros
locais do mesmo tipo e porque é um ambiente agradável.

A narrativa mostra alguns dos principais motivos que levam as pessoas


a frequentarem os botecos. A sociabilidade, acessibilidade econômica e o am-
biente desempenham um significado para o frequentador. Não são apenas as
características físicas do local que interferem na escolha financeira, pois, por
tratar-se de um ambiente mais informal com cadeiras e mesas de plástico, a
presença de uma televisão com a programação aberta local e a não exigência de
um vestuário formal fazem parecer um ambiente barato.
Ainda quanto aos frequentadores dos botequins, podemos fazer referên-
cia ao tempo que passam lá e à intensidade com que os frequentam, aumentan-
do ainda mais o distanciamento dos fast foods, no sentido de os bares possuí-
rem um número de fregueses constantes e fiéis. A entrevistada Bruna aponta
para a diferença: “Nem toda vez que você passa pelo Bob’s ou pelo Subway você
vai ver aquele local cheio. Por exemplo, ontem era feriado e nem assim eles es-
tavam cheios. Toda movimentação estava em dois barzinhos que estavam aber-

148
tos na São Sebastião”. Nesse sentido, concorda-se com Luiz Antônio Machado
Silva, quando explica que:

No que se refere à duração e à intensidade de frequência, é o botequim que


apresenta maior número de fregueses constantes. Em alguns estabelecimentos
de outro tipo, é comum que os consumidores se demorem mais que os frequen-
tadores de botequim – durante toda uma noite, por exemplo – mas a intensida-
de da frequência (o número de vezes que o estabelecimento é frequentado pela
mesma pessoa) é muito menor. No botequim, a assiduidade dos fregueses é de
tal ordem que em muitos casos o botequim depende deles para sobreviver, tal é
a sua participação na renda do estabelecimento. (2011, p. 4).

Os frequentadores costumam ir a dois ou três botecos. No entanto, tende


a ser bastante estável a permanência em um especificamente, onde se sentem
mais “em casa”, ao ar livre, tendo contato direto com a cidade e com os amigos,
também frequentadores do mesmo espaço, continuidade da casa. Pelo que se
pode perceber, existe nas falas de Bruna e Eduardo uma resistência cultural,
resultado do sentimento identitário conflituoso que gera uma negação das for-
mas de aceitação e difusão dos valores, da alimentação industrializada e do
espaço racionalizado que impede a socialização dos consumidores pela tempo-
ralidade globalizada dos fast foods. Dessa maneira, há uma preservação cultural
por parte de alguns consumidores que se remetem aos botequins em busca de
se identificarem e autoafirmarem-se.
A opinião desses entrevistados, divididos entre o mercadológico e a so-
ciabilidade, deixa ver uma tensão entre o processo de globalização e a cultura
local, o que nos permite pensar que suas falas são representativas de outros
parnaibanos inseridos nesse mesmo contexto. Tal como afirma Giddens, “mes-
mo no mundo de hoje, em que o mundo muda muito rapidamente, existe uma
continuidade no passado distante” (2005, p. 53).

Considerações finais

A construção de símbolos que atravessam a alimentação, influencian-


do os gostos e comportamentos, desenvolve o hábito do consumo repetitivo.
O dispositivo é proveniente dos diversos sentimentos que os ambientes e a
disposição das mercadorias despertam nos consumidores: higiene e satisfação,
socialização e qualidade. Esses sentimentos são perceptíveis nas entrevistas
com os consumidores dos fast foods e dos botequins, assimilados de formas
diferenciadas pelas vivências.

149
Provindos do complexo processo da globalização, os fast foods parecem
conduzir os consumidores à padronização da cultura material, marcada pela
Indústria Cultural. Esse sistema baseia-se na homogeneização dos hábitos ali-
mentares em todas as suas lanchonetes. Muitas vezes, são vistos de maneira
positiva por uma parcela da população, enquanto espetáculo tecnológico, eco-
nômico e industrial, dando uma “aparência” feliz e dinâmica às suas vidas. Este
trabalho permitiu perceber como essas redes utilizam brindes, embalagens e
ambientes coloridos para chamar a atenção do público consumidor, seduzindo
e homogeneizando comportamentos em torno de uma ideia de entretenimen-
to, prazer e até mesmo felicidade, dentro de uma concepção racionalista e hi-
gienizada de lanchonete e consumidor5.
Esses empreendimentos possuem e propagandeiam uma linguagem e
alimentos próprios da lógica do capitalismo. Impõem uma temporalidade ace-
lerada aos consumidores que devem adaptar-se às novas regras sociais do pa-
drão globalizador. Procuram homogeneizar a alimentação de uma localidade
interferindo diretamente nos hábitos e tradições alimentares. Quando se en-
contram com uma tradição com costumes ou tradições mais rígidos, adaptam-
-se para assegurar sua inserção nos cenários locais.
Na cidade de Parnaíba, o processo de introdução das franquias de fast
food pareceu ter encontrado uma resistência cultural e identitária nos bote-
quins do cenário local. Esse aspecto está possivelmente ligado às relações so-
ciais entre os consumidores dos botecos que ali se sentem mais à vontade para
se relacionarem e escolherem o alimento local. As narrativas dos entrevistados
revelaram valores como fidelidade, simplicidade, temporalidade de encontro e
confraternização, características que podem ser comparadas ao movimento do
slow-food, iniciado na Itália em 1986.
O movimento explora o “comer devagar” e procura, a partir disso, trazer
de volta as refeições a sociabilização. No entanto, o slow-food começa agora a
desenvolver-se em território brasileiro, tem como uma de suas características
principais a intencionalidade da divulgação da educação alimentar, engloban-
do várias áreas representativas de consumidores, jornalistas, universidades e
institutos de pesquisas que embasam, dentre outras coisas, a defesa da boa co-
mida local, o contato humano e da qualidade alimentar.
Em Parnaíba, porém, o movimento não é proveniente de uma organiza-
ção social. Ele está ligado às questões culturais e identitárias que emanam dos
próprios consumidores. Esse aspecto, portanto, evidencia a importância desta
5 A análise das propagandas não foi apresentada neste artigo devido à temática escolhida
para ser desenvolvida.

150
pesquisa para a História da Alimentação e demonstra as diversas contradições
nas relações de poder e na construção de hábitos na sociedade globalizada. Nes-
se sentido, apesar desta pesquisa demonstrar as estratégias de convencimento e
subjetivação das redes de fast food, ela também permitiu revelar que o processo
de globalização não é algo mecânico ou unívoco, uma vez que as experiências
cotidianas são capazes de apropriar-se das imposições e reconstruí-las.
A cidade e a população de Parnaíba estão inseridas, pela via da alimen-
tação, ao processo de padronização e globalização de gostos e subjetividades?
As narrativas dos entrevistados demonstraram que essa é ainda uma questão
em aberto e que o processo de criação de hábitos é muito mais dinâmico. Como
História do Presente, esse processo – que ainda não findou e está em plena con-
tinuidade - exige um olhar cada vez mais apurado do ponto de vista histórico,
antropológico e sociológico, procurando compreender como a identidade par-
naibana, por meio dos hábitos alimentares e de entretenimento, reconstrói-se
cotidianamente – ora aceitando os valores da globalização, ora valorizando o
local e o regional. Sharon Zukin (2011) chama esse processo de construção do
espaço liminar, em que as estratégias de globalização para a transformação e o
esvaziamento da cultura local, vernacular, precisam conviver com as apropria-
ções que os sujeitos fazem das novas referências. Resulta daí, o que concordo
ser, um espaço tensionado entre a tentativa de erosão da localidade e a procura,
pelos consumidores, de preencher e dar significado, ainda, aos lugares escolhi-
dos para a confraternização, para a fuga do tempo que pretende tornar-se veloz,
mas ainda não foi digerido no cotidiano parnaibano.
A propaganda e o ambiente criado pelas franquias constroem uma nova
paisagem, marcada pelo espaço financeiro, pelo capital, em que a arquitetura
ganha dimensão simbólica, projetando comportamentos que significam status
social, procurando forjar novas identidades urbanas. No entanto, os narradores
demonstraram que ainda existe uma tentativa em fugir do consumo dirigido,
padronizado. Nesse sentido, esse processo dinâmico e dialético, entre capital e
cultura local, ainda prossegue e merece ser aprofundado em outra oportuni-
dade.

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151
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152
Uma religião afro-brasileira:
algumas notas sobre questões geracionais e
entidades no Terecô1

Fladney Francisco da Silva Freire

As noites de festejos são muito importantes para os grupos religiosos


praticantes do Terecô. É importante situar que o Terecô é uma religião afro-
-brasileira muito difundida na região central do Maranhão, que se espalhou
para outras regiões da federação, é uma religião de possessão, tendo um vas-
to repertório de entidades organizadas em famílias, sendo a família de Légua
Boji Buá bastante conhecida pelo Brasil; Mundicarmo Ferretti (2003); Ahlert
(2013); Freire (2018). No Terecô é possível encontrar animais encantados e cul-
tos aos orixás, além de outras diversidades de entes espirituais.
Nesse contexto, festas são cuidadosamente elaboradas pelos sujeitos e
grupos para reverenciarem o mundo dos caboclos e dos orixás, léguas, prince-
sas, exus e tantas outras expressões da vida espiritual, que acabam fazendo par-
te do mundo dos homens, mulheres e crianças que, mais que lhes acolherem,
a eles se conectam, conformando como uma só realidade, um enredo de fé e
devoção, de reverência e ousadia, de festa e cura, de introspecção e extroversão,
enfim, um mundo no qual o humano é encantado e o encantado é humano.

1 O presente artigo contém elementos da dissertação de mestrado defendida em 2018 no


programa de Antropologia Social (UFG).
Esta pesquisa tem como campo de estudo as redes de contato entre jo-
vens e entidades no Terecô, trata-se de notas iniciais sobre a relação dos sujeitos
com seus familiares e entidades. Foco especificamente as do terreiro da minha
família, que carrega o nome União Espírita de Umbanda de São Raimundo No-
nato, o qual frequento e onde desenvolvo minha espiritualidade. Está situado
na cidade de Bacabal (MA), funcionando desde 1993, na Rua da Esperança, nº
318, próximo ao centro da cidade, na microrregião do Médio Meariam mara-
nhense.
O Terreiro de São Raimundo, do Pai Francisco de Folha Seca e de An-
gela de Oxum, ambos meus pais biológicos, possui 26 anos de funcionamento
e 32 brincantes oriundos em sua maioria do próprio município, mas também
de outras cidades maranhenses e até mesmo do Estado do Pará. No terreiro se
realizam seis festejos no ano, destinados a santos e entidades distintas. A maior
festa se inicia no dia 23 de agosto e segue até o dia3 de setembro, sendo que os
últimos cinco dias de batidas e obrigações aos santos são destinados especial-
mente aos convidados e abertos ao público.

1 Questões geracionais no Terecô

Na antropologia, Benedict (1934; 1946) teve uma grande contribuição


nos estudos geracionais, ocasionando um importante movimento dentro da
antropologia, pois, até então, crianças e jovens eram pensados como sujeitos
sem centralidade, “bestificados” ou, quando apareciam em certas bibliografias,
eram sempre como elemento secundário. Mais recentemente, outros trabalhos
têm me ajudado na sensibilização de pensar essa categoria como relevante: Ta-
vares; Camurça (2006) e Magnani; Souza (2007).
Atualmente, tenho pensado sobre a construção de uma alteridade pró-
xima, pois trato da minha história de vida, nesse sentido, Velho (1980) alarga a
minha chave interpretativa, não optei em nascer em um terreiro, simplesmente
me percebi nele, passei por diversas crises existenciais, assim como meus pais
biológicos, minhas irmãs e, atualmente, minha sobrinha Vitória. A história do
meu terreiro e a história da minha família se confundem com a minha biogra-
fia.
Das minhas rememorações de momentos de preconceito a mais mar-
cante ocorreu na minha vida escolar. Sempre era apartado dos colegas de sala,
corriqueiro ser apelidado de macumbeiro, filho do diabo, catimbozeiro. Recor-
do-me do período no qual a novela Porto dos Milagres estava no ar, em 2001,
sempre era motivo de chacota na entrada da escola pelos alunos e não existia

154
reparação por parte dos professores. O ensino médio foi marcado por crises de
identidade, seguidas por picos de depressão, o que mais tarde me impulsionou
ao isolamento.
Ao terminar o ensino médio, comecei a afastar-me da religião e escon-
der de todos a minha casa e a minha família. Despontei em direção a São Luís
(MA), onde iniciei minha vida amorosa e não contava para ninguém da reli-
gião da minha família. Por falta de dinheiro, voltei para a casa dos meus pais
e foi então que ingressei na UFMA, em Bacabal (MA), ano de 2011, onde en-
contrei pessoas que me aceitavam como eu era, mas também outros conflitos
se iniciaram.
A minha vida amorosa sempre foi permeada por tumultos. Os namora-
dos ou “ficas”, em um primeiro momento, até aceitavam minha vivência, isso
nos primeiros meses, mas depois se iniciavam as crises. O fato de não poder
esconder ou apagar minha família de mim me fez entender que é preciso lutar,
romper com estruturas de dominação.
Fazer antropologia é constantemente revisitar-me, falar dessas questões
é redescobrir-me, esse processo não é fácil, porém, aos poucos, vou aprenden-
do a seguir, abrindo portas e construindo sonhos possíveis.
Em diálogo com Paula, uma amiga de longa data, filha de santo do meu
terreiro, falávamos sobre como é complicado para os jovens a entrada na vida
no santo. Entre muitos adeptos é comum o afastamento na adolescência e re-
torno na fase adulta.
Muitas crianças iniciam sua vida acompanhando os parentes, alguns re-
cebem entidades ainda muito jovens. Na adolescência, parte dos jovens inicia o
processo de negação de si. Quando mais tarde, retornam para a religião, impul-
sionados principalmente pelas entidades, doenças ou pelo compromisso com a
família. Isso aconteceu comigo e com muitas outras pessoas.
As crianças percebem o ritual como algo lúdico e festivo, sabem das
obrigações e oferendas, esse momento é considerado de diversão para elas. Ao
iniciarem a vivência escolar, e mais tarde a adolescência, ampliam os novos
contatos, então, passam a encarar as crises, o medo e a vergonha fazem parte do
sentimento. Muitos dos jovens com quem conversei pediram para não divulgar
os nomes ou citá-los diretamente, quando da pesquisa de campo, pois esse é
um assunto desconfortante e muito doloroso.
Encontrei outros jovens que lidam tranquilamente e transitam em vários
espaços, tratam desse assunto de forma mais dura e quando alguém os chama
de “macumbeiros” ou “feiticeiros”, eles respondem que “vão colocar um sapo na

155
barriga da pessoa” ou mesmo “fazer uma macumba”. Entendo a utilização dessa
retórica como uma estratégia, uma resposta política, que historicamente tem
sido adotada. Se funciona? Não sei, acho que sim.
Os jovens que optam por iniciar sua vida no santo muito cedo encon-
tram na prática uma forma de diversão e devoção. Em dias de festejo, é possí-
vel presenciar adolescentes brincando Terecô, muitos começam sua trajetória
acompanhando os familiares e, então, naquele local, montam uma rede de ami-
zades que é importante para aquele grupo.
Os integrantes mais velhos da religião possuem ressalva quanto à idade
da iniciação dos indivíduos, entretanto, ela não se torna regra, pois quando um
sujeito se aproxima do terreiro e tem interesse em fazer parte, logo é acolhido
pelo grupo.
Hoje, entendo como é difícil o processo de aceitação e tenho aconse-
lhado os jovens sobre como fazer isso. Aos pais, digo como é difícil e muitos
familiares já sabem, pois já passaram por esse momento.
No passado bem recente, éramos “exotizados”, “primitivos”, “bárbaros”.
De certa maneira, essa é uma conotação ainda utilizada para classificar as re-
ligiões afro-brasileiras no contexto diário, categorias como “macumba”, “ma-
cumbeiro” e “feiticeiro” ainda são utilizadas como modelo acusatório, via de
acesso ao discurso de “incivilizado”.
As crianças aprendem que as palavras “brincadeira/brinquedo/brincar”
podem ter vários significados. Essas palavras estão na lógica interpretativa do
sentido de diversão/lazer, como também podem significar “obrigação”, mo-
mento dos rituais. Lembro-me, quando criança, que existiam momentos mais
duros, aqueles que não permitiam risos e abraços e outros que eram mais aber-
tos.
É durante esse contato com as entidades que construímos laços de afetu-
osidade. Diversas foram as vezes que as entidades da minha família cuidaram
de mim, colocaram-me para dormir ou designaram alguém para vigiar-me,
cuidar da alimentação e levar para a escola. As entidades chamam as crianças
de cariongos. Elas se preocupam com os filhos de seus cavalos2, pois eles são de
sua responsabilidade e proteção.
Meu pai nasceu na zona rural de São Luís Gonzaga do Maranhão, onde
trabalhava na roça e em muitos momentos quebrava coco com a minha avó.
Era muito comum eles tocarem Terecô e os demais lavradores caírem na dança.
Ao que tudo indica, meu pai carrega suas heranças camponesas (Prado, 2007).

2 Termo êmico. É como as entidades nomeiam seus filhos de croa (cabeça).

156
Francisco Jose Freire Claudio, meu pai, iniciou sua vida no santo aos três
anos de idade, pois acompanhava a mãe ao terreiro, devido ao ciúme do meu
avô. Aos sete anos, recebeu uma entidade pela primeira vez.
Na adolescência, afastou-se da prática religiosa devido ao preconceito,
sendo que a maior vontade que tinha era de constituir uma família. Para reali-
zar isso ficando na religião, no entanto, seria quase impossível. Ele afirmou que
grande parte das pessoas de “fora” não querem relacionar-se com alguém que
dança Terecô.
Quando já estava quase chegando aos 23 anos, apareceram problemas de
saúde, questões que os médicos não encontravam soluções e, nesse mesmo pe-
ríodo, ele fazia parte da companhia de teatro Artebac. Nesse grupo, conheceu
minha mãe e, a princípio, ele não sabia que a família dela também praticava a
religião. Foi em uma tarde de conversa com Maria de Lourdes, minha avó, que
acabou descobrindo.
Em uma noite na casa do Pai de Santo Zé Urú3, ele dançou a noite toda e
não sentiu nenhum problema de saúde, foi nesse momento que constatou que
a questão era espiritual. Então começou a dar continuidade à história da mãe,
construindo o próprio terreiro no município de Bacabal (MA).
Minha mãe, Angela Maria Pacheco da Silva Freire Claudio, 51 anos,
apresenta, como chefe de cabeça, Oxum. Foi preparada-batizada pelo pai de
santo Zé Urú, o mesmo pai de santo da minha avó. O primeiro contato com o
mundo do Terecô ocorreu na infância. Minha avó, todos os domingos, levava-a
para as sessões e ela ficava sentada no banquinho observando o ato religioso,
enquanto a mãe fazia suas obrigações no terreiro.
Minha avó materna teve dezoito filhos, no entanto, somente cinco con-
seguiram sobreviver. Por ser muito pobre e não ter muitos recursos na época,
os irmãos da minha mãe morreram principalmente por doenças frequentes
no período. Entre os filhos, além da minha mãe, Maria Antônia também era
médium e recebia entidades. Minha tia também era filha de santo do terreiro
de São Raimundo Nonato, tendo falecido em 2001, seis meses após o óbito da
minha avó. Os outros irmãos seguiram outras religiões.
Minha mãe não foi criada por seu pai biológico, eu tampouco o conheço,
ela morava com minha avó em uma casa de barro, na rua Tavares de Moura,
uma casa muito simples. Ela, por ser a caçula4, sempre ia costurar sacos de
açúcar. Meus tios trabalhavam na roça, e tia Tunica (Antonia) e tia Maria tra-

3 Chefe de terreiro que iniciou minha avó materna.


4 A última filha.

157
balhavam com serviços domésticos fora de casa.
Com os falecimentos de minha avó materna e minha tia, minha mãe
passou a segurar as entidades de ambas. Maria Antônia, minha tia, teve três
filhos, mas até hoje nenhum manifestou interesse em continuar com a prática
da família. Segundo minha mãe, é importante ter alguém para continuar com
a história da linhagem e que hoje ela pensa nos filhos e netos. Perguntei a ela o
que aconteceria se ela se negasse, e ela respondeu: Eu posso até fazer isso, mas
fique sabendo que muita coisa ruim irá acontecer e não posso nem explicar. Mi-
nha mãe me confidenciou:

Quando eu era nova, mamãe segurou pra mim, eu seguro os dela agora, seguro
o da Antônia, seguro o dos filhos e ainda vou segurar o dos netos, mas tenho
ajuda do Francisco [meu pai] nisso tudo. Algumas entidades continuaram na
família e são elas que coordenam o direcionamento do terreiro. (Campo reali-
zado em 2017).

A primeira vez que ela recebeu uma entidade foi aos sete anos, havia um
poço na casa onde morava e esse local a arrastava:

É como se tivesse um imã entre o poço e eu, a primeira vez eu tinha apenas
sete anos. A mãe me dizia tudo, naqueles momentos de manifestação, eles [as
entidades] incorporavam e depois subiam em cima da casa, ameaçavam se jogar
no chão e no poço. A mamãe foi no terreiro de Seu Zé e pediu ajuda, Seu Zé
resolveu o problema naquela tarde, só que aconteceu outra vez, foi aí que eles
resolveram suspender. (Campo realizado em 2017).

O trabalho realizado suspendeu as entidades dos sete aos vinte e cinco


anos. Durante esse período, minha avó ficou recebendo as entidades por ela.
Quando completou o tempo do acordo, todas as entidades foram soltas.
No período, ela fez uma obrigação de cabeça no terreiro, bem como o
batismo e outras etapas que não quis citar. Perguntei se esse período poderia
ser prolongado mais, dos vinte e cinco aos trinta, ela respondeu: Não podia, a
mãe ficava recebendo os meus e os dela, tinha que zelar, Seu Zé brigava com ela,
se fosse por mamãe teria durado mais tempo, mas não dependia dela, tudo tem
o tempo certo.
Os primeiros encontros dela com meu pai ocorreram no teatro, pois am-
bos faziam parte da Companhia de Teatro de Bacabal (ARTEBAC), mas faziam
parte de grupos diferentes. Foi quando os dois grupos se uniram para formar
uma grande peça, que teve como título Toda Hora é Hora Pra Casar e A Me-

158
gera. Nesse período, o esposo já dançava Terecô no Café Pipira, zona rural do
município de São Luís Gonzaga do Maranhão, mas ela não sabia desse fato e só
foi descobrir depois de algum tempo.
Antes de namorar meu pai, minha mãe teve outros relacionamentos e
todos tinham algum tipo de vínculo com algum terreiro. Por fim, meu pai apa-
receu de uma forma diferente em sua vida. O medo do preconceito a fez distan-
ciar-se da prática religiosa, mas com o esposo ela se sentia forte.
Meus pais tiveram contato direto com entidades desde a infância, o
mesmo aconteceu comigo, era sempre comum acompanhar minha família aos
terreiros da região, assim como minhas irmãs. Nessas ocasiões, as entidades
me colocavam no colo e levavam-me para dentro da sala para dançar. Esse
caminho era uma constante em minha vida e entendia aquele momento como
o ápice da diversão, sempre acompanhado pelo argumento: “Enquanto teu pai
estiver aí ele segura e depois você vai ter que levar”.
Esse discurso foi sendo acentuado no início da adolescência, momento
esse que de fato passei a brincar e receber entidades. Durante minha infância,
sempre brincava por diversão e apenas sentia radiação5 das entidades, pois meu
pai interferia por saber que eu ainda não tinha força suficiente. Os mais velhos
olhavam com determinada ressalva, pois ainda não tinha idade certa para re-
ceber. Lourenço Légua, entidade da minha falecida avó, sempre falava da pro-
teção a mim dispensada. Ele é uma herança de família e guia os meus passos.
Minhas irmãs também vivenciaram essa mesma fase e a narrativa era
bem similar, pois a idade é algo que pesa na prática religiosa. Aos quinze anos,
minhas irmãs foram afastando-se da brincadeira6, entre os argumentos estava o
de curtir a vida enquanto tínhamos tempo, pois a juventude era algo que pas-
saria muito rápido e que deveríamos aproveitar enquanto meu pai ainda estava
vivo. Para os nossos pais, esse afastamento parcial não era bem aceito.
Desde muito novo, eu já era curioso. Sempre as amigas de minha mãe
que frequentavam o terreiro falavam de uma senhora que jogava cartas e que
era difícil não acertar. Como forma de pagamento pela consulta, ela recebia so-
mente uma vela, café e açúcar. Pois bem, fui visitar tal senhora, ela atendia por
nome de Mazinha, tinha seus setenta anos, quando da minha visita em 2012,
na época, ela acertou muita coisa, outras somente obtive a certeza aos vinte e
três anos.
Dentre o que foi dito, chamou-me muita atenção o argumento de que
me afastaria da prática religiosa, deixando de dançar por um tempo, mas que
5 Vibrações ou aproximação.
6 Serve para falar da religião.

159
não precisaria ficar preocupado, pois meu pai iria segurar as entidades nesse
intervalo. Literalmente ocorreu, passei um tempo afastado de forma relativa.
Com o passar dos anos, a vida foi tomando seus contornos. Durante a
festa de Nossa Senhora das Candeias, em 2015, meu sobrinho também entrou
na roda e lembrei-me de quando eu também era criança. Observava e con-
versava com as entidades Oliveira, Lourenço Légua e Juvenal. Falamos sobre
aquele momento e como tudo se inicia.
Essas entidades fazem parte da família e no momento também havia al-
guns filhos de santo, todos comentavam o acontecido. O entrecruzamento de
filhos biológicos e de santo, a ideia de família é pensada como ente alargado,
na qual se incluem muitos brincantes da casa e as entidades, pois, de tanto elas
participarem dos variados momentos da vida cotidiana, acabam sendo consi-
deradas como da família.
Entende-se a noção de família como algo em trânsito entre pessoas e
entidades, com fronteiras além do sangue, pois todos os indivíduos e entidades
que circulam nos espaços da casa e do terreiro compõem os laços de afetuosi-
dade. Os terreiros são espaços permeados por reciprocidades.
É comum entidades do terreiro descerem em outras casas de santo, sabe-
mos que as entidades possuem vínculos com as casas, mas elas não se limitam
à nossa compreensão de espaço geográfico e noção de tempo. As entidades, ao
estarem incorporadas em pessoas de casas diferentes da nossa, sempre falam
conosco e tratam-nos com familiaridade. Em outros casos, ficam observando-
-nos, querendo que as reconheçamos. Às vezes, é um pouco difícil fazer isso.
A relação com as entidades é altamente permeada por ciúmes, e alguns
brincantes não gostam da ideia de que as suas entidades tenham outros cavalos,
tanto que muitos acabam acreditando no caráter exclusivista da entidade. Em
outros casos, quando a entidade faz a opção por descer em outra pessoa, o dis-
curso por parte deles fica relacionado à lógica de quem chamou primeiro ou se
aquele dia era de outra entidade.
Algumas entidades tratam de coibir a vida amorosa de seus filhos, acre-
dita-se que o relacionamento amoroso acaba por diminuir a vivência na vida
de terreiro, principalmente quando o pretendente não faz parte da lógica das
casas. Então, para evitar conflito e sofrimento, essas entidades tratam de afastar
qualquer investida. Existe aqui uma negociação, algumas entidades buscam in-
terferir, outras não. Ler Barbosa (2008).
Quando chefes de terreiros recebem a mesma entidade, existe um respei-
to mútuo. Meu pai recebe o Caboclo Folha Seca. Maria do Santo, mãe de santo

160
da cidade de Codó, também. Ao descer em Maria do Santo, Folha Seca não
pode interferir na lógica do terreiro de São Raimundo, existe muito respeito
nesse momento.
Na religião, existem os médiuns videntes, que são aqueles que trabalham,
mas não incorporam nenhuma entidade e que somente recebem influências e
mensagens das entidades e orixás. Existem também os médiuns que incorpo-
ram as entidades e também trabalham, curam e rezam. Em linhas gerais, se-
gundo os chefes de terreiros, não é necessário que o indivíduo esteja incorpora-
do por uma entidade para que seja realizada qualquer ação dentro do terreiro.
Segundo os relatos obtidos nesses anos de acompanhamento dos terrei-
ros, é importante ressaltar que existem outros tipos de médiuns: existem aque-
les que trazem seus dons de herança familiar e outros que realizam trabalhos
para se ligarem a uma entidade. Tal trabalho pode ser feito a pedido da pessoa,
por terceiros ou pela própria entidade.
Sabe-se que o ponto central nessa religião diz respeito ao desenvolvi-
mento do médium. Quanto mais obrigações são realizadas, mais desenvolvido
ele fica. Cada preparação é uma fase e os indivíduos que muito se desenvolvem
passam a pleitear a abertura de seu centro religioso. Quando esse momento
ocorre, inicia-se o processo de ascensão na hierarquia dentro da casa, sendo o
momento em que o indivíduo passa a ser pai de santo ou mãe de santo. Para
virar chefe de terreiro é necessária a aceitação da comunidade religiosa.
No Terecô é corriqueiro que as entidades se interessem por determina-
das pessoas que em algum momento da vida cruzaram bifurcações, matas, ma-
res e terreiros. Quando uma entidade se interessa, ela passa a proteger o sujeito
de vários problemas de saúde e espirituais. Essa proteção é cobrada na forma de
zelo e de respeito às obrigações solicitadas.
Vale ressaltar que dentro do Terecô são comuns acordos e trabalhos para
retardar a entrada na vida do santo. O pai de santo realiza afazeres para as di-
vindades, com vistas a obter por determinado período a suspensão da entidade
ou da bebida alcoólica.
Existem casos em que os indivíduos não querem passar pelo retarda-
mento da vida espiritual e acabam começando a vivência na casa muito cedo.
Dentro dos anos de observação, pode-se constatar que a idade é sempre algo
muito relativo. É importante destacar que o trabalho de retardamento na vida
do santo é algo a recorrer em última instância, pois não é bem vista pelos adep-
tos.
As negociações dos trabalhos de segura ou de retardamento ocorrem,

161
em grande maioria, quando o sujeito recebe a entidade ainda criança. Nessa
fase, o sujeito ainda não tem domínio sobre sua vida e existência. Outro motivo
consiste no peso que as entidades possuem, também acontece de a família da
criança não aceitar a mediunidade.
A filha de santo Rose, que trabalha com mesa e reza e, atualmente, aos
60 anos, reside em Fortaleza (CE), afirmara: você já pegou uma lata das grandes
de areia molhada? Pois é, coloque cinco latas nas costas e mesmo assim você não
vai saber como é o peso, ele vem e depois você sente o chão faltando, parece que o
mundo tá acabando.
O peso e a responsabilidade que precisa o indivíduo ter é um atenuante
para a realização do trabalho de retardamento. Nesses casos, o pai de santo
designa alguém da família que já participa da prática religiosa para receber. Em
outros casos, alguém do terreiro ou ele próprio. Existe também o pedido da
entidade que dentro do acordo escolhe em quem vai descer durante o tempo
da suspensão.

O sofrimento está presente no início de sua “mediunidade” e é resultado das


manifestações das entidades que “tomam” as pessoas para si, em muitos casos
já na infância. A eficácia dos curadores, nestes casos, é limitada e circunscrita à
possibilidade de “suspender as correntes”, negociando o afastamento das enti-
dades até que o “brincante” seja mais velho e possa assumir suas responsabilida-
des. (AHLERT, 2013, p. 103).

Além da suspensão, existem vários outros trabalhos que são realizados,


sendo a lavagem de cabeça um dos mais comuns, que ocorre anualmente, logo
no primeiro dia de festa. Essa obrigação consiste na renovação do filho de santo
na casa, no sentido de obter mais luz e prosperidade.

Considerações finais: festas em perspectiva

Existe no contexto do terreiro um cruzamento da vida pública e priva-


da, tomo como exemplo as festas de aniversário do meu pai, pois, no passado
recente, meu pai sempre realizava batida de tambor para comemorar o início
de sua primavera, algo que se modificou mais recentemente quando deixou de
fazer festa de santo e passou a realizar festividades não religiosas, por mais que
algumas de suas entidades sempre apareçam nesses momentos de “lazer” e, por
diversas vezes, o assunto sempre termine em Terecô, grande parte dos convida-
dos são adeptos da religião e vizinhos.

162
Durante as festas, é comum ter a mesa do bolo e, na maioria das vezes, o
confeito, balões e salgados. De fato, não temos mais batidas de tambores, no en-
tanto, a circulação das ideias e entidades permeiam esses múltiplos momentos.
Nas festas religiosas existe uma grande circulação de jovens e crianças,
tendo uma duração de vários dias, em alguns casos até semanas, sendo que to-
das as despesas com a alimentação e hospedagem são arcadas pela casa anfitriã,
os jovens tratam logo de reunir-se para conversar e beber uma cervejinha.
Para a realização da festa, é necessária a organização anual, pois a maio-
ria das casas possui mais de uma festa ao ano, o que ocasiona aos terreiros
montarem redes fixas de contato entre casas de santo. É muito comum as casas
ficarem repletas de convidados nesses períodos. Além das casas de santo, vizi-
nhos e pessoas de outros bairros saem para visitar as casas em festa. Entre os
terreiros existe uma ideia de dívida que é acionada e não realizar as trocas em
visitação é estremecer as redes de contatos.
Durante o ano, é possível acompanhar a confecção das roupas, conversas
sobre a organização das festas e, principalmente, a aproximação do festejo em
agosto, marcado pelo entusiasmo e ansiedade. O ritmo da casa é marcado pelo
trânsito de muitas pessoas e é comum haver pessoas andando e conversando
por todos os lugares.
Não existe um “nós e eles”. As duas categorias entram em processo de
confluência e, no final, toda a beleza é para elas. Cada sentido, roupa por rou-
pa, foto por foto, tudo só é possível de acontecer pela proeza das entidades. Os
dias que antecedem o festejo são marcados pelo processo de organização da
casa e decoração dos espaços. É comum a compra de tecidos para os altares e
aplicação de bandeiras, bem como decoração de andores da procissão, organi-
zação da alimentação e estoque, vestimenta do Boi Diamante, além da ajuda e
presenças dos jovens e crianças.

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164
Cosmovisão em jogo:
a magia do futebol em Lourenço Marques

Jandson Jouberth Maciel Rodrigues

Cosmovisão se refere a uma visão de mundo, esquema de pensa-


mentos e ações, um conjunto de pressuposições que um grupo so-
cial sustenta sobre a formação e organização do mundo, inclusive
do extrassensível ou sobrenatural.
(SANTIROCCHI, 2016, p. 4).

Este trabalho analisa o universo das cosmovisões dentro do ambiente es-


portivo, social e político dos clubes e do jogo de futebol em Lourenço Marques
(atual Maputo, capital de Moçambique) durante o período colonial (1910–1975).
Vale ressaltar que a análise recai notadamente sobre a produção disponível em
língua portuguesa e nos periódicos de circulação diária O Africano e O Brado
Africano, assim, as representações jornalísticas e acadêmicas sobre esporte em
África são tomadas como objeto de estudo e reflexão.
Na primeira parte deste trabalho, serão exibidos os processos teórico-meto-
dológicos que norteiam esta pesquisa, abordando as noções conceituais que serão
utilizadas no decorrer da pesquisa. Serão problematizados conceitos como “cos-
movisão”, “cosmogonia”, “religião” e “magia”, a partir do viés da História das Religi-
ões, diferenciando-se, assim, da Ciência (fenomenologia) das Religiões.
Para sintetizar, faremos uma explanação a respeito da introdução do futebol
em Moçambique e sua ligação intrínseca à política colonial portuguesa, abordan-
do processos de cisão, segregação social e racial nessa sociedade, em suma, uma
análise sobre o ambiente social e político, dando ênfase às cosmovisões africanas e
sua relação com os clubes e com o jogo de futebol e sua influência sobre os atletas.

1 Teoria e metodologia: uma análise sobre o universo das cosmovisões


africanas nos clubes e no jogo de futebol

Para início, por questões metodológicas, é necessário explicar o título desta


parte do trabalho e problematizar a discussão com relação à temática. “A magia
do futebol”, por questões de lugar e recepção de fala, tratando-se aqui de Brasil,
geralmente, quando ouvimos o termo “magia” atrelado ao termo “futebol”, temos
a tendência de imaginar questões relacionadas às habilidades dos jogadores, à gin-
ga, ao drible, gol, todas as sensações que esse esporte pode proporcionar, Barros
(2010) argumenta que “para quem vive, para quem torce ou para quem obtêm
algum dividendo simbólico, político ou econômico através do futebol, este esporte
é uma coisa muito séria”.
Mas o termo “magia”, aqui empregado, por tratar de um antagonismo entre
o sistema colonial português cristão e as práticas ditas feiticistas da população local
de Lourenço Marques, antagonismo que surge daquilo que Eliade (1992) classifica
como “Sagrado e o Profano”, logo, dentro da visão colonial portuguesa toda prá-
tica que tiver um viés diferente daquilo que os europeus criaram, ou inventaram,
será tida como uma prática profana, nesse caso, classificada como “magia”, “feitiço”,
elementos da “natureza profana do negro”, coisas do diabo, uma visão negativa da
cultura do outro. Portanto, “magia”, aqui, faz referência aos rituais advindos das
cosmovisões africanas que eram colocadas em prática antes, durante ou depois
das partidas de futebol nos campeonatos locais, daí o subtítulo “a cosmovisão em
jogo”. Enfatiza-se, este trabalho faz menção à cosmovisão africana em Lourenço
Marques. Vale ressaltar que o sistema colonial sempre adotou um caráter que vi-
sava a substituição, ou mesmo a eliminação de tudo que era diferente do contexto
religioso católico português, nesse caso, pregava-se a exclusão das cosmovisões ou
cosmogonias locais, Cabaço (2007, p. 91) discute que:

A ação missionária definiu categoricamente o modelo de civilização a impor e,


identificando os africanos como pagãos, introduziu a primeira classificação bi-
nária na relação com os povos colonizados: o europeu era o sujeito do processo
civilizador e o africano seu objeto. A relação estabelecida era, pois, uma relação
antitética que só se poderia resolver pela supressão da condição de selvagem: era
preciso desestruturar uma cosmogonia para a substituir por outra.

Mas, por que utilizar o conceito “cosmovisão” em vez de “religião”? Por tra-

166
tar de uma análise no diversificado continente africano, Oliva (2004) alerta que
devemos ficar atentos para elaborar uma abordagem explicativa das relações, dife-
renças e percepções daquilo que os europeus classificam como religião. No entan-
to, é “fundamental relativizar o universo africano e demonstrar como as estruturas
de explicação das relações sociais e de cosmovisões são diferentes dos ocidentais”
(OLIVA, 2004, p. 452). Dessa forma, os princípios ou fenômenos “religiosos” em
África não se tratam de questões singulares, não tendo assim as mesmas bases da
religião ocidental, “por isso, para os povos da região seria mais adequado usar o
termo cosmovisão e não religião” (OLIVA, 2004, p. 452).
Seguindo a sugestão de Dias (2013), é necessária uma reflexão sobre o
“eurocentrismo metodológico”, certo cuidado em categorizar com conceitos
ocidentais certas culturas, a exemplo:

Aliás, a observação do “outro” enquanto fenômeno exterior serve de alavanca


para a compreensão de que os padrões ou fronteiras religiosas de costume oci-
dental (cristão, leia-se) não esgotam as modalidades ou padrões de experiência
religiosa. Todavia, o desafio de mergulhar na definição de religião é um exercí-
cio que implica também um despir de conceitos e categorias de base, as quais o
observador transporta consigo, irremediavelmente, na observação do objeto de
estudo. “Descascar conceitos” é um exercício importante para compreensão de
uma realidade exógena. Ora, foi esse despreparo que os missionários, bem arrai-
gados aos valores morais e aos dogmas cristãos, levaram para variados lugares
do mundo, do qual a África merece destaque. (DIAS, 2013, p. 35).

Problematizada a questão entre “cosmovisão” e “religião”, ressalta-se que


este trabalho visa explicar os fenômenos das cosmovisões africanas no futebol
moçambicano através da guia metodológica da História das Religiões, diferen-
ciando este trabalho de uma análise embasada na Ciência (fenomenologia) da
Religião. Dessa forma, dialogamos com dois dos principais nomes cujos pensa-
mentos se entrelaçam em termos de abordagem teórico-metodológica de His-
tória das Religiões.
Ao descrever os fenômenos do universo esportivo, assim como Agnolin
(2013) e Maranhão Filho (2013), empreendemos uma “desobjetivação” da “re-
ligião” ou “cosmovisão” enquanto termo categórico, sem procurar uma origem
unívoca para a origem como um todo, considerando que os fenômenos não
são consubstancias ao homem, buscando uma constituição histórica em um
universo diversificado, fundamentando as noções através de uma abordagem
rebuscada em uma cultura e estabelecendo sempre uma comparação histórica
das formações basilares desse universo em análise. Contextualizada e embasa-

167
da em uma teoria e método histórico, enfocando que esses fenômenos são, em
suma, imanentes ao ser humano, problematiza-se, pluraliza-se a categoria “reli-
gioso” como já explanamos até aqui. “Em suma, nesta modalidade de pesquisa
busca-se relacionar os fenômenos e suas relações entre as civilizações com um
etnocentrismo crítico” (AGNOLIN, 2013, p. 180-183).
Quanto à descrição operativa deste trabalho, que será exposta na última
parte, partiremos da afirmação de que as cosmovisões africanas no universo
esportivo são um fato histórico, dessa forma, os objetos são apresentados his-
toricizados dentro da análise, e sempre que possível exibindo uma comparação
sistemática entre os contextos históricos de formações e cosmovisões, logo, é
necessário historicizar. Em suma, esta abordagem tem um viés de ciência his-
tórica (AGNOLIN, 2013, p. 180-183). Antes de descrever o universo das cos-
movisões africanas nos clubes, no próximo tópico será exibido um panorama
da história sobre a introdução do futebol em Moçambique.

2 Introdução do futebol em Moçambique: uma breve nota sobre o ambiente


social, político e esportivo

Os estudos sobre as práticas esportivas em Moçambique têm mostrado, a


exemplo de outros contextos africanos, uma relação direta com a política colonial,
assim, o futebol, é claro, não era algo comum à cultura dos povos de Lourenço
Marques. Segundo Domingos (2006) e Zamparoni (2008), a introdução das práti-
cas esportivas, especialmente o futebol, relaciona-se diretamente aos processos de
urbanização, intensificado a partir de fins do século XIX, de cidades como Lou-
renço Marques. Evidentemente, devem-se destacar, como acentuam A. Basil Da-
vidson, Allen F. Isaacman e René Pelissér (2010, p. 787-8), os traços específicos
da África meridional que resultariam da estratificação étnica da sociedade, mais
complexa do que no resto da África, e do caráter da penetração colonial e capita-
lista. De fato, “a perda das terras, a espoliação dos camponeses, a proletarização e a
urbanização foram, pois, mais rápidas e mais marcantes na maior parte dos países
da África meridional do que em outras partes do continente”.
O esporte era visto como prática desportiva e educação física, em que tudo
isso fazia parte da política colonial de assimilação. Importante salientar que, classi-
camente, dividem-se as políticas coloniais em África em dois modelos: as políticas
de assimilação e diferenciação. Abordarei somente a primeira, por questões de co-
lonização, no que condiz a Portugal. A primeira seria característica dos casos por-
tuguês e francês e visava converter o africano em europeu. Para tanto, ensinava-se a

168
língua, a religião e a moral ocidentais e cristãs, bem como os costumes, tradições e
modos de vida europeus. Dividia-se a sociedade em estratos: civilizado, assimilado
e indígena. Embora prometesse a assimilação pela aculturação, o sistema acabava
permitindo que poucos deixassem de ser indígenas, e os assimilados quase nunca
eram tratados como cidadãos de primeira classe, instituindo-se uma segregação
(HERNANDEZ, 2005, p. 103-6).
A educação física é apropriada no campo educacional e militar por uma
questão de disciplinamento do corpo; é praticada pelo exército e depois introdu-
zida nas escolas. O exército implanta as mais variadas modalidades que variam
de desportos de combate até os desportos equestres. Diferente das modalidades
de educação física que foram introduzidas por meio de ações centralizadas nos
militares, os esportes foram introduzidos de maneira aberta e articulados inicial-
mente por organizações particulares, as quais promoveram realizações de inúme-
ras competições de modalidades de esportes diferenciados, como futebol, basque-
tebol, hóquei, handebol, voleibol, críquete, tênis, rúgbi, entre outros. Nas décadas
iniciais do século XX, ocorrerá um movimento de formação de clubes esportivos
(DOMINGOS, 2006, p. 405).
A prática esportiva pode ser vista como cenário significativo para observar
os conflitos religiosos, étnico-raciais e de classe, bem como as complexidades do
processo de colonização da região. Durante a primeira década do século XX, serão
formados os primeiros clubes esportivos na região1. Há relatos que apontam que
o futebol era praticado antes de 1904 em Moçambique e envolvia indivíduos de
origem ocidental, pois predominava a ideia de que os africanos e indígenas não
seriam capazes de desenvolverem práticas esportivas complexas, pois não teriam
cultura esportiva, estando suas ações de cunho esportivo ligadas estritamente a
questões naturais de sobrevivência. O indígena só seria capaz de praticar atividades
como caça, pesca, salto, corrida, escalada, levantamento, lançamento, luta e nata-
ção, sendo totalmente diferenciadas das práticas do europeu. Cabe salientar que
essas ideias se conectam ao racialismo do século XIX. (DOMINGOS, 2006, p.405).
Em 1934, foi institucionalizada a Associação de Futebol Africana (AFA), que
funcionava desde os anos 1920. A AFA gerenciava torneios de futebol cujas regras
1 São diversos os clubes fundados em Lourenço Marques na primeira metade do século XX:
Sporting Club de Lourenço Marques (1916), fundado como uma filial do Sporting Clube de
Portugal, tendo sido depois da independência rebatizado de Maxaquene; Grupo Desportivo
de Lourenço Marques (1921), Clube Ferroviário de Lourenço Marques (1924), Lourenço
Marques Athletic Club, Vasco da Gama, Sporting Club Azar, Grupo Desportivo João Al-
basini, Grupo Desportivo Beira-Mar, Grupo Desportivo Mahafil Islamo, Grupo Atlético
Luso-Africano, Grupo Internacional Africano, Grupo Desportivo Nova Aliança e Atlético
Club Mahometano.

169
eram basicamente aquelas europeias. As competições que envolviam os chama-
dos indígenas, nativos considerados não assimilados, eram realizadas no mesmo
período do campeonato oficial de Lourenço Marques, organizado pela Associação
de Futebol de Lourenço Marques (AFLM), filiada à federação portuguesa, e que
contava com a participação de clubes que hoje são tradicionais em Moçambique.
A composição dos times também demonstra que existia pouca participa-
ção de negros nas equipes. Os estudos demonstram que dentro dessa divisão de
organização dos desportos entre a AFA e a AFLM, existe uma abertura maior para
participação da população excluída na última. Criticava-se, através de jornais de
cunho nativista, a marginalização do jogador negro, como se fazia em O Brado
Africano, jornal moçambicano controlado por mulatos letrados críticos ao colo-
nialismo português (DOMINGOS, 2006, p. 406).
A expansão do futebol na região parece ter sido acompanhada e mesmo in-
centivada pelo crescimento da mídia. Entre fins do século XIX e começo do século
XX, surge uma imprensa pulsante em diversos países de África, a exemplo daque-
les da África Austral, como Angola, Moçambique e África do Sul (ZAMPARONI,
1998).
As associações africanas no meio desportivo poderiam servir para demons-
trar a capacidade do atleta “indígena”. Vários jornais defendiam, de diferentes for-
mas, a valorização do jogador nativo, negro. Através do futebol, poder-se-ia valo-
rizar não somente as habilidades e poder físico dos negros, da população nativa,
como também a capacidade mental desses sujeitos. Tudo indica que quando o fute-
bol era praticado apenas por brancos e assimilados era representado como esporte
mental e não apenas físico. Mas, a partir do momento em que os africanos negros
começam a dominar os campos, esse esporte passa a ser visto como um esporte
sobretudo ou somente corporal, retirando-se do corpo a faculdade da inteligência.
Um dos jornais mais críticos ao sistema colonial em Moçambique, O Bra-
do Africano, teve, como um de seus membros mais atuantes, o desportista Karel,
que “representou Portugal nas Olimpíadas de Paris, em 1924, e bacharelou-se em
Direito na Universidade de Coimbra, de onde retornou para Lourenço Marques,
em junho de 1931”, e “assumindo a presidência do Grémio Africano de Lourenço
Marques e a direção de O Brado Africano, onde expressava as mais ácidas críticas à
política racista vigente na Colônia” (ZAMPARONI, 1998, p. 403).
Embora por caminhos diferentes, nas sociedades que foram colonizadas
por portugueses, o futebol foi algumas vezes ensinado como forma de educar o
africano negro, como elemento similar à educação e ao cristianismo, que seria
capaz de civilizá-lo. O certo é que o futebol foi apropriado pelas massas africanas

170
e praticado à maneira delas, fazendo desse esporte, originalmente inserido para
“civilizar” os negros, um instrumento de resistência, de manifestação de identidade
e poder.
Nesse ínterim, cabe destacar aquilo que argumenta Terence Ranger
(1997), em trabalho clássico sobre “a invenção das tradições”, enfocando a Áfri-
ca colonial. Ranger caracteriza o período que vai do século XIX ao século XX
como sendo marcado pelo florescimento das tradições inventadas europeias
– educacionais, eclesiásticas, militares, republicanas e monárquicas, e mesmo
esportivas. Ao mesmo tempo, é o período de forte penetração europeia em
África. Segundo Ranger, esses dois processos estariam complexamente ligados.
Algumas tradições europeias (para garantir relações de subordinação e domi-
nação) teriam sido distribuídas em África, conformando-se em neotradições
que adquiriram um caráter peculiar que as distinguiu de suas versões imperiais
europeias e mesmo asiáticas. Diferentemente da Índia, por exemplo, muitas
partes da África tornaram-se áreas de colônias de povoamento de brancos. Os
colonizadores definiram-se como os senhores naturais de uma grande popu-
lação africana, teriam como base as tradições inventadas europeias, tanto para
definir quanto para justificar sua posição e também para fornecerem modelos
de subserviência nos quais, às vezes, incluíram os africanos. Assim, em África,
o aparelho composto pelas tradições escolares, profissionais e regimentais – e
esportivas – veio a exercer um papel de comando e controle muito maior do
que na própria Europa. Evidente que se as tradições inventadas importadas da
Europa forneceriam aos brancos modelos de “comando”, ao mesmo tempo, da-
riam a muitos africanos modelos de comportamento “modernos”, muitas vezes
usados para questionar a presença europeia em África.
Exposta a metodologia de trabalho e explicada a questão da introdução
do futebol em Moçambique, no próximo, e último tópico, serão descritas as
cosmovisões africanas e suas influências sobre o meio humano e esportivo.

3 Cosmovisão africana: os clubes, o futebol, cuxo-cuxo, cuscuxeiro e o vovô

Observamos no tópico anterior que em Lourenço Marques ocorreu um


processo de formação de clubes, em que os primeiros eram compostos somente
por indivíduos de origem ocidental, as ligas eram organizadas por eles, fazendo
desse esporte um elemento de segregação social e racial. Observamos também
que a partir dessa cisão ocorreu um processo de formação de clubes por parte
dos povos de Moçambique, aqui, observamos que os clubes formados pelos
povos de Lourenço Marques eram montados no subúrbio e por lá jogavam e

171
organizavam seus campeonatos. Dá-se ênfase a essa observação para enfocar
que existiam dois “futebóis” em Lourenço Marques: o futebol do subúrbio e o
futebol da “Cidade de Cimento”, também conhecido como “Futebol da Baixa”,
“o último pertencente aos portugueses e com pouca aceitação de negros em
suas ligas”, como observa Domingos (2012).
É nesse ambiente do subúrbio que antigas práticas das cosmovisões afri-
canas serão impregnadas dentro desse novo universo, o universo colonial e es-
portivo, serão entrelaçadas ao ambiente dos clubes e das pessoas como forma
de sobrevivência e como forma competitiva no subúrbio. Essas práticas, aos
poucos, irão ganhar o mundo esportivo em geral, inclusive adentrando nos
clubes da “cidade de cimento”, tudo isso resultado dos processos de introdução
do jogador negro do subúrbio nos “Clubes da Baixa”, mostrando que o talento
era uma das formas de obter mobilidade social, a outra seria a assimilação.
Ao nos debruçarmos sobre a bibliografia que aborda o tema, Domingos
(2012) observa que os jornais metropolitanos por volta de 1966 “alegavam” que
o trabalho de treinadores estava sendo “atrapalhado” por aquilo que os portu-
gueses chamavam de “macumba”, “magia negra”, “voodoo”, que eram exerci-
dos pelos ditos “doutores da macumba”, que, segundo as crenças locais, teriam
influências sobre os corpos dos jogadores e, claro, sobre o jogo de futebol em
si. Os periódicos metropolitanos apontavam a proliferação do “cuche-cuche”.
Uma nota publicada por O Brado Africano, do mesmo ano de 1966, rebate as
falas do jornal metropolitano e define racionalmente esses rituais (DOMIN-
GOS, 2012, p. 202-203).
Primeiro, não é “cuche-cuche”, como diziam os portugueses, mas sim
“cuxo-cuxo”. Cuxo-cuxo era um ritual executado por um “cuscuxeiro”, aquele
que lançava das mãos ossos e outros adereços para fazer adivinhações, “uma
prática bem comum entre os povos bantus do Sul de Moçambique”, uma práti-
ca sincrética, que une elementos daquilo que no Brasil se chama de macumba,
aquela de origem africana que une elementos do catolicismo e espiritismo, o
“cuscuxeiro” também exercia funções de curandeiro, dito na região como fei-
ticeiro. Logo, o “cuscuxeiro” é aquele que faz, lança, joga um “cuxo-cuxo”, para
nós brasileiros ele seria aquele que faz um “trabalho” para manipular a reali-
dade. O termo “cuxo-cuxo” deriva de um sistema “onomatopaica” que imita o
barulho dos ossos e dos outros objetos que sacodem dentro das mãos do “cus-
cuxeiro”, fazendo um barulho repetitivo que derivou e veio a tornar-se o termo
“cuxo-cuxo” (DOMINGOS, 2012, p. 204).
Refletindo acerca da utilização e compreensão da feitiçaria enquanto

172
elemento constitutivo da cosmologia dos povos oriundos de Moçambique, a
antropóloga moçambicana Maria Paula G. Meneses, em seu artigo intitulado:
“Corpos de Violência, Linguagens de Resistência: As Complexas Teias de Conhe-
cimentos no Moçambique Contemporâneo”, que se encontra na coletânea “Epis-
temologias do Sul”, organizada pela própria autora em conjunto com o teórico
português Boaventura de Sousa Santos, denotam-se os múltiplos sentidos que
essa prática adquire no universo sociocultural desses povos. Utilizando-se a
periodização clássica do campo historiográfico moçambicano, qual seja, levan-
do-se em consideração o auge do período colonial, momento em que as prá-
ticas ligadas ao ethos tradicional dos povos moçambicanos foram duramente
rechaçadas pelo aparato português, a autora apresenta os usos e costumes da
prática da feitiçaria como elemento a ser combatido pela intelligentsia colonial
e consequentemente como ponto de efetivação das políticas assimilacionistas.
Entretanto, não somente no período colonial, mas também no imedia-
to pós-independência, as práticas de feitiçaria, bem como todas as atividades
ligadas ao conhecimento tradicionalista desses grupos étnicos afro-moçambi-
canos, seriam vistas como uma espécie de atraso, o cerne da questão é que em
ambos os períodos a racionalidade cartesiana sobrepunha-se à lógica de mun-
do autóctone. Desse modo, a feitiçaria “transformou-se no símbolo do mundo
selvagem, numa prática a ser abolida com a introdução de uma racionalidade
moderna” (MENESES, 2010, p.177). Urge matizar, a esta altura, que tal dis-
tanciamento por parte da “racionalidade moderna” em detrimento da tradição
segue o modelo interpretativo descrito por Achille Mbembe (2001), qual seja,
a compreensão do eu (self) africano como uma construção filosófica-ocidental,
que destinou seus diferentes grupos e suas práticas culturais ao opaco mundo
em que a história os tem confinado. Ontologicamente, o ser africano foi impe-
dido de determinar sua própria subjetividade, sua consciência e sua forma de
estar no mundo.
Para além dos usos e atribuições da feitiçaria, comumente compreendida
a partir do viés espiritual – religioso – sobrenatural, outra dimensão nos é apre-
sentada no âmbito cultural e social africano, o da feitiçaria enquanto artefato
político, gerador de solidariedade ou de conflito nessas sociedades autóctones.
Como salienta Maria Paula Meneses, ainda são insólitas as pesquisas no campo
das Ciências Humanas que tratam de maneira pormenorizada das práticas tra-
dicionais dos povos de Moçambique, enquanto elemento político: “A dimensão
mágica da política em África é, no entanto, frequentemente ignorada por mui-
tos estudos políticos e históricos” (MENESES, 2010, p. 178).

173
Para a autora supracitada, a dimensão mágica da política, todavia, per-
passa diferentes agentes nas sociedades africanas, ora confundindo-se com o
público e o privado e, ainda, sem sombra de dúvidas, reverberando nas identi-
dades sociais desses mesmos grupos. A feitiçaria, dentre outras práticas cultu-
rais dos povos do continente, é constantemente ressignificada, mobilizada em
certos momentos como símbolo de atraso ou como afirmação de uma identida-
de, deve teoricamente ser englobada em um contexto de conflito, nos discursos
de poder que se pretende ganhar o estatuto hegemônico.
As tensões produzidas pela dicotomia quase maniqueísta que colocam o
passado e o presente, ou modernidade versus tradição, como antagônicos, têm
nas práticas socioculturais africanas sua teia de complexidades. Sendo assim,
a feitiçaria, a magia e bruxaria, ao longo da história, receberam conotações e
transferências de sentido do mundo ocidental, quando na verdade possuíam
atribuições próprias para os povos do continente africano. Meneses (2010)
acentua o debate da feitiçaria enquanto estrutura de poder que orienta e or-
ganiza o universo social de diversos povos de África, de um modo geral, e de
Moçambique, em particular. A história das práticas sociais tidas como tradicio-
nais em África tem uma realidade que é anterior à invasão europeia na região,
seja no começo da exploração do continente, seja na moderna colonização que
se estabeleceu com a partilha e perda de soberania local. Assim, para com-
preender categorias e conceitos do universo cultural africano, é sumariamente
importante ater-se às continuidades e rupturas que refletem sua ordem política
e social.
O discurso científico, o modo cartesiano de organizar as sociedades co-
loniais, é uma faceta apontada por Meneses (2010). Para a autora, a relação de
alteridade proporcionada pelo domínio europeu na região não conseguiu de
modo eficiente equacionar, tampouco eliminar a persistência de práticas tradi-
cionais dos povos africanos. O modo de vida europeu, sobretudo característico
do modelo de colonização portuguesa, tentou, via de regra, transformar o ser
africano em uma caricatura idealizada.
Em um momento de afirmação dos mais variados campos de conheci-
mento, o boom científico notabilizou-se por acompanhar e balizar os proce-
dimentos administrativos coloniais. As diversas ciências procuraram dar um
sentido racional à colonização europeia em África. Nesse caso, práticas regula-
doras e produtoras de sentido para os grupos étnicos moçambicanos, a exem-
plo da feitiçaria, foram relegadas a formas simples e até mesmo inferiores de
conceber o mundo. Esclarece a autora que: “Esta negação da diversidade das

174
formas de perceber e explicar o mundo é um elemento constitutivo e constante
do colonialismo” (MENESES, 2010, p. 181).
A feitiçaria, enquanto elemento do universo cultural africano, por vezes,
é retratada como um aspecto negativo da falta de civilização de grupos etnocul-
turais observados sob a égide positivista de sociedades menos complexas, em
que a divisão do trabalho social não é organizada segundo a sociedade de clas-
ses. Dessa forma, a natureza mágico-religiosa das manifestações tradicionais
africanas não é compreendida como fazendo parte de uma estrutura comple-
xa socialmente organizada, presente desde os tempos imemoriais (MENESES,
2010).
Traçando um paralelo com as práticas de feitiçaria na contemporanei-
dade moçambicana, Meneses (2010) aponta que perdura viva na memória so-
cial dos grupos afro-moçambicanos, seja no contexto rural seja no urbano, a
presença de elementos da tradição que permeiam o imaginário desses grupos.
É muito comum no continente africano, segundo a autora, o entendimento de
que acontecimentos fortuitos da vida humana, que seriam avaliados do ponto
de vista cartesiano-ocidental, a exemplo de doenças, morte, conflitos, desastres,
crises econômicas, serem obras de feitiçaria. Gerando, assim, novas remodela-
gens e designações para a noção de feitiçaria como parte integrante da identi-
dade étnica desses grupos.
De acordo com Maria Paula Meneses, somente um estudo criterioso,
despido de preconceito na hierarquia de saberes, pode levar ao conhecimento
dos significados da feitiçaria enquanto elemento da história contemporânea de
Moçambique, capaz de apresentar um bom exemplo de “conflitos epistêmicos,
que envolvem a manipulação de múltiplos saberes” (MENESES, 2010, p. 183).
Fincado nesse entendimento que as pesquisas antropológicas, sociológicas e de
ciência política deveriam estar amparadas no reconhecimento dessas práticas
tradicionais, buscando sua arqueologia epistemológica na historicidade dessas
ações. Diga-se de passagem, novas práticas se revestem e perduram com traços
antigos são comumente retroprojetadas em elementos históricos que dão con-
tinuidade e representam uma dimensão do mundo social.
Lembrando que aqui abordamos os fatores sociais e históricos que essas
práticas proporcionam. Dessa forma, o “cuxo-cuxo” afetava a crença das pes-
soas, elas acreditavam que esse ritual poderia influenciar não somente a mente,
mas também o corpo, podendo ser “usado para ferir, prejudicar, vencer” o opo-
nente, como Lourenço Marques vive um ambiente esportivo, o “cuxo-cuxo” cai
bem a essa configuração social. Enquanto muitos observam esses fenômenos

175
como algo sobrenatural, na verdade, o “cuxo-cuxo”, para esse momento da his-
tória de Lourenço Marques, seria um elemento motivador, semelhante a uma
palestra feita por um capitão do exército antes de entrar no campo de combate
ou mesmo das orações e preces que normalmente alguns jogadores até hoje em
diversos cenários do futebol mundial fazem, como superstições, usar a mesma
roupa, imagem de santos e outros ritos supersticiosos semelhantes aos de Lou-
renço Marques no período colonial, isso dava ao atleta mais esperança e um
“acréscimo de força” (DOMINGOS, 2012, p. 204).
Através de uma análise social, afirma-se que o “cuscuxeiro” era visto
como algo ultrapassado para essa nova sociedade moçambicana, agora com
médicos, aparelhos que podem prever o tempo e substituir o que antes o “cus-
cuxeiro” fazia. Dessa forma, o futebol é algo primordial para o retorno dessa
prática e do praticante que exerce a função. Trata-se de uma adaptação à so-
ciedade capitalista, o “cuscuxeiro” vira profissão. Domingos (2012) aponta que
esse tipo de crença era mal vista pela administração portuguesa, pois, claro,
ofendia o trabalho das instituições católicas, não fazia parte dos processos de
assimilação, portanto, era extremamente negativada pela política colonial, mas
impossível de ser controlada, junta ao futebol consistia em uma ação de resis-
tência ao colonialismo.
No ambiente esportivo, o “cuxo-cuxo”, na maioria das vezes, era conheci-
do principalmente no subúrbio como “vovô”, o termo era designado para clas-
sificar tanto a prática quanto para classificar quem a exercia, portanto, alguém
pode mandar um “vovô” fazer um “vovô” contra você, algo comum no meio
esportivo quando nos deparamos com uma série de entrevistas coletadas por
pesquisadores. “Vovô”, na verdade, é um termo que sofre influência da língua
portuguesa, Domingos (2012) aponta que na boca dos mais velhos atletas o
termo soava como “vuvu”, palavra que nas tradições daquela região em Áfri-
ca designa “espírito dos mortos”, a exemplo, na Tanzânia utilizam a expressão
“juju”, palavra que tem conotação referente a “feitiço” em competições de dan-
ça, podendo observar sua derivação em outras línguas, a exemplo do crioulo
francês “joujou”, que designa “brinquedo”, ornamentos e amuletos para pro-
teção. Outro termo variado estaria na sugestão de palavras do Corão “yajuju”
e “majuju”, palavras que fazem referências ao Diabo e aos espíritos malignos,
outras referências em Moçambique, na língua ronga o termo faz referência aos
tambores pequenos. O certo é que o termo “vuvu” em Lourenço Marques so-
freu um aportuguesamento (DOMINGOS, 2012, p. 206-207).
Os clubes do subúrbio consultavam os “vovôs”, quase sempre um homem

176
mais velho, para exercerem magias que influenciariam no jogo e na mente dos
jogadores, levavam o cuxo-cuxo para os clubes, usando de magia na bola, nas
equipagens, nas traves e em diversos lugares onde seriam realizadas as partidas.
Nessa lógica, existiriam na mente das pessoas duas formas de jogo, um jogo
físico e sobrenatural, na fala de um atleta antes do jogo: “Temos vovô e vamos
usá-lo” (DOMINGOS, 2012, p. 207).
Além da preparação física, era necessária, dentro desse contexto, uma
preparação espiritual (mental), esta segunda ficaria sob a responsabilidade do
“vovô”, que combatia o “vovô” adversário e organizava o jogo espiritual ima-
ginário do clube ao qual servia. Basicamente, para estar preparado significava
obedecer às dicas do “vovô” antes, durante ou depois das partidas. Geralmen-
te, o “vovô” acendia e queimava certas coisas que só ele sabia e os jogadores
deveriam inalar, bebiam algo feito pelo vovô, às vezes iam ao mar tomar ba-
nho ou enterrar algo na madrugada. Nos relatos, podemos observar inúmeras
“simpatias” como pôr sal em alguns lugares, como nas botas, andar com certas
moedas, não apertar a mão do adversário, observar o voo de certos pássaros
para fazer previsões, tudo isso para não ser atingido pelo “vovô” do adversário.
Dessa forma, a vitória do time dependia do esforço dos jogadores e dos esforços
do “vovô” (DOMINGOS, 2012, p. 209).
Cada clube contratava o “vovô” mais qualificado, aquele que dava mais
resultados, o mais incrível é que a filiação religiosa de todos os envolvidos com
o “cuxo-cuxo” não tinha nada a ver com suas religiões, o “vovô” e a religião
atuavam em universos distintos, uma separação entre o sagrado e o profano, a
religião um fenômeno da vida do cotidiano, o “vovô” uma prática, um conhe-
cimento do mato, como diziam nessa sociedade, dessa forma, o “vovô” seria
algo intrínseco ao futebol. O “vovô” era tão necessário que, se um jogador não
consultasse um curandeiro antes das partidas, ele acreditava que não iria se sair
bem na partida, ou que poderia lhe acontecer algo pior, era uma obsessão, tor-
nando-se um habitus da vida esportiva, sem ele “o jogador não consegue jogar”
(DOMINGOS, 2012, p. 210).
Aos poucos, ocorria um processo de racionalização da crença no jogo,
tudo que o “vovô” falava era obedecido, caso contrário, perder-se-ia o jogo.
Um episódio, digamos assim hilário, em uma narrativa conta-se que o vovô
ao olhar a entrada de um estádio haveria notado a armadilha de outro “vovô”,
indicou que os atletas não passassem pela porta do estádio, então? “Que pulem
os muros”, e assim foi a entrada do clube treinado por um ex-atleta de Portugal
chamado Hilário. Os serviços do curandeiro com as equipes e com os instru-

177
mentos de elaboração do jogo deveriam ser obedecidos com rigor, pois, no fim,
a culpa sempre cairia nos atletas, a palavra do “vovô” estava acima deles, por
exemplo, “vocês não fizeram como falei” (DOMINGOS, 2012, p. 2013-2014).
De acordo com Domingos (2012), ocorre uma profissionalização dos
“vovôs”, afirma-se que a AFA gastava inúmeras quantias para a preparação de
seus clubes. Prova que essa ação de influência sobre os jogadores não se trata
de um fenômeno sobrenatural e sim de influência cultural, podemos observar
alguns dirigentes ganhando partidas afirmando que haviam contatado “vovô”
sem terem feito isso, causando uma influência mental pela qual obteriam a vi-
tória. Em outros casos, quando os dirigentes não mentiam, falavam que não
tinham feito “nada” antes do jogo, os relatos afirmam que os atletas entravam
em campo derrotados. Os treinadores que não aceitavam isso, a solução era não
treinar em África.
O “vovô” era visto como uma forma de proteção e direito comunitário.
Proteção, pois guardava os atletas e suas traves, evitando que a bola entrasse;
direito comunitário, pois é um elemento de resistência e sobrevivência de uma
sociedade violentada pela política colonial. Todos os membros da comunidade,
independente de fatores como classe, religião, ou outros fatores, todos recor-
riam ao “vovô”.
O “vovô” é como símbolo do direito comunitário e de resistência, foi
capaz de abalar um dos maiores símbolos do capitalismo português, o relógio.
Salienta Domingos (2012) que em uma partida do derby Muçulmano, Mahafil
Isslamo e Atlético Mahometano, um “vovô” havia conseguido barrar um jogo
manipulando o tempo, manipulando o relógio. O Atlético se dirigia para o es-
tádio para disputar a partida, quando o goleiro da equipe havia percebido que
tinha esquecido sua camisa, ao alertar a situação, o dirigente do clube olha o
relógio e afirma “que ainda há muito tempo”, voltaram para buscar a dita camisa
do goleiro, quando retornam ao estádio, o dirigente observa que seu relógio
havia parado, perderam o jogo por “WO”, o relato termina com a observação
que o relógio de todos os dirigentes havia parado. Tudo que aconteceu ficou na
responsabilidade do “vovô” do time adversário (DOMINGOS, 2012, p. 2018).
Esses homens eram vistos como heróis da comunidade, em grande parte
o mérito das vitórias ficava no crédito do “vovô”, aos poucos, com a introdução
do jogador negro suburbano no espaço urbano, essa prática irá invadir a “ci-
dade de cimento” e seus clubes, proporcionando ao futebol do grande centro
urbano os mesmos fatores mágicos do subúrbio. Depois de chegar à “baixa”,
o “vovô” passa ao contato com os europeus, é transportado para a metrópole

178
e para outras regiões do mundo, manifestado sobre novas configurações em
uma diversidade de regiões do mundo, como hoje em alguns clubes no Brasil,
principalmente no subúrbio. Sobre as migrações para os centros urbanos e suas
influências sobre o meio, Cabaço (2007) descreve:

O crescimento da economia colonial estimulava a urbanização de contingentes


cada vez mais numerosos de camponeses que o governo colonial, não obstante
as restrições administrativas e a repressão, era impotente para conter. Essa mi-
gração de gente do campo tradicionalista para um habitat urbano onde era forte
a presença da modernidade ocidental foi dando origem a um novo tipo sócio-
-cultural que o maniqueísmo estreito da colonização em Moçambique insistia
em continuar remetendo para a classificação residual de indígena: era o africano
da periferia dos centros urbanos que, mantendo suas cosmogonias e falando
quase que exclusivamente a própria língua, se encontrava distante de sua comu-
nidade, desenquadrado das relações hierárquicas, dos vínculos tradicionais, das
práticas consuetudinárias, dos espaços rurais. (CABAÇO, 2007, p. 167).

Em suma, neste trabalho observou-se a importância das metodologias


de História das Religiões para abordar fenômenos religiosos das cosmovisões
sob um viés científico histórico, exibindo uma narrativa historicizada dos ob-
jetos, dessa forma, buscou-se descrever de forma sucinta como as cosmovisões
africanas afetavam o futebol e seu jogo e aqueles que o praticavam durante o
período colonial em Lourenço Marques. Fazendo daquela região um ambiente
repleto de “magia” no futebol. Portanto, foi possível observar a importância
social dessas cosmovisões para essas comunidades em África, abordando sob
o olhar atento de uma história com viés epistemológico extremante fundado.

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181
A festa do mastro como um fato social total:
uma etnografia da festa de levantamento do
mastro de São Bernardo1

Keliane da Silva Viana

No Maranhão, todo início de festa de padroeiro nas comunidades cam-


pesinas, nas cidades e lugarejos começa com as chamadas festas de levantamen-
to do mastro. Geralmente, essas festas ocorrem fora da massiva programação
religiosa dos santos festejados. As mudanças ocorridas num espaço festivo ex-
trapolam a esfera propriamente religiosa, mostrando como essas festas se cons-
tituem em um fato social total.
O trabalho aborda a Festa de Levantamento do Mastro de São Bernardo
realizada todos os anos na cidade de mesmo nome, localizada no Baixo Parna-
íba, região Leste do Maranhão. Todas as questões que se pretende colocar estão
inseridas numa problemática maior que vem a ser a da relação e discussão entre
sagrado e profano. Dessa maneira, pretende-se fornecer elementos para pensar
a Festa do Mastro de São Bernardo menos como um fenômeno de resistência
cultural e mais como um fato social total.
1 O presente trabalho teve início em 2013 e apresenta parte dos resultados e reflexões teci-
das a partir da pesquisa de graduação da autora, realizada junto ao curso de Licenciatura
em Ciências Humanas/Sociologia da Universidade Federal do Maranhão/UFMA, intitulada
“TODO ANO TEM! Cultura, resistência e tradição na festa de levantamento do mastro em
São Bernardo/MA.”
A presente etnografia busca apresentar os significados da Festa, os ele-
mentos que a compõem, a forma de apresentação e organização, os partici-
pantes, os símbolos e outros elementos que contribuem para que a tradição se
mantenha viva. Esta abordagem move-se em frentes que procuram dar conta,
de um lado, das dinâmicas de sociabilidades, em que as práticas religiosas festi-
vas, em devoção aos santos padroeiros, oportunizam a apreensão de diferentes
significados e dinâmicas de expressão cultural e popular, e, de outro lado, dos
ritos que caracterizam as atividades que compõem essa manifestação de devo-
ção ao santo festejado.
Como fato social total, a Festa de Levantamento do Mastro alcança uma
significação muito mais ampla que a de uma festa popular e, por conseguinte,
suas construções e simbologias transformam-se em objeto de estudo de inte-
resse das ciências humanas – e em especial da antropologia. No presente estu-
do, a Festa de Levantamento do Mastro será analisada como um fato social total
ou fenômeno social total, noção formulada inicialmente por Marcel Mauss, no
Ensaio sobre a dádiva, de 1925. Trata-se de uma noção central do pensamento
maussiano, de um desdobramento da noção anterior de fato social, tal como
apresentada por Émile Durkheim (2006), em As regras do método sociológico,
de 1895. Total, por um lado, no sentido de que na comunidade a Festa se cons-
titui em um acontecimento ligado aos universos social e simbólico do grupo,
capaz de promover uma dinâmica social específica nos dias em que a festivi-
dade é realizada bem como do engajamento da coletividade como um todo. E,
por outro lado, fato social total no sentido de ser um fenômeno que atravessa
todas as esferas do social, econômico, político e religioso, pois, somente assim
é possível reconhecer sua eficácia na sociedade.
A Festa do Mastro é reconhecida como fato social total, na medida em
que abrange toda a vida de uma comunidade, bem como se manifesta no mo-
mento ritualizado da recepção pública do evento. Ao mostrar o conjunto de
relações, a dimensão social que une os agentes sociais no interior da festivida-
de, os sentidos apreendidos que não se restringem apenas às ocorrências intrín-
secas ao seu universo cultural, é possível perceber que a Festa recebe destaque
por representar a cosmologia dos grupos humanos, incluindo questões ligadas
à origem histórica e à localização espacial, ou seja, a ocupação do espaço físico
da comunidade está vinculada às homenagens e reverências ao santo padroeiro
da cidade.
Diferentemente, como habitante da região onde ocorre o levantamento
do mastro (bernardense de origem), para realizar o estudo desse objeto tive

184
que trabalhar o distanciamento, levando a considerar como não naturais todo
um conjunto de atos, condutas e representações que partilhava com os demais
devotos que participam da Festa. Não se trata em momento algum de um aban-
dono do vínculo religioso, mas tão somente de tentar adotar uma perspectiva
de longe - e com isso extrair as vantagens de uma observação eivada de pré-no-
ções, julgamentos de valor e raciocínios explicativos do senso comum.
Somadas às análises de Malinowski (1976), quando o autor destaca que
o etnógrafo precisa cavar o seu espaço e posicionar-se, ao mesmo tempo, ele
chama atenção para o perigo que as ideias pré-concebidas podem causar em
uma pesquisa, sendo necessário um afastamento das pré-noções. Foi com esse
espírito que acompanhei o ritual desde a escolha e derrubada da árvore, pas-
sando pela puxada e finalizando com o fincamento2 dela, quando começa efeti-
vamente o tempo do festejo.
Os dados foram produzidos por observações, pesquisa bibliográfica, et-
nográfica e entrevistas realizadas com moradores mais antigos, organizadores e
participantes dessa festividade. Diferentemente do estudo feito anteriormente
sobre as transformações, continuidades e rupturas da festa do padroeiro São
Bernardo, com o aporte teórico de estudiosos de campos disciplinares diversos,
pretendo, pois, discorrer sobre as simbologias presentes na Festa de Levanta-
mento do Mastro, essa rica manifestação de fé que, embora esteja mais ligada
ao laicato, não deixa de assumir dimensões religiosas e culturais importantes.
Se, de início, estudos realizados sobre o festejo de São Bernardo demar-
cavam a existência de duas festas muito distintas, o aprofundamento do estudo
sobre o Levantamento do Mastro mostrou que esse evento constitui uma etapa
inicial, prévia e significativa para que a parte mais sacral do evento ocorra.

1 Etnografando a festa do mastro

O levantamento do Mastro faz parte do extenso calendário de festas tra-


dicionais do município de São Bernardo. De maneira geral, trata-se de uma
festa que vai da escolha prévia de uma árvore de grande porte, de sua pre-
2 O fincamento do mastro não é um ato isolado, está imbricado no processo de levantar
o mastro, ou seja, para o mastro representar um símbolo ascensional, precisa passar pelo
momento de elevação (fincamento na terra), ou verticalização, como diria Durand (1997).
O fincamento do mastro pode ser entendido como a estreita ligação entre o mundo celeste e
mundo terreno, a aproximação de Deus e do homem (ELIADE, 1992), o clímax da hierofa-
nia. O ponto de intersecção que liga o homem à terra e eleva-o aos céus no mesmo instante.
É o momento em que a magia acontece, os poderes da sacralização do ato que conferem
caráter divino ao evento.

185
paração para o ritual e do seu transporte em direção à igreja matriz, onde é
fincada, dando início ao festejo de São Bernardo. Algo que poderia parecer a
um observador externo como simplório, a princípio, ou destituído de maior
importância. Um olhar mais de perto permite ver, no entanto, que esse ritual
aparentemente banal constitui um daqueles eventos a partir do qual se pode ver
a complexa dinâmica de permanências e transformações culturais nos modos
de fazer e ser de uma coletividade dada.
A Festa de Levantamento do Mastro começa trinta dias antes da festa
do padroeiro de São Bernardo e tem sua partida na escolha da árvore que será
derrubada e transformada em mastro: um tronco de árvore longo, sem galhos
que, geralmente, mede de setenta e cinco a oitenta palmos. Assim começa todo
um conjunto de rituais e peregrinações. De início, na casa do segundo mor-
domo3 do mastro se reúnem os organizadores e derrubadores da árvore que,
juntos, seguem para o local onde se dá a retirada da árvore (povoado Ladeira,
localizado em um município vizinho - Santa Quitéria/MA). Sua busca constitui
um ritual predominantemente masculino. Em meio a uma vereda sinuosa com
várzeas e olhos d’água, os homens selecionam uma árvore (pindaíba ou bacuri).
Todo o ritual de derrubada é acompanhado por crianças e adolescentes, a pró-
pria procura e corte da árvore lembra a derrubada do mato para o qual muitos
homens se associam e cuja eficácia consiste na produção de sentido e está na
base da antropologia de Marcel Mauss.
Após a derrubada, o mastro é carregado para o quintal do Sr. Adécio
(Decim), local onde é descascado e amarrado com arame farpado para evitar
rachaduras durante os trinta dias em que ficará exposto ao sol secando, aguar-
dando o dia nove de agosto, quando ocorre a puxada. Quando chega o dia nove,
o quintal torna-se espaço de sociabilidade, preservação dos traços da cultura
dos antepassados, atraindo devotos, promesseiros e brincantes. Espaço onde
os devotos se movimentam e praticam sua religiosidade. É nesse local onde
3 Os mordomos do mastro são lavradores, aposentados e católicos, caboclos nascidos e
criados em São Bernardo. São eles os principais responsáveis pela preparação e realização
da festa, uma espécie de representantes provisórios do padroeiro de São Bernardo. Os que
conduzem o corte, a puxada e o fincamento da árvore e, também, controlam a queima de
fogos. São eles os responsáveis por parte dos gastos da festa, como a comida e os foguetes,
bem como por receberem as pessoas da festa e visitantes em suas casas, onde são oferecidas
comida e bebida. Durante a puxada do mastro, são eles os homenageados em diferentes si-
tuações, tornando-se referências de respeito e amizade durante e após a comemoração. Por
essa razão, o momento em que simbolicamente marca esses atores é também o momento
em que a sociedade local estabelece os termos rituais da continuidade da festa, a passagem
de um ano para o outro. São eles que conduzem em procissão a Bandeira do padroeiro São
Bernardo e a colocam no mastro para o hasteamento.

186
muitos guardam na memória os que já fizeram a festa e, por quantas vezes, é
um momento de grande significado coletivo quando os participantes dançam
velhas músicas e criam coletivamente novos passos, quando se alegram com as
bebidas mas, também, relembram, com tristeza, os ausentes.
É nesse quintal onde as mulheres preparam a comida para aqueles que
vêm passar o dia todo na Festa. Mas, os organizadores precisam redobrar os
cuidados para evitar que alguns mais espertos entrem na fila para comerem
duas ou mais vezes e desperdiçarem comida. A comida é preparada em várias
casas da localidade, pessoas que recebem parentes e amigos oferecendo galinha
caipira, pato e até porco assado como cardápio – geralmente, animais criados
nos próprios quintais e para o próprio consumo.

2 Alguns agentes, símbolos e representações da festa

Muitas pessoas participam da Festa, alguns de maneira ativa, produzin-


do, organizando, angariando donativos, dançando, cantando e tocando. São
as pessoas que expressam sua devoção a São Bernardo através da organização
dessa Festa, da doação, do empenho e do desempenho, do capricho, enfim, do
trabalho.
A Festa atrai grande número de pessoas para a localidade da saída do
mastro: são devotos, pagadores de promessas e também interessados nas brin-
cadeiras, danças e folguedos. Nela estão presentes aspectos expressivos da cul-
tura popular, com suas tradições, seus símbolos e suas práticas. Possui uma
grande quantidade de eventos e ritos que marcam cada momento, demarcando
o engajamento religioso dos fiéis. A Festa é local de encontros de diferentes
grupos sociais, nela ocorre uma influência recíproca entre ambos os segmen-
tos. Como destacam Turner (2008) e Lévi-Strauss (1975), ela é marcada por
situações de dramas, de expectativas e transformações sociais, bem como por
relações míticas, religiosas e cosmológicas que se traduzem em efeitos dinâmi-
cos constitutivos de vínculos sociais e transmissão cultural.
Há uma lógica simbólica e temporal que envolve as pessoas e externam
um sentimento de pertencimento e de identificação a um lugar, uma espécie de
intercâmbio ritual entre devotos de diferentes lugares. Nesse ambiente carrega-
do de crenças e valores, os símbolos exercem sua eficácia (TURNER, 2008). O
envolvimento dos grupos pode ser verificado em diversas ocasiões e espaços,
como, por exemplo, ao término da festa, ás 16 horas da tarde, ocasião solene em
que o primeiro mordomo faz os agradecimentos.

187
É um dos momentos mágicos da Festa, as palavras do mordomo apre-
sentam um poder mágico. Sua linguagem é mágica e torna-se o principal meio
de comunicação entre os participantes. Terminada a solenidade, os caboclos4 se
reúnem nos arredores da árvore levantando-a do chão e dando gritos de “Viva
São Bernardo”. O Juiz do mastro dá a voz de comando para a partida em direção
à igreja matriz, é ele quem se destaca por ser possuidor de um saber especial.
Em Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande (2005), ao analisar as
práticas e crenças dos povos azande, Evans Pritchard observou que existem
membros que também se destacam por serem possuidores de um saber es-
pecial, os adivinhos. Para o autor, os adivinhos denotam um comportamento
peculiar, sendo mais curiosos e atentos à natureza humana. Evans Pritchard
ressalta que aos adivinhos competia a função de exercer uma atividade divina-
tória da bruxaria e que ela não apenas oferecia uma possibilidade de explicar
quaisquer infortúnios que atingissem as pessoas, como também era capaz de
fornecer os mecanismos necessários para combater e curar suas vítimas. Os
adivinhos se apresentavam como portadores de um saber raro, prestigiado. Tais
saberes só se tornavam possíveis e conectados por meio de um acúmulo de
esforços pessoais.
A simbologia presente na imaginação dos participantes associa a figura
do juiz do mastro com a figura do rei, mestre, autoridade, imagem enquanto
soberano mago e guerreiro. Na Festa, essa figura se assemelha a do bom sobera-
no, aquele que exerce sua autoridade sem excesso, ao contrário do que mostrou
Evans Pritchard quando disse que, apesar dos adivinhos possuírem um signi-
ficado fundamental devido ao papel de proteção que exerciam contra a bru-
xaria, eram também seres arrogantes e intimidadores. Essa noção conecta-se,
portanto, à ideia de que nos diferentes modos de vida de uma dada sociedade
relacionar-se está muito ligado à incorporação ou captação de valores interio-
res e exteriores ao corpo social.
Vale dizer que, durante a puxada do mastro, ao juiz cabe a tríplice fun-
ção: jurídico-política (o juiz), religiosa (o mago) e militar (o guerreiro). Na
peregrinação, simultaneamente, o juiz desempenha as três funções: ora é quem
julga - no momento em que dita as regras cuja eficácia e disposição devem ser
seguidas pelos que irão participar do cortejo. Ora é quem encanta, no momen-
to em que dá a voz de comando e agradece ao padroeiro pelas bênçãos concebi-
4 No Maranhão, especialmente no território do Baixo Parnaíba, a palavra caboclo era – e
ainda é – usada para o habitante do interior independentemente de sua origem étnica. Se
vive de roça é caboclo. Historicamente, essa figura deriva da mescla de diversas ascendên-
cias (indígena, negra, branca, mestiça).

188
das durante o ano e pela oportunidade de reviver aquele momento, como num
reflexo no espelho que transforma a atmosfera e encanta os participantes. O
sentido do espelho reforça a lembrança de alguém que não mais se faz presente
na festa, de pessoas que marcaram, seja organizando ou participando, seja por
uma frase, um discurso, uma mensagem; seja por um conselho, uma briga ou
qualquer outra coisa. Ora é quem luta, no momento em que transita entre os
participantes controlando e organizando para não haver contendas.
A Festa é provida de regras que devem ser respeitadas como forma de
expressar o que está sendo festejado. As regras são pensadas como sentido de
regulação presente nas ideias de Elinor Ostrom (2005), quando destaca quais as
regras que orientam e fazem parte de nossas interações e ações cotidianas. Para
a autora, as regras podem ser pensadas como um conjunto de instruções para
criar uma situação de ação num ambiente particular. Tudo o que o indivíduo
enfrenta em qualquer situação, seja ela de caráter particular ou não, ele é afeta-
do pelas regras ou pela ausência delas, que estruturam a situação.
A autora ainda pontua que regras são criadas por humanos para estru-
turar uma situação e que, em determinadas situações, elas não necessitam ser
escritas nem resultar de procedimentos formais legais. Regras institucionais
muitas vezes são conscientemente criadas pelos indivíduos para mudar a estru-
tura de situações repetitivas que eles mesmos enfrentam. Nesse caso, as funções
desempenhadas pelo juiz do mastro se inscrevem como uma tomada em que as
regras não são autoformuláveis, determináveis ou autoimpositivas, são agentes
humanos que lhes formulam, que as aplicam em situações particulares e que
desempenham conscientemente com elas uma linguagem humana. É a partir
dessas funções que podemos entender a representação de papéis exercidos pelo
juiz do mastro e, também, como sendo ele símbolo do arquétipo, do herói que
representa a sabedoria e o conhecimento em determinadas circunstâncias de
espaço e tempo, e como as regras se aplicam em determinadas situações de
ação.

3 Os eventos da festa do mastro

Durante o cortejo, vários rituais se repetem como as diversas festas e se-


restas montadas em frente às casas das pessoas que recebem o mastro e fazem
as doações. Esses rituais ganham valores simbólicos e aproximam-se daquilo
que os representam, pois, como também observou Victor Turner (2008), para
outro contexto, rituais são dramas que se representam. Os rituais podem emer-
gir de dramas sociais como forma de ação reparadora que é exatamente o que

189
se observa no ritual da Festa. O mastro é a chave para a reparação de possíveis
conflitos que venham a ocorrer.
Durante a peregrinação, observam-se diferentes momentos e tipos de
promessas que são acionadas pelos fiéis, seja para pedir uma graça ou agra-
decer os votos alcançados, os quais se relacionam através de um acordo entre
o devoto e a divindade. Também durante o cortejo um dos aspectos que atrai
a atenção dos participantes e que não deixa de ser apreciado é a performance
das mulheres que beijam o mastro pedindo bênçãos para arrumarem um ca-
samento, ou quando as velhinhas choram e dançam ao som dos instrumentos.
Essas mulheres encenam sua fé, seja pela devoção ou pelo desejo de que o santo
padroeiro interceda por seus pedidos e que eles sejam respondidos. Acreditar
e colocar seus desejos nas mãos de um ser divino adquirem uma tonalidade
particular que ressignifica o cotidiano, o pueril, a normalidade.
Em meio aos frevos, marchinhas e dobrados que são tocados, acontecem
as tradicionais paradas na casa de devotos que fazem promessas ao santo e
oferecem doações. A primeira parada constitui-se na doação da cachaça, se-
guida pelas laranjas e pelos fritos. Com o mastro, os homens entram na casa
dos devotos previamente e tradicionalmente escolhidos: o primeiro mordomo
encarna a sacralização do espaço no interior da casa, no âmbito do privado; o
segundo faz os agradecimentos aos donos da casa. O terceiro recebe as doações,
e junto com os demais devotos tocam músicas, espocam foguetes e depois saem
dando gritos de “Viva São Bernardo”. Esse ritual acontece em todas as paradas.
Todos esses gestos são intermediados por uma divindade envolvendo a
reciprocidade, um constante dar, receber e retribuir que nos retorna às ideias de
Marcel Mauss (2003), quando analisa as manifestações do Kula - troca de cola-
res e braceletes entre os trobriandeses e do potlatch, ritual de oferta de bens e de
redistribuição da riqueza entre tribos indígenas. O papel da dádiva, como nos
ensina Mauss, é uma regra moral regida por um princípio de honra e recipro-
cidade, uma dimensão simbólica que se impõe sobre a sociedade. No momento
da doação não é apenas o bem doado que é entregue, mas toda uma carga es-
piritual que liga os indivíduos ou as divindades através do bem doado. A graça
obtida é retribuída ao Santo que a concedeu através de uma dádiva.
Durante o percurso, ao som de instrumentos musicais como a sanfona,
a zabumba e o triângulo, o povo se diverte acompanhando o cortejo. Além
dos foguetes sem cessar, o cortejo é iluminado pelas velas, lanternas e luzes de
carros e motos que acompanham a puxada. É comum organizarem durante a
peregrinação barracas com vendas de água, refrigerantes, bebidas alcoólicas e

190
comidas típicas. O sentido é de confraternização e alegria durante o cumpri-
mento de um longo ciclo ritualístico em devoção a São Bernardo. Para os ho-
mens que carregam o mastro são oferecidas doses de cachaça, tudo controlado
pelos mordomos. Atrás do cortejo, vem sempre um caminhão de apoio para
apanhar os que pelo caminho ficam embriagados.
Durante o cortejo, o primeiro mordomo, Francisco Rosa de Sousa (Chico
Rosa), desloca-se o tempo todo, controlando com restrições o jogo sexual e
certificando-se que tudo está ocorrendo bem para que os homens preservem
as relações de respeito e não tomem “gosto” com as moças durante o período
de peregrinação, além de “puxar” as músicas junto aos cabeças brancas5. Infligir
ou quebrar uma regra é uma opção que está sempre disponível para os partici-
pantes durante o cortejo, mas, associado à quebra de regras, há o risco de eles
serem monitorados e sancionados. Obedecer ou não obedecer às regras implica
consequências para quem não as cumpre (OSTROM, 2005). O temor parece
também como outra face da devoção. Cumprir com as regras é uma forma de
demonstrar o comprometimento com o santo, é a contrapartida absolutamente
necessária para que o processo de troca possa efetivar-se.
Se no passado o ritual contava com a presença de algumas senhoras, atu-
almente percebe-se um cortejo cheio de jovens moças, incluindo as filhas dos
mordomos e organizadores mais ativos. O segundo mordomo, Antônio Pereira
da Costa (Toinho), geralmente é responsável por distribuir e controlar as doses
de cachaça entre os homens que carregam o mastro. O terceiro mordomo, Fran-
cisco Moreno Silva (Sabido), fica responsável por fiscalizar e proteger as laterais
evitando brigas, além de ser um dos principais a puxar os gritos de Vivas.
Na chegada, meia noite do mesmo dia, na capela de São Sebastião, na
entrada da cidade, é montada outra festa para receber o mastro. Na ocasião, ca-
bem às mulheres do tambor de crioula a responsabilidade de alegrar o ambien-
te, oferecer boa música e divertir o povo. Quando o mastro chega, a multidão
abre caminho para que os homens o levem para dentro do santuário da capela
de São Sebastião. A capela, pequena para tanta gente, enche-se rapidamente, e
parte da comunidade assiste a celebração do lado de fora. O mastro é jogado
três vezes para cima com gritos de viva São Bernardo e, em seguida, é colocado
do lado de fora do santuário até o dia do fincamento. Ao final da noite, as pes-
soas ainda permanecem por um bom tempo nas imediações da capela. Agora é
hora da despedida, principalmente daqueles que vêm de “fora” por ocasião de

5 A bandinha de música dos “cabeças brancas” tem dez pessoas, todos homens, com mais de
cinquenta anos, aposentados, camponeses que trabalham no feitio de roças.

191
uma promessa ao padroeiro - especialmente para acompanhar esse primeiro
momento da Festa e que são impedidos, por motivos de trabalho, de continua-
rem, precisando retornar às suas atividades.
No dia seguinte, dez de agosto, na casa do segundo mordomo é ofere-
cido um almoço. Trata-se de um momento de confraternização das famílias,
de descontração, prosas e risos. É, sobretudo, um momento de pagamento de
promessa, pois é sempre oferta de uma família, a qual expressa uma dádiva.
Marcel Mauss já definia a dádiva de modo amplo, uma vez que ela inclui não
só presentes como também visitas, festas, comunhões, etc. A dádiva, segundo
o autor, está presente em todas as partes. Ela pode apresentar-se em sorrisos,
gentilezas, palavras, hospitalidades, presentes, serviços gratuitos, dentre outros.
São as mulheres da família (esposa e filhas) as encarregadas por prepa-
rarem o almoço, o que em si, na hora da preparação, recebe todo o cuidado. O
almoço é uma espécie de banquete oferecido aos participantes da Festa e à po-
pulação em geral, o alimento partilhado é, em todo ritual, uma forma simbólica
de manter as relações de solidariedade e reciprocidade. Esta última significan-
do um princípio moral (MAUSS, 2003). Segundo Mauss, recusar o alimento
equivale também à recusa da aliança e da comunhão.
Na Festa, momentos importantes parecem todos demarcados por formas
específicas de preparação, apresentação, distribuição e consumo de alimentos.
Ao entregar o alimento, recebe-se a luz que é revertida para o presenteador e
é esse ato que estabelece a ligação entre o indivíduo e a divindade, possibili-
tando a comunicação direta entre os dois. Os alimentos oferecidos e cobertos
de representatividades simbólicas são tratados como abençoados e capazes de
operarem curas. São Bernardo se revela não só como operador de milagres e
curas, mas também como o agente operador da dádiva. O santo se faz presente
na Festa e distribui bênçãos com a graça do que para ele se cozinha, oferece,
compartilha e consome. As graças passam pela comensalidade do que para ele
( e em seu louvor) se cozinha. Nesse sentido, os alimentos possuem aspectos
importantes no que diz respeito às materializações do sagrado.
O local quase sempre preferido para receber os devotos e brincantes é à
sombra de uma mangueira no quintal e, por isso, também precisa de atenção
especial, principalmente porque é lá que os homens tocam, cantam, comem e
espocam foguetes. Por volta das 16 horas da tarde, com a chegada dos devotos,
momento de comoção e alegria, os organizadores pegam o mastro e colocam
sobre ele o responsável por carregar a bandeira (que contém a imagem do santo
padroeiro). A evidência da noção de relações de gênero é novamente expressa,

192
sendo demarcada pelas categorias homem e mulher, em que o primeiro desem-
penha papel de destaque nessa etapa do ritual. Na ocasião da saída do mastro,
uma grande procissão toma conta da rua principal da cidade, dando início ao
cortejo até a igreja matriz.
Os participantes acompanham o carregamento do mastro tendo à frente
os dez componentes da bandinha de música cabeças brancas que animam a
multidão e seguem o cortejo de carregamento até a igreja, fazendo paradas e
tocando os instrumentos. Esses são os sinais anunciadores da chegada da en-
tidade que, com a sua presença, confere ao momento todo um peso de sacrali-
dade (PRADO, 2007).
Os fogueteiros também se encarregam de anunciar que o mastro está
chegando e os devotos preparam suas casas com flores e panos brancos para re-
ceberem as visitas. Os moradores limpam os quintais e enfeitam as casas, tudo
para receberem o mastro. A Festa modifica o cenário da cidade alterando a sua
rotina. No ritual de visita às casas, é possível observar diversas simbologias
que comportam interpretações variadas através do plano religioso. O mastro
representa o símbolo dominante e principal. Essa afirmação se torna represen-
tativa na medida em que o objeto em questão abrange significados múltiplos
e interconexos. Victor Turner (2008) enfatiza como símbolo de condensação
uma espécie de liberação de tensão emocional de forma tanto consciente quan-
to inconsciente, e essa descrição se faz notória quando os devotos visualizam a
chegada da romaria e de seu objeto principal.
É nesse local onde gestos e rituais divinos são reatualizados e cujo espaço
vai sacralizando-se durante o percurso, transformando o caos em cosmos. São
momentos tradicionais e devocionais que envolvem a religiosidade. O mastro
é o símbolo que liga o céu e a terra, fazendo a mediação entre os devotos cabo-
clos e o padroeiro São Bernardo. Esse é o seu principal significado, uma relação
entre os homens e o sagrado mediado pela natureza. Outra multidão espera nos
arredores da igreja matriz. Local que se torna espaço de peregrinação religiosa
e que circunscreve por excelência a sacralidade da Festa.
Quando chega à igreja, os sinos badalam. A igreja funciona como uma
ponte, uma porta de ligação do homem (ser terreno), ao cultuar um ser ce-
lestial, o mastro é também essa ponte e essa porta. Caberia mencionar, nesse
sentido, as observações de Mircea Eliade (1992, p. 19) quando, ao analisar as
relações entre o sagrado e o profano, tenta demonstrar que a porta, ao menos
num templo, não é tão somente uma passagem física, posto que está totalmen-
te imbuída de sentidos outros. Em suas palavras: “A porta que se abre para o

193
interior da igreja significa, de fato, uma solução de continuidade. O limiar que
separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos
de ser, profano e religioso”.
Após adentrá-la, o mastro é jogado três vezes para cima demarcando
a abertura de mais um ano do festejo. Em seguida, o pároco dá a benção em
louvor e saudação ao santo, cujo sermão e outros ritos são marcadamente para
afirmar que a Festa em homenagem ao padroeiro está começando. Além do
sermão, as músicas e a participação da comunidade reforçam a importância da
devoção. Após a benção dos fiéis, realizada pelo pároco e com todos os para-
mentos eclesiásticos, dá-se como que uma virada no ritual, posto que ele passa
a ser dominado pelo tempo eclesiástico.
Após, o mastro é levado para fora do Santuário, área comunal onde a
população campesina modifica o espaço que habita dando-lhe significados os
mais diversos, transformando-o num lugar especial como parte das crenças
dessas populações. Trata-se de um dos momentos-chave da festa: o mastro é
fincado no chão por mãos masculinas e começa a brincadeira. Homens sobem
no mastro para agarrar os prêmios que geralmente são galinhas e dinheiro.
Nessa hora, são jogados bolos, biscoitos, pipocas e bombons para as pessoas
que se encontram no local onde ele é fincado (praça da igreja matriz).
Há uma grande comoção no levantamento do mastro. Muitas pessoas fa-
zem questão de tocar no mastro, rezando enquanto seus corpos estão conecta-
dos aos objetos sagrados. Muitas pessoas fazem seus pedidos exatamente nesse
momento. Momento de efervescência em que muitas pessoas se emocionam.
Comunicam-se com o santo. Os pedidos de intercessão ao santo são realizados
em troca de uma entrega total, de corpo e alma.
Alguns apenas olham para a bandeira enquanto pedem ou prometem,
outros tocam o mastro com as mãos enquanto oram e pedem a intercessão
de São Bernardo. Dado esse caráter mágico que é atribuído ao momento do
levantamento do mastro (bem como a queima de fogos ao final), muitas pes-
soas se fazem presentes e pedem algo para o santo; outras estão ali apenas para
presenciar um momento de efervescência da comunidade sem o envolvimento
devocional. Nesse momento, sempre se fazem presentes as autoridades: o pa-
dre, o prefeito, vereadores, secretários, candidatos e outras pessoas ilustres da
comunidade.
Levantado, pois, o mastro assim permanecerá até o final do festejo, pas-
sando ainda de dois, três até quatro meses fincado, sendo, então, ritualmente
derrubado. Essa cerimônia é geralmente dirigida pelo segundo mordomo que,

194
na ocasião, torna-se uma espécie de leiloeiro, encarregado de lançar preço entre
os interessados (seja para fazer cadeira, mesa ou porta). Além disso, caso ma-
nifestem interesse, mordomos de cidades vizinhas podem pedir emprestado o
mastro para ser levado para outros festejos. Já que nessas cidades não existem
áreas com reservas de árvores propícias para a derrubada. O mordomo apanha
a bandeira e leva-a para sua casa. Caso seja leiloado e não doado, o dinhei-
ro contribui para o abatimento das despesas arcadas pelos mordomos da festa.
Mesmo porque a maioria dos gastos concernentes ao cerimonial de levanta-
mento (foguetes e comidas) ocorre por sua conta.
A utilização da árvore está ligada às antigas hierofanias vegetais, que
compõem um espaço simbólico, físico e imaginário. Mircea Eliade nos propõe
analisar como o sagrado se manifesta, isto é, as hierofanias, constituindo um
arquétipo simbólico no imaginário de tempo e cultura de um grupo. O autor
define hierofania como a manifestação do sagrado em que um objeto qualquer
se torna “outra coisa” sem deixar de ser ele mesmo, porque continua a fazer
parte do meio cósmico que o envolve. Uma pedra ou uma árvore, ambas, apa-
rentemente, não se distinguem de todas as demais. Logo, se reveladas sagradas,
deixam de fazer parte desse mundo como simples “coisas ou objetos” e passam
a fazer parte da sacralidade cósmica. E, no todo, o cosmo pode tornar-se uma
hierofania (ELIADE, 1992).
A isso podemos associar a árvore tirada no mato e convertida em mastro
pelo ritual. Isto é, ela é transformada em sagrada no momento em que acon-
tece todo um ritual, na mesma época do ano, com as mesmas pessoas ou seus
descendentes envolvidos em toda a ritualística preparatória. Quando começa o
corte, a árvore já começa a ser investida de componentes que permitem a sua
modificação de condição. Durante o cortejo até a matriz, ela vai tornando-se
cada vez mais sagrada, na medida em que recebe, até certo ponto, a autorização
das autoridades eclesiásticas. Nesse percurso, todos os acontecimentos vão ga-
nhando uma aura de religiosidade, inclusive, o próprio ato de beber no ritual,
como se pode captar no relato desse entrevistado.

O senhor acha que a festa deixou de ser religiosa?


Não. Eu não acho que deixou de ser religiosa porque a maioria das pessoas que
participam da festa vão ali para prestar suas homenagens ao padroeiro São Ber-
nardo e agradecer pelo que o padroeiro fez de graça na vida deles, as bênçãos
que receberam, os milagres. [...] Esses homens que ficam no meio do caminho
bêbados, até eles são religiosos, porque se não tivesse a festa eles não iam ficar
bêbados. Então, lá no fundo se agente prestar atenção bem, mesmo aquele que

195
fica bêbado está participando de uma festa religiosa. [...] Existe pessoas que di-
zem assim, principalmente pessoas de outras religiões: “há mais isso ai não tem
nada de religioso, isso ai não tem nada de sagrado, isso ai tudo é só uma des-
culpa pra beber cachaça, só isso”. Só que essa opinião deles pra nós não serve,
porque por mais que algumas pessoas às vezes meta uma lapada, uma dose de
cachaça nos peito, tomem um litro de tiquira todim isso não impede de acon-
tecer a religiosidade na festa. Não importa se ele tá bêbado, até porque isso faz
parte da brincadeira pra ele puder aguentar a caminhada, o repulso. As vezes
eles ficam bêbados, num sabe nem o que tá se passando, mas, ele ta no meio,
ele foi participar da festa religiosa, participar da festa do mastro que é o início
das homenagens a São Bernardo. Sem beber não tem festa, tem que beber para
existir a festa (Francisco Moreno Silva, São Bernardo em 29/07/2013).

Compreender a Festa como fenômeno religioso significa articular um


conjunto de símbolos que proporcionam maior adesão dos fiéis à divindade
através de um sistema de comunicação, proporcionando uma experiência re-
ligiosa e mística com a divindade na terra. Assim, entendemos que o levanta-
mento do mastro, enquanto fenômeno social total, é um evento de natureza
religiosa que agrupa uma multiplicidade de ritos, símbolos e representações de
costumes e comportamentos herdados, que perpassam esferas diferenciadas, os
quais, por sua vez, não se limitam ao plano do sagrado.
Uma Festa religiosa que não necessitaria da presença do representante
da igreja para ocorrer, visto que são os caboclos os seus principais defensores e
organizadores. Dentro da esfera institucional católica, inclusive, não faltaram
momentos nos quais os representantes eclesiásticos questionaram a continui-
dade e importância da Festa, obtendo forte resistência das frações locais do
laicato:

Teve um tempo que um padre quis proibir a festa aí num prestou não viu. Eu
disse: Padre, peço que você não tutuque no mastro do padroeiro, deixe o mastro
do padroeiro em paz, porque se você mexer com o mastro do padroeiro, você
vai mexer com a nação, aí não vai da certo pro senhor. Pode entrar padre que
entrar, mas a comunidade não aceita acabar (Francisco Moreno Silva, São Ber-
nardo em 29/07/2013).
Ora, um tempo desses chegou um padre aqui que quis proibir o mastro, teve até
um pastor aí de uma igreja que queria até botar a polícia lá na frente e queria
ver se o mastro passava. [...] A tradição desse mastro aí não pode se acabar. Eles
lutam pra acabar mas não acaba não, de jeito nenhum, porque é uma tradição
muito forte e a gente não deixa ser vencido, não deixa ser vencido pelo cansaço
(Francisco Rosa de Sousa, São Bernardo em 10/08/2014).

196
De acordo com os relatos, a população não aceitou de maneira passiva
todos os ideais da Igreja Católica, continuando com a festiva celebração tradi-
cional. Cabe mencionar que em muitas Festas de Mastro já existem, inclusive,
os patrocinadores que, independentemente do apoio clerical, colaboram todos
os anos para que a Festa aconteça. Mesmo o padre negando-se a rezar a missa,
a Festa acontecerá, como se pode evidenciar nos relatos acima em que, mesmo
tentando proibir, o povo não deixou de realizar a Festa. Portanto, ainda que a
instituição não concorde, pois, o pároco assim a representa, a Festa ocorre da
mesma forma. Atualmente, segundo relatos:

O padre nem apoia e nem atrapalha. Como não é organizada por ele, direta-
mente, ele não dá apoio, mas como muitas pessoas da comunidade que parti-
cipam da festa faz parte da paróquia dele, da igreja, ele também não atrapalha.
Este ano ele até rezou a missa antes do levantamento, disse umas palavras de fé,
abençoou e tudo mais, foi muito bonito o discurso dele. Mas, no ano passado
teve um fato que me deixou desconfiado. Furaram um rapaz lá na ponte da
ladeira no dia da puxada, então, foram anunciar pra polícia pra dizer que tinha
sido dentro do nosso movimento, que era pro padre puder acabar com o mas-
tro. Mas, perderam tempo. Quando foi uma hora, depois do almoço, a polícia
baixou aqui e mandou me chamar, alegando que a briga tinha sido no decorrer
da festa. Quando eu sai já foi invocando o nome do padroeiro, eu disse tanta pa-
lavra bonita e sincera que os policiais foram tudo embora e nunca mais voltaram
(Francisco Rosa de Sousa, São Bernardo em 10/08/2014).

A Festa é permeada de tradição religiosa. É caracterizada pela devoção


cíclica anual da manifestação que passa de geração em geração, recusando-se a
acabar. Para o senhor Francisco Rosa de Sousa, ela é concebida como um im-
portante evento de peregrinação e pagamento de promessas.
A Festa do Mastro evidencia uma manifestação de fé e a estrutura que
cerca o ritual em toda sua simbologia. É por meio dessa manifestação popular
que a comunidade mantém suas características, garantindo a manutenção de
símbolos e valores que a transformam em uma grande celebração no centro do
universo místico religioso, atuando na memória e fortalecendo os vínculos so-
ciais e o sentimento de pertencimento, formando espaços de socialização e de
construção da identidade. Nesse sentido, compreendemos essa manifestação
como um momento de prazer e manutenção de costumes, tradições e especi-
ficidades culturais. Dentro da estrutura campesina essa Festa reveste-se de um
caráter material, incluindo símbolos, rituais e devoções. Através dessa manifes-
tação, compreendemos a relevância e o significado da tradição popular no uni-

197
verso cultural camponês, ao mesmo tempo em que os laços de sociabilidades,
trocas culturais e preservação das tradições são reatualizados.

Considerações finais

Resgatando as origens desse ritual, sua simbologia e as suas transforma-


ções, conclui-se que a Festa do Mastro se apresenta como um fato social total.
Trata-se de um evento religioso com grande importância para o grupo social
caboclo, pois expressa uma experiência religiosa de intermediação entre os pla-
nos terrenos e divinos, entre homens, reis e deuses. A árvore transformada em
mastro representa a capacidade e a força natural de cada homem com suas
múltiplas realidades que se associam à organização no sentido de constituir
a valorização e devoção ao santo protetor. Essas formas de comunicar-se e fa-
zer promessas por meio da puxada do mastro permitem pensar que as crenças
humanas estão sempre intimamente ligadas com a crença do sacrifício e rea-
lização, bem como enquanto um poder que atua na produção de determinada
coesão da Festa.
A devoção e o próprio São Bernardo podem ser tomados como as forças
motrizes que acontecem entre as pessoas. Os véus da devoção, das promessas
e da liturgia encobrem relações tensas. Participar da Festa significa, antes de
tudo, compartilhar a crença em São Bernardo. A participação na Festa é um
dos sentidos da devoção. A Festa do Mastro circunscreve as pessoas através
da participação na organização, numa rede de relações, que se estende desde
o interior das famílias até os atos mais simples como tomar parte em alguma
atividade.
Através dessa manifestação, compreende-se a relevância e o significa-
do da tradição popular no universo camponês, ao mesmo tempo em que os
laços de sociabilidades, trocas culturais e preservação das tradições são rea-
tualizados. A riqueza presente nos relatos dados pelos entrevistados permitiu
compreendê-la como um fenômeno total. A riqueza ritualística, certamente
não apreendida em sua totalidade neste estudo, e talvez jamais traduzida em
palavras, mostrou todo o envolvimento e a alegria que as pessoas envolvidas na
Festa demostram.

Referências

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Martins Fontes, 1997.

198
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moderna. Niterói: Editora da UFF, 2008.

199
Entre mulheres & bebidas:
Bar da Lili e o prazer noturno no bairro
Refinaria (1970 a 1980)1

Samara Fernanda da Silva Felismino


Rosane Apolinário Barbosa

Neste estudo, debruçar-nos-emos sobre o “Bar da Lili” como um espaço


de sociabilidade atrelado ao prazer, no bairro Refinaria, nas décadas de 1970 e
1980, que foram os anos de funcionamento do estabelecimento. Durante todos
esses anos, esse bar tornou-se referência para os homens que residiam no bair-
ro e adjacências, mas também por localizar-se próximo à Avenida Central, e a
Refinaria A. Silva recebia frequentemente vários trabalhadores.
Abordaremos também aspectos da vivência da proprietária do bar, a se-
nhora Maria Lívia, conhecida popularmente como Lili, uma mulher que en-
frentou muitos obstáculos na vida para enfim encontrar seu lugar e montar seu
próprio negócio. Ela se autodefine como alguém conhecida no bairro, respei-
tada pelos moradores, carismática e segura de si, tivera que manter a postura
de rigidez algumas vezes para conseguir sempre conservar a “casa” em ordem,
já que, por várias vezes, tinha que lidar com homens altamente embriagados
agindo de forma desordeira, como veremos mais adiante.

1 O estudo faz parte do capítulo III da monografia: Diversão para uns, perdição para ou-
tros: Bar da Lili e os prazeres da noite no bairro Refinaria (1970 a 1980) – UEMA/Campus
Caxias.
Uma peculiaridade desse local é a prática da prostituição, havia no bar
quartos reservados que poderiam ser alugados pelos frequentadores, para des-
frutarem com alguma de suas ajudantes, como afirma o senhor Meireles, um
dos entrevistados: “Mulheres muito bonitas, começando por ela (Lili), uma
verdadeira perdição” (Custódio Meireles, 2017).
O sexo como moeda de troca não é uma prática recente e foram-lhe
atribuídos vários tipos de significações que variam em lugares diferentes. Nas
sociedades baseadas em valores cristãos, profanar o corpo é algo condenável,
mas que exerce uma função em meio à sociedade, mesmo parecendo em con-
trapartida, essa prática acaba auxiliando as regras moralistas. A prostituição
resiste e perpassa ao longo do tempo, renovando as formas de comercialização
do corpo, existindo até os dias atuais.

1 Prostituição: um mal necessário?2

Como sabemos, a prostituição não surge na sociedade moderna, ela vem


desde a Idade Antiga, e já foi praticada de diferentes formas. Nas primeiras
civilizações da Mesopotâmia e do Egito, a prática das prostitutas foi associada
às divindades, as sacerdotisas recebiam presentes em troca de favores sexuais.

As hierodule eram mulheres sagradas que ofereciam serviços sexuais em oca-


siões especiais, eram vistas como a encarnação de Afrodite e respeitadas pela
população e pelos governantes por evocarem o amor, o êxtase e a fertilidade.
Embora fossem escravas como as deikteriades(prostitutas cujos donos eram ci-
dadãos comuns) tinham mais regalias que elas. (CECCARELLI, 2008, p.2).

Ceccarelli (2008) também escreve que na antiga civilização grega, a pros-


tituição era um meio de obtenção de lucro, além de ser controlada pelo Estado
como qualquer outro trabalho. Reafirmando, o trabalho com o sexo é uma das
primeiras profissões do mundo.
No século XIV, a Igreja Católica tinha a preocupação com o puritanismo
e controlava a sociedade ditando a moral e os bons costumes. As práticas se-
xuais eram feitas sem nenhum pudor ou privação, mas esse aspecto começa a
mudar quando os casamentos passam a ser um sacramento instituído pela Igre-
ja Católica, que determinava como os casais deveriam comportar-se, inclusive,
em relação ao sexo, que passou a ser praticado apenas dentro do casamento,
apenas para a procriação, a virgindade feminina passou a ser preservada e vista
2 Expressão utilizada por José Rivair Macêdo (1990), na obra A mulher na Idade Média.

202
como algo sagrado, porém, homens que estavam na idade para contrair o casa-
mento deveriam ter uma vida sexual ativa, e aí entram as prostitutas.
A prostituição, apesar de ser vista como algo imoral, nas palavras de José
Rivair Macedo (1990, p.72) era “considerada como mal necessário”. O autor
afirma, ainda, que: “Santo Agostinho, o grande pensador do século V, dizia: su-
primir as meretrizes e as paixões libidinosas dominarão o mundo”. Entende-se
que a prática contribuía para manter a organização da sociedade em relação às
limitações sexuais que eram impostas pela Igreja na época.
A prostituição caiu na clandestinidade, mas sem sua eliminação total.
Pois “as cortesãs continuariam a existir nas cortes europeias e colônias” (CEC-
CARELLI, 2008, p. 5). Como essas mulheres adquiriram o estado de clandes-
tinas, proibidas, pecadoras, algumas regras foram criadas para que pudessem
viver, ou melhor, sobreviver em meio à sociedade, como Rivair Macedo (1990,
p. 74) evidencia:

As prostitutas não podiam demonstrar ostentação, nem vestir roupas suntuo-


sas. Deveriam limitar-se aos locais fixados, aos guetos, onde os conflitos de seu
submundo poderiam ser resolvidos sem afetar as demais pessoas. Esses centros
de prostituição, afastados das áreas residenciais das famílias, compunham-se
de casas alugadas pelos órgãos públicos, por grandes proprietários laicos e até
mesmo por religiosos.

São vários os lugares da prática de prostituição, os mais populares são


as ruas e os bordeis. Os que mantinham uma clientela fiel eram os que perten-
ciam às camadas superiores da sociedade. A Prostituição como antes citada
é a profissão mais antiga do mundo, alguns historiadores afirmam que as pri-
meiras prostitutas surgiram na Mesopotâmia. Antes, as práticas sexuais eram
feitas sem nenhum pudor ou privação, essa prática começa a mudar quando
os casamentos passam ser um sacramento instituído pela Igreja Católica, que
determinava como os casais deveriam comportar-se, inclusive, em relação ao
sexo, que passou a ser praticado apenas dentro do casamento, e aspectos como
a virgindade feminina passaram a ser preservados, tidos como algo sagrado.
Dentro dessa perspectiva, o homem continua a ter privilégios, como a
aceitação social das traições com prostitutas, pois elas serviam como um ins-
trumento para controlar os casos de estupros e de relações homossexuais, além
de servirem como preparadoras dos futuros homens de bem, que estimula-
vam o coito entre os filhos na puberdade e as mulheres da vida, como também
eram chamadas as prostitutas. Na Idade Média, em algumas cidades, elas habi-

203
tavam, em geral, lugares afastados, chamados zona baixa, além disso, elas eram
facilmente identificadas já que se vestiam de maneira diferente, como aponta
FONSECA (2001, p. 8), o artifício, a decoração, o ornamento são associados à
prostituta, aquela que se enfeita para atrair os olhares.
As prostitutas se vestiam de maneira que atraíssem os homens, o que
contribuía também para a sua fácil identificação. Em alguns lugares, elas eram
obrigadas a portarem uma corda de alguma cor diferente do vestido que usa-
vam para que, assim, fossem identificadas e evitadas. Na França, por exemplo,
a corda era de cor vermelha, em outros lugares, a branca, tudo para indicar a
infâmia que essas mulheres viviam.
A vaidade era vista pela Igreja como um pecado tão grave quanto a luxú-
ria e, por isso, as mulheres ditas de bem foram proibidas de usar vestidos com
caudas, como nos informa Fonseca (2011, p. 9):

Com o passar dos anos, o vestuário como símbolo do pecado para as filhas de
Eva passou a proibir as mulheres decentes de usar cauda, por convidar à com-
paração com caudas de animais, tornando-se antes um esconderijo para diabos
do que um sinal de pretensão aristocrática. Tornou-se também proibida a utili-
zação de ouro, uma vez que esse metal era produto da natureza através da trans-
formação e não da criação de Deus. A vaidade era vista como um pecado maior
que a luxúria. Assim as mulheres, por inúmeros argumentos da cristandade,
desacataram as roupas de luxo, devido ao fato de o traje confirmar hierarquia
social parecer menos importante do que a mensagem sexual que ele veiculava.

Como podemos perceber a Igreja, desde a sua institucionalização, passa


a governar até mesmo a vida íntima das pessoas, e as questões sexuais passaram
a ser rigorosamente vigiadas, e o casamento passou a ser usado como um regu-
lador dos prazeres trazidos pelo sexo, não era permitido que a mulher sentisse
prazer no ato sexual e, portanto, o sexo deveria ser usado apenas pra os fins de
procriação, o prazer ficaria a cargo, então, das prostitutas, que tinham como
clientes: clérigos, camponeses, comerciantes, mercadores, soldados que estives-
sem fora de sua cidade de origem e longe de suas famílias, usavam as prostitutas
como sua fonte de prazer, então, graças a isso, houve a municipalização das ca-
sas de má fama, que serviam para que os jovens afirmassem sua masculinidade,
além de prevenir atos que ferissem a moral da sociedade.
Já na transição do século XIX para o século XX, depois da Revolução In-
dustrial, com os avanços tecnológicos, surgem novas questões como a emanci-
pação feminina em relação ao seu corpo. As mulheres, que agora têm o direito
de adentrar no mercado de trabalho, ainda sofrem dificuldades para consegui-

204
rem manter-se. Então, a prostituição acabou sendo uma possibilidade de meio
de sobrevivência para algumas mulheres.
No Brasil, as políticas públicas voltadas para a prostituição mudaram a
partir da década de 1990, incorporando novos elementos, perspectivas e sujei-
tos no debate sobre a prostituição e os direitos das pessoas que exerciam a ativi-
dade (ALVAREZ apud SILVA, 2014, p.19). Atualmente, no Brasil, a prostituição
se torna ilegal no caso de exploração de menores de 18 (dezoito anos) ou em
caso de rufianismo.3

1 Entre mulheres e bebidas se faz a diversão na Refinaria

Para a análise da trajetória de dona Lili, constituímos fontes através da


História Oral. Portanto, primeiramente, recorremos ao uso da metodologia da
História Oral, que nos permite o contato direto com os envolvidos, e, através de
entrevistas, poderemos descrever o passado através da memória.
Dona Maria Lívia G. Pires, popularmente conhecida como Lili, nasceu
no dia dois (02) de janeiro de 1946, na cidade de Crato, município situado no
interior do Estado do Ceará, filha de Maria Helena Silva e Raimundo Galdino
Pires, trabalhadores rurais de vida humilde, não tiveram muitas oportunidades
de estudos, passaram por muitas dificuldades juntos. No ano de 1951, sua mãe
perde um filho e isso acabou gerando um problema psicológico, que na época
foi diagnosticado pelos médicos como loucura, assim, Lili, desde cedo, teve que
assumir a responsabilidade de cuidar do lar.

Eu com 12 anos eu cuidava de uma asa, eu só não fazia di cumé porque o fogão
era a lenha, era alto era a única coisa que eu não fazia era mexer o caldo de angu
e passar o café. As cinco horas da manhã eu tava era numa lagoa pegando água.
A cabaça quebrava eu apanhava, voltava pegava outra maior. Aí eu aprendi a
mergulhar na lagoa e a subir com a cabaça já cheia na cabeça, quando chegava
em casa papai tirava e aí eu e mamãe fazia de comer pra 22 pessoas. Aí mei-dia
me dava angu com rapadura, e me davam três bacia. Botava duas na cabeça pra
mim levar di cumê na roça. Eu só e Deus, com o tempo as coisas foram pioran-
do, e papai falava muito ir simbora (Maria Lívia G. Pires, 2016).

Dois anos depois, sua família parte para o Maranhão, com a esperança
de conseguir uma vida melhor, poucos meses após instalar-se na cidade de Pe-
dreiras, a jovem, com apenas 7 (sete) anos de idade, sofre um atentado, quando,
em um almoço em sua residência, um senhor conhecido da família que sofria
3 Obtenção de lucros através da prostituição alheia (FERREIRA, 2010).

205
de problemas mentais a atacou com uma faca, atingindo a parte inferior da
coxa, no mesmo momento, seu pai reagiu e acabou ceifando a vida do indiví-
duo com uma espingarda. Dona Lili explica que na época seu pai não foi preso,
pois a sua ação foi em legítima defesa.

Eu com cinco anos, minha mãe ficou louca, ela ganhava o mato e nos passava
de cinco seis dias atrás dela, ela botava os cachorro na gente como botava em
caça. Na hora que ela encontrava as pessoa já era perguntando meus fii tão com
fome? num tão porque o fi dela morreram tudo só via eu dende casa4. Ai ela
começava´, fazia as coisas dente casa. Entrava pro quarto se embrulhava aí dizia
mia fia eu já vou. Pra onde mamãe? Ela disse: eu vou buscar os menino. Aí ela
impressionou aí ficou louca [...]. Aí depois quando ela foi ficando melhor a gen-
te veio pra cá pro Maranhão. Aí pouco tempo que quando nos cheguemo aqui
um véi me deu uma facada.[...] Eu tinha sete ano, aí eu escapei. O véi foi quem
morreu papai matou. Dende casa.

Logo mais, no ano de 1957, a senhora Helena Silva vem a falecer e, três
anos mais tarde, seu pai resolve casar-se novamente e é a partir desse momento
que a vida de Lili fica prestes a tomar um novo rumo. Por ter uma péssima rela-
ção com sua madrasta, a jovem resolve fugir com o namorado, que ela refere-se
como marido.5

Aí com 11 anos perdi minha mãe, com 14 anos fugi de casa porque não aguen-
tava minha madrasta. Fui embora com o namorado. Ainda fiquei com ele2 ano
e 9 meses. Aí nos se separamos. O meu marido na época foi quem me prostituiu.
Ele me levou em um lugar véi e me colocou pra trabalhar e ganhar o dinheiro
pra ele. Ele era muito ruim, depois eu fugi dele e fui morar em outra cidade, na
localidade da Lidubina, interior que fica perto de Tuntum6, na casa de uma tia
minha e depois em 1966 que vim pra Caxias (Maria Lívia G. Pires, 2016).

Após o segundo casamento de seu pai, Lili passa a viver com ele e a es-
posa, a convivência entre eles passou a ser marcada por intensas brigas, pois
enteada e madrasta não compartilhavam de bom relacionamento. Então, aos
14 anos de idade, foge de casa com o namorado, por conseguinte, como afirma
4 Segundo relatos de D. Lili, após a falência do primeiro filho de Dona Helena, ela chega a
engravidar novamente, mas perde. Em entrevista, ela afirma não se recordar a temporalida-
de desses ocorridos e se recusa a falar da perda do primeiro irmão.
5 Dona Lili explica que não chegaram a casar-se de fato, a consumarem matrimonio reli-
gioso ou jurídico.
6 Município brasileiro localizado no Estado do Maranhão.

206
Dona Lili, foi por influência do marido que ela entrou para o ramo da prostitui-
ção e, por conta de maus tratos, ela foge e vai morar com a tia.

O meu marido na época foi quem me prostituiu. Ele me levou em um lugar véi e
me colocou pra trabalhar e ganhar o dinheiro pra ele. Mas eu nunca fui assim...
de viver dentro dos brega não. Sempre procurei um lugarzinho pra mim saia a
noite ia pro Zé Branco7. Mas o resto... eu num anadava não. Ele era muito ruim,
meu marido era muito ruim, depois eu fugi dele e aí fui sofrer pelas casa alheias,
numa casa de uma tia minha, irmã da mamãe. Ela morava em outra cidade, na
localidade da Lidubina, interior que fica perto de Tuntum8, na casa de uma tia
minha e depois em 1966 que vim pra Caxias (Maria Lívia G. Pires, 2016).

Logo em 1966, ela chega a Caxias, onde é abrigada por uma amiga cha-
mada Anamélia, que era proprietária de um bar, passaram a trabalhar juntas.

Aí eu fui morar com uma amiga minha a Anamélia, aí dela eu saí e fui morar na
rua da Aroeira, mais meu pai, aí a gente ganhou este terrenim aqui dessa casa,
grande aqui, da que tem essa garagem, quem tem o portão grande, eu ganhei
esses terrenim aqui foi o Aluísio Lobo que deu a gente fez a casinha aqui e fi-
cou morando. Comecei a trabalhar com a dona de um bar e depois comecei a
trabalhar só, e as meninas vieram comigo, montei um bar. Meu pai veio morar
comigo, ganhamos uma terra, o Aluísio Lobo que deu, a gente fez uma casinha
aqui e ficamos morando com esse pedacinho de terra, aqui o bar era de taipa e
só fiz de tijolo depois que me aposentei (Maria Lívia G. Pires, 2016).

Então, o senhor Raimundo separa-se da esposa e passa a conviver com


Dona Lili, ela se arrisca a ser empreendedora e administrar seu próprio negócio
e de prostituta passou a ser a proprietária, que, de acordo com o senhor Meire-
les, construiu seu bar com a ajuda de um de companheiro.

Ela tinha um companheiro, o finado Zé Silva9 ele que era o gastador dela. Assim
que ela chegou aqui conheceu ele, e o bicho véi gostava dela. Ele ajudou ela a
construir o bar dela. Mas ela tinha também um por fora né, esse outro era o que
ela gostava mesmo. Era o preferido dela (Custódio Meireles, 2017).

“Na década de 1960 já era possível notar a existência de pequenos bares


que improvisavam quartos propícios para o exercício da prostituição” (GO-
7 O Zé Branco era um bar que funcionava como cabaré na cidade de Pedreiras.
8 Município brasileiro localizado no Estado do Maranhão.
9 Pseudônimo utilizado para preservação do nome envolvido.

207
MES, 2010, p. 49), o bar da Lili ficava localizado na rua da Faveira, no bairro
Refinaria, e hoje no local se encontra a residência da antiga dona.

Meu bar não era um bordel, era só um bar que eu montei. E lá para dentro tinha
uns quartos e os homens que queria a menina alugava um. Onde primeiro ele
tomava a cerveja e elas levava logo o tira gosto, primeiro eles tinham que con-
sumir, antes de tudo o papel delas era vender as mercadoria do bar (Maria Lívia
G. Pires, 2016).

Para os frequentadores do bar, o local configura-se como um prostíbulo,


mas dona Lili não o considera como tal, mesmo que os mecanismos de funcio-
namento sejam os mesmos. Segundo Barreto (2011 p. 82):

Bordel: casa onde se realiza bailes e se comercializa sexo e bebidas. Ambiente de


sociabilidade masculina e feminina. Moradia de cafetina e de muitas prostitutas
que pagam uma quantia diária que permaneceram na casa tendo espaço para
atenderem os clientes com privacidade.

Mediante a fala da proprietária do estabelecimento, podemos perceber


que ela não se identifica como “cafetina”.10 Em relação à construção da identi-
dade, Hall (2001, p. 13) evidencia:

A identidade plenamente unificada, segura e coerente é uma fantasia.


A identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada
continuamente em relação ás formas pelos quais somos representados
ou interpretados nos sistemas culturais que nos rodeiam.

A construção da identidade se inicia durante o período familiar que é o


primeiro contato com a sociedade a qual o indivíduo está inserido, somando
as várias influências adquiridas durante seu crescimento. A capacidade de sen-
tir-se pertencente a um grupo que compartilha de características em comum é
um elemento da identidade e sua construção e reconstrução dependem da in-
tegração com os outros e do reconhecimento da aceitação da diferença, daquilo
que é o oposto, diverso.
Pressupõe-se que a negação de Dona Lili em afirmar seu estabelecimen-
to como bordel parte da má representação desse espaço na visão “moralista” da
sociedade. Através da fala de Margarida11, uma ex-ajudante que fazia parte do
10 Senhora responsável pela direção do estabelecimento de diversão masculina (MACEDO,
1990, p. 74).
11 Pseudônimo utilizado para preservação do nome envolvido.

208
grupo de meninas que trabalhavam no bar da Lili, evidencia que o local além
da venda de bebidas alcoólicas era utilizado para a comercialização do sexo.

Era apenas uma casa pequena de taipa, com três quartos aqui logo na en-
trada, mais para dentro ficava os freezer, as mesa com cadeira, mais pro
fundo a cozinha e mais dois quartinho e quintal. Lá tinha muita mulher
no bar. As meninas moravam com ela, eram muitas, eram de seis a sete.
Era assim, elas ficava passava a semana e iam embora, tornava voltar, né?
Era assim. Ficava, só tinha umas três que ficava definitivo com ela. Elas
chamavam ela era de mãe Lili. Logo porque elas eram de outros lugar, de
Coelho Neto, dos interior aí assim Antes de morar com ela eu morava
com a minha mãe, eu morava no Ponte. Eu vinha do interior, aí uma
irmã minha morava aqui eu vim estudar. Aí de lá, eu vim pra cá. Morei
pouco tempo com ela, eu descobri que tava grávida e voltei pro ponte.
(Margarida, 2017).12

Dona Lili acolhia as meninas que vinham de outras localidades e até


mesmo da própria cidade, com diversas situações, e elas a chamavam de mãe
Lili. À medida que algumas deixavam o bar, a vaga era preenchida por outras. A
contribuição dessas ajudantes consistia no auxílio das tarefas domésticas, ani-
mar os frequentadores e ajudar a vender, ao final do expediente, a dona do bar
dividia os lucros. E um aspecto presente nas falas de quase todos os entrevista-
dos era a característica de um local simples, mas agitado, o disco mais tocado
na época era o estilo brega, e o mais pedido era Reginaldo Rossi.

Eu me lembro que lá era muito agitado. Andei muito lá, mas era só pra
beber. Tinha muita mulher nova, mas eu não tinha caso com nenhuma
delas não, porque muitas vezes bebia lá e não pagavam. Entonce ela não
gostava (José Veras, 2017).

E a segunda fala que evidencia o interesse pelas mulheres para a prática


da prostituição:

Essse negócio da Lili foi recente assim que eu comecei a beber de 73 por aí
assim. Nesse trecho né.... Rumores tem umas mulheres alí né, tem uma cerveji-
nha, aí começou né, eu tinha uma menina lá que de tanto eu andar por lá atrás
dela, acabei foi virando amigo da Lili.
12 “Margarida”, pseudônimo utilizado para preservação do nome envolvido. Entrevista con-
cedida a Samara Felismino, em 6/04/2017.

209
Na temporalidade analisada, o bairro Refinaria ainda era pouco povoa-
do, nesse local havia poucas casas, as ruas eram sem pavimentação e a ilumina-
ção só chegou na década de 1970, quando um grupo de moradores, incluindo
a Dona Lili, em conjunto, compraram a fiação. Portanto, configura-se em uma
área periférica. O bar estava localizado em uma área estratégica, pois estava
entre a Avenida Central e a Refinaria A. Silva.

Figura 4: Mapa ilustrativo de percurso entre Refinaria e Centro.


Fonte: André Wallace Balica Honorato

O mapa acima ilustra a distância do bairro Refinaria que abriga o bar


da Lili e os demais bares e boates que compõem a zona de baixo meretrício de
Caxias, localizado no Centro da cidade. Toda essa área destacada na cor verde
demonstra o centro da cidade, onde se encontrava reunida a maior parte da
elite caxiense, e a área destacada na cor azul corresponde ao bairro Refinaria,
um espaço que abriga moradores vindos da zona rural que buscam residências
na cidade, e também pessoas que chegavam de várias localidades em busca de
melhores condições de vida, uma parte dos trabalhadores da A. Silva também
residiam no bairro. O estabelecimento de maior destaque da zona de mere-
trício e que ainda se mantinha de pé na temporalidade estudada era a famosa
boate Madrid.

A Boate Madrid foi inaugurada em 1963, mas obteve sua fase áurea nos anos

210
de 1965 a 1974, se tornou mais que um local de divertimento, pois por conta da
Estrada Ferro (sinônimo de modernidade para as sociedades dos séculos XIX e
XX), os trabalhadores quando recebiam seus salários se dirigiam para o bordel.
Que as prostitutas da Boate Madri sempre andavam no “luxo”, e que também a
proprietária Diracy sempre tinha a preocupação de renovar constantemente a
oferta dessas mulheres, pois além de garantir uma clientela cativa e ansiosa por
novidades, o constante intercâmbio das meninas entre os bordéis se configurava
como uma estratégia para mantê-las na moda, evitando, portanto, que a Boate
descesse de seu auge (SILVA, 2014 p. 40-41).

Através da citação acima, percebemos que até mesmo em um local de


luxo, como a Boate Madrid, era frequentado por trabalhadores comuns, que
buscavam diversão na noite caxiense. Ao analisar a fala do senhor Custódio
Meireles que afirma:

Nos trabalhava na refinaria aqui. E aí a gente recebia dia de sábado, e chamava


os outros e dizia: bora alí tomar uma cerveja mar ar garça? (risos) Nos até que
podia ir pra outro lugar, mas eu gostava mermo era lá.

E a fala de Dona Lili complementa:

Tinha dia que os estiva chegava aqui e dizia: Lili, aí tem cerveja gelada? Pode
fechar o bar pra nós que essa cerveja nos paga. E assim era feito, vendia petisco,
as meninas também bebiam. E aqui vinha homem de todo jeito, tinha um co-
merciante considerado um barão aqui dentro Caxias que não saia daqui, e não
era só ele não, tinha até político.

Podemos perceber que não é o local (espaço geográfico) que determina


o tipo de frequentador, mas sim o capital que ele detinha em mãos e estivesse
disposto a pagar. Dona Lili e suas meninas, às vezes, faziam o papel de amigas,
ao escutar as lamúrias de seus clientes bêbados, outras vezes, amantes, satisfa-
zendo os desejos de homens, fossem eles casados ou solteiros, e assim seguiam
diariamente, mas principalmente nos finais de semana. Envolver-se emocio-
nalmente com clientes acabava por vezes acontecendo, existiam complicações,
mas sempre Dona Lili procurava resolver esses problemas da melhor forma
possível.

A Lili sempre teve bom coração. Como ela não tinha filhos, acabou criando o
filho de uma das meninas aqui. Eu nesta época estava grávida, e ela me acolheu,
ajudei ela a cuidar do pai dela e do bar, e quando tive meu filho, demorei pouco,

211
me casei e fui embora. A colega vivia tomando remédio para tirar a criança, mas
a Lili não deixou mais ela tomar e pediu a criança, então na hora que ela pariu,
deu logo pra Lili e foi embora (Margarida, 2017).

De fato, Dona Lili afirma que criou duas crianças como suas. A mais ve-
lha, que se chama Claudia, hoje tem 45 anos, mãe de dois filhos, foi deixada em
suas mãos ainda pequena, pois a mãe não tinha condições de proporcionar boa
educação para a menina; e Ruan, hoje com 40 anos de idade, pai de um filho,
fora a criança deixada para trás, filho de uma de suas meninas. E, em 1980, ago-
ra mãe de família, preocupa-se em apenas cuidar dos filhos e de seu lar. Então,
ela decide fechar o bar. E alguns fatores também influenciaram nessa decisão.
O falecimento de seu pai, em 1975, foi uma grande perda que já come-
çava a deixá-la insegura em manter o negócio e também a questão da violência
na cidade. Algumas de suas ajudantes acabaram deixando o lugar, ela se viu
sozinha e cansada demais para levar o negócio para frente, então, vendeu a casa
ao lado que foi sua primeira posse e também grande parte dos móveis e objetos
que havia no local, assim, fecharam-se as portas do tão animado “Bar da Lili”.

Considerações finais

Percebemos que a prostituição exerce uma função em meio à sociedade,


vista como um mal necessário, já que ela existia para aliviar as tensões causa-
das pelas normas impostas que controlavam as formas de homens e mulheres
se relacionarem, mesmo parecendo controverso, essa prática sendo suporte às
regras moralistas. A prostituição mostra-se sempre renovando as formas de
comercialização do corpo, existindo dos tempos antigos até os dias atuais.
Por existirem na cidade poucos locais destinados ao divertimento, os
espaços de sociabilidade eram limitados, as mulheres ainda controladas pelo
discurso de preservar a moral eram direcionadas a pouca liberdade na escolha
do seu momento de lazer, nem todos os horários e locais de uma cidade são
permitidos a uma moça, “mulher de respeito”, enquanto os homens que dispu-
nham de um pouco mais de liberdade, mas não destituídos do dever de manter
a responsabilidade, e ainda assim manter a honra na forma de virilidade, deve-
riam mostrar sua masculinidade em determinados locais reservados a práticas
comuns a eles. Destacando-se, então, os bares e os cabarés e o alto consumo
de álcool. Jogo, bebidas e mulheres formavam o kit perfeito do homem viril
caxiense.
O bar de Dona Lili mostra-se, primeiramente, como um exemplo de su-

212
peração, tendo em vista a história de vida de sua proprietária. Uma mulher que
juntamente com a família sai de seu local de origem para aventurar-se em um
novo espaço em busca de melhorias de vida, no entanto, passaram por uma
série de situações desagradáveis, até a jovem Lívia fazer parte do ramo da pros-
tituição e, com a venda de seu corpo, atingir o lucro para construir seu próprio
estabelecimento.
Por aproximadamente uma década, funcionou como um importante lo-
cal de sociabilidade masculina no bairro Refinaria, recebia frequentadores de
diferentes grupos sociais e resistiu às novas normas dos códigos de posturas
vigentes na cidade, que proibiam a construção de casas de pau-a-pique, pois a
cidade tentava se tornar moderna. De acordo com a antiga proprietária, o espa-
ço não se caracterizava como um bordel, mas sim como um bar utilizado para o
entretenimento masculino. A diversão no bairro Refinaria tinha nome: “Bar da
Lili”, e ele, até os dias de hoje, desperta emoções para aqueles que o descrevem.

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VERAS, José Entrevista concedida a Samara Fernanda da Silva Felismino em


Abril de 2017.

217
Abolição festejada:
o “Brazil livre” e a comemoração do 13 de
maio em São Luís

Silvan Sousa Mendes

Este artigo é parte dos primeiros resultados da dissertação de mestrado


pelo Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Federal
do Maranhão, que tem por objetivo principal problematizar as festas da abo-
lição em São Luís a partir dos jornais Pacotilha e Diário do Maranhão e dos
requerimentos do presidente da província.
Alguns grupos começaram a ser identificados e catalogados como pro-
motores das festas da abolição que ocorreram em São Luís. São eles o nosso
foco neste artigo, assim como suas principais carcterísticas no modo de come-
morar as festas da abolição em São Luís, Capital da Província do Maranhão.
A Lei 3.353 foi responsável por um momento de grande euforia, diver-
sos grupos sociais se propuseram a festejar e os jornais Pacotilha e Diário do
Maranhão demonstram de que forma eles participavam das comemorações. Os
manuscritos (requerimentos do presidente de província) “objetos diversos da
primeira seção” relatam também a diversidade desses grupos.
A Província do Maranhão da segunda metade século XIX e as relações
escravocratas coexistiam em meio aos intensos debates referentes à manuten-
ção da escravidão, bem como sobre a condição social do escravizado, sua vida,
sua importância como mão de obra para os diversos serviços, os vários confli-
tos em níveis distintos com seus senhores, e as redes de solidariedade constru-
ídas para sobreviverem nesse complexo mundo.
Nesse período, a escravidão passou a ser criticada com mais veemência
devido ao revigoramento das ideias liberais1 no Brasil e do crescimento da cam-
panha abolicionista, alcançado uma parcela considerável da sociedade, forjan-
do, assim, esses liberais debates em torno da continuidade ou não do sistema
escravista.
As pressões externas se relacionavam, entre outros fatores, principal-
mente à Inglaterra, que buscava mercado consumidor e mantinha relações
econômicas com o Brasil, isso aliado à perda de legitimidade da instituição
escravista, às revoltas internas, além da fuga de escravizados que configuraram
um conjunto de fatores para que os parlamentares articulassem novas estraté-
gias para prolongar ao máximo a escravidão, levando em consideração, ainda,
a resistência cotidiana dos escravizados na busca pela liberdade.
Nesse contexto de negociação e conflitos de resistência escrava no Brasil
escravista2, se deu a criação e a promulgação de leis que de certa forma foram
afrouxando o estatuto da escravidão e preconizando o novo status ao negro
escravizado caminhando para o fim do sistema escravista.
Segundo Costa (2008), esse processo ocorreu mais pontualmente entre
1850 e 1888, para ela, as fases são basicamente três, a primeira se refere à proibi-
ção do tráfico de escravos em 1850, a segunda diz respeito à Lei do Ventre Livre
em 1871 e a terceira à Lei Áurea, que trouxe Abolição da Escravidão em 1888.
As leis citadas foram as que causaram maior repercussão na vida dos
escravizados, embora apenas a de 1888 tenha destruído o sistema da escra-
vidão e suas bases, pois, a Lei previa a libertação imediata sem a indenização
dos senhores, assim sendo, não era necessário o escravizado ter que esperar e
trabalhar por mais algum tempo.
Antes da aprovação oficial da lei de 13 de maio de 1888, pulsava na po-
pulação engajada na luta contra escravidão o desejo de comemorar o que certa-
mente significava para cada grupo ou sujeito um momento importante, em que
seus anseios teriam sido contemplados através da referida lei, embora alguns
desses grupos estivessem de lados opostos durante o período que vigorou a
escravidão no Brasil, nesse momento de ruptura, todos queriam parecer que
1 O liberalismo tem como princípio a liberdade do ser humano. Pode ser considerada uma
teoria tanto política como social, que defende os valores individuais da liberdade e da igual-
dade, assim sendo, todos os indivíduos têm direitos humanos inatos.
2 REIS, João José, e SILVA Eduardo. Negociações e conflitos: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

220
eram a favor da causa ou, talvez, pelo menos simpatizantes dela.
As festas da abolição não servem necessariamente para exprimirem um
desejo de comemorar, como podem ter, também, a função de demarcarem as-
pectos de grupos diversificados, entre eles, a identidade, pois era um momento
em que muitos deles se propunham a participar e fazer acontecer a festa, além
de fazerem parte dela, destacando aquilo que tinha de mais característico em
seus respectivos grupos.

1 Festas, cultura e identidade

A festa como um momento de “expressão de múltiplas vontades, com


várias direções e possibilidades de escolha3” permite analisá-la como algo além
de confraternizar-se e festejar em seu sentido unívoco.
Nesse sentido, ainda, Davis (1990) ressalta que essas comemorações pos-
sibilitam tanto a formação de identidades como a reivindicação de espaços e
de direitos, levando em consideração também o partilhar de valores e níveis
diversos de crítica social. As análises das festas, sejam motivadas pelo 13 de
Maio de 1888 ou não, estão intimamente ligadas à cultura, uma vez que ela é
um dos aspectos.
Refletir sobre cultura é trazer alguns conceitos diferenciados que per-
mitem a compreensão da inserção de grupos em espaços sociais diversos, bem
como a formação, reivindicação ou manutenção de identidades.
O conceito de cultura é objeto de vários debates causando divergências
teóricas, a exemplo, podemos citar Chartier (1996), que faz criticas a Darton
(1986), entre elas, que “o espírito francês existe”, sans doute, mas certamente
não é como uma entidade que permanece há séculos. O simbólico assumiria
relevância estrutural para interpretar elementos e formas de organização cultu-
ral de uma sociedade.
Apesar de reconhecer as contribuições da antropologia cultural às pes-
quisas históricas, Chartier não deixa de estabelecer críticas a Darton, que está
fundamentado em Geertz (1973), em que cultura seria: “Um padrão de sig-
nificados transmitidos, incorporados em símbolos, um sistema de conceitos
herdados expressos em forma simbólica por meio dos quais os homens co-
municam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento sobre as atitudes em
relações à vida.”
Há, portanto, uma supervalorização do elemento simbólico nas relações

3 THOMSPON, E.P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 366.

221
sociais, pois o sentido de cultura foi utilizado tal qual elaborado por Geertz
(2008), para ele, o “homem é um animal amarrado a teias de significados que
ele mesmo teceu”, por outro lado, Darton (1986) também faz críticas aos his-
toriadores das mentalidades, segundo ele, os objetos culturais não devem ser
tratados como seriais da história econômica.
Outra reflexão de extrema relevância seria a de Kuper (2002), em que
ele aponta alguns cuidados que devemos ter ao conceituar cultura e ainda faz
críticas aos autores que tratam da antropologia americana, entre eles Geertz.
A Cultura para Kuper perde um potencial explicativo e também analí-
tico por estar em todos os lugares. Em seu estudo, ocupa-se em fazer uma ge-
nealogia do conceito em favor de uma antropologia sociológica e comparativa.
Assim sendo, podemos perceber o alerta em que o conceito de cultura pela via
antropológica nos é válido e necessário, porém, devemos levar em considera-
ção seus limites e possibilidades de uso.
A cultura, por outro ângulo de interpretação, pode assumir o viés racial,
em que o sexo seria fundamental para a mistura. Nesse sentido, Young (2002)
analisa as relações humanas e suas complexidades étnicas, relacionando a raça
e o sexo.
Cultura, para Burke (2010), seria, ainda, tudo que o homem foi e é capaz
de produzir, sejam formas simbólicas, expressas ou encarnadas em sistemas de
significados e atitudes, valores que são partilhados, até mesmo objetos artesa-
nais, ou seja, tudo que o ser humano produz é cultura. Podemos identificar que
os conceitos de cultura e as suas interpretações nos apresentam a necessidade
de cautela, pois, por vezes, torna-se tão ampliado que a torna tudo e nada ao
mesmo tempo.
Achar um ponto de equilíbrio e saber fazer uso adequado tomando em-
prestado o conceito, como os da antropologia, por exemplo, é tarefa que exige
um grau de sofisticação maior no trabalho do historiador.
Embora sejamos atentos à necessidade de conceituar, é preciso ir além,
é de fundamental relevância pautar o lugar que a cultura ocupa e de que forma
ela é operacionalizada e sentida nos indivíduos, sua repercussão nas práticas
cotidianas, suas características mais marcantes nas festas e aspectos identitá-
rios que estão embutidos nela. Todos esses autores nos embasam para essas
discussões à medida que problematizam justamente os aspetos citados, além
do próprio conceito.
Dessa forma, a identidade é um componente da discussão de festas e
cultura, pois está permeada na sociedade e tem relação íntima com esses dois

222
aspectos abordados. Na festa, é possível perceber a celebração de identidades,
como afirma Guarinello (2001), porém, ao passo que esse celebrar ocorre,
também é possível apontar diferenças, afinal, a festa, afirma Abreu (1999), não
toma dos seus participantes, mesmo que estejam atrelados aos grupos diversos.
Os seus valores, que vem sendo moldados ao logo do tempo por heranças cul-
turais e históricas.
Todas essas questões relativas às festas, à cultura e às identidades nos
permitem identificar no 13 de Maio um conjunto de fatores que podem ser
objeto de análise, exemplos disso são os diversos grupos que se propõem a
participar da festa à medida que reforçam suas identidades e ao mesmo tempo
suas diferenças, podendo conflitarem em alguns casos, pois a cultura não é a
mesma dentro de cada grupo.
Assim sendo, são adotadas ideologias a serem defendidas, e esses mes-
mos grupos estão passando por constantes processos identitários, quando, ao
passo em que há um choque cultural e identitário, trocam valores e costumes
influenciando e sendo influenciados. Em São Luís, podemos identificar um nú-
mero significativo de festas e grupos que se propunham organizá-las por oca-
sião da abolição da escravidão no Brasil.

2 O 13 de maio de 1888, na capital da província

A Cidade de São Luís, assim como outras capitais do império, aguardava


a aprovação da lei com grande expectativa, dias antes da promulgação já se
podia verificar em alguns jornais senhores libertando seus escravos, e, ainda,
alguns requerimentos e petições para que se iluminassem prédios e ruas desta-
cadas, além de reservas como, por exemplo, a do teatro São Luiz para realização
de solenidades. O que fica nítido é que cotidiano da cidade é interferido pelas
notícias da aprovação e promulgação da lei que extinguia a escravidão no Bra-
sil.
O ano de 1888 marcou a história do Brasil tanto quanto a história da
escravidão e os processos que culminaram na Abolição. Isso significou não
apenas novos desenhos na política ou na economia do país, os cenários so-
friam alterações consideráveis, em que sujeitos e conflitos emergem na nova
configuração social.

O fim da escravidão veio por meio de uma lei assinada em 13 de maio de 1888.
Ao contrário das leis anteriores a de 1888, que geraram inúmeras discussões
que prolongaram suas aprovações, a do 13 de maio foi breve e curta em todos

223
os sentidos. A curta lei foi aprovada num reduzido espaço de tempo tanto por
deputados quanto por Senadores (MORAES, 2010, p. 3).

É de fundamental relevância ressaltar que o processo de aprovação da


Lei da Abolição foi diferenciado dos demais, se levarmos em consideração ou-
tros contextos de amplos e demorados debates sobre as leis anteriores que ti-
nham como foco a escravidão e as possibilidades de sua extinção.
As leis anteriores a de 13 de Maio de 1888 não podem, porém, ser re-
legadas, pois contribuíram de certa forma para o afrouxamento do sistema
escravista, cada lei, à sua forma, corroía as bases dele, com maior ou menor
intensidade. Todos os processos de aprovação de leis anteriores culminaram na
conhecida Lei Áurea, junto às motivações externas e internas.
Essa Lei teve repercussões diretas na estrutura social, política e econô-
mica, sujeitos antes escravizados passaram a circular como livres, a monarquia
apontava para sinais de sua decadência, e a economia necessitava readequar-se
às novas condições que lhes eram impostas, por exemplo, ter que utilizar mão
de obra diferente daquela que estavam acostumados, a dos sujeitos escraviza-
dos.
Renata Figueiredo, em sua tese de doutorado intitulada: As festas da
abolição: o 13 de Maio e seus significados no Rio de Janeiro (1888-1908), foca
nos diferentes significados produzidos pelos grupos sociais em torno da Lei,
chamando atenção para um olhar mais apurado, a participação de diferentes
sujeitos e grupos.

A abolição foi festejada não apenas pelos ex-escravos nos seus antigos locais de
escravidão, mas por todos os que viam na lei o surgimento de um novo tempo.
Participar da festa, seja testemunhando um evento promovido pela imprensa ou
doando uma quantia para compra da pena, foi uma das formas vividas por dife-
rentes grupos de trabalhadores para celebrar a abolição (MORAES, 2012, p. 20).

O que se pretende, a partir de então, é identificar os grupos sociais que


se organizam de diversas formas, e mais comumente em clubes, propõem-se a
participar das festas e comemorações e, ao mesmo tempo, fazem-se perceber
pelos outros grupos, que também se propõem a participar na cidade de São
Luís, capital da Província do Maranhão.
Essa proposta em torno da análise das festas da Abolição e aprovação da
Lei que tornava extinta a escravidão no Brasil está em concordância com o con-
ceito de festa cunhado por Thompson (1998, p. 17), em que ele apresenta como

224
“forma ritual de expressão de hostilidades entre seus participantes através da
zombaria. Através de uma festa pública eles se organizam assim seus laços de
solenidade e diferença, fazendo da festa um canal de comunicação e embate
social.” Entendendo essas festas da Abolição pelas ruas da São Luís como uma
variável da cultura política.4
A documentação privilegiada para a construção desta escrita nos per-
mite a identificação de elementos que compõe a festa e a partir deles é possível
refletir acerca dos sujeitos, e grupos. Através deles foi possível pontuar os ele-
mentos da identidade de cada grupo que estava presente na festa da Abolição,
seja como mera convenção social ou porque de fato tem satisfação em come-
morar o 13 de maio de 1888.
Na 1° sessão do parlamento de 11 de maio de 1888, no livro Objetos di-
versos, localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM), quatro
alunos do Liceu maranhense são citados como promotores de uma seção sole-
ne na noite do dia em que passa no senado a Lei da extinção da escravidão no
império, assim sendo, solicita o Dr. José Moreira Alves da Silva, então presidente
da província do Maranhão, que o diretor da Casa dos Educados e Artífices dis-
ponibilize a banda de música da escola para estar nessa seção que será realizada
no teatro São Luiz.
Ainda no livro de Objetos diversos, é possível constatar que no dia 17 de
maio de 1888 foi expedida a ordem do Dr. José Moreira Alves da Silva para que
a banda de música dos Educandos Artífices se fizesse presente às 7 horas da
noite, na loja maçônica da Santa Cruz, por ocasião dos festejos que ali se have-
ria de fazer em homenagem à abolição da escravidão no Brasil.
Essas documentações contêm um número considerável de requerimen-
tos para que a banda de música dos Educandos Artífices fosse participar de
festas e comemorações por ocasião da passagem da Lei que aprovou a abolição
da escravidão no Brasil, é possível analisar não apenas o dia 13 de maio de 1888,
como também os dias que o antecedem e aqueles que se passam após a aboli-
ção, dada a repercussão desse movimento histórico.

4 Conforme Ângela de Castro Gomes, o conceito de cultura política torna-se uma ferra-
menta importante para os historiadores porque permite análises e interpretações sobre o
comportamento político de atores individuais e coletivos. Além disso, essa categoria chama
para a cena histórica o movimento de ideias e ações tanto dos grupos dominantes quanto
dos grupos dominados, privilegiando as suas percepções políticas, suas vivências e lógi-
cas cognitivas. Cf: GOMES, Ângela de Castro. “História, historiografia e cultura política
no Brasil: algumas reflexões”. IN: (orgs) SOIHET, Raquel; BICALHO, Maria Fernanda B. e
GOUVÊA, Maria de Fátima S. Culturas políticas: Ensaios de história cultural, história polí-
tica e ensino de história. Rio de Janeiro: FAPERJ/MAUAD, 2005. p. 21-44

225
Os jornais também se ocuparam em noticiar esse movimento histórico,
pois não apenas no cenário local como em todo Brasil se noticiava a nova lei
que seria responsável não apenas pelas mudanças na forma do trabalho como
também na estrutura social, política e econômica. O jornal Pacotilha noticiou
o acontecimento.
Através desse periódico, o Club Artístico Abolicionista Maranhense5
chama seus componentes divididos por freguesias para as assembleias, para
organizarem as festas em comemoração à referida Lei, com organização de pas-
seatas. Além disso, artigos eram publicados com o título: Transformação do
trabalho, em que era exposta a opinião do autor sobre as mudanças causadas
a partir da aprovação da lei. Os moradores publicavam sua participação nas
comemorações através de passeatas em suas ruas.
Os diversos diretores e professores dos Collegios davam sueto de três dias
aos seus alunos em regozijo pela Lei que denominavam do elemento servil. Vá-
rios setores da sociedade civil se comprometem em demonstrar satisfação pela
abolição da escravidão no Brasil, são realizadas reuniões, festas, iluminações de
prédios públicos, missas, festejos por toda cidade.
O Diário do Maranhão também noticiou a respeito da Lei de 13 de Maio
de 1888 com a mesma intensidade do jornal Pacotilha, porém, no Diário é pos-
sível perceber alguns muitos senhores de escravos concedendo logo a liberda-
de, talvez buscando antecipar-se ao acontecimento que não mais tardava em
acontecer.
Textos com título Cartas de liberdade anunciavam o nome do senhor e
do cativo libertado, algumas poucas informações sobre o ex-cativo, como ida-
de, por exemplo, sempre enaltecendo aquele que concedia a liberdade como
caridoso, mesmo que a abolição fosse já fato iminente.

A exma. sra. d. Izabel Encarnação Pinto Guimarães restituiu á liberdade sem


onus algum, em 14 de fevereiro do ultimo, a escravisada Raimunda, de 27 annos
de idade e desistiu do direito do serviço do ingênuo Arnalpho, filho da mesma.
- O Sr. José Simão Martins libertou incondicionalmente 6 escravos que possuía.-
A exma. sra. d. Clotilde de Fonseca Pinto restituiu a liberdade sem onus algum,
em 1 do corrente, suas escravas Clementina e Isabel, a primeira de 35 annos e
segunda de 19. – O Sr. Eduardo da Fonseca Pinto deu liberdade a 3 do corrente,
sem onus ou condição alguma, á seus escravos Raphael de 22 annos de idade, e
José de 42 (Pacotilha, 11 de maio de 188, Edição 00130).
5 Um dos notórios grupos comprometidos com a causa abolicionista e que também organi-
zava comemorações por conta da abolição, noticiado diversas vezes nos jornais e presente
também nos manuscritos.

226
Os textos, geralmente, são bem pequenos e têm quase sempre a mesma
estrutura. A senhora Clotilde e o senhor Eduardo possuem sobrenomes idênti-
cos, além de dona Izabel que também possui “Pinto” no sobrenome, indicando
que possivelmente fossem parentes. Eventualmente, é possível encontrar pes-
soas com mesmo sobrenome libertando números variáveis de escravizados de
idades alternadas.
As libertações ocupavam pequenos espaços nos jornais, em que também
diversos grupos convidavam seus membros e comissões a se reunirem para ce-
lebrarem com festas e comemorações quando fosse aprovada, definitivamente,
a Lei Áurea.

Manifestação dos estudantes do Lyceu - A comissão encarregada pelos estudan-


tes para festeja a abolição total dos escravos no Brazil, resolveu adiar os mesmo
festejos para quando for approvada pelos disctintosmebros do Senado Brazilei-
ro e estiver saccionada a lei.(Diario do Maranhão, 11 de maio de 1888, edição
4404).

Essas festas se apresentam como uma das faces do movimento aboli-


cionista e dos festejos que ocorreram nas ruas de São Luís. Por meio dessas
manifestações, é possível perceber os grupos diversos que participaram das
homenagens ao fim do elemento servil no Brasil, de que forma se aparecem na
documentação e como de alguma maneira tentam afirmar-se enquanto grupos.
Os envolvidos nesse festejar da abolição que começam a aparecer na do-
cumentação são geralmente os grupos que já atuam na sociedade e, de certa
forma, já estão familiarizados a expor suas atividades nos jornais, a exemplo,
pode-se citar os grupos de cunho religioso que sempre aparecem informando
os locais e as datas que serão realizados, assim também o fazem na festa da
abolição.
O Dr. José Moreira Alves da Silva, presidente da Província do Maranhão,
solicita através de ofício que o diretor da Casa dos Educados e Artífices dispo-
nibilize a banda de música da escola para estar nessa sessão que será realizada
no teatro São Luiz, isso revela que não foram apenas os estudantes do Liceu que
estavam inseridos nas festas e comemorações.
Outros grupos, além dos estudantes, também aparecem nos jornais, as-
sim como nos manuscritos de requerimento, pedindo concessão de locais pú-
blicos. O Club Artístico Abolicionista Maranhense chama seus componentes
divididos por freguesias para as assembleias, para organizarem as festas em

227
comemoração à referida Lei, além de organizarem passeatas. Ademais, artigos
eram publicados com o título: Transformação do trabalho, em que era exposta
a opinião do autor sobre as mudanças causadas a partir da aprovação da Lei.
Os moradores publicavam sua participação nas comemorações através
de passeatas, em suas ruas. Os diversos diretores e professores dos colégios da-
vam sueto de três dias aos seus alunos em regozijo por ocasião da aprovação da
lei que extinguia o elemento servil como mão de obra escrava. Vários setores
da sociedade civil se comprometem em demonstrar satisfação pela abolição
da escravidão no Brasil, são realizadas reuniões, festas, iluminações de prédios
públicos, missas, festejos por toda cidade.
Nesse contexto, a cidade de São Luís, assim como outras cidades do país,
passava a regozijar a aprovação da Lei de 13 de Maio de 1888, como se sempre
fosse unânime entre a sociedade civil a necessidade da abolição da escravidão,
mas, como bem se sabe, foi um processo longo que contou ainda com outras
leis que desembocaram na referida Lei, que dá origem a esse conjunto de ma-
nifestações.

Considerações finais

Todas essas festas apontam para algumas necessidades, entre elas, a de


dimensionar o que motivava esses grupos a realizarem tal comemoração, a fim
de um olhar mais atento em que as lentes6 estejam muito bem ajustadas e sejam
capazes de uma aproximação não apenas do que está sendo vivenciado pelos
sujeitos e grupos, mas o que está nas entrelinhas dos acontecimentos.
As festas servem como suporte para a compreensão de sujeitos, grupos,
concepções a respeito do motivo festejado, são janelas7 nas quais conseguimos
apreender diversos fatores relevantes de modo a refletir não só a respeito delas,
mas, sobretudo, o que as envolve, tanto o que pode ser percebido num primei-
ro momento, quanto o que só poder ser percebido e apreendido pelo fruto de
análises criteriosas e correlações estabelecidas pelos sujeitos e grupos.
No caso das festas da Abolição, é interessante, em um primeiro momen-
to, identificar esses grupos sociais de diversas ordens, e como eles se propu-
nham a realizar as festas, dessa forma, podemos analisar a identidade dos gru-
pos e a construção de novas concepções em torno do que foi a escravidão e de
6 THOMSPON, E.P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. e
GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como antropólogo: Uma analogia e as suas implicações.
IN: Idem. A Micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991.
7 ABREU, Martha. Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro,
1830-1900. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1999.

228
como se representavam a partir dessa nova tradição, que ser contra escravidão
ou possuir escravos poderia significar estar fora dos padrões restabelecidos
para a sociedade no pós-abolição, além disso, as identidades são reafirmadas
enquanto grupo ativo.
O que se compreende por aspectos sociais que exprimem de alguma ma-
neira a identidade desses grupos é exatamente a forma pela qual eles se pro-
põem a comemorar esse tão grande evento, a exemplo, os grupos religiosos
realizavam missas, os estudantes do Lyceu realizavam sessões solenes, a banda
de música da Escola dos Educandos e Artífices tocavam, o comércio se sacrifi-
cava fechando as portas, tudo em prol de uma comemoração que, na verdade,
significava também uma forma de mostrar-se não adepto, mas simpatizante da
causa e, ao mesmo tempo, fazia aparecer sua identidade no meio social em que
atuava.
Os sujeitos que compunham os grupos sociais possivelmente participa-
vam de um ou múltiplos grupos, pois os estudantes ou os comerciantes pode-
riam perfeitamente ser frequentadores do grupo religioso ou vice-versa, assim,
as identidades eram múltiplas tanto quanto cada grupo, sendo que uma não
necessariamente excluía a outra.
Identificar esses grupos e as formas como se organizaram para partici-
par das festas abre caminhos para outras análises mais aprofundadas a respeito
não apenas da festa da abolição, como também de uma nova conjuntura que
se erguia politicamente, economicamente e socialmente e seus novos conflitos.

Referências

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Parte iii
Representações,
cultura e narrativas
Homem, gibão & crina:
fragmentos de histórias contadas e ouvidas de
vaqueiros no sertão caxiense (1960-1980)

Auriele Pereira dos Reis


Benilton Torres de Lacerda

O presente trabalho traça linhas e estudos a respeito das práticas cul-


turais dos vaqueiros no sertão caxiense no Maranhão, mais especificamente
em 6 (seis) povoados do 2º (segundo) Distrito de Caxias, sendo eles: Povoado
Barro Vermelho, Santo Antônio, Cumbuquinha, Redenção, Almeida e Ininga.
O recorte temporal é de 1960 a 1980, pela ótica de que a ação e experiência do
homem, nas mais diversas temporalidades, acontecem em determinadas áreas
e espaços por ele escolhidos como seu habitat ou local de morada, pois dentro
da história humana e de seus afazeres nada acontece sem estar ligado a um
tempo de duração cronológica e a um lugar específico.
Destarte, entende-se que há necessidade de trazer, à luz do presente estu-
do, que prioriza o espaço sertanejo, no qual os vaqueiros estão imersos, onde se
vê que eles têm muito a contribuir com suas informações e saberes a respeito de
suas práticas campeiras no Segundo Distrito de Caxias-MA. Colaborando, as-
sim, para romper com o silêncio historiográfico, colaborando voluntariamente
ou não, tendo o vaqueiro como o grande representante das áreas que se conhe-
cem como sertão nordestino.
Deve-se pontuar que este estudo emergiu a partir da percepção da quase
ausência ou carência de pesquisas no Maranhão voltadas para esse tema que
tem como objeto de pesquisa a figura do vaqueiro, sobretudo quando nos re-
ferimos aos estudos do vaqueiro na cidade de Caxias-MA. Nesse aspecto, é
importante considerar que tal personagem teve, desde o período colonial bra-
sileiro, papel de grande importância para a construção histórico-social do Ma-
ranhão, incluindo-se, aí, a fundação de Caxias e isso se deve a estarem entre os
desbravadores dos sertões nordestinos.
Outra razão, considerada para a temática, surge dos traços culturais ca-
racterísticos criados e adotados pelos vaqueiros nas atividades do seu dia a dia,
sua indumentária encouraçada, o trato com o animal de montaria, o hábito
alimentar e pelo modo de falar, ou seja, a sua linguagem característica denota
filamentos de uma cultura regional específica, formando um conjunto constru-
ído culturalmente, peculiar, tornando-se atrativa para um estudo historiográ-
fico. Assim sendo, entende-se que os vaqueiros têm muito a contar sobre suas
práticas culturais, quanto a serem habitantes do sertão caxiense.
Pressupõe-se que exista em razão da natureza lacunar da história e pela
produção escritual insipiente da historiografia concernente ao objeto aqui es-
tudado, pressupõe-se a necessidade de escrever sobre as práticas culturais dos
vaqueiros em Caxias-MA, pois ocupam um papel fundamental na história do
Maranhão, sustentados pelo fato de que sem o vaqueiro não existiria, de forma
alguma, “fazendas colonizadoras” que se constituíram como agrupamentos so-
ciais, vilas e cidades nos sertões maranhenses.
A problemática norteadora deste trabalho gira em torno de entender
como se constituíram vaqueiro e lugar, lugar e vaqueiro, a partir de suas práti-
cas culturais com o território. Considerando que o vaqueiro assume um papel
importante na construção social e histórica do que se conhece sobre o sertão,
onde tem sua presença fincada na literatura, na música, entre outras áreas da
produção intelectual e artística. Com isso, objetiva-se identificar aspectos cul-
turais construídos a partir de suas práticas ao campear o 2ª (Segundo) Distrito
de Caxias-MA, buscando entender as práticas laborais campeiras para a for-
mação identitária singular do vaqueiro e compreender como ele se significa e
identifica-se com o território a partir de suas práticas.
Destaca-se que autores como Euclides da Cunha (2015) enfatizam, com
bastante positividade, a figura desse emblemático ser que desperta olhares por
onde passa. Para compreender a emblematicidade desse ser e do seu ofício, ana-
lisaremos através da memória desses sujeitos os feitios culturais construídos a

238
partir de suas práticas cotidianas, contribuindo, desse modo, para materializar
a imagem do vaqueiro existente em 6 (seis) povoados do sertão caxiense. Per-
cebendo, assim, as habilidades e capacidades de se inserirem e agruparem nas
transformações e percepções de espaço através de suas práticas culturais.
O estudo se torna relevante no sentido de que busca fixar-se no seio da
historiografia a figura do vaqueiro em suas diferentes práticas culturais e cons-
truir a escrita da história elencando novos sujeitos e possibilidades, visto que
ela permite caminhar pelas mais variadas veredas e linhas que possam existir.
Contribuindo também para conhecer o sertão caxiense e os sujeitos que o com-
põem, pois se entende que o vaqueiro tem papel importante na formação cultu-
ral do povo caxiense. Visto que, ao percorrer as áreas sertânicas de Caxias, em
busca das memórias desse sujeito, tende a contribuir para a história local. Uma
vez que se torna de grande relevância também materializar, através da pesqui-
sa e da escrita historiográfica, fragmentos, interstícios, cacos de experiência a
respeito do vaqueiro, através de suas memórias e lembranças dizíveis ou não.
Ao abraçar o ofício escriturante, no qual o aprendizado desenvolve-se,
cotidianamente e diuturnamente em leituras, no convívio e na observação dos
que já trilharam e caminharam cientificamente no mundo da pesquisa e seus
fazeres, é necessário abraçar uma fundamentação teórica capaz de esmiuçar,
escarafunchar, um quadro superficialmente aparente para que, posteriormen-
te, com luminosidade teórica, tenhamos a possibilidade de laborar e unificar
os escritos e tradições. O artigo está organizado por etapas, sendo o primeiro
momento o de levantamento de referências bibliográficas, buscando autores
que abordam os conceitos essenciais que possibilitam o suporte teórico para a
pesquisa.
A fundamentação base para o trabalho está alicerçada na história cultu-
ral, especialmente. Barros (2013) conceitua a história cultural como um campo
historiográfico que se torna mais preciso e evidente a partir das últimas dé-
cadas do século XX (vinte), mas que é particularmente antecedente ao início
desse século. Ela é rica no sentido de apresentar pontualidades na perspecti-
va de enfatizar conceitos memoráveis, que acabam pondo a escrita da história
em um lugar imensurável. Não obstante à eminência encontrada na história
cultural, traz para incremento e complementação o arcabouço conceitual de
outros autores que abordam elementos acrescentando à história cultural, tais
como: Pesavento (2008) e Chartier (1990) que, ao falarem de história cultural,
abordam questões ligadas à representação, bem como ajudam a compreender
as percepções ligadas ao mundo do vaqueiro.

239
Para a tessitura deste trabalho, foi preciso utilizar conceitos que abordam
o sertão e seus diferentes aspectos que fizeram entender a figura representativa
do vaqueiro na formação do Brasil, bem como ele foi, durante muito tempo,
configurando-se na história, tanto em nível de Brasil quanto de Maranhão. Au-
tores utilizados foram: Abreu (2010), Muniz (2011), Carvalho (2011), essen-
ciais para o direcionamento e apoio teórico à escrita, levando em consideração
o recorte espacial proposto nos objetivos-bases.
Na premissa de entender a memória desses sujeitos, difunde-se, ainda,
o que venha a ser a memória, a partir de Jacques Le Goff (2003), em História e
Memória, pois retrata sua importância, já que dá os nortes para a construção
da identidade que apresenta o ser como ele tende a ser. Ademais, quanto ao que
diz respeito à preservação das informações pelo passar da linha do tempo e es-
paço. Debruça-se também sobre os conceitos de Nora (1981), Catroga (2001).
Pois a memória é aqui compreendida como essencial para tecer, compor e re-
compor as práticas culturais dos sujeitos da pesquisa, ao passo que na medida
em que vão memorando, rememorando, seus feitos se instalam não somente na
memória individual, mas também coletiva, empregada pelo teórico Halbwachs
(2004).
Na assertiva de compreensão das memórias das práticas culturais dos
vaqueiros, utilizou-se o campo da história oral, parte formidável desta pes-
quisa, visto que, de acordo com Lucília de Almeida Neves Delgado (2010), “a
história oral é um procedimento metodológico que busca, pela construção de
fontes e documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas,
testemunhos, versões sobre a história em suas múltiplas dimensões: factuais,
temporais, espaciais, conflituosas, consensuais”. Para tanto, faz-se uso dos con-
ceitos de Thompson (1992) e Portelli (2016), uma vez que a história oral conce-
bida como metodologia ou técnica atuou como umas das principais fontes de
compreensão de como se configurou o vaqueiro no espaço de pesquisa, pois,
acredita-se que é por meio dela que se pode perceber que a memória coletiva
institui a memória social e cultural, com isso, as histórias narradas pelos indi-
víduos serão importantes, porque constroem o sentimento de pertencimento e
a identidade.
É cabível ainda mencionar que este artigo foi efetivado por intermédio
de uma seleção de textos referentes à temática. Destacam-se os livros que abor-
dam a história dos vaqueiros em outros estados, textos literários, artigos e dis-
sertações, assim como o próprio sertão.
Assim sendo, entende-se que este trabalho atua na premissa de levar a

240
todas e a todos o despertar para a compreensão do quanto é de suma relevân-
cia tecer estudos a respeito do sertão maranhense, em especial caxiense, tendo
como sujeito desse espaço o vaqueiro.

1 Veredas e chapadões: galopes de vaqueiros tracejando trilhas e linhas em


espaços sertânicos no Brasil

A formação e a ocupação do Brasil, de acordo com o que nos aponta os


registros históricos e estudos historiográficos de vários pesquisadores e inter-
pretes, iniciam-se a partir do século XVI. Tendo como base o conjunto docu-
mental encontrado nos mais variados acervos por esses renomados estudiosos
da História do Brasil, é perceptível, a priori, que não havia interesses por parte
da Coroa Portuguesa em ocupar o território então conhecido, mas por ques-
tões de ordem econômica e relações de poder, no contexto da política mercan-
tilista europeia, em razão das disputas entre os países que desejavam dominar
novas rotas marítimas e dominar o Novo Mundo. A terra edenizada no início,
conhecida atualmente como Brasil, passou a ser formada e, sistematicamente,
ocupada por diversos grupos oriundos da Europa e também aqueles advindos
da África em virtude do tráfico negreiro, para que, assim, fosse possível a intro-
dução e a manutenção da escravidão no país:

O Brasil estivera entregue a degredados, a desertores, a traficantes da madeira


que lhe deram o nome. Seu povoamento fora descurado inteiramente, embora
Diogo de Gouvêa e Cristóvão Jaques apontassem, como meio único de impedir
as incessantes incursões francesas, a fundação de povoações e fortalezas, que
não deixassem carga para as naus de contrabandistas. Com o ano de 1535 se
iniciou um movimento capital, que ainda hoje continua. (ABREU, 2010, p. 175).

É inequívoca nesse processo de formação territorial e ocupação do es-


paço brasileiro, a participação dos vaqueiros que, ao tocarem o gado extensiva-
mente, abriam mata para dentro do país. Vale ressaltar que, de início, o gado in-
troduzido no país não tinha por finalidade ser uma fonte ou matriz econômica
ou, ainda, instrumento de povoamento da nova terra, posto que, sua inserção
se devera, prioritariamente, como força motriz dos engenhos da cana-de-açú-
car e também para o consumo da carne e derivados pelas famílias que habita-
vam essas propriedades, bem como a utilização de transporte de tração animal:

A expansão açucareira foi um dos fatores responsáveis pela implantação da pe-

241
cuária que tinha múltipla finalidade nos engenhos de açúcar. Servia o boi como
meio de transporte, força motriz e fonte alimentícia, enquanto o couro era ainda
utilizado na fabricação de objetos domésticos. (CABRAL, 1992, p. 101).

Devido ao aumento do rebanho e as consequências advindas, como por


exemplo, a compartimentação dos solos onde se plantavam a cana-de-açúcar,
o gado foi sendo proibido de localizar-se próximo às áreas de monocultura e,
a partir de então, passou a ser disperso pelo território. Os problemas causados
pelo gado, em razão do seu rápido crescimento, não permitiram sua extinção
no país, visto que os habitantes entenderam, logo de início, sua importância,
mas forçou os criadores e seus vaqueiros a se deslocarem cada vez mais rumo a
uma direção distante do litoral, adentrando, assim, o interior do continente. Os
vaqueiros, ao conduzirem o gado na busca de boas pastagens, onde poderiam
praticar sua atividade de pecuária, acabaram por abrir caminhos, e os espaços
antes desconhecidos foram sendo desbravados por esses pioneiros (CABRAL,
1992).
Segundo Abreu (1998, p. 140): “A criação de gado teve um efeito, que
repercutiu longamente. Graças a ela foi possível descobrir minas”. Isso reforça
a tese aqui defendida e referendada por uma ampla gama de autores do campo
da historiografia brasileira, os quais atestam que o gado foi fundamental para
o povoamento e constituição territorial do Brasil, sobretudo no que tange às
áreas mais ao continente.
É relevante considerar que dentro do contexto de entendimento e signi-
ficância que vislumbra a busca pela ideia do que venha constituir a termino-
logia sertão e no intuito de descrever o vasto espaço ocupado por esse termo
na literatura especializada, considerando a possibilidade de haver vários signi-
ficados, verifica-se a existência, em diferentes autores e obras, os quais deno-
minam diversamente o termo sertão, daí a necessidade de compreender o que
realmente venha a constituir um conceito de espaço sertanejo (do sertão) que
se formou no Brasil.
Isso é importante, como já salientado, existem conceitos de sertão dife-
renciados, ao passo que, o termo pode referir-se ao espaço físico, sinônimo de
território, ou até mesmo relacionar-se aos aspectos dos laços afetivos. Pode-se,
assim, observar na fala de Durval Muniz, quando pensa as diferentes formas de
Nordeste, os distintos sentidos de sertão por ele atribuídos.

Mas o Nordeste tradicional pode ser tradicional pode ser também o do sertão,
da “paisagem nua, povoada de arvores magras sem folhas para o vento brincar;

242
paisagem crivada de espinhos como a fronte de Jesus; crivada de pedras disfor-
mes que lembram monstros que não couberam na arca de Noé. Sertão dos ‘Va-
queiros’, dos bodes patriarcais, das igrejas velhas, dos comboios de tangerinos,
de cangaceiros e profetas, do sol vermelho como um tição”. (MUNIZ, 2011, p.
133).

Esclarece, assim, que o sertão é muito mais do que diz respeito a um


pedaço de terra árida ou semiárida e escaldantemente incandescente, pois tam-
bém possui outras definições e modos de vida distintos. Sendo desde o laço
afetivo tanto quanto os espaços culturais ocupantes de uma determinada re-
gião. No Brasil, a expressão sertão firma-se, inicialmente, como categoria do
colonizador e alude a variados significados e formas de apropriação historica-
mente observáveis.
No que diz respeito à visão de Ronaldo Vaínfas (2001), ele afirma que o
termo sertão, nos primeiros séculos da formação do espaço sertanejo do país,
não significava, necessariamente, áreas áridas, podendo mesmo referir-se a es-
paços com grande umidade. Ou seja, esse autor destaca a percepção pela qual é
possível notar que esse termo deve alcançar grandes espaços de imensidão nos
mais variados contextos, indo muita além de uma mera percepção de espaço
geograficamente definido.
Assim sendo, fica evidente que o conceito de sertão foi sendo construí-
do ao longo dos séculos e que mesmo trazendo semelhanças entre os tempos
primórdios da colonização e as eras mais recentes da história nacional, esse
espaço vivido e apropriado teve na figura do vaqueiro um grande vetor de ações
desbravadoras, daí se compreende que o espaço sertanicamente sertanejado
do Brasil teve como base necessária da sua formação fundante a participação
desses homens simples, por vezes rudes, mas que, ao atuarem na atividade de
pecuária extensiva, contribuíram significativamente na construção do espaço
geográfico sertanejo do país.
Essa construção do espaço sertanejo do Brasil se deu no campo da lin-
guagem, dos modos, dos feitos e feitios singulares, dos locais específicos, dos
olhares, da alimentação, das limitações impostas pela natureza, enfim, de toda
uma formação cultural que teve no papel de atuação dos vaqueiros significados
que só mediante as pesquisas no campo da história são possíveis aprender seus
significados e sentidos. O espaço sertanejo do país abarca, portanto, tanto o
físico quanto o simbólico; o restrito e o amplo; o distante do litoral e as áre-
as densamente florestadas do continente; como também se refere aos espaços
áridos, ensolarados, igualmente àqueles com melhores condições de umidade,

243
os quais são verdadeiros oásis em meio às paisagens diversificadas que fazem
desses espaços bastante múltiplos: “O sertão pode simbolizar o semi-árido, mas
também já foi úmido, foi improdutivo, mas garantiu as condições materiais de
sobrevivência de muitas populações: foi o oposto do litoral, mas também já o
completou” (REIS, 2012, p 18-19).

2 Ventos sertanejos na prática do campear vaqueiramente o gado

Se o caba corresse atrás de rês bem aculá e ele num pegasse, eu dizia
assim: não, se eu ir lá eu pego. Não, eu nunca disse isso. A gora, se eu
fosse lá e eu pegasse ai eu dizia: ai sim é. eu peguei se era esse daqui tá
pegado. Mas, porque ele correu lá e eu dizer que pego, eu não.1

Ser vaqueiro no espaço sertanejo dos povoados aqui descritos, perten-


centes ao 2º Distrito de Caxias, permite visualizar, no transcorrer do tempo,
práticas culturais que os fizeram constituir sua identidade, imbuídos por suas
memórias durante o tempo em que foram vaqueiros ativos na “labuta” cotidia-
na, na lida com o gado que, ao passar dos anos, cortando e tricotando, ligando
feitos e fazeres, compondo diariamente suas histórias de vida, quando, muitas
vezes, por visualizar desde criança o avô, pai ou outros pertencentes ao seu
meio de convívio.
Entranhados nesse mundo, logo se “encantavam”, passando a ansiar fazer
parte das mesmas práticas de fixar-se no dorso do cavalo e lidar com o gado.
Dessa forma, começavam a imaginar como seria montar no cavalo e sair exer-
cendo a mesma função que os mais velhos exerciam, os que tinham a avidez
disso acontecer se portavam de tal maneira realizando seus intentos.
Isso fica evidente nos diferentes relatos analisados, afirma o vaqueiro
José Marques, um dos entrevistados: “[...] Quando eu era piquêno já tinha con-
vicção já [...] Eu pegava um cavalo de palha botava um chucai nele e ai botava
na cabeça inrrolava assim e ainda fazia as zurea”2.
Frente ao relato citado, como ao longo das entrevistas com outros va-
queiros, o fato se desenhava, pois os entrevistados expuseram como iniciaram
desde cedo vaquejar nas “chapadas”, caso do senhor José Luiz, no ano de 19503.

1Entrevista do senhor Benedito Alves da Silva (Véi dito), 72 anos, povoado Almeida, em5
de setembro de 2018.
2 Entrevista do senhor José Marques Lobo (Piloca), 64 anos, Povoado Ininga.
3 Entrevista do senhor José Luís Vieira dos Reis (Zé Pezão), 72 anos, Povoado Barro verme-
lho, em 14 de agosto de 2018.

244
Quando eu comecei a andar no campo eu tinha 5 ano. Ainda hoje eu me lembro,
[...] eu tinha cinco ano, me lembro de mais, eu andava cum papai! Ele muntado
e eu na garupa, quando nós fumo imbora daqui pra Onça, que chamava Onça
do Bilaque, eu me lembro! Parece que eu tô enxergano! Cinco ano eu já andava
muntado sozim! Cinco ano!

É interessante explicitar que todos os entrevistados iniciaram suas vidas


campeiras na lida com o gado, entre 5 e 13 anos de idade. Explana o senhor
Benedito Alves (Véi Dito), em um dia qualquer do ano de 1955.

[..] Oia! Eu comecei a lutar com gado minino com idade de 10 ano, eu comecei
a labutar cum gado de pé, que nesse tempo eu num tinha animal, fui criado ali
cum meu avô, ele tinha umas vaquinha, né! Eu fui cumeçano! Fui cumeçano!
Andano! Ai tinha essas óta vaquerama ai, quando ele ia pegar gado por aqui,
eu não tinha animal, mas eu ia de pé. Cê acredita que eu cansei de passar o dia
tôdim, acumpanhamo a vaquerama aqui de pé. Eu de pé e eles muntado, né! Pe-
gando gado e eu de pé que nem um (risos) aquele bixim do rabo grande, quem
nem Cachorro, mas andava, o dia tôdim e a resultava: tinha vez que eu ainda
pegava primêro que eles que tava muntado! Pegava. E ai foi dano pra frente, ai
quando eu já tava quase na idade de 18 ano, ai eu cumprei o primêro animal pra
mim. Fui cumeçano.4

De acordo com a narrativa do senhor Benedito Alves, a prática com o


gado se deu na infância. No primeiro momento, verifica-se que observando
os vaqueiros à sua volta e aglutinado por seus afazeres, apesar de não possuir
instrumentos adequados, desempenhava suas funções precariamente, apenas
com força de vontade propulsora para lidar com o gado. Afirma-se no exposto
que as dificuldades não eram empecilhos para diferenciá-lo dos demais, já que
conseguia realizar as mesmas tarefas, com um amplo diferencial, sem o apoio
do animal, o cavalo.
No relato, vislumbra-se a visão de mundo do entrevistado, assim como
sua individualidade e os traços de sua personalidade eivados de subjetividade,
compreendendo o termo anteriormente descrito na esteira Woodwarde (2000,
p. 55), que diz:

“Subjetividade” sugere a compreensão que temos sobre nosso eu [..] a subjeti-


vidade envolve nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais. Entretanto,
nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e
4 Entrevista do senhor Antônio José Ozorio (Zizi), 63 anos, Povoado Barro vermelho, em
18 de agosto de 2018.

245
a cultura dão significado a experiência que temos de nós mesmos e no qual nós
adotamos uma identidade.

Algo a ser considerado dentro das circunstâncias que envolvem o início


de suas vidas como vaqueiros na região sertaneja é que muitos tiveram suas
habilidades testadas pelos pais, como é o caso em específico do senhor Antônio
José, ao explicitar que aos 13 anos de idade, precisamente em 1969, seu pai
resolve levá-lo para correr atrás de uma vaca, com a assertiva de verificar se
realmente o filho era bom vaqueiro, assim narrado:

... Meu pai disse: “já que tu corre muito vamo correr atrás da vaca, duas vaca!”.
Ai eu pensei que fosse brincadêra. Meu irmão mais vêi que morava ali em frente
a Nazir, ai eu pensei que ele fosse chamar o Zé de madrugada pra pegar... ai no
Luduvido, mumuida que era onde a vaca pastava, né! Lugar muito ruim para se
correr! Aí tirei a comida pros cavalo e disse: Papai, eu vou lá dizer pro zé vim
que hora de madrugada? Aí papai disse “Nam! Quem vai é você rapaz! Eu num
já disse! Umas 3 hora da manhã lavamo o carralo aqui no açude, tangei. Ai ele
disse:“Rapaz! Vesti logo os côro que lá é ruim”. Ele disse logo e eu criança, e os
terno de coro dele criança! Botava aqui, o gibão faltava arrastar no chão. Mas,
eu fui. Eu ia dizêno pra mim mermo: “hoje ele me acha estrepado na ponta de
um pau”. Eu tenho certeza que ele vai me achar extrepado, já morto! Pra ele
nunca mais levar fii dele pra [..] foi isso que eu pensei! Encontramo a vaca em
uma roça [...] Larguei o carralo duma vez! Ele derrubou ela, meti a corda nela!
Eu era criança, eu tinha 13 ano, aí eu meti o rei na perna dela, aí ela me deu um
soco, me jogou bem aculá, que minhas perna, aí a corda ficou, aí juntei o rêgo
muntei no cavalo de novo, aí lá vem ele chegando [..] Isso ficou na mente como a
primêra namorada. Ficou na mente eu nunca esqueci! A vida de vaquêro é essa,
é bom! São gostosa! É bom de contar! É bom de se fazer.5

Nessas mesmas condições, muitos vaqueiros iniciaram suas funções la-


borais. A narrativa demonstra o passo a passo do que o senhor Antônio José
teve que passar para que pudesse, mais tarde, assumir sua identidade enquanto
vaqueiro. Ora, ao ter suas habilidades testadas pelo pai obteve resposta positiva.
Ao pegar a vaca, mostrou que estava apto a iniciar a vida de vaqueiro, mesmo
tendo passado por tantos obstáculos durante a pega do boi.
É ainda perceptível no ato do seu relato oral, mesmo que de forma tími-
da, questões ligadas à masculinidade, traço característico do homem sertanejo,
pois ao especificar os riscos que estavam correndo e o que fez para “safar-se”, re-
5 Entrevista do senhor Antônio José Ozorio (Zizi), 63 anos, Povoado Barro Vermelho, em
18 de agosto de 2018.

246
monta-se as imagens que foram construídas dos discursos literários referentes
ao vaqueiro, a saber, homem destemido, de força e bravura, presente, inclusive,
na obra literária de Francisco Gil Castelo Branco (2005), quando fala de Atali-
ba, o vaqueiro, que seria o homem sertanejo, vaqueiro nordestino, que em meio
aos desafios nos quais estava exposto procura vencê-los:

O vaqueiro Ataliba encarna com perfeição as características do sertanejo já


preconizadas por Alencar em seu romance de 1875, que focaliza os sertões do
Ceará. Trata-se de um homem forte, corajoso, ingênuo, honesto e, sobretudo,
hábil na convivência com a terra agreste no desempenho de suas obrigações
(BRANCO, 2005, p. 16).

Nesse contexto, muitos vaqueiros desenvolvem suas práticas, sempre re-


montando a ótica da vida “dura”, sofrida, ao tempo que viveram campeando
seus espaços de costume, quando iniciavam logo na madrugada: “Saia 1 hora,
2 hora, 3 hora da madrugada. Era esse o rojão de todo dia! Num tem quantia,
é sai bem cedo, é sai de nôte. Cê sai... es vezes chega 7 hora, 8 hora, 9 hora da
noite... e a peleja e desse jeito, mia fia, o descanso é pôco...”.6
A difícil “labuta” do vaqueiro não era um pretexto para a desistência ao
tempo em que participou ativamente das “peganças” de boi brabo pelas matas
fechadas, pois acrescenta ao ato de sua memória de vivência sua luta: “[...] Era
pegar boi brabo e brigar cum boi valente, passano fome. As vez num cumia,
nem água num bibia. E a confusão era essa... sufrido...”.7
Essa mesma linha de pensamento é percebida na fala de outros entre-
vistados. Na construção de suas memórias, conseguem rememorar as práticas
culturais construídas ao longo do período e algumas delas não se diferem de
outras, como bem relata o senhor Francisco Bacelar, ao narrar o significado de
trabalhar com o gado e suas lutas diárias, deixando resvalar semelhanças:

[...] Trabaiá cum gado é uma estória de 24 hora! Cê tem um campo, marcado pra
ir xxx9, a distança longe, como daqui na Redenção ou mais longe, cê tem que
levantar cedo, durmi com o animal já na Estivaria se tiver, se num tiver lá dento
do curral. Quando der2:00h 3:30h,4:00h, cê já tá no ponto e roda o dia tôdim!
correndo atrás pra pegar, atrás da vaca parida e ai por diante. A gente tem que
andar cedo! Que as vezes levava um fritozim pra cume no mato, às vezes nem
isso num levava. Passava uma fome doida. Às vezes vai beber na cabeceira de
6 Entrevista do senhor José Luís Vieira dos Reis (Zé Pezão), 72 anos, Povoado Barro Verme-
lho, em 14 de agosto de 2018.
7 Entrevista do senhor José Luís Vieira dos Reis (Zé Pezão), 72 anos, Povoado Barro Verme-
lho, em 14 de agosto de 2018.

247
brejo onde tem gado que bebe. Aí a gente passava o dia! Chega em casa já de
noite, Baqueado. Ajeitando animal pra no ôto dia3:00h da manhã ter que ir de
novo. Às vezes não achava a rês, por isso tinha que ir no dia seguinte. Quando a
gente acha um, dois ou três cumpanhêro para ir tudo bem, e quando num acha-
va, ia sozim. Às vez acha, mas num pega! Cai, leva uma pancada, é o que mais
acontece com o vaquêro, levar uma pancada no mato, se acidentar. (Entrevista
do senhor Francisco do Reis Bacelar8.

Conforme apontado pelo senhor Francisco Bacelar, predispor a lutar


diuturnamente com o gado depende de muita força de vontade, presteza e re-
sistência. Isso porque o vaqueiro está sujeito a passar muitas agruras ao levan-
tar cedo da madrugada para embrenhar-se na mata à procura de uma rês braba,
sabendo que tem que achá-la e quando não a encontra, mesmo chegando tarde
da noite, depois de um dia exaustivo, teria que retornar, pois deveria trazê-la
para o curral. Essa forma de demonstrar, em detalhes, como se manifestava o
dia a dia dos vaqueiros é, sem sombra de dúvidas, algo essencial ao entendi-
mento dos relatos orais: “A memória é essencial a um grupo porque está atrela-
do à construção de sua identidade” (ALBERTI, 2011, p. 167).
Nesse mesmo contexto, insere-se a prática dos demais que compõem a
área sertaneja, a qual reside os vaqueiros dos povoados em estudo, assim como
a que rememora o senhor José Luís, durante seu tempo extenso de passagem
pelas matas fechadas à procura de gado valente, tendo que ficar no entardecer
da noite até o amanhecer, como narrado:

[..] Pegar gado valente, gado teimoso, que num queria caminhar, cê ficava o dia
todo cum ele amarrado, brigâno cum ele. Oiá, que era sufrimento! Oiá que eu
fui prum lugar chamado Lagoa do Arroz e foi até cum Nonato, fii do Dosa que
tem o “oi” (olho) perdido. E foi sem cumer, sem beber e sem durmir a noite
tôdia no mato, longe de gente. A nuvia adueceu 5h da atarde, anoiteceu, ama-
nheceu e passamo noite lá, oiáno pra ela.9

Compreende-se que a luta dos vaqueiros era dura, uma vez que embre-
nhar-se na mata, muitas vezes, não significava logo, no primeiro momento, en-
contrar a rês que estava a procurar, geralmente, demandava tempo, tendo que
procurar um “cantinho” próximo à rês, em vigília a noite inteira.
Outro ponto marcante é o que se relaciona ao companheirismo entre os
8 Chico Bacelar, 58 anos, povoado Cumbuquinha, em 20 de julho de 2018.
9 Entrevista do senhor José Luis Vieira dos Reis (Zé Pezão), 72 anos, Povoado Barro verme-
lho, em 14 de agosto de 2018.

248
vaqueiros, aspecto marcante em sua cultura e deve-se ao fato de fazerem parte
do mesmo espaço, conseguem elaborar e reelaborar princípios criando laços de
efetividade, permitindo, assim, fazer por si e por suas ações que os beneficiem.
Essas características são típicas de grupos identitários, de modo que a filósofa
Marilena Chauí afirma que: “Cria espaços próprios no qual os símbolos, as nor-
mas, os valores, as experiências, as vivências, permitem reconhecer as pessoas
estabelecer laços de convivências e de solidariedade” (CHAUI, 1985, p. 70).
Nesse sentido, evidencia-se nos relatos o companheirismo, colaborando
para o crescimento econômico da região, predispondo, a todo custo, pegar uma
vaca no mato para trazê-la até o curral, ajudando o seu companheiro que em
sua maioria trabalha para um proprietário de terra e tem prazo estipulado para
capturar animal, demonstrando as relações de amizades.
Tudo isso se coaduna na introspecção de uma identidade peculiar à pró-
pria cultura local que se constitui no dia a dia, no fluxo das relações de afinida-
des, vizinhança, como se fizessem parte da mesma família. Não precisam de leis
materializadas, registradas em papel do direito positivado para que essa forma
de vida seja assimilada, está internalizada nas suas concepções, guiando o dia
a dia de trabalho e convivência social com os demais companheiros de labuta.
Revelando mais uma vez a questão da identidade cultural e sua importância
para o entendimento de tal grupo social.

Considerações finais

Observa-se que o vaqueiro, desde o Brasil colonial, assumiu um papel


muito importante para a formação do país, ao passo que foi assumindo, no
sertão nordestino, uma grande representatividade cultural identitária.
Eles se fizeram presentes no Maranhão, sobretudo com o estabelecimen-
to de fazendas de criação de gado, atuando como responsáveis pela manuten-
ção delas. Nesse sentido, viu-se que o vaqueiro também se faz presente na cons-
trução da História Maranhense e Caxiense, mas que, à margem das páginas da
historiografia, tende a ser silenciado.
Para tanto, ao longo do trabalho, apoiou-se em autores que apontam a
importância de pesquisar o espaço sertanejo, sobretudo, o vaqueiro, pois se
entende que deve ser visualizado por sua representatividade construída du-
rante muito tempo. Assim sendo, ao debruçar-se nas memórias de vivências e
experiências de tais sujeitos, através das narrativas cedidas, percebe-se que ao
longo dos anos os vaqueiros foram forjando e experimentando suas trajetórias
e vivências, ao percorrerem diuturnamente o sertão caxiense.

249
Por meio da memória, entende-se que, ao fazerem parte do espaço que
compõe o sertão caxiense, ao longo de suas vidas de luta, “labuta” como va-
queiros ativos, construindo um cabedal de práticas culturais, que os fizeram se
constituírem enquanto ser vaqueiro do sertão de Caxias.
Por fim, diante de todo o estudo, fica evidente o fato de que pensar o
vaqueiro enquanto sujeito dotado de uma identidade cultural singular e espe-
cífica é arriar-se sobre a sua representatividade no meio social caxiense, por sua
importância para o estudo do espaço sertanejo. Escrever e colocar o vaqueiro
como protagonista de um contexto histórico e social rural e citadino é coloca-
-lo em prestígio para romper com silêncios e esquecimentos e com a própria
imagem erroneamente construída do meio rural e sertanejo.

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14 de Agosto de 2018.

SILVA, Benedito Alves da Silva. Entrevista concedida a Auriele Pereira dos Reis,
em5 de setembro de 2018.
Da indústria cultural ao
desaparecimento da infância:
erotismo e entretenimento no mercado
cultural para crianças (1980-1990)

Diêgo Stéfano Araujo Souza

Mais alguém quer fazer a dança da garrafa pra ganhar um prêmio?


(Silvio Santos)

Em setembro de 1991, a revista Veja estampava em sua capa a apresen-


tadora, atriz e cantora Xuxa, no título da matéria de capa dizia: “Xuxa: A loi-
rinha de 19 milhões de dólares – A primeira brasileira a entrar na lista dos 40
artistas mais ricos do mundo”1. Um enorme destaque no mundo dos negócios
e alcançando posição relevante na lista da Forbes, o formato de negócios que
laçava Xuxa soube aproveitar bem sua trajetória, ex-modelo fotográfica, capa
de revistas masculinas, e que agora figurava em um gênero televisivo voltado
para o público infantil. Impulsionada, a cantora e atriz, assim pôde ocupar di-
versos espaços de um mercado que ia de discos infantis, roupas, bolsas, sandá-
lias, xampus, brinquedos, mais de 200 produtos licenciados que, apesar do seu
foco numa estética que remetia ao infantil, não restringiu a artista de alcançar
popularidade entre adultos com uma vastidão de mercadorias que circulavam
por estratégias de comunicação massiva: TV, Rádio e Cinema, uma rede estra-
1 Revista Veja, setembro de 1991. Acervo digital em: http://veja.abril.com.br/idade/exclusi-
vo/xuxa/materia.html.
tegicamente voltada para a circulação da música pop infantil.
O fenômeno do disco infantil foi um momento de sucesso e estímulo ao
consumo, possibilitado por transformações históricas e possibilitando novas
concepções de criança e infância dentro de um processo caracterizado, tam-
bém, pela acumulação de tecnologias. Mais do que isso, a partir da música
pop infantil, formas de consumo no campo da cultura aproximaram universos
distintos, com o disco infantil, músicas que remetiam a doces e brincadeiras
ganharam performances sensuais por artistas ou grupos de destaques no mer-
cado fonográfico, elementos que nos parecem indicar certa erosão em torno
das demarcações que distinguiam crianças e adultos.
Concordando com Philippe Ariès (2006 [1962]) e Neil Postman (2012
[1982]), pensamos que a infância deve ser desnaturalizada e compreendida
como construção social, fundada a partir de interesses coletivos, sejam eles
econômicos, políticos ou morais. Para Ariès, a infância surge em um momento
específico de desenvolvimento político, econômico e cultural nas sociedades
ocidentais, imprimida pela família nuclear burguesa, deslocando a natureza da
criança para sua função social, a infância toma face em um momento da vida
de cada sujeito em que ele deveria ser protegido dos males mundanos para
o surgimento de um adulto saudável. Dando continuidade a essa perspectiva,
Postman critica o tempo capitalista e os meios de comunicação a partir do final
do século XIX, dando ênfase às profundas transformações no século seguinte,
afirma que com a TV surge uma tendência de diminuir diferenças geracionais
na cultura, operando pelo uso frenético de imagens e sons, facilitando o acesso
às informações veiculadas que não se expressam exclusivamente pela forma
escrita de comunicação.
Este artigo tenta resumir uma pesquisa maior desenvolvida entre
2012/14, percorreu a consulta de textos acadêmicos sobre história da infância,
sites, revistas, filmes, vídeos e audição da produção fonográfica, dirigidos a esse
público, e por vezes encontrou-se a referência no conceito de Indústria Cultural
desenvolvido por T. W. Adorno e Max Horkheimer. Aqui, a nossa utilização
do conceito de Indústria Cultural se limitou a pensar a relação da economia
com a cultura, um “modo de produção cultural” com a indústria fonográfica,
transformador da infância a partir do final dos anos 1980, no cenário de emer-
gência dos programas infantis de TV e de produtos derivados deles, para tanto,
optamos em analisar dois fenômenos da indústria fonográfica na travessia da
década de 1980 e 1990: Xuxa e o grupo de axé É o Tchan, por compreendermos
que esses dois sucessos de mercado representaram uma passagem da Indústria

254
Cultural infantil para completa fusão dos elementos infantis com os tipicamen-
te adultos, para tanto, o universo dos doces e das performances sensuais já co-
nhecidos na música brasileira.
Para Neil Postman (2014), é esse panorama cultural de acesso às infor-
mações e ao consumo que ameaça a infância como um artefato social idealiza-
do e estudado por P. Ariès no início dos anos 1960. Tais teóricos da história da
criança e da infância nos provocam à questão: estaria a infância desaparecendo
ou algumas transformações são perceptíveis apenas no campo da economia
de consumo de bens culturais que tendem a fundir e reproduzir fórmulas de
sucesso?
O objetivo deste texto não é trazer profundas reflexões sobre a exposição
de T. Adorno e M. Horkheimer em “A Indústria Cultural – o iluminismo como
mistificação de massa” (2000 [1947]), mas compreender melhor o desenvolvi-
mento da indústria do entretenimento infantil nos anos 1980, apresentando
elementos típicos dessa produção fonográfica. Esse exercício de articulação de
conceitos e análise de fontes requer, em alguns momentos, um breve mergulho
nos caminhos percorridos pelas reflexões dos filósofos e intérpretes, para en-
tendê-los sem tantos prejuízos em relação à teoria que ainda permanece atual
no debate sobre cultura.

1 Ao alcance da televisão: formas de entretenimento e interação cultural

No final dos anos 1940, momento chamado de pós-guerra, ainda não ha-
via a televisão como a conhecemos hoje; seu poder de publicidade era tímido,
seus custos de manutenção não eram atraentes, os profissionais específicos para
a área eram escassos e seu alcance era restrito às classes altas que podiam com-
prar um televisor. Nos centros urbanos, o principal meio de difusão de notícias
eram os jornais impressos, o entretenimento ficava com o rádio, pela audição se
davam as relações da comunicação que alcançavam as massas, inclusive as não
alfabetizadas, que também colhiam notícias e coberturas esportivas pelo rádio
(BUCCI, 1996; HAMBURGER, 1998).
Nas artes, o teatro e o cinema protagonizavam o gosto das camadas altas
da sociedade; a reprodução musical em disco alcançava o faturamento de gran-
des cifras e já se mostrava poderosa o suficiente para tornar-se, nas décadas
seguintes, um grande produto de escala industrial com tendências de fusões
entre setores da produção tecnológica com a fabricação de artistas. Como des-
creve a socióloga, autora de “Os donos da voz”, Marcia Tosta Dias (2008, p. 35):
“Do início do século XX até meados da década de 30, as grandes companhias

255
fabricantes de cilindros e discos incumbiram-se, também, dos aparelhos leito-
res. [...] as empresas que os fabricavam se adaptaram rapidamente a produção
do gramofone e dos discos [...]”.
É baseado nesse cenário de aprimoramento de meios técnicos de produ-
ção e reprodução em massa das manifestações artísticas, como a música, que se
desenvolveu um dos conceitos mais importantes da obra do pensador alemão
Theodor W. Adorno em parceria com Max Horkheimer: A Indústria Cultural.
Segundo Robert Huloot-Kentor (2008, p. 21), “o conceito de Adorno nos leva
a crer que foi para ele um achado preciso, resultado de uma auscultação mi-
nuciosa das tendências históricas, mais do que um neologismo historicamente
oportuno”.
O “neologismo historicamente oportuno” ao qual se refere Huloot-Ke-
ntor é a afirmação da criação de Adorno e Horkheimer de neologismo con-
ceitual. Mais do que um conceito da crítica cultural, tornou-se, com o tempo,
parte do vocabulário empresarial, distanciado da intenção crítica dos seus for-
muladores, simplesmente mais um ramo das indústrias, como a indústria dos
cosméticos, do turismo ou da saúde. O “historicamente oportuno” deve-se à
junção de dois termos que a princípio surgem como antagônicos – a cultura
artística que seria um conjunto de expressões espontâneas das camadas po-
pulares que, na Indústria Cultural, é sujeita a um modo de produção serial
e mecanicamente repetitivo de fórmulas, assim o oximoro Indústria Cultural
que nasce com intenção de aproximar tendências contrárias que se unem na
criação de mercadoria.
Para os filósofos: “A televisão tende a uma síntese do rádio e do cinema,
retardada enquanto os interesses ainda não tenham conseguido um acordo sa-
tisfatório, mas cujas possibilidades ilimitadas prometem intensificar a tal ponto
o empobrecimento dos materiais estéticos” (ADORNO; HORKHEIMER 2000,
p. 162-63). Esse pensamento elabora parte de premissas históricas que já apon-
tavam o lugar que a televisão ocuparia na Indústria Cultural, assim se apresen-
tou nas décadas seguintes, sintetizou o rádio e o cinema no sistema da teleco-
municação. A TV trouxe as músicas do rádio e as notícias do jornal impresso
com as imagens do cinema. Consolidou um poderoso meio de publicidade,
fortalecendo a indústria do entretenimento, reproduzindo na tela fórmulas co-
nhecidas, agrupando, ainda, elementos da sensualidade e erotismo por meio
do corpo feminino, essa fórmula ficou bastante conhecida no Brasil com os
programas de auditório, o mais famoso destes, o programa do Chacrinha, que
fundia espetáculos circenses com dançarinas e assistentes de palco, as chacre-

256
tes, que remetiam às dançarinas de casas noturnas em trajes sensuais, apesar da
censura dos militares (SIMÕES, 2000).
O que se esboça por meio de Adorno é aquilo que viria a ser identifi-
cado como indústria do entretenimento, um derivado da indústria cultual, a
“fusão da cultura e da diversão”. Essas colocações podem ser ilustradas com
produtos lançados pelas apresentadoras dos programas infantis dos anos 1980,
como anunciado no início deste artigo. É nesse contexto, que foi de intensa
comercialização de objetos, que passaram a ocupar noções de cultura infantil,
fundamentalmente com o surgimento da categoria de artista infantil (MATTE,
1998), que não surge de uma originalidade nunca vista, esses artistas fundiram
modelos televisivos de sucesso com expressões da música e do cinema em cur-
so, paquitas e chacretes tinham algo em comum.
A transformação industrial de elementos da cultura em mercadorias
não reconhece idade, gênero, etnia ou faixa etária, despeja no mercado tudo
que possa ser produzido em escala, transitar pelas mídias e esteja no limite
jurídico para o exercício do prazer pelo consumo, assim, a ideia de produtos
infantis não se restringe ao brinquedo, extrapola o corpo infantil da criança,
interagindo pedagogicamente e educando os sentidos. Adorno reconhecia que,
com a fusão do rádio e do cinema pela TV, traria novidades ao mercado cul-
tural, dentro dessa tendência, os artistas são multifacetados: cantores, atores,
apresentadoras, modelos, tudo que as tecnologias disponíveis possam tornar
consumível por qualquer um que entre em contato com a fábrica de desejos.
Para Gilberto Vasconcelos (1998), a TV trouxe a fusão do circo com o cabaré,
nos moldes Chacrinha, essa é a inspiração do programa de auditório infantil.
Um cabaré das crianças.

1 “Na boca? Na boca!”: sensualidade na música infantil?

Neste artigo, apontamos a indústria do entretenimento infantil como um


espaço de experimentações de um mercado emergente que não ignora a infân-
cia, mas que também não se regulamenta pela distinção de mercadorias, desen-
volveu-se de forma massiva a partir dos anos 1980, em sua grade de atrações,
exploração e espetacularização do corpo (infantil), que lançou novos olhares
sobre o sensual e o erótico, por meio de tentativas artísticas como a música,
que incita a dança e performances corporais sobre as quais também voltamos
a atenção.
Mirian Goldenberg (2002, p. 10), ao afirmar que “o corpo é uma cons-
trução cultural e não algo natural”, também considera que a roupa, máscara

257
e veículo de comunicação são carregados de significados que posicionam os
indivíduos na sociedade. As colocações da antropóloga nos ajudam a pensar
sobre como a cultura midiatizada pode apropriar-se do corpo como algo que
chama atenção na sua forma de expressar o lugar social ocupado pelos indiví-
duos, nesse sentido, o corpo infantil que rebola ao lado do adulto ocupa que
lugar na sociedade?
O corpo na TV aparece carregado de sinônimos como os de bem-estar,
felicidade. Na publicidade – eletrônica ou impressa –, o corpo, roupas e acessó-
rios são um só e tentam expressar poder econômico em muitos casos. Mas, e o
corpo infantil? O que pode expressar para as formas midiáticas de publicidade
e entretenimento? Quando um veículo de publicidade usa uma criança para
promoção de uma marca ou promover uma prática, o que ele nos comunica
com aquele corpo?
Considerando nossa sociedade adultocêntrica, centrada na produção de
espaços e práticas voltadas para os adultos, vemos na música certo tipo de ob-
jetificação do corpo feminino, da mulher adulta que ganha status central nos
temas da música, do cinema, da televisão e em outros gêneros da cultura, essa
objetificação, sob a qual não discorreremos profundamente aqui, incide sobre
a criança como um modelo de expressão visual no mundo da forma sensual e
adulta, desejada e aceita, cujos efeitos poderiam ser investigados em um estudo
mais complexo, para além dos processos históricos e culturais que alcançamos.
Mas a produção musical que se volta para a criança a partir dos anos 1980 é
mais do que um produto cultural, sua produção idealizou sobre a infância o
que se concebia externo a ela, o que seria seu universo particular.
Segundo Matte (1998), esses produtos carregam consigo uma imagem
da criança, imagem essa que, por sua vez, influencia a concepção do que é e do
que não é infantil. Nesse sentido, a indústria do entretenimento infantil operou
atribuindo qualidades ao conjunto de objetos que pertencem comumente ao
universo infantil, assim, o brincar vira dança e o comer é reposicionado frente
a uma infinidade de marcas de doces e refrigerantes, como expressam algumas
músicas da época, carregadas de significados da linguagem do mundo tipica-
mente adulto, como a linguagem corporal, da malícia e da sensualidade.
Mas, o que o material produzido pelos agentes da música- as cantoras
dos programas infantis- pode mostrar sobre o assunto? As imagens lançadas
pelos produtos dirigidos ao público infantil denotam a mescla de elementos do
entretenimento historicamente presente na cultura brasileira como o carnaval,
que não se espera tanto a participação de crianças, mas é esse o elemento que se

258
apresenta fundido ao gosto infantil no disco “Carnaval dos Baixinhos”, lançado
em 1988, pela Xuxa. O disco seria uma versão da música de carnaval adaptada
para crianças, alcançou a marca de 300 mil copias vendida em um mês.

Figura 1: Capa do disco Carnaval dos Baixinhos (1988).


Fonte:discogs.com/Xuxa-Carnaval-DosBaixinhos/release/6628865.

Destaca-se na capa do disco2 a menina que tenta ficar em pé, ela veste
apenas uma peça íntima na parte de baixo, conhecida como “fio dental”, na
imagem a peça não é feita para ocultar o corpo da criança, mas evoca sensu-
alidade, o fetiche da peça mínima, que faz referência à performance feminina
no carnaval, nas praias, e por que não dizer dos programas de auditório? A
pequena garota faz uma sutil menção a Xuxa, ao trazer na cabeça as “xuxinhas”,
um elástico prendedor de cabelo que ficou famoso por também ser usado pela
apresentadora.
Ao lado da menina, vê-se uma criança do sexo masculino, de pele negra,
estereótipo dos sambistas cariocas, homens ligados ao samba, ao pagode ou
ao axé baiano. No caso da imagem, observa-se, ainda, que o menino usa um
“tapa-sexo”, sutilmente ali colocado para brincar com a pureza da sexualidade
infantil, como a folha que cobria as vergonhas de Adão.
Talvez olhando para esse disco podemos questionar, tomando a música
como arte, seria possível uma arte específica para crianças que pudesse negar
por completo o mundo adulto? Matte (1998, p. 21) reflete sobre o que seja uma
arte infantil, para a autora: “A primeira dificuldade encontrada no campo da
2 Detalhes do disco podem ser vistos em: discogs.com/Xuxa-Carnaval-Dos-Baixinhos/re-
lease/6628865.

259
arte infantil é que a arte busca uma espécie de inutilidade, de ‘desfuncionalida-
de’ prática, como se pudesse isenta-se da realidade.” Mas a arte infantil vincu-
la-se especificamente a um público que demanda dessa arte o que é infantil, e é
nesse instante que precisa inventá-lo.
E o que a arte para o adulto traz? O inverso, a não funcionalidade obje-
tiva? É possível afirmar que as expressões artísticas produzidas pela Indústria
Cultural têm como objetivo o lucro, seja ele advindo da venda de produtos para
adultos ou crianças. Segundo Theodor Adorno: “A Indústria Cultural absoluti-
za a imitação” (2000, p. 169), daí vem o modelo de importação dos sucessos do
mundo adulto e suas adaptações para inventar o infantil.
É com a transposição de modelos de sucesso que surge nos anos 1980 a
figura ambígua do artista infantil. Esse termo pode ser empregado tanto para
identificar a criança artista como o artista para criança. Segundo Matte (1998),
uma das observações mais interessantes sobre a história da canção infantil bra-
sileira é que ela pode ser dividida entre antes e depois da entrada do “músico
infantil”, o que ocorre na década de 80.
Essa constatação permite afirmar que somente a partir dos 1980 é que
podemos perceber uma maior participação de elementos adultos na música in-
fantil, como o próprio estilo da música que ficou marcada pela pop music, o que
criou a especialidade “música pop infantil”, com características de forte batida
de instrumentos reproduzidos eletronicamente, guitarras e teclados. Com as
mudanças no mercado fonográfico, ocorridas dos anos 1990 em diante, a músi-
ca infantil não ficou inerte nesse processo, suas transformações acompanharam
o que no gosto dos adultos se passava. É nesse momento que o gosto de crianças
passa a compor-se também com os produtos destinados aos adultos, o samba,
o rock e o axé integraram o repertório de estilos infantis, sem abandonar temas
lúdicos como brincadeiras e o consumo de doces.
Em 1995, já era possível notar essas transformações no set list do disco
de Xuxa, “Luz no meu caminho”, cujo repertório chamava atenção, se com-
parado com outros da apresentadora, pela ausência quase que total dos back
vocals infantis e pela maior mistura em relação a temas e estilos musicais. Sur-
giram, nesse disco, temas como ufanismo, musculação/academia, funk carioca,
ao mesmo tempo em que chama a atenção temas como advertência ao fumo,
religiosidade e outras duas faixas “mais infantis”, que falavam de doces e brin-
cadeiras.
Umas dessas faixas chama a atenção por inserir, em uma brincadeira de
criança, o beijo na boca. A faixa em questão chama-se “Salada Mixta”, destaca-

260
mos um trecho abaixo:

É esse?/ Não!!!/ É esse?/ Não!!!/ É esse?/ É!!!/ Pêra, uva, maçã, salada mista Diz o
que você quer/ Sem eu dar nenhuma pista/ Pêra dá as mãos/ Uva dá um abraço/
Maçã beijo no rosto/ E salada mista?/ Um beijinho selinho na boca -Na boca?/
Beija, beija, beija, beija!/ Essa brincadeira só não brinca/ Quem não quer/ De
olho fechado não dá pra saber quem é/ Quem tá de paquera e tem vergonha de
dizer/ Aproveita e tenta a sorte/ Fazendo Uni Duni Tê/ Uni Duni Tê/ Salamê
minguê/ Sem querer querendo/ Escolhi você!

Composição de Cláudio Matta e Álvaro Socci. Cabe aqui uma breve


análise da música. Nela há um jogo bastante claro: os participantes – meninos
e meninas – brincam de olhos fechados, assim escolhem com quem querem
“tentar a sorte, fazendo uni, duni, tê”. Ao citarem as palavras, escolhem uma
pessoa que não sabem quem é; depois de escolhido o parceiro, nomeiam a fru-
ta. que tem um significado específico, previamente sabido. O grande ápice da
brincadeira é quando a pessoa acerta quem tem interesse e escolhe a fruta para
dar um beijo nela. A música apropriava-se de uma brincadeira já existente en-
tre grupos de jovens, e foi um exemplo importante de veiculação de algo que
se tornou popular nos anos 1990: a naturalização de várias outras brincadeiras
que remetiam a criança ao despertar de sua sexualidade. As brincadeiras de
paquera se tornaram as preferidas de muitas crianças, estimuladas por refrãos
como: “Beija, beija, beija!”.
Dançar, nos anos 1990, passou a ser uma forma de brincadeira entre as
crianças: imitavam os passos e trejeitos de seus ídolos que, nesse contexto, não
eram mais somente artistas que tinham seus trabalhos dirigidos especificamen-
te a crianças. O incremento de características ligadas à musicalidade e dirigida
a adultos, como ritmos e temas de letras, modificou o que se entendia por mú-
sica infantil, e o que se entendia por ela.
Umas das maiores expressões de que se pode falar de um sucesso feito
para adultos e que se efetivou também com crianças foi o grupo de axé music
“É o Tchan”. Sua trajetória confunde-se com esse momento de transição da in-
dústria fonográfica pop infantil, dos anos 1980, para os novos estilos musicais
que vieram com os anos 1990 e que ocuparam uma cena musical infantil que
começava a esvaziar-se com relativo esgotamento do modelo de programa in-
fantil de auditório.

261
2 Tchan? Axé music e o sucesso com crianças

Os anos 1990 foram marcados pela música de “vertente maliciosa”3,


quando diversos grupos musicais agenciados por empresários da indústria
musical e da TV, em parceria com distribuidoras e gravadoras como WR, Poly-
gram, Universal Music e EMI Music, obtiveram enorme êxito na venda de seus
produtos de apelo erótico. A maior expressão desse período foi o grupo baiano
“É o Tchan”: suas letras, ritmos e performances foram base para o lançamento
de modelos semelhantes de grupos musicais de sucesso meteórico com fórmu-
las rapidamente esgotáveis. Dentre eles, estava o “Tchakabum”, que também
se utilizou do “modelo Tchan”: vocalistas e dançarinos dividiam a atenção do
público nos palcos, mas o centro das apresentações estava na sensualidade das
dançarinas.
Em “Que tchan é esse? indústria e produção musical no Brasil dos anos
90” (2003), a musicóloga Mônica Neves Leme explora a presença de elementos
da música popular afro-brasileira na composição da musicalidade do grupo,
mostrando que, aliado a produtores do setor da indústria fonográfica, reade-
quaram raízes da música popular baiana, transformando manifestações como o
ludo e samba de roda em produtos da Indústria Cultural. Essa produção gerou
críticas ao grupo, como revela a autora: “O É o Tchan ganhou, ao mesmo tempo
uma enorme popularidade [...] e a ira da crítica musical geral. Esta utilização de
letras ‘chulas’ e coreografias sensuais de seus bailarinos rebolantes [...] fez com
que a crítica passasse a chamar sua música pejorativamente de ‘bunda-music’
[...]”. (LEME, 2003. p. 25)
O trabalho de Leme nos é importante para pensar como a indústria da
música não só é capaz de fabricar seus artistas, mas também tem a capacidade
de apropriar-se de ritmos próprios e prepará-los para o consumo do mercado
cultural. Quando a autora traz para a discussão a chamada “vertente maliciosa”,
propõe que ela é presente nas raízes históricas da música popular brasileira e
que pode ser percebida já no início do século XX, com o uso de duplo sentido e
3Vertente maliciosa: músicas que se enquadram em gêneros musicais afro-brasileiros e car-
navalescos, em que os aspectos rítmicos possuem grande papel na forte integração de texto,
música e dança; tais músicas apresentam letras de duplo sentido, geralmente humorísticas,
cuja carga semântica pode intensificar-se através do auxílio dos gestos sensuais da dança
(requebrando principalmente) [...]. (Grifos do original) (LEME, 2003. p. 29). Segundo a
autora, suas pesquisas mostraram que a ocorrência de letras maliciosas na música tem seu
início ainda no começo do século XX, quando cantores populares tiveram suas canções
gravadas em disco na primeira leva de artistas contratados pelo setor que, mais tarde, fi-
xar-se-ia como indústria fonográfica, essa característica em letras de músicas só alcança o
público infantil quando ele é formado para o consumo musical, na década de 1980, com as
atrações da TV.

262
de letras humorísticas elaboradas. De acordo com a definição dada pela pesqui-
sadora, pode-se pensar na grande parte dos grupos musicais brasileiros que se
destacaram na mídia em geral, nos últimos 20 anos, como enquadrados nessa
vertente musical. Hoje, os estilos axé, funk, sertanejo e o forró encaixam-se
nesse esquema, em que a sensualidade é a base do conjunto musical: letra-per-
formance-ritmo dançante.
É nesse sentido que a expressão máxima da música pop infantil, apro-
priando-se de elementos comuns da música popular nacional, incorporados
às matrizes de produção e difusão musical nas duas últimas décadas do século
XX, reproduz sobre os aspectos já delineados do fantástico discurso dirigido
às crianças elementos comuns de vertente maliciosa. Em outras palavras, sob
o sucesso do disco infantil também foram impressas referências da música po-
pular, mais especificamente a canção de duplo sentido e a música de interação
dançante. Carla Perez e Xuxa habitavam o mesmo espectro na mídia e no ima-
ginário popular.
No grupo “É o Tchan”, uma linguagem do corpo feminino era expressa
por suas dançarinas, uma loira, uma morena (representando a diversidade ra-
cial do Brasil?), no meio delas um dançarino, de menos sucesso na interação
com o público, chamado apenas de “Jacaré”. Requebrando ao som das músicas
que, em muitos casos, expressavam-se de forma ambígua a fim de deixarem os
sentidos das palavras por se completarem nos sentidos do corpo: shortinho,
tênis e uma pequena peça para sustentar os seios, “a loira do tchan” era esteti-
camente distinguível das paquitas.
As letras simples e rapidamente memorizadas pelos fãs, dos quais as
crianças também faziam parte, contrastavam-se com o som frenético de ba-
tucadas, com a linguagem dos corpos dançantes e seus gestos com referências
sexuais, conquistando o público que os imitava tomando performances como
desafios. A letra por si só, sem a imagem da performática do corpo, não con-
seguia dar conta do significado que se queria atribuir à melodia. A letra de
“Dança do Bumbum”, abaixo destacamos trecho, de quando o grupo ainda era
conhecido como “Gera Samba”, é um exemplo disso:

Cheguei, hein! Estou no Paraíso!/ Que abundancia meu irmão!/ Conheci uma
menina que veio do sul/ Pra dançar o tchan e a dança do tchu tchu/ Deu em
cima, deu em baixo,/ na dança do tcheco/ E na garrafinha deu uma raladinha/
Agora o Gera Samba mostra pra vocês/ A dança do bumbum que pegou de uma
vez/ Bota a mão no joelho/ E da uma baixadinha/ Vai mexendo gostoso, Balan-
çando a bundinha/ Agora mexe vai,/ Mexe, mexe mainha/ Agora mexe, Mexe,
mexe lourinha/ Agora mexe,/ Mexe, mexe neguinha/ Agora mexe/ Balançando

263
a poupancinha4.

“A dança do bumbum” apresentava uma série de elementos ocultos


quanto ao seu significado e que só podiam ser compreendidos por meio das
performances. O que seriam, por exemplo, as expressões “dança do tchu tchu”,
“deu em cima, deu em baixo, na dança do tchaco” e “na garrafinha deu uma
raladinha” sem a visualização das dançarinas no palco? A vertente maliciosa da
música brasileira pôde em muitas décadas manter contato com o interesse se-
xual dos assuntos presentes em canções diversas, a proteção ou forma indireta
de remeter-se a certos conteúdos, sem necessariamente nomeá-los, é bastante
estratégica e protege os ouvidos sensíveis da menção às partes do corpo ou aos
movimentos com mesmo peso simbólico. Com as dançarinas do “É o Tchan”,
a imagem da dança supera a condição da palavra e dá ao sentido indireto uma
direção à compreensão, facilmente acessível pelo público infantil que teve forte
adesão ao sucesso do grupo.
A menção às duas dançarinas: “Agora mexe, mexe, mexe lourinha; agora
mexe, mexe, mexe neguinha”, explicita que o dançarino “Jacaré” não disputava
notoriedade com suas companheiras de palco, ou que o foco das composições
do grupo voltava-se ao corpo feminino. A sensualidade feminina era o centro
das atenções do “É o Tchan”, em que o corpo das mulheres tornava-se um mo-
delo a ser seguido pelas espectadoras, inclusive crianças. A sexualidade infantil
encontra expressão sobre objeto de consumo e da cultura, as botas da Xuxa e
o shortinho da Carla Pérez tornaram-se produtos adaptados para o consumo
das crianças. Os cabelos pintados de loiro também se transformaram em febre
entre crianças e adolescentes, que se espelhavam no novo modelo estético.
O sucesso era acompanhado e difundido pelos meios de comunicação
nos programas de auditório na televisão e na programação de rádio, confir-
mando a “mensagem do espetáculo” apontada por Debord (1997), de “o que
é bom aparece, o que aparece é bom”, o que Adorno (1999 [1937], p. 66) já
apontava como uma superação do gosto pela identificação com os objetos em
circulação, “em vez do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato
de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é
quase exatamente o mesmo que reconhece-lo”.
Mônica Neves Leme (2003) relata como a mídia teve um forte papel so-
bre a ampliação da popularidade do grupo, dando cobertura a tudo que ocorria
com os seus integrantes:

Ao longo da carreira, o É o Tchan gravou oito CDs e teve várias formações.


4 Fonte: http://www.vagalume.com.br/e-o-tchan/danca-do-bumbum.html.

264
Primeiro Débora Brasil foi substituída por Sheila Carvalho. Depois Carla Pérez
saiu para a carreira de apresentadora de programas de TV, e foi substituída por
Sheila Melo. A seguir foi a vez de Beto Jamaica sair para a entrada de Renatinho.
Em todas essas ocasiões a mídia contribuiu para a escolha de novos integrantes,
com concursos feitos em programas de TV (Domingão do Faustão, da TV Glo-
bo) (Grifos e parênteses do original) (LEME, 2003, p. 107).

Os concursos de TV que ajudavam a promover a imagem do “É o Tchan”


se espalharam pelos canais. Logo surgiram concursos para saber que garota
dançava melhor as músicas do grupo, ou, como os apresentadores falavam,
“quem ralava melhor na boca da garrafa”. Também surgiram concursos em ver-
são mirim, como os promovidos pelo apresentador Raul Gil, na Rede Record,
que premiavam o melhor “É o Tchan” mirim do Brasil. Nesses concursos as
crianças realizam as performances de palco inspiradas nas dançarinas.

Figura 2: Captura de tela. Programas de Sílvio Santos e Raul Gil. Respectivamente: 1995 e 1999.
Fonte da esquerda para direita: https://www.youtube.com/watch?v=3veGcqDM04c. http://
www.youtu-be.com/watch?v=TSGOXOwCFHA.

Essas imagens foram acessadas por arquivos pessoais depositados em


contas de canais na plataforma de vídeo Youtube, a digitalização ou criação de
novas cópias de registros feitos por telespectadores, hoje em circulação livre
pela internet, possibilita relações de pesquisa com fontes construídas na medi-
da em que as tecnologias tornam-se acessíveis também. Na imagem à esquerda,
Silvio Santos promete pagamento em dinheiro para criança que dançar como
a loira do Tchan, dobra os joelhos até aproximar a genitália da fálica garrafa de
cerveja que não pode ser tocada. À direita, em 1999, a final da competição de
concurso promovido pelo programa de Raul Gil do “É o tchan mirim”, diferente
da aparição no programa do SBT, as crianças na Rede Record possuíam todo o
figurino necessário para se aproximarem ao máximo dos, agora, ídolos infantis.
Essas performances sensuais eram exibidas semanalmente na TV, crian-
ças pelo Brasil mesclavam as tradicionais brincadeiras pelas danças rebolantes

265
e insistiam com os pais para ter roupas curtas lançadas pelas dançarinas. Com o
“É o Tchan”, a música extrapolava o simples ato de ouvir: mexia com os corpos,
mentes, gestos, valores e comportamentos – em que a criança disputava com o
adulto quem rebolava o bumbum mais sensualmente.
Os programas de televisão, que são um gênero do entretenimento te-
levisivo (FILHO, 1988, p. 50), possuíram em sua base um lado humorístico,
circense e com um apelo sensual à imagem feminina e infantil. Isso fez do teor
televisivo um atrativo tanto para crianças como para adultos. O sucesso do gru-
po baiano movimentou um mercado paralelo, o de roupas e acessórios, que
fazia referência aos componentes do “É o Tchan”. Nos anos que se seguiram,
com seu sucesso, surgiram “shorts da Carla Pérez”, sandálias, tamancos e outros
produtos que travestiram meninas em “mini-mulheres”, na década de 1990, o
mercado cultural infantil deslocou-se das apresentadoras para outras figuras de
referências, como as dançarinas do Tchan. Geralmente, os produtos paralelos
às músicas chegavam com versões para crianças. O que explica esse sucesso
com o público infantil? Seria difícil precisar de forma afirmativa o porquê de
esse gênero malicioso ter feito tanto sucesso entre crianças, para além das es-
tratégias de criação e difusão da Indústria Cultural. A recepção seria uma pos-
sibilidade fundamental de pesquisa - a recepção ao grupo pelo público infantil
- que demandaria mais tempo, e por isso este trabalho não se dispõe a fazê-lo
neste momento.

Considerações finais

Desde que formulei as primeiras questões a respeito do tema, muitas


ideias foram tomando outros contornos sobre o que pensei entender em re-
lação à cultura do consumo de bens simbólicos e a sexualidade precoce das
crianças. Assim, minha maior preocupação era entender, por meio da história
e seus processos, como isso vinha ocorrendo, pensando em problematizar o
lugar da criança na economia capitalista. Tomei como linhas de investigação
duas vias que coabitam o tema: a história da infância e a influência dos meios
de comunicação de massa, centralizando o papel da televisão. Essas escolhas
me levaram ao contato com outras temáticas que compõem a rede complexa de
inter-relações culturais produzidas em sociedade. Isso significou uma amplia-
ção do objeto que, por muito tempo, tive dificuldades de controlar para evitar
sua fragmentação no espaço e no tempo, o que só foi possível após a escolha
de um recorte temporal e de um objeto central que foram, respectivamente, os
anos 1980 e os programas infantis da TV.

266
Com o auxílio de autores da Comunicação Social, passei a entender a
televisão como meio de difusão e influência social, distribuída em diversos as-
pectos da vida cotidiana. Encontrei nos programas infantis um espaço dedica-
do às atividades da criança e que, segundo a bibliografia consultada, indicava
características de rompimento com as visões tradicionais da infância, cercada
de inocência e ludicidade, com a inserção de novas práticas possíveis de subje-
tivação para as crianças.
Daí em diante, pude enxergar atividades de comercialização da cultura
que envolviam as transformações em torno do corpo feminino e que estavam
conectadas com a infância no último século. Isso exigiu de mim um breve con-
tato com conceitos da psicanálise e teorias da sexualidade residentes na psico-
logia, o que para a prática da História é comum nas pesquisas interdisciplinares.
Se por um lado os programas infantis dos anos 1980 representaram para
uma geração de crianças um espaço na TV dedicado exclusivamente a elas e
sua diversão, por outro, fez delas uma nova categoria social pertencente ao gru-
po de consumidores em potencial. Se por muitos essa época foi chamada de a
geração da “babá eletrônica”, por outros foi acusada de provocar nas crianças
o desejo de ser como seus ídolos, adultos, de bota e perna de fora, exuberante-
mente sensuais, tornando-as consumidoras em potencial.
Atualmente, não é difícil encontrar, principalmente na internet, discus-
sões a respeito do uso da imagem feminina em letras musicais que expressam a
mulher como objeto de uso, por muitas vezes de forma desrespeitosa. Em certa
medida, a acusação de que o poder da Indústria Cultural sobre as pessoas faz
com que elas deixem passar desapercebidamente essas expressões musicais, a
custo do entretenimento, não pode ser concebida como uma determinação de
mercado predominante somente em nossos dias, mas presenciamos cada vez
mais a banalização de temáticas como essa.
A expressão da sensualidade do povo brasileiro ultrapassa a história das
formas massivas de informação eletrônica, está presente na literatura, como na
música, desde o início do século XX ou até mesmo antes disso. Porém, é bem
verdade que a submissão do tema a pesquisas se apresenta como algo urgente
para a problematização da cultura predominante em nossa sociedade, sempre
pensando o lugar ocupado pela criança em meio à mercantilização e banaliza-
ção de valores e pessoas.
Penso que esta é a principal contribuição que pode ser dada por este
trabalho: pensar a cultura visual como uma mercadoria vazia do modo de pro-
dução capitalista, dentro de um processo histórico que não despreza a criança
como sujeito histórico e objeto, consumidora e mercadoria. Ao tempo que a

267
infância chamou a atenção da Indústria Cultural como algo a ser trabalhado e
criado, para atender também interesses de um novo mercado que se formava.
Diante disso, cabe sempre nos perguntarmos: que tipo de infância continua a
ser construída no Brasil?

Referências

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res: Horkheimer e Adorno, Nova Cultural, São Paulo, p.77- 105, 1999.
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nismo como mistificação das massas”. Trad. de Júlia Elisabeth. In: COSTA LIMA,
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1988.
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HULLOT-KENTOR, Robert. Em que sentido exatamente a Indústria Cultu-
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(Org.). A Indústria Cultural hoje. São Paulo: Boitempo, 2008. 
LEME, Mônica L. Que Tchan é Esse? Indústria e produção musical no Brasil dos
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Para Crianças:o disco infantil e a imagem da criança. Dissertação Mestrado, Uni-
versidade de São Paulo, 1998.
POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, [1982]
2012.

268
Narrativas de vida:
a biografia de Marcelo Thadeu de
Assumpção (1950-1970)

Marcus André Chaves Soares da Silva

A biografia não era mais a história de um indivíduo isolado, mas, a história de


uma época vista através de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos.
(DEL PRIORE, 2009, p. 9)

O presente trabalho tem como finalidade analisar a trajetória de vida de


Marcelo Thadeu de Assumpção, nos campos da saúde, educação e política. Para
isso, tomou-se como abordagem teórica o fazer biográfico enquanto história de
vida e/ou história de uma vida em um determinado contexto, envolvido com
toda sua dinâmica histórica, nesse sentido, estamos referindo-nos à biografia
dentro do trabalho do historiador com métodos e técnica da historiografia, em
que buscamos compreender a trajetória singular de um contexto ou persona-
gem.

O campo da escrita biográfica é certamente um palco privilegiado de experi-


mentação para o historiador, que pode avaliar o caráter ambivalente da epis-
temologia do seu ofício, inevitavelmente tenso entre seu polo científico e seu
polo ficcional. Desta forma, a biografia provoca um polêmico questionamento à
absoluta distinção entre um gênero verdadeiramente literário e uma dimensão
puramente científica, suscitando a mescla, o hibridismo, e expressa, assim, tanto
as tensões como as convivências existentes entre literatura e Ciências Humanas.
(AVELAR, 2010, p. 161.).

Mediante isso, entender a trajetória de vida de Marcelo Thadeu de As-


sumpção, a partir da perspectiva do uso do fazer biográfico na história, permi-
te-nos através da trajetória de vida realizar um estudo e análise macroestru-
tural da sociedade em que esse sujeito esteve envolvido. Além dessa questão,
a biografia nos abre quadros explicativos acerca dessa realidade em vista das
ações em que esse sujeito, objeto da biografia, fez-se presente. Assim, o recorte
temporal elencado será entre 1950 a 1970, por perceber nesse período uma
dinâmica ao que se refere às atividades desenvolvidas como sujeito público,
principalmente pelo destaque no cenário político, educacional e no âmbito da
saúde com suas contribuições1. Em relação à cronologia, para compreender a
vida do biografado, torna-se um ponto interessante, pois é possível entender
aspectos da personalidade desse sujeito com suas ações, sejam elas diante de
certezas ou incertezas. Porém, Bourdieu nos fala que esse tipo de ação também
pode ser perigoso, pois, diante da cronologia, essa trajetória e o resultado dessa
pesquisa nos dimensionariam a uma narrativa com uma trajetória linear e com
um sentido artificial.
O interesse por essa temática surge a partir de uma sugestão, pois minha
intenção não era trabalhar a biografia de Marcelo Thadeu de Assumpção, mas
apenas analisar a sua contribuição no cenário educacional de Caxias-MA, na
segunda metade do século XX. Diante da sugestão, iniciei a pesquisar acerca
da história de vida dele, pois nos jornais em que ele era proprietário foi possí-
vel perceber a imagem de humanista que Marcelo Thadeu demonstrava para a
sociedade caxiense. O periódico, “Tribuna Caxiense”, representava-o como um
homem humilde, sempre preocupado com o próximo e, principalmente, com
a população menos favorecida. Nesse caso, Capelato (1998, p. 34) nos fala que
“nos vários tipos de periódicos e até mesmo em cada um deles encontramos
projetos políticos e visões de mundo representativos de vários setores da so-
ciedade”.
Desse modo, segundo Pierre Bourdieu:

1 O objeto da história, portanto, não são, ou não são mais, as estruturas e os mecanismos
que regulam, fora de qualquer controle subjetivo, as relações sociais, e sim as racionalida-
des e as estratégias acionadas pelas comunidades: as parentelas, as famílias e os indivíduos.
[...] o olhar se desviou das regras impostas para as suas aplicações inventivas, das condutas
forçadas para as ações permitidas pelos recursos próprios de cada um: seu poder social, seu
poder econômico, seu acesso à informação (CHARTIER, 1994, p. 98).

270
É impossível compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento social que,
embora o acompanhe de forma inevitável, é independente do envelhecimen-
to biológico) sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos
do campo no qual ela se desenrolou e, logo, no conjunto das relações objetivas
que uniram o agente considerado – pelo menos em certo número de estados
pertinentes – ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e
confrontados com o mesmo espaço dos possíveis. Essa construção prévia tam-
bém é a condição de qualquer avaliação rigorosa do que podemos chamar de su-
perfície social, como descrição rigorosa da personalidade designada pelo nome
próprio, isto é, o conjunto das posições simultaneamente ocupadas num dado
momento por uma individualidade biológica socialmente instituída e que age
como suporte de um conjunto de atributos e atribuições que lhe permite inter-
vir como agente eficiente em diferentes campos. (BOURDIEU, 1996, p. 190).

Para tanto, compreender a trajetória de vida de Marcelo Thadeu de


Assumpção, a partir da perspectiva do fazer biográfico na história, fez-se ne-
cessário um apoio teórico e bibliográfico para a pesquisa, desse modo, para a
tessitura dele, foi relevante reportar-me inicialmente às memórias de alguns co-
laboradores, entre esses, familiares, funcionários e amigos de Marcelo Thadeu,
como o sobrinho Antonio Luiz de Oliveira Assunção, que durante sua infância
e juventude esteve ao lado do tio, seguindo seus passos, tanto no campo polí-
tico como profissional, pois se tornou médico e adentrou na carreira política
como vereador.
Destaca-se a contribuição de Maria Idelcineide Assunção Farias, resi-
dente em Caxias, também conviveu longos anos com Marcelo Thadeu, ela é se-
cretária da Escola Coelho Neto desde 1967. Obteve-se a colaboração de Maria
Julia Andrade Soares, professora na Escola Marcelo Thadeu de Assumpção, lo-
calizada no bairro Tamarineiro, onde conviveu e mantém até os dias atuais sua
opinião sobre ele. Contribuiu, ainda, Angélica Torres Gonçalves, residente em
Caxias e foi uma das pacientes de Marcelo Thadeu. Nesse sentido, as memórias
concedidas por Manoel de Páscoa Medeiros Teixeira (Passinho) foram impor-
tantes, visto ser um memorialista, o biografado era médico de sua família.
Diante disso, para analisar a trajetória de vida de Marcelo Thadeu de
Assumpção, foi relevante o conceito de biografia de Pierre Bourdieu (1996) ao
questionar a abordagem biográfica, pois, para ele, deve-se abordar o indivíduo
de acordo com sua ação e representatividade na constituição, organização e
manutenção nos diferentes campos, criticando, assim, aquele tipo de biografia
linear. E Mary Del Priore (2009), ao trabalhar a escrita biográfica enquanto
narrativa, logo a escrita biográfica envolve uma narrativa de “movimentos en-

271
cadeados e uma intriga codificada por fatos reais, interpretados”.

2 O fazer biográfico na história: a trajetória de vida de Marcelo Thadeu de


Assumpção em Caxias-MA

O século XX veio para mexer nas estruturas do fazer historiográfico.


Em 1929, na França, a fundação da Revue de Annales trouxe para as pesquisas
históricas a aproximação com os métodos e concepções teóricas das outras ci-
ências sociais, como a antropologia, a psicologia e a sociologia. Na década de
1970, Jacques Le Goff e outros historiadores popularizaram a expressão “Nova
História” através do livro La Nouvelle Histoire, para se referirem às várias possi-
bilidades da escrita da História (OLIVEIRA JUNIOR, 2010).
A historiadora Lynn Hunt denominou esse período como uma virada
cultural, pois para ela as análises de grandes heróis, fatos políticos e econômi-
cos começaram a ser deixadas de lado e conduziram os historiadores a perce-
berem estruturas individuais e coletivas que envolviam também as populações
que não estavam dentro dos campos de prestígio social e econômico. Assim, a
história possibilitou novos objetos que passaram a ser trilhados pelos historia-
dores, a biografia, nesse viés, é uma temática que cada vez mais tem crescido na
produção historiográfica.
Nesse sentido, Borges (2009) elenca que a narrativa biográfica supõe
uma modalidade de escrita da História profundamente imbricada nas subje-
tividades, nos afetos, nos modos de ver, perceber e sentir o outro. Talvez este
seja o grande desafio do trabalho biográfico: ao falar do seu personagem, o bi-
ógrafo, de certa forma, fala de si mesmo, projeta algo de suas emoções, de seus
próprios valores e necessidades.
As pesquisas biográficas tornam possível o redimensionamento de vá-
rias problemáticas concernentes à escrita da História e às relações sociais. Uma
escrita biográfica revelaria, portanto, um lócus privilegiado, não mais para um
acesso ao universal, mas para revalorização dos atores sociais, alargando nossa
compreensão do passado sem tomá-lo como uma unidade dada e coerente,
mas como um campo de conflitos e de construção de projetos de vida.
A escrita biográfica envolve uma narrativa de “movimentos encadeados
e uma intriga codificada por fatos reais, interpretados” (DEL PRIORE, 2009,
p. 11). O texto escrito por um historiador-biógrafo deve, portanto, contar a
história real de uma vida, o que nos coloca inevitavelmente no cerne da proble-
mática da narrativa ou do seu retorno (AVELAR, 2010).
Acerca da problemática em torno da escrita biográfica, Roiz (2012) res-

272
salta que é preciso questionar quais os caminhos e descaminhos que a própria
biografia seguiu na história e quais os distanciamentos e as aproximações que
se deram entre ambas. Em contrapartida, é necessário ter em mente as diversas
maneiras como os estudos biográficos foram pensados, criticados, negados e
praticados ao longo do tempo.
Nessa lógica, a pluralidade de formas de narrar a vida de um indivíduo,
nas décadas iniciais do século XX, vislumbrou-se com maior regularidade os
modelos de biografias que se constituíram em narrativas cronológicas e line-
ares, nas quais se percebia a vida de um indivíduo como começo, meio e fim
previamente definidos. Para tanto, em meados do século XX, começam a surgir
descontentamentos com esse tipo de abordagem biográfica, a exemplo de Pier-
re Bourdieu que, segundo Roiz (2012), vem expressar seu descontentamento
com esse tipo de abordagem.

Para ele, é questionável o tipo de biografia puramente cronológica e linear, que


estabelece um sentido teleológico para o indivíduo, pois as peculiaridades do
contexto e a especificidade da trajetória do indivíduo tornariam escolhas, ações
e personalidades múltiplas, plurais e, em dadas circunstâncias, também contra-
ditórias. Por essa razão, critica o tipo de biografia voltada para a história de vida
com curso e caminho orientado e definido desde o início, com começo, meio e
fim antecipadamente estabelecidos. (ROIZ, 2012, p. 5).

Perante isso, elenca-se que Bourdieu propõe que se aborde o indivíduo


de acordo com sua ação e representatividade na constituição, organização e
manutenção nos diferentes campos, criticando, assim, aquele tipo de biografia
linear. Por tanto, o indivíduo deve ser analisado por meio de sua trajetória, a
qual deve ser vista de acordo com a movimentação dos indivíduos pelos cam-
pos político, religioso, econômico, intelectual, literário.
Ao escrever uma biografia, é relevante nos atentarmos para alguns fatos,
tais como: saber organizar a vida do biografado em meio à sua vida social e
seu tempo, não podendo interferir nos fatos acontecidos em seu tempo ao dar
ênfase para algum fato ou distorcê-lo a fim de beneficiar ou não o biografado.
Portanto, é necessário que se conheça o contexto no qual estava inserido, pois
determinados fatos podem não ter sido registrados em documentos, fazendo
com que informações relevantes acerca do biografado sejam ocultadas, conse-
quentemente, acabam gerando incertezas quanto aos fatos narrados.
Diante disso, percebemos que muitos são os caminhos para chegar à re-
construção parcial de uma trajetória pessoal, em que o indivíduo é o ator que

273
narra experiência de si, questiona os sentidos de suas vivências e aprendizagens.
As biografias, segundo Doudement (2013), seguem uma linha de par-
cialidade que levam à compreensão da trajetória e da inserção social do bio-
grafado, tornando-se para o historiador uma ferramenta de compreensão das
maneiras como se pode filtrar o contexto histórico, bem como as intenções
por trás do discurso do biografado. Caracterizando, assim, as biografias como
conteúdos históricos que possibilitam vieses de investigações com discursos
retóricos.
Partindo desse pressuposto, as histórias de vida se constituem como um
enredo único e complexo que vão desvelando as relações familiares, pessoais,
o meio social e cultural em que o sujeito se insere, revelando uma espécie de
“teia narrativa” (ALMEIDA, 2011) em que a carreira profissional e pessoal se
desenrolam.
Mediante isso, procuramos compreender a trajetória de vida de Marcelo
Thadeu de Assumpção, a partir da perspectiva do uso ou do fazer biográfico na
história enquanto fonte documental de pesquisa, elencando os anos iniciais de
vida do biografado, as suas contribuições no cenário público enquanto médico,
educador e político.
Marcelo Thadeu de Assumpção nasceu na cidade de Caxias no dia 16
de janeiro de 1916, filho do comerciante Antonio Thadeu de Assumpção e de
Guiomar Assumpção, estudou o ginásio no Colégio Caxiense e no Liceu Ma-
ranhense, na capital São Luís, onde, devido à sua vocação de bem servir ao
próximo, envereda-se pelo Seminário, mas, por influência de amigos como Al-
derico Silva e de familiares, gradua-se na Faculdade de Medicina da Bahia, de-
dicando-se inteiramente ao curso, mas sem perder de vista a sua cidade Caxias.
Ainda na graduação, já era solicitado para dar sugestões ou contribuições para
a saúde de sua cidade. Na imagem a seguir, destaca-se o Diploma de Médico de
Marcelo Thadeu de Assumpção em 1944.

274
Figura 1: Diploma do curso de Medicina de Marcelo Thadeu de Assumpção.
Fonte: Memorial Humanista Dr. Marcelo Thadeu de Assumpção
(Fundação Educacional Coelho Neto).

É relevante destacar que em virtude dos diversos instrumentos clínicos


usados nos tratamentos cirúrgicos por Marcelo Thadeu de Assumpção, bem
como seus pertences diversos como livros, diplomas e objetos mobiliários, a fa-
mília em sua homenagem construiu, dentro da Fundação Educacional Coelho
Neto, o “Memorial Humanista Dr. Marcelo Thadeu de Assumpção”.
Segundo Alberti (2000), uma entrevista de história oral pode reconstruir
processos decisórios e revelar informações que de outra forma se perderiam.
Sendo assim, acerca dessa breve explanação da vida de Marcelo Thadeu de As-
sumpção, ressalta-se o relato de Antonio Luis de Oliveira Assunção, médico,
vereador municipal na cidade de Caxias-MA e sobrinho do biografado.

Na verdade, a formação dele foi primeiro seminarista, ele foi seminarista, né,
dois anos fez seminário em São Luis, depois então foi que ele resolveu fazer o
concurso pra medicina lá na Bahia, ele teve oportunidade de fazer em São Luis,
mas naquele tempo tinha mais nome na Bahia, né, e ele depois dele terminar a
formação de seminarista ele também foi professor de francês e latim lá no colé-
gio caxiense. (ASSUNÇÃO, 2016).

Enquanto médico, ele exerceu a medicina como um sacerdócio, sendo


um dos profissionais mais competentes na área médica, na sua época. Uma
característica que o marcava, apesar de alguns entrevistados o definirem como
grosseiro, era o seu caráter humildade, “[...] Dr. Marcelo, as vezes, além de con-

275
sultar, de operar, passar receita, ainda dava o remédio, dependendo da condi-
ção financeira do seu paciente [...]” (BASTIANI, 1998, p. 21), bem como aten-
der a população na própria residência, pois a cidade ainda não disponibilizava
de um hospital para atender seus doentes.
Outra responsabilidade social assumida por Marcelo Thadeu de As-
sumpção foi no campo da educação, além dessas funções, Marcelo Thadeu de
Assumpção também permeia o cenário político caxiense.

3 As múltiplas faces de um homem: as contribuições de Marcelo Thadeu de


Assumpção para a medicina e o cenário educacional caxiense (1950 - 1970)

Falar em Marcelo Thadeu de Assumpção é falar de um dos médicos que


marcou a cidade de Caxias entre as décadas de 50 a 60, bem como nas décadas
seguintes, porém, foi nessas duas décadas o auge de sua carreira como médico
devido ao pequeno número de profissionais atuantes nessa área dentro da ci-
dade de Caxias, ficou conhecido como médico humanitário por sua forma de
atuar, de tratar seus pacientes, sendo esse aspecto perceptível através das falas
de pessoas que ajudaram na construção deste trabalho, e também pelos escritos
que se têm sobre ele.
Dentro da área da medicina, atuou como Médico da Campanha de Pro-
dução em Caxias e foi eleito, em 19 de agosto de 1972, para o cargo de vice-
-presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Caxias, assim, durante sua
trajetória na medicina, desempenhou vários cargos, os quais seguem adiante.

Em meados de 1950. O Largo da Matriz é passagem obrigatória para os muitos


caminhos que o Dr. Marcelo Thadeu trilha todos os dias, seja para ir para o INPS
(Instituto Nacional de Previdência Social), onde atende como médico aos asse-
gurados, para o Hospital Miron Pedreira, da Sociedade Humanitária de Caxias,
do qual é vice-diretor, [...], para atender aos sócios do Centro Artístico Operário
Caxiense, para assistir aos pacientes da 9ª Delegacia de Saúde de Caxias, onde
o médico é Medico Chefe. E também, pelo Largo da Matriz da Conceição que
ele segue pela Rua do Porto Grande para atravessar o rio Itapecuru, pela velha
ponte de madeira, para atender o pessoal do DER (Departamento de Estradas
de Rodagem). (BASTIANI, 1998, p. 22).

Segundo Oliveira (2011), no que concerne ao Hospital Miron Pedreira,


Dr. Marcelo Thadeu de Assumpção foi o primeiro médico a prestar atendimen-
to ao público naquele hospital, antes mesmo de sua inauguração, desde o ano

276
de 1953 o ambulatório do hospital já funcionava, e era ele quem atendia esse
setor.
Marcelo Thadeu de Assunção, enquanto médico, exercia um trabalho
voltado para o assistencialismo e o preventivo. Segundo Bastiani (1998), um
dos trabalhos mais exaustivos que Dr. Marcelo Thadeu realizava era o parto,
pois, embora existissem as parteiras, elas já não eram tão solicitadas, a presença
de médicos com seus conhecimentos científicos inibia o chamamento dessas
mães de parto.
Acerca desse trabalho assistencialista e preventivo realizado por Dr.
Marcelo Thadeu, ressalta-se que no Brasil, até o início dos anos 1960, predomi-
nou o modelo político assistencial do sanitarismo campanhista, isto é, política
de saneamento destinada aos espaços de circulação das mercadorias ou contro-
le das doenças que poderiam prejudicar a exportação (POLIGNANO, 2009).

[...] No entanto, houve um deslocamento do modelo campanhista de ação para


o campo e ao combate das denominadas endemias rurais, utilizado pela SU-
CAM (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública) para lutar contra es-
sas endemias. Nesse modelo apenas os trabalhadores urbanos tiveram do gover-
no um ação assistencial, porém com a extensão das endemias para o campo essa
política que privilegiava apenas o espaço urbano foi desarticulada. (OLIVEIRA,
2013, p. 16).

É válido destacar acerca da saúde preventiva, o relato de Manuel de


Páscoa Medeiros Teixeira em que rememora as idas e vindas de Dr. Marcelo
Thadeu à sua residência, pois “Dr. Marcelo foi médico da minha família [...]”
(TEIXEIRA, 2015). E assim detalhou sobre a saúde preventiva:

Naquela época, a saúde para a época era três vezes melhor que a de hoje, porque
naquela época tinha uma saúde preventiva, os médicos vinham em casa, Dr.
Marcello ele vinha com um guarda-chuva, a pasta e um aparelho de pressão no
ombro, com a bata branca, com o bolso cheio de injeções, ainda uma caixinha
na sua pasta de amostra grátis. Dr. Marcello, Dr. Achiles Cruz, DR. José Bran-
dão e Dr. Salvador Barbosa, eu conheci Caxias com quatro médicos, mas esses
quatros médicos eles traziam as ferramentas pra fazer o parto em casa, o Miron
já existia, mas o Miron ainda tava longe do povo, mas o médico fazia a busca do
povo, iam atrás em casa, era uma coisa muito bonita, a medicina era respeitada,
o médico naquela época era um mito [...]. (TEIXEIRA, 2015).

No relato é destacada a questão da saúde preventiva realizada por Mar-


celo Thadeu de Assumpção ao visitar as residências dos seus pacientes, sejam

277
ricos ou pobres, como se observa, a seguir, no bilhete do seu amigo e Bispo de
Caxias, D. Luiz Marelin, enviado ao Dr. Marcelo Thadeu de Assumpção.

“Amigo Marcelo,
Marciano, bom rapaz, que me dá sempre dias de serviço aqui em casa, encontra-
-se doente, faz muitos dias. Não se sabe o que é.
Peço ao Sr. em nome de nossa velha amizade e de seu espírito humanitário, dê
um pulinho lá, para o examinar e medicar. Aí vai o nosso carro, que poderá
levá-lo e, depois, trazê-lo novamente”
Ficar-lhe-ei muito grato.
O amigo D. Luis. (BASTIANI, 1998, p. 22)

O bilhete, de fato, discorre acerca de um pedido feito ao Dr. Marcelo


Thadeu por parte do Bispo de Caxias na época, D. Luis Marelin, em favor de
um rapaz que lhe prestara serviços. No caso de pessoas abastadas, eram envia-
dos transportes, como carros, para buscá-lo e levá-lo à residência do paciente.
Um aspecto que o destacava enquanto médico era a sua função de obs-
tetricista, pois, segundo a entrevistada a seguir, ele era muito procurado pelas
gestantes.

[...] A lembrança que eu tenho dele é que as mulheres parideiras gostavam mui-
to dele, na hora que sentia dor era ele, ele era um bom parteiro, um bom parteiro
mesmo, só que era naquele jeito dele. Até que eu tenho uma comadre, aí ela veio
do interior, trouxeram aqui pra casa, aí eu não sei como ele atendeu essa mulher,
e a mulher veio do interior com aqueles remédios que passam na barriga, tanta
coisa, aí chamaram ele lá dentro, aí ele procurou porque temperaram tanto ela,
menino mas a gente sorriu, a gente sorriu de mais, porque ele era assim todo
maluco, daquela forma... Os partos que ele fazia era tudo normal, mas nessa
parte ele era um bom médico. (GONÇALVES, 2016).

Portanto, observa-se quão grande foi a contribuição de Marcelo Thadeu


para a cidade de Caxias, pois a população, em especial as mulheres, tinha muita
confiança no seu trabalho como médico.
No que concerne à sua participação no Hospital Miron Pedreira em
Caxias, Marcelo Thadeu de Assumpção juntamente com José de Assunção
Brandão e Salvador de Castro Barbosa foram os primeiros a compor o corpo
médico daquele hospital.
É relevante citar que, ao longo de sua trajetória de vida, Marcelo Thadeu
de Assumpção recebeu diversas honrarias, tendo como destaque os serviços
prestados à medicina maranhense.

278
Trazendo como foco a educação, problematiza-se a trajetória profissio-
nal de Marcelo Thadeu de Assunção no cenário educacional caxiense. Nesse
viés, a discussão a ser empreendida, em relação à formação e trajetória educa-
cional, dá-se de modo articulado na história da cidade.
Coutinho (2005) afirma que “Caxias, desde os seus primeiros tempos,
mesmo nas eras mais remotas, em que lhe deram o nome de Aldeias Altas, pri-
mou sempre pelo amor à instrução, sentimento inato que sempre caracterizou
seus filhos”. Embora a afirmativa do escritor enalteça a prioridade educacional
dentro da cidade de Caxias, o que percebemos dentro da história é que nem
sempre a educação foi tão priorizada e oferecida a todos os filhos desta cidade,
tanto que no período trabalhado o índice de analfabetismo era muito elevado.
Dentre as escolas particulares existentes em Caxias na época estava o
Ginásio Caxiense, o pioneiro das escolas privadas, sendo fundado em 1935, em
seguida, o Ginásio São José, fundado em 1955, o Ginásio Diocesano, também
em 1955. Para o ensino público fica o primário, pois só em 1963 Caxias ganha
a primeira escola ginasial pública, o colégio Gonçalves Dias.
Foi dentro desse contexto que Marcelo Thadeu de Assumpção passa a
interessar-se pelo ensino, embora todos soubessem seu amor pela medicina,
Marcelo Thadeu não se conteve em exercer apenas a profissão da formação
acadêmica. Quando foi seminarista, aprendeu a falar francês e latim, até mes-
mo porque na Universidade da Bahia, onde se formou no curso de medicina,
era uma obrigação o aluno ter que dominar a língua francesa, pois muitos dos
livros eram escritos no referido idioma, familiarizando os alunos com a língua
estrangeira.
Bastiani (1998) afirma que Marcelo Thadeu fez o Curso Normal pelo
Colégio Santa Rosa, onde especializou-se em latim, francês, História Natural e
Ciências, com registro definitivo no MEC.
Sendo assim, em 1950, atende ao pedido de D. Luis Marelin para lecio-
nar latim e francês no Seminário, onde lecionou até 1954. A prática docente se
expandiu na vida dele, fazendo com que o médico-professor lecionasse tam-
bém nas grandes escolas da cidade, como Caxiense, São José, Diocesano, todas
tidas como “escolas de elite”.
Dentro do recorte temporal proposto, através da realidade educacional
mostrada pelos documentos e lembranças de pessoas que viveram na época,
percebemos de certa forma que a preocupação com a educação dos “caxienses”
era bem restrita, pois, se voltarmos nosso olhar para esse quadro, surgem inú-
meras indagações. Tendo em vista que a grande maioria das escolas existentes

279
no período era particular, ou seja, de acesso à elite, como as demais classes
caxienses seriam beneficiadas com a educação? Como relata Maria Ferreira da
Silva:

Na época que cheguei pra cá só tinha segundo grau no Diocesano, Caxiense,


Coelho Neto... só tinha particular. E quem não tinha condição de pagar só fazia
o fundamental, era muito difícil, mas a tinha que se sacrificar pra pagar. Na
época a educação não era direito de todos. (SILVA, 2016).

A falta de escolas públicas para a população caxiense era algo gritante,


pois a população de uma das cidades mais visadas politicamente permanecia
no caos quando o assunto era educação, pela má qualidade que oferecia, no
recorte a seguir, destaca-se um noticiário em que se pede mais escolas para a
cidade de Caxias.

Figura 2: Noticiário reclamando a falta de escola em Caxias.


Fonte: Jornal Folha de Caxias, 1963.

As escolas particulares estavam de portas abertas para os que podiam


manter-se e terminar o segundo grau, e os liceus estavam à espera dos que
podiam sair de suas cidades para completarem seus estudos, e, logo mais, sa-
írem até dos seus estados para poderem alcançar uma formação acadêmica.
Enquanto que os menos favorecidos, sem possibilidades de acesso ao ensino,
geralmente paravam os seus estudos.
Em virtude disso, a fundação do Colégio Coelho Neto, em 1963, foi uma
das maiores criações de Marcelo Thadeu de Assumpção, sendo esse estabeleci-
mento erguido com recursos praticamente próprios, bem como a contribuição
de Pedro Aleixo e Eugênio Barros.

280
Figura 3: Nota pública sobre a autorização do Ginásio Coelho Neto em Caxias- MA.
Fonte: Jornal Folha de Caxias, 28 de abril de 1963, Ano I, nº 13, p. 1.

Na nota pública é frisado, além da autorização de funcionamento da es-


cola, o turno de funcionamento, o público a que se destina, mediante a faixa
etária, a questão do exame de admissão, fazendo ainda referência ao diretor da
escola. Acerca da inauguração e das instalações da escola, ressalta-se que: “Pre-
tende o Dr. Marcelo inaugurar, ainda este ano, o prédio do seu ginásio, que tem
mobiliário moderno e padronizado, de modo, a rivalizar-se com os melhores
do gênero” (BASTIANI, 1998, p. 28). Assim, a festa de inauguração contou com
a presença de todas as classes sociais, financeiro e hierárquico.
De acordo com dona Idelcineide Assunção Farias Silva, secretária da
escola Coelho Neto desde 1967 até os dias atuais, a criação da escola foi para
Marcelo Thadeu a realização de um sonho, entretanto, nos seus primeiros qua-
tro anos, a escola funcionou no prédio da escola Eugênio Barros, e só em 19 de
abril de 1967, a escola passa a ter um prédio próprio tendo muitas ampliações,
situada, assim, na rua Coronel Libânio Lobo, nº 805, onde funciona até a atu-
alidade.

281
Figura 4: Fachada da Escola Coelho Neto, 2016.
Fonte: Acervo pessoal de Marcus André Chaves Soares da Silva, 2016.

Vale destacar que alguns dos alunos que passaram a estudar na referida
escola, apesar de ser uma escola particular, eram bolsistas vindos da zona rural,
chegando até a morar na própria escola, pois, por conta desse fato, funcionava
também como república para esses alunos. Podemos perceber isso nas lem-
branças de Manoel de Pascoa Medeiros Teixeira, pois diz que:

Neste período a Escola Coelho Neto se tornou a maior escola em número de


alunos, porque o Dr. Marcello tinha um lado humanista também, ele dava bol-
sas, ele fazia convênio com o estado e com a federação pra manter o colégio com
os bolsistas, e o Coelho Neto chegou a atingir uma média de 1.300 alunos, para
aquela época em Caxias foi uma grande escola que funcionava os três turnos,
era uma escola acreditada, com bons professores, bons mestres, inclusive eu fui
aluno desta escola, estudei e trabalhei. (TEIXEIRA, 2016).

A escola, para quem dela fazia parte, e para quem era beneficiado pelas
bolsas dadas pelo Dr. Marcelo Thadeu, era vista e conhecida como uma escola
popular, lugar de pobres e ricos. Quanto ao corpo docente da escola, faziam
parte dessa equipe pessoas que, embora não tivessem uma formação específica
na docência, tinham alguma afinidade com a disciplina que ministravam. Fa-
ziam parte desse seleto grupo:

Juiz, bancário, dentista, promotor, médico, contador, eles lecionavam a disci-


plina a qual se identificavam. O próprio Dr. Marcelo foi professor de cursinho
na Bahia, pois quando estava no seminário aprendeu latim, francês e também

282
dominava ciências, as quais lecionaram em algumas escolas, inclusive na escola
dele. (FARIAS, 2015).

Segundo o entrevistado e sobrinho de Marcelo Thadeu de Assumpção,


o Dr. Antonio Luis, um dos maiores orgulhos da história da escola são as pes-
soas que já passaram por lá, pessoas essas que obtiveram destaque na lista de
pessoas ilustres da cidade de Caxias, como Antenor Viana, Antonio Carlos Ma-
galhães, entre outros, e também teve como funcionária, professora e diretora
Filomena Teixeira Machado.
Para tanto, a ideia de criar a fundação do Colégio Coelho Neto veio da
observação do crescimento populacional da cidade e, consequentemente, a ne-
cessidade de mais salas de aula para as novas gerações que já se apresentavam
com idade escolar, isto é, Marcelo Thadeu preocupado e empenhado em tra-
balhar pela educação de Caxias, ao criar o Colégio Coelho Neto que, embora
particular, não deixava de atender alunos carentes.

4 Ensaiando passos no cenário político: a entrada de Marcelo Thadeu de


Assumpção no campo da administração pública

O recorte temporal deste trabalho está inserido em um dos momentos


marcantes da história do estado do Maranhão, é notório que principalmente
os anos 60 foram marcados pela decadência da oligarquia vitorinista e o surgi-
mento de uma nova oligarquia trazendo o nome de José Sarney como o líder
desse novo grupo que estava ganhando força dentro da política maranhense.
Sendo assim, o que vinha ajudando o grupo sarneísta a ganhar espaço
dentro da história política maranhense era a propaganda de um “Estado Novo”,
contrário à administração anterior, que embora tenha passado tanto tempo no
governo do estado, o grupo político de Vitorino não vinha agradando a popu-
lação. Na visão de Costa (1997), o discurso usado por Sarney foi um discurso
claramente desenvolvimentista e modernizante, em que a imagem do “novo”,
do “moderno”, é fartamente explorada para indicar supostos benefícios trazi-
dos para a região e sua população pela ação da oligarquia dominante. Dessa
maneira, Sarney ganhou as eleições de 1965, sendo o primeiro governador do
Maranhão no período da ditadura.
Sabemos que, dentro desse jogo político, cada grupo luta por maior es-
paço de conquista, assim percebemos o porquê do nome de Dr. Marcelo Tha-
deu ter grande relevância para a disputa desse momento em que estava em jogo
o domínio da cidade de Caxias-Ma, dessa forma, entendemos que o interesse

283
maior do grupo político encabeçado por Sarney era não perder o governo de
um dos maiores e mais importantes municípios do estado.
Para um melhor entendimento sobre a entrada do Marcelo Thadeu de
Assumpção na vida política, devemos partir do momento em que foi candi-
dato a prefeito no ano de 1955, mas não obteve êxito, perdendo a eleição para
João Machado, representante da oligarquia vitorinista2 em Caxias. Em 1959,
candidata-se pelo PTB a uma vaga na Assembleia Legislativa do Estado do Ma-
ranhão, assume uma cadeira como Deputado Estadual, sendo esse, de fato, o
início de sua carreira política.
Segundo Bastiani (1998), como deputado, o Dr. Marcelo Thadeu prestou
muitos serviços a Caxias, tais feitos retrataremos no decorrer do trabalho. Vale
ressaltar que o mesmo escritor destaca os prestígios de Marcelo Thadeu não só
na imprensa local, mas também da capital, como Jornal do dia, Jornal do Bolso,
Jornal O Imparcial, sendo que todos circulavam na capital São Luís, esses jor-
nais sempre elogiavam o desempenho dele.
Em 1967, é reeleito Deputado Estadual para mais um mandato de quatro
anos, porém, antes do término do seu segundo mandato, Dr. Marcelo torna-se
membro do partido ARENA (Aliança Renovadora Nacional), do qual faziam
parte os que ele considerava como grandes amigos e incentivadores na vida
política, eram eles: Alexandre Costa, Aluizio Lobo (prefeito na época), José
Sarney (Governador na época), também tinha o apoio de Alderico Silva, que
era considerado um dos homens mais influentes da cidade.
Conforme dito por dona Maria Idelcineide Assunção, de todos os ci-
tados acima, Alexandre Costa foi o maior motivador para ele seguir carreira
política, podemos perceber isso através da escrita de Bastiani (1998), quando
afirma que:

O seu grande amigo Alexandre Costa não tinha local nem hora pra enaltecê-lo.
Além da grande amizade existente entre os dois, Alexandre sempre procurava
colocá-lo no topo, quase versejando as qualidades. Não fosse a sua incapacidade
de saúde, com certeza estaria escrevendo páginas e páginas enaltecendo o amigo
de sempre de todas as horas. (BASTIANI, 1998, p. 47).
2 “O Vitorinismo, com efeito, foi um coronelismo. Das suas formas de ação exclui-se a
propensão para a dominação econômica. Nesse caso (ao nível de Estado), essa dominação
se processava de forma indireta, ou seja, por meio do apoio que dispensava as suas bases
de sustentação, através da concessão de garantias específicas. No plano político propria-
mente dito- esfera exclusiva do interesse do Vitorinismo - a sua ação se centrava em torno
do controle dos partidos políticos e das sub-lideranças políticas com ele identificadas que,
juntamente com os coronéis do estado davam a configuração real do vitorinismo” (CAL-
DEIRA, 1978, p. 60).

284
Depoimentos do autor e de quem o conhecia revelam que a amizade
existente entre os dois não era segredo, creio que foi através da motivação de
seu amigo (ou amigos) que ele aceitou mais esse desafio, o qual marcaria mais
ainda sua participação na política, dessa vez, Marcelo Thadeu foi convidado
para mais uma vez concorrer às eleições para a prefeitura de Caxias, tendo
como adversários o Dr. Raimundo Nonato Medeiros e Filomena Teixeira (Tia
Filozinha), duas pessoas que tinham grande prestígio dentro da cidade.
Dr. Raimundo Nonato Medeiros por ser um grande médico, e Filomena
Machado Teixeira, “Tia Filó”, por ser “professora de muitas gerações, abnegada
pela causa da educação, querida tanto pelos alunos como pelos seus pais” (BAS-
TIANI, 1998, p. 35).
É válido destacar que “a Filozinha muito fez por Caxias, e para os caxien-
ses, no magistério, na política, no feminismo, nos movimentos sociais, nas rei-
vindicações populares e, em tudo, imprimindo moral irrepreensível” (LOBO,
2003, p. 151).
Essa era a imagem que muitos tinham dos opositores do grupo que estava
no poder, fazendo com que a preocupação e o medo de sair de cena crescessem
cada vez mais, pois naquele momento o governo do atual prefeito Aluízio Lobo
não estava indo bem aos olhos dos caxienses e o risco de perder as eleições era
imenso e, dentro dessa realidade, o número de opositores crescia cada vez mais.
Pelo fato de o quadro político de Caxias, no final do mandato do prefeito
Aluízio Lobo, não está a favor do grupo ARENA3, e pela oposição ser muito
forte, viram no Dr. Marcelo Thadeu a chance de vencerem aquela disputada
eleição, pois o prestígio de Aluízio Lobo não era o suficiente para que o grupo
ARENA vencesse as eleições.
O convite foi aceito pelo Dr. Marcelo Thadeu, tendo como vice Elmary
Torres, tais candidatos contaram com o apoio total dos seus aliados e com fer-
ramentas poderosas, podemos citar, sem sombra de dúvida, o jornal Folha de
Caxias, pois durante o período político se percebia a ênfase e a exaltação que
fazia sobre o nome do Dr. Marcelo Thadeu em cada matéria.
Apesar da acirrada disputa, a vitória foi de Marcelo Thadeu e Elmary
Torres, vitória essa que rendeu comentários, pois os boatos eram que havia tido

3 A ARENA foi criada por políticos conservadores ligados à Ditadura Militar, como par-
tido situacionista. A ARENA foi um dos dois partidos criados no período de vigência do
chamado bipartidarismo (o outro partido foi o Movimento Democrático Brasileiro- MDB),
montado pelo Regime a fim de dar aparência da existência de um jogo democrático no país.
(GUILHON, 1996)

285
fraude na apuração dos votos, e assim ficam os dois lados da história: a vitória
foi merecida ou houve a fraude apontada pelo grupo opositor?
Ainda hoje a eleição é vista como uma das maiores disputas políticas
existentes na cidade de Caxias, isso é notório na fala de quem viveu esse mo-
mento, a dúvida ainda acompanha uns e a certeza, outros. Através da fala de
Maria Júlia Soares Andrade, temos a impressão de que ela tem a vitória do
Dr. Marcelo como merecida, afirma: “Era a única opção, ele não era perfeito,
mas era o melhor para aquele momento”. Com isso, percebemos que, embora
a entrevistada não o visse como a solução dos problemas vividos pela socieda-
de caxiense naquele momento, mas, dos candidatos, ela via nele a tentativa de
resolver alguns.
Ao longo das entrevistas, alguns relatos frisavam essa eleição como um
‘passado negro’ de Marcelo Thadeu, pois alguns acreditam que houve fraude,
e o Dr. Medeiros e Filomena Teixeira eram os favoritos dos caxienses, porém,
o grupo que estava no governo não aceitava que o poder saísse de suas mãos,
como nos relata Manuel da Páscoa Medeiros.

Eu me lembro que eu votei nele pra prefeito, o Aluizio Lobo impôs a idéia de que
ele seria prefeito de um jeito ou de outro, Dr. Medeiros mais a Filozinha eram
os grandes favoritos desta política, e a política não foi legal, houve uma perca de
valores ético, também cívico, porque a política foi totalmente errada, quem foi
eleito foi o Dr. Raimundo Nonato Medeiros, mas os sistemas de votos contabi-
lizaram em favor do Dr. Marcello, foi encontrado na União Artística Operária
Caxiense muitos votos do Dr. Medeiros, depois queimaram e passaram para o
Dr. Marcello. Este é um capítulo negro da história dele, e também um capítulo
sujo na história política. (TEIXEIRA, 2016).

Embora com tantos rumores sobre a vitória, o jornal Folha de Caxias


traz em mais uma matéria a apuração dos votos de alguns municípios, dentre
eles é apontado que o prefeito eleito de Caxias obteve 588 votos sobre o seu
adversário emedebista Dr. Medeiros. E, como de costume, essa foi mais uma
oportunidade para que o grupo que o apoiava fizesse menção de seu nome nas
folhas do jornal, como nos mostra a imagem seguinte.

286
Figura 5: Nota acerca da posse de Marcelo Thadeu de Assumpção na prefeitura.
Fonte: Jornal Folha de Caxias, 11 de janeiro de 1970, Ano VIII, nº 409, p. 1.

Mesmo com tantos questionamentos, no dia 31 de janeiro de 1970, Dr.


Marcelo Thadeu de Assumpção é empossado como novo prefeito de Caxias, e,
para firmar o apoio, as colunas do jornal que o apoiaram durante toda a elei-
ção não poderiam deixar de se manifestarem em forma de comemoração pela
vitória.
Após sua posse, seu trabalho foi muito observado, dentre os seus feitos
são destacados dois ambulatórios médicos, respectivamente nos bairros da Tri-
zidela e do Cangalheiro; dois mercados públicos, um na Trizidela e outro na
Vila Castelo Branco; um grande Grupo Escolar, também na Trizidela; aumento
de salas de aula nos Grupos Escolares, Alexandre Costa, no Alto dos negros,
Trizidela; Costa e Silva, no Ponte; Achiles Cruz, no Cangalheiro; Pres. Kenedy,
Governador José Sarney, no bairro Seriema; além de 7 armazéns nos fundos da
Prefeitura, os quais medem mais de 100 metros de extensão.
Como se pode observar, são diversas as obras realizadas por Marcelo
Thadeu, e um dos aspectos que se pode destacar, que foi de grande destaque
para a cidade de Caxias, foi a inauguração do supermercado da Companhia
Brasileira de Alimentos – COBAL.
As matérias do jornal Folha de Caxias passam a girar em torno de tais
obras, fazendo com que a imagem do prefeito ganhasse espaço na mente das
pessoas, pois as palavras de exaltação eram muito claras, pois em tão pouco
tempo eram relatadas várias obras, não apenas através de textos, mas também
através de imagens, fazendo com que o leitor esperasse com ansiedade para
saber o que as próximas matérias trariam a respeito das obras e das propostas
do então prefeito, sendo isso de um grande interesse, principalmente político,
por parte dos aliados dele, que podiam usufruir da ferramenta que estava ao
alcance, sendo ela a de maior relevância na época.

287
Considerações finais

Ao longo do trabalho, percebeu-se que há um campo grande de abor-


dagens e possibilidades para o trabalho do historiador com biografias, mas há
cuidados importantes a serem tomados e dificuldades enormes a serem enfren-
tadas.
O recurso de biografias, nesses casos, revela-se, assim, também fértil
em possibilidades. Todavia, como já apontado, aqui também há dificuldades
e limites que não podem deixar de serem considerados, não apenas quanto às
práticas de formação como também às práticas de investigação.
Para tanto, buscar compreender as trajetórias profissionais e pessoais de
pessoas ilustres através das histórias de vida e de profissão traduz-se em um
caminho cheio de possibilidades. Logo, as interfaces entre as experiências pes-
soais e profissionais que emergem a partir das diversas fontes, entre elas, as
memórias narrativas, são determinantes na constituição da formação docente,
da prática educativa e da história de um lugar.
Sendo assim, a análise apresentada é apenas uma possibilidade de vis-
lumbrar novos estudos, despertando o interesse de novos pesquisadores pela
figura de Marcelo Thadeu de Assumpção, suas contribuições, discursos, feitos,
bem como a possibilidade de atentar para as questões humanísticas do ser so-
cial.

Referências

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JORNAL FOLHA DE CAXIAS, 1° de setembro 1963, ANO I, Nº 30.

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Fontes orais

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Chaves Soares da Silva, em 31 de maio de 2016, em Caxias MA.

GONÇALVES, Angélica Torres, entrevista concedida à Marcus André Chaves


Soares da Silva, em3 de março de 2016.

FARIAS, Maria Idelcineide Assunção, entrevista concedida à Marcus André


Chaves Soares da Silva, em 7 de outubro de 2015.

SILVA, Maria Ferreira da entrevista concedida à Marcus André Chaves Soares


da Silva, em4 de março de 2016.

SOARES, Maria Julia Andrade, entrevista concedida à Marcus André Chaves


Soares da Silva, em2 de dezembro de 2015.

TEIXEIRA, Manuel de Páscoa Medeiros (Passinho), entrevista concedida à


Marcus André Chaves Soares da Silva, em5 de dezembro de 2015.

290
Trópico & homem:
O mundo que o português criou de
Gilberto Freyre (1940)

Messias Araujo Cardozo

A idéia [sic] de Tropicologia, com esse ou outros nomes, perpassa


a obra de Gilberto Freyre desde o princípio, uma vez que ele desde
o começo lida com algumas poucas intuições em torno das quais
passou toda a vida refletindo, sem jamais querer, ou conseguir,
reduzi-las a conceitos claros e distintos [...].
(MOTTA, 2000, p. 125-126).

Gilberto Freyre tem um lugar privilegiado na história intelectual brasi-


leira do século XX. A partir de 1940, sua obra se direcionou de forma cada vez
mais evidente para um campo de investigações em que o tema do trópico era
central. Uma tropicologia entendida como uma ciência ou quase ciência esta-
va em construção. Esse nascimento da tropicologia, cujas bases são anteriores,
tem com a publicação O mundo que o português criou, no início década de
1940, um marco fundamental, servindo de fonte fundamental para o presen-
te ensaio, que tem, entre os seus objetivos, a pretensão de apontar como esse
nascimento se deu a partir da leitura histórica dessa e de outras obras do autor.
A historiografia sobre o pensamento social brasileiro produz uma visão
em relação à obra de Gilberto de Mello Freyre (1900-1987) repleta de ambigui-
dades. No geral, essa ambiguidade se processa da seguinte maneira. De uma
forma muito clara – e, via de regra, nas interpretações sobre a história do Brasil
–, a obra de Freyre é vista como um divisor de águas fundamental. No campo,
mais precisamente, da historiografia, a obra de Freyre abriu caminhos teórico-
-metodológicos que foram essenciais para que certa visão negativa do nosso
processo histórico fosse efetivamente superada. As contribuições da antropo-
logia cultural e a utilização de fontes não convencionais, como diários pessoais
e receitas de bolo, estariam entre aquilo que de mais original e importante sua
obra teria trazido, notadamente nos referimos aqui ao impacto que Casa-gran-
de & senzala gerou quando de sua publicação em 1933.
Ainda nesse sentido, ao superar as antigas teorias racistas e de certa
forma positivar a contribuição do negro para a cultura nacional, ele seria o
pensador que introduziu uma compreensão pioneira de nós brasileiros ao ter
apontado o caráter miscigenado e híbrido de nossa cultura.1 Gilberto Freyre
era um dos “Redescobridores do Brasil”, como apontou Carlos Guilherme Mota
(1977). E nesse redescobrimento, as bases para pensar a criação de uma identi-
dade cultural brasileira foram lançadas singularmente, de forma que, com sua
obra, o Brasil ganhou uma identidade nacional2 pensada a partir do cadinho
das raças, da superação dos contrários, do intimismo, do personalismo e da
influência poderosa dos núcleos familiares na política institucional que seriam
características do que faz o Brasil, Brasil.
Por outro lado, daí a ambiguidade que nos referimos, sua obra conte-
ria uma argumentação problemática quando o assunto era a questão racial. A
chamada “democracia racial” que negaria os elementos sociais de exclusão do
negro e do mestiço, historicamente instituídos no Brasil, principalmente após
a abolição da escravatura, quando o negro viu-se convertido em senhor de si
abruptamente, sem as condições materiais e morais mínimas3, insurge-se como
um problema teórico e político.
Teórico no sentido de que não se sustentaria empiricamente – para além
das interpretações do autor sobre algumas experiências restritas de cordialida-
de entre senhores e escravos, principalmente do Nordeste patriarcal, nos tem-
pos coloniais – e político no sentido de que seria uma forma de pensar com-
prometida com os setores mais conservadores que buscavam a manutenção do
status quo racial e social.
1 Sobre isto convém apontar os trabalhos de Renato Ortiz (1985, p. 41-44) e Lilia M.
Schwarcz (1993, p.325)
2 Como apontou Jessé Souza (2017, p. 28)
3 Conforme Florestan Fernandes (1965, p. 1).

292
Ainda nesse sentido, outro ponto visto como um problema se refere ao
fato de que sua obra teria sofrido um corte profundo e essencialmente negativo
a partir de 1940. Nesse ano, quando foi editada, com acréscimos de uma série
de conferências no exterior de 19384, sua obra apresentaria uma inflexão no
sentido de pensar num corte epistemológico em que agora (1940 em diante),
considerada madura, contrastaria com a obra da juventude (anterior a 1940),
contraste esse que acabaria por diminuir ainda mais as contribuições que no
início representava.5
Porém, essa ambiguidade pode revelar uma coisa importante, que é o
quase desconhecimento da obra de Gilberto posterior aos ensaios de interpre-
tação histórica dos anos 1930. E quando alguma interpretação é lançada sobre
as obras desse período, essa interpretação apresenta no geral alguns elementos
em comum. Um deles é a concepção de que esse período seria representativo
da formação de uma concepção teórica lusotropicalista. Uma pseudoteoria sem
grande relevância para os estudos sociais. Outro desses elementos é uma con-
denação ainda maior em relação à obra do autor, visto que o lusotropicalismo
apenas teria servido para legitimar a dominação imperialista em África pelo
regime salazarista (PINTO, 2001; CASTELO, 2011).
Ao longo de nossos estudos sobre a obra de Gilberto, detendo-nos par-
ticularmente sobre temas relacionados às suas reflexões em relação ao tema do
trópico, percebemos que essas interpretações, em grande medida, repletas de
ambiguidades são discutíveis quando não incorrem em equívocos evidentes
quando de uma leitura mais profunda. Um primeiro equívoco reside no fato de
que muitas vezes não se considera que a questão do trópico operava na obra de
Gilberto desde o seu início até o fim (como na epígrafe do nosso presente tra-
balho indicamos), atravessando, portanto, toda a sua vasta obra, sendo difícil
indicar um corte preciso em relação a isso.
Um segundo ponto que pode ser discutido é ainda a questão de que a
Tropicologia é muito mais que “lusotropicalismo”, pois abrigava a hispanotro-
picologia e propunha uma abordagem multidisciplinar numa tentativa ousada
e original de reinterpretar as interações entre homem e trópico.
Em que medida essas nossas problematizações em relação às leituras so-
bre a obra de Gilberto são importantes? Como se pode articular a partir delas
uma nova forma de abordar a obra de Gilberto Freyre? Para responder a essas e
outras questões, acreditamos que um roteiro deve ser estabelecido, esse itinerá-
4 “Trata-se da segunda edição de Conferências na Europa, com longa introdução do autor,
prefácio de Antonio Sergio e maior número de apensos” (FONSECA, 2002, p. 119).
5 Sobre isso, ver os trabalhos de SOUZA (2000) e SANTOS (2003).

293
rio passa primeiro pelo apontamento do tema do trópico em sua obra.
Depois abordaremos mais particularmente a forma como esse tema foi
posto no livro O mundo que o português criou e, por fim, buscaremos interpre-
tar a tropicologia e sua possibilidade de configuração como ciência ou quase
ciência tropical e sua possível contribuição para a prática historiográfica.

2 O tema do trópico na obra freyriana



Um dado conhecido dos estudiosos da obra de Gilberto Freyre é a ca-
racterística de seus textos não primarem pela rigidez conceitual, pela precisão
metodológica ou pela divisão temática clarividente. Seus livros falam sobre te-
mas comuns e inovadores e simultaneamente sobre diversos assuntos, sendo
difícil – quando não impossível – estudar sua obra concentrando-se em um
número específico de obras. Evidentemente, alguns recortes podem ser esta-
belecidos dentro de alguns parâmetros e com vistas a responder problemas de
pesquisa específica.
Como buscamos abordar a questão do trópico, escolhemos abordar
esse tema principalmente a partir de Casa-grande & senzala e a caracterização
do “português plástico” e do elemento geográfico/cultural/simbólico do trópico
contido nessa obra. Porém, como apontou a pesquisadora Maria do Carmo Ta-
vares de Miranda, no sugestivo artigo: “A Tropicologia como fenomenologia”,
deve-se considerar o fato de que:

Esse estudo do homem situado em áreas ou espaços tropicais pode ser compro-
vado desde seus primeiros escritos, quando esboça intuições sobre o espaço, o
tempo e a duração, captando, também, diversidade e diferenciação de grupos
de populações segundo o tempo ou época de suas vidas e sua íntima correlação
com a natureza tropical. É o que se pode ver em Tempo de Aprendiz e no Livro
do Nordeste, (Comemorativo do 1° Centenário do Diário de Pernambuco), obra
coletiva por ele organizada, como o último livro até agora publicado Modas de
Homem e Modas de Mulher. (MIRANDA, 1987, p. 193).

Como se pode ver, a temática do trópico se “espalha” por toda a volumo-


sa obra de Gilberto Freyre. Porém, a caracterização do “português plástico” se
revela fundamental para nossos propósitos, pois, em nossa análise, é nesse pon-
to que a tropicologia tem sua fundamentação epistemológica. Em Casa-grande
& senzala, Freyre realizando uma “leitura psicocultural do passado brasileiro”,
teria lançado os conceitos de “plasticidade social, versatilidade, apetência pela
miscigenação, ausência de orgulho” (CASTELO, 2011, p. 262) referentes ao

294
português “plástico”. Conceitos em nossa compreensão que foram fundamen-
tais na construção dessa concepção tropicológica.
Segundo Freyre, devemos primeiramente considerar que: “quando em
1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois
de um século inteiro de contacto dos portugueses com os tropicos; de demons-
trada na India e na Africa sua aptidão para a vida tropical” (FREYRE, 1933, p.
1).6 No capítulo III “O colonizador portuguez: antecedentes e predisposições”,
o autor inseriu uma discussão bastante inovadora nos estudos sobre a forma-
ção social brasileira, destacando a plasticidade do colonizador luso, enfatizou o
caráter histórico do português como povo com experiência em miscigenar-se,
em misturar-se, como povo em que a “Europa reina, mas a África governa”.
Entretanto, a questão do trópico na obra de Gilberto Freyre não se apresentou
tendo um único sentido ou referindo-se a uma dada temporalidade ou região
geográfico-social. Afinal, de acordo com os historiadores Maria Lúcia G. Palla-
res-Burke e Peter Burke:

Importa assinalar que o que contava como trópico nunca foi muito claro. Como
sempre, Freyre hostil a definições precisas e fronteiras impenetráveis. Ele usou o
termo “trópico” em diferentes ocasiões para se referir a uma região, o Nordeste;
ao Brasil em sua totalidade (apesar de não se um país completamente tropical);
e partes da Ásia, da África e das Américas. (PALLARES-BURKE, BURKE, 2009,
p. 296).

Apesar da multiplicidade de usos e da variação de uso conceitual, carac-


terísticas da obra de Freyre como um todo, uma coisa aqui é notável: o esforço
por parte de Freyre de enfatizar a questão tropical como fundamental nos estu-
dos histórico-sociais. E, nesse esforço, os portugueses teriam desenvolvido nas
regiões em que se estabeleceram uma civilização que, tropical antes de tudo,
seria autenticamente original e com valor igual à civilização europeia e, nesse
processo, a civilização luso-brasileira deveria ser valorizada como um cons-
tructo histórico de significação sócio-política fundamental, com implicações
sociais no presente, como veremos a seguir. Essa forma de pensar o trópico e o
português se modificou, ao menos é o que se pode perceber com a leitura dos
textos de 1940 em diante.

6 Manteremos a grafia dos textos originais quando nos referirmos a esse texto e também
aos outros em análise.

295
3 O mundo que o português criou em análise

Antes de tudo, impõe-se a descrição do texto. Já que os estudos dos su-


portes dos discursos são fundamentais para o historiador (ALBUQUERQUE
JÚNIOR In: PINSKY, LUCA, 2011, p. 242). Como já dito, O mundo que o por-
tuguês criou é uma publicação que reedita uma série de conferências – que não
chegaram a ser lidas – de Freyre em 1938, na Inglaterra e em Portugal. Confe-
rências que versaram sobre as influências da mestiçagem nas relações sociais e
de cultura entre portugueses e luso-descendentes, a importância dos estudos de
história social e cultural, sugestões de cooperação luso-brasileira nos estudos
sobre história da arte e popular, além do nordeste Brasil.
A essa nova edição, ainda, foram acrescentados dez apensos e um prefá-
cio de Antonio Sérgio. A edição de 1940, pela editora José Olympio, era o nú-
mero 28 da Coleção Documentos Brasileiros, coleção que Freyre chegou a di-
rigir e que buscava apresentar os estudos mais recentes sobre vários assuntos.7
Teria O mundo que o português criou algo de diferente? Nesse texto,
Freyre agenciou uma série de imagens desse mundo que, por sua característica
transnacional, foi interpretado como um:

Mundo que, como conjunto de valores essenciaes de cultura, como realidade


psyco-social, continua a existir. Sobrevive á desarticulação do império simples-
mente politico. Resiste á pressão de outros imperialismos meramente econômi-
cos ou políticos. (FREYRE, 1940, p. 32).

Freyre operou com uma concepção cultural bem ampla essencialista.


Para ele, as questões da união em termos valorativos eram superiores à união
exclusivamente política, o mundo que o português criou resistiu ao fim do im-
pério luso, era uma comunidade de valores que transcendia as fronteiras na-
cionais, sendo que seu enraizamento histórico não poderia ser apagado pela
mudança administrativa, das formas políticas e de governo. Inclusive, esse
mundo – que Freyre defendia – deveria resistir aos imperialismos de cultura
que se desdobravam em imperialismos políticos. Nessa defesa, para não ser
confundido com o que ele denominou como “lusófonos de estreita visão”, ele
afirmou que:

7 Em relação às vicissitudes e disputas em torno do que se publicar e da entonação política


dessa coleção, ver: FRANZINI, 2006.

296
Ao suggerir a defesa da cultura luso-brasileira como essencial ao nosso desen-
volvimento autônomo em fave de qualquer imperialismo de cultura – o impe-
rialismo econômico seria, por inclusão, um imperialismo de cultura – que possa
nos ameaçar em futuro próximo (seja esse imperialismo europeu, asiático, ou
americano), não é nenhum nacionalismo estreito ou jacobinismo ranzinza que
advogo. (FREYRE, 1940, p. 38).

Nesse ponto, é importante perceber a partir de que elemento fundamen-


tal identificava como algo original, singular e único desse mundo – mundo
esse que desembocava numa cultura luso-brasileira que estaria ameaçada8 –
português a ser defendido.9 Esse elemento era a miscigenação, que de forma
ímpar teria rompido as barreiras de classe e de raça, que favorecia o sentimento
de pertencimento de qualquer um que residia em um ponto específico desse
mundo quando fosse para outro.
Essa concepção que retomava as teses defendidas em Casa-grande &
senzala levantou muitas críticas, principalmente na questão da “ausência” de
consciência de raça por parte do colonizador português.10 A miscigenação cor-
retora de distâncias sociais era um aspecto característico da formatação desse
mesmo mundo português. O português “dominou as populações nativas, mis-
turando-se com ellas e amando com gosto as mulheres de côr” (FREYRE, 1940,
p. 43). Esse ponto do amor foi enfatizado para contrastar com o pragmatismo
em relação a isso, que apontava como causa da miscigenação um imperativo
de ordem demográfica, afinal, sem se misturarem, dificilmente os portugueses
com uma população – a época dos inícios da colonização moderna – pequena
poderiam ter realizado a ação colonizadora em regiões tão distantes da metró-
pole europeia.
A base da miscigenação, que foi o alicerce da colonização, foi o amor.
Freyre insistiu em enfatizar que:

Desse amor, acima de preconceitos de raça e de convenções de classe, do branco


pela cabocla, pela cunhã, pela índia, de que forma capazes tantos colonos portu-

8 No texto: Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira, que foi primeiramente lido em forma
de conferência no Gabinete português, de leitura em 2 de junho de 1940, Gilberto Freyre
afirmou sobre o que considerava uma ameaça aos valores luso-brasileiros que no Brasil:
“[...]Já se realizam congressos culturais e políticos direta ou indiretamente anti-luso-brasi-
leiros [...]” (FREYRE, 1942, p. 69).
9 E onde todo escritor deveria trabalhar pela ratificação dessa unidade (FREYRE, 1940, p. 65).
10 O historiador Charles Boxer levantou muitas críticas em relação a isso. Sobre esse debate
ver: SCHNEIDER, 2013.

297
gueses, fundadores no Brasil, desde os primeiros tempos, de famílias mestiças,
não deve ser esquecido o aspecto romântico, para accentuar-se só o voluptuoso.
[...] Esse caracter humano da colonização portuguesa, se no Brasil é que teve a
sua expressão mais larga e ao mesmo tempo mais feliz, é, entretanto, commum
á obra colonizadora de Portugal. Em toda a parte onde dominou esse typo de
colonização, o preconceito de raça se apresenta insignificante [...]. (FREYRE,
1940, p. 45).

Nessa forma de ver de Freyre, teria sido esse amor histórico que fundou a
civilização luso-tropical no Brasil, África e mesmo na Índia. E isso seria funda-
mental para que “os luso-descendentes – puros e mestiços – de areas diversas,
quando se põem em contacto uns com os outros é para se sentirem espanto-
samente semelhantes nos seus motivos e nos seus estilos de vida” (FREYRE,
1940, p. 47). Essa unidade transnacional em que uma cultura viva envolvia-o
como uma muralha fazia desse mundo luso-afro-asiático-brasileiro uma uni-
dade cultural singular.
Porém, esse pensamento que de certa maneira apagava as diferenças,
embora Freyre insistisse que as diferenças regionais convergiam para a uni-
dade transnacional, também ensejava um sentido. Particularmente, ilustramos
aqui a questão da discussão em torno da democracia política. Em 1940, o Brasil
vivia um regime político chamado de “Estado Novo” desde 1937, Portugal já
estava sob a égide de um regime fascista, o salazarismo, as colônias portuguesas
em África viviam sob o rígido controle luso sem democracia política, liberdade
de expressão e participação popular.
Paradoxalmente, Freyre a despeito dessas questões dos regimes fechados
que estavam por todo esse mesmo mundo português, ele reiterava que apresen-
tava uma democratização social ímpar. O que ele entendia quando se referia
em termos de democratização cultural?

Democracia social, essencial, humana, quero dizer; pouco me preoccupa a po-


litica. [...] democracia social de que se acham distantes os povos actualmente
mais avançados na prática da tantas vezes inefficiente e injusta democracia po-
litica, simplesmente politica. (FREYRE, 1940, p. 51, 54).

Fundamental para entender essas afirmações é a compreensão de três


coisas. Primeiro, que importava mais para Freyre enfatizar os elementos que
eram comuns ao mundo que o português criou. Segundo, que ao identificar
como elementos comuns à miscigenação – pelo amor e não pela necessidade
demográfica – que agiu, segundo ele, como corretora de distâncias sociais e a

298
predisposição do português para misturar-se a partir de seu histórico contato
com os povos do Norte da África, Gilberto acabou por generalizar a partir des-
ses elementos toda uma complexa e diferente no tempo e no espaço coloniza-
ção lusa em três continentes diferentes. Terceiro, considerando o tempo histó-
rico em que Freyre publicou essas afirmações, essas propostas se concatenavam
com o regime político português, além de satisfazerem às vontades pessoais de
Freyre em enfatizar que esse mundo português era fruto de uma história da
“cultura formada pela confraternização”, numa visão que privilegiava a coesão
social e minimiza os elementos contraditórios que eram vistos em “equilíbrio”,
minimizando, assim, o conflito social.
Esse tema e outros temas daquilo que posteriormente seria categoriza-
do como Tropicologia foi desenvolvido em outras publicações do autor, como:
Aventura e Rotina (1953), diário de uma longa viagem de Freyre a convite do
governo português - pelas colônias lusas em África e na Ásia; Um brasileiro
em terras portuguesas (1953), outro texto também dentro dessa perspectiva de
apontar a singularidade do mundo português; Integração portuguesa nos trópi-
cos (1958) e O luso e o trópico (1961).
Apesar dessas considerações, é difícil identificar com clareza as motiva-
ções intelectuais e políticas de Gilberto Freyre quando começou a publicar suas
interpretações sobre o mundo que o português criou a partir de sua análise
histórica em relação à colonização portuguesa pelo mundo, em especial pelas
regiões tropicais. Estaria ele apenas seguindo os critérios de estudo já traba-
lhados anteriormente – quando de sua análise sobre a formação social brasi-
leira – ou estaria a sugerir uma nova ciência social? Sobre isso, podemos supor
que “Freyre estavam então, tratando a teoria social européia [sic] do mesmo
modo que Heitor Villa-Lobos tratava a música clássica européia [sic], ou seja,
usando-a, mas abrasileirando-a” (PALLARES-BURKE, BURKE, 2009, p. 293).
Abrasileirando-a ou até mesmo tropicalizando-a. Em que sentido?

3.1 A tropicologia era uma ciência? tentativa de explicação

A ciência social no Brasil, particularmente a sociologia e antropologia,


apresenta algumas periodizações no que tange às fases da produção intelectu-
al desse campo científico, feitas geralmente pelos próprios sociólogos quando
efetuam levantamentos sobre a produção sociológica brasileira. Em alguns des-
ses levantamentos que analisamos11, percebemos que a chamada Tropicologia
de Gilberto Freyre praticamente não apareceu, o que demonstra que o estudo
11 Tais como: MICELI, 1987; SANTOS, 2003.

299
sobre esse conjunto de perspectivas sobre a interação homem/trópico, numa
perspectiva multidisciplinar, ainda espera por um estudo mais profundo, prin-
cipalmente sob o ponto de vista da história intelectual.
Em busca de definições, acreditamos que as palavras do próprio Gilberto
podem ser ilustrativas sobre a problemática da definição da Tropicologia, que
seria constituída de um conjunto:

De interpretações e de sugestões com alguma coisa de sínteses e de conclusões:


as que estão à base da justificativa que, do ponto de vista brasileiro, o autor vem
oferecendo para a formação de uma Tropicologia geral dentro da qual se desenvol-
vessem uma Hispano-tropicologia e uma Luso-tropicologiapara estudos específi-
cos de situações humanas, também específicas, condicionadas por ambientes ou
por influências tropicais. (FREYRE, [1969] 2011, p. 21).

A partir dessa própria quase definição – e mais adiante diremos em que


sentido nos referimos com isso – do criador original da Tropicologia, podemos
compreender esse empreendimento intelectual de duas formas, buscando com
isso tentar explicar se a Tropicologia pode ser entendida como uma ciência,
tendo um conceito de ciência definido e uma ideia de como se forma um “es-
pírito científico” no sentido de uma “arqueologia das ciências” (BACHELARD,
2002; FOUCAULT, 2005).
Primeiro, que de uma maneira evidente, Gilberto Freyre nunca se im-
pôs uma rígida concepção teórica, no sentido da adoção de um sistema de pen-
samento, para nortear seus estudos como ele mesmo reiterou (FREYRE, [1936]
2004, p. 48). Segundo, que o autor se refere em termos de “sugestões” de uma
forma de compreensão que ao situar o homem tropical o abordasse por meio de
uma ampla gama de dimensões, que comportava uma análise simultaneamente
ecológica, sociológica, histórica, antropológica, estética e até filosófica.
Ainda em busca de definições sobre a ciência ou quase ciência do tró-
pico proposta por Freyre, citaremos novamente Maria do Carmo Tavares Mi-
randa12, que apresentou uma definição indicando que:

A Tropicologia é, portanto, o estudo sobre o Homem diversamente situado nas


12 Estudiosa da obra de Gilberto Freyre e pesquisadora com a Fundação Joaquim Nabu-
co (Fundação que é uma transformação do antigo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais, criado a partir dos esforços do próprio Gilberto Freyre quando era deputado fede-
ral constituinte em 1948), a autora ligada ao chamado Seminário de Tropicologia, ligado
primeiramente à Universidade Federal de Pernambuco (em 1966 com influência direta e
pessoal de Freyre), depois, à própria Fundação, a autora tem muitos trabalhos ligados à
temática.

300
várias regiões ou áreas tropicais, realizando com critérios de abordagens eco-
lógicas, que atende as necessidades situacionais, procurando compreender “as
relações desses homens com a natureza e de suas culturas com os ambientes”.
Para o seu exercício faz-se necessário o estudo teórico e prático do valor das
idéias [sic] e da praxis [sic], as influências do meio tropical, ao mesmo tempo
que ela, a Tropicologia, se confirma como consciência cultural, – física, social,
histórica – da integração dos valores e das técnicas e na história do homem.
(MIRANDA, 1987, p. 194).

Interessante como a tropicologia é definida como “estudo” e não como


ciência. Isso em nossa compreensão corrobora a ideia de “sugestão” do próprio
Freyre. É justamente nessa não definição que reside nossa ideia de que a tropi-
cologia é uma quase ciência. Como assim quase? O que é ciência?
A partir da noção de ciência entendida como um tipo de conhecimen-
to que tem no seu núcleo um paradigma definido, que é não só o conjunto
de preposições teóricas que determinada comunidade de pesquisa partilha
em determinado momento como as realizações reconhecidas que fornecem os
problemas e as soluções para os praticantes da ciência.13 Compreendida nesses
termos, a Tropicologia é uma quase ciência, pois, se por um lado não tinha (ou
não apresentou mais do que sugestões ou definições em termos de “estudo”)
um paradigma claramente definido, suas “sugestões” foram praticadas por um
conjunto de autores de várias disciplinas em um seminário de pesquisa, o Se-
minário de Tropicologia14 – fundado em 1966 por Gilberto Freyre, em Recife,
existindo até o momento –, o que aponta sua quase definição como ciência.
Teria essa quase ciência em suas propostas estudar o homem situado em
bases tão amplas e pensando-o a partir de abordagens tão diversas, mas que de
alguma maneira convergem e gravitam em torno da noção nuclear de trópico,
alguma contribuição para a historiografia?

4 Tropicologia e historiografia: uma relação possível

Que Gilberto Freyre tem um lugar reservado como um dos autores cuja
contribuição foi muito importante para o campo da história isso é indiscutível
e já foi abordado em vários momentos.15 Porém, teria a sua Tropicologia – no
conjunto de propostas teórico-metodológicas para análise do homem situado
13 E aqui tomamos esse conceito de ciência a partir da noção de Thomas Kunh (KUNH,
2011, p. 13).
14 Sobre o Seminário de Tropicologia, ver: MIRANDA, 1987; MOTTA, 1985.
15 Sobre isso, ver: QUINTAS, 1970; BURKE, 1997.

301
no trópico – algo a oferecer à historiografia? Não somente, mas para a historio-
grafia brasileira em particular? São perguntas que, por si mesmas, já merecem
um estudo à parte, porém, de antemão, já apontamos que a resposta aqui não
pode ser fechada e muito menos definitiva.
Acreditamos que a Tropicologia, mesmo quando vista como fenomeno-
logia, não pode reduzir-se a isso, sendo, então, mais um conjunto de observa-
ções e de propostas de entender a dinâmica relação entre sociedade e trópico.
Então, pensamos em responder essa pergunta direcionando nossa argumenta-
ção em dois sentidos, indicando para duas perspectivas tropicológicas que nos
chamaram atenção por, particularmente, poderem ser úteis para a operação
historiográfica.
Em um primeiro sentido, indicamos o fato de que a abordagem ecológi-
ca propõe uma reflexão sobre a questão do espaço, sobre as relações diacrônicas
e sincrônicas entre a sociedade e o seu ambiente. Quando pensamos nisso, lem-
bramos o estudo de Freyre sobre o Nordeste – que é parte dessa Tropicologia
aplicada a uma região em particular – e podemos observar a forma como o au-
tor pensou a influência da cana-de-açúcar não apenas no seu sentido econômi-
co, mas no seu sentido cultural bem mais amplo, numa forma de alimentar-se,
numa forma de divertir-se – a partir do uso da cachaça, por exemplo, que é um
derivado da cana –, numa forma de habitar, numa forma de trabalhar, ou seja,
essa abordagem tropicológica direciona o historiador para uma análise em que
o ambiente é condicionado e condicionante. Algo absolutamente fundamental
para uma historiografia que pense capturar o processo de interação humana
com o meio ambiente como um aspecto importante da interpretação do passa-
do das sociedades.
O segundo sentido que destacamos – uma escolha dentre os vários sen-
tidos que a tropicologia aponta – é o sentido temporal. Existe um tempo do
trópico, um tempo que ao mesmo tempo é lento – como o tempo baiano que
passa devagar – e pode ser também veloz no sentido de uma rápida modifica-
ção. Pode, em sua conotação mais climática, ser, ainda, um tempo amargo de
seca ou inundações. Tempo irregular. Tempo, ainda, no sentido mais filosófico,
tempo tropicalizado, entendido como uma forma de experimentação do tempo
num sentido não linear, apegado ao que fora instituído, daí, pode-se originar
a reação antimoderna do Nordeste (ALBQUERQUE JÚNIOR, 2011). Sendo
mais ousados, até mesmo um regime de historicidade (HARTOG, 2015) pode
ser percebido, regime de historicidade tropical.
Sem dúvida, essa difícil tarefa de pensar/estabelecer a relação entre a

302
Tropicologia, entendida como um conjunto de sugestões de pesquisa que deno-
minamos como quase científicas, e a historiografia não é nada fácil. O sentido
aqui é claramente propositivo e sugestivo. Outros aspectos poderiam ser aven-
tados aqui num levantamento de contribuições possíveis, como a atenção dada
pelos tropicologistas aos esportes, à nutrição, habitação, aos recursos hídricos,
à medicina e aos usos de plantas tropicais como fármacos, à religiosidade po-
pular, no que se tem de tropicalização do cristianismo europeu, questões étni-
cas, sexualidade, enfim (MIRANDA, 1987). Tema para um estudo posterior
mais profundo. O que se pretendeu aqui foi algo bem mais modesto.
Particularmente, a partir da segunda metade do século XX, apresentou
para o campo da historiografia uma série de contribuições vindas da antro-
pologia, sociologia, filosofia e até psicanálise (ALBUQUERQUE JÚNIOR, In:
PINSKY, LUCA, 2011. p. 234). Porém, o que se nota é certa tendência da his-
toriografia brasileira em absorver as inovações e propostas feitas por pesqui-
sadores estrangeiros – o que não é algo em si negativo – e deixa – e nesse caso
da tropicologia de Freyre isso é perceptível – possibilidades de análises criadas
por brasileiros em uma espécie de limbo. Esse é um último ponto interessan-
te que talvez explique certo mutismo em relação à obra de Gilberto Freyre e
a bastante inexpressiva consideração de sua abordagem tropicológica para a
historiografia. Não que devamos absorver tudo sem filtro crítico, o que sem
dúvida seria bem antitropicológico.

Considerações finais

Em síntese, esta pesquisa buscou apresentar uma parte da obra de Gil-


berto Freyre que é pouco considerada. Foi nossa intenção não nos prendermos
às definições rígidas ou aos rótulos, no sentido de escapar da abusiva adjeti-
vação que permeia a análise de autores do campo da historiografia. O tropi-
cologista Freyre não foi tomado como um criador de uma nova ciência social
rígida. Porém, seu conjunto de propostas pode ser entendido como uma quase
ciência, e relações com a historiografia não só são como deveriam ser possíveis.
De forma mais específica, nosso ensaio – que é parte de uma pesquisa maior
que está sendo realizada – buscou três objetivos.
O primeiro foi apontar ambiguidades em relação à compreensão da obra
de Gilberto Freyre que nos foi perceptível quando analisamos alguns levanta-
mentos em relação à história das interpretações sobre o Brasil, particularmente
no campo da historiografia. Ainda nesse ponto, foi nossa intenção problema-

303
tizar as leituras sobre a obra de Freyre que apontam um corte epistemológico,
além do desconhecimento considerável da obra do autor do período posterior
aos seus textos de 1930. O segundo foi analisar particularmente o texto: O mun-
do que o português criou, de 1940, como um artefato histórico fundamental no
esforço de compreender como Gilberto Freyre analisou esse mundo e como a
problematização dessa leitura pode ser indicativa de uma forma tropicológi-
ca de pensar a histórica colonização portuguesa, as implicações culturais e os
contatos entre os povos colonizadores na perspectiva de Freyre. O terceiro foi
– ainda que de forma genérica – lançar uma interpretação sobre o que seria a
tropicologia, se se pode pensá-la como uma ciência do/no trópico e, ainda, as
possíveis interlocuções dela com a historiografia.
A volumosa produção de Gilberto Freyre ainda é um campo muito inex-
plorado pelos historiadores do campo da história intelectual. Para finalizar,
como apontou Roberto Motta, que consta em nossa epígrafe: “Quanta, mas
quanta coisa, ainda precisa ser escrita sobre Gilberto Freyre!” (MOTTA, 2000,
p. 126). É nesse esforço que nosso modesto ensaio se insere, buscando com isso
lançar uma compreensão sobre a obra de Gilberto, tendo o tema do trópico e da
tropicologia como objetos de estudo de uma forma mais particular.

Referências

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1993.

306
Sobre os organizadores e colaboradores

Organizadores

Joabe Rocha de Almeida


Mestre em História Social pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA.
Programa de Pós-graduação em História – PPGHIS. Bolsista CAPES. Especia-
lizando-se em Ensino de História do Brasil: cultura e sociedade pelo Instituto
de Educação Superior Franciscano – IESF. Graduado em Licenciatura Plena em
História pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA/Campus Caxias.
Faz parte do Grupo de Estudos Socioeconômicos da Amazônia – GESEA/UE-
MA-Campus Caxias e do Grupo de Pesquisa Poderes, Instituições, Mundos do
Trabalho e Ideias Políticas – PIMTI/PPGHIS-UFMA. Segue E-mail: joabero-
chauema@gmail.com.

Silvan Sousa Mendes


Mestre em História Social pela Universidade Federal do Maranhão-UFMA.
Programa de Pós-graduação em História PPGHIS. Bolsista FAPEMA. Espe-
cialista em Ensino de História do Brasil: cultura e sociedade pelo Instituto de
Educação Superior Franciscano – IESF. Atualmente trabalha como Professor
na educação básica do no Município de Primeira Cruz/MA. Graduado em Li-
cenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Maranhão-UFMA/
Campus São Luís. Faz parte do Grupo de Estudos História Cultural, Educação
e Relações Étnico-raciais. Segue E-mail: silvanhst@hotmail.com.

Apresentador

Márcio Douglas de Carvalho e Silva


Doutorando em História Social da Amazônia (UFPA). Mestre em Antropolo-
gia (UFPI, 2018), com a defesa do trabalho: Promessas e milagres na dança de
São Gonçalo: etnografia de uma devoção. Especialista em História e Cultura
Afro-brasileira e Africana (UESPI, 2016) com o título: Vivência religiosa no
Brasil escravocrata: Irmandades negras e devoção a santos pretos. Licenciado
em História (UESPI, 2013). E-mail: conectadonomarcio@hotmail.com.

Prefaciador

Juarez Lopes de Carvalho Filho


Possui graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (1995),
mestrado em Filosofia - Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis (2005),
mestrado em Sciences Sociales et Economiques - Institut Catholique de Paris
(2002) e doutorado em Sciences Sociales et Économiques - Institut Catholique
de Paris (2007). Atualmente é professor associado I lotado no Departamento de
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão e Professor
permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFMA.
Desenvolve pesquisas na área da Teoria Sociológica (Durkheim, Bourdieu, Go-
ffman), Sociologia da Educação e da Cultura (com ênfase no ensino de So-
ciologia no Ensino Médio e segregação social e escolar), Sociologia urbana e
Sociologia econômica. Coordena os projetos de Pesquisa intitulados Educação
e Mercado de Trabalho no Maranhão: formação, qualificação e inserção pro-
fissional, financiados pela FAPEMA. Membro da Association Française de So-
ciologie (AFS), inscrito no RT-49 Histoire de la sociologie. Realizou pós-dou-
torado (2016/2017), vinculado ao Laboratoire Lorrain de Sciences Sociales de
l’Université de Lorraine (2L2S), em Nancy, France, sob a supervisão de Lionel
Jacquot. E-mail: juarez.lopes@gmail.com.

Autores

Aldeanne Silva de Sousa


Graduada em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do
Maranhão CESC - UEMA Especialista em História do Brasil: Cultura e socie-
dade, pelo Instituto de Ensino Superior Franciscano (IESF). Graduada em Ba-
charelado em Direito no Centro Universitário de Ciências e Tecnologia do Ma-
ranhão - UniFacema. Participou do grupo de estudo de Direito Constitucional
no período de 2015 a 2016 no Centro Universitário de Ciências e Tecnologia
do Maranhão - UniFacema. Membro do Grupo de Estudo “Gêneros do Mara-
nhão” – GRUGEM. Bolsista BATI-UEMA. E-mail: aldeannecx@hotmail.com.

Aldina da Silva Melo


Doutoranda em Políticas Públicas pelo Programa de Pós-Graduação em Políti-
cas Públicas, da Universidade Federal do Maranhão (PPGPP/UFMA). Mestra
em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade
Estadual do Maranhão (PPGHist/UEMA). Graduada em Ciências Humanas

308
– Sociologia (UFMA). Pesquisadora do NEÁfrica. Bolsista CAPES. E-mail: al-
dina.smelo@gmail.com.

Auriele Pereira dos Reis


Graduada em História Pela Universidade Estadual do Maranhão, Especialista
em História do Brasil: Cultura e sociedade pelo Instituto de Ensino Superior
Franciscano-IESF. E-mail: aurielereis23@gmail.com.

Benilton Torres de Lacerda


Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela Universidade Esta-
dual do Piauí (2003). Especialização em História do Brasil (UFPI), 2005. Mes-
trado em História pela Universidade Federal do Piauí (2013). Atualmente é
professor assistente I da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA/Cam-
pus Caxias. Estuda cidade, memória, movimentos sociais populares católicos
na perspectiva da teologia da libertação nos últimos anos da década de 1960, e
nos anos 1970 e 1980. Estuda também Patrimônio material e imaterial na pers-
pectiva histórica e arqueológica na ambiência da interdisciplinaridade. E-mail:
beniltontl@hotmail.com.

Cirila Regina Ferreira Serra


Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em História – PPGHis/UEMA. Gra-
duada em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Maranhão –
UFMA. Membro do Grupo de Pesquisas e Estudos do Mundo Atlântico e suas
Diásporas – GMAD, atuando nos temas: Questão Racial no Brasil, Relações
Étnico-Racial, Ensino de História de África, África e Produção do Conheci-
mento e Educação em Direitos Humanos. E-mail: cirila_serra@hotmail.com.

Diêgo Stéfano Araujo Souza


Licenciado em História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Especia-
lista em História Social da Cultura pela Universidade Federal do Piauí (UFPI),
estudante de Psicologia pela Universidade Federal do Piauí e membro do Nú-
cleo de Estudos e Pesquisas em Comunicação, Identidade e Subjetividades
(NEPCIS). E-mail: diegoyyz@outlook.com.

Ériton Luís Véras Lima


Graduado pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI e especialista em His-
tória Geral pela – Faculdade Internacional do Delta - FID eem História So-
cial da Cultura pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. E-mail: eritonlvl@
gmail.com.

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Fladney Francisco da Silva Freire
Doutorando em Antropologia Social (UFG). Integrante do Grupo de Pesquisa,
Religião e Cultura Popular (GPMINA). Membro do Núcleo de Estudos, Pes-
quisa e Extensão sobre África e o Sul Global (NEÁFRICA). Membro do Grupo
de Estudos intitulado TELA: Transversalidade, Experimentações e Linguagens
Antropológicas, vinculado ao programa de Antropologia da UFG. E-mail: flad-
ney.freire123@gmail.com.

Iara Souza Silva


Mestra em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Univer-
sidade Estadual do Maranhão (PPGHist/UEMA). Graduada em Ciências Hu-
manas – Sociologia (UFMA). Pesquisadora do NEÁfrica. E-mail: iarasouzzar@
gmail.com.

Jakson dos Santos Ribeiro


Professor Adjunto I da Universidade Estadual do  Maranhão-  CESC/UEMA.
Coordenador do Grupo de Estudos de Gêneros do Maranhão- GRUGEM. Co-
ordenador do Laboratório de Teatro do Centro de Estudos Superiores de Caxias
– LABTECESC. Doutor em História Social da Amazônia – UFPA. Mestre em
História Social-UFMA. Especialista em História do Maranhão –IESF. Gradua-
do em História - UEMA. Graduado em Pedagogia Paulo pela Universidade da
Cidade de São – UNICID. E-mail: noskcajzaionnel@gmail.com.

Jandson Jouberth Maciel Rodrigues


Graduado: Ciências Humanas – Sociologia (Universidade Federal do Mara-
nhão-UFMA) Pós-graduando: Programa de Pós-Graduação em História Social
(Universidade Federal do Maranhão – UFMA). Pós-Graduando: Libras e Do-
cência do Ensino Superior (Faculdade Evangélica do Meio Norte – FAEME).
Professor da rede de Ensino Privada locado no Colégio Reis Magos. Pesquisa-
dor vinculado ao NEAfrica (Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre África e o
Sul Global). Orientador: Prof. Dr. Antonio Evaldo Almeida Barros - Departa-
mento de História/UFMA, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas
(UFMA) e em História (UFMA), Colegiado e Programa de Pós-Graduação em
História (UEMA), Coordenação da Escola da Terra (UFMA). E-mail: jandson-
soad@hotmail.com.

Keliane da Silva Viana


Mestra em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA.
Professora de Sociologia do Curso de Ciências Humanas da Universidade Fe-
deral do Maranhão, Campus São Bernardo. Graduação em Ciências Humanas/
Sociologia pela Universidade Federal do Maranhão. Especialista em História

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do Brasil pela Universidade Cândido Mendes UCAM.  E-mail: kelianepib@
hotmail.com.

Osmilde Augusto Miranda


Doutorando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão,
Mestre em Ciências Sociais e graduado em Comunicação Social- Habilitação
Jornalismo (UFMA). E-mail: osmildemiranda@gmail.com.

Marcus André Chaves Soares da Silva


Graduado em Licenciatura Plena em História, pela Universidade Estadual do
Maranhão (UEMA); Especialista em História do Brasil: sociedade e cultura,
pelo Instituto de Ensino Superior Franciscano (IESF). Email: andremarcuscha-
vessoares@hotmail.com.

Messias Araujo Cardozo


Graduação em História (UESPI, 2016). Mestre em História Social pela Univer-
sidade Federal do Maranhão (UFMA, 2020). Programa de Pós-graduação em
História – PPGHIS. Bolsista da CAPES. E-mail: messias.histsocial@gmail.com.

Rosane Apolinário Barbosa


Graduada em História pela Universidade Estadual do Maranhão. E-mail: apo-
linariorosane1@gmail.com.

Samara Fernanda da Silva Felismino


Graduada em História pela Universidade Estadual do Maranhão, Especialista
em História do Brasil: Cultura e Sociedade pelo Instituto de Ensino Superior
Franciscano – IESF. E-mail: samara_fernanda122@hotmail.com.

Welitânia de Oliveira Rocha


Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Tocantins. Mestra
em Antropologia Social pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente é
doutoranda em Antropologia Social – UnB. E-mail: oliveirawelitania@gmail.
com.

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em novembro de 2020.

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