Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Conselho Editorial
Prof. Dr. Arkley Marques Bandeira
Prof. Dr. Luís Henrique Serra
Prof. Dr. Elídio Armando Exposto Guarçoni
Prof. Dr. André da Silva Freires
Prof. Dr. Jadir Machado Lessa
Profª. Dra. Diana Rocha da Silva
Revisão:
Jessilene Gonçalves Mota
Projeto gráfico:
Ronyere Ferreira
joabe rocha
silvan s. mendes
(organizadores)
campos cruzados
questões histórico-sociais &
antropológicas em debate
São Luís
2020
editora cancioneiro
Editora chefe
Eva P. Bueno - St. Mary’s University, Texas - EUA
Conselho editorial
Antonio Ozaí da Silva - Universidade Estadual de Maringá, Brasil
Diego Buffa - Universidad Nacional de La Plata, Argentina
Evaristo Falcão - Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil
Francisca Verônica Cavalcante - Universidade Federal do Piauí, Brasil
Giselle Menezes Mendes Cintado - Université Paris-Est Créteil, França
Héctor Fernández L’Hoeste - Georgia State University, EUA
Henrique Buarque de Gusmão - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Jakson dos Santos Ribeiro - Universidade Estadual do Maranhão, Brasil
Johny Santana de Araújo - Universidade Federal do Piauí, Brasil
Josenildo de Jesus Pereira - Universidade Federal do Maranhão, Brasil
Kátia Rodrigues Paranhos - Universidade Federal de Uberlândia, Brasil
Maria Simone Euclides - Universidade Federal de Viçosa, Brasil
Mario João Figueiredo, Sec. de Estado do Planejamento do Paraná, Brasil
Nancy Yohana Correa Serna - Universidad Nacional de Colombia, Colômbia
Sandra Melo - Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil
Silvia Coneglian - Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Silvia Glocer - Universidade de Buenos Aires, Argentina
Vincent Spina - Clarion University of Pennsylvania, EUA
Capa
Alexandre Mesquita
Revisão
Jessilene Gonçalves Mota
Apresentação............................................................................................ 11
Márcio Douglas de Carvalho e Silva
A cada leitura que fazemos, permitimo-nos ser tocados por ideias, con-
ceitos e abordagens que, de algum modo, influenciam a nossa maneira de pen-
sar e refletir acerca dos acontecimentos e das manifestações humanas nos seus
mais variados sentidos. À medida que o homem age e expressa-se no tempo-
-espaço, os mais diversos ramos do conhecimento elaboram teorias e metodo-
logias para analisar os feitos e as características que são particulares à forma de
agir de cada indivíduo ou sociedade.
Neste livro, o leitor é agraciado com a reunião de textos que entrecruzam
campos diversos, conduzindo-o ao contato de lugares, pessoas e temporalida-
des múltiplas, através do uso de teorias, métodos e metodologias comuns às
pesquisas das áreas de estudos das ciências humanas e sociais. Sejam através
das lentes da história, do olhar da antropologia ou da sociologia, as formas de
expressões humanas, aqui contidas, revelam também possibilidades de pesqui-
sas através de um diálogo profícuo que, no seu conjunto, formam um caleidos-
cópio, atravessando fronteiras, proporcionando-nos histórias e experiências
em diversos espaços e contextos.
Talvez uma das proezas deste livro seja proporcionar uma leitura de tex-
tos que contemplam muitos temas e objetos bem próximos da nossa realidade,
fazendo-nos, assim, vivenciar, através da leitura escrita, muitas de nossas ex-
periências pessoais. É um livro que satisfaz aos interesses de um público leitor
variado, que, como não podia deixar de ser, é de autoria de pesquisadores com
formação diversa.
Usando uma linguagem que é própria da área em que é especialista, cada
autor(a) revela o seu compromisso de investigar e, acima de tudo, elaborar
conclusões que são significativas para compreendermos não somente o tema
analisado, mas nos situarmos no contexto mais amplo em que estamos inseri-
dos. Por mais que pareçam ser pesquisas localizadas, com foco em cidades do
interior do Brasil, são, na verdade, reflexões que, no sentido macro, revelam as
nossas raízes, as nossas influências, o nosso modo de pensar e agir e as formas
como nossa sociedade está constantemente transformando-se.
Encontramos o ser humano – em movimento – em todas as linhas deste
livro: está nas expressões memorialísticas dos cemitérios, nas práticas culturais
dos vaqueiros caxienses, nos festejos de Terecô em Bacabal, nas celebrações
católicas em São Bernardo, nos espaços de alimentação e lazer em Parnaíba, no
erotismo televisivo, nas narrativas acerca do bar da Lili e nos clubes de futebol
de Maputo. Está presente também em temas de maior responsabilidade polí-
tico-social como: na luta por direitos, no acesso à educação de qualidade, na
oferta de melhores condições de saúde aos indígenas e nas reflexões acerca da
situação da população negra no Brasil. Entrar em contato com esses sujeitos é
conversar com eles, com as suas manifestações e expressões cotidianas; é dialo-
gar com o nosso tempo.
Este livro chega ao público em um momento de dificuldade quase ge-
neralizada para todos os brasileiros e, de modo significativo, para estudantes e
pesquisadores. Já afetados pelos problemas políticos e institucionais que o país
atravessa, a pandemia que nos assola paralisou as aulas em todos os níveis da
educação, impactando muitas pesquisas em curso. Com todas as dificuldades
advindas da realidade posta e do negacionismo explícito em alguns setores da
sociedade, torna-se cada vez mais necessário reforçar e divulgar a importância
da pesquisa e da ciência para a humanidade.
Levar o resultado das investigações que compõem esta coletânea a pú-
blico é também um ato de resistência e responsabilidade social. Em uma época
obscura em que a ciência e, em especial, as ciências humanas e sociais são me-
nosprezadas, as universidades públicas sofrem com o descaso governamental,
e as publicações de livros estão ameaçadas com taxação, tornando essa valiosa
ferramenta ainda mais restrita, publicar uma obra como esta é mostrar que
estamos ativos e lutando para que o conhecimento continue sendo produzido e
colocado ao alcance do público leitor.
12
prefácio
Métier, Clio & Ciências Sociais:
por uma interdisciplinaridade possível e
necessária
14
método e a cientificidade da história, ocorrido no início do século XX entre os
durkheimianos, principalmente François Simiand e os historiadores Charles-
-Victor Langlois e Charles Seignobos.
Em 1903, o economista e sociólogo durkheimano François Simiand,
colaborador da revista Année sociologique, fundada por Durkheim em 1898,
publica, na Revue de synthèse historique, o artigo Méthode historique et sciences
sociales, reeditado na revista Annales em 1960, no qual apresenta uma crítica
contundente sobre o discurso tradicional do método histórico e responde às
críticas do livro de Charles Seignobos, La méthode historique appliquée aux
sciences sociales (1901, livro responsável pela formação de uma grande geração
de historiadores na França), que recusava o status de ciência social à sociologia,
reservando esse caráter apenas à economia e à estatística.
No artigo Méthode historique et sciences sociales, Simiand situa a história
no interior das Ciências Sociais ou da ciência social, como ele mesmo dizia, da
qual nada pode separar-lhe quanto ao projeto e aos métodos. Para ele, “a ciên-
cia social, em larga medida onde ela recorre para enriquecer sua experiência no
conhecimento do passado, trabalha com a mesma matéria da história”3.
O texto de Simiand, como relembra Jacques Revel (2006; 1989), é ape-
nas uma peça no grande debate entre historiadores e sociólogos e foi ocasião
de grandes comentários de historiadores (REVEL, 2006; 1989; BURGUIÈRE,
2006; LE GOFF, 2002; 1988). Uma das grandes análises desse debate foi apre-
sentada por Revel (1989; 2006), principalmente no artigo publicado em 2007,
Histoire et science sociale: lecture d’un débat français autor de 1900, na revista
Mil neuf cents. Revue d’histoire des intelectuels.
Como observa esse autor, a concepção da história contra a qual Simiand
se posiciona é denominada “historicizante” ou comumente chamada de “po-
sitivista”. Para Simiand, as técnicas críticas da História não definem de forma
nenhuma uma ciência positiva, limitando-se a levar a cabo um “processo do
conhecimento”; o empirismo reivindicado pelos historiadores repousa, de fato,
sobre escolhas que nunca são explicitadas. Desse modo, para Simiand, “a cons-
tituição de uma verdadeira ciência social passa por novas exigências conceitu-
ais, e em primeiro lugar, pela escolha de hipóteses que devem ser verificadas”.
Nessa perspectiva, o fato isolado não significa nada. Não é dado. “É
construído de forma a integrar-se em séries que permitirão determinar regu-
laridades e sistemas de relações”4. Inspirado na perspectiva de Bacon, Simiand
3 SIMIAND, F. Méthode historique et science sociale. In: Annales. Economies, sociétés, civil-
isations.15 année, N. 1, 1960, p 84.
4 REVEL, J. Histoire et sciences sociales: le paradigme des Annales In Un parcours critique:
15
denuncia três ídolos para os historiadores: o “ídolo político”, ou seja, o estudo
dominante dos fatos políticos, guerras, aos quais dão grande importância; o
“ídolo individual”, que é pensar a História como uma história dos indivíduos
que influencia as pesquisas em torno de um homem e não de uma instituição
ou fenômeno social; e o “ídolo cronológico”, que já se trata do costume de per-
der-se nos estudos de origem. Como lembra Le Goff, destronar a história po-
lítica “foi o objetivo número um da École des Annales e da ‘nouvelle histoire’”5.
Esse artigo de Simiand é considerado como um manifesto programático
que propõe repensar a maneira de fazer a investigação nas Ciências Sociais. De
todo modo, nos anos que seguem, as reivindicações de Simiand terão grande
recepção no projeto da École des Annales, fundada por Marc Bloch e Lucien
Fevbre, e atestado por vários historiadores. A revista Annales d’histoire écono-
mique et sociale, criada em 1929, deve sua performance à Revue de Synthèse
historique, dirigida por Henri Berr, e à L’Année sociologique que encarnaram no
início do século um esforço de reflexão epistemológica e de diálogo no seio das
Ciências Humanas, das quais Marc Bloch e Lucien Febvre reivindicam herança.
Da revista de Berr, eles se apropriam da ideia das pesquisas coletivas
como tradução experimental do projeto científico e interdisciplinar que eles
entendem promover. Da revista de Durkheim, ele retém a função estratégi-
ca das recensões de obras que dão oportunidade de desenvolver suas próprias
concepções confrontando-se com aquilo que se publica. Eles mesmos assumem
uma grande parte dessa tarefa, como Durkheim o fez para L’Année sociologique6.
Esta relação entre História e Sociologia não é presente somente no con-
texto francês. Na Alemanha, Max Weber consagra um vasto e importante lugar
à ciência histórica presente em toda sua obra, também caracterizada como uma
sociologia histórica. Homem de grande erudição, jurista, historiador, econo-
mista, sua obra se afirma tardiamente como sociologia. Ele descobre no ca-
minho a necessidade de uma sociologia geral, ao mesmo tempo descritiva e
sistemática. Suas obras mais famosas, A ética protestante e o “espírito” do capita-
lismo, bem como Economia e Sociedade na Antiguidade, decorrem da história
na medida em que elas não tratam do capitalismo em geral, mas sim a cada
uma de suas variantes, o capitalismo moderno de empresa no primeiro caso, o
douze exercices d’histoire sociale. Paris: Galaade Édition, 2006, p. 34-35; REVEL, J. História
e ciências sociais: o paradigma des Annales In Invenção da sociedade. Lisboa: Difel, 1989,
p. 20.
5 Ver: LE GOFF, J. L’histoire nouvelle In: La nouvelle histoire. Paris: Éd. Complexe, 1988.
6 Ver: BURGUIÈRE, A. L’École des Annales: une histoire intellectuelle. Paris: Odile Jacob,
2006.
16
capitalismo na Antiguidade no outro caso.
Na Alemanha, Norbert Elias é mais um exemplo clássico de empreendi-
mento no diálogo bastante eficaz entre História e Sociologia. Sua teoria, tam-
bém classificada como uma sociologia histórica, inscreve-se na continuidade
da obra de Durkheim e Weber. Como estes últimos, Elias se volta para a Histó-
ria a fim de compreender a sociogênese do Estado contemporâneo. Questiona
o uso corrente de noções essencialistas tais como “nação”, “Estado”, “sociedade”
e “indivíduo”, como substantivos que agem ou pensam por si mesmos.
Esse vocabulário, segundo ele, ofusca o fato de que os indivíduos estão
sempre em relação uns com os outros. Ele retoma também, dos seus predeces-
sores, a ideia de que os laços sociais são relações de poder. Contudo, introduz
o conceito de “interdependência”, mostrando que é possível considerar o poder
como uma relação funcional entre indivíduos que ocupam uma posição domi-
nante ou outros que ocupam uma posição dominada; os primeiros não podem
existir sem os segundos e reciprocamente.
Assim é a relação de poder entre “patrões/empregados”, “pais/filhos”,
“governantes/governados”7. Cada uma dessas formas de domínio ele chama de
“configuração”, ilustrando-as com o jogo de cartas e xadrez. Numa perspectiva
próxima a de Durkheim, ele se interessa, ao longo de sua obra, pelo processo
de civilização da humanidade apreendido como um processo de longa duração.
Para Norbert Elias, a formação desse processo de civilização não se ex-
plica somente pelo desenvolvimento de meios repressivos monopolizados pelo
Estado. A sociologia elisiana consagra um espaço importante à psicologia. Nes-
se sentido, baseado em Freud, ele defende a ideia de que a personalidade do
indivíduo se forma à custa do recalque de suas impulsões. A sociogênese do
Estado nacional é completada pela psicogênese como desenvolvido na sua obra
A sociedade de Corte. Em Versailles, os cortesãos formam uma configuração
particular. O objetivo da competição que os opõe é obter os favores do rei. Isso
obriga a controlar os afetos, a linguagem e os comportamentos para apresentar-
-se em público. Esse constrangimento servirá de base para estabelecer as regras
da polidez e da sociabilidade que serão, por conseguinte, impostos às crianças
através da educação8. Esse processo ele chamará de “processo civilizador”9.
17
De volta à França, podemos citar Pierre Bourdieu, que entre os sociólo-
gos contemporâneos de renome internacional, lutou incessantemente reunin-
do o saber sociológico constituído desde o final do século XIX pela unidade
das Ciências Sociais. Recusando, como Durkheim e Mauss, a separação entre
Sociologia e Antropologia, ele consagra uma parte central da sua vasta obra à
história e à interdisciplinaridade. Seus diálogos com diversos historiadores, tais
como Braudel, Duby, Chartier, Charle, Darnton, E. P. Thompson, Hobsbawm,
Goody, Panofsky, Ginzburg, para citar apenas esses, estão registrados em seus
livros e em diversos colóquios.
É possível verificar esse empreendimento no grande instrumento de di-
vulgação de suas pesquisas e de seus colaboradores na revista fundada por ele
em 1975, Actes de la recherches en sciences sociales, que acolheu diversos artigos
de grandes historiadores. Como ilustração, dois números especiais em 1995/1-
2 (106-107) e 1995/3 (108) foram intitulados Histoire sociale des sciences so-
ciales. Assim observou também Hobsbawm (2004), seis dos nove artigos são
escritos por historiadores ou consagrados a objetos de história.
O historiador britânico advertia que apesar de sua gratidão a F. Brau-
del, que lhe acolheu na Maison des sciences de l’Homme, ele era muito crítico a
respeito dos intelectuais da École des Annales, pela falta de interesse de alguns
deles em empreender uma análise histórica dos conceitos utilizados na análise
do passado, quer dizer, para “o uso reflexivo da história”. Hobsbawm observa,
ainda, que a história para ele era uma ferramenta da crítica reflexiva, graças a
ela, pensadores tomam consciência da especificidade – ou da subjetividade –
do ponto de vista de todo observador da sociedade e de toda disciplina preten-
dendo ser uma “ciência social”. Nós abordamos nosso trabalho não enquanto
cérebro, mas enquanto homens e mulheres educados numa situação, em um
tipo de sociedade, em um determinado lugar do globo, em um determinado
momento da história10.
No livro Homo historicus: reflexões sobre a história, os historiadores e
as ciências sociais, Christophe Charle, historiador cuja influência da obra de
Bourdieu é muito marcante, propõe uma necessidade constante de cooperação
transdisciplinar entre as Ciências Humanas e Sociais. Ele retoma duas passa-
gens que resumem o projeto bourdieusiano. A primeira foi: “Posso dizer que
um dos meus combates mais constantes, sobretudo com a Actes de la recherche
v.1. 2. ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
10 HOBSBAWM, E. Sociologie critique et histoire sociale In BOUVERESSE, J. ROCHE,
D. LA liberté par la connaissance: Pierre Bourdieu (1930-2002). Paris: Odile Jacob, 2004, p.
282-284.
18
en sciences sociales, visa favorecer a emergência de uma ciência social unificada,
em que a História seria uma Sociologia histórica do passado e a Sociologia uma
História social do presente”11. E a segunda, explicita:
19
dos meios de comunicação etc. Em outras palavras, as ciências históricas e so-
ciais (Sociologia, Antropologia, Sociologia histórica e Antropologia histórica)
são ferramentas para desconstruir e desnaturalizar os processos de constru-
ção histórica e social das estruturas de dominação legítima que nos impõem o
arbitrário cultural materializado nas oposições entre cultura erudita e cultura
popular, entre negros e brancos.
Oportuno e necessário é este presente trabalho que graças a esses pes-
quisadores chega às nossas mãos e que, sem dúvida, é uma grande contribuição
para as comunidades acadêmica e científica.
20
Parte i
Educação,
questões raciais
e políticas públicas
“Educação do campo é direito e não esmola”:
movimentos sociais e a luta pela Educação
do Campo
26
Nos anos 1980, os movimentos sociais passam a ser compreendidos
como “ação coletiva sustentada por sujeitos que compartilham identidades ou
solidariedades no enfrentamento a estruturas sociais ou práticas culturais do-
minantes” (ABERS; BÜLOW, 2011, p. 53). Tal perspectiva está muito associada
aos teóricos dos Novos Movimentos Sociais (NMS), a exemplo de Alain Tou-
raine e Alberto Melluci, bem como àqueles ligados à perspectiva da Mobiliza-
ção Política (MP), como Sidney Tarrow (ABERS; BÜLOW, 2011). Mas essas
definições, embora amplas, não dão conta da dinamicidade e complexidade
presentes nos movimentos sociais, sobretudo quando novos personagens e no-
vas lutas entraram em cena (SADER, 1988), por exemplo, as lutas dos negros,
indígenas e trabalhadores rurais.
Entre as décadas de 1950 e 1990, quando novos sujeitos e lutas emergi-
ram no âmbito dos movimentos sociais, estes passaram a ser pensados a partir
de quatro perspectivas principais: I) aqueles defensores das culturas locais e
contrários aos efeitos devastadores da globalização; II) os reivindicadores de
ética na política; III) aqueles preocupados em adentrar e alcançar espaços e su-
jeitos na sociedade até então “esquecidos” pelas instituições públicas ou priva-
das; IV) aqueles impulsionadores de uma nova perspectiva sobre a autonomia,
no campo político e epistemológico (GOHN, 2013).
Há certo consenso no campo científico em afirmar que a temática dos
movimentos sociais tenha emergido para debate a partir do surgimento da
Sociologia enquanto ciência (GIDDENS, 2012; GOHN, 2010). Contudo, das
Ciências Sociais às Humanas, diversos são os estudos que se propõem a inter-
pretar os movimentos sociais em diferentes prismas. Não há uma única teoria
interpretativa que conceitue o que são os movimentos sociais.
Do ponto de vista teórico, a análise da bibliografia geral nas ciências sociais usu-
almente inclui os movimentos sociais como uma sessão dos estudos sociopolí-
ticos e tem como denominador comum analisá-los dentro da problemática da
ação coletiva. Na realidade, a temática dos movimentos surge como objeto de
estudo junto com o nascimento da própria sociologia. Segundo Scherer-War-
ren, ‘na sociologia acadêmica o termo movimento social’ surgiu com Lorens
Von Stein, por volta de 1840, quando este defende a necessidade de uma ciên-
cia da sociedade que se dedicasse ao estudo dos movimentos sociais, tais como
um movimento proletário francês e o do comunismo e socialismo emergentes’
(Scherer-Warren, 1987: 12). No século XX a temática passa a ser vista no uni-
verso dos processos de interação social dentro da ‘teoria do conflito e mudança
social’[...]. (GOHN, 2010, p. 328).
27
É importante destacar que os movimentos sociais são, direta ou indire-
tamente, tratados em vasta literatura a partir de um olhar plural (GOHN, 2010;
HARVEY, 2014; MARX, 2008; ROLNIK, 2013; ARCARY, 2014; MELLUCCI,
2001; MEDEIROS, 1989). Não há uma única interpretação sobre os movimen-
tos sociais, mas sim diversas. Movimentos com demandas, agendas, pautas de
lutas e sujeitos diferentes. Há movimentos internacionais e nacionais, movi-
mentos populares do campo e da cidade, movimentos sindicais e estudantis,
movimentos identitários e culturais, movimentos pela educação e saúde públi-
ca, dentre vários outros com singularidades, heterogeneidades e especificida-
des nas lutas. Mas também são movimentos que vão tecendo redes de solida-
riedades que os conectam.
No campo científico, os conceitos de movimentos sociais variam nas
contingências do tempo e do espaço. Para compreender tais contingências, é
preciso considerar os paradigmas emergentes em cada tempo e espaço, pos-
to que os conceitos foram diretamente construídos no âmbito deles. Por pa-
radigma, compreende-se “[...] um conjunto explicativo em que encontramos
teorias, conceitos e categorias, de forma que podemos dizer que o paradigma
X constrói uma interpretação Y sobre determinado fenômeno ou processo da
realidade social” (GOHN, 2010, p. 13). Mas os paradigmas devem ser pensados
como dialéticos e outros paradigmas interpretativos podem emergir na medida
em que os antigos não conseguem mais explicar as novas dinâmicas sociais.
Os próprios movimentos sociais podem ser pensados como sujeitos im-
portantes na demanda de novas cartografias explicativas. Aqui, é possível citar
o protagonismo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
por exemplo, para sinalizar alguns dos movimentos de lutas da população do
campo que têm possibilitado novas cartografias, geografias e ecologias de sabe-
res na própria produção de conhecimento.
Em Teorias dos Movimentos Sociais, Maria da Glória Gohn apresenta um
panorama reconstitutivo das teorias dos movimentos sociais, dividindo-os em
três partes: Paradigma Norte-Americano, Paradigmas Europeus e Latino-A-
mericano. O enfoque das discussões de Gohn perpassa contextos variados que
vão dos debates clássicos aos contemporâneos.
O paradigma Norte-Americano é composto pelas teorias clássicas e con-
temporâneas sobre as ações coletivas1 e as teorias sobre movimentos sociais
1 Nas teorias clássicas sobre as ações coletivas, cinco enfoques podem ser citados para pen-
sar os movimentos sociais, a saber: I) movimentos sociais como reações psicológicas às
estruturas de privações socioeconômicas; II) Sociedade de massas; III) abordagens socio-
políticas; IV) comportamento coletivo sob a ótica do funcionalismo e V) teorias organiza-
cionais-comportamentais. Para mais informações, ver Gohn (2010).
28
na era da globalização com foco para a mobilização política (GOHN, 2010).
O paradigma Norte-Americano vê os movimentos sociais como “problemas”
e/ou “anomalias” na sociedade. A questão, nesse paradigma, foi inscrever os
movimentos sociais como “[...] elementos disruptivos à ordem social vigente”
(GOHN, 2010, p. 329), ocupando aqui os estudos sobre anomalia social, de
Émile Durkheim, lugar central nas análises.
29
dores de mudanças sociais. (GOHN, 2010, p. 331).
30
[...] Parte de explicações mais conjunturais, localizadas em âmbito político ou
dos microprocessos da vida cotidiana, fazendo recortes na realidade para ob-
servar a política dos novos atores sociais. As categorias básicas deste paradigma
são: cultura, identidade, autonomia, subjetividade, atores sociais, cotidiano, re-
presentações, interação política etc. Os conceitos e noções analíticas criadas são:
identidade coletiva, representações coletivas, micropolítica do poder, política
de grupos sociais, solidariedade, redes sociais, impactos das interações políticas
etc. (GOHN, 2010, p. 15).
É preciso também ter a capacidade de leitura que nem tudo o que se passa nos
movimentos sociais é o novo, já que, por exemplo, nem o movimento indígena,
nem o movimento camponês foram invenções do século XX e continuam sendo
um componente importantíssimo na luta em oposição à hegemonia neoliberal,
com todas suas metamorfoses e indeformabilidades. (COSTA; DE’CARLI, 2013,
p. 159).
31
com a globalização da economia e institucionalização de processos, quando da
redemocratização política no contexto latino-americano, a exemplo do Brasil,
possibilitaram o surgimento de um novo ciclo de movimentos e lutas, mais fo-
cados nas lutas contra os mecanismos de exclusão social (GOHN, 2010).
O filósofo marxista italiano Antônio Gramsci apresenta reflexões que
podem ser usadas para problematizar os movimentos sociais na América La-
tina. Para Gramsci, os intelectuais ocupam um lugar importante nos movi-
mentos sociais. No campo dos intelectuais dos movimentos sociais há aqueles
denominados de “orgânicos”. Para o filósofo, os grupos sociais criam para si,
organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais importantes pela con-
solidação da consciência da própria função em diferentes dimensões/campos,
seja no econômico, no social e no político (GRAMSCI, 1999). Cabe ressaltar
que os intelectuais de um determinado campo/dimensão social não emergem
a partir do “nada”. Eles emergem a partir de uma estrutura já pré-estabelecida,
pré-existente, indo ao encontro de certas esferas do social, tanto podem mos-
trar-se favoráveis e sustentadores da lógica capitalista, quanto configurarem-se
como oposição.
Para a filósofa húngara Agnes Heller, os intelectuais orgânicos são im-
portantes, sobretudo por possuírem lutas mais engajadas com o social. Heller
(1978), Karl Marx e Friedrich Engels (2008) propõem uma produção do conhe-
cimento engajada com o social, alinhando-se teoria e empiria. Marx, em Teses
sobre Feuerbach, afirmara que por muito tempo os “[...] filósofos têm apenas in-
terpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”
(MARX, 1982, p. 72). Para Marx, “a vida social é essencialmente prática. Todos
os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução
racional na práxis humana e no compreender desta práxis” (MARX, 1982, p.
72). Esse compreender da práxis deveria levar o sujeito a atuar no sentido de
refletir sobre as desigualdades sociais, mas também de transformar o mundo.
E, numa perspectiva gramscina, Heller nos convida a um movimento de cons-
trução de um intelectual orgânico comprometido com um mundo social civili-
zado, humanamente mais justo e menos desigual.
Esse intelectual orgânico deverá considerar a pluralidade das experi-
ências dos movimentos sociais, descentralizando as análises das perspectivas
eurocêntricas que, historicamente, pautaram-se numa lógica epistemológica
que é hierárquica e dicotômica. Nesse sentido, concorda-se com Barros (2018)
quando argumenta que:
32
[...] É preciso que se institua uma democratização epistemológica. Nas Améri-
cas, esta corrente de pensamento se relaciona, por exemplo, à filosofia e teolo-
gia da libertação latino-americanos (dentre os quais é possível destacar Enri-
que Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Immanuel Wallerstein e Ramón
Grosfoguel). Vários intelectuais africanos, como Appiah (1997), Mudimbe
(1994,1998), Mbembe (2001), Hountondji (1977) e Oladipo (2000) têm apon-
tado para essas questões ou problemas similares. Nessa perspectiva, entende-se
que a discussão epistemológica das ciências sociais e humanas e da filosofia vem
se pautando num modelo eurocêntrico que se pretende universal e imparcial,
embora seja localmente gestado (eurocentrismo). O conhecimento e as práticas
cognoscitivas e sociais produzidas são largamente baseados nesse paradigma,
em que o outro é visto como um objeto e não como um sujeito que pensa. (BAR-
ROS, 2018, p. 43).
Tal debate pode ser conectado aos paradigmas que se propõem pensar os
movimentos sociais, que se pretendem globais e imparciais, mas efetivamente
são locais e temporalmente gestados. Ora, os paradigmas foram produzidos
desde um lugar social e resultam de relações de poder que nem sempre consi-
deram a pluralidade do mundo, que homogeneíza e hierarquiza as experiências
dos sujeitos. Já na perspectiva das epistemologias do sul, de uma nova cartogra-
fia pós-colonial e de uma “ecologia de saberes”, é importante que se problemati-
ze as experiências dos movimentos sociais com um olhar multi e pluricultural,
heterogêneo e horizontal, e compreenda-se que eles têm um papel importante
na produção do conhecimento e na emancipação humana (MELUCCI, 1994).
Em Epistemologias do Sul, Boaventura Santos e Maria Paula Meneses (2009)
questionam o contexto cultural e político da produção e reprodução do co-
nhecimento e defendem a possibilidade de outras epistemologias, partindo do
pressuposto de que “toda experiência social produz e reproduz conhecimento
e, ao fazê-lo, pressupõe uma ou várias epistemologias” (SANTOS; MENESES,
2009, p. 9). Para os estudiosos, não há epistemologias neutras e as que reivin-
dicam tal status são as menos neutras possíveis, devendo-se empreender uma
reflexão epistemológica sobre as práticas de conhecimento e seus impactos em
outras práticas sociais.
A lógica na qual a sociedade tem sido estruturada, em grande medi-
da, tem (in)diretamente negado, anulado e banalizado vidas em prol de um
“desenvolvimento capitalismo”2, sobretudo com o avanço do conservadorismo
reacionário. Não houve apenas um modelo de conservadorismo nas histórias
2 A título de exemplo, é possível citar os dois crimes ambientais ocorridos recentemente em
Mariana (2015) e Brumadinha (2019), ambas situadas no Estado de Minas Gerais, Brasil.
33
das nações do sul, ou mesmo do norte do globo. Esses movimentos do conser-
vadorismo têm representado um avanço contra as alternativas emancipatórias
na América Latina. A experiência dos intelectuais orgânicos que atuam intrin-
secamente nos movimentos sociais de lutas contra a exploração, dominação e
humilhação da classe trabalhadora e popular, por exemplo, os da América La-
tina3, pode ser pensada como mecanismo de resistência ao conservadorismo,
ao direito do bem-viver e à ampliação da noção de cidadania e humanidade, da
qual comumente ainda são excluídas as pessoas não brancas e do campo.
É nesse contexto amplo e plural de debate sobre os movimentos sociais
que as Políticas Públicas Sociais são tomadas como respostas de resistência à
exploração, dominação e humilhação da classe trabalhadora e popular. E cabe
ressaltar ainda que a emancipação das classes e setores “subalternos”, mais pre-
cisamente das classes oprimidas, implica na própria emancipação da humani-
dade. Desse modo, sugere-se que as Políticas Públicas Sociais compõem um
conjunto de estratégias de superação e rompimento com um “não lugar” de
exclusão social que a lógica capitalista tem tentado aprisionar a classe trabalha-
dora e popular. Mas é preciso também pensar esses sujeitos para além das lentes
da vitimização, afinal, reconhece-se que eles estão envolvidos na resistência e
no desafio de fazer história (GROSSMAN, 1998).
É no bojo desse palco de reflexões que a educação do campo é problema-
tizada, desde a chave analítica dos movimentos sociais do campo, tendo “como
ponto de partida mais geral os problemas colocados pelo que poderíamos cha-
mar de desigualdade social e econômica, ocupando-se com a luta de classe e as
questões do mundo do trabalho” (BARROS, 2018, p. 243).
34
balhadora camponesa ganharam força e impulsionaram os debates contra as
políticas neoliberais de Estado, discutindo desde questões educacionais até a
organização política do Brasil. Dessa maneira, Gohn (1997, p. 95) afirma que os
movimentos sociais podem ser pensados enquanto “corpos organizativos que
produzem e difundem suas mensagens, uma mentalidade e culturas políticas”.
A fim de compreender a contribuição dos movimentos sociais para as políticas
públicas de educação do campo, é necessário pensa-los partir de suas lutas,
estratégias e resistências que visibilizaram sujeitos do campo e conquistaram
uma educação voltada para o contexto campesino.
Fato é que “a relevância dos movimentos sociais para a educação fica
evidente quando se compreende a educação como processo autoformativo da
sociedade” (STRECK, 2009, p. 22). E torna-se inviável compreender as políticas
públicas de Educação do Campo sem pensar os movimentos que a construíram
enquanto uma política pública educacional. Segundo Gohn (1995):
35
atentar para a grande complexidade e diversidade da realidade brasileira. As-
sim, é importante refletir que para os trabalhadores que vivem no campo “a
educação é desenvolvimento e potencialidades [bem como], apropriação do
saber socialmente construído” (SILVA, 2007. p. 19). Nesse sentido, Cavalcanti
(2009, p. 172) afirma que “tratar a Educação do Campo como uma política
pública implica pensar, em [...] ações educacionais de forma ampliada, [...] nas
áreas rurais, mas nos diversos níveis de modalidade e educação”. Compreen-
dendo, assim, que os “conhecimentos devem servir de instrumento para com-
preensão e resolução dos problemas que afetam as pessoas e a comunidade”
(CALDART, 2012, p. 56).
O engajamento e a intensa luta dos movimentos sociais camponeses,
sobretudo do MST, são na tentativa de garantir alguns dos direitos sociais ao
povo do campo, por exemplo, educação pública e de qualidade, fazendo va-
ler o próprio texto da Constituição Federal de 1988, que menciona o direito
à educação para todos, como consta no capítulo III, artigos 205, 206 e 208,
respectivamente:
Art. 205: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será pro-
movida e incentivada com colaboração da sociedade, visando ao pleno desen-
volvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualifica-
ção para o trabalho. Art. 206: O ensino será ministrado com base nos seguintes
princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
VII – garantia de padrão de qualidade; Art. 208: O dever do Estado com a edu-
cação será efetivado mediante a garantia de: I – ensino fundamental, obrigatório
e gratuito, inclusive para os que a ele não tiverem acesso na idade própria.
36
§ 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominante-
mente, por meio do ensino, em instituições próprias.
§ 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática
social.
39 Art. 28º. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de
ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades
da vida rural e de cada região, especialmente:
I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e
interesses dos alunos da zona rural; II - organização escolar própria, incluindo
adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climá-
ticas; III - adequação à natureza do trabalho na zona rural.
[...] O fechamento de escolas do campo, indígenas e quilombolas será precedi-
do de manifestação do órgão normativo do respectivo sistema de ensino, que
considerará a justificativa apresentada pela Secretaria de Educação, a análise
do diagnóstico do impacto da ação e a manifestação da comunidade escolar
(BRASIL, 1996, p. 8 -21).
Lutas e movimentos pela educação têm caráter histórico, são processuais, ocor-
rem, portanto, dentro e fora de escolas e em outros espaços institucionais. Lutas
pela educação envolvem lutas por direitos e fazem parte da construção da cida-
dania. O tema dos direitos é fundamental, porque dá universalidade às questões
sociais, aos problemas econômicos e às políticas públicas, atribuindo-lhes cará-
ter emancipatório. É a partir dos direitos que fazemos o resgate da cultura de
um povo e de uma nação, especialmente em tempos neoliberais que destroem
ou massificam as culturas locais, regionais ou nacionais. Partir da óptica dos
direitos de um povo ou agrupamento social é adotar um princípio ético, moral,
baseado nas necessidades e experiência acumuladas historicamente dos seres
humanos, e não nas necessidades do mercado. A óptica dos direitos possibilita-
-nos a construção de uma agenda de investigação que gera sinergia, não com-
paixão, que resulta em políticas emancipadoras, não compensatórias. (GOHN,
2011, p. 346-347).
37
formações em várias dimensões da sociedade, envolvendo disputa de projetos
políticos, sejam eles de cunho ideológico, histórico, filosófico, epistemológi-
co, cultural, etc. Os movimentos sociais do campo podem ser pensados como
importantes grupos de pressões no processo de formulação, implementação e
avaliação da política educacional voltada para o campo, afinal, é importante
ressaltar que “o Estado ainda não tomou ações concretas e amplas para a imple-
mentação de uma política pública de educação do campo. Há de se reconhecer
o espaço de diálogo e de construção coletiva conquistado pelos movimentos
sociais do campo” (CAVALCANTI, 2010, p. 173). Efetivamente, a Educação do
Campo, pensada como novo paradigma, representa uma conquista que advém
das lutas de trabalhadores camponeses do Brasil.
De modo mais incisivo, pelo menos desde o final da década de 1980 e
início da década de 1990, as lutas da classe trabalhadora camponesa vem ga-
nhando visibilidade e “movimento uniforme” através de mobilizações, resistên-
cia ao agronegócio exportador e à exclusão social que expropria os povos do
campo.
Na perspectiva de Gohn (2008, p. 159) “só os movimentos sociais têm
a capacidade de reinventar e reorientar o Estado e suas políticas e exigir a su-
peração da submissão do Estado às políticas socioeconômicas contrárias aos
interesses de uma sociedade e de um povo”. Ademais,
38
po, realizada em 1998 na cidade de Luziânia – GO, e a II Conferência Nacional
por uma Educação do Campo que também aconteceu na cidade de Luziânia,
no ano de 2004, foram fundamentais para que outros movimentos sociais pu-
dessem integrar-se a essa luta, a exemplo da Associação em Áreas de Assenta-
mento no Estado do Maranhão (ASSEMA), Movimento dos Pequenos Agricul-
tores (MPA), Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), Movimento dos
Atingidos por Barragem (MAB) e demais movimentos em cujas representações
estão os indígenas, os quilombolas e as mulheres do campo.
Esses encontros e seus debates abriram caminhos para outros eventos
e demandas. Em 2004, o Estado começou a formular e sistematizar reflexões
sobre a Educação do Campo e as políticas públicas voltadas para esse setor.
Efetivamente, são “as políticas públicas que dão visibilidade e materialidade ao
Estado e, por isto são definidas como sendo o Estado em ação” (AZEVEDO,
1997, p. 60).
Para Cavalcanti (2010, p. 35), “[...] uma questão específica de um setor se
constitui enquanto política pública específica quando passa a ser reconhecida
pelo Estado à medida que são criados os mecanismos legais, financeiros e insti-
tucionais para garantir as demandas e necessidades daquele setor.”
Cabe lembrar que:
39
novas concepções da Educação do Campo visam transformar os sujeitos e as
escolas do campo com vistas a um processo de emancipação social, sobretudo
humana. Assim, outras histórias podem (e devem) vir à tona, outras formas de
pensar o mundo e as experiências sociais.
Considerações finais
40
exercerem sua cidadania, o Estado “democrático de direito” tem a obrigação de
formular e implementar políticas públicas com eficácia e qualidade para todas
as esferas da sociedade. Os movimentos sociais do campo tecem seu processo
de luta em torno do exercício da cidadania do indivíduo. Nesse sentido, pontu-
am-se algumas indagações, a saber, que tipo de cidadania vem sendo oferecida
para esses(as) trabalhadores(as) do campo? O Estado realmente vem contem-
plando políticas públicas para a população campesina? Como tem sido o pro-
cesso de formulação, implementação e avaliação dessas políticas públicas de
educação? Nesse sentido, cabe sinalizar que poder e política se cruzam nesse
cenário (FOUCAULT, 1989).
Assim, a intenção deste trabalho foi, de um lado, trazer um mosaico dos
debates teóricos sobre os movimentos sociais, perpassando pelos paradigmas
predominantes; de outro lado, lembrar ainda que é preciso considerar a alte-
ridade humana nos estudos sobre os movimentos sociais, e isso implica em
olhar também para as experiências do Sul global, como aquelas desencadeadas
por sujeitos do campo. O convite deste ensaio foi no sentido de considerar,
primeiramente, que há movimentos sociais para além do Norte do globo e para
além das epistemologias do Norte, a exemplo do Movimento de Trabalhadores
Rurais Sem Terra que, dentre suas bandeiras de lutas, há a da educação pública
de qualidade para aqueles que vivem no/do meio rural.
Referências
41
AZEVEDO, Ana Francisca de; et. al. Geografias Pós-coloniais. In.: Ensaios de
Geografia Cultural. Porto: Figueirinhas, 2007.
COMAROFF, J.; COMAROFF, J. L. Theory from the South: Or, how Euro-Ame-
rica is evolving toward Africa. Anthropological Forum, V. 22, N. 2, July 2012.
42
Letras da Universidade do Porto,Vol. XXVI, 2013, pág. 139-162.
43
do conhecimento. Entrevista concedida a Leonardo Avritzer e Timo Lyyra. In.:-
Novos Estudos, 1999.
ROLNIK, Raquel; et. al. Cidades Rebeldes: Passe Livre e as Manifestações que
tomaram as Ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2013.
44
Educação & Cor:
um ensaio acerca da problemática do
racismo no sistema educacional brasileiro
46
tificação social por raça e cor. No que se refere ao campo educacional, a ideia
de raça e cor é utilizada para explicar a formação social, econômica e política
sem problematizar a sua construção histórica, como se tais diferenças fossem
naturais do ser humano, discutindo superficialmente as relações sociais entre
negros e brancos, seja no Brasil Colônia, Império ou Contemporâneo.
É nesse contexto que o presente ensaio tem o objetivo de analisar como
a educação foi fundamentada a partir dos critérios de raça e cor, o que contri-
buiu com o fortalecimento do racismo e suas variáveis, para assim compreen-
der como o sistema educacional brasileiro tem tratado da questão racial no
campo educacional. Para a construção da análise, como técnica de pesquisa,
fez-se uso das principais referências bibliográficas que tratam da problemática
da educação das relações raciais e do racismo, assim como se fez uso de pes-
quisa documental.
O presente ensaio não tem por intenção negar as lutas e reinvindica-
ção à igualdade de direito, seja no campo educacional ou qualquer outro, mas
sim, analisar a ausência do questionamento a respeito da concepção de raça e
cor como critério de identificação de grupos e pessoas no campo da educação,
quando se entende que a narrativa sobre o conceito de raça já havia sido supe-
rada entre outras dimensões.
1 Educação e racismo
47
do sujeito identificado como negro ficou condicionada ao sistema escravista,
reforçando o sinônimo de negro e escravizado, sem dar visibilidade histórica a
esse sujeito nos processos após a abolição.
Assim, as reinvindicações sobre o direito a uma educação que não exclu-
ísse a população de negros, na primeira metade do século XX, pairavam tam-
bém sobre a reformulação do currículo escolar, e para que conteúdos e mate-
riais didáticos deixassem de ter uma abordagem preconceituosa sobre a figura
do sujeito negro. Portanto, uma educação que (res)significasse a representação
dos identificados como negros e negras, em que as narrativas deveriam inter-
pretar o papel do sujeito negro em diferentes etapas da história que não fossem
apenas associadas ao período escravista.
Questionava-se sobre o fato de a cultura educacional brasileira não ter
oportunizado um local de fala ao protagonismo negro, dado que, mesmo após
os processos históricos que levaram à abolição da escravatura, à proclamação
da república, ao período varguista e demais governos, as experiências educa-
tivas não favoreceram a contribuição do negro para a história social. A busca
pelo direito a uma historiografia sobre a participação do negro nos processos
históricos para além da escravidão foi sendo discutida e reivindicada a partir da
ação de movimentos sociais de cunho racial para que se reformulasse o ensino
nas escolas.
Passou-se, então, a reivindicar uma pedagogia que trabalhasse as rela-
ções raciais no espaço escolar, que a abordagem teórica ocorresse sem visões
preconceituosas e negativas. Isso porque questionar o racismo é também com-
preender que reconhecer uma população a partir do seu estigma, nesse senti-
do por raça e cor, é contribuir para manter um sistema que segrega. Ademais,
quanto à compreensão de raça, entende-se como algo construído para oprimir,
“para naturalizar desigualdades, justificar segregação e o genocídio de grupos
socialmente considerados minoritários” (ALMEIDA, 2018, p. 24).
Nesse sentido, Sílvio Almeida (2018) esclarece:
to mais nativo é um conceito mais ele é habitual, menos ele é exposto à crítica, menos conse-
guimos pensar nele como uma categoria artificial, construída, mais ele parece ser um dado
da natureza” (GUIMARÃES, 2008, p. 68).
48
Para Guimarães (2008), a ideia de raça só faz sentido no discurso cons-
truído a partir da necessidade que o homem tem de explicar sobre as suas ori-
gens entre gerações. Assim, traços que definem fisionomia, atributos morais e
intelectuais são creditados como características que diferem raças entre si. Para
ele, esse é o campo específico às identidades sociais, em que o seu estudo abor-
da os discursos sobre origem.
A identificação a partir da raça e cor produziu um efeito tão profundo
na vida social e na mentalidade que se percebe uma dificuldade de desraciali-
zar os sujeitos, as relações sociais, a História. Problematizam-se os efeitos cau-
sados pelo racismo, mas não se problematiza “o porquê” da permanência em
identificar socialmente sujeitos a partir de critérios de raça e cor. O discurso
construído e aplicado, em especial pelos Movimentos Negros na segunda me-
tade do século XX, foi de positivação da raça, da cor, da cultura e pela busca da
igualdade de direitos.
Conforme Guimarães (2008), a determinação de raça como critério de
identificação social foi reivindicada pelo Movimento Negro Unificado - MNU
a partir dos anos 1970, como forma de deslegitimar o mito da democracia ra-
cial constituído nos anos 1930, e assim denunciar a existência do racismo, pois
na prática havia várias contradições.
Para o MNU, um negro, para ser cidadão, precisa, antes de tudo, reinventar sua
raça. A idéia de raça passa a ser parte do discurso corrente, aceito e absorvido de
certo modo pela sociedade brasileira, o que não se explica senão pelas mudan-
ças que ocorreram também na cena internacional, que tornaram esse discurso
bastante poderoso internamente. Mas o fato é que se introduz de novo a idéia de
raça no discurso sobre a nacionalidade brasileira. (GUIMARÃES, 2008, p. 75).
49
como o racismo e seus derivados.
Em uma análise mais ampla, os arranjos históricos que construíram a
colonização e a escravidão nos materiais de História eram explicados a par-
tir do argumento da suposta inferioridade dos povos africanos. Essa explica-
ção desconstruía o racismo como elemento fundador da noção de raça, assim
como os objetivos que o legitimaram, a ocupação de territórios e riquezas do
continente africano.
Nesse contexto, compreende-se a importância que o livro didático tem
na formação educacional e social, pois ele é, ainda hoje, um material didático
fortemente utilizado nas escolas públicas e privadas, sendo, portanto, um ins-
trumento importantíssimo para a construção do conhecimento, por ser for-
mado por algum viés ideológico pelo qual explica/define categorias sociais. Ele
pode educar construindo um senso crítico de diversidade, respeito e humani-
dade ou construindo preconceitos e discriminações.
Conforme Anderson Oliva (2007), a importância que o livro didático
alcançou na educação motivou pesquisas acerca do seu conteúdo.
50
ria e no Encontro Nacional de Pesquisadores de Ensino de História (ENPEH),
alguns deles publicados nos anais dos eventos. Um balanço recente sobre as
apresentações dos trabalhos em tais eventos foi realizado por Flavia Caimi no
qual situa as principais tendências e fundamentações teóricas das pesquisas en-
tre os anos de 1999 e 2008 (Caimi, 2009) e destaca a pesquisa de Kenia Moreira
e Marilda Silva sobre as teses e dissertações produzidas no sudeste entre 1980 a
2000). (BITTENCOURT, 2011, p. 490).
2 Personagens como Negro Cosme, Dragão do Mar, Zumbi do Palmares, Manuel Calafate,
Maria Firmina dos Reis, Luís Gama, André Rebouças, Carolina de Jesus, entre outros.
51
cidade de admitir vantagens e crenças que as justifiquem é o que caracteriza o
racismo extrínseco, o que ele definiu como sendo uma “deficiência cognitiva”.
Embora não seja a intenção de Appiah analisar os processos psicológicos
do racismo ao refletir sobre a inabilidade de admitir a manutenção de ideias
que favorecem bem-estar a uns perante o mal-estar de outros, ele observa que
essa postura está associada às questões humanas, o que acaba por caracterizar
a prática do racismo como uma ideologia e não uma teoria.
52
sistema criado para legitimar desigualdades, apropriação de terras, riquezas e
corpos.
Segundo Carlos Hasenbalg (1992), a permanência desse sistema de iden-
tificação social por raça e cor é “um fenômeno de atraso cultural, devido ao
ritmo desigual de mudança das várias dimensões dos sistemas econômico, so-
cial e cultural do país” (HASENBALG, 1992, p. 151). Esse atraso está associado
a uma cultura colonialista e escravocrata que se mantém até hoje. Para alguns
pesquisadores, essa hierarquia foi construída a partir do pertencimento a uma
raça branca – privilegiada – que detém o poder econômico e político, susten-
tando, assim, as desigualdades sociais ainda estabelecidas na ideia de raça e cor
contra aqueles que hoje são descendentes de africanos escravizados, nomeados
de negros.
Desse modo, fica evidenciado nos termos do documento oficial do go-
verno brasileiro enviado à III Conferência Mundial contra o Racismo e a Dis-
criminação Racial, o Xenofobismo e Outras Formas Correlatas de Insegurança,
ao afirmar que,
53
a ser uma necessidade entre os pesquisadores. A partir do questionamento ao
mito de uma democracia racial, o enfrentamento ao racismo institucional foi
incorporado às discussões do universo político nacional, ainda que timida-
mente, sem assumir a dimensão que tal problemática requer. Mas os estudos
publicados provocaram uma discussão em vários setores sociais sobre o racis-
mo e isso incluía o questionamento acerca da produção dos livros didáticos.
Nos anos posteriores, as discussões sobre racismo no livro didático to-
maram uma dimensão que alcançou políticas públicas impulsionadas, em sua
maioria, por cobranças que vinham de movimentos sociais, em especial, do
Movimento Negro Unificado. A partir dos anos 1990, passou a ser reivindicado
com mais intensidade a introdução da História de África e cultura africana nos
currículos escolares, assim como o reconhecimento do racismo pelo Estado
Brasileiro.
Um ato de importância significativa foi a Marcha Zumbi contra o Ra-
cismo, pela Cidadania e Vida (em 20 de novembro de 1995), que culminou na
criação de um grupo de trabalho ministerial para propor políticas de valoriza-
ção do negro em todos os aspectos da cidadania, a partir do ato de reconhe-
cimento da existência do racismo no Brasil, no então governo de Fernando de
Henrique Cardoso - PSDB (1995-2003).
Uma segunda Marcha Zumbi foi realizada dez anos após a primeira, esta-
belecendo um marco na conquista de alguns direitos da população negra, que,
em sua maioria, foram reconhecidos no governo do PT, nas administrações do
presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016).
Esse movimento desencadeado pela Marcha Zumbi veio constituindo-se em
uma ação maior, mais complexa e organizada, desde a reabertura política com
a Constituição de 1988, mesmo ano do centenário da abolição.
Em 1996, o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH apresen-
tou como medida em curto prazo, “apoiar o grupo de trabalho interministerial
criado por Decreto Presidencial de 20 de novembro de 1995 com o objetivo
de sugerir ações e políticas de valorização da população negra”5 e, no contexto
educacional, como medida em médio prazo, “estimular que os livros didáticos
enfatizem a história e as lutas do povo negro na construção do nosso país, eli-
minando estereótipos e discriminações” (Ibid., p. 26). No PNDH - II (2002), em
sua nova revisão sobre os Direitos Humanos, na proposta 214 e 215, no que se
refere à educação, propõe novamente atenção aos livros didáticos, ao estabele-
54
cer que:
O silêncio da escola sobre as dinâmicas das relações raciais tem permitido que
seja transmitida aos (as) alunos (as) uma pretensa superioridade branca, sem
que haja questionamento desse problema por parte dos (as) profissionais da
educação e envolvendo o cotidiano escolar em práticas prejudiciais ao grupo
negro. Silenciar-se diante do problema não apaga magicamente as diferenças,
e ao contrário, permite que cada um construa, a seu modo, um entendimen-
to muitas vezes estereotipado do outro que lhe é diferente. Esse entendimento
acaba sendo pautado pelas vivências sociais de modo acrítico, conformando a
divisão e a hierarquização raciais (SECAD, 2010, p. 21).
Assim, a leitura construída ao longo dos anos pelo livro didático deu
permanência à construção da identificação social e cultural a partir da ideia
de raças, o que interferiu no processo de ensino-aprendizagem, reproduzindo,
assim, um conhecimento baseado na afirmação de uma estrutura social que se
realiza na existência de uma relação de dominação de brancos sobre negros.
O perigo de tal construção de conhecimento está na naturalização da relação
de dominação existente entre brancos e negros, assim como os seus efeitos na
sociedade contemporânea.
55
Considerações finais
56
querer positivar a raça como se o problema estivesse apenas na raça e na cor da
pele. E foi com o objetivo de contribuir com uma reflexão acerca da problemá-
tica do racismo no contexto educacional na sociedade brasileira que o presente
ensaio se realizou.
Referências
COSTA, Emília Viotti da. A abolição. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
57
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Cor e raça – Raça, cor e outros concei-
tos analíticos. In: SANSONE, Lívio; PINHO, Osmundo Araújo (organizado-
res). Raça: novas perspectivas antropológicas - 2 ed. rev. Salvador: Associação
Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008.
58
O protagonismo pertence aos brancos?
O papel do negro na crítica de Muhammad
Ali e o Jesus diferente de Ariano Suassuna
Por que eu quero ficar nessa casa? Porque aqui foi o único lugar que eu encon-
trei onde me senti gente. Nessa casa, não tem aquela maldita plaquinha onde
se ler: entrada de serviços. Fui criada assim, eu sei, mas sou tratada como
gente. A Dona Carlota outro dia até me beijou. No dia do meu aniversário fi-
zeram festa. Me deram presentes. Como se eu fosse da família. Eles me deixam
estudar. Eu faço meu curso de inglês. De corte e costura por correspondência.
Eu amo Dona Carlota. Amo Dr. Adalberto. Como se eles fossem meus pró-
prios pais. Na cor nós somos diferentes. No coração, não.
(Maria Clara. Novela Antonio Maria, 1968)1.
60
seja ela relacionada ao próprio sujeito ou objeto, está atrelada ao poder domi-
nador, à centralidade, à pureza, enquanto que o negro/cor negra é classificado
como algo ruim, que nasceu para ser dominado, escravizado, culturalmente e
simbolicamente, que não é sagrado, muito menos puro, buscando questionar
as formas de subalternização do negro e o que engendrou o protagonismo dos
brancos no decurso histórico.
61
lho que refletisse de maneira imediata, pura e simples a realidade e a verdade”
(KORNIS, 1992, p. 4 apud NAVARRETE, 2008, p. 22). Nesse viés, será que com
o amadurecimento do historiador diante de suas fontes, o cinema como uma
delas, é uma extensão do real (aquilo que realmente ocorreu) ou uma represen-
tação do real (interpretação/narrativa daquilo que ocorreu, chamado também
de realidade do fato)? O historiador tomaria esse tipo de fonte como verdade?
Tais indagações são importantes, pois concernem a relação intrínseca da pes-
quisa histórica, os pressupostos teóricos e a narrativa fílmica como caminho
metodológico que o historiador irá seguir.
Pegando o pensamento de Jacques Le Goff quando afirma que:
Seguindo esse modo de análise legoffeano, o cinema pode ser uma re-
presentação do real (realidade do fato)4, ou seja, a narrativa fílmico-novelesca
interpreta o fato à maneira de quem traduziu o contexto em seu espaço-tempo
em que se situa o enredo, que, dependendo da dimensão e grau de importância
que dão a ela, acaba tornando-se uma extensão (construção) do real, tomado
como verdade e referência única. A arte cinematográfica, então, faz-se como
um produto de uma linguagem e teias de significados, selecionados a partir de
uma articulação entre o produtor do conhecimento (o roteirista), que monta as
cenas procurando aproximar o público de uma construção do real dos aconte-
cimentos históricos em que o filme está enredando, e a natureza da subjetivida-
de de quem a escreveu.
O cinema, nessa perspectiva, acaba tendo como caráter tanto a forma de
uma obra de arte em movimento quanto uma representação simbólica que (re)
produz significados sobre os acontecimentos no mundo, que tenta de variados
modos trazer para dentro das telas. Não nos faltam exemplos de filmes5, no-
4 Importante explicar que faço aqui uma diferenciação entre real e realidade. Enquanto o
real é o fato (ocorrido) em si, aquilo que realmente aconteceu na íntegra. Já a realidade é a
interpretação do fato, representação mais aproximada possível daquilo que ocorreu.
5 Abrindo aqui um parêntese, é o caso também dos filmes que se passam no Nordeste,
em que percebemos uma representação do real (realidade do fato), mostrando em sentido
único e direcional uma região seca, rural e de um marasmo socioeconômico. Filmes como
Vidas Secas (1963), Guerra dos Canudos (1997), Central do Brasil (1998), Abril Despedaçado
(2002), O Caminho das Nuvens (2003), Lisbela e o Prisioneiro (2003), Cinema, Aspirinas e
62
velas, desenhos animados, que têm o poder, consciente ou inconscientemente,
de construírem no público-alvo uma ideia/imagem como modelo de verda-
de única, tais como, por exemplo, o filme Tarzan, criação de 1912, na Revista
Pulp All-Story Magazine, pelo escritor estadunidense Edgar Rice Burroughs
e, posteriormente, lançado aos cinemas pela primeira vez em 1918, inclusive
Muhammad Ali não poupou críticas fortes sobre o enredo do filme, dizendo:
“Eu me perguntava: − Por que o Tarzan, o rei da selva, na África, era branco?
[...] Ele briga com africanos, quebra a mandíbula dos leões. E Tarzan fala com
os animais, enquanto os africanos que estão ali por séculos não conseguem
falar com os animais”6.
Um filme ou qualquer produção cinematográfica tem a capacidade de
exceder seu conteúdo, em que com a retina aguçada permitirá ver no espaço
do inapreensível e do não visível, ideologias, as representações, os tipos de dis-
cursos defendidos.
63
gem, que por trás dela está uma busca ou aproximação do real (embora essa
ideia de Marc Ferro seja bastante aceita no que se trata do cinema como uma
extensão do real), o autor Eduardo Morettin diverge do pensamento de Ferro,
criticando-o e fazendo um percurso de óptica diferente. Segundo Morettin, o
cinema, tomado por ele mesmo, não pode ser entendido como uma ponte que
liga o filme – enredo, falas e cenas – ao real, como “um testemunho singular de
seu tempo” (MORETTIN, 2003, p. 13) e que “está fora do controle de qualquer
instância de produção” (Ibidem, p. 13), visto que, para Eduardo Morettin, tudo
é uma construção de sentidos; apenas uma representação.
7 Cassius Marcellus Clay Jr., mais conhecido como Muhammad Ali, nascido na cidade de
Louisville, 17 de janeiro de 1942, Estados Unidos da América, foi um dos maiores expoentes
boxeadores do mundo em seu tempo. Não por acaso, o escritor e jornalista David Remnick,
ao fazer um livro de sua biografia, chamou-o de “O rei do mundo: Muhammad Ali e a as-
censão de um herói americano” (1988). Não somente ficou reconhecido por suas atuações
no ringue, como também por sua personalidade forte e subversiva ao sistema religioso e
político americano, dando várias entrevistas bem polêmicas e ousadas no seu tempo, inclu-
sive, sobre os motivos de sair do Cristianismo e aderir à religião mulçumana (o Islamismo),
como desertar na guerra do Vietnã e sua luta contra o racismo. Na sua cidade de origem,
estado de Kentucky, havia uma segregação forte entre brancos e negros, protegida por lei.
O boxe nas décadas de 1960 a 1980, considerado um ícone de uma representação de força
social, econômica e de poder na sociedade americana, fez com que Muhammad Ali, sendo
negro, usasse a força que ele possuía para lutar bravamente contra o protagonismo do bran-
co e a subordinação e humilhação que os negros sofriam em várias instituições de poder. No
dia 3 de junho de 2016, após 32 anos de uma luta, não mais nos ringues e nos microfones,
mas sim uma luta contra a doença de Parkinson, Muhammad Ali morreu aos 74 anos, de-
vido a problemas respiratórios, no hospital de Phoenix, cidade onde estava residindo com
a família.
64
Eu sempre perguntava para a minha mãe: − mãe, por que é tudo branco? Por que
Jesus é branco de olhos azuis? Por que na última ceia, todos são brancos? Maria,
inclusive os anjos. Perguntei: − mãe, depois de morrermos vamos para o céu? Ela
disse: − claro que vamos para o céu. Eu respondi: − então, o que aconteceu com
todos os anos negros? Eu continuei: − Eu sei. É porque se os homens brancos
estão no céu, os anjos negros estão na cozinha preparando o leite e o mel. Eu
me perguntava: − porque o Tarzan, o rei da selva, na África, era branco?. [...]
Ele briga com africanos, quebra a mandíbula dos leões. E Tarzan fala com os
animais, enquanto os africanos que estão ali por séculos não conseguem falar
com os animais. Eu me perguntava: − por que a Miss Estados Unidos era sempre
branca? Tantas mulheres lindas e negras do país, lindos bronzeados e silhuetas,
por que escolhem a branca com tanta diversidade? [...] E a Miss Universo era
sempre branca. E também as coisas: charutos da Casa Branca, Sopa de Cisne
Branco, Sabão do Rei Branco, Papel de Nuvens Brancas, Peixes de Anéis Bran-
cos, cera de piso, Tony Branco, tudo era branco. E o bolo do anjo era branco,
enquanto a torta do diabo era de chocolate. E eu me perguntava: − o presidente
dos EUA mora na Casa Branca, e a Branca de Neve, e o Papai Noel era branco. E
tudo que era ruim era negro. O patinho feio era negro, o gato preto é o do azar
[...]. (Grifos meus)8.
8 Essa entrevista está disponibilizada na internet com o título: “Muhammad Ali - Por que
tudo é branco?”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6aodGt-XJqM&t=7s .
Acesso em: 17/11/2017
65
à branca nos palcos do entretenimento televiso.
Ressalta Kênia Freitas que:
O cinema9, como produção midiática, não deixa de ser, desde sua cria-
ção, uma produção industrial de ideologias e de discursos subjetivos, que tem
forças de promover representações pictóricas estereopatizadas ou preconceitu-
osas, no qual a “olho nu” não dá para entender o verdadeiro corpus do filme,
desenho ou novela. Mas, como explica Foucalt, por trás de um discurso existe
“o não-dito que involuntariamente recobrem, a abundância de pensamentos,
imagens ou fantasmas que as habitam” (FOUCALT, 2008, p. 124), que faz com
que os discursos e as possíveis intenções e determinações de papéis sociais não
possam ser interpretados nas linhas, mas sim nas entrelinhas do que está sendo
enunciado.
A grande escritora moçambicana, Paulina Chiziane, deu uma importan-
te entrevista na plataforma eletrônica Buala, cujo título “Os anjos de Deus são
brancos até hoje”, na qual fala abertamente sobre os diversos aspectos culturais,
políticos e econômicos que existem na relação entre negros e brancos, tanto na
África como na relação entre Portugal e Brasil (no colonialismo e pós-colonia-
lismo).
Um trecho dessa entrevista nos chama muita atenção no que se trata da
problemática discutida neste estudo:
Doris Wieser -[...] Qual era a imagem estereotípica dos portugueses no tempo
colonial e como mudou esta imagem desde então?
Paulina Chiziane - [...] Nos livros de escola, quando eu estudei no tempo colo-
nial, o branco era representado com chapéu, roupa de safari e uma arma, todo
orgulhoso. E o negro era representado com uma saia de peles, sempre uma ima-
9 O conceito de cinema neste estudo não se refere ao espaço físico, mas aos filmes, desenhos
e novelas, e tudo aquilo que é transmitido de forma imagética (em movimento) à sociedade.
66
gem caricata. Não me lembro de ter visto imagens bonitas de africanos nos li-
vros do tempo colonial. Osindivíduos da raça negra eram sempre retratados de
maneira à demostrar inferioridade. E quando se fala do confronto entre raças
há ainda uma imagem que circula, dos pretos à volta de uma fogueira, e um
grande pote com um branco de chapéu e uma arma lá dentro para mostrar que
os negros eram canibais.
[...] Frequentei uma escola primária católica e, quando comecei a ir à igreja, Deus
era branco e o diabo era preto. Com o tempo isso foi desaparecendo, mas ao mes-
mo tempo continua. Os anjos de Deus são brancos até hoje, anjos pretos ainda
não há. (CHIZIANE, 2014, s.p.). (Grifos meus).
É o caso dos filmes que tratam da vida de Jesus ou dos personagens das
narrativas bíblicas, ressaltado, inclusive, no começo da fala de Muhammad Ali:
“[...] mãe, por que é tudo branco? Por que Jesus é branco de olhos azuis? Por
que na última ceia, todos são brancos? Maria, inclusive os anjos [...]”. Embora
Jesus tenha nascido em Belém, província judaica governada pelo Império Ro-
mano, que hoje faz parte do Oriente Médio, todas as características da imagem
de Jesus, sua mãe Maria e dos discípulos, tomam como ponto de referência as
origens europeias.
Essas características, (re)inventando a imagem de Jesus nos cinemas e
dos personagens bíblicos, levam-nos a crer que podem ter sido uma criação ro-
mana. Tais inferências são tomadas a partir do pressuposto quando analisamos
a construção das representações das figuras religiosas através da arte pictórica
encontrada séculos depois nos vestígios do tempo, que partia sempre de quem
estava no poder de Roma. Temos, por exemplo, o Papa Calisto I (165-222), no
século III, mais conhecido como São Calisto I, que aderiu à ideia de um Cristo
na aparência de um pastor sem barba (muito comum entre os romanos daquela
época), pele bem clara e roupas longe de serem parecidas com as dos judeus10.
O Imperador Constantino (306-337), no século IV, também não ficou de fora
dessa arte de inventar a imagem de Cristo. Usando a força imperial que possuía,
inclusive para encerrar a perseguição aos cristãos com o Édito de Milão, man-
teve a figura de Cristo nos moldes da mesma iconografia de seus antecessores,
com o intuito de agradar os conservadores religiosos que já tinham fixado um
“filho de Deus” com as aparências de um descendente europeu (STOCKTON,
2015).
10 Foi encontrada nas catacumbas de São Calisto (Catacombe di San Callisto), mais conhe-
cidas como Cemitério de Calisto, em Roma, uma figura da imagem de Cristo. Ver imagem
em: STOCKTON, Richard. How Did Jesus Become White?, 2015. Disponível em: http://
allthatsinteresting.com/white-jesus. Acesso em: 26/04/2018.
67
Assim como em cada livro considerado Evangelho da Bíblia, a personali-
dade e missão de Jesus foram abordadas de formas diferentes, embora nenhum
dos evangelistas descreveu a figura humana do Messias, os meios de comu-
nicação televiso não foram diferentes. Há uma enorme variação de represen-
tações da figura de Jesus nos filmes – alguns deles com uma feição bem mais
moderna do que as pessoas que viveram na sociedade antiga –, principalmente
os hollywoodianos, “[...] numa gama quase que ad infinitum de interpretações:
o Jesus da Era Cristã, da Idade Média, do Renascimento, da época moderna”
(COSTA, 2012, p. 43), fazendo-nos enxergar uma relação intrínseca entre a
produção industrial do cinema (capitalista e mercadológica) e os frutos das
artes iconográficas deixados pelos vestígios do processo histórico-político dos
imperadores e figuras régias.
Destarte, os filmes cinematográficos não escapam da representação da
imagem de um Cristo loiro, com barbas claras, olhos azuis e com a fisiono-
mia de um europeu ocidental, como, por exemplo, o filme “A paixão de Cristo
(2004)”, com o ator Mel Gibson, e “Jesus - O Filme: Segundo o Evangelho de
Lucas (1979)”, com o ator Brian Deacon, mostrando a nós que Cristo e todos os
personagens religiosos da Bíblia, incluindo aqui as divindades celestiais – Deus
e os querubins –, foram construídos e produzidos através do olhar do branco
europeu, marginalizando, excluindo em muitos casos, a cor negra. Criando for-
ças de imposição simbólica na sociedade de que o branco pertence ao sagrado,
ao religioso e a cor negra ao profano e ao duvidoso. Que o branco pertence à
posição de protagonista e o negro ao papel de figurante.
11 Ariano Vilar Suassuna, mais conhecido como Ariano Suassuna, nasceu em João Pessoa,
Paraíba, no dia 16 de junho de 1927. Teve uma infância conturbada após seu pai, João Suas-
suna, governador do Estado (na época era chamado o cargo de presidente do estado), ter
sido assassinado durante a Revolução de 1930, fazendo com que a família fosse morar em
Taperoá. Durante sua vida, publicou diversas obras literárias, como a famosa obra O Auto
da Compadecida (1955) e O Auto Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-
-e-Volta (1971). Além do ofício de escritor e professor de “Estética”, na Universidade Federal
de Pernambuco, em 1956, foi também secretário do Ministério de Cultura de Pernambuco
entre os anos de 1994 a 1998, depois secretário de assessoria do governo de Eduardo Cam-
68
de 1955, depois lançado em 1999 em forma de minissérie na Rede Globo, com
quatro capítulos, e, no ano seguinte, devido ao sucesso, transformada em filme,
como explicou o cineasta e roteirista Arnaldo Jabor, entrevista feita pelo Jornal
S. Paulo sobre o sucesso de O Auto da Compadecida no cinema:
Esse seriado para adolescentes teve uma grande importância, pois libertou a
narrativa das sequências e as personagens das motivações críveis e da moral
familiar. O que surgiu como comédia de surfe virou sem querer um marco na
TV. “O Auto da Compadecida” é filho de “Armação Ilimitada” com as trapalha-
das medievais de saltimbancos populares. [...] Eu creio que o resultado desta
operação TV-filme inova formalmente o cinema no Brasil. (JABOR, 2000, s.p.).
Esse Jesus negro e visto por um olhar esquivo dos telespectadores brasi-
leiros, chamado de “Jesus diferente”, foi motivo de ironias quando se apresentou
a João Grilo no julgamento. No filme, João Grilo fala a Jesus: “Eu não quero
faltar com respeito a uma pessoa tão importante, mas se não me engano aquele
sujeito acaba de lhe chamar o senhor de Manuel”. E continua João Grilo: “O
senhor que é Jesus? Porque não é lhe faltando com respeito, mas eu pensava
que o senhor era muito menos queimado”. Depois que Jesus diz algumas pala-
vras bem eruditas, João Grilo termina com um discurso de preconceito: “Muito
bem! A cor não pode ser das melhores, mas o senhor fala bem que faz gosto”12.
Complementando ainda essa parte do enredo, pegamos a fala de Jesus
(Manuel), na obra de Ariano Suassuna, que conclui dizendo a João Grilo:
[...] Você é cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque
sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci branco e
quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim, tanto faz um branco
como um preto. Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?
(SUASSUNA, 2004, p. 148)13.
pos. Formou-se em 1950 no curso de Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito
de Recife (hoje Universidade Federal de Pernambuco), mas nunca atuou na área. Sempre
percorreu para o campo da literatura. Não por acaso, durante sua graduação, já escrevia
peças de teatro, como, por exemplo, escreveu sua primeira peça Uma Mulher do Vestido de
Sol, recebendo até o prêmio Nicolau Carlos Magno e a peça Auto do João da Cruz em 1950,
recebendo o prêmio Martins Pena. Fez Parte de várias Academias de Letras: eleito em 1993
para assentar a cadeira 18 na Academia Pernambucana de Letras; em 1990, convidado para
ocupar a cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras e a cadeira 35 na Academia Paraibana
de Letras. Morreu aos 87 anos, em 23 de julho de 2014, devido a problemas de AVC e uma
parada cardíaca.
12 Essa parte foi retirada literalmente do filme e não do enredo escrito na peça.
13 Quando Jesus fala: “Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?”,
69
Diferentemente dos filmes da vida de Jesus, em que neles há uma pro-
dução industrial e mercadológica, na história do escritor Suassuna, tanto o dis-
curso no filme quanto a fala de Jesus retirada da própria obra de Suassuna, a
ideia se inscreve de forma oposta. Num caminho em que o cinema brasileiro
como, por exemplo, a TV Globo, acostumada a “fazer novelas e seriados den-
tro da tradição do naturalismo psicológico do cinema americano, na linha das
velhíssimas (e infalíveis) regras aristotélicas da narrativa que, desde a Grécia
até Hollywood, nunca decepcionou produtores” (JABOR, 2000, s.p.), o filme
de autoria de Suassuna mostra que há uma necessidade de problematizar como
estão sendo fabricadas as produções cinemáticas e como elas foram construí-
das ideologicamente na sociedade, principalmente as telenovelas, em que nelas
percebemos uma demasiada valorização da chamada “matriz euro-descenden-
te”, ou seja, o branco como espelho da intelectualidade e como referência da
bela estética.
Colocar um Jesus negro num enredo narrativo brasileiro foi, de certa
forma, subversivo ao modelo cinematográfico, pois explicita toda uma mentali-
dade coletiva que, apesar de muitas vezes aparecer de forma oculta e disfarçada,
em que a própria sociedade aparentemente nega ser preconceituosa, porém,
Ariano Suassuna estava fazendo uma crítica ao movimento segregacionista que ocorria na
parte sulista dos Estados Unidos, nas décadas de 1950 e 1960. Tal movimento, que ocorreu
por motivos de racismo e exclusão da raça negra em vários setores institucionais, foi uma
das causas que fez o escritor Suassuna colocar um Jesus de cor negra na sua peça, como
ele, anos depois, explicou: “durante os dias em que escrevia a peça estava acontecendo, nos
Estados Unidos, uma campanha destinada a impor legalmente a presença de crianças ne-
gras nas escolas brancas. Em revide, os brancos racistas organizavam manifestações contra
a integração; e eu vi na revista ‘Life’ a fotografia de um desses comícios: na frente do grupo
de ‘brancos, anglo-saxões e protestantes’, uma mulher (aliás, e não por acaso, horrorosa-
mente feia) exibia um cartaz no qual se lia: ‘Ao criar raças diferentes, Deus foi o primeiro
segregacionista’. Foi nesse momento que, movido por uma daquelas indignações a que me
referi a princípio, resolvi apresentar como um negro a figura de ‘Manuel’, isto é, a imagem
popular do Cristo que iria aparecer em minha peça”. (SUASSUNA, 2000, s.p.). Vale frisar
que por muito tempo os negros americanos estavam segregados dos brancos, fazendo com
que, obrigatoriamente, nascessem em hospitais destinados exclusivamente para os negros
e jamais poderia uma mãe negra dar à luz dentro de um hospital construído para as pes-
soas brancas. As escolas, os tipos de trabalho, os cemitérios e até dentro dos ônibus havia
segregação de cor. Martin Luther King e Rosa Parks foram dois grandes líderes dessa luta
por direitos civis. Rosa Parks, uma mulher negra, ficou conhecida após sentar no ônibus na
parte reservada para as pessoas brancas em 1955, negando ceder o lugar a um homem bran-
co que, consequentemente, foi expulsa e detida. Essa segregação foi abolida, pelo menos no
ato da lei, pois simbolicamente e culturalmente permaneceu por muitas décadas depois,
com resquícios até mesmo nos dias atuais, no dia 2 de julho de 1964, pelo vice-presidente
Lyndon B. Johnson, que assumiu a presidência logo após o assassinato de John F. Kennedy.
70
percebemos que esse “Jesus diferente” foi recebido pela plateia brasileira (re-
presentada pelos personagens do enredo como pelas críticas e vários questio-
namentos da imprensa) de uma forma burlesca e fora dos padrões de uma re-
ligião pertencente ao mundo dos brancos, como ressaltou Joel Zito Araújo, em
entrevista ao Programa Salto (Rede Brasil), que “as pessoas, inconscientemente
partilham a visão de que o belo, o culto, o desejável, o ser moderno, o ser Pri-
meiro Mundo, é ser branco” (ARAÚJO, 2004, s.p.).
Foi esse “culto ao ser branco”, essa devoção à cor branca, que tudo aquilo
que estava atrelado à negritude foi jogado para o indesejável, ou para o sentido
de “trabalhos de sobras”, ou seja, para papéis sociais que subalternizam o ne-
gro e o identificam como inferior ao branco. É o que vai falar Joel Zito Araújo
no filme-documentário A Negação do Brasil: O negro na telenovela brasileira
(2000), que “as dificuldades que tive que guardar na memória a presença de
atores negros nas novelas daquela época certamente veio de minha recusa em
aceitar ver o meu grupo racial somente em papéis de pessoas em situações de
inferioridade social e cultural”. Por muitos anos e, para ser mais preciso, por
décadas esses papéis não só foram construídos pela indústria cinemática como
de formas ideológicas e imposições simbólicas foram aceitos até mesmo pela
classe negra.
Joel Zito Araújo, ao fazer um resgate do passado no filme-documentá-
rio, explica como a sociedade brasileira dava muita importância aos programas
televisivos, principalmente as telenovelas. É o caso, por exemplo, quando re-
lembra a dimensão midiática que a novela O Direito de Nascer causou na sua
primeira passagem em 1964/6514:
14 Novela foi transmitida pelas extintas TV Tupi-São Paulo e TV-Rio, entre os dias 7 de
dezembro de 1964 a 13 de agosto de 1965, no horário das 21h30.
15 ARAÚJO, Joel Zito. A Negação do Brasil: O negro na telenovela brasileira. Filme-do-
cumentário de Joel Zito Araújo, 2000. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=PrrR2jgSf9M&t=166s. Acesso em: 10/04/2018.
71
A atriz Isaura Bruno foi imortalizada pela sua performance como mãe Dolores.
Uma personagem que parecia ser uma combinação perfeita entre dois estere-
ótipos clássicos: a mãe negra da literatura e do teatro brasileiro e a mami do
cinema norte-americano. A cena final em que mamãe Dolores revelou os pais
verdadeiros de seu filho de criação foi vista por um milhão e meio de telespec-
tadores [...]. Mas, a coincidência do primeiro sucesso de audiência da telenovela
brasileira e a paixão despertada por essa personagem negra não se constituiu
nenhum sinal e que teríamos a partir dali um futuro promissor para os atores
negros. Depois de atuar somente em três novelas nos seis anos seguintes, Isaura
Bruno morreu pobre e como uma desconhecida, vendendo doce na Praça da Sé
em São Paulo. A história de Isaura Bruno já prenunciava o drama de reconhe-
cimento que viveriam todos os atores negros da TV brasileira. [...] A criação da
democracia racial e o desejo de branqueamento, tão forte naquele período, nos
impediram de perceber o desfecho trágico de Isaura Bruno16.
72
Padre João e o Bispo, Cangaceiro Severino, etc.), aparece novamente, mas agora
na terra e com vestes bem humildes, despido de seu poder divino, pedindo até
mesmo um pouco de comida a João Grilo, Chico e sua esposa Rosinha. Ao dar
um pedaço de bolo do seu casamento para o Cristo negro e ver que João Grilo
retruca a ajuda, dizendo que ele não era o filho de Deus, Rosinha fala: “Jesus
às vezes se disfarça de mendigo para testar a bondade dos homens”. João Grilo
bem ironicamente diz: “Pode até acontecer, mas aquele ali não era não. Jesus?
Pretinho daquele jeito?”. E, na mesma sequência, numa das histórias fantasio-
sas de Chicó, ele conclui dizendo: “Eu conheço um sujeito em Cabeceiras que
se encontrou com Jesus Cristo. [...] Ele me falou que o paraíso é pelos lados da
Bahia. Por isso que Cristo é escurinho”17.
Toda essa parte mostra que João Grilo representando, nesse caso, a pró-
pria postura do homem branco, apoia-se no negro para alcançar seus objetivos.
Depois que consegue, desconhece e rejeita totalmente a negritude. É o caso,
por exemplo, quando João Grilo precisava ser absolvido para não ir ao infer-
no. Mesmo Cristo sendo negro, reconhece-o como filho de Deus, tomado de
autoridade divina, pois sabia ele que naquele momento somente esse “Jesus
diferente” poderia ajudar.
João Grilo, de volta à terra, quando não precisava mais de um homem
negro, retoma todo o seu modo de pensar preconceituoso que tinha proferido
no julgamento, inclusive reforçando a ideia de que Cristo não pode ser “preti-
nho”. Já a fala de Chicó representa a mentalidade pré-fixada na cultura brasi-
leira, ao dizer que Cristo veio da Bahia, pois além do estado ocupar o segundo
lugar no ranking de maior composição negra do país18, ele usa o termo “escuri-
nho”, dando uma irônica tonalidade ao racismo.
Por isso que Ariano Suassuna sabia o que estava fazendo. Ele queria real-
mente mostrar de alguma maneira que existe um modus operandi de uma fron-
teira invisível, porém, bem perceptível e culturalmente fixa, do branco domi-
nador e do negro figurante, criado pelas instituições e instrumentos de poder,
como explica Lília Schwarcz, que a ideologia do branqueamento continua ain-
da bem sólida “no cotidiano das pessoas, internalizadas e eficientes por serem
invisíveis e silenciosas” (1998, p. 67). Enfim, Ariano Suassuna quis revelar que a
sociedade se autoafirma em saber diferenciar o “Cristo da fé” e o “Cristo Cine-
mático”, no entanto, não parece confirmar no sentido prático e stricto sensu das
relações sociais: “Os meios de comunicação venceram o embate pela imagem
17 Essa parte foi retirada literalmente do filme e não do enredo escrito na peça.
18 Segundo dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, no
Censo Demográfico de 2010.
73
de Jesus Cristo” (VADICO, 2016, p. 8).
Considerações finais
19 Abrindo aqui um parêntese, é o caso também dos filmes sobre o Nordeste, que per-
cebemos uma representação do real (realidade do fato), mostrando em sentido único e
direcional um Nordeste apenas seco, rural e de um marasmo socioeconômico. Filmes como
Vidas Secas (1963), Guerra dos Canudos (1997), Central do Brasil (1998), Abril Despedaçado
(2002), O Caminho das Nuvens (2003), Lisbela e o Prisioneiro (2003), Cinema, Aspirinas e
Urubus (2005), Ó Paí, Ó (2007), dentre outros, dão como pano de fundo uma região de
cultura única, população rude e envelhecida pelo sol e trabalhos árduos, de uma única pai-
sagem – cerrado e semiárido –. São narrativas como essas, transmitidas através do cinema,
que petrificaram no seio da sociedade, criando estereótipos que, ao longo de uma afirmação
midiática, tornaram-se verdades de um caminho só.
74
cor branca como representação única no campo religioso, criando, assim, esté-
ticas de realidades.
Se é que não podemos fugir à regra que no decorrer dos séculos houve
várias maneiras de diferenciação simbólica que foram construídas “no inte-
rior das atividades enunciativo-discursivas” (COSTA, 2012, p. 38) e que, con-
sequentemente, conferiu à “raça branca um status de supremacia em relação à
raça negra, inclusive na expressão do sagrado, da religião” (Ibidem, p. 38), po-
demos afirmar que um dos mecanismos que aproveitou de seu poder influen-
ciador na sociedade foi a industrial cinemática. Nesse viés, o ethos que existe
por trás do espaço da arte cinematográfica, seja brasileira, americana ou de
qualquer lugar, seja nos filmes e desenhos ou nas novelas escritas pelos punhos
dos roteiristas brasileiros, pode nos revelar todas as formas de representações,
tentativas de criar uma imagem-objeto ao público-alvo, muitas delas recheadas
de estereótipos.
Este estudo teve como intenção mostrar que o historiador da Nouvelle
Histoire, condicionado a uma nova consciência crítica, teórico-metodológica,
sobre suas novas fontes e abordagens, analisa o cinema enquanto documento
relevante para o entendimento histórico, pegando o produto (a obra cinemá-
tica) e as intenções por trás da produção bem como questionando as ideolo-
gias e os tipos de discursos do produtor. As narrativas cinematográficas, nesse
sentido, passaram pelo crivo do cientista social não mais como um objeto de
divertimento e expressão artística, mas, desde o enredo de comédia à tragédia,
são identificados momentos de representações, linguagens tendenciosas que,
muitas delas, plasmam ou distorcem a verdadeira interpretação de mundo.
Referências
Fontes bibliográficas
75
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas / Frantz Fanon; tradução de Re-
nato da Silveira. – Salvador: EDUFBA, 2008.
__________. O negro no mundo dos brancos. 2ª ed. –São Paulo: Global, 2007.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. –São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1995.
IANNI, Octavio. Florestan Fernandes. – São Paulo: Ática, 2008. [Grandes cien-
tistas sociais].
Fontes da internet
76
em: http://jornalismojunior.com.br/sala33/a-literatura-negra-como-ato-de-re-
sistencia/. Acesso em: 17/11/2017.
77
www.megacurioso.com.br/religiao/96968-por-que-jesus-e-retratado-como-
-um-homem-branco-e-com-feicoes-europeias.htm. Acesso em: 17/11/2017.
KABRAL, Fábio. A negra jornada dos heróis com rosto negro, 2013. Disponível
em: http://www.marvel616.com/2011/11/em-foco-negra-jornada-do-herois-
mo-com.html. Acesso em: 21/04/2018.
WIESER, Doris. Os anjos de Deus são brancos até hoje, diz a Paulina Chizia-
ne em entrevista, 26/11/2014. Disponível em: http://www.buala.org/pt/cara-a-
-cara/os-anjos-de-deus-sao-brancos-ate-hoje-entrevista-a-paulina-chiziane.
Acesso em: 13/03/2018.
78
Herdeiros do amanhã e condenados do ontem:
olhares cruzados e experiências compartilhadas
de negros africanos e brasileiros em São Luís do
Maranhão1
80
veis, assim, os fatos sociais estudados.
81
vistada é a Missionária e Pastora da Igreja Deus do Momento, nigeriana, nas-
cida na cidade de Lagos, com cerca de 50 anos de idade e 30 anos de vivência
no Brasil. A terceira entrevista foi a Médica Cabo-verdiana, de Santiago, com
25 anos e 7 anos de vivência no Brasil. Doutro lado, os espaços de sociabilidade
deles, nos seus países de origem e no Brasil, tornam ainda mais relevante todo
o processo da construção analítica.
Para os entrevistados brasileiros residentes em São Luís4do Maranhão,
pude contar também com três pessoas. O primeiro entrevistado foi o Professor
de Medicina, Membro do Centro de Cultura Negra do Maranhão, nascido no
território Quilombola chamado Chapada-Bebedouro, no Maranhão, com 73
anos de idade. A segunda entrevistada que tive oportunidade de conhecer a sua
experiência de vida foi a Assistente Social, nascida em Pindaré Mirim-Mara-
nhão, com cerca de 40 anos de idade. A última e terceira entrevistada brasileira
foi a Psicóloga de São Luís do Maranhão, que vem desenvolvendo pesquisas
voltadas para o atendimento clínico e inclusão, e que tem 30 anos de idade.
Todos eles têm mais de três décadas de vivência em São Luís do Maranhão.
Como pude demonstrar, a partir das apresentações acima mencionadas,
o perfil dos entrevistados é bastante complexo. Não me refiro simplesmente aos
africanos, mas a africanos nascidos em determinado país de África, de deter-
minado grupo étnico, classe social e grupo regional. Ou, ainda, não me refiro
a brasileiros nascidos ou residentes em São Luís do Maranhão, mas de pessoas
que ocupam um espaço social, profissional, nome e outros adjetivos, o que,
por sua vez, torna a construção identitária deles cada vez mais heterogênea e
complexa. Construir o perfil dos entrevistados ajuda-me a entender, principal-
mente, quem são, de onde falam, do que falam e porque falam de um jeito em
detrimento de outro.
Questionar a história da África, dos africanos e dos negros brasileiros
é, no entanto, não a aceitar como algo dado, mas, através de uma perspectiva
compreensiva e de uma arqueologia epistêmica do passado do próprio sujeito,
considerando ainda o contexto do qual ele faz parte ou vive atualmente, possi-
bilita-nos alcançar pequenas nuances que no dia a dia passam despercebidas.
Não pretendo entrar em um jogo crítico, sem antes apreender a diversidade e a
complexidade que cada sujeito apresenta a partir de sua experiência socio-his-
tórica. É necessário entender o processo da construção identitária de cada um,
4 É relevante destacar que os entrevistados brasileiros não foram escolhidos por terem nas-
cido em São Luís necessariamente, mas pelo tempo de vivência na Capital Maranhense.
Assim aconteceu com o Médico de Chapada-Bebedouro e a Assistente Social de Pimdaré
Mirim.
82
para assim analisar de forma coerente os pilares estruturais atuais. Antes, po-
rém, considero formidável conhecer a realidade familiar e escolar como ponto
de partida para entender o contexto do processo identitário de cada entrevista-
do. Isso se torna imprescindível, principalmente, para entendermos o uso dos
conceitos de ‘identificação’ e ‘representação’ nas teorias sociais e culturais a par-
tir de um viés não essencializado ou estático (HALL, 2012).
[...] Era uma vida de muita correria entre os amigos no bairro, se não era com a
família era com os amigos do bairro, ou quando você estava no colégio [escola
pública] tentando aprender alguma coisa. Uma vida que o bairro inteiro fazia
parte da sua vida e você fazia parte do bairro. Você não é mais filho do fulano
tal[...] todo mundo sabia quem eram os meus pais no bairro[...], se arrumava
ou fazia alguma coisa (de errado) corria risco do bairro inteiro te dar uma surra
para você andar no caminho (certo). (Trecho da entrevista concedida pelo Pro-
fessor e Engenheiro Químico da UFMA em abril de 2018).
83
família sempre foi marcada pela educação cristã. Assim, ela conta que: “Nasci
numa família cristã, essa coisa de juventude, balada e namorar não participei
em tudo, minha mãe não deixava e nem meu pai, a gente ia atrás de coisa da
igreja.” Ou seja, a base da formação identitária estava relacionada a uma pers-
pectiva cristã. A Médica cabo-verdiana, nascida em Santiago - Tarrafal, filha de
professores do ensino médio, cujo pai era professor de língua portuguesa e a
mãe de expressões plásticas, relata que a vida em Cabo Verde foi “normal” - ou
seja, ela se refere que não teve muitas coisas além de sua própria realidade, mas
destaca que existia algumas diferenças entre os grupos sociais:
É uma mistura. Primeiro que lá é dividido em barla vente e souta vente. Tipo o
mapa de Cabo Verde são dez ilhas, de cima da linha do equador são barla vento,
da ilha divisora para baixo são souta vento, só que Santiago que é a minha ilha,
a gente fala criolo que é badiu, a ilha de São Vicente fala padiu que é um criolo
que eu não percebo muito bem. As pessoas dessas ilhas são relativamente mais
claras e o cabelo mais cacheado. (Trecho da entrevista concedida pela Médica
em julho 2018).
Porém, ela afirma ainda que essas diferenças não são reforçadas institu-
cionalmente, ou seja, elas não crescem aprendendo que são barla vente ou souta
vente, nem que a cor da pele diferenciada influencia de algum modo na forma
de relacionar-se entre os grupos sociais. É importante, portanto, destacar que
a construção identitária dos africanos negros, nos seus países de origem, não
é acionada a partir de um dispositivo ou uma variável necessária de distinção
social atrelada à cor da pele.
Doutro lado, procuro, a partir de uma leitura comparativa, apreender
a realidade familiar dos negros brasileiros de São Luís do Maranhão. Para o
Médico e membro do Centro de Cultura Negra, filho de pai negro e mãe bran-
ca indígena, ambos analfabetos e trabalhadores de roça, nascido no quilombo
de Bebedouro, a realidade não era muito diferente de algumas realidades de
África: “O meu pai trabalhava de roça. A minha mãe também de roça e parte
doméstica. E ela também fazia artesanato, peneira, quibano7, e alguns dias ela
costurava [...]. Na realidade, o que ocorria no quilombo uns ajudavam aos ou-
tros”. A vida no quilombo é, em geral, de pouca assistência política, econômica
estados da Nigéria, Lagos é o segundo estado mais populoso depois de Kano, e indiscutivel-
mente o estado economicamente mais importante do país, Lagos contém a maior área ur-
bana nacional. Em 2012, a população era 11.009.520 habitantes, numa área de 3.475,1 km².
7 Quibano: é um objeto arredondado feito de palha da palmeira, geralmente usado no inte-
rior do nordeste para catar/escolha e secar arroz.
84
e social.
A precariedade em alguns setores, principalmente o educacional, fez
com que ele tivesse uma vida familiar em constante transição. Ora estava com
os pais, ora com a tia em Santa Teresa-Brejo. “Eu fiquei na comunidade qui-
lombola de Bebedouro até 6 a 7 anos e aí fui para outra comunidade chamada
Santa Teresa e lá me criei a partir dos 7 anos”. Mas aponta que, depois de ter
saído do Quilombo de Bebedouro para Brejo, a realidade mudou. A vida em
Santa Teresa era, por sua vez, marcada por divisão de classes sociais e raciais.
Por ser uma cidade pequena, a realidade era mais estruturante e menos visível.
Toda família negra nesse país nunca teve uma vida fácil e uma coisa que os pais
sempre falavam pra gente que única coisa que tem pra deixar era o estudo. Só
que eu fui me envolvendo com as questões sociais. Eu sempre fui encrenca com
relação a isso, e fui construindo a minha trajetória [...] A minha família não era
de militante sobre questões raciais, pelo contrário, nós tínhamos todos precon-
ceitos. (Trecho da entrevista concedida pela Assistente Social em julho de 2018).
[...] Vitor [irmão mais novo] toda hora sentado no computador. Eu tinha uns
amiguinhos aqui. Eu tinha uma amiga preferida que era Bia, a gente brincava
lá em embaixo de elástico. Eu ia a casa dela. A gente jogava vídeo game e eu
85
sempre jogava com os amigos dele, então, sempre estava no monte de meninos.
(Trecho da entrevista concedida à Psicóloga em fevereiro 2018).
86
teve uma durabilidade, visto que acabou influenciando na estrutura até os dias
atuais.
87
lado, percebi que as diferentes classes sociais de cada entrevistado tornavam a
experiência individual mais heterogênea, de modo que cada indivíduo tinha
uma leitura diferencial do seu país de origem e do continente africano.
Depois de entender os relatos dos africanos sobre as experiências esco-
lares, busquei compreender a dos brasileiros. Para o Médico e representante
do CCN, as mudanças constantes desde o Quilombo até São Luís deixaram-no
com diferentes memórias ou experiências nos ambientes escolares. Primeiro,
conta ele, “fui para escola que não era particular, mas uma escolinha que não
pagava nada e fiz a alfabetização[...] depois eu passei a estudar no colégio edu-
candário Rio Doce9 que era um colégio da Paróquia”. Apesar da mudança cons-
tante, pude observar, a partir dos relatos do Médico, quão importante foi essa
transferência para Brejo, pela vulnerabilidade estrutural que ele encontrava no
Quilombo de Bebedouro.
Quando falo que a relação escolar de cada entrevistado apresenta um
diferencial em termos de abordagens, refiro-me a esses côncavos sociais em que
cada um teve que passar para construir-se enquanto sujeito social. Como é o
caso da Assistente Social e filha de terreiro, que destaca algo importante sobre
sua experiência nas escolas públicas de São Luís. Para ela, é impossível vencer o
racismo sem antes vencer a pobreza, uma vez que a realidade escolar foi muito
precária, desde cedo teve que fazer parte de militância para vencer as duas re-
alidades, “eu sempre estudei em escolas públicas e... entrei para o movimento
social [...], estava com 14 anos, no Movimento Estudantil para entender melhor
a questão da pobreza”.
A partir do relato da Psicóloga, pude ouvir sobre um conjunto de experi-
ências escolares que se diferenciou dos dois primeiros, uma vez que ela estudou
da alfabetização até o ensino médio completo na escola particular, “eu estudei
numa escola só, desde o Jardim a vida toda até me formar - Colégio Batista”, um
estabelecimento de ensino tradicional em São Luís, reconhecido pela qualidade
e pelo alto valor das mensalidades. Quando se percebe as experiências esco-
lares vigentes, compreende-se quão complexo é o processo de construção de
identidade dos sujeitos negros africanos e brasileiros no contexto atual. Seria,
todavia, impossível engendrar um modelo de negro que desse conta de uma
9 Segundo o entrevistado, o colégio Rio Doce era um dos melhores da época em Santa
Maria-Brejo para estudar, “[...] Educandário Rio Doce da paróquia era o melhor da região
da cidade de Brejo e é a mais velha e mais importante daquela época, tudo corria pra lá de
economia dos outros municípios. Então, alguns jovens que tinham poder aquisitivo, como
fazendeiros, Chapadinha, Urbano Santos, São Benedito” (Trecho de entrevista do Médico e
membro do CCN concedida em maio de 2018).
88
realidade complexa como a de cada entrevistado presente. Portanto, procuro,
através de um olhar mais heterogêneo, apreender as estruturas nas quais cada
sujeito se fez e contextualizar a partir das realidades que vivenciam.
Assim sendo, pude perceber que o processo de estadia escolar, sendo
escola esse espaço de produção de sujeitos diferenciados, contribuiu na cons-
trução ontológica de cada sujeito no que toca à questão identitária de modo
diferenciado também. Isto é visível tanto nos entrevistados africanos quanto
nos brasileiros, o que só reforça a questão da necessidade de fazer uma análise
das dinâmicas identitárias deles em tempos-espaciais, reconhecendo, assim, as
variáveis sociais, os bens econômicos e culturais como elementos sine qua non
na configuração identitária de cada entrevistado, ou seja, pensar a partir das
formas estruturais condicionantes na escolha- opção de vida e no processo de
identificação desses sujeitos na sociedade ludovicense.
De tal razão que entendo que o tempo-espaço que eles passaram com
suas famílias ou nas escolas é imprescindível para compreender o modo pelo
qual eles se veem enquanto pessoas nos dias de hoje, seja coerente ou não.
Pensava que a diáspora seria apenas mais um lugar que poderia viver
como outros lugares já vividos antes. Não esperava encontrar memórias ou
práticas que me remetessem ao passado dos meus ancestrais. É difícil exercitar
a psique para compreender a diáspora por ela mesma sem, antes, observar e
experienciar como um modo de apreender cada elemento mínimo que a rea-
lidade objetiva nos oferece, o que em outras palavras Grada Kilomba chamara
de experiência atemporal (2019). Dessa forma, penso que o diálogo das experi-
ências de cada entrevistado evidenciou o que pretendo mostrar agora. Assim,
ao tentar responder a construção ou a configuração identitária dos negros afri-
canos e brasileiros, coloco a seguinte questão: como eles se tornaram negros ou
consideraram-se negros? Será que eles já nasceram negros? Como foi o proces-
so de ‘enegrecimento’ de cada um?
89
Ora, começarei, primeiramente, a apresentar as respostas do Professor
de Engenharia Química que relatou nunca ter parado para pensar a questão
de ser africano, negro, enquanto morava na Guiné-Bissau, visto que ele nunca
sentiu necessidade de acionar essas variáveis:
[...] Eu na Guiné (Bissau) nunca parava para discutir essa questão de africanida-
de e a negritude, era algo alheio ao nosso dia a dia, tínhamos a certeza que éra-
mos negros, pretos e africanos. Convivíamos com as nossas diferenças étnicas
da melhor forma possível. Não me lembro de ter acusado algum colega meu do
continente, você é fula, mandiga e manjaco, nunca! Porque não era necessário.
A família não era militante sobre as questões raciais, pelo contrário, nós tínha-
mos todos os preconceitos. Tudo que a gente era ensinada todas aquelas coisas,
como, afina o nariz, alisar o cabelo- as minhas irmãs, todas tiveram cabelo alisa-
do [...]. Realmente, eu comecei a me deparar com essas questões raciais dentro
da universidade.
90
Percebi que falar sobre a questão racial a partir das experiências rela-
tadas requer um cuidado epistêmico com o processo histórico social de cada
sujeito. Mas, destaco, que em nenhum momento minimizo a relevância estru-
tural que muitas vezes condiciona ou tem um peso na vida desses sujeitos, pelo
contrário, apresento essas narrativas de formas contextualizadas para entender
o quanto, às vezes, o mesmo tempo-espacial pode nos levar a diferentes contex-
tos identitários. Por essa razão, achei imprescindível considerar a análise dessas
narrativas através de outras variáveis sociais relevantes, como o lugar de origem
e a classe social. Ou seja, foi a partir do exercício reflexivo que pude compre-
ender que a identidade de cada entrevistado não é um elemento essencializado
ou inato a eles, mas está em constante dinâmica de construção em prol de um
reconhecimento em um dado tempo-espacial (HALL, 2012).
91
Eu me sentia feia. Acho que se descrevia o que eu sentia, me sentia insegura, me
sentia diferente, e nunca parei para pensar e para entender que eu me sinto as-
sim, porque, realmente, pelo fato de ser mulher negra que estão me estranhan-
do. A questão era que eu sou muito feia e as pessoas me olham que eu sou feia.
Ela perguntou pra mim se fizesse enfermagem. Eu disse que não, eu faço me-
dicina. Ela com a cara de espanto disse- Ham, tá bom! As pessoas não falam de
ser técnica de enfermagem para uma negra à toa, como uma pessoa negra não
pudesse ter uma capacidade de ser médico, de ser engenheiro, de qualquer coisa
que se diz nobre.
Então, eu fui considerada uma louca por ser, por exemplo, católica, uma vez me
perguntaram isso na capoeira, tu não lê história? Foi um amigo e como amigo
me perguntou desse jeito ‘tu não lê história?’. Leio, mas é onde eu me sinto bem,
é o que eu conheço na verdade. Fui considerada por ter um pensamento relati-
vamente branco. Aos poucos fui considerando algumas coisas, e me mudando
também. Mas antes fui considerada alienada. (Trecho da entrevista concedida
pela Psicóloga em fevereiro de 2018).
Isso, todavia, pude perceber de forma mais clara a partir da questão esté-
tica das mulheres negras em São Luís do Maranhão. O conflito constante con-
92
sigo mesmas através de um padrão violento estrutural e estruturante relativo à
beleza feminina. Como mostra a Assistente Social e filha de terreiro:
Eu vejo assim os meninos mais jovem aí [...] Bleckão, sem nenhum dilema. Um
cabelo desse quando eu era pequena a mamãe mandava cortar logo, porque esse
cabelo é difícil de pentear. A minha geração ela foi criada dessa forma, criada
para alisar o cabelo, criada pra se afastar de tudo que se dizia da sua origem. Eu
tinha todos os preconceitos possíveis com relação a minha cor. A tudo relacio-
nado a minha cor e ao meu povo.
Eu recordo na minha infância que não lembro do meu cabelo, mas com cinco
anos fui levada no salão, na verdade, fui eu quem pediu para fazer química qual-
quer que deixa com o cabelo solto [...] quando eu cheguei em casa estava com o
cabelo deste tamanho (grande demais) e jurei nunca mais querer o cabelo solto.
(Trecho da entrevista concedida pela Psicóloga em fevereiro de 2018).
93
sociedades em que a modernidade é tardia [colonizadas para o nosso contex-
to], como, por exemplo, o caso de muitos países Africanos, Latino-americanos
e outros. De tal modo, cada entrevistado apresentou os seus dilemas a partir
de um contexto próprio, o que me levou a perceber que por mais que vivamos
numa sociedade estruturalmente racista, os desafios, as crises ou conflitos ra-
ciais acontecem na relação de diferenças e numa dinâmica constante.
Assim aconteceu com certas políticas públicas, como por exemplo, as co-
tas, que possibilitaram não só o encontro das diferenças, mas também o desafio
epistemológico de romper certos mitos existentes entre os grupos antagônicos.
Diria que a riqueza do conflito está no exercício da não incubação da violência
ou negação da violência ontológica, epistemológica e ética entre pessoas ou
grupos que têm uma história de vida, cultura ou hábitos totalmente diferentes.
“Um sentimento de identidade pode ser uma fonte não só de orgulho e alegria,
mas também de força e segurança” (SEN, 2015, p. 21), para que possamos en-
tender os obstáculos existenciais de cada sujeito social, isto é, respeitando as
diferenças éticas individuais.
Tá claro que o preconceito e o racismo naquela época era sutil, está aberto já...
como se diz na gíria os racistas estão saindo do armário, mas já existia e era
constante, não se discutia...não era se falava. Mas sabia que tinha [...] pela pró-
pria dinâmica da sociedade tinha racismo. Onde que estava o negro e onde es-
tava o branco. Onde trabalhava o negro e onde morava o negro, continuam nos
bairros mais simples. (Entrevista concedida pelo Médico e membro do CCN em
maio de 2018).
94
Os traumas raciais, por sua vez, possibilitaram a visibilidade dos confli-
tos psicossociais das relações estabelecidas entre os sujeitos negros e os brancos
em São Luís, de tal modo que a Assistente Social e filha de terreiro narra que,
antes, as coisas eram na sutileza e na cordialidade.
Antes a gente não sabia, antes a gente tinha o branco cordial, aquele cara muito
bacana, muito teu amigo, mas namorar com a minha irmã não dá, ou então,
você é legal como amigo, mas esse trabalho aí pra ser engenheiro não combina
contigo. Antes a gente tinha isso, hoje não, hoje a gente já consegue perceber
as pessoas descaradamente, falando que não gostam e que não querem e nos
odeiam.
Vou começar pela última, fica mais fácil de lembrar, agora como professor da
Universidade Federal do Maranhão do curso de engenharia sanitária passei por
situação meio cômico e triste, o segurança que me conhece e me vê todos os
dias da semana dentro da universidade [...]achou que era bandido dentro da
universidade. E você vai perguntar, não, ele tem olho clínico, foi treinado para
detectar quem é bandido, fica difícil entender essa concepção, porque como se
pode identificar quem é bandido? Só pela aparência física[...] eu saí da minha
sala, abro a porta do prédio que dá acesso a minha sala e, passo por ele, dou boa
tarde ou boa noite, ele me responde educadamente boa noite, me deixa andar
300 metros até perdê-lo de vista e manda outro segurança me abordar, porque
eu estava tentando arrombar a porta.
Ou, ainda, isso pode acontecer de forma antagônica nas esferas das re-
lações internas dos grupos sociais, quando, por exemplo, os grupos que fazem
parte tratam algum negro de forma diferenciada através do status social que
essa pessoa ocupa em uma determinada instituição, mas o obstáculo epistê-
mico do reconhecimento do outro enquanto parte de uma história distorcida
cada vez mais é acionado de forma inconsciente. Como é o caso da Médica
cabo-verdiana que relata as experiências com os colegas da área de saúde nas
festas ou outros espaços de lazer:
Eles pensam que se um negro está neste lugar é porque ele é diferenciado, é
aquele negro que tem dinheiro, aquele que deu sorte, ou...enfim. Eu tenho um
amigo que sempre fala que eu tenho um gosto requintado [rebuscado], e eu as
95
vezes digo isso, só porque sou preta e pobre quer dizer que eu não tenho que
gostar dessas coisas.
Lembro que quando meu pai tinha algumas manifestações espirituais, isso na
vizinhança era um choque, então, nós éramos como os macumbeiros que não
queriam meio se misturar muito com a gente. Se desse alguma coisa de errado
foram os macumbeiros da rua. Esses preconceitos... Tinha casos meio de exa-
gerado, casos racistas por conta dessa religião. (Trecho da entrevista concedida
pela Assistente Social e filha de terreiro em julho de 2018).
96
Por isso entendo que a compreensão das representações existe, num primeiro
momento, na experiência individual de cada entrevistado que vive e conhece
os fatos concernentes à situação de negro em São Luís do Maranhão. Como
destaca o Médico e membro do CCN, a representação dos negros em São Luís
ainda deixa a desejar e que não é mera imaginação passiva.
Ele está entrando em alguns espaços, mas ainda há muitos que não são para os
negros, como, shopping, grandes hotéis. Construíram para ele ser funcionário,
porque quando chega um jovem negro Black Power corre risco de ser barrado
pelos vigilantes que às vezes são negros e que estão aí a serviço do Estado ou do
sistema e nem é a culpa do negro.
Isso vai estar presente na fala da Médica cabo-verdiana que destaca que
a representação social do negro em São Luís ainda é um desafio a tomar-se em
diversas áreas sociais, mas com mais relevância ao seu campo de atuação - saú-
de.
As pessoas negras aqui têm uma vida bem mais difícil. Tu vês o negro sendo co-
brador de ônibus, sendo motorista de ônibus, não hierarquizando as profissões
que as pessoas acham que são nobres. Tipo quantas vezes eu já entrei no centro
cirúrgico, eu interna, e as pessoas perguntarem se fui fazer consulta.
97
institucional é extremamente branca. E não consegue furar porque são instan-
cias de poder. Eu penso assim por mais que a gente luta com os avanços de
organizações e de espaços, mas os campos estratégicos de poder continuam
brancos.
Essas experiências são expressas também na afirmação da Psicóloga.
Para ela, os negros estão cada vez mais representados em aspectos culturais do
que nas áreas importantes de ‘poder’, “a gente vê os negros quando é carnaval,
na turma do Quinto, a gente vê...enfim, só culturalmente. Dificilmente tem al-
guém sendo entrevistado (como alguém importante), pode ser por ser a mino-
ria (termos de Direito) mesmo.” Esses depoimentos relacionados à questão da
representação individual e coletiva de cada sujeito entrevistado demonstram o
quanto a imagem construída sobre o negro ainda repercute de forma estrutural
nas mentes das pessoas e na reprodução institucional de forma negativa.
Percebo que o habitus estrutural e estruturado de forma estruturante na
vida dos negros que moram em São Luís está condicionado a limitações ou
possibilidades de atuação através da cor da pele, demarcada de forma socio-
-histórica por um determinado grupo social, que demonstra também as des-
vantagens históricas (BOURDIEU, 2011). Como destaca a Assistente Social, “o
Maranhão é um dos Estados mais racista, não por não ter negro, mas por estes
negros estarem ausentes de uma porrada [conjunto] de coisa”. Portanto, penso
que a questão da representação [ontológica, epistemológica e ética] dos negros
perpassa não simplesmente pelo compartilhamento individual ou social, mas
por um conjunto de linguagem. É a partir da linguagem que as pessoas trocam
os pensamentos, ideias e sentimentos que, por sua vez, estão materializados
na cultura de um determinado povo ou grupo social (HALL, 2016), e que essa
linguagem está materializada nas práticas sociais de cada indivíduo ou grupo
social, seja negro, branco, amarelo ou vermelho, que convive com a diferença
racial de forma indiferente.
Considerações finais
98
sentações institucionais), como forma de abordagem da experiência empírica,
para entender de forma micro/macro como a desigualdade racial é um produto
histórico, cultural, econômico e social, e que envolve o reconhecimento das
diferenças epistêmicas.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Cor-
rêa. Campinas: Papirus, 1996.
DURKHEIM, Émile. Sociologia e filosofia. Trad. Paulo J.B. San Martin. São Pau-
lo. Ícone, 1994.
99
ROSENTHAL, Gabriele. Histórias de vida vivenciada e história de vida nar-
rada: a interrelação entre experiência, recordar e narrar. Civitas. Porto Alegre.
V.14, n-2, p. 227-249, maio-agosto 2014).
100
Colonialismo & conflitos de poder:
políticas públicas para a saúde indígena
102
a estrutura montada pelo e para o colonialismo.
Assim, é essencial pensarmos de que forma podemos conciliar a luta por
uma saúde indígena que dialogue com a ancestralidade e a forma de conheci-
mento produzido pelos povos indígenas nos seus cuidados, frente ao desmonte
que o governo eleito em 2018 vem sendo exercitado simultaneamente à sua
entrada na presidência.
É importante frisar que estamos em um momento que é essencial tra-
varmos disputas que queremos, nesse sentido, pensamos que a saúde indígena
ainda precisa melhorar muito, e a saída é a transformação do sistema, ou seja,
a transformação de uma estrutura de poder, não a proposta esdrúxula do pre-
sidente do Brasil que propõe e produz o enfraquecimento do subsistema de
saúde indígena, logo, a derribada da SESSAI. Não é esse o posicionamento,
o que é que a pauta do movimento seja atendida, e que tenhamos uma saúde
indígena de qualidade e exista um diálogo entre os conhecimentos coexistentes
neste país.
103
Segundo Altini (2013), o objetivo era prestar assistência na área de saúde aos
povos indígenas e rurais, em áreas que eram consideradas de difícil acesso.
Suas ações estavam ligadas ao “combate às epidemias e vacinação, atendimento
odontológico, controle de tuberculose e outras doenças transmissíveis”. (ALTI-
NI, 2013, p. 7).
Em 1967, foi criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o motivo
da sua criação foi devido às frequentes denúncias quanto à ação do antigo SPI.
Dentro da FUNAI constituíram o que foi denominado de Equipes Volantes de
Saúde (EVS). Elas eram responsáveis por realizar “serviços médicos, e super-
visionavam os poucos trabalhos de saúde existentes nas aldeias, serviço estes
prestados quase que exclusivamente por auxiliares ou atendentes de enferma-
gem.” (ALTINI, 2013, p. 8).
Segundo Altini (2013), a data de 1986 marca um grande evento para saú-
de indígena. É nesse contexto que acontece a primeira Conferência Nacional
de Proteção à Saúde do Índio. Nesse período, estava no cenário a VIII Confe-
rência Nacional de Saúde, que traz os princípios que serão fundamentais para
o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que é aprovado durante a
Assembleia Constituinte de 1988. Com isso, cria-se um modelo de assistência
específico e diferenciado e, com esse, inicia-se um processo para a implantação
do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS), o qual estaria nas
responsabilidades do Ministério da Saúde.
Nesse mesmo contexto, cria-se a Constituição Federal de 1988, conheci-
da como “constituição cidadã”, dando novas formulações às políticas indigenis-
tas no Brasil. “Aprovou-se a mudança no paradigma da relação entre o Estado
brasileiro e os povos indígenas, substituindo a perspectiva da integração pelo
respeito à especificidade cultural e social de cada povo.” (ALTINI, 2013, p. 9).
É importante ressaltar que apesar de a constituição prezar pelos direitos às di-
versidades e respeito à organização social e cultural dos povos, na prática, os
povos indígenas ainda tiveram que continuar lutando para que a legislação fos-
se respeitada e aplicada, garantindo, assim, os seus direitos. O outro ponto que
merece menção quando da criação da Constituição de 1988 foram os esforços e
articulação do movimento indígena na luta pelo reconhecimento de seus direi-
tos. Foi a partir de várias ações e estratégias que conseguiram que seus direitos
estivessem previstos dentro da Constituição de 1988.
Segundo Altini (2013), foi em 1991 que o Governo Federal transferiu a
responsabilidade pela coordenação das ações de saúde indígena da FUNAI para
o Ministério da Saúde (MS). Isso ocorreu a partir do Decreto nº. 23/91 da Pre-
104
sidência da República. Depois disso, construíram a Coordenação de Saúde do
Índio (COSAI), que estava sob a subordinação do Departamento de Operações
da Fundação Nacional de Saúde (DEOPE/FNS), com o objetivo de implantar
um novo modelo de atenção à saúde indígena e em parceria com a FUNAI.
No ano 1993, através das constantes articulações do movimento indíge-
na, foi possível a realização da segunda Conferência Nacional de Saúde para
os Povos Indígenas, que trouxe como pauta a “defesa do modelo dos Distritos
Sanitários Especiais Indígenas (DSEIS) como base operacional no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS) para a política de atenção à saúde das popula-
ções indígenas.” (ALTINI, 2013, p. 10).
Ocorre que, em 1997, a Comissão Intersetorial de Saúde Indígena do
Conselho Nacional de Saúde (CISI/CNS) procura o Ministério Público Federal
(6ªCCR/MPF) para denunciar as várias falhas na implantação e aplicação da
política pública de assistência à saúde indígena pelo Governo Federal. Como
veremos na citação abaixo:
Garantir aos povos indígenas o acesso à atenção integral à saúde, de acordo com
os princípios e as diretrizes do Sistema Único de Saúde, contemplando a sua
diversidade social, cultural, geográfica, histórica e política, e que essa atribuição
estaria a cargo da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). (ALTINI, 2013, p.
11).
105
Com isso, a FUNASA estabelece novas formulações para a saúde indíge-
na, no ano de 2004, a partir das portarias n° 69 e 70. Com as novas diretrizes,
o objetivo era “recuperar a execução direta e reduzir o papel das convenia-
das, limitando-as à contratação de pessoal, ao deslocamento dos indígenas das
aldeias, e à compra de combustível para a realização desses deslocamentos.”
(ALTINI, 2013, p. 12). Com a criação do Fórum de Presidentes dos Conselhos
Distritais de Saúde Indígena em 2006, acreditava-se que existiria mais vigilân-
cia quanto à aplicação das políticas públicas, no entanto, nem sempre era possí-
vel. A ideia era que com o FPCDSI fosse possível assegurar a participação “em
caráter consultivo e propositivo, e em consonância com as demais instâncias
decisórias do SUS”. Segundo Altini (2013), mesmo com a criação do SASI-SUS
e dos DSEIS, quase todos os serviços de saúde (atenção básica, prevenção e
saneamento) continuavam com os mesmos problemas de descaso. Com isso,
a assistência à saúde indígena foi sendo paulatinamente desconsiderada por
grande parte dos gestores, o que intensificou as questões ligadas aos espaços de
organização dos serviços de saúde.
Por causa desses fatos e com a mobilização de várias conferências dis-
tritais foram apresentadas propostas para a criação da Secretaria Especial de
Saúde Indígena (SESAI), justamente pelo não cumprimento das formulações
estabelecidas pela política pública de saúde, e motivos ligados à corrupção e má
gestão da FUNASA. Mas, segundo Altini (2013), quando a proposta foi levada
à plenária não obtiveram grande sucesso, e com uma pequena porcentagem de
votos a proposta foi derrotada. Diante disso, no final do ano de 2008:
Foi apresentado o Projeto de Lei nº. 3.958 com vistas a alterar a Lei nº.
10.683/2003 que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos
Ministérios de criar a Secretaria de Atenção Primária e Promoção da Saúde, na
qual ficaria abrigada a saúde indígena. (ALTINI, 2013, p. 13).
106
anos, o governo edita a Medida Provisória nº 483, aprovada pelo Congresso
Nacional e transformada na Lei nº. 12.314/2010, e no dia 19/10/2010 foi edita-
do o Decreto nº. 7.336/2010, a partir dele se oficializou a criação da Secretaria
Especial de Saúde Indígena (SESAI).
Nesse contexto, surge um novo modelo de gestão da saúde indígena, que,
por sua vez, possui uma secretaria especial, atrelada diretamente ao Ministério
da Saúde. No que se refere às atribuições da SESAI estão:
107
tir do seu conhecimento ancestral.
108
distantes da realidade dos povos indígenas. Ademais, é importante evidenciar
que isso é uma tradição das políticas sociais no país, que cria e amplia as difi-
culdades de promover a participação da sociedade, excluindo-a do processo de
formulação das políticas públicas que serão ofertadas para solucionar questões
da própria sociedade.
Tania Bacelar (2003) aponta: “o essencial das políticas públicas estava
voltado para promover o crescimento econômico, acelerando o processo de
industrialização, o que era pretendido pelo Estado brasileiro, sem a transfor-
mação das relações de propriedade na sociedade brasileira.” (BACELAR, 2003,
p. 2). Nesse sentido, conseguimos perceber o quanto a inoperância das políticas
de assistência social aos povos indígenas está ligada à forma como é feita a polí-
tica brasileira, e, com isso, perceber que os elementos que guiam e fazem parte
da construção dessas políticas têm uma relação direta com a colonialidade, so-
bretudo, na questão da assistência à saúde indígena.
A atenção à saúde indígena no Brasil, desde o anúncio da criação da Se-
cretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) pelo Ministério da Saúde no ano
de 2008, tem se caracterizado por uma grande inoperância e omissão, agravan-
do ainda mais o cenário da crise interminável que atinge a saúde das popula-
ções indígenas, nas últimas décadas.
No que se refere à saúde dos povos indígenas do Tocantins, podemos
evidenciar a precariedade de seu funcionamento, e a falta de diálogo com os
povos indígenas do Estado. O que implica bastante na aplicabilidade das políti-
cas públicas voltadas à saúde desses povos, pois, sem um dialogo, não é possível
saber quais os reais interesses da comunidade no que se refere ao tratamento da
saúde indígena. O sistema é precário, não consegue cumprir com as atividades
que lhe foram atribuídas. Nesse sentido, os dados de Garnelo (2012) apontam
que:
109
como: “E vamos compreender por contra colonização todos os processos de
resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contra colonizadores,
os símbolos, as significações e os modos de vida praticados nesses territórios.”
(BISPO, 2015, p. 25).
Nesse sentido, marcamos o I Encontro de Wajahgás/Pajés, realizado en-
tre os dias 12 e 14 de junho de 2014, na Aldeia Apinajé do Prata, localizada
no município de Tocantinópolis – TO, como uma forma de enfrentamento às
estruturas dominastes e um ato de reflexão sobre os sistemas de opressão. Isso
fica evidente na fala do Pajé Xerente sobre o uso da medicina ocidental:
Eles(os colonizadores) que nos ensinou a ir para os hospitais, mas agora quando
a gente precisa, eles dizem que não tem verba, e não tem remédio, mas a gente
sabe que tem verba, por isso é importante ter o Pajé e ter as plantas e as razies
para curar as doenças.
110
objetivos que efetivamente contemplem o interesse dos povos indígenas. Nesse
sentido, que contemple a valorização da cultura tradicional indígena, para que,
assim, construa-se uma relação intercultural, e que essa estratégia seja uma for-
ma de compartilhar saberes e proporcionar a interlocução entre os povos, para
que a ação do curar seja compartilhada entre a medicina ocidental e a medicina
tradicional dos povos originários. Ademais, que possibilite a ampliação dos co-
nhecimentos necessários para uma saúde diferenciada e de qualidade.
Contudo, o Estado deve tomar as medidas necessárias para atingir pro-
gressivamente a plena realização desse direito. Para que a assistência à saúde
indígena esteja verdadeiramente de acordo com os princípios organizadores
da LEI Nº 8.080, que dispõe sobre o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena
(incluído pela Lei nº 9.836, de 1999), como se observa na citação do Art. 19.
Abaixo:
Com isso, vemos que os povos indígenas têm direito a manter suas práti-
cas de saúde, bem como desfrutar de uma saúde vinculada ao SUS, e que tenha
qualidade e respeite a diversidade dos povos. Porém, na prática, o que vemos
é um descaso quanto à aplicabilidade da lei, pois, não há essa integração que o
art. 19 dispõe, e quando existe é com o intuito de impor a esses povos a medi-
cina ocidental, como hegemônica e verdadeira. Tendo em vista que, apesar de
saber que a saúde é um direito e tem a obrigatoriedade de ser ofertada à popu-
lação indígena de maneira diferencia e específica, ainda é um instrumento de
dominação e perpetuação das estruturas coloniais. Sendo assim, é complexo
pesarmos em uma prática vinculada à interculturalidade, levando em conside-
ração que as possibilidades de interação entre a medicina ocidental e a medici-
na tradicional são diminutas.
Ademais, o que temos é sua saúde sucateada de todas as formas possí-
veis. Sobretudo, no que se refere à falta de infraestrutura, falta de profissionais
da saúde, medicamentos, ambulância, etc. Além do que a precariedade da es-
trutura física dos postos de saúde e o serviço prestado pela Secretaria Especial
de Saúde Indígena (SESAI) contribuem para a inoperância da prestação de as-
111
sistência adequada para os povos indígenas.
Considerações finais
112
rem em parceria com a SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) no aten-
dimento à população indígena. Com isso, percebemos que é de fundamental
importância o estabelecimento dessa parceira, pois visa o bem-estar de toda a
comunidade, já que a equipe médica tem que executar suas funções tratando
esses povos de maneira a valorizar também o conhecimento deles.
Contudo, é preciso ser repensada a atuação desses profissionais da saú-
de indígena, principalmente os profissionais não índios que atuam nos postos
de saúde indígena, para que suas ações estejam imbricadas na associação da
medicina ocidental e da medicina tradicional, para que elas, juntas, possam
possibilitar uma visão ampliada dos conhecimentos, concedendo aos profissio-
nais da área da saúde a capacidade de lidar com a realidade dos sujeitos, com
as demandas específicas de cada povo para um atendimento à saúde indígena
verdadeiramente diferenciado.
Referências
ALTINI, Emília. et. al. A Política de Atenção à Saúde Indígena no Brasil Breve
recuperação histórica sobre a política de assistência à saúde nas comunidades
indígenas. Publicação do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, 2013.
ARAÚJO, Tânia Bacelar. As Políticas Públicas no Brasil: heranças, tendências e
desafios. Rio de Janeiro: FASE, 2003.
BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramón.“Decolonialidade e
Perspectiva Negra”. Sociedade e Estado, v. 31, n.1, 2016. pp. 15-‐24.
Bispo, Antonio. Colonização, Quilombos,2015.
BRASIL. LEI Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições
para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funciona-
mento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 20 set. 1990.p.18055.
FANON, Frantz (2006). Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: EdUFJF.
GARNELO, Luiza. Política de Saúde Indígena no Brasil: notas sobre as tendên-
cias atuais do processo de implantação do subsistema de atenção à saúde. In:
GARNELO, Luiza; PONTES, Ana Lúcia (Org.). Saúde Indígena: uma introdu-
ção ao tema. 22. Ed. Brasília, DF: MEC-SECADI, 2012.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina.
In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas lati-
no-americanas. Buenos Aires, CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales, 2005.
113
Parte ii
Memória, festas,
religiosidades e
sociabilidades
“Morada dos mortos”: a construção dos
cemitérios como lugar de memória
Mas a produção fúnebre interessava sobretudo aos vivos, que por meio dela
expressavam suas inquietações e procuravam dissipar suas angústias. Pois, em-
bora variando em intensidade, toda morte tem algo de caótico para quem fica.
Morte é desordem e, por mais esperada e até desejada que seja, representa rup-
tura com o cotidiano. Embora seja seu aparente contrário, a festa tem atributos
semelhantes. Mas, se a ordem perdida com a festa retrona com o final da festa,
a ordem perdida com a morte se reconstitui por meio do espetáculo fúnebre,
que preenche a falta do morto ajudando os vivos a reconstruir a vida sem ele1.
118
muito forte nesse momento do ritual: as pessoas que se faziam presentes nas
ruas onde o cortejo fúnebre estava passando. Nas portas, janelas, calçadas, pes-
soas trafegando pelas ruas paravam como forma de respeito à família enlutada
e à própria pessoa que seria enterrada. Essas atitudes eram práticas frequentes
na sociedade caxiense, além disso, em alguns cortejos, havia as bandas de mú-
sicas que faziam o percurso até o cemitério, como explica senhor Manoel de
Páscoa Medeiros Teixeira:
[...] Quando as pessoas eram funcionário, aliás eram sócios da União do Centro
e eram operários que faziam parte dessas casas históricas da cultura popular,
então vinha a banda né, nesse tempo era a banda chamada, banda Guanabara,
a Guanabara vinha e tocava né, as música, cantava bonito, quando ia saindo o
caixão, eles faziam silêncio né, na porta da casa, ficava seis dum lado e seis do
outro, tocava aquele silêncio, era tão penoso, que parecia que você tava sendo
assim mermo conduzido a entrar numa introspecção de sentimentos viu, e ali
saia e o pessoal rezava um mistério do terço, aí cantava um cântico religioso,
cantava um mistério do terço e tal e sempre, sempre ia uma cruz bem na frente
né, uma cruz, as vez o padre num tinha muito padre, mas o padre vinha né, dava
a benção, confortava os donos dos mortos e conduzia-o2.
119
terro de uma criança, só quem poderia levar o caixão eram os seres puros e de
bom coração, consequentemente, fala-se das crianças. Os jovens eram carrega-
dos pelos jovens, que poderiam ser da família ou colegas. O cortejo era bem or-
ganizado e todos os que acompanhavam demonstravam respeito e sentimentos
para o moribundo e os familiares.
Como em Caxias havia a prática de fazer o enterramento em redes e
caixões, em cada um tinha uma maneira diferente de como o defunto seria
carregado, pois os cortejos eram feitos em caminhada, e os defuntos eram car-
regados, como rememora o senhor Manoel de Páscoa Medeiros Teixeira:
O enterro era muito bonito. Os enterro era levado nas costas, quatro pessoas,
eles tinham almofadas, tinha uma, uma escada, fazia aquela grade, da altura
dessa mesa com os pés, e do lado tinha uma grade, como se fosse uma cama,
colocava o caixão no meio e ali tinha uma coisa que atracava assim, apertava o
cartão, o caixão e naquele pau pra frente e pra trás os quatro, com andor, tinha
uma almofada arredondada assim, de pano de seda viu, que metia pra colocar o
braço. Então ali levava, os passos eram iguais.... era uma coisa muito bonita, era
um respeito podia ser pobre, podia ser preto, rico, homem ou mulher, o enterro
era tudo desse caráter assim sabe? Então aparecia do enterro daqui pra Olaria
cinqüenta homens pra levar o caixão sabe, eles ficavam bem próximo viu, ao es-
quipe pra poder fazer a mudança, quando você ouvir um fazer (slap!) num sabe,
ai você chegava lá metia ombro e trocava, e o caixão não parava.... e os caixões
ia aberto.... aberto né, ia aberto era muito bonito os caixões ia aberto né, muitas
flores, colocavam muitas flores nas tampas3.
120
enterro também um momento festivo.
Entretanto, percebe-se que a sociedade caxiense mostra zelo e prestígios
aos defuntos, mas nem todos os mortos tinham a sorte de serem enterrados
em caixão, como já foi mencionado neste trabalho. Os moradores de Caxias,
em sua maioria, vinham da zona rural e passavam por dificuldade financeira,
e como o caixão era um objeto caro, muitas pessoas eram enterradas em suas
próprias redes. Havia pessoas que eram tão pobres que os familiares faziam
questão de que a rede fosse devolvida para ser utilizada por outro membro.
E o enterro na rede era uma coisa muito engraçado, pegavam um pau longo,
como daqui acho que naquele sofá, um pau, tirava ele bem verde, tirava a casca,
limpava e amarrava a rede lá e aqui. Quando levantavam o defunto, esperavam
assentar, aí pegavam um lençol branco e colocava a altura dos ombros viu, por
cima da rede e amarrava sabe por baixo da rede, amarrava bem arrochado pra
não sair que na parte dos ombros ficava o pano preso nisso aqui né, aí você via
só essa parte aqui, aí saía direitinho, o pé pra frente né, até chegar no cemitério,
aí chegava no cemitério eles ficavam em cima da cova, um agarrava no meio, ou-
tro ficava aqui, segurava três lá, aí ia desatando aquelas cordas, ela ia longa que
era pra desatar as cordas e já ia descendo de acordo com as sepulturas de cima5.
Levava na rede correndo e cantando uma música assim que deixa a gente bem,
eu só sei um pouquinho eu já esqueci mais, mas diz assim, naquele desespero de
correr, aquela coisa feia eles diziam “Chega um, Chega dois, chega três... chega
quatro, chega cinco, chega seis... ai dava aquele gritão, e dizia chega irmão das
almas”, quer dizer estava chamando uma, duas, três, até seis alma e diz que na-
quela hora, diz que naquele momento o corpo ficava maneiro que parece que ia
levando só pau com a rede, como aquele que eles tinham chamado6.
5 Idem.
6 Manoel de Páscoa Medeiros Teixeira. Entrevista concedida a Aldeanne da Silva Sousa, em
21 dez. 2012.
121
Mesmo que tivessem algumas delimitações devido à questão financeira,
“as famílias se esforçavam por fazer dos enterros de seus membros um impor-
tante acontecimento social”7, pois era o momento em que parte da cidade se
manifestava, comparecendo a esses eventos, principalmente em cidade peque-
na como Caxias.
Quando chegava ao destino final, fazia-se o último ato do rito que se
compôs por uma oração, dava-se espaço para, se alguém quisesse, falar algo a
respeito do moribundo, prestando sua última homenagem, após isso, dava-se
o sepultamento, em alguns se jogavam flores ou um punhado de terra como
sinal de solidariedade, ritual que pode ser observado até hoje, mas em menor
frequência8.
122
familiares passavam determinado tempo usando somente roupas pretas, não
saiam para festas, não ouviam música, deixavam de realizar algumas atividades
consideradas inapropriadas para os parentes do defunto. Esse período variava
de acordo com o grau de parentesco e o sentimento que a pessoa tinha, podia
ser de anos ou meses, mas havia essa demonstração de deferência à memória
do morto. Até mesmo os vizinhos e amigos em respeito usavam uma fita preta
com um alfinete, mostrando amor ao defunto, além de ser uma forma de outras
pessoas saberem que alguém que se gostava havia falecido.
Os ritos pós-morte a cada dia modifica-se e adequa-se à sociedade, pois
atualmente a questão do luto e as missas estão cada vez mais esquecidas, as
pessoas vivas não demonstram zelo por seus mortos, não se sente mais o amor,
dedicação na realização do preparo do velório, a escolha da vestimenta, da or-
namentação do ambiente, das comidas que iram ser servidas para aqueles que
viriam dar suas condolências. Todas essas ações que, até a década de 70 e me-
ados de 80, na sociedade caxiense, familiares e amigos eram os agente ativos
para que o morto tivesse uma passagem digna para outra vida.
Com a lei que foi promulgada em outubro de 1828, que buscava regula-
mentar a estrutura e funcionamento urbano, havia como propósito uma orga-
nização no setor urbano, desde a higienização, limpeza, saúde da cidade, além
de reparos e segunça nas ruas e, em meio a esse processo de higienazação, há
uma mudança nos locais dos sepultamento.
Até meados do século XIX, havia a prática de os sepultamentos serem nas
igrejas, pois existia no imaginário social que os corpos enterrados ali tinham
mais chance de se salvarem, e na sociedade caxiense havia a mesma concepção.
Além do processo de organização higiênica pública, a cidade estava crescendo
123
e não haveria lugar suficinte para que todos fossem enterrados nas igrejas.
Com essa lei, as práticas de sepultamentos seriam proibidas, porque as
igrejas eram locais públicos e as pessoas que as frequetavam estavam vulnerá-
veis às doenças12 que os corpos poderiam gerar, quando estavam em decompo-
sição. Com isso, os mortos deveriam mudar de lugar, deveriam estar em locais
arborizados, altos e que não ficassem no centro urbano para não oferecerem
risco à população.
124
arrasar as casas, mudar o curso das ruas; as pedras mudam de lugar, mas como
destruir os vínculos com que os homens se ligavam a elas? Podem suprimir sua
direção, sua forma, seu aspecto, estas moradias, estas ruas, estas passagens”14.
Por conseguinte, a memória não está ligada somente ao lugar material,
palpável, mas a relações que foram vivenciadas nele, uma vez que os lugares, os
acontecimentos e as pessoas são como fios que vão entrelaçando-se e formando
uma “rede” de memórias.
Através da imagem, é possível percebe que o vivo tem zelo pela nova mo-
rada do seu familiar, amigo, mas, além disso, esse lugar representa um espaço
14 BOSI, Eclea. Memória e sociedade:lembranças de velhos. 2. ed. São Paulo: Editora
Universidade de São Paulo, 1987, p. 34.
15 SEIXAS, op. cit., p. 50.
125
de lembranças, mesmo elas não sendo boas.
126
se eram: a do Santíssimo Sacramento, das Santas Almas e de São Vicente de
Paula, da Igreja da Matriz de Nossa Senhora da Conceição e São José, a de
Nossa Senhora dos Remédios e a do Glorioso São Benedito. A Irmandade Nos-
sa Senhora dos Remédios emergiu devido ao elevado número de negociantes
existentes na cidade.
127
de Almeida, “o cemitério tem um quilômetro de cemitério viu, isso aí é do ce-
mitério dos Remédios, cemitério dos Remédios, aí então um prefeito chamado
Aluízio Lobo dividiu os dois cemitério, que esse lá ficou com os ricos e os da cá
fico com os pobres viu”19.
Essa divisão só veio colocar a diferença e reforçar o imaginário de que
as pessoas que são enterradas no primeiro cemitério são ricas e pertencentes à
elite caxiense; e no segundo, a classe mais abastarda.
Quando questionado acerca dessa divisão, o senhor Manoel de Páscoa
Medeiros Teixeira faz uma explanação de como era o cemitério dedicado aos
associados, onde havia características portuguesas:
[...] Aliás dois cemitérios, São Benedito e Remédios, eles eram da igreja né,
quando a família que fundou essas igrejas, porque a igreja dos Remédios era
uma irmandade e as irmandade da, da, da boa morte, assim que eles chama-
vam tinha um cemitério e aquele cemitério ele era de um caráter português, ali
dentro tinha as, as virtudes teologais, eu ainda conheci lindas virtudes teologais,
eram todas de porcelana de dois metros de altura. Fé, esperança, caridade, for-
taleza, amor, é... a justiça, fé, esperança, caridade, amor, a justiça, é... a tempe-
rança, elas , elas dividiam, você entrou no cemitério mais ou menos como daqui
naquela parede lá viu, lá tinha as colunas com as estátuas e os dois vasos, um
vaso honorífico, que ta lá no museu da Balaiada, e o outro era um vaso em sím-
bolo de devoção, esses dois vasos bonitos de porcelanas portuguesas guardavam
águas né, água, e daquela parte pra cá era nobreza, a nobreza portuguesa que
morava em Caxias, os nomes das pessoas que tinham brasão, tinha o brasão,
tinha realmente em respaldo, depois do lado de lá tinha uma divisão, pra lá era
enterrado a classe média20.
E essa diferença pode ser percebida até na estrutura, como foram cons-
truídos em épocas diferentes. O primeiro teve sua edificação no século XIX,
com ostentação tanto na arquitetura como nas suas sepulturas.
128
Figura 2:Cemitério Nossa Senhora dos Remédios.
Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Caxias-IHGC
129
dados para São Luís, só depois que vinham para Caxias. Antes da construção
da estrada de ferro, o transporte era feito de navio, com a implantação do trem,
vinham nele e quando chegavam à cidade, para ir para o cemitério, iam carre-
gados em carroças.
Isso mostra o quanto era trabalhoso fazer essa ornamentação nas sepul-
turas, mas todo esse processo era preciso para que tivesse um túmulo que re-
presentasse o zelo e que a última morada do seu ente querido fosse bela. Até
o espaço do próprio cemitério tinha sua ornamentação, pois havia esculturas,
imagens de anjos que serviam de enfeites desse espaço, passando imagens de
paz, serenidade, em que se podiam descansar em paz.
130
Atualmente, as famílias tradicionais tentam manter essa tradição de
construírem sepulturas que demonstrem zelo, cuidado e ostentação, demons-
trando, assim, a preocupação para que seu ente querido esteja confortável. Há
muitas sepulturas reservadas a familiares, ou seja, túmulos que são enterradas
mais de uma pessoa. Na visita ao cemitério, é possível perceber algumas sepul-
turas que têm o marido e a esposa, outras já estão reservadas.
Referências
BOSI, Eclea. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 2. ed. São Paulo. Edi-
tora Universidade de São Paulo, 1987.
131
ESTATUTOS DA IRMANDADE NOSSA SENHORA DOS REMÉDIOS. Insti-
tuto Histórico e Geográfico de Caxias.
OLIVEIRA, Anne Karinne dos Santos. Das portas do sagrado aos portões do
público: Ritos fúnebres e a nova moradia dos mortos em Caxias no século XIX
(1830-1862). (Monografia) Universidade Estadual do Maranhão, Caxias, 2012.
REIS, João José. A morte é uma festa: Ritos fúnebres e a revolta popular no Bra-
sil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
Entrevistados
132
Os botequins e a resistência aos fast foods:
narrativas orais de consumidores de
Parnaíba-pi1
[…] O que parece para alguns como mundialização significa localização para
3 Esta pesquisa entende que fetichismo é um conjunto de valores e ideias que inseridos em
um produto transmuta-o em mercadoria e faz brotar o desejo do consumidor. A noção
de fetichismo baseia-se no conceito de Karl Marx, na obra O Capital, segundo o qual ela
corresponde ao processo em que as mercadorias mediam as pessoas de forma econômica e
simbólica, transformando os consumidores em coisas.
134
outros; o que é sinal de uma nova liberdade para alguns se impõe a outros como
um destino cruel. […] a liberdade de circulação que sempre foi uma vantagem
rara e desigualmente repartida, torna-se rapidamente o principal fator de estra-
tificação social da idade moderna e pós-moderna. (BAUMAN, 2001, p. 9).
135
encontrar oposição e discordância, o que não as desqualifica e não as torna
inválidas, uma vez que o que se procura é o sentido de suas percepções sobre
os fast foods.
Em segundo lugar, de modo a evitar problemas jurídicos, os colaborado-
res foram mencionados pelo primeiro nome, já que a autorização das entrevis-
tas encontra-se apenas em áudio.
136
mundo, em 1919 e em 1945, e as agitação tecnológicas de um progresso vindou-
ro, parecem ter incitado o desejo de se fazer e obter uma investigação explica-
tiva, fazendo a história do presente surgir sem dúvida bem mais de uma impa-
ciência social do que de um imperativo historiográfico. (RIOUX, 1999, p.46).
137
contínuo processo entre as interjeições sobre o passado, o qual ele analisa, e o
futuro que recebe suas projeções. Em outras palavras, no tempo presente, o his-
toriador toma posição, assume a função política de sua pesquisa e media esse
processo de “viagem temporal” entre o passado e o futuro.
Dessa forma, a ação de pesquisar o presente também provém dos proble-
mas que rodeiam o historiador, por ele próprio ser um cidadão, que, diante das
angústias sociais de sua contemporaneidade, dispõe-se a refletir e interpretar
os fatos, sejam eles do presente ou do passado, entendidos como entrelaçados.
O estudo da História do Tempo Presente mostra a preocupação que o pesqui-
sador sente em relação aos problemas nos quais ele próprio, muitas vezes, está
inserido e os quais busca analisar e compreender. Esse é o meu caso, como
historiador e cidadão parnaibano.
3 O botequim e a resistência
138
alimentos que normalmente não são servidos no almoço, em uma quantidade
que não o deixe “empanzinado”, para não atrapalhar a digestão durante a hora
de dormir.
Preocupado em entender se a presença dos fast foods em Parnaíba seria
uma confirmação de que a cidade está inserida no processo de globalização,
ou procurando entender até que ponto a busca do parnaibano pelos alimentos
dos botequins pode indicar tentativa de resistência à padronização alimentar,
abordei os entrevistados sobre os fast foods. Sobre isso, Hélcio, professor de 43
anos, explicou:
139
ralmente o lugar pelo preço e também pela qualidade porque tu vai comer mais
e pagar pouco.”
O botequim, que está presente no cenário parnaibano, possui suas par-
ticularidades que o diferenciam dos fast foods em vários aspectos e que são
lembrados por seus frequentadores. Bares, botecos e quiosques, ao longo da
Avenida São Sebastião, são lugares em que as pessoas se sentam nas calçadas ao
ar livre e podem comer lanches e também alimentos regionais. Ali, costumam
passar a noite e ultrapassar a madrugada conversando ou assistindo aos tele-
visores expostos, pelos quais veem a novela ou os jogos de futebol; ou, ainda,
ouvem música ao vivo ou mesmo se reúnem com instrumentos para tocar o
forró, traço local.
Proveniente da segunda metade do século XIX, o botequim possui uma
origem antiga no Brasil e tem uma expansão geralmente associada ao aumen-
to do operariado assalariado urbano, quando se iniciava a República Velha, a
transição e o fim do sistema escravista no país. Cabem aqui citar Sidney Cha-
lhoub e seu livro Trabalho, lar e botequim (2001), que procura compreender o
dia a dia e os conflitos dos trabalhadores que viviam no Rio de Janeiro fora do
espaço de trabalho.
O autor utiliza como fontes processos criminais, impressos oficiais, códi-
go penal dos Estados Unidos do Brasil e jornais da época, tendo como objetivo
compreender quais pensamentos, estruturas e interesses a classe trabalhadora
suburbana tinha. Ele mostra como o boteco foi transformado pelos trabalha-
dores num espaço fora das fábricas, em que podiam estabelecer relações de
ajuda mútua, com regras próprias e redes de solidariedade. O trabalho media-
do pelo tempo nas pequenas cidades provocou a formação identitária entre o
trabalhador e o botequim, para onde se dirigia para conversar e até mesmo or-
ganizar-se. No caso de Parnaíba, o botequim parece preservar-se como espaço
dos trabalhadores, num contexto de sedução dos fast foods, pois não há tanto a
preocupação com a vestimenta mais elaborada, por exemplo, ou com compor-
tamentos mais padronizados.
Uma matéria de Luiz Antônio Simas para seu blogger chama a atenção
para os diversos aspectos identitários provenientes desses pontos de encontro4:
140
doença comum desse mundo desencantado: Metáforas da morte. Ali, no velho
boteco, entre garrafas vazias, chinelos de dedo, copos americanos, pratos feitos e
petiscos gordurosos, no mar de barrigas indecentes, onde São Jorge é o protetor
e mercado é só a feira da esquina, a vida resiste aos desmandos da uniformiza-
ção e o Homem é restituído ao que há de mais valente e humano na sua trajetó-
ria. (Novembro de 2009).
141
que “a diferença entre a comida do Bob’s pra comida de bar na São Sebastião é o
pão, a carne e os muros. Ali as pessoas vêm mais pra comer e logo vão embora.
Não existe tanta conversa na mesa”.
As palavras de Rômulo revelam um aspecto importante da diferença en-
tre o botequim e o fast food: a existência de muros no último. A ausência de
muros no botequim torna a relação com a cidade mais aberta, enquanto o muro
isola e cria um ambiente à parte, desconectado com o que está fora. O mundo
criado dentro do Bob’s é fantasioso: espaço alegre, colorido, repleto de imagens
festivas e bem construído, além do pequeno playground que distrai as crianças,
enquanto os pais descansam.
O botequim coloca as diferentes gerações no mesmo espaço, próximos à
rua, e exige dos usuários maior atenção sobre os gestos infantis, que dentro dos
fast foods são restritos aos brinquedos e vigiados constantemente pelos moni-
tores uniformizados e sorridentes.
Além disso, Eduardo chama a atenção para a desqualificação dos pro-
dutos a partir da padronização das franquias, opondo-se à imagem construída
pela propaganda de um alimento mais saudável:
142
O aporte gustativo e nutricional incitado pela globalização e a fetichi-
zação da mercadoria impõem novos costumes, hábitos e práticas alimentares,
procurando atingir indivíduos, mas com um discurso generalizado. É a cultura
de massa, em que os desejos são construídos arbitrariamente pela Indústria
Cultural, fazendo parecer naturalizado algo que é fruto das relações merca-
dológicas. Retomando o exemplo da propaganda do Bob’s e da Subway, com o
slogan “É gostoso”, o que se promove é uma certeza anterior ao paladar, ao gos-
to pessoal. Tão forte como “Beba felicidade”, da marca Coca-Cola. Fontenelle
explica que “hoje, pode-se pensar que as mercadorias são dotadas de uma alma,
e a marca publicitária seria, por essência, o lugar da ‘alma das coisas’” (2002.
p. 177). A marca particulariza, define e diferencia um produto do outro, para
além de seus aspectos físicos, agregando valores, os quais assumirão o lugar
que outrora era do produto em si. Os consumidores desses empreendimentos
identificados com a imagem da marca sob o produto associam os fast foods a
um local onde a alimentação é de procedência confiável, mesmo sem nenhuma
garantia disso. Como Hélcio explica:
143
formuladas sobre a recomendação dos fast foods e dos botequins, feitas aos
consumidores, como Hélcio e Eduardo, tiveram diferentes respostas:
144
paladar tá começando a ser modificado”.
Desse modo, podemos perceber a relação entre a tradição cultural e a
identidade dos indivíduos, nesse caso, ligados à resistência e à alimentação glo-
balizada das cadeias de fast foods. Podemos notar isso na entrevista de Eduar-
do, que revela grande apreço pelos botequins e os relaciona com a imagem da
cidade, considerada por ele mais calma do que os centros urbanos e ponto de
valorização da cultura local. “Os botequins são locais bons! Acho que trans-
mitiriam uma boa imagem do local, né!? Um point pra reunir a turma pra um
momento de confraternização”.
A associação do botequim a um local de sociabilização é constante por
possuir uma temporalidade mais vagarosa, não inserida no processo de glo-
balização capitalista. A tradição cultural local desses espaços valida a contri-
buição aos hábitos sociais, às práticas de lazer e à identidade de um território.
No entanto, isso não significa, como afirma David Harvey, que “[...] podemos
considerar a cultura como um plano alheio à dinâmica capitalista, em que as
pessoas e grupos constroem sua história de maneira especial e inesperada, a de-
pender apenas de seus valores, tradições e normas”. (apud MASCARENHAS,
2003, p. 138)
A economia está presente em todos os aspectos nos processos consti-
tutivos do cotidiano e das experiências de vida. A alimentação industrial, pro-
veniente do sistema de produção em série, constituiu o âmago das cadeias de
fast foods, em que os hambúrgueres e as batatas fritas se sobressaem. De acordo
com Mitzy Reichembach:
145
que pra mim é diferenciado. E a desvantagem seria só porque não é saudável”.
Mesmo considerando vantajoso alimentar-se no Bob’s, o entrevistado
percebe a desvantagem da falta de qualidade no alimento, ao contrário do que
propagandeia a publicidade. Aqui, a mercadoria ganha valor simbólico e o fe-
tichismo se revela: a imagem da limpeza, da higiene e do próprio status de co-
mer um sanduíche em uma lanchonete padronizada ganha um valor simbólico,
mais do que o valor nutricional. Caberia, nesse sentido, perguntar: o que leva
um consumidor, mesmo sabendo da falta de valor nutricional, a comer num
fast food? O processo de globalização, além de difundir o sistema de franquias,
propagandeia informações científicas voltadas para os hábitos de uma alimen-
tação saudável, mesmo que consumidores como Rômulo percebam o embuste.
Diante desse quadro, os fast foods buscam enquadrar-se na mentalidade local e
buscam ofertar produtos ligados a esses hábitos, por exemplo, saladas de frutas,
iogurtes, cenouras, água de coco, para atender aos interesses de pessoas como
José:
No meu entendimento, hoje eu tenho mais cuidado com a minha saúde, com
minha alimentação, sim. Quando morei em Teresina, eu me alimentava em
qualquer lugar. Não tinha muito esse cuidado que tenho com a minha alimenta-
ção noturna. Comia qualquer tipo de alimento pesado... hoje não! Tenho outro
olhar sobre essa preocupação.
146
te de certa ditadura dietética” (2006. p. 13)? A cozinha multicultural constrói, a
partir de discursos terapêuticos implementados, uma análise logística de certos
tipos de alimentos receitados cientificamente, enquanto contrapõe e condena
outros? A adaptação das redes às culturas locais seriam estratégias de imposi-
ção de produtos ou revelam as resistências regionais aos gostos padronizados?
De outro ponto de vista, “externo” ao mundo globalizado e padronizado,
os botequins, mesmo adaptando-se às novas regras mercadológicas, como o
uso de recursos tecnológicos para anotações de pedidos e o uso progressivo de
máquinas de cartões de créditos, permanecem em uma constante resistência
contra a temporalidade capitalista. No sentido em que ainda há a espera e a
sociabilização entre os consumidores, que entre outras coisas, procuram trocar
experiências diárias, buscam o estabelecimento pelo sabor, frescura do alimen-
to, além de valorizar a comida típica regional.
Os botequins são a oportunidade de reforçarem os laços locais entre as
pessoas e a cultura parnaibana, reafirmarem as identidades em torno de prá-
ticas de alimentação tradicionais. Nas festas locais, inclusive, como os festejos
juninos, a festa do Bumba Meu Boi e as celebrações religiosas com as quer-
messes costumam ainda valorizar os botecos que muitas vezes se deslocam e
realocam-se nos locais das festividades. Para lá, levam o creme de frango, o
cuscuz, o baião de dois, entre tantas comidas locais, em torno dos quais é pos-
sível observar o grande contingente de pessoas que, ao comerem, integram-se
e identificam-se.
À procura de lazer, vão aos fast foods de maneira esporádica, em alguns
casos apenas para autoexibição, uma marca de certo status e integração à cha-
mada modernidade. Como explicam Bruna e Eduardo, sobre os botecos:
O atendimento não é tão rápido como o Bob’s ou o Subway, mas é mais barato e
em qualidade é melhor pra gente, porque o outro é comida congelada, não tem
tanto sabor. Lá (fast food) é aquele atendimento rápido, tu chega, pega, faz o
pedido, come e vai embora. Geralmente não é um ambiente que tu goste de ficar
pra conversar. Em Parnaíba tu só sai pra ver gente. Nem sempre é pra comer.
Nos botequins é mais sociável. Geralmente as pessoas que vão no fast food, vão
tirar foto e alguma coisa pra postar no facebook. Os que vãos nos barzinhos da
São Sebastião, vão lá pra conversar, pra socializar. (Bruna)
Locais como Bob’s ou Subway pelo menos aqui na cidade, eles tendem a ser
pontos mais elitizados da cidade, tanto que nos outros botequins são locais bem
mais informais. A gente percebe que as pessoas que nestes outros locais (bote-
quins) vão bem mais à vontade, se sentem bem mais à vontade, enquanto que
nos outros, tipo Bob’s e Subway, a gente nota as pessoas com uma maior poli-
147
dez... (Eduardo)
Semanalmente, eu frequento este local junto com alguns amigos. Com amigos
professores, amigos vizinhos. A gente costuma se reunir uma vez por semana
para frequentar este local a fim de fazer uma confraternização. Pelo atendimen-
to, por ser um lugar acessível, por ter valores dentro da média dentre os outros
locais do mesmo tipo e porque é um ambiente agradável.
148
tos na São Sebastião”. Nesse sentido, concorda-se com Luiz Antônio Machado
Silva, quando explica que:
Considerações finais
149
Provindos do complexo processo da globalização, os fast foods parecem
conduzir os consumidores à padronização da cultura material, marcada pela
Indústria Cultural. Esse sistema baseia-se na homogeneização dos hábitos ali-
mentares em todas as suas lanchonetes. Muitas vezes, são vistos de maneira
positiva por uma parcela da população, enquanto espetáculo tecnológico, eco-
nômico e industrial, dando uma “aparência” feliz e dinâmica às suas vidas. Este
trabalho permitiu perceber como essas redes utilizam brindes, embalagens e
ambientes coloridos para chamar a atenção do público consumidor, seduzindo
e homogeneizando comportamentos em torno de uma ideia de entretenimen-
to, prazer e até mesmo felicidade, dentro de uma concepção racionalista e hi-
gienizada de lanchonete e consumidor5.
Esses empreendimentos possuem e propagandeiam uma linguagem e
alimentos próprios da lógica do capitalismo. Impõem uma temporalidade ace-
lerada aos consumidores que devem adaptar-se às novas regras sociais do pa-
drão globalizador. Procuram homogeneizar a alimentação de uma localidade
interferindo diretamente nos hábitos e tradições alimentares. Quando se en-
contram com uma tradição com costumes ou tradições mais rígidos, adaptam-
-se para assegurar sua inserção nos cenários locais.
Na cidade de Parnaíba, o processo de introdução das franquias de fast
food pareceu ter encontrado uma resistência cultural e identitária nos bote-
quins do cenário local. Esse aspecto está possivelmente ligado às relações so-
ciais entre os consumidores dos botecos que ali se sentem mais à vontade para
se relacionarem e escolherem o alimento local. As narrativas dos entrevistados
revelaram valores como fidelidade, simplicidade, temporalidade de encontro e
confraternização, características que podem ser comparadas ao movimento do
slow-food, iniciado na Itália em 1986.
O movimento explora o “comer devagar” e procura, a partir disso, trazer
de volta as refeições a sociabilização. No entanto, o slow-food começa agora a
desenvolver-se em território brasileiro, tem como uma de suas características
principais a intencionalidade da divulgação da educação alimentar, engloban-
do várias áreas representativas de consumidores, jornalistas, universidades e
institutos de pesquisas que embasam, dentre outras coisas, a defesa da boa co-
mida local, o contato humano e da qualidade alimentar.
Em Parnaíba, porém, o movimento não é proveniente de uma organiza-
ção social. Ele está ligado às questões culturais e identitárias que emanam dos
próprios consumidores. Esse aspecto, portanto, evidencia a importância desta
5 A análise das propagandas não foi apresentada neste artigo devido à temática escolhida
para ser desenvolvida.
150
pesquisa para a História da Alimentação e demonstra as diversas contradições
nas relações de poder e na construção de hábitos na sociedade globalizada. Nes-
se sentido, apesar desta pesquisa demonstrar as estratégias de convencimento e
subjetivação das redes de fast food, ela também permitiu revelar que o processo
de globalização não é algo mecânico ou unívoco, uma vez que as experiências
cotidianas são capazes de apropriar-se das imposições e reconstruí-las.
A cidade e a população de Parnaíba estão inseridas, pela via da alimen-
tação, ao processo de padronização e globalização de gostos e subjetividades?
As narrativas dos entrevistados demonstraram que essa é ainda uma questão
em aberto e que o processo de criação de hábitos é muito mais dinâmico. Como
História do Presente, esse processo – que ainda não findou e está em plena con-
tinuidade - exige um olhar cada vez mais apurado do ponto de vista histórico,
antropológico e sociológico, procurando compreender como a identidade par-
naibana, por meio dos hábitos alimentares e de entretenimento, reconstrói-se
cotidianamente – ora aceitando os valores da globalização, ora valorizando o
local e o regional. Sharon Zukin (2011) chama esse processo de construção do
espaço liminar, em que as estratégias de globalização para a transformação e o
esvaziamento da cultura local, vernacular, precisam conviver com as apropria-
ções que os sujeitos fazem das novas referências. Resulta daí, o que concordo
ser, um espaço tensionado entre a tentativa de erosão da localidade e a procura,
pelos consumidores, de preencher e dar significado, ainda, aos lugares escolhi-
dos para a confraternização, para a fuga do tempo que pretende tornar-se veloz,
mas ainda não foi digerido no cotidiano parnaibano.
A propaganda e o ambiente criado pelas franquias constroem uma nova
paisagem, marcada pelo espaço financeiro, pelo capital, em que a arquitetura
ganha dimensão simbólica, projetando comportamentos que significam status
social, procurando forjar novas identidades urbanas. No entanto, os narradores
demonstraram que ainda existe uma tentativa em fugir do consumo dirigido,
padronizado. Nesse sentido, esse processo dinâmico e dialético, entre capital e
cultura local, ainda prossegue e merece ser aprofundado em outra oportuni-
dade.
Referências
151
BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annáles
(1929-1989). São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1992.
152
Uma religião afro-brasileira:
algumas notas sobre questões geracionais e
entidades no Terecô1
154
reparação por parte dos professores. O ensino médio foi marcado por crises de
identidade, seguidas por picos de depressão, o que mais tarde me impulsionou
ao isolamento.
Ao terminar o ensino médio, comecei a afastar-me da religião e escon-
der de todos a minha casa e a minha família. Despontei em direção a São Luís
(MA), onde iniciei minha vida amorosa e não contava para ninguém da reli-
gião da minha família. Por falta de dinheiro, voltei para a casa dos meus pais
e foi então que ingressei na UFMA, em Bacabal (MA), ano de 2011, onde en-
contrei pessoas que me aceitavam como eu era, mas também outros conflitos
se iniciaram.
A minha vida amorosa sempre foi permeada por tumultos. Os namora-
dos ou “ficas”, em um primeiro momento, até aceitavam minha vivência, isso
nos primeiros meses, mas depois se iniciavam as crises. O fato de não poder
esconder ou apagar minha família de mim me fez entender que é preciso lutar,
romper com estruturas de dominação.
Fazer antropologia é constantemente revisitar-me, falar dessas questões
é redescobrir-me, esse processo não é fácil, porém, aos poucos, vou aprenden-
do a seguir, abrindo portas e construindo sonhos possíveis.
Em diálogo com Paula, uma amiga de longa data, filha de santo do meu
terreiro, falávamos sobre como é complicado para os jovens a entrada na vida
no santo. Entre muitos adeptos é comum o afastamento na adolescência e re-
torno na fase adulta.
Muitas crianças iniciam sua vida acompanhando os parentes, alguns re-
cebem entidades ainda muito jovens. Na adolescência, parte dos jovens inicia o
processo de negação de si. Quando mais tarde, retornam para a religião, impul-
sionados principalmente pelas entidades, doenças ou pelo compromisso com a
família. Isso aconteceu comigo e com muitas outras pessoas.
As crianças percebem o ritual como algo lúdico e festivo, sabem das
obrigações e oferendas, esse momento é considerado de diversão para elas. Ao
iniciarem a vivência escolar, e mais tarde a adolescência, ampliam os novos
contatos, então, passam a encarar as crises, o medo e a vergonha fazem parte do
sentimento. Muitos dos jovens com quem conversei pediram para não divulgar
os nomes ou citá-los diretamente, quando da pesquisa de campo, pois esse é
um assunto desconfortante e muito doloroso.
Encontrei outros jovens que lidam tranquilamente e transitam em vários
espaços, tratam desse assunto de forma mais dura e quando alguém os chama
de “macumbeiros” ou “feiticeiros”, eles respondem que “vão colocar um sapo na
155
barriga da pessoa” ou mesmo “fazer uma macumba”. Entendo a utilização dessa
retórica como uma estratégia, uma resposta política, que historicamente tem
sido adotada. Se funciona? Não sei, acho que sim.
Os jovens que optam por iniciar sua vida no santo muito cedo encon-
tram na prática uma forma de diversão e devoção. Em dias de festejo, é possí-
vel presenciar adolescentes brincando Terecô, muitos começam sua trajetória
acompanhando os familiares e, então, naquele local, montam uma rede de ami-
zades que é importante para aquele grupo.
Os integrantes mais velhos da religião possuem ressalva quanto à idade
da iniciação dos indivíduos, entretanto, ela não se torna regra, pois quando um
sujeito se aproxima do terreiro e tem interesse em fazer parte, logo é acolhido
pelo grupo.
Hoje, entendo como é difícil o processo de aceitação e tenho aconse-
lhado os jovens sobre como fazer isso. Aos pais, digo como é difícil e muitos
familiares já sabem, pois já passaram por esse momento.
No passado bem recente, éramos “exotizados”, “primitivos”, “bárbaros”.
De certa maneira, essa é uma conotação ainda utilizada para classificar as re-
ligiões afro-brasileiras no contexto diário, categorias como “macumba”, “ma-
cumbeiro” e “feiticeiro” ainda são utilizadas como modelo acusatório, via de
acesso ao discurso de “incivilizado”.
As crianças aprendem que as palavras “brincadeira/brinquedo/brincar”
podem ter vários significados. Essas palavras estão na lógica interpretativa do
sentido de diversão/lazer, como também podem significar “obrigação”, mo-
mento dos rituais. Lembro-me, quando criança, que existiam momentos mais
duros, aqueles que não permitiam risos e abraços e outros que eram mais aber-
tos.
É durante esse contato com as entidades que construímos laços de afetu-
osidade. Diversas foram as vezes que as entidades da minha família cuidaram
de mim, colocaram-me para dormir ou designaram alguém para vigiar-me,
cuidar da alimentação e levar para a escola. As entidades chamam as crianças
de cariongos. Elas se preocupam com os filhos de seus cavalos2, pois eles são de
sua responsabilidade e proteção.
Meu pai nasceu na zona rural de São Luís Gonzaga do Maranhão, onde
trabalhava na roça e em muitos momentos quebrava coco com a minha avó.
Era muito comum eles tocarem Terecô e os demais lavradores caírem na dança.
Ao que tudo indica, meu pai carrega suas heranças camponesas (Prado, 2007).
156
Francisco Jose Freire Claudio, meu pai, iniciou sua vida no santo aos três
anos de idade, pois acompanhava a mãe ao terreiro, devido ao ciúme do meu
avô. Aos sete anos, recebeu uma entidade pela primeira vez.
Na adolescência, afastou-se da prática religiosa devido ao preconceito,
sendo que a maior vontade que tinha era de constituir uma família. Para reali-
zar isso ficando na religião, no entanto, seria quase impossível. Ele afirmou que
grande parte das pessoas de “fora” não querem relacionar-se com alguém que
dança Terecô.
Quando já estava quase chegando aos 23 anos, apareceram problemas de
saúde, questões que os médicos não encontravam soluções e, nesse mesmo pe-
ríodo, ele fazia parte da companhia de teatro Artebac. Nesse grupo, conheceu
minha mãe e, a princípio, ele não sabia que a família dela também praticava a
religião. Foi em uma tarde de conversa com Maria de Lourdes, minha avó, que
acabou descobrindo.
Em uma noite na casa do Pai de Santo Zé Urú3, ele dançou a noite toda e
não sentiu nenhum problema de saúde, foi nesse momento que constatou que
a questão era espiritual. Então começou a dar continuidade à história da mãe,
construindo o próprio terreiro no município de Bacabal (MA).
Minha mãe, Angela Maria Pacheco da Silva Freire Claudio, 51 anos,
apresenta, como chefe de cabeça, Oxum. Foi preparada-batizada pelo pai de
santo Zé Urú, o mesmo pai de santo da minha avó. O primeiro contato com o
mundo do Terecô ocorreu na infância. Minha avó, todos os domingos, levava-a
para as sessões e ela ficava sentada no banquinho observando o ato religioso,
enquanto a mãe fazia suas obrigações no terreiro.
Minha avó materna teve dezoito filhos, no entanto, somente cinco con-
seguiram sobreviver. Por ser muito pobre e não ter muitos recursos na época,
os irmãos da minha mãe morreram principalmente por doenças frequentes
no período. Entre os filhos, além da minha mãe, Maria Antônia também era
médium e recebia entidades. Minha tia também era filha de santo do terreiro
de São Raimundo Nonato, tendo falecido em 2001, seis meses após o óbito da
minha avó. Os outros irmãos seguiram outras religiões.
Minha mãe não foi criada por seu pai biológico, eu tampouco o conheço,
ela morava com minha avó em uma casa de barro, na rua Tavares de Moura,
uma casa muito simples. Ela, por ser a caçula4, sempre ia costurar sacos de
açúcar. Meus tios trabalhavam na roça, e tia Tunica (Antonia) e tia Maria tra-
157
balhavam com serviços domésticos fora de casa.
Com os falecimentos de minha avó materna e minha tia, minha mãe
passou a segurar as entidades de ambas. Maria Antônia, minha tia, teve três
filhos, mas até hoje nenhum manifestou interesse em continuar com a prática
da família. Segundo minha mãe, é importante ter alguém para continuar com
a história da linhagem e que hoje ela pensa nos filhos e netos. Perguntei a ela o
que aconteceria se ela se negasse, e ela respondeu: Eu posso até fazer isso, mas
fique sabendo que muita coisa ruim irá acontecer e não posso nem explicar. Mi-
nha mãe me confidenciou:
Quando eu era nova, mamãe segurou pra mim, eu seguro os dela agora, seguro
o da Antônia, seguro o dos filhos e ainda vou segurar o dos netos, mas tenho
ajuda do Francisco [meu pai] nisso tudo. Algumas entidades continuaram na
família e são elas que coordenam o direcionamento do terreiro. (Campo reali-
zado em 2017).
A primeira vez que ela recebeu uma entidade foi aos sete anos, havia um
poço na casa onde morava e esse local a arrastava:
É como se tivesse um imã entre o poço e eu, a primeira vez eu tinha apenas
sete anos. A mãe me dizia tudo, naqueles momentos de manifestação, eles [as
entidades] incorporavam e depois subiam em cima da casa, ameaçavam se jogar
no chão e no poço. A mamãe foi no terreiro de Seu Zé e pediu ajuda, Seu Zé
resolveu o problema naquela tarde, só que aconteceu outra vez, foi aí que eles
resolveram suspender. (Campo realizado em 2017).
158
gera. Nesse período, o esposo já dançava Terecô no Café Pipira, zona rural do
município de São Luís Gonzaga do Maranhão, mas ela não sabia desse fato e só
foi descobrir depois de algum tempo.
Antes de namorar meu pai, minha mãe teve outros relacionamentos e
todos tinham algum tipo de vínculo com algum terreiro. Por fim, meu pai apa-
receu de uma forma diferente em sua vida. O medo do preconceito a fez distan-
ciar-se da prática religiosa, mas com o esposo ela se sentia forte.
Meus pais tiveram contato direto com entidades desde a infância, o
mesmo aconteceu comigo, era sempre comum acompanhar minha família aos
terreiros da região, assim como minhas irmãs. Nessas ocasiões, as entidades
me colocavam no colo e levavam-me para dentro da sala para dançar. Esse
caminho era uma constante em minha vida e entendia aquele momento como
o ápice da diversão, sempre acompanhado pelo argumento: “Enquanto teu pai
estiver aí ele segura e depois você vai ter que levar”.
Esse discurso foi sendo acentuado no início da adolescência, momento
esse que de fato passei a brincar e receber entidades. Durante minha infância,
sempre brincava por diversão e apenas sentia radiação5 das entidades, pois meu
pai interferia por saber que eu ainda não tinha força suficiente. Os mais velhos
olhavam com determinada ressalva, pois ainda não tinha idade certa para re-
ceber. Lourenço Légua, entidade da minha falecida avó, sempre falava da pro-
teção a mim dispensada. Ele é uma herança de família e guia os meus passos.
Minhas irmãs também vivenciaram essa mesma fase e a narrativa era
bem similar, pois a idade é algo que pesa na prática religiosa. Aos quinze anos,
minhas irmãs foram afastando-se da brincadeira6, entre os argumentos estava o
de curtir a vida enquanto tínhamos tempo, pois a juventude era algo que pas-
saria muito rápido e que deveríamos aproveitar enquanto meu pai ainda estava
vivo. Para os nossos pais, esse afastamento parcial não era bem aceito.
Desde muito novo, eu já era curioso. Sempre as amigas de minha mãe
que frequentavam o terreiro falavam de uma senhora que jogava cartas e que
era difícil não acertar. Como forma de pagamento pela consulta, ela recebia so-
mente uma vela, café e açúcar. Pois bem, fui visitar tal senhora, ela atendia por
nome de Mazinha, tinha seus setenta anos, quando da minha visita em 2012,
na época, ela acertou muita coisa, outras somente obtive a certeza aos vinte e
três anos.
Dentre o que foi dito, chamou-me muita atenção o argumento de que
me afastaria da prática religiosa, deixando de dançar por um tempo, mas que
5 Vibrações ou aproximação.
6 Serve para falar da religião.
159
não precisaria ficar preocupado, pois meu pai iria segurar as entidades nesse
intervalo. Literalmente ocorreu, passei um tempo afastado de forma relativa.
Com o passar dos anos, a vida foi tomando seus contornos. Durante a
festa de Nossa Senhora das Candeias, em 2015, meu sobrinho também entrou
na roda e lembrei-me de quando eu também era criança. Observava e con-
versava com as entidades Oliveira, Lourenço Légua e Juvenal. Falamos sobre
aquele momento e como tudo se inicia.
Essas entidades fazem parte da família e no momento também havia al-
guns filhos de santo, todos comentavam o acontecido. O entrecruzamento de
filhos biológicos e de santo, a ideia de família é pensada como ente alargado,
na qual se incluem muitos brincantes da casa e as entidades, pois, de tanto elas
participarem dos variados momentos da vida cotidiana, acabam sendo consi-
deradas como da família.
Entende-se a noção de família como algo em trânsito entre pessoas e
entidades, com fronteiras além do sangue, pois todos os indivíduos e entidades
que circulam nos espaços da casa e do terreiro compõem os laços de afetuosi-
dade. Os terreiros são espaços permeados por reciprocidades.
É comum entidades do terreiro descerem em outras casas de santo, sabe-
mos que as entidades possuem vínculos com as casas, mas elas não se limitam
à nossa compreensão de espaço geográfico e noção de tempo. As entidades, ao
estarem incorporadas em pessoas de casas diferentes da nossa, sempre falam
conosco e tratam-nos com familiaridade. Em outros casos, ficam observando-
-nos, querendo que as reconheçamos. Às vezes, é um pouco difícil fazer isso.
A relação com as entidades é altamente permeada por ciúmes, e alguns
brincantes não gostam da ideia de que as suas entidades tenham outros cavalos,
tanto que muitos acabam acreditando no caráter exclusivista da entidade. Em
outros casos, quando a entidade faz a opção por descer em outra pessoa, o dis-
curso por parte deles fica relacionado à lógica de quem chamou primeiro ou se
aquele dia era de outra entidade.
Algumas entidades tratam de coibir a vida amorosa de seus filhos, acre-
dita-se que o relacionamento amoroso acaba por diminuir a vivência na vida
de terreiro, principalmente quando o pretendente não faz parte da lógica das
casas. Então, para evitar conflito e sofrimento, essas entidades tratam de afastar
qualquer investida. Existe aqui uma negociação, algumas entidades buscam in-
terferir, outras não. Ler Barbosa (2008).
Quando chefes de terreiros recebem a mesma entidade, existe um respei-
to mútuo. Meu pai recebe o Caboclo Folha Seca. Maria do Santo, mãe de santo
160
da cidade de Codó, também. Ao descer em Maria do Santo, Folha Seca não
pode interferir na lógica do terreiro de São Raimundo, existe muito respeito
nesse momento.
Na religião, existem os médiuns videntes, que são aqueles que trabalham,
mas não incorporam nenhuma entidade e que somente recebem influências e
mensagens das entidades e orixás. Existem também os médiuns que incorpo-
ram as entidades e também trabalham, curam e rezam. Em linhas gerais, se-
gundo os chefes de terreiros, não é necessário que o indivíduo esteja incorpora-
do por uma entidade para que seja realizada qualquer ação dentro do terreiro.
Segundo os relatos obtidos nesses anos de acompanhamento dos terrei-
ros, é importante ressaltar que existem outros tipos de médiuns: existem aque-
les que trazem seus dons de herança familiar e outros que realizam trabalhos
para se ligarem a uma entidade. Tal trabalho pode ser feito a pedido da pessoa,
por terceiros ou pela própria entidade.
Sabe-se que o ponto central nessa religião diz respeito ao desenvolvi-
mento do médium. Quanto mais obrigações são realizadas, mais desenvolvido
ele fica. Cada preparação é uma fase e os indivíduos que muito se desenvolvem
passam a pleitear a abertura de seu centro religioso. Quando esse momento
ocorre, inicia-se o processo de ascensão na hierarquia dentro da casa, sendo o
momento em que o indivíduo passa a ser pai de santo ou mãe de santo. Para
virar chefe de terreiro é necessária a aceitação da comunidade religiosa.
No Terecô é corriqueiro que as entidades se interessem por determina-
das pessoas que em algum momento da vida cruzaram bifurcações, matas, ma-
res e terreiros. Quando uma entidade se interessa, ela passa a proteger o sujeito
de vários problemas de saúde e espirituais. Essa proteção é cobrada na forma de
zelo e de respeito às obrigações solicitadas.
Vale ressaltar que dentro do Terecô são comuns acordos e trabalhos para
retardar a entrada na vida do santo. O pai de santo realiza afazeres para as di-
vindades, com vistas a obter por determinado período a suspensão da entidade
ou da bebida alcoólica.
Existem casos em que os indivíduos não querem passar pelo retarda-
mento da vida espiritual e acabam começando a vivência na casa muito cedo.
Dentro dos anos de observação, pode-se constatar que a idade é sempre algo
muito relativo. É importante destacar que o trabalho de retardamento na vida
do santo é algo a recorrer em última instância, pois não é bem vista pelos adep-
tos.
As negociações dos trabalhos de segura ou de retardamento ocorrem,
161
em grande maioria, quando o sujeito recebe a entidade ainda criança. Nessa
fase, o sujeito ainda não tem domínio sobre sua vida e existência. Outro motivo
consiste no peso que as entidades possuem, também acontece de a família da
criança não aceitar a mediunidade.
A filha de santo Rose, que trabalha com mesa e reza e, atualmente, aos
60 anos, reside em Fortaleza (CE), afirmara: você já pegou uma lata das grandes
de areia molhada? Pois é, coloque cinco latas nas costas e mesmo assim você não
vai saber como é o peso, ele vem e depois você sente o chão faltando, parece que o
mundo tá acabando.
O peso e a responsabilidade que precisa o indivíduo ter é um atenuante
para a realização do trabalho de retardamento. Nesses casos, o pai de santo
designa alguém da família que já participa da prática religiosa para receber. Em
outros casos, alguém do terreiro ou ele próprio. Existe também o pedido da
entidade que dentro do acordo escolhe em quem vai descer durante o tempo
da suspensão.
162
Durante as festas, é comum ter a mesa do bolo e, na maioria das vezes, o
confeito, balões e salgados. De fato, não temos mais batidas de tambores, no en-
tanto, a circulação das ideias e entidades permeiam esses múltiplos momentos.
Nas festas religiosas existe uma grande circulação de jovens e crianças,
tendo uma duração de vários dias, em alguns casos até semanas, sendo que to-
das as despesas com a alimentação e hospedagem são arcadas pela casa anfitriã,
os jovens tratam logo de reunir-se para conversar e beber uma cervejinha.
Para a realização da festa, é necessária a organização anual, pois a maio-
ria das casas possui mais de uma festa ao ano, o que ocasiona aos terreiros
montarem redes fixas de contato entre casas de santo. É muito comum as casas
ficarem repletas de convidados nesses períodos. Além das casas de santo, vizi-
nhos e pessoas de outros bairros saem para visitar as casas em festa. Entre os
terreiros existe uma ideia de dívida que é acionada e não realizar as trocas em
visitação é estremecer as redes de contatos.
Durante o ano, é possível acompanhar a confecção das roupas, conversas
sobre a organização das festas e, principalmente, a aproximação do festejo em
agosto, marcado pelo entusiasmo e ansiedade. O ritmo da casa é marcado pelo
trânsito de muitas pessoas e é comum haver pessoas andando e conversando
por todos os lugares.
Não existe um “nós e eles”. As duas categorias entram em processo de
confluência e, no final, toda a beleza é para elas. Cada sentido, roupa por rou-
pa, foto por foto, tudo só é possível de acontecer pela proeza das entidades. Os
dias que antecedem o festejo são marcados pelo processo de organização da
casa e decoração dos espaços. É comum a compra de tecidos para os altares e
aplicação de bandeiras, bem como decoração de andores da procissão, organi-
zação da alimentação e estoque, vestimenta do Boi Diamante, além da ajuda e
presenças dos jovens e crianças.
Referências
AHLERT, Martina. Cidade relicário: Uma etnografia sobre Terecô, precisão e En-
cantaria e Codó(Maranhão). Disponível em <http://repositorio.unb.br/bitstre-
am/10482/13742/1/2013_ MartinaAhlert.pdf>. Acesso em 3 jan 2017.
163
FERRETTI, Mundicarmo Maria Rocha. Formas sincréticas das religiões afro
americanas: o Terecô de Codó (MA). Cadernos de Pesquisa. São Luís, v. 14, n.
2, jul./dez. 2003, p. 95-108.
PRADO, Regina de Paula Santos. Todo ano tem: as festas na estrutura social
camponesa. São Luís: EDUFMA, 2007.
164
Cosmovisão em jogo:
a magia do futebol em Lourenço Marques
Mas, por que utilizar o conceito “cosmovisão” em vez de “religião”? Por tra-
166
tar de uma análise no diversificado continente africano, Oliva (2004) alerta que
devemos ficar atentos para elaborar uma abordagem explicativa das relações, dife-
renças e percepções daquilo que os europeus classificam como religião. No entan-
to, é “fundamental relativizar o universo africano e demonstrar como as estruturas
de explicação das relações sociais e de cosmovisões são diferentes dos ocidentais”
(OLIVA, 2004, p. 452). Dessa forma, os princípios ou fenômenos “religiosos” em
África não se tratam de questões singulares, não tendo assim as mesmas bases da
religião ocidental, “por isso, para os povos da região seria mais adequado usar o
termo cosmovisão e não religião” (OLIVA, 2004, p. 452).
Seguindo a sugestão de Dias (2013), é necessária uma reflexão sobre o
“eurocentrismo metodológico”, certo cuidado em categorizar com conceitos
ocidentais certas culturas, a exemplo:
167
da em uma teoria e método histórico, enfocando que esses fenômenos são, em
suma, imanentes ao ser humano, problematiza-se, pluraliza-se a categoria “reli-
gioso” como já explanamos até aqui. “Em suma, nesta modalidade de pesquisa
busca-se relacionar os fenômenos e suas relações entre as civilizações com um
etnocentrismo crítico” (AGNOLIN, 2013, p. 180-183).
Quanto à descrição operativa deste trabalho, que será exposta na última
parte, partiremos da afirmação de que as cosmovisões africanas no universo
esportivo são um fato histórico, dessa forma, os objetos são apresentados his-
toricizados dentro da análise, e sempre que possível exibindo uma comparação
sistemática entre os contextos históricos de formações e cosmovisões, logo, é
necessário historicizar. Em suma, esta abordagem tem um viés de ciência his-
tórica (AGNOLIN, 2013, p. 180-183). Antes de descrever o universo das cos-
movisões africanas nos clubes, no próximo tópico será exibido um panorama
da história sobre a introdução do futebol em Moçambique.
168
língua, a religião e a moral ocidentais e cristãs, bem como os costumes, tradições e
modos de vida europeus. Dividia-se a sociedade em estratos: civilizado, assimilado
e indígena. Embora prometesse a assimilação pela aculturação, o sistema acabava
permitindo que poucos deixassem de ser indígenas, e os assimilados quase nunca
eram tratados como cidadãos de primeira classe, instituindo-se uma segregação
(HERNANDEZ, 2005, p. 103-6).
A educação física é apropriada no campo educacional e militar por uma
questão de disciplinamento do corpo; é praticada pelo exército e depois introdu-
zida nas escolas. O exército implanta as mais variadas modalidades que variam
de desportos de combate até os desportos equestres. Diferente das modalidades
de educação física que foram introduzidas por meio de ações centralizadas nos
militares, os esportes foram introduzidos de maneira aberta e articulados inicial-
mente por organizações particulares, as quais promoveram realizações de inúme-
ras competições de modalidades de esportes diferenciados, como futebol, basque-
tebol, hóquei, handebol, voleibol, críquete, tênis, rúgbi, entre outros. Nas décadas
iniciais do século XX, ocorrerá um movimento de formação de clubes esportivos
(DOMINGOS, 2006, p. 405).
A prática esportiva pode ser vista como cenário significativo para observar
os conflitos religiosos, étnico-raciais e de classe, bem como as complexidades do
processo de colonização da região. Durante a primeira década do século XX, serão
formados os primeiros clubes esportivos na região1. Há relatos que apontam que
o futebol era praticado antes de 1904 em Moçambique e envolvia indivíduos de
origem ocidental, pois predominava a ideia de que os africanos e indígenas não
seriam capazes de desenvolverem práticas esportivas complexas, pois não teriam
cultura esportiva, estando suas ações de cunho esportivo ligadas estritamente a
questões naturais de sobrevivência. O indígena só seria capaz de praticar atividades
como caça, pesca, salto, corrida, escalada, levantamento, lançamento, luta e nata-
ção, sendo totalmente diferenciadas das práticas do europeu. Cabe salientar que
essas ideias se conectam ao racialismo do século XIX. (DOMINGOS, 2006, p.405).
Em 1934, foi institucionalizada a Associação de Futebol Africana (AFA), que
funcionava desde os anos 1920. A AFA gerenciava torneios de futebol cujas regras
1 São diversos os clubes fundados em Lourenço Marques na primeira metade do século XX:
Sporting Club de Lourenço Marques (1916), fundado como uma filial do Sporting Clube de
Portugal, tendo sido depois da independência rebatizado de Maxaquene; Grupo Desportivo
de Lourenço Marques (1921), Clube Ferroviário de Lourenço Marques (1924), Lourenço
Marques Athletic Club, Vasco da Gama, Sporting Club Azar, Grupo Desportivo João Al-
basini, Grupo Desportivo Beira-Mar, Grupo Desportivo Mahafil Islamo, Grupo Atlético
Luso-Africano, Grupo Internacional Africano, Grupo Desportivo Nova Aliança e Atlético
Club Mahometano.
169
eram basicamente aquelas europeias. As competições que envolviam os chama-
dos indígenas, nativos considerados não assimilados, eram realizadas no mesmo
período do campeonato oficial de Lourenço Marques, organizado pela Associação
de Futebol de Lourenço Marques (AFLM), filiada à federação portuguesa, e que
contava com a participação de clubes que hoje são tradicionais em Moçambique.
A composição dos times também demonstra que existia pouca participa-
ção de negros nas equipes. Os estudos demonstram que dentro dessa divisão de
organização dos desportos entre a AFA e a AFLM, existe uma abertura maior para
participação da população excluída na última. Criticava-se, através de jornais de
cunho nativista, a marginalização do jogador negro, como se fazia em O Brado
Africano, jornal moçambicano controlado por mulatos letrados críticos ao colo-
nialismo português (DOMINGOS, 2006, p. 406).
A expansão do futebol na região parece ter sido acompanhada e mesmo in-
centivada pelo crescimento da mídia. Entre fins do século XIX e começo do século
XX, surge uma imprensa pulsante em diversos países de África, a exemplo daque-
les da África Austral, como Angola, Moçambique e África do Sul (ZAMPARONI,
1998).
As associações africanas no meio desportivo poderiam servir para demons-
trar a capacidade do atleta “indígena”. Vários jornais defendiam, de diferentes for-
mas, a valorização do jogador nativo, negro. Através do futebol, poder-se-ia valo-
rizar não somente as habilidades e poder físico dos negros, da população nativa,
como também a capacidade mental desses sujeitos. Tudo indica que quando o fute-
bol era praticado apenas por brancos e assimilados era representado como esporte
mental e não apenas físico. Mas, a partir do momento em que os africanos negros
começam a dominar os campos, esse esporte passa a ser visto como um esporte
sobretudo ou somente corporal, retirando-se do corpo a faculdade da inteligência.
Um dos jornais mais críticos ao sistema colonial em Moçambique, O Bra-
do Africano, teve, como um de seus membros mais atuantes, o desportista Karel,
que “representou Portugal nas Olimpíadas de Paris, em 1924, e bacharelou-se em
Direito na Universidade de Coimbra, de onde retornou para Lourenço Marques,
em junho de 1931”, e “assumindo a presidência do Grémio Africano de Lourenço
Marques e a direção de O Brado Africano, onde expressava as mais ácidas críticas à
política racista vigente na Colônia” (ZAMPARONI, 1998, p. 403).
Embora por caminhos diferentes, nas sociedades que foram colonizadas
por portugueses, o futebol foi algumas vezes ensinado como forma de educar o
africano negro, como elemento similar à educação e ao cristianismo, que seria
capaz de civilizá-lo. O certo é que o futebol foi apropriado pelas massas africanas
170
e praticado à maneira delas, fazendo desse esporte, originalmente inserido para
“civilizar” os negros, um instrumento de resistência, de manifestação de identidade
e poder.
Nesse ínterim, cabe destacar aquilo que argumenta Terence Ranger
(1997), em trabalho clássico sobre “a invenção das tradições”, enfocando a Áfri-
ca colonial. Ranger caracteriza o período que vai do século XIX ao século XX
como sendo marcado pelo florescimento das tradições inventadas europeias
– educacionais, eclesiásticas, militares, republicanas e monárquicas, e mesmo
esportivas. Ao mesmo tempo, é o período de forte penetração europeia em
África. Segundo Ranger, esses dois processos estariam complexamente ligados.
Algumas tradições europeias (para garantir relações de subordinação e domi-
nação) teriam sido distribuídas em África, conformando-se em neotradições
que adquiriram um caráter peculiar que as distinguiu de suas versões imperiais
europeias e mesmo asiáticas. Diferentemente da Índia, por exemplo, muitas
partes da África tornaram-se áreas de colônias de povoamento de brancos. Os
colonizadores definiram-se como os senhores naturais de uma grande popu-
lação africana, teriam como base as tradições inventadas europeias, tanto para
definir quanto para justificar sua posição e também para fornecerem modelos
de subserviência nos quais, às vezes, incluíram os africanos. Assim, em África,
o aparelho composto pelas tradições escolares, profissionais e regimentais – e
esportivas – veio a exercer um papel de comando e controle muito maior do
que na própria Europa. Evidente que se as tradições inventadas importadas da
Europa forneceriam aos brancos modelos de “comando”, ao mesmo tempo, da-
riam a muitos africanos modelos de comportamento “modernos”, muitas vezes
usados para questionar a presença europeia em África.
Exposta a metodologia de trabalho e explicada a questão da introdução
do futebol em Moçambique, no próximo, e último tópico, serão descritas as
cosmovisões africanas e suas influências sobre o meio humano e esportivo.
171
organizavam seus campeonatos. Dá-se ênfase a essa observação para enfocar
que existiam dois “futebóis” em Lourenço Marques: o futebol do subúrbio e o
futebol da “Cidade de Cimento”, também conhecido como “Futebol da Baixa”,
“o último pertencente aos portugueses e com pouca aceitação de negros em
suas ligas”, como observa Domingos (2012).
É nesse ambiente do subúrbio que antigas práticas das cosmovisões afri-
canas serão impregnadas dentro desse novo universo, o universo colonial e es-
portivo, serão entrelaçadas ao ambiente dos clubes e das pessoas como forma
de sobrevivência e como forma competitiva no subúrbio. Essas práticas, aos
poucos, irão ganhar o mundo esportivo em geral, inclusive adentrando nos
clubes da “cidade de cimento”, tudo isso resultado dos processos de introdução
do jogador negro do subúrbio nos “Clubes da Baixa”, mostrando que o talento
era uma das formas de obter mobilidade social, a outra seria a assimilação.
Ao nos debruçarmos sobre a bibliografia que aborda o tema, Domingos
(2012) observa que os jornais metropolitanos por volta de 1966 “alegavam” que
o trabalho de treinadores estava sendo “atrapalhado” por aquilo que os portu-
gueses chamavam de “macumba”, “magia negra”, “voodoo”, que eram exerci-
dos pelos ditos “doutores da macumba”, que, segundo as crenças locais, teriam
influências sobre os corpos dos jogadores e, claro, sobre o jogo de futebol em
si. Os periódicos metropolitanos apontavam a proliferação do “cuche-cuche”.
Uma nota publicada por O Brado Africano, do mesmo ano de 1966, rebate as
falas do jornal metropolitano e define racionalmente esses rituais (DOMIN-
GOS, 2012, p. 202-203).
Primeiro, não é “cuche-cuche”, como diziam os portugueses, mas sim
“cuxo-cuxo”. Cuxo-cuxo era um ritual executado por um “cuscuxeiro”, aquele
que lançava das mãos ossos e outros adereços para fazer adivinhações, “uma
prática bem comum entre os povos bantus do Sul de Moçambique”, uma práti-
ca sincrética, que une elementos daquilo que no Brasil se chama de macumba,
aquela de origem africana que une elementos do catolicismo e espiritismo, o
“cuscuxeiro” também exercia funções de curandeiro, dito na região como fei-
ticeiro. Logo, o “cuscuxeiro” é aquele que faz, lança, joga um “cuxo-cuxo”, para
nós brasileiros ele seria aquele que faz um “trabalho” para manipular a reali-
dade. O termo “cuxo-cuxo” deriva de um sistema “onomatopaica” que imita o
barulho dos ossos e dos outros objetos que sacodem dentro das mãos do “cus-
cuxeiro”, fazendo um barulho repetitivo que derivou e veio a tornar-se o termo
“cuxo-cuxo” (DOMINGOS, 2012, p. 204).
Refletindo acerca da utilização e compreensão da feitiçaria enquanto
172
elemento constitutivo da cosmologia dos povos oriundos de Moçambique, a
antropóloga moçambicana Maria Paula G. Meneses, em seu artigo intitulado:
“Corpos de Violência, Linguagens de Resistência: As Complexas Teias de Conhe-
cimentos no Moçambique Contemporâneo”, que se encontra na coletânea “Epis-
temologias do Sul”, organizada pela própria autora em conjunto com o teórico
português Boaventura de Sousa Santos, denotam-se os múltiplos sentidos que
essa prática adquire no universo sociocultural desses povos. Utilizando-se a
periodização clássica do campo historiográfico moçambicano, qual seja, levan-
do-se em consideração o auge do período colonial, momento em que as prá-
ticas ligadas ao ethos tradicional dos povos moçambicanos foram duramente
rechaçadas pelo aparato português, a autora apresenta os usos e costumes da
prática da feitiçaria como elemento a ser combatido pela intelligentsia colonial
e consequentemente como ponto de efetivação das políticas assimilacionistas.
Entretanto, não somente no período colonial, mas também no imedia-
to pós-independência, as práticas de feitiçaria, bem como todas as atividades
ligadas ao conhecimento tradicionalista desses grupos étnicos afro-moçambi-
canos, seriam vistas como uma espécie de atraso, o cerne da questão é que em
ambos os períodos a racionalidade cartesiana sobrepunha-se à lógica de mun-
do autóctone. Desse modo, a feitiçaria “transformou-se no símbolo do mundo
selvagem, numa prática a ser abolida com a introdução de uma racionalidade
moderna” (MENESES, 2010, p.177). Urge matizar, a esta altura, que tal dis-
tanciamento por parte da “racionalidade moderna” em detrimento da tradição
segue o modelo interpretativo descrito por Achille Mbembe (2001), qual seja,
a compreensão do eu (self) africano como uma construção filosófica-ocidental,
que destinou seus diferentes grupos e suas práticas culturais ao opaco mundo
em que a história os tem confinado. Ontologicamente, o ser africano foi impe-
dido de determinar sua própria subjetividade, sua consciência e sua forma de
estar no mundo.
Para além dos usos e atribuições da feitiçaria, comumente compreendida
a partir do viés espiritual – religioso – sobrenatural, outra dimensão nos é apre-
sentada no âmbito cultural e social africano, o da feitiçaria enquanto artefato
político, gerador de solidariedade ou de conflito nessas sociedades autóctones.
Como salienta Maria Paula Meneses, ainda são insólitas as pesquisas no campo
das Ciências Humanas que tratam de maneira pormenorizada das práticas tra-
dicionais dos povos de Moçambique, enquanto elemento político: “A dimensão
mágica da política em África é, no entanto, frequentemente ignorada por mui-
tos estudos políticos e históricos” (MENESES, 2010, p. 178).
173
Para a autora supracitada, a dimensão mágica da política, todavia, per-
passa diferentes agentes nas sociedades africanas, ora confundindo-se com o
público e o privado e, ainda, sem sombra de dúvidas, reverberando nas identi-
dades sociais desses mesmos grupos. A feitiçaria, dentre outras práticas cultu-
rais dos povos do continente, é constantemente ressignificada, mobilizada em
certos momentos como símbolo de atraso ou como afirmação de uma identida-
de, deve teoricamente ser englobada em um contexto de conflito, nos discursos
de poder que se pretende ganhar o estatuto hegemônico.
As tensões produzidas pela dicotomia quase maniqueísta que colocam o
passado e o presente, ou modernidade versus tradição, como antagônicos, têm
nas práticas socioculturais africanas sua teia de complexidades. Sendo assim,
a feitiçaria, a magia e bruxaria, ao longo da história, receberam conotações e
transferências de sentido do mundo ocidental, quando na verdade possuíam
atribuições próprias para os povos do continente africano. Meneses (2010)
acentua o debate da feitiçaria enquanto estrutura de poder que orienta e or-
ganiza o universo social de diversos povos de África, de um modo geral, e de
Moçambique, em particular. A história das práticas sociais tidas como tradicio-
nais em África tem uma realidade que é anterior à invasão europeia na região,
seja no começo da exploração do continente, seja na moderna colonização que
se estabeleceu com a partilha e perda de soberania local. Assim, para com-
preender categorias e conceitos do universo cultural africano, é sumariamente
importante ater-se às continuidades e rupturas que refletem sua ordem política
e social.
O discurso científico, o modo cartesiano de organizar as sociedades co-
loniais, é uma faceta apontada por Meneses (2010). Para a autora, a relação de
alteridade proporcionada pelo domínio europeu na região não conseguiu de
modo eficiente equacionar, tampouco eliminar a persistência de práticas tradi-
cionais dos povos africanos. O modo de vida europeu, sobretudo característico
do modelo de colonização portuguesa, tentou, via de regra, transformar o ser
africano em uma caricatura idealizada.
Em um momento de afirmação dos mais variados campos de conheci-
mento, o boom científico notabilizou-se por acompanhar e balizar os proce-
dimentos administrativos coloniais. As diversas ciências procuraram dar um
sentido racional à colonização europeia em África. Nesse caso, práticas regula-
doras e produtoras de sentido para os grupos étnicos moçambicanos, a exem-
plo da feitiçaria, foram relegadas a formas simples e até mesmo inferiores de
conceber o mundo. Esclarece a autora que: “Esta negação da diversidade das
174
formas de perceber e explicar o mundo é um elemento constitutivo e constante
do colonialismo” (MENESES, 2010, p. 181).
A feitiçaria, enquanto elemento do universo cultural africano, por vezes,
é retratada como um aspecto negativo da falta de civilização de grupos etnocul-
turais observados sob a égide positivista de sociedades menos complexas, em
que a divisão do trabalho social não é organizada segundo a sociedade de clas-
ses. Dessa forma, a natureza mágico-religiosa das manifestações tradicionais
africanas não é compreendida como fazendo parte de uma estrutura comple-
xa socialmente organizada, presente desde os tempos imemoriais (MENESES,
2010).
Traçando um paralelo com as práticas de feitiçaria na contemporanei-
dade moçambicana, Meneses (2010) aponta que perdura viva na memória so-
cial dos grupos afro-moçambicanos, seja no contexto rural seja no urbano, a
presença de elementos da tradição que permeiam o imaginário desses grupos.
É muito comum no continente africano, segundo a autora, o entendimento de
que acontecimentos fortuitos da vida humana, que seriam avaliados do ponto
de vista cartesiano-ocidental, a exemplo de doenças, morte, conflitos, desastres,
crises econômicas, serem obras de feitiçaria. Gerando, assim, novas remodela-
gens e designações para a noção de feitiçaria como parte integrante da identi-
dade étnica desses grupos.
De acordo com Maria Paula Meneses, somente um estudo criterioso,
despido de preconceito na hierarquia de saberes, pode levar ao conhecimento
dos significados da feitiçaria enquanto elemento da história contemporânea de
Moçambique, capaz de apresentar um bom exemplo de “conflitos epistêmicos,
que envolvem a manipulação de múltiplos saberes” (MENESES, 2010, p. 183).
Fincado nesse entendimento que as pesquisas antropológicas, sociológicas e de
ciência política deveriam estar amparadas no reconhecimento dessas práticas
tradicionais, buscando sua arqueologia epistemológica na historicidade dessas
ações. Diga-se de passagem, novas práticas se revestem e perduram com traços
antigos são comumente retroprojetadas em elementos históricos que dão con-
tinuidade e representam uma dimensão do mundo social.
Lembrando que aqui abordamos os fatores sociais e históricos que essas
práticas proporcionam. Dessa forma, o “cuxo-cuxo” afetava a crença das pes-
soas, elas acreditavam que esse ritual poderia influenciar não somente a mente,
mas também o corpo, podendo ser “usado para ferir, prejudicar, vencer” o opo-
nente, como Lourenço Marques vive um ambiente esportivo, o “cuxo-cuxo” cai
bem a essa configuração social. Enquanto muitos observam esses fenômenos
175
como algo sobrenatural, na verdade, o “cuxo-cuxo”, para esse momento da his-
tória de Lourenço Marques, seria um elemento motivador, semelhante a uma
palestra feita por um capitão do exército antes de entrar no campo de combate
ou mesmo das orações e preces que normalmente alguns jogadores até hoje em
diversos cenários do futebol mundial fazem, como superstições, usar a mesma
roupa, imagem de santos e outros ritos supersticiosos semelhantes aos de Lou-
renço Marques no período colonial, isso dava ao atleta mais esperança e um
“acréscimo de força” (DOMINGOS, 2012, p. 204).
Através de uma análise social, afirma-se que o “cuscuxeiro” era visto
como algo ultrapassado para essa nova sociedade moçambicana, agora com
médicos, aparelhos que podem prever o tempo e substituir o que antes o “cus-
cuxeiro” fazia. Dessa forma, o futebol é algo primordial para o retorno dessa
prática e do praticante que exerce a função. Trata-se de uma adaptação à so-
ciedade capitalista, o “cuscuxeiro” vira profissão. Domingos (2012) aponta que
esse tipo de crença era mal vista pela administração portuguesa, pois, claro,
ofendia o trabalho das instituições católicas, não fazia parte dos processos de
assimilação, portanto, era extremamente negativada pela política colonial, mas
impossível de ser controlada, junta ao futebol consistia em uma ação de resis-
tência ao colonialismo.
No ambiente esportivo, o “cuxo-cuxo”, na maioria das vezes, era conheci-
do principalmente no subúrbio como “vovô”, o termo era designado para clas-
sificar tanto a prática quanto para classificar quem a exercia, portanto, alguém
pode mandar um “vovô” fazer um “vovô” contra você, algo comum no meio
esportivo quando nos deparamos com uma série de entrevistas coletadas por
pesquisadores. “Vovô”, na verdade, é um termo que sofre influência da língua
portuguesa, Domingos (2012) aponta que na boca dos mais velhos atletas o
termo soava como “vuvu”, palavra que nas tradições daquela região em Áfri-
ca designa “espírito dos mortos”, a exemplo, na Tanzânia utilizam a expressão
“juju”, palavra que tem conotação referente a “feitiço” em competições de dan-
ça, podendo observar sua derivação em outras línguas, a exemplo do crioulo
francês “joujou”, que designa “brinquedo”, ornamentos e amuletos para pro-
teção. Outro termo variado estaria na sugestão de palavras do Corão “yajuju”
e “majuju”, palavras que fazem referências ao Diabo e aos espíritos malignos,
outras referências em Moçambique, na língua ronga o termo faz referência aos
tambores pequenos. O certo é que o termo “vuvu” em Lourenço Marques so-
freu um aportuguesamento (DOMINGOS, 2012, p. 206-207).
Os clubes do subúrbio consultavam os “vovôs”, quase sempre um homem
176
mais velho, para exercerem magias que influenciariam no jogo e na mente dos
jogadores, levavam o cuxo-cuxo para os clubes, usando de magia na bola, nas
equipagens, nas traves e em diversos lugares onde seriam realizadas as partidas.
Nessa lógica, existiriam na mente das pessoas duas formas de jogo, um jogo
físico e sobrenatural, na fala de um atleta antes do jogo: “Temos vovô e vamos
usá-lo” (DOMINGOS, 2012, p. 207).
Além da preparação física, era necessária, dentro desse contexto, uma
preparação espiritual (mental), esta segunda ficaria sob a responsabilidade do
“vovô”, que combatia o “vovô” adversário e organizava o jogo espiritual ima-
ginário do clube ao qual servia. Basicamente, para estar preparado significava
obedecer às dicas do “vovô” antes, durante ou depois das partidas. Geralmen-
te, o “vovô” acendia e queimava certas coisas que só ele sabia e os jogadores
deveriam inalar, bebiam algo feito pelo vovô, às vezes iam ao mar tomar ba-
nho ou enterrar algo na madrugada. Nos relatos, podemos observar inúmeras
“simpatias” como pôr sal em alguns lugares, como nas botas, andar com certas
moedas, não apertar a mão do adversário, observar o voo de certos pássaros
para fazer previsões, tudo isso para não ser atingido pelo “vovô” do adversário.
Dessa forma, a vitória do time dependia do esforço dos jogadores e dos esforços
do “vovô” (DOMINGOS, 2012, p. 209).
Cada clube contratava o “vovô” mais qualificado, aquele que dava mais
resultados, o mais incrível é que a filiação religiosa de todos os envolvidos com
o “cuxo-cuxo” não tinha nada a ver com suas religiões, o “vovô” e a religião
atuavam em universos distintos, uma separação entre o sagrado e o profano, a
religião um fenômeno da vida do cotidiano, o “vovô” uma prática, um conhe-
cimento do mato, como diziam nessa sociedade, dessa forma, o “vovô” seria
algo intrínseco ao futebol. O “vovô” era tão necessário que, se um jogador não
consultasse um curandeiro antes das partidas, ele acreditava que não iria se sair
bem na partida, ou que poderia lhe acontecer algo pior, era uma obsessão, tor-
nando-se um habitus da vida esportiva, sem ele “o jogador não consegue jogar”
(DOMINGOS, 2012, p. 210).
Aos poucos, ocorria um processo de racionalização da crença no jogo,
tudo que o “vovô” falava era obedecido, caso contrário, perder-se-ia o jogo.
Um episódio, digamos assim hilário, em uma narrativa conta-se que o vovô
ao olhar a entrada de um estádio haveria notado a armadilha de outro “vovô”,
indicou que os atletas não passassem pela porta do estádio, então? “Que pulem
os muros”, e assim foi a entrada do clube treinado por um ex-atleta de Portugal
chamado Hilário. Os serviços do curandeiro com as equipes e com os instru-
177
mentos de elaboração do jogo deveriam ser obedecidos com rigor, pois, no fim,
a culpa sempre cairia nos atletas, a palavra do “vovô” estava acima deles, por
exemplo, “vocês não fizeram como falei” (DOMINGOS, 2012, p. 2013-2014).
De acordo com Domingos (2012), ocorre uma profissionalização dos
“vovôs”, afirma-se que a AFA gastava inúmeras quantias para a preparação de
seus clubes. Prova que essa ação de influência sobre os jogadores não se trata
de um fenômeno sobrenatural e sim de influência cultural, podemos observar
alguns dirigentes ganhando partidas afirmando que haviam contatado “vovô”
sem terem feito isso, causando uma influência mental pela qual obteriam a vi-
tória. Em outros casos, quando os dirigentes não mentiam, falavam que não
tinham feito “nada” antes do jogo, os relatos afirmam que os atletas entravam
em campo derrotados. Os treinadores que não aceitavam isso, a solução era não
treinar em África.
O “vovô” era visto como uma forma de proteção e direito comunitário.
Proteção, pois guardava os atletas e suas traves, evitando que a bola entrasse;
direito comunitário, pois é um elemento de resistência e sobrevivência de uma
sociedade violentada pela política colonial. Todos os membros da comunidade,
independente de fatores como classe, religião, ou outros fatores, todos recor-
riam ao “vovô”.
O “vovô” é como símbolo do direito comunitário e de resistência, foi
capaz de abalar um dos maiores símbolos do capitalismo português, o relógio.
Salienta Domingos (2012) que em uma partida do derby Muçulmano, Mahafil
Isslamo e Atlético Mahometano, um “vovô” havia conseguido barrar um jogo
manipulando o tempo, manipulando o relógio. O Atlético se dirigia para o es-
tádio para disputar a partida, quando o goleiro da equipe havia percebido que
tinha esquecido sua camisa, ao alertar a situação, o dirigente do clube olha o
relógio e afirma “que ainda há muito tempo”, voltaram para buscar a dita camisa
do goleiro, quando retornam ao estádio, o dirigente observa que seu relógio
havia parado, perderam o jogo por “WO”, o relato termina com a observação
que o relógio de todos os dirigentes havia parado. Tudo que aconteceu ficou na
responsabilidade do “vovô” do time adversário (DOMINGOS, 2012, p. 2018).
Esses homens eram vistos como heróis da comunidade, em grande parte
o mérito das vitórias ficava no crédito do “vovô”, aos poucos, com a introdução
do jogador negro suburbano no espaço urbano, essa prática irá invadir a “ci-
dade de cimento” e seus clubes, proporcionando ao futebol do grande centro
urbano os mesmos fatores mágicos do subúrbio. Depois de chegar à “baixa”,
o “vovô” passa ao contato com os europeus, é transportado para a metrópole
178
e para outras regiões do mundo, manifestado sobre novas configurações em
uma diversidade de regiões do mundo, como hoje em alguns clubes no Brasil,
principalmente no subúrbio. Sobre as migrações para os centros urbanos e suas
influências sobre o meio, Cabaço (2007) descreve:
Referências
______. As faces de John Dube: memória, história e nação na África do Sul. 2012.
205f. Tese (Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos) – Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2012. 2012b.
179
______. Identidades, Memórias e Representações em torno de um espetáculo es-
portivo glocal. Salvador, Pós-Afro, 2010. (Mimeo).
DIAS, João Ferreira, A Magia dos Negros ankofa. Revista de História da África
e de Estudos da Diáspora Africana Ano VI, Nº XI, Agosto/2013.
180
ra didática. Estudos Afro-asiáticos, v. 25 n. 3, 2003.
181
A festa do mastro como um fato social total:
uma etnografia da festa de levantamento do
mastro de São Bernardo1
184
que trabalhar o distanciamento, levando a considerar como não naturais todo
um conjunto de atos, condutas e representações que partilhava com os demais
devotos que participam da Festa. Não se trata em momento algum de um aban-
dono do vínculo religioso, mas tão somente de tentar adotar uma perspectiva
de longe - e com isso extrair as vantagens de uma observação eivada de pré-no-
ções, julgamentos de valor e raciocínios explicativos do senso comum.
Somadas às análises de Malinowski (1976), quando o autor destaca que
o etnógrafo precisa cavar o seu espaço e posicionar-se, ao mesmo tempo, ele
chama atenção para o perigo que as ideias pré-concebidas podem causar em
uma pesquisa, sendo necessário um afastamento das pré-noções. Foi com esse
espírito que acompanhei o ritual desde a escolha e derrubada da árvore, pas-
sando pela puxada e finalizando com o fincamento2 dela, quando começa efeti-
vamente o tempo do festejo.
Os dados foram produzidos por observações, pesquisa bibliográfica, et-
nográfica e entrevistas realizadas com moradores mais antigos, organizadores e
participantes dessa festividade. Diferentemente do estudo feito anteriormente
sobre as transformações, continuidades e rupturas da festa do padroeiro São
Bernardo, com o aporte teórico de estudiosos de campos disciplinares diversos,
pretendo, pois, discorrer sobre as simbologias presentes na Festa de Levanta-
mento do Mastro, essa rica manifestação de fé que, embora esteja mais ligada
ao laicato, não deixa de assumir dimensões religiosas e culturais importantes.
Se, de início, estudos realizados sobre o festejo de São Bernardo demar-
cavam a existência de duas festas muito distintas, o aprofundamento do estudo
sobre o Levantamento do Mastro mostrou que esse evento constitui uma etapa
inicial, prévia e significativa para que a parte mais sacral do evento ocorra.
185
paração para o ritual e do seu transporte em direção à igreja matriz, onde é
fincada, dando início ao festejo de São Bernardo. Algo que poderia parecer a
um observador externo como simplório, a princípio, ou destituído de maior
importância. Um olhar mais de perto permite ver, no entanto, que esse ritual
aparentemente banal constitui um daqueles eventos a partir do qual se pode ver
a complexa dinâmica de permanências e transformações culturais nos modos
de fazer e ser de uma coletividade dada.
A Festa de Levantamento do Mastro começa trinta dias antes da festa
do padroeiro de São Bernardo e tem sua partida na escolha da árvore que será
derrubada e transformada em mastro: um tronco de árvore longo, sem galhos
que, geralmente, mede de setenta e cinco a oitenta palmos. Assim começa todo
um conjunto de rituais e peregrinações. De início, na casa do segundo mor-
domo3 do mastro se reúnem os organizadores e derrubadores da árvore que,
juntos, seguem para o local onde se dá a retirada da árvore (povoado Ladeira,
localizado em um município vizinho - Santa Quitéria/MA). Sua busca constitui
um ritual predominantemente masculino. Em meio a uma vereda sinuosa com
várzeas e olhos d’água, os homens selecionam uma árvore (pindaíba ou bacuri).
Todo o ritual de derrubada é acompanhado por crianças e adolescentes, a pró-
pria procura e corte da árvore lembra a derrubada do mato para o qual muitos
homens se associam e cuja eficácia consiste na produção de sentido e está na
base da antropologia de Marcel Mauss.
Após a derrubada, o mastro é carregado para o quintal do Sr. Adécio
(Decim), local onde é descascado e amarrado com arame farpado para evitar
rachaduras durante os trinta dias em que ficará exposto ao sol secando, aguar-
dando o dia nove de agosto, quando ocorre a puxada. Quando chega o dia nove,
o quintal torna-se espaço de sociabilidade, preservação dos traços da cultura
dos antepassados, atraindo devotos, promesseiros e brincantes. Espaço onde
os devotos se movimentam e praticam sua religiosidade. É nesse local onde
3 Os mordomos do mastro são lavradores, aposentados e católicos, caboclos nascidos e
criados em São Bernardo. São eles os principais responsáveis pela preparação e realização
da festa, uma espécie de representantes provisórios do padroeiro de São Bernardo. Os que
conduzem o corte, a puxada e o fincamento da árvore e, também, controlam a queima de
fogos. São eles os responsáveis por parte dos gastos da festa, como a comida e os foguetes,
bem como por receberem as pessoas da festa e visitantes em suas casas, onde são oferecidas
comida e bebida. Durante a puxada do mastro, são eles os homenageados em diferentes si-
tuações, tornando-se referências de respeito e amizade durante e após a comemoração. Por
essa razão, o momento em que simbolicamente marca esses atores é também o momento
em que a sociedade local estabelece os termos rituais da continuidade da festa, a passagem
de um ano para o outro. São eles que conduzem em procissão a Bandeira do padroeiro São
Bernardo e a colocam no mastro para o hasteamento.
186
muitos guardam na memória os que já fizeram a festa e, por quantas vezes, é
um momento de grande significado coletivo quando os participantes dançam
velhas músicas e criam coletivamente novos passos, quando se alegram com as
bebidas mas, também, relembram, com tristeza, os ausentes.
É nesse quintal onde as mulheres preparam a comida para aqueles que
vêm passar o dia todo na Festa. Mas, os organizadores precisam redobrar os
cuidados para evitar que alguns mais espertos entrem na fila para comerem
duas ou mais vezes e desperdiçarem comida. A comida é preparada em várias
casas da localidade, pessoas que recebem parentes e amigos oferecendo galinha
caipira, pato e até porco assado como cardápio – geralmente, animais criados
nos próprios quintais e para o próprio consumo.
187
É um dos momentos mágicos da Festa, as palavras do mordomo apre-
sentam um poder mágico. Sua linguagem é mágica e torna-se o principal meio
de comunicação entre os participantes. Terminada a solenidade, os caboclos4 se
reúnem nos arredores da árvore levantando-a do chão e dando gritos de “Viva
São Bernardo”. O Juiz do mastro dá a voz de comando para a partida em direção
à igreja matriz, é ele quem se destaca por ser possuidor de um saber especial.
Em Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande (2005), ao analisar as
práticas e crenças dos povos azande, Evans Pritchard observou que existem
membros que também se destacam por serem possuidores de um saber es-
pecial, os adivinhos. Para o autor, os adivinhos denotam um comportamento
peculiar, sendo mais curiosos e atentos à natureza humana. Evans Pritchard
ressalta que aos adivinhos competia a função de exercer uma atividade divina-
tória da bruxaria e que ela não apenas oferecia uma possibilidade de explicar
quaisquer infortúnios que atingissem as pessoas, como também era capaz de
fornecer os mecanismos necessários para combater e curar suas vítimas. Os
adivinhos se apresentavam como portadores de um saber raro, prestigiado. Tais
saberes só se tornavam possíveis e conectados por meio de um acúmulo de
esforços pessoais.
A simbologia presente na imaginação dos participantes associa a figura
do juiz do mastro com a figura do rei, mestre, autoridade, imagem enquanto
soberano mago e guerreiro. Na Festa, essa figura se assemelha a do bom sobera-
no, aquele que exerce sua autoridade sem excesso, ao contrário do que mostrou
Evans Pritchard quando disse que, apesar dos adivinhos possuírem um signi-
ficado fundamental devido ao papel de proteção que exerciam contra a bru-
xaria, eram também seres arrogantes e intimidadores. Essa noção conecta-se,
portanto, à ideia de que nos diferentes modos de vida de uma dada sociedade
relacionar-se está muito ligado à incorporação ou captação de valores interio-
res e exteriores ao corpo social.
Vale dizer que, durante a puxada do mastro, ao juiz cabe a tríplice fun-
ção: jurídico-política (o juiz), religiosa (o mago) e militar (o guerreiro). Na
peregrinação, simultaneamente, o juiz desempenha as três funções: ora é quem
julga - no momento em que dita as regras cuja eficácia e disposição devem ser
seguidas pelos que irão participar do cortejo. Ora é quem encanta, no momen-
to em que dá a voz de comando e agradece ao padroeiro pelas bênçãos concebi-
4 No Maranhão, especialmente no território do Baixo Parnaíba, a palavra caboclo era – e
ainda é – usada para o habitante do interior independentemente de sua origem étnica. Se
vive de roça é caboclo. Historicamente, essa figura deriva da mescla de diversas ascendên-
cias (indígena, negra, branca, mestiça).
188
das durante o ano e pela oportunidade de reviver aquele momento, como num
reflexo no espelho que transforma a atmosfera e encanta os participantes. O
sentido do espelho reforça a lembrança de alguém que não mais se faz presente
na festa, de pessoas que marcaram, seja organizando ou participando, seja por
uma frase, um discurso, uma mensagem; seja por um conselho, uma briga ou
qualquer outra coisa. Ora é quem luta, no momento em que transita entre os
participantes controlando e organizando para não haver contendas.
A Festa é provida de regras que devem ser respeitadas como forma de
expressar o que está sendo festejado. As regras são pensadas como sentido de
regulação presente nas ideias de Elinor Ostrom (2005), quando destaca quais as
regras que orientam e fazem parte de nossas interações e ações cotidianas. Para
a autora, as regras podem ser pensadas como um conjunto de instruções para
criar uma situação de ação num ambiente particular. Tudo o que o indivíduo
enfrenta em qualquer situação, seja ela de caráter particular ou não, ele é afeta-
do pelas regras ou pela ausência delas, que estruturam a situação.
A autora ainda pontua que regras são criadas por humanos para estru-
turar uma situação e que, em determinadas situações, elas não necessitam ser
escritas nem resultar de procedimentos formais legais. Regras institucionais
muitas vezes são conscientemente criadas pelos indivíduos para mudar a estru-
tura de situações repetitivas que eles mesmos enfrentam. Nesse caso, as funções
desempenhadas pelo juiz do mastro se inscrevem como uma tomada em que as
regras não são autoformuláveis, determináveis ou autoimpositivas, são agentes
humanos que lhes formulam, que as aplicam em situações particulares e que
desempenham conscientemente com elas uma linguagem humana. É a partir
dessas funções que podemos entender a representação de papéis exercidos pelo
juiz do mastro e, também, como sendo ele símbolo do arquétipo, do herói que
representa a sabedoria e o conhecimento em determinadas circunstâncias de
espaço e tempo, e como as regras se aplicam em determinadas situações de
ação.
189
se observa no ritual da Festa. O mastro é a chave para a reparação de possíveis
conflitos que venham a ocorrer.
Durante a peregrinação, observam-se diferentes momentos e tipos de
promessas que são acionadas pelos fiéis, seja para pedir uma graça ou agra-
decer os votos alcançados, os quais se relacionam através de um acordo entre
o devoto e a divindade. Também durante o cortejo um dos aspectos que atrai
a atenção dos participantes e que não deixa de ser apreciado é a performance
das mulheres que beijam o mastro pedindo bênçãos para arrumarem um ca-
samento, ou quando as velhinhas choram e dançam ao som dos instrumentos.
Essas mulheres encenam sua fé, seja pela devoção ou pelo desejo de que o santo
padroeiro interceda por seus pedidos e que eles sejam respondidos. Acreditar
e colocar seus desejos nas mãos de um ser divino adquirem uma tonalidade
particular que ressignifica o cotidiano, o pueril, a normalidade.
Em meio aos frevos, marchinhas e dobrados que são tocados, acontecem
as tradicionais paradas na casa de devotos que fazem promessas ao santo e
oferecem doações. A primeira parada constitui-se na doação da cachaça, se-
guida pelas laranjas e pelos fritos. Com o mastro, os homens entram na casa
dos devotos previamente e tradicionalmente escolhidos: o primeiro mordomo
encarna a sacralização do espaço no interior da casa, no âmbito do privado; o
segundo faz os agradecimentos aos donos da casa. O terceiro recebe as doações,
e junto com os demais devotos tocam músicas, espocam foguetes e depois saem
dando gritos de “Viva São Bernardo”. Esse ritual acontece em todas as paradas.
Todos esses gestos são intermediados por uma divindade envolvendo a
reciprocidade, um constante dar, receber e retribuir que nos retorna às ideias de
Marcel Mauss (2003), quando analisa as manifestações do Kula - troca de cola-
res e braceletes entre os trobriandeses e do potlatch, ritual de oferta de bens e de
redistribuição da riqueza entre tribos indígenas. O papel da dádiva, como nos
ensina Mauss, é uma regra moral regida por um princípio de honra e recipro-
cidade, uma dimensão simbólica que se impõe sobre a sociedade. No momento
da doação não é apenas o bem doado que é entregue, mas toda uma carga es-
piritual que liga os indivíduos ou as divindades através do bem doado. A graça
obtida é retribuída ao Santo que a concedeu através de uma dádiva.
Durante o percurso, ao som de instrumentos musicais como a sanfona,
a zabumba e o triângulo, o povo se diverte acompanhando o cortejo. Além
dos foguetes sem cessar, o cortejo é iluminado pelas velas, lanternas e luzes de
carros e motos que acompanham a puxada. É comum organizarem durante a
peregrinação barracas com vendas de água, refrigerantes, bebidas alcoólicas e
190
comidas típicas. O sentido é de confraternização e alegria durante o cumpri-
mento de um longo ciclo ritualístico em devoção a São Bernardo. Para os ho-
mens que carregam o mastro são oferecidas doses de cachaça, tudo controlado
pelos mordomos. Atrás do cortejo, vem sempre um caminhão de apoio para
apanhar os que pelo caminho ficam embriagados.
Durante o cortejo, o primeiro mordomo, Francisco Rosa de Sousa (Chico
Rosa), desloca-se o tempo todo, controlando com restrições o jogo sexual e
certificando-se que tudo está ocorrendo bem para que os homens preservem
as relações de respeito e não tomem “gosto” com as moças durante o período
de peregrinação, além de “puxar” as músicas junto aos cabeças brancas5. Infligir
ou quebrar uma regra é uma opção que está sempre disponível para os partici-
pantes durante o cortejo, mas, associado à quebra de regras, há o risco de eles
serem monitorados e sancionados. Obedecer ou não obedecer às regras implica
consequências para quem não as cumpre (OSTROM, 2005). O temor parece
também como outra face da devoção. Cumprir com as regras é uma forma de
demonstrar o comprometimento com o santo, é a contrapartida absolutamente
necessária para que o processo de troca possa efetivar-se.
Se no passado o ritual contava com a presença de algumas senhoras, atu-
almente percebe-se um cortejo cheio de jovens moças, incluindo as filhas dos
mordomos e organizadores mais ativos. O segundo mordomo, Antônio Pereira
da Costa (Toinho), geralmente é responsável por distribuir e controlar as doses
de cachaça entre os homens que carregam o mastro. O terceiro mordomo, Fran-
cisco Moreno Silva (Sabido), fica responsável por fiscalizar e proteger as laterais
evitando brigas, além de ser um dos principais a puxar os gritos de Vivas.
Na chegada, meia noite do mesmo dia, na capela de São Sebastião, na
entrada da cidade, é montada outra festa para receber o mastro. Na ocasião, ca-
bem às mulheres do tambor de crioula a responsabilidade de alegrar o ambien-
te, oferecer boa música e divertir o povo. Quando o mastro chega, a multidão
abre caminho para que os homens o levem para dentro do santuário da capela
de São Sebastião. A capela, pequena para tanta gente, enche-se rapidamente, e
parte da comunidade assiste a celebração do lado de fora. O mastro é jogado
três vezes para cima com gritos de viva São Bernardo e, em seguida, é colocado
do lado de fora do santuário até o dia do fincamento. Ao final da noite, as pes-
soas ainda permanecem por um bom tempo nas imediações da capela. Agora é
hora da despedida, principalmente daqueles que vêm de “fora” por ocasião de
5 A bandinha de música dos “cabeças brancas” tem dez pessoas, todos homens, com mais de
cinquenta anos, aposentados, camponeses que trabalham no feitio de roças.
191
uma promessa ao padroeiro - especialmente para acompanhar esse primeiro
momento da Festa e que são impedidos, por motivos de trabalho, de continua-
rem, precisando retornar às suas atividades.
No dia seguinte, dez de agosto, na casa do segundo mordomo é ofere-
cido um almoço. Trata-se de um momento de confraternização das famílias,
de descontração, prosas e risos. É, sobretudo, um momento de pagamento de
promessa, pois é sempre oferta de uma família, a qual expressa uma dádiva.
Marcel Mauss já definia a dádiva de modo amplo, uma vez que ela inclui não
só presentes como também visitas, festas, comunhões, etc. A dádiva, segundo
o autor, está presente em todas as partes. Ela pode apresentar-se em sorrisos,
gentilezas, palavras, hospitalidades, presentes, serviços gratuitos, dentre outros.
São as mulheres da família (esposa e filhas) as encarregadas por prepa-
rarem o almoço, o que em si, na hora da preparação, recebe todo o cuidado. O
almoço é uma espécie de banquete oferecido aos participantes da Festa e à po-
pulação em geral, o alimento partilhado é, em todo ritual, uma forma simbólica
de manter as relações de solidariedade e reciprocidade. Esta última significan-
do um princípio moral (MAUSS, 2003). Segundo Mauss, recusar o alimento
equivale também à recusa da aliança e da comunhão.
Na Festa, momentos importantes parecem todos demarcados por formas
específicas de preparação, apresentação, distribuição e consumo de alimentos.
Ao entregar o alimento, recebe-se a luz que é revertida para o presenteador e
é esse ato que estabelece a ligação entre o indivíduo e a divindade, possibili-
tando a comunicação direta entre os dois. Os alimentos oferecidos e cobertos
de representatividades simbólicas são tratados como abençoados e capazes de
operarem curas. São Bernardo se revela não só como operador de milagres e
curas, mas também como o agente operador da dádiva. O santo se faz presente
na Festa e distribui bênçãos com a graça do que para ele se cozinha, oferece,
compartilha e consome. As graças passam pela comensalidade do que para ele
( e em seu louvor) se cozinha. Nesse sentido, os alimentos possuem aspectos
importantes no que diz respeito às materializações do sagrado.
O local quase sempre preferido para receber os devotos e brincantes é à
sombra de uma mangueira no quintal e, por isso, também precisa de atenção
especial, principalmente porque é lá que os homens tocam, cantam, comem e
espocam foguetes. Por volta das 16 horas da tarde, com a chegada dos devotos,
momento de comoção e alegria, os organizadores pegam o mastro e colocam
sobre ele o responsável por carregar a bandeira (que contém a imagem do santo
padroeiro). A evidência da noção de relações de gênero é novamente expressa,
192
sendo demarcada pelas categorias homem e mulher, em que o primeiro desem-
penha papel de destaque nessa etapa do ritual. Na ocasião da saída do mastro,
uma grande procissão toma conta da rua principal da cidade, dando início ao
cortejo até a igreja matriz.
Os participantes acompanham o carregamento do mastro tendo à frente
os dez componentes da bandinha de música cabeças brancas que animam a
multidão e seguem o cortejo de carregamento até a igreja, fazendo paradas e
tocando os instrumentos. Esses são os sinais anunciadores da chegada da en-
tidade que, com a sua presença, confere ao momento todo um peso de sacrali-
dade (PRADO, 2007).
Os fogueteiros também se encarregam de anunciar que o mastro está
chegando e os devotos preparam suas casas com flores e panos brancos para re-
ceberem as visitas. Os moradores limpam os quintais e enfeitam as casas, tudo
para receberem o mastro. A Festa modifica o cenário da cidade alterando a sua
rotina. No ritual de visita às casas, é possível observar diversas simbologias
que comportam interpretações variadas através do plano religioso. O mastro
representa o símbolo dominante e principal. Essa afirmação se torna represen-
tativa na medida em que o objeto em questão abrange significados múltiplos
e interconexos. Victor Turner (2008) enfatiza como símbolo de condensação
uma espécie de liberação de tensão emocional de forma tanto consciente quan-
to inconsciente, e essa descrição se faz notória quando os devotos visualizam a
chegada da romaria e de seu objeto principal.
É nesse local onde gestos e rituais divinos são reatualizados e cujo espaço
vai sacralizando-se durante o percurso, transformando o caos em cosmos. São
momentos tradicionais e devocionais que envolvem a religiosidade. O mastro
é o símbolo que liga o céu e a terra, fazendo a mediação entre os devotos cabo-
clos e o padroeiro São Bernardo. Esse é o seu principal significado, uma relação
entre os homens e o sagrado mediado pela natureza. Outra multidão espera nos
arredores da igreja matriz. Local que se torna espaço de peregrinação religiosa
e que circunscreve por excelência a sacralidade da Festa.
Quando chega à igreja, os sinos badalam. A igreja funciona como uma
ponte, uma porta de ligação do homem (ser terreno), ao cultuar um ser ce-
lestial, o mastro é também essa ponte e essa porta. Caberia mencionar, nesse
sentido, as observações de Mircea Eliade (1992, p. 19) quando, ao analisar as
relações entre o sagrado e o profano, tenta demonstrar que a porta, ao menos
num templo, não é tão somente uma passagem física, posto que está totalmen-
te imbuída de sentidos outros. Em suas palavras: “A porta que se abre para o
193
interior da igreja significa, de fato, uma solução de continuidade. O limiar que
separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos
de ser, profano e religioso”.
Após adentrá-la, o mastro é jogado três vezes para cima demarcando
a abertura de mais um ano do festejo. Em seguida, o pároco dá a benção em
louvor e saudação ao santo, cujo sermão e outros ritos são marcadamente para
afirmar que a Festa em homenagem ao padroeiro está começando. Além do
sermão, as músicas e a participação da comunidade reforçam a importância da
devoção. Após a benção dos fiéis, realizada pelo pároco e com todos os para-
mentos eclesiásticos, dá-se como que uma virada no ritual, posto que ele passa
a ser dominado pelo tempo eclesiástico.
Após, o mastro é levado para fora do Santuário, área comunal onde a
população campesina modifica o espaço que habita dando-lhe significados os
mais diversos, transformando-o num lugar especial como parte das crenças
dessas populações. Trata-se de um dos momentos-chave da festa: o mastro é
fincado no chão por mãos masculinas e começa a brincadeira. Homens sobem
no mastro para agarrar os prêmios que geralmente são galinhas e dinheiro.
Nessa hora, são jogados bolos, biscoitos, pipocas e bombons para as pessoas
que se encontram no local onde ele é fincado (praça da igreja matriz).
Há uma grande comoção no levantamento do mastro. Muitas pessoas fa-
zem questão de tocar no mastro, rezando enquanto seus corpos estão conecta-
dos aos objetos sagrados. Muitas pessoas fazem seus pedidos exatamente nesse
momento. Momento de efervescência em que muitas pessoas se emocionam.
Comunicam-se com o santo. Os pedidos de intercessão ao santo são realizados
em troca de uma entrega total, de corpo e alma.
Alguns apenas olham para a bandeira enquanto pedem ou prometem,
outros tocam o mastro com as mãos enquanto oram e pedem a intercessão
de São Bernardo. Dado esse caráter mágico que é atribuído ao momento do
levantamento do mastro (bem como a queima de fogos ao final), muitas pes-
soas se fazem presentes e pedem algo para o santo; outras estão ali apenas para
presenciar um momento de efervescência da comunidade sem o envolvimento
devocional. Nesse momento, sempre se fazem presentes as autoridades: o pa-
dre, o prefeito, vereadores, secretários, candidatos e outras pessoas ilustres da
comunidade.
Levantado, pois, o mastro assim permanecerá até o final do festejo, pas-
sando ainda de dois, três até quatro meses fincado, sendo, então, ritualmente
derrubado. Essa cerimônia é geralmente dirigida pelo segundo mordomo que,
194
na ocasião, torna-se uma espécie de leiloeiro, encarregado de lançar preço entre
os interessados (seja para fazer cadeira, mesa ou porta). Além disso, caso ma-
nifestem interesse, mordomos de cidades vizinhas podem pedir emprestado o
mastro para ser levado para outros festejos. Já que nessas cidades não existem
áreas com reservas de árvores propícias para a derrubada. O mordomo apanha
a bandeira e leva-a para sua casa. Caso seja leiloado e não doado, o dinhei-
ro contribui para o abatimento das despesas arcadas pelos mordomos da festa.
Mesmo porque a maioria dos gastos concernentes ao cerimonial de levanta-
mento (foguetes e comidas) ocorre por sua conta.
A utilização da árvore está ligada às antigas hierofanias vegetais, que
compõem um espaço simbólico, físico e imaginário. Mircea Eliade nos propõe
analisar como o sagrado se manifesta, isto é, as hierofanias, constituindo um
arquétipo simbólico no imaginário de tempo e cultura de um grupo. O autor
define hierofania como a manifestação do sagrado em que um objeto qualquer
se torna “outra coisa” sem deixar de ser ele mesmo, porque continua a fazer
parte do meio cósmico que o envolve. Uma pedra ou uma árvore, ambas, apa-
rentemente, não se distinguem de todas as demais. Logo, se reveladas sagradas,
deixam de fazer parte desse mundo como simples “coisas ou objetos” e passam
a fazer parte da sacralidade cósmica. E, no todo, o cosmo pode tornar-se uma
hierofania (ELIADE, 1992).
A isso podemos associar a árvore tirada no mato e convertida em mastro
pelo ritual. Isto é, ela é transformada em sagrada no momento em que acon-
tece todo um ritual, na mesma época do ano, com as mesmas pessoas ou seus
descendentes envolvidos em toda a ritualística preparatória. Quando começa o
corte, a árvore já começa a ser investida de componentes que permitem a sua
modificação de condição. Durante o cortejo até a matriz, ela vai tornando-se
cada vez mais sagrada, na medida em que recebe, até certo ponto, a autorização
das autoridades eclesiásticas. Nesse percurso, todos os acontecimentos vão ga-
nhando uma aura de religiosidade, inclusive, o próprio ato de beber no ritual,
como se pode captar no relato desse entrevistado.
195
fica bêbado está participando de uma festa religiosa. [...] Existe pessoas que di-
zem assim, principalmente pessoas de outras religiões: “há mais isso ai não tem
nada de religioso, isso ai não tem nada de sagrado, isso ai tudo é só uma des-
culpa pra beber cachaça, só isso”. Só que essa opinião deles pra nós não serve,
porque por mais que algumas pessoas às vezes meta uma lapada, uma dose de
cachaça nos peito, tomem um litro de tiquira todim isso não impede de acon-
tecer a religiosidade na festa. Não importa se ele tá bêbado, até porque isso faz
parte da brincadeira pra ele puder aguentar a caminhada, o repulso. As vezes
eles ficam bêbados, num sabe nem o que tá se passando, mas, ele ta no meio,
ele foi participar da festa religiosa, participar da festa do mastro que é o início
das homenagens a São Bernardo. Sem beber não tem festa, tem que beber para
existir a festa (Francisco Moreno Silva, São Bernardo em 29/07/2013).
Teve um tempo que um padre quis proibir a festa aí num prestou não viu. Eu
disse: Padre, peço que você não tutuque no mastro do padroeiro, deixe o mastro
do padroeiro em paz, porque se você mexer com o mastro do padroeiro, você
vai mexer com a nação, aí não vai da certo pro senhor. Pode entrar padre que
entrar, mas a comunidade não aceita acabar (Francisco Moreno Silva, São Ber-
nardo em 29/07/2013).
Ora, um tempo desses chegou um padre aqui que quis proibir o mastro, teve até
um pastor aí de uma igreja que queria até botar a polícia lá na frente e queria
ver se o mastro passava. [...] A tradição desse mastro aí não pode se acabar. Eles
lutam pra acabar mas não acaba não, de jeito nenhum, porque é uma tradição
muito forte e a gente não deixa ser vencido, não deixa ser vencido pelo cansaço
(Francisco Rosa de Sousa, São Bernardo em 10/08/2014).
196
De acordo com os relatos, a população não aceitou de maneira passiva
todos os ideais da Igreja Católica, continuando com a festiva celebração tradi-
cional. Cabe mencionar que em muitas Festas de Mastro já existem, inclusive,
os patrocinadores que, independentemente do apoio clerical, colaboram todos
os anos para que a Festa aconteça. Mesmo o padre negando-se a rezar a missa,
a Festa acontecerá, como se pode evidenciar nos relatos acima em que, mesmo
tentando proibir, o povo não deixou de realizar a Festa. Portanto, ainda que a
instituição não concorde, pois, o pároco assim a representa, a Festa ocorre da
mesma forma. Atualmente, segundo relatos:
O padre nem apoia e nem atrapalha. Como não é organizada por ele, direta-
mente, ele não dá apoio, mas como muitas pessoas da comunidade que parti-
cipam da festa faz parte da paróquia dele, da igreja, ele também não atrapalha.
Este ano ele até rezou a missa antes do levantamento, disse umas palavras de fé,
abençoou e tudo mais, foi muito bonito o discurso dele. Mas, no ano passado
teve um fato que me deixou desconfiado. Furaram um rapaz lá na ponte da
ladeira no dia da puxada, então, foram anunciar pra polícia pra dizer que tinha
sido dentro do nosso movimento, que era pro padre puder acabar com o mas-
tro. Mas, perderam tempo. Quando foi uma hora, depois do almoço, a polícia
baixou aqui e mandou me chamar, alegando que a briga tinha sido no decorrer
da festa. Quando eu sai já foi invocando o nome do padroeiro, eu disse tanta pa-
lavra bonita e sincera que os policiais foram tudo embora e nunca mais voltaram
(Francisco Rosa de Sousa, São Bernardo em 10/08/2014).
197
verso cultural camponês, ao mesmo tempo em que os laços de sociabilidades,
trocas culturais e preservação das tradições são reatualizados.
Considerações finais
Referências
198
EVAN-PRITCHARD, Edward E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande.
Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
PRADO, Regina Paula dos Santos.Todo Ano Tem. As Festas na Estrutura Social
Camponesa. São Luís: EDUFMA, 2007.
SOUSA, Ronilson Oliveira; VIANA, Keliane Silva. Festejo de São Bernardo: Me-
mória e Representação. Revista Brasileira de História das Religiões, Vol. 13, São
Luís, 2012.
199
Entre mulheres & bebidas:
Bar da Lili e o prazer noturno no bairro
Refinaria (1970 a 1980)1
1 O estudo faz parte do capítulo III da monografia: Diversão para uns, perdição para ou-
tros: Bar da Lili e os prazeres da noite no bairro Refinaria (1970 a 1980) – UEMA/Campus
Caxias.
Uma peculiaridade desse local é a prática da prostituição, havia no bar
quartos reservados que poderiam ser alugados pelos frequentadores, para des-
frutarem com alguma de suas ajudantes, como afirma o senhor Meireles, um
dos entrevistados: “Mulheres muito bonitas, começando por ela (Lili), uma
verdadeira perdição” (Custódio Meireles, 2017).
O sexo como moeda de troca não é uma prática recente e foram-lhe
atribuídos vários tipos de significações que variam em lugares diferentes. Nas
sociedades baseadas em valores cristãos, profanar o corpo é algo condenável,
mas que exerce uma função em meio à sociedade, mesmo parecendo em con-
trapartida, essa prática acaba auxiliando as regras moralistas. A prostituição
resiste e perpassa ao longo do tempo, renovando as formas de comercialização
do corpo, existindo até os dias atuais.
202
como algo sagrado, porém, homens que estavam na idade para contrair o casa-
mento deveriam ter uma vida sexual ativa, e aí entram as prostitutas.
A prostituição, apesar de ser vista como algo imoral, nas palavras de José
Rivair Macedo (1990, p.72) era “considerada como mal necessário”. O autor
afirma, ainda, que: “Santo Agostinho, o grande pensador do século V, dizia: su-
primir as meretrizes e as paixões libidinosas dominarão o mundo”. Entende-se
que a prática contribuía para manter a organização da sociedade em relação às
limitações sexuais que eram impostas pela Igreja na época.
A prostituição caiu na clandestinidade, mas sem sua eliminação total.
Pois “as cortesãs continuariam a existir nas cortes europeias e colônias” (CEC-
CARELLI, 2008, p. 5). Como essas mulheres adquiriram o estado de clandes-
tinas, proibidas, pecadoras, algumas regras foram criadas para que pudessem
viver, ou melhor, sobreviver em meio à sociedade, como Rivair Macedo (1990,
p. 74) evidencia:
203
tavam, em geral, lugares afastados, chamados zona baixa, além disso, elas eram
facilmente identificadas já que se vestiam de maneira diferente, como aponta
FONSECA (2001, p. 8), o artifício, a decoração, o ornamento são associados à
prostituta, aquela que se enfeita para atrair os olhares.
As prostitutas se vestiam de maneira que atraíssem os homens, o que
contribuía também para a sua fácil identificação. Em alguns lugares, elas eram
obrigadas a portarem uma corda de alguma cor diferente do vestido que usa-
vam para que, assim, fossem identificadas e evitadas. Na França, por exemplo,
a corda era de cor vermelha, em outros lugares, a branca, tudo para indicar a
infâmia que essas mulheres viviam.
A vaidade era vista pela Igreja como um pecado tão grave quanto a luxú-
ria e, por isso, as mulheres ditas de bem foram proibidas de usar vestidos com
caudas, como nos informa Fonseca (2011, p. 9):
Com o passar dos anos, o vestuário como símbolo do pecado para as filhas de
Eva passou a proibir as mulheres decentes de usar cauda, por convidar à com-
paração com caudas de animais, tornando-se antes um esconderijo para diabos
do que um sinal de pretensão aristocrática. Tornou-se também proibida a utili-
zação de ouro, uma vez que esse metal era produto da natureza através da trans-
formação e não da criação de Deus. A vaidade era vista como um pecado maior
que a luxúria. Assim as mulheres, por inúmeros argumentos da cristandade,
desacataram as roupas de luxo, devido ao fato de o traje confirmar hierarquia
social parecer menos importante do que a mensagem sexual que ele veiculava.
204
rem manter-se. Então, a prostituição acabou sendo uma possibilidade de meio
de sobrevivência para algumas mulheres.
No Brasil, as políticas públicas voltadas para a prostituição mudaram a
partir da década de 1990, incorporando novos elementos, perspectivas e sujei-
tos no debate sobre a prostituição e os direitos das pessoas que exerciam a ativi-
dade (ALVAREZ apud SILVA, 2014, p.19). Atualmente, no Brasil, a prostituição
se torna ilegal no caso de exploração de menores de 18 (dezoito anos) ou em
caso de rufianismo.3
Eu com 12 anos eu cuidava de uma asa, eu só não fazia di cumé porque o fogão
era a lenha, era alto era a única coisa que eu não fazia era mexer o caldo de angu
e passar o café. As cinco horas da manhã eu tava era numa lagoa pegando água.
A cabaça quebrava eu apanhava, voltava pegava outra maior. Aí eu aprendi a
mergulhar na lagoa e a subir com a cabaça já cheia na cabeça, quando chegava
em casa papai tirava e aí eu e mamãe fazia de comer pra 22 pessoas. Aí mei-dia
me dava angu com rapadura, e me davam três bacia. Botava duas na cabeça pra
mim levar di cumê na roça. Eu só e Deus, com o tempo as coisas foram pioran-
do, e papai falava muito ir simbora (Maria Lívia G. Pires, 2016).
Dois anos depois, sua família parte para o Maranhão, com a esperança
de conseguir uma vida melhor, poucos meses após instalar-se na cidade de Pe-
dreiras, a jovem, com apenas 7 (sete) anos de idade, sofre um atentado, quando,
em um almoço em sua residência, um senhor conhecido da família que sofria
3 Obtenção de lucros através da prostituição alheia (FERREIRA, 2010).
205
de problemas mentais a atacou com uma faca, atingindo a parte inferior da
coxa, no mesmo momento, seu pai reagiu e acabou ceifando a vida do indiví-
duo com uma espingarda. Dona Lili explica que na época seu pai não foi preso,
pois a sua ação foi em legítima defesa.
Eu com cinco anos, minha mãe ficou louca, ela ganhava o mato e nos passava
de cinco seis dias atrás dela, ela botava os cachorro na gente como botava em
caça. Na hora que ela encontrava as pessoa já era perguntando meus fii tão com
fome? num tão porque o fi dela morreram tudo só via eu dende casa4. Ai ela
começava´, fazia as coisas dente casa. Entrava pro quarto se embrulhava aí dizia
mia fia eu já vou. Pra onde mamãe? Ela disse: eu vou buscar os menino. Aí ela
impressionou aí ficou louca [...]. Aí depois quando ela foi ficando melhor a gen-
te veio pra cá pro Maranhão. Aí pouco tempo que quando nos cheguemo aqui
um véi me deu uma facada.[...] Eu tinha sete ano, aí eu escapei. O véi foi quem
morreu papai matou. Dende casa.
Logo mais, no ano de 1957, a senhora Helena Silva vem a falecer e, três
anos mais tarde, seu pai resolve casar-se novamente e é a partir desse momento
que a vida de Lili fica prestes a tomar um novo rumo. Por ter uma péssima rela-
ção com sua madrasta, a jovem resolve fugir com o namorado, que ela refere-se
como marido.5
Aí com 11 anos perdi minha mãe, com 14 anos fugi de casa porque não aguen-
tava minha madrasta. Fui embora com o namorado. Ainda fiquei com ele2 ano
e 9 meses. Aí nos se separamos. O meu marido na época foi quem me prostituiu.
Ele me levou em um lugar véi e me colocou pra trabalhar e ganhar o dinheiro
pra ele. Ele era muito ruim, depois eu fugi dele e fui morar em outra cidade, na
localidade da Lidubina, interior que fica perto de Tuntum6, na casa de uma tia
minha e depois em 1966 que vim pra Caxias (Maria Lívia G. Pires, 2016).
Após o segundo casamento de seu pai, Lili passa a viver com ele e a es-
posa, a convivência entre eles passou a ser marcada por intensas brigas, pois
enteada e madrasta não compartilhavam de bom relacionamento. Então, aos
14 anos de idade, foge de casa com o namorado, por conseguinte, como afirma
4 Segundo relatos de D. Lili, após a falência do primeiro filho de Dona Helena, ela chega a
engravidar novamente, mas perde. Em entrevista, ela afirma não se recordar a temporalida-
de desses ocorridos e se recusa a falar da perda do primeiro irmão.
5 Dona Lili explica que não chegaram a casar-se de fato, a consumarem matrimonio reli-
gioso ou jurídico.
6 Município brasileiro localizado no Estado do Maranhão.
206
Dona Lili, foi por influência do marido que ela entrou para o ramo da prostitui-
ção e, por conta de maus tratos, ela foge e vai morar com a tia.
O meu marido na época foi quem me prostituiu. Ele me levou em um lugar véi e
me colocou pra trabalhar e ganhar o dinheiro pra ele. Mas eu nunca fui assim...
de viver dentro dos brega não. Sempre procurei um lugarzinho pra mim saia a
noite ia pro Zé Branco7. Mas o resto... eu num anadava não. Ele era muito ruim,
meu marido era muito ruim, depois eu fugi dele e aí fui sofrer pelas casa alheias,
numa casa de uma tia minha, irmã da mamãe. Ela morava em outra cidade, na
localidade da Lidubina, interior que fica perto de Tuntum8, na casa de uma tia
minha e depois em 1966 que vim pra Caxias (Maria Lívia G. Pires, 2016).
Logo em 1966, ela chega a Caxias, onde é abrigada por uma amiga cha-
mada Anamélia, que era proprietária de um bar, passaram a trabalhar juntas.
Aí eu fui morar com uma amiga minha a Anamélia, aí dela eu saí e fui morar na
rua da Aroeira, mais meu pai, aí a gente ganhou este terrenim aqui dessa casa,
grande aqui, da que tem essa garagem, quem tem o portão grande, eu ganhei
esses terrenim aqui foi o Aluísio Lobo que deu a gente fez a casinha aqui e fi-
cou morando. Comecei a trabalhar com a dona de um bar e depois comecei a
trabalhar só, e as meninas vieram comigo, montei um bar. Meu pai veio morar
comigo, ganhamos uma terra, o Aluísio Lobo que deu, a gente fez uma casinha
aqui e ficamos morando com esse pedacinho de terra, aqui o bar era de taipa e
só fiz de tijolo depois que me aposentei (Maria Lívia G. Pires, 2016).
Ela tinha um companheiro, o finado Zé Silva9 ele que era o gastador dela. Assim
que ela chegou aqui conheceu ele, e o bicho véi gostava dela. Ele ajudou ela a
construir o bar dela. Mas ela tinha também um por fora né, esse outro era o que
ela gostava mesmo. Era o preferido dela (Custódio Meireles, 2017).
207
MES, 2010, p. 49), o bar da Lili ficava localizado na rua da Faveira, no bairro
Refinaria, e hoje no local se encontra a residência da antiga dona.
Meu bar não era um bordel, era só um bar que eu montei. E lá para dentro tinha
uns quartos e os homens que queria a menina alugava um. Onde primeiro ele
tomava a cerveja e elas levava logo o tira gosto, primeiro eles tinham que con-
sumir, antes de tudo o papel delas era vender as mercadoria do bar (Maria Lívia
G. Pires, 2016).
208
grupo de meninas que trabalhavam no bar da Lili, evidencia que o local além
da venda de bebidas alcoólicas era utilizado para a comercialização do sexo.
Era apenas uma casa pequena de taipa, com três quartos aqui logo na en-
trada, mais para dentro ficava os freezer, as mesa com cadeira, mais pro
fundo a cozinha e mais dois quartinho e quintal. Lá tinha muita mulher
no bar. As meninas moravam com ela, eram muitas, eram de seis a sete.
Era assim, elas ficava passava a semana e iam embora, tornava voltar, né?
Era assim. Ficava, só tinha umas três que ficava definitivo com ela. Elas
chamavam ela era de mãe Lili. Logo porque elas eram de outros lugar, de
Coelho Neto, dos interior aí assim Antes de morar com ela eu morava
com a minha mãe, eu morava no Ponte. Eu vinha do interior, aí uma
irmã minha morava aqui eu vim estudar. Aí de lá, eu vim pra cá. Morei
pouco tempo com ela, eu descobri que tava grávida e voltei pro ponte.
(Margarida, 2017).12
Eu me lembro que lá era muito agitado. Andei muito lá, mas era só pra
beber. Tinha muita mulher nova, mas eu não tinha caso com nenhuma
delas não, porque muitas vezes bebia lá e não pagavam. Entonce ela não
gostava (José Veras, 2017).
Essse negócio da Lili foi recente assim que eu comecei a beber de 73 por aí
assim. Nesse trecho né.... Rumores tem umas mulheres alí né, tem uma cerveji-
nha, aí começou né, eu tinha uma menina lá que de tanto eu andar por lá atrás
dela, acabei foi virando amigo da Lili.
12 “Margarida”, pseudônimo utilizado para preservação do nome envolvido. Entrevista con-
cedida a Samara Felismino, em 6/04/2017.
209
Na temporalidade analisada, o bairro Refinaria ainda era pouco povoa-
do, nesse local havia poucas casas, as ruas eram sem pavimentação e a ilumina-
ção só chegou na década de 1970, quando um grupo de moradores, incluindo
a Dona Lili, em conjunto, compraram a fiação. Portanto, configura-se em uma
área periférica. O bar estava localizado em uma área estratégica, pois estava
entre a Avenida Central e a Refinaria A. Silva.
A Boate Madrid foi inaugurada em 1963, mas obteve sua fase áurea nos anos
210
de 1965 a 1974, se tornou mais que um local de divertimento, pois por conta da
Estrada Ferro (sinônimo de modernidade para as sociedades dos séculos XIX e
XX), os trabalhadores quando recebiam seus salários se dirigiam para o bordel.
Que as prostitutas da Boate Madri sempre andavam no “luxo”, e que também a
proprietária Diracy sempre tinha a preocupação de renovar constantemente a
oferta dessas mulheres, pois além de garantir uma clientela cativa e ansiosa por
novidades, o constante intercâmbio das meninas entre os bordéis se configurava
como uma estratégia para mantê-las na moda, evitando, portanto, que a Boate
descesse de seu auge (SILVA, 2014 p. 40-41).
Tinha dia que os estiva chegava aqui e dizia: Lili, aí tem cerveja gelada? Pode
fechar o bar pra nós que essa cerveja nos paga. E assim era feito, vendia petisco,
as meninas também bebiam. E aqui vinha homem de todo jeito, tinha um co-
merciante considerado um barão aqui dentro Caxias que não saia daqui, e não
era só ele não, tinha até político.
A Lili sempre teve bom coração. Como ela não tinha filhos, acabou criando o
filho de uma das meninas aqui. Eu nesta época estava grávida, e ela me acolheu,
ajudei ela a cuidar do pai dela e do bar, e quando tive meu filho, demorei pouco,
211
me casei e fui embora. A colega vivia tomando remédio para tirar a criança, mas
a Lili não deixou mais ela tomar e pediu a criança, então na hora que ela pariu,
deu logo pra Lili e foi embora (Margarida, 2017).
De fato, Dona Lili afirma que criou duas crianças como suas. A mais ve-
lha, que se chama Claudia, hoje tem 45 anos, mãe de dois filhos, foi deixada em
suas mãos ainda pequena, pois a mãe não tinha condições de proporcionar boa
educação para a menina; e Ruan, hoje com 40 anos de idade, pai de um filho,
fora a criança deixada para trás, filho de uma de suas meninas. E, em 1980, ago-
ra mãe de família, preocupa-se em apenas cuidar dos filhos e de seu lar. Então,
ela decide fechar o bar. E alguns fatores também influenciaram nessa decisão.
O falecimento de seu pai, em 1975, foi uma grande perda que já come-
çava a deixá-la insegura em manter o negócio e também a questão da violência
na cidade. Algumas de suas ajudantes acabaram deixando o lugar, ela se viu
sozinha e cansada demais para levar o negócio para frente, então, vendeu a casa
ao lado que foi sua primeira posse e também grande parte dos móveis e objetos
que havia no local, assim, fecharam-se as portas do tão animado “Bar da Lili”.
Considerações finais
212
peração, tendo em vista a história de vida de sua proprietária. Uma mulher que
juntamente com a família sai de seu local de origem para aventurar-se em um
novo espaço em busca de melhorias de vida, no entanto, passaram por uma
série de situações desagradáveis, até a jovem Lívia fazer parte do ramo da pros-
tituição e, com a venda de seu corpo, atingir o lucro para construir seu próprio
estabelecimento.
Por aproximadamente uma década, funcionou como um importante lo-
cal de sociabilidade masculina no bairro Refinaria, recebia frequentadores de
diferentes grupos sociais e resistiu às novas normas dos códigos de posturas
vigentes na cidade, que proibiam a construção de casas de pau-a-pique, pois a
cidade tentava se tornar moderna. De acordo com a antiga proprietária, o espa-
ço não se caracterizava como um bordel, mas sim como um bar utilizado para o
entretenimento masculino. A diversão no bairro Refinaria tinha nome: “Bar da
Lili”, e ele, até os dias de hoje, desperta emoções para aqueles que o descrevem.
Referências
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
213
CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS,
Ronaldo. Domínios da História: ensaio de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997.
CECCARELLI, P.R. Prostituição: corpo como mercadoria. In: Mente & cérebro-
-Sex, v.4 (edição especial), dez, 2008.
DEL PRIORE, Mary. Histórias Intimas. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2014.
214
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
LIMA, Albert. História do Colégio São José. Caxias: Ed. Grafiset, 1997.
MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Média. São Paulo: contexto, 1990.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: A problemática dos lugares. São Pau-
lo, 1981.
215
RAGO, Margareth. As mulheres na Historiografia brasileira. In SILVIA, Zélia
Lopes (org). Cultura Histórica em debate. São Paulo: UNESP, 1995.
SILVA, José Maria da. Música brega, sociabilidade e identidade na Região Nor-
te. Rev. ECO-PÓS. Rio de Janeiro- v. 6, n.1, Jan-Julho 2003.
Monografias
SILVA, Elvani Coutinho Beleza da. Madame Diracy e a constituição dos espaços
de prazer em Caxias: “da Boate Madri” aos tempos áureos dos bordéis de 1960
216
a 1970. CESC-UEMA, 2014.
Dissertação
Tese doutorado
FILHO OLIVEIRA, Valdinar da Silva. A tradição por um fio: uma história das
sensibilidades em relação aos espaços na crise dos padrões tradicionais de mas-
culinidade no nordeste (1940/1980). (Tese de Doutorado). Universidade Fede-
ral Fluminense UFF, Niterói, 2010.
Fontes orais
217
Abolição festejada:
o “Brazil livre” e a comemoração do 13 de
maio em São Luís
220
eram a favor da causa ou, talvez, pelo menos simpatizantes dela.
As festas da abolição não servem necessariamente para exprimirem um
desejo de comemorar, como podem ter, também, a função de demarcarem as-
pectos de grupos diversificados, entre eles, a identidade, pois era um momento
em que muitos deles se propunham a participar e fazer acontecer a festa, além
de fazerem parte dela, destacando aquilo que tinha de mais característico em
seus respectivos grupos.
3 THOMSPON, E.P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 366.
221
sociais, pois o sentido de cultura foi utilizado tal qual elaborado por Geertz
(2008), para ele, o “homem é um animal amarrado a teias de significados que
ele mesmo teceu”, por outro lado, Darton (1986) também faz críticas aos his-
toriadores das mentalidades, segundo ele, os objetos culturais não devem ser
tratados como seriais da história econômica.
Outra reflexão de extrema relevância seria a de Kuper (2002), em que
ele aponta alguns cuidados que devemos ter ao conceituar cultura e ainda faz
críticas aos autores que tratam da antropologia americana, entre eles Geertz.
A Cultura para Kuper perde um potencial explicativo e também analí-
tico por estar em todos os lugares. Em seu estudo, ocupa-se em fazer uma ge-
nealogia do conceito em favor de uma antropologia sociológica e comparativa.
Assim sendo, podemos perceber o alerta em que o conceito de cultura pela via
antropológica nos é válido e necessário, porém, devemos levar em considera-
ção seus limites e possibilidades de uso.
A cultura, por outro ângulo de interpretação, pode assumir o viés racial,
em que o sexo seria fundamental para a mistura. Nesse sentido, Young (2002)
analisa as relações humanas e suas complexidades étnicas, relacionando a raça
e o sexo.
Cultura, para Burke (2010), seria, ainda, tudo que o homem foi e é capaz
de produzir, sejam formas simbólicas, expressas ou encarnadas em sistemas de
significados e atitudes, valores que são partilhados, até mesmo objetos artesa-
nais, ou seja, tudo que o ser humano produz é cultura. Podemos identificar que
os conceitos de cultura e as suas interpretações nos apresentam a necessidade
de cautela, pois, por vezes, torna-se tão ampliado que a torna tudo e nada ao
mesmo tempo.
Achar um ponto de equilíbrio e saber fazer uso adequado tomando em-
prestado o conceito, como os da antropologia, por exemplo, é tarefa que exige
um grau de sofisticação maior no trabalho do historiador.
Embora sejamos atentos à necessidade de conceituar, é preciso ir além,
é de fundamental relevância pautar o lugar que a cultura ocupa e de que forma
ela é operacionalizada e sentida nos indivíduos, sua repercussão nas práticas
cotidianas, suas características mais marcantes nas festas e aspectos identitá-
rios que estão embutidos nela. Todos esses autores nos embasam para essas
discussões à medida que problematizam justamente os aspetos citados, além
do próprio conceito.
Dessa forma, a identidade é um componente da discussão de festas e
cultura, pois está permeada na sociedade e tem relação íntima com esses dois
222
aspectos abordados. Na festa, é possível perceber a celebração de identidades,
como afirma Guarinello (2001), porém, ao passo que esse celebrar ocorre,
também é possível apontar diferenças, afinal, a festa, afirma Abreu (1999), não
toma dos seus participantes, mesmo que estejam atrelados aos grupos diversos.
Os seus valores, que vem sendo moldados ao logo do tempo por heranças cul-
turais e históricas.
Todas essas questões relativas às festas, à cultura e às identidades nos
permitem identificar no 13 de Maio um conjunto de fatores que podem ser
objeto de análise, exemplos disso são os diversos grupos que se propõem a
participar da festa à medida que reforçam suas identidades e ao mesmo tempo
suas diferenças, podendo conflitarem em alguns casos, pois a cultura não é a
mesma dentro de cada grupo.
Assim sendo, são adotadas ideologias a serem defendidas, e esses mes-
mos grupos estão passando por constantes processos identitários, quando, ao
passo em que há um choque cultural e identitário, trocam valores e costumes
influenciando e sendo influenciados. Em São Luís, podemos identificar um nú-
mero significativo de festas e grupos que se propunham organizá-las por oca-
sião da abolição da escravidão no Brasil.
O fim da escravidão veio por meio de uma lei assinada em 13 de maio de 1888.
Ao contrário das leis anteriores a de 1888, que geraram inúmeras discussões
que prolongaram suas aprovações, a do 13 de maio foi breve e curta em todos
223
os sentidos. A curta lei foi aprovada num reduzido espaço de tempo tanto por
deputados quanto por Senadores (MORAES, 2010, p. 3).
A abolição foi festejada não apenas pelos ex-escravos nos seus antigos locais de
escravidão, mas por todos os que viam na lei o surgimento de um novo tempo.
Participar da festa, seja testemunhando um evento promovido pela imprensa ou
doando uma quantia para compra da pena, foi uma das formas vividas por dife-
rentes grupos de trabalhadores para celebrar a abolição (MORAES, 2012, p. 20).
224
“forma ritual de expressão de hostilidades entre seus participantes através da
zombaria. Através de uma festa pública eles se organizam assim seus laços de
solenidade e diferença, fazendo da festa um canal de comunicação e embate
social.” Entendendo essas festas da Abolição pelas ruas da São Luís como uma
variável da cultura política.4
A documentação privilegiada para a construção desta escrita nos per-
mite a identificação de elementos que compõe a festa e a partir deles é possível
refletir acerca dos sujeitos, e grupos. Através deles foi possível pontuar os ele-
mentos da identidade de cada grupo que estava presente na festa da Abolição,
seja como mera convenção social ou porque de fato tem satisfação em come-
morar o 13 de maio de 1888.
Na 1° sessão do parlamento de 11 de maio de 1888, no livro Objetos di-
versos, localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM), quatro
alunos do Liceu maranhense são citados como promotores de uma seção sole-
ne na noite do dia em que passa no senado a Lei da extinção da escravidão no
império, assim sendo, solicita o Dr. José Moreira Alves da Silva, então presidente
da província do Maranhão, que o diretor da Casa dos Educados e Artífices dis-
ponibilize a banda de música da escola para estar nessa seção que será realizada
no teatro São Luiz.
Ainda no livro de Objetos diversos, é possível constatar que no dia 17 de
maio de 1888 foi expedida a ordem do Dr. José Moreira Alves da Silva para que
a banda de música dos Educandos Artífices se fizesse presente às 7 horas da
noite, na loja maçônica da Santa Cruz, por ocasião dos festejos que ali se have-
ria de fazer em homenagem à abolição da escravidão no Brasil.
Essas documentações contêm um número considerável de requerimen-
tos para que a banda de música dos Educandos Artífices fosse participar de
festas e comemorações por ocasião da passagem da Lei que aprovou a abolição
da escravidão no Brasil, é possível analisar não apenas o dia 13 de maio de 1888,
como também os dias que o antecedem e aqueles que se passam após a aboli-
ção, dada a repercussão desse movimento histórico.
4 Conforme Ângela de Castro Gomes, o conceito de cultura política torna-se uma ferra-
menta importante para os historiadores porque permite análises e interpretações sobre o
comportamento político de atores individuais e coletivos. Além disso, essa categoria chama
para a cena histórica o movimento de ideias e ações tanto dos grupos dominantes quanto
dos grupos dominados, privilegiando as suas percepções políticas, suas vivências e lógi-
cas cognitivas. Cf: GOMES, Ângela de Castro. “História, historiografia e cultura política
no Brasil: algumas reflexões”. IN: (orgs) SOIHET, Raquel; BICALHO, Maria Fernanda B. e
GOUVÊA, Maria de Fátima S. Culturas políticas: Ensaios de história cultural, história polí-
tica e ensino de história. Rio de Janeiro: FAPERJ/MAUAD, 2005. p. 21-44
225
Os jornais também se ocuparam em noticiar esse movimento histórico,
pois não apenas no cenário local como em todo Brasil se noticiava a nova lei
que seria responsável não apenas pelas mudanças na forma do trabalho como
também na estrutura social, política e econômica. O jornal Pacotilha noticiou
o acontecimento.
Através desse periódico, o Club Artístico Abolicionista Maranhense5
chama seus componentes divididos por freguesias para as assembleias, para
organizarem as festas em comemoração à referida Lei, com organização de pas-
seatas. Além disso, artigos eram publicados com o título: Transformação do
trabalho, em que era exposta a opinião do autor sobre as mudanças causadas
a partir da aprovação da lei. Os moradores publicavam sua participação nas
comemorações através de passeatas em suas ruas.
Os diversos diretores e professores dos Collegios davam sueto de três dias
aos seus alunos em regozijo pela Lei que denominavam do elemento servil. Vá-
rios setores da sociedade civil se comprometem em demonstrar satisfação pela
abolição da escravidão no Brasil, são realizadas reuniões, festas, iluminações de
prédios públicos, missas, festejos por toda cidade.
O Diário do Maranhão também noticiou a respeito da Lei de 13 de Maio
de 1888 com a mesma intensidade do jornal Pacotilha, porém, no Diário é pos-
sível perceber alguns muitos senhores de escravos concedendo logo a liberda-
de, talvez buscando antecipar-se ao acontecimento que não mais tardava em
acontecer.
Textos com título Cartas de liberdade anunciavam o nome do senhor e
do cativo libertado, algumas poucas informações sobre o ex-cativo, como ida-
de, por exemplo, sempre enaltecendo aquele que concedia a liberdade como
caridoso, mesmo que a abolição fosse já fato iminente.
226
Os textos, geralmente, são bem pequenos e têm quase sempre a mesma
estrutura. A senhora Clotilde e o senhor Eduardo possuem sobrenomes idênti-
cos, além de dona Izabel que também possui “Pinto” no sobrenome, indicando
que possivelmente fossem parentes. Eventualmente, é possível encontrar pes-
soas com mesmo sobrenome libertando números variáveis de escravizados de
idades alternadas.
As libertações ocupavam pequenos espaços nos jornais, em que também
diversos grupos convidavam seus membros e comissões a se reunirem para ce-
lebrarem com festas e comemorações quando fosse aprovada, definitivamente,
a Lei Áurea.
227
comemoração à referida Lei, além de organizarem passeatas. Ademais, artigos
eram publicados com o título: Transformação do trabalho, em que era exposta
a opinião do autor sobre as mudanças causadas a partir da aprovação da Lei.
Os moradores publicavam sua participação nas comemorações através
de passeatas, em suas ruas. Os diversos diretores e professores dos colégios da-
vam sueto de três dias aos seus alunos em regozijo por ocasião da aprovação da
lei que extinguia o elemento servil como mão de obra escrava. Vários setores
da sociedade civil se comprometem em demonstrar satisfação pela abolição
da escravidão no Brasil, são realizadas reuniões, festas, iluminações de prédios
públicos, missas, festejos por toda cidade.
Nesse contexto, a cidade de São Luís, assim como outras cidades do país,
passava a regozijar a aprovação da Lei de 13 de Maio de 1888, como se sempre
fosse unânime entre a sociedade civil a necessidade da abolição da escravidão,
mas, como bem se sabe, foi um processo longo que contou ainda com outras
leis que desembocaram na referida Lei, que dá origem a esse conjunto de ma-
nifestações.
Considerações finais
228
como se representavam a partir dessa nova tradição, que ser contra escravidão
ou possuir escravos poderia significar estar fora dos padrões restabelecidos
para a sociedade no pós-abolição, além disso, as identidades são reafirmadas
enquanto grupo ativo.
O que se compreende por aspectos sociais que exprimem de alguma ma-
neira a identidade desses grupos é exatamente a forma pela qual eles se pro-
põem a comemorar esse tão grande evento, a exemplo, os grupos religiosos
realizavam missas, os estudantes do Lyceu realizavam sessões solenes, a banda
de música da Escola dos Educandos e Artífices tocavam, o comércio se sacrifi-
cava fechando as portas, tudo em prol de uma comemoração que, na verdade,
significava também uma forma de mostrar-se não adepto, mas simpatizante da
causa e, ao mesmo tempo, fazia aparecer sua identidade no meio social em que
atuava.
Os sujeitos que compunham os grupos sociais possivelmente participa-
vam de um ou múltiplos grupos, pois os estudantes ou os comerciantes pode-
riam perfeitamente ser frequentadores do grupo religioso ou vice-versa, assim,
as identidades eram múltiplas tanto quanto cada grupo, sendo que uma não
necessariamente excluía a outra.
Identificar esses grupos e as formas como se organizaram para partici-
par das festas abre caminhos para outras análises mais aprofundadas a respeito
não apenas da festa da abolição, como também de uma nova conjuntura que
se erguia politicamente, economicamente e socialmente e seus novos conflitos.
Referências
Fontes hemerográficas:
Jornal Diário do Maranhão entre 1888 e 1889. Biblioteca Pública Benedito Leite
(BPBL).
Jornal Pacotilha entre 1888 e 1889. Biblioteca Pública Benedito Leite (BPBL)
229
Bibliográficas
COSTA, Emilia Viotti da. Abolição. São Paulo: Editora, UNESPE, 2008.
230
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Apresentação. In.: ______ (org.). Carna-
vais e outras f(r)estas: ensaios de história social da cultura. Campinas, SP: Edi-
tora da UNICAMP, 2002.
_______. Ecos da folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e
1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
DEL PRIORE, Mary Lucy. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasi-
liense, 2000.
GEERTZ, Clifford Geertz. Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpreta-
tiva da Cultura. In.: ______. A Interpretação das Culturas. 13ª Reimp. Rio de
Janeiro: LTC, 2008.
KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru, SP: EDUSC, 2002.
231
Luís: FUNC, 1998.
MATA Roberto Da. Carnavais Malandros e heróis: para uma sociologia do di-
lema brasileiro. Rio de Janeiro. Rocco, 1997.
MOREIRA, Francisco Adail Martins. Festas litúrgicas de Jesus e Maria. São Pau-
lo: Edições Loyola, 2003.
REIS, João José. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil
do século XIX. São Paulo: companhia das Letras, 1991.
SANTOS, Lidia Rafaela Nascimento dos. Das Festas aos botequins: organização
e controle dos divertimentos no Recife (1822-1850). 2011. Dissertação (Mes-
trado em História)-Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Fe-
deral de Pernambuco, Recife, 2011.
232
SILVA, Fábio Henrique Monteiro. O reinado de Momo na terra dos tupinam-
bás:permanências e rupturas no carnaval de São Luís (1950-96). São Luís:
EDUEMA, 2015.
TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil Colonial. São Paulo: Ed.34, 2000.
233
Parte iii
Representações,
cultura e narrativas
Homem, gibão & crina:
fragmentos de histórias contadas e ouvidas de
vaqueiros no sertão caxiense (1960-1980)
238
partir de suas práticas cotidianas, contribuindo, desse modo, para materializar
a imagem do vaqueiro existente em 6 (seis) povoados do sertão caxiense. Per-
cebendo, assim, as habilidades e capacidades de se inserirem e agruparem nas
transformações e percepções de espaço através de suas práticas culturais.
O estudo se torna relevante no sentido de que busca fixar-se no seio da
historiografia a figura do vaqueiro em suas diferentes práticas culturais e cons-
truir a escrita da história elencando novos sujeitos e possibilidades, visto que
ela permite caminhar pelas mais variadas veredas e linhas que possam existir.
Contribuindo também para conhecer o sertão caxiense e os sujeitos que o com-
põem, pois se entende que o vaqueiro tem papel importante na formação cultu-
ral do povo caxiense. Visto que, ao percorrer as áreas sertânicas de Caxias, em
busca das memórias desse sujeito, tende a contribuir para a história local. Uma
vez que se torna de grande relevância também materializar, através da pesqui-
sa e da escrita historiográfica, fragmentos, interstícios, cacos de experiência a
respeito do vaqueiro, através de suas memórias e lembranças dizíveis ou não.
Ao abraçar o ofício escriturante, no qual o aprendizado desenvolve-se,
cotidianamente e diuturnamente em leituras, no convívio e na observação dos
que já trilharam e caminharam cientificamente no mundo da pesquisa e seus
fazeres, é necessário abraçar uma fundamentação teórica capaz de esmiuçar,
escarafunchar, um quadro superficialmente aparente para que, posteriormen-
te, com luminosidade teórica, tenhamos a possibilidade de laborar e unificar
os escritos e tradições. O artigo está organizado por etapas, sendo o primeiro
momento o de levantamento de referências bibliográficas, buscando autores
que abordam os conceitos essenciais que possibilitam o suporte teórico para a
pesquisa.
A fundamentação base para o trabalho está alicerçada na história cultu-
ral, especialmente. Barros (2013) conceitua a história cultural como um campo
historiográfico que se torna mais preciso e evidente a partir das últimas dé-
cadas do século XX (vinte), mas que é particularmente antecedente ao início
desse século. Ela é rica no sentido de apresentar pontualidades na perspecti-
va de enfatizar conceitos memoráveis, que acabam pondo a escrita da história
em um lugar imensurável. Não obstante à eminência encontrada na história
cultural, traz para incremento e complementação o arcabouço conceitual de
outros autores que abordam elementos acrescentando à história cultural, tais
como: Pesavento (2008) e Chartier (1990) que, ao falarem de história cultural,
abordam questões ligadas à representação, bem como ajudam a compreender
as percepções ligadas ao mundo do vaqueiro.
239
Para a tessitura deste trabalho, foi preciso utilizar conceitos que abordam
o sertão e seus diferentes aspectos que fizeram entender a figura representativa
do vaqueiro na formação do Brasil, bem como ele foi, durante muito tempo,
configurando-se na história, tanto em nível de Brasil quanto de Maranhão. Au-
tores utilizados foram: Abreu (2010), Muniz (2011), Carvalho (2011), essen-
ciais para o direcionamento e apoio teórico à escrita, levando em consideração
o recorte espacial proposto nos objetivos-bases.
Na premissa de entender a memória desses sujeitos, difunde-se, ainda,
o que venha a ser a memória, a partir de Jacques Le Goff (2003), em História e
Memória, pois retrata sua importância, já que dá os nortes para a construção
da identidade que apresenta o ser como ele tende a ser. Ademais, quanto ao que
diz respeito à preservação das informações pelo passar da linha do tempo e es-
paço. Debruça-se também sobre os conceitos de Nora (1981), Catroga (2001).
Pois a memória é aqui compreendida como essencial para tecer, compor e re-
compor as práticas culturais dos sujeitos da pesquisa, ao passo que na medida
em que vão memorando, rememorando, seus feitos se instalam não somente na
memória individual, mas também coletiva, empregada pelo teórico Halbwachs
(2004).
Na assertiva de compreensão das memórias das práticas culturais dos
vaqueiros, utilizou-se o campo da história oral, parte formidável desta pes-
quisa, visto que, de acordo com Lucília de Almeida Neves Delgado (2010), “a
história oral é um procedimento metodológico que busca, pela construção de
fontes e documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas,
testemunhos, versões sobre a história em suas múltiplas dimensões: factuais,
temporais, espaciais, conflituosas, consensuais”. Para tanto, faz-se uso dos con-
ceitos de Thompson (1992) e Portelli (2016), uma vez que a história oral conce-
bida como metodologia ou técnica atuou como umas das principais fontes de
compreensão de como se configurou o vaqueiro no espaço de pesquisa, pois,
acredita-se que é por meio dela que se pode perceber que a memória coletiva
institui a memória social e cultural, com isso, as histórias narradas pelos indi-
víduos serão importantes, porque constroem o sentimento de pertencimento e
a identidade.
É cabível ainda mencionar que este artigo foi efetivado por intermédio
de uma seleção de textos referentes à temática. Destacam-se os livros que abor-
dam a história dos vaqueiros em outros estados, textos literários, artigos e dis-
sertações, assim como o próprio sertão.
Assim sendo, entende-se que este trabalho atua na premissa de levar a
240
todas e a todos o despertar para a compreensão do quanto é de suma relevân-
cia tecer estudos a respeito do sertão maranhense, em especial caxiense, tendo
como sujeito desse espaço o vaqueiro.
241
cuária que tinha múltipla finalidade nos engenhos de açúcar. Servia o boi como
meio de transporte, força motriz e fonte alimentícia, enquanto o couro era ainda
utilizado na fabricação de objetos domésticos. (CABRAL, 1992, p. 101).
Mas o Nordeste tradicional pode ser tradicional pode ser também o do sertão,
da “paisagem nua, povoada de arvores magras sem folhas para o vento brincar;
242
paisagem crivada de espinhos como a fronte de Jesus; crivada de pedras disfor-
mes que lembram monstros que não couberam na arca de Noé. Sertão dos ‘Va-
queiros’, dos bodes patriarcais, das igrejas velhas, dos comboios de tangerinos,
de cangaceiros e profetas, do sol vermelho como um tição”. (MUNIZ, 2011, p.
133).
243
os quais são verdadeiros oásis em meio às paisagens diversificadas que fazem
desses espaços bastante múltiplos: “O sertão pode simbolizar o semi-árido, mas
também já foi úmido, foi improdutivo, mas garantiu as condições materiais de
sobrevivência de muitas populações: foi o oposto do litoral, mas também já o
completou” (REIS, 2012, p 18-19).
Se o caba corresse atrás de rês bem aculá e ele num pegasse, eu dizia
assim: não, se eu ir lá eu pego. Não, eu nunca disse isso. A gora, se eu
fosse lá e eu pegasse ai eu dizia: ai sim é. eu peguei se era esse daqui tá
pegado. Mas, porque ele correu lá e eu dizer que pego, eu não.1
1Entrevista do senhor Benedito Alves da Silva (Véi dito), 72 anos, povoado Almeida, em5
de setembro de 2018.
2 Entrevista do senhor José Marques Lobo (Piloca), 64 anos, Povoado Ininga.
3 Entrevista do senhor José Luís Vieira dos Reis (Zé Pezão), 72 anos, Povoado Barro verme-
lho, em 14 de agosto de 2018.
244
Quando eu comecei a andar no campo eu tinha 5 ano. Ainda hoje eu me lembro,
[...] eu tinha cinco ano, me lembro de mais, eu andava cum papai! Ele muntado
e eu na garupa, quando nós fumo imbora daqui pra Onça, que chamava Onça
do Bilaque, eu me lembro! Parece que eu tô enxergano! Cinco ano eu já andava
muntado sozim! Cinco ano!
[..] Oia! Eu comecei a lutar com gado minino com idade de 10 ano, eu comecei
a labutar cum gado de pé, que nesse tempo eu num tinha animal, fui criado ali
cum meu avô, ele tinha umas vaquinha, né! Eu fui cumeçano! Fui cumeçano!
Andano! Ai tinha essas óta vaquerama ai, quando ele ia pegar gado por aqui,
eu não tinha animal, mas eu ia de pé. Cê acredita que eu cansei de passar o dia
tôdim, acumpanhamo a vaquerama aqui de pé. Eu de pé e eles muntado, né! Pe-
gando gado e eu de pé que nem um (risos) aquele bixim do rabo grande, quem
nem Cachorro, mas andava, o dia tôdim e a resultava: tinha vez que eu ainda
pegava primêro que eles que tava muntado! Pegava. E ai foi dano pra frente, ai
quando eu já tava quase na idade de 18 ano, ai eu cumprei o primêro animal pra
mim. Fui cumeçano.4
245
a cultura dão significado a experiência que temos de nós mesmos e no qual nós
adotamos uma identidade.
... Meu pai disse: “já que tu corre muito vamo correr atrás da vaca, duas vaca!”.
Ai eu pensei que fosse brincadêra. Meu irmão mais vêi que morava ali em frente
a Nazir, ai eu pensei que ele fosse chamar o Zé de madrugada pra pegar... ai no
Luduvido, mumuida que era onde a vaca pastava, né! Lugar muito ruim para se
correr! Aí tirei a comida pros cavalo e disse: Papai, eu vou lá dizer pro zé vim
que hora de madrugada? Aí papai disse “Nam! Quem vai é você rapaz! Eu num
já disse! Umas 3 hora da manhã lavamo o carralo aqui no açude, tangei. Ai ele
disse:“Rapaz! Vesti logo os côro que lá é ruim”. Ele disse logo e eu criança, e os
terno de coro dele criança! Botava aqui, o gibão faltava arrastar no chão. Mas,
eu fui. Eu ia dizêno pra mim mermo: “hoje ele me acha estrepado na ponta de
um pau”. Eu tenho certeza que ele vai me achar extrepado, já morto! Pra ele
nunca mais levar fii dele pra [..] foi isso que eu pensei! Encontramo a vaca em
uma roça [...] Larguei o carralo duma vez! Ele derrubou ela, meti a corda nela!
Eu era criança, eu tinha 13 ano, aí eu meti o rei na perna dela, aí ela me deu um
soco, me jogou bem aculá, que minhas perna, aí a corda ficou, aí juntei o rêgo
muntei no cavalo de novo, aí lá vem ele chegando [..] Isso ficou na mente como a
primêra namorada. Ficou na mente eu nunca esqueci! A vida de vaquêro é essa,
é bom! São gostosa! É bom de contar! É bom de se fazer.5
246
monta-se as imagens que foram construídas dos discursos literários referentes
ao vaqueiro, a saber, homem destemido, de força e bravura, presente, inclusive,
na obra literária de Francisco Gil Castelo Branco (2005), quando fala de Atali-
ba, o vaqueiro, que seria o homem sertanejo, vaqueiro nordestino, que em meio
aos desafios nos quais estava exposto procura vencê-los:
[...] Trabaiá cum gado é uma estória de 24 hora! Cê tem um campo, marcado pra
ir xxx9, a distança longe, como daqui na Redenção ou mais longe, cê tem que
levantar cedo, durmi com o animal já na Estivaria se tiver, se num tiver lá dento
do curral. Quando der2:00h 3:30h,4:00h, cê já tá no ponto e roda o dia tôdim!
correndo atrás pra pegar, atrás da vaca parida e ai por diante. A gente tem que
andar cedo! Que as vezes levava um fritozim pra cume no mato, às vezes nem
isso num levava. Passava uma fome doida. Às vezes vai beber na cabeceira de
6 Entrevista do senhor José Luís Vieira dos Reis (Zé Pezão), 72 anos, Povoado Barro Verme-
lho, em 14 de agosto de 2018.
7 Entrevista do senhor José Luís Vieira dos Reis (Zé Pezão), 72 anos, Povoado Barro Verme-
lho, em 14 de agosto de 2018.
247
brejo onde tem gado que bebe. Aí a gente passava o dia! Chega em casa já de
noite, Baqueado. Ajeitando animal pra no ôto dia3:00h da manhã ter que ir de
novo. Às vezes não achava a rês, por isso tinha que ir no dia seguinte. Quando a
gente acha um, dois ou três cumpanhêro para ir tudo bem, e quando num acha-
va, ia sozim. Às vez acha, mas num pega! Cai, leva uma pancada, é o que mais
acontece com o vaquêro, levar uma pancada no mato, se acidentar. (Entrevista
do senhor Francisco do Reis Bacelar8.
[..] Pegar gado valente, gado teimoso, que num queria caminhar, cê ficava o dia
todo cum ele amarrado, brigâno cum ele. Oiá, que era sufrimento! Oiá que eu
fui prum lugar chamado Lagoa do Arroz e foi até cum Nonato, fii do Dosa que
tem o “oi” (olho) perdido. E foi sem cumer, sem beber e sem durmir a noite
tôdia no mato, longe de gente. A nuvia adueceu 5h da atarde, anoiteceu, ama-
nheceu e passamo noite lá, oiáno pra ela.9
Compreende-se que a luta dos vaqueiros era dura, uma vez que embre-
nhar-se na mata, muitas vezes, não significava logo, no primeiro momento, en-
contrar a rês que estava a procurar, geralmente, demandava tempo, tendo que
procurar um “cantinho” próximo à rês, em vigília a noite inteira.
Outro ponto marcante é o que se relaciona ao companheirismo entre os
8 Chico Bacelar, 58 anos, povoado Cumbuquinha, em 20 de julho de 2018.
9 Entrevista do senhor José Luis Vieira dos Reis (Zé Pezão), 72 anos, Povoado Barro verme-
lho, em 14 de agosto de 2018.
248
vaqueiros, aspecto marcante em sua cultura e deve-se ao fato de fazerem parte
do mesmo espaço, conseguem elaborar e reelaborar princípios criando laços de
efetividade, permitindo, assim, fazer por si e por suas ações que os beneficiem.
Essas características são típicas de grupos identitários, de modo que a filósofa
Marilena Chauí afirma que: “Cria espaços próprios no qual os símbolos, as nor-
mas, os valores, as experiências, as vivências, permitem reconhecer as pessoas
estabelecer laços de convivências e de solidariedade” (CHAUI, 1985, p. 70).
Nesse sentido, evidencia-se nos relatos o companheirismo, colaborando
para o crescimento econômico da região, predispondo, a todo custo, pegar uma
vaca no mato para trazê-la até o curral, ajudando o seu companheiro que em
sua maioria trabalha para um proprietário de terra e tem prazo estipulado para
capturar animal, demonstrando as relações de amizades.
Tudo isso se coaduna na introspecção de uma identidade peculiar à pró-
pria cultura local que se constitui no dia a dia, no fluxo das relações de afinida-
des, vizinhança, como se fizessem parte da mesma família. Não precisam de leis
materializadas, registradas em papel do direito positivado para que essa forma
de vida seja assimilada, está internalizada nas suas concepções, guiando o dia
a dia de trabalho e convivência social com os demais companheiros de labuta.
Revelando mais uma vez a questão da identidade cultural e sua importância
para o entendimento de tal grupo social.
Considerações finais
249
Por meio da memória, entende-se que, ao fazerem parte do espaço que
compõe o sertão caxiense, ao longo de suas vidas de luta, “labuta” como va-
queiros ativos, construindo um cabedal de práticas culturais, que os fizeram se
constituírem enquanto ser vaqueiro do sertão de Caxias.
Por fim, diante de todo o estudo, fica evidente o fato de que pensar o
vaqueiro enquanto sujeito dotado de uma identidade cultural singular e espe-
cífica é arriar-se sobre a sua representatividade no meio social caxiense, por sua
importância para o estudo do espaço sertanejo. Escrever e colocar o vaqueiro
como protagonista de um contexto histórico e social rural e citadino é coloca-
-lo em prestígio para romper com silêncios e esquecimentos e com a própria
imagem erroneamente construída do meio rural e sertanejo.
Referências
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da história. In: In: PINSKY, C. B. (org.) Fon-
tes históricas. São Paulo: Contexto, 2006.
250
do Maranhão. Imperatriz, MA: Ética, 2007.
HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
________. RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. – Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1984.
PORTELLI, Alessandro. A história oral como arte da escuta. São Paulo, SP. Le-
tra e Voz, 2016.
REIS, Alécio Gama dos. O que farpa o boi farpa o homem:das memórias dos
vaqueiros do campo sertão de Irecê (1943 – 1985). Feira de Santana, BA, 2012.
Disponível em ://http://www2.uefs.br/pgh/docs/Disserta%C3%A7%C3%B5es/
DissertacaoAlecioGamadosReis.pdf>. Acesso em: 14 Agosto de 2018
Fontes orais:
BACELAR, Francisco dos Reis. Entrevista concedida a Auriele Pereira dos Reis,
em 20 de julho de 2018.
251
OLIVEIRA, José da Silva. Entrevista concedida a Auriele Pereira dos Reis, em5
de Agosto de 2018
REIS, José Luis Vieira dos. Entrevista concedida a Auriele Pereira dos Reis, em
14 de Agosto de 2018.
SILVA, Benedito Alves da Silva. Entrevista concedida a Auriele Pereira dos Reis,
em5 de setembro de 2018.
Da indústria cultural ao
desaparecimento da infância:
erotismo e entretenimento no mercado
cultural para crianças (1980-1990)
254
Cultural infantil para completa fusão dos elementos infantis com os tipicamen-
te adultos, para tanto, o universo dos doces e das performances sensuais já co-
nhecidos na música brasileira.
Para Neil Postman (2014), é esse panorama cultural de acesso às infor-
mações e ao consumo que ameaça a infância como um artefato social idealiza-
do e estudado por P. Ariès no início dos anos 1960. Tais teóricos da história da
criança e da infância nos provocam à questão: estaria a infância desaparecendo
ou algumas transformações são perceptíveis apenas no campo da economia
de consumo de bens culturais que tendem a fundir e reproduzir fórmulas de
sucesso?
O objetivo deste texto não é trazer profundas reflexões sobre a exposição
de T. Adorno e M. Horkheimer em “A Indústria Cultural – o iluminismo como
mistificação de massa” (2000 [1947]), mas compreender melhor o desenvolvi-
mento da indústria do entretenimento infantil nos anos 1980, apresentando
elementos típicos dessa produção fonográfica. Esse exercício de articulação de
conceitos e análise de fontes requer, em alguns momentos, um breve mergulho
nos caminhos percorridos pelas reflexões dos filósofos e intérpretes, para en-
tendê-los sem tantos prejuízos em relação à teoria que ainda permanece atual
no debate sobre cultura.
No final dos anos 1940, momento chamado de pós-guerra, ainda não ha-
via a televisão como a conhecemos hoje; seu poder de publicidade era tímido,
seus custos de manutenção não eram atraentes, os profissionais específicos para
a área eram escassos e seu alcance era restrito às classes altas que podiam com-
prar um televisor. Nos centros urbanos, o principal meio de difusão de notícias
eram os jornais impressos, o entretenimento ficava com o rádio, pela audição se
davam as relações da comunicação que alcançavam as massas, inclusive as não
alfabetizadas, que também colhiam notícias e coberturas esportivas pelo rádio
(BUCCI, 1996; HAMBURGER, 1998).
Nas artes, o teatro e o cinema protagonizavam o gosto das camadas altas
da sociedade; a reprodução musical em disco alcançava o faturamento de gran-
des cifras e já se mostrava poderosa o suficiente para tornar-se, nas décadas
seguintes, um grande produto de escala industrial com tendências de fusões
entre setores da produção tecnológica com a fabricação de artistas. Como des-
creve a socióloga, autora de “Os donos da voz”, Marcia Tosta Dias (2008, p. 35):
“Do início do século XX até meados da década de 30, as grandes companhias
255
fabricantes de cilindros e discos incumbiram-se, também, dos aparelhos leito-
res. [...] as empresas que os fabricavam se adaptaram rapidamente a produção
do gramofone e dos discos [...]”.
É baseado nesse cenário de aprimoramento de meios técnicos de produ-
ção e reprodução em massa das manifestações artísticas, como a música, que se
desenvolveu um dos conceitos mais importantes da obra do pensador alemão
Theodor W. Adorno em parceria com Max Horkheimer: A Indústria Cultural.
Segundo Robert Huloot-Kentor (2008, p. 21), “o conceito de Adorno nos leva
a crer que foi para ele um achado preciso, resultado de uma auscultação mi-
nuciosa das tendências históricas, mais do que um neologismo historicamente
oportuno”.
O “neologismo historicamente oportuno” ao qual se refere Huloot-Ke-
ntor é a afirmação da criação de Adorno e Horkheimer de neologismo con-
ceitual. Mais do que um conceito da crítica cultural, tornou-se, com o tempo,
parte do vocabulário empresarial, distanciado da intenção crítica dos seus for-
muladores, simplesmente mais um ramo das indústrias, como a indústria dos
cosméticos, do turismo ou da saúde. O “historicamente oportuno” deve-se à
junção de dois termos que a princípio surgem como antagônicos – a cultura
artística que seria um conjunto de expressões espontâneas das camadas po-
pulares que, na Indústria Cultural, é sujeita a um modo de produção serial
e mecanicamente repetitivo de fórmulas, assim o oximoro Indústria Cultural
que nasce com intenção de aproximar tendências contrárias que se unem na
criação de mercadoria.
Para os filósofos: “A televisão tende a uma síntese do rádio e do cinema,
retardada enquanto os interesses ainda não tenham conseguido um acordo sa-
tisfatório, mas cujas possibilidades ilimitadas prometem intensificar a tal ponto
o empobrecimento dos materiais estéticos” (ADORNO; HORKHEIMER 2000,
p. 162-63). Esse pensamento elabora parte de premissas históricas que já apon-
tavam o lugar que a televisão ocuparia na Indústria Cultural, assim se apresen-
tou nas décadas seguintes, sintetizou o rádio e o cinema no sistema da teleco-
municação. A TV trouxe as músicas do rádio e as notícias do jornal impresso
com as imagens do cinema. Consolidou um poderoso meio de publicidade,
fortalecendo a indústria do entretenimento, reproduzindo na tela fórmulas co-
nhecidas, agrupando, ainda, elementos da sensualidade e erotismo por meio
do corpo feminino, essa fórmula ficou bastante conhecida no Brasil com os
programas de auditório, o mais famoso destes, o programa do Chacrinha, que
fundia espetáculos circenses com dançarinas e assistentes de palco, as chacre-
256
tes, que remetiam às dançarinas de casas noturnas em trajes sensuais, apesar da
censura dos militares (SIMÕES, 2000).
O que se esboça por meio de Adorno é aquilo que viria a ser identifi-
cado como indústria do entretenimento, um derivado da indústria cultual, a
“fusão da cultura e da diversão”. Essas colocações podem ser ilustradas com
produtos lançados pelas apresentadoras dos programas infantis dos anos 1980,
como anunciado no início deste artigo. É nesse contexto, que foi de intensa
comercialização de objetos, que passaram a ocupar noções de cultura infantil,
fundamentalmente com o surgimento da categoria de artista infantil (MATTE,
1998), que não surge de uma originalidade nunca vista, esses artistas fundiram
modelos televisivos de sucesso com expressões da música e do cinema em cur-
so, paquitas e chacretes tinham algo em comum.
A transformação industrial de elementos da cultura em mercadorias
não reconhece idade, gênero, etnia ou faixa etária, despeja no mercado tudo
que possa ser produzido em escala, transitar pelas mídias e esteja no limite
jurídico para o exercício do prazer pelo consumo, assim, a ideia de produtos
infantis não se restringe ao brinquedo, extrapola o corpo infantil da criança,
interagindo pedagogicamente e educando os sentidos. Adorno reconhecia que,
com a fusão do rádio e do cinema pela TV, traria novidades ao mercado cul-
tural, dentro dessa tendência, os artistas são multifacetados: cantores, atores,
apresentadoras, modelos, tudo que as tecnologias disponíveis possam tornar
consumível por qualquer um que entre em contato com a fábrica de desejos.
Para Gilberto Vasconcelos (1998), a TV trouxe a fusão do circo com o cabaré,
nos moldes Chacrinha, essa é a inspiração do programa de auditório infantil.
Um cabaré das crianças.
257
e veículo de comunicação são carregados de significados que posicionam os
indivíduos na sociedade. As colocações da antropóloga nos ajudam a pensar
sobre como a cultura midiatizada pode apropriar-se do corpo como algo que
chama atenção na sua forma de expressar o lugar social ocupado pelos indiví-
duos, nesse sentido, o corpo infantil que rebola ao lado do adulto ocupa que
lugar na sociedade?
O corpo na TV aparece carregado de sinônimos como os de bem-estar,
felicidade. Na publicidade – eletrônica ou impressa –, o corpo, roupas e acessó-
rios são um só e tentam expressar poder econômico em muitos casos. Mas, e o
corpo infantil? O que pode expressar para as formas midiáticas de publicidade
e entretenimento? Quando um veículo de publicidade usa uma criança para
promoção de uma marca ou promover uma prática, o que ele nos comunica
com aquele corpo?
Considerando nossa sociedade adultocêntrica, centrada na produção de
espaços e práticas voltadas para os adultos, vemos na música certo tipo de ob-
jetificação do corpo feminino, da mulher adulta que ganha status central nos
temas da música, do cinema, da televisão e em outros gêneros da cultura, essa
objetificação, sob a qual não discorreremos profundamente aqui, incide sobre
a criança como um modelo de expressão visual no mundo da forma sensual e
adulta, desejada e aceita, cujos efeitos poderiam ser investigados em um estudo
mais complexo, para além dos processos históricos e culturais que alcançamos.
Mas a produção musical que se volta para a criança a partir dos anos 1980 é
mais do que um produto cultural, sua produção idealizou sobre a infância o
que se concebia externo a ela, o que seria seu universo particular.
Segundo Matte (1998), esses produtos carregam consigo uma imagem
da criança, imagem essa que, por sua vez, influencia a concepção do que é e do
que não é infantil. Nesse sentido, a indústria do entretenimento infantil operou
atribuindo qualidades ao conjunto de objetos que pertencem comumente ao
universo infantil, assim, o brincar vira dança e o comer é reposicionado frente
a uma infinidade de marcas de doces e refrigerantes, como expressam algumas
músicas da época, carregadas de significados da linguagem do mundo tipica-
mente adulto, como a linguagem corporal, da malícia e da sensualidade.
Mas, o que o material produzido pelos agentes da música- as cantoras
dos programas infantis- pode mostrar sobre o assunto? As imagens lançadas
pelos produtos dirigidos ao público infantil denotam a mescla de elementos do
entretenimento historicamente presente na cultura brasileira como o carnaval,
que não se espera tanto a participação de crianças, mas é esse o elemento que se
258
apresenta fundido ao gosto infantil no disco “Carnaval dos Baixinhos”, lançado
em 1988, pela Xuxa. O disco seria uma versão da música de carnaval adaptada
para crianças, alcançou a marca de 300 mil copias vendida em um mês.
Destaca-se na capa do disco2 a menina que tenta ficar em pé, ela veste
apenas uma peça íntima na parte de baixo, conhecida como “fio dental”, na
imagem a peça não é feita para ocultar o corpo da criança, mas evoca sensu-
alidade, o fetiche da peça mínima, que faz referência à performance feminina
no carnaval, nas praias, e por que não dizer dos programas de auditório? A
pequena garota faz uma sutil menção a Xuxa, ao trazer na cabeça as “xuxinhas”,
um elástico prendedor de cabelo que ficou famoso por também ser usado pela
apresentadora.
Ao lado da menina, vê-se uma criança do sexo masculino, de pele negra,
estereótipo dos sambistas cariocas, homens ligados ao samba, ao pagode ou
ao axé baiano. No caso da imagem, observa-se, ainda, que o menino usa um
“tapa-sexo”, sutilmente ali colocado para brincar com a pureza da sexualidade
infantil, como a folha que cobria as vergonhas de Adão.
Talvez olhando para esse disco podemos questionar, tomando a música
como arte, seria possível uma arte específica para crianças que pudesse negar
por completo o mundo adulto? Matte (1998, p. 21) reflete sobre o que seja uma
arte infantil, para a autora: “A primeira dificuldade encontrada no campo da
2 Detalhes do disco podem ser vistos em: discogs.com/Xuxa-Carnaval-Dos-Baixinhos/re-
lease/6628865.
259
arte infantil é que a arte busca uma espécie de inutilidade, de ‘desfuncionalida-
de’ prática, como se pudesse isenta-se da realidade.” Mas a arte infantil vincu-
la-se especificamente a um público que demanda dessa arte o que é infantil, e é
nesse instante que precisa inventá-lo.
E o que a arte para o adulto traz? O inverso, a não funcionalidade obje-
tiva? É possível afirmar que as expressões artísticas produzidas pela Indústria
Cultural têm como objetivo o lucro, seja ele advindo da venda de produtos para
adultos ou crianças. Segundo Theodor Adorno: “A Indústria Cultural absoluti-
za a imitação” (2000, p. 169), daí vem o modelo de importação dos sucessos do
mundo adulto e suas adaptações para inventar o infantil.
É com a transposição de modelos de sucesso que surge nos anos 1980 a
figura ambígua do artista infantil. Esse termo pode ser empregado tanto para
identificar a criança artista como o artista para criança. Segundo Matte (1998),
uma das observações mais interessantes sobre a história da canção infantil bra-
sileira é que ela pode ser dividida entre antes e depois da entrada do “músico
infantil”, o que ocorre na década de 80.
Essa constatação permite afirmar que somente a partir dos 1980 é que
podemos perceber uma maior participação de elementos adultos na música in-
fantil, como o próprio estilo da música que ficou marcada pela pop music, o que
criou a especialidade “música pop infantil”, com características de forte batida
de instrumentos reproduzidos eletronicamente, guitarras e teclados. Com as
mudanças no mercado fonográfico, ocorridas dos anos 1990 em diante, a músi-
ca infantil não ficou inerte nesse processo, suas transformações acompanharam
o que no gosto dos adultos se passava. É nesse momento que o gosto de crianças
passa a compor-se também com os produtos destinados aos adultos, o samba,
o rock e o axé integraram o repertório de estilos infantis, sem abandonar temas
lúdicos como brincadeiras e o consumo de doces.
Em 1995, já era possível notar essas transformações no set list do disco
de Xuxa, “Luz no meu caminho”, cujo repertório chamava atenção, se com-
parado com outros da apresentadora, pela ausência quase que total dos back
vocals infantis e pela maior mistura em relação a temas e estilos musicais. Sur-
giram, nesse disco, temas como ufanismo, musculação/academia, funk carioca,
ao mesmo tempo em que chama a atenção temas como advertência ao fumo,
religiosidade e outras duas faixas “mais infantis”, que falavam de doces e brin-
cadeiras.
Umas dessas faixas chama a atenção por inserir, em uma brincadeira de
criança, o beijo na boca. A faixa em questão chama-se “Salada Mixta”, destaca-
260
mos um trecho abaixo:
É esse?/ Não!!!/ É esse?/ Não!!!/ É esse?/ É!!!/ Pêra, uva, maçã, salada mista Diz o
que você quer/ Sem eu dar nenhuma pista/ Pêra dá as mãos/ Uva dá um abraço/
Maçã beijo no rosto/ E salada mista?/ Um beijinho selinho na boca -Na boca?/
Beija, beija, beija, beija!/ Essa brincadeira só não brinca/ Quem não quer/ De
olho fechado não dá pra saber quem é/ Quem tá de paquera e tem vergonha de
dizer/ Aproveita e tenta a sorte/ Fazendo Uni Duni Tê/ Uni Duni Tê/ Salamê
minguê/ Sem querer querendo/ Escolhi você!
261
2 Tchan? Axé music e o sucesso com crianças
262
de letras humorísticas elaboradas. De acordo com a definição dada pela pesqui-
sadora, pode-se pensar na grande parte dos grupos musicais brasileiros que se
destacaram na mídia em geral, nos últimos 20 anos, como enquadrados nessa
vertente musical. Hoje, os estilos axé, funk, sertanejo e o forró encaixam-se
nesse esquema, em que a sensualidade é a base do conjunto musical: letra-per-
formance-ritmo dançante.
É nesse sentido que a expressão máxima da música pop infantil, apro-
priando-se de elementos comuns da música popular nacional, incorporados
às matrizes de produção e difusão musical nas duas últimas décadas do século
XX, reproduz sobre os aspectos já delineados do fantástico discurso dirigido
às crianças elementos comuns de vertente maliciosa. Em outras palavras, sob
o sucesso do disco infantil também foram impressas referências da música po-
pular, mais especificamente a canção de duplo sentido e a música de interação
dançante. Carla Perez e Xuxa habitavam o mesmo espectro na mídia e no ima-
ginário popular.
No grupo “É o Tchan”, uma linguagem do corpo feminino era expressa
por suas dançarinas, uma loira, uma morena (representando a diversidade ra-
cial do Brasil?), no meio delas um dançarino, de menos sucesso na interação
com o público, chamado apenas de “Jacaré”. Requebrando ao som das músicas
que, em muitos casos, expressavam-se de forma ambígua a fim de deixarem os
sentidos das palavras por se completarem nos sentidos do corpo: shortinho,
tênis e uma pequena peça para sustentar os seios, “a loira do tchan” era esteti-
camente distinguível das paquitas.
As letras simples e rapidamente memorizadas pelos fãs, dos quais as
crianças também faziam parte, contrastavam-se com o som frenético de ba-
tucadas, com a linguagem dos corpos dançantes e seus gestos com referências
sexuais, conquistando o público que os imitava tomando performances como
desafios. A letra por si só, sem a imagem da performática do corpo, não con-
seguia dar conta do significado que se queria atribuir à melodia. A letra de
“Dança do Bumbum”, abaixo destacamos trecho, de quando o grupo ainda era
conhecido como “Gera Samba”, é um exemplo disso:
Cheguei, hein! Estou no Paraíso!/ Que abundancia meu irmão!/ Conheci uma
menina que veio do sul/ Pra dançar o tchan e a dança do tchu tchu/ Deu em
cima, deu em baixo,/ na dança do tcheco/ E na garrafinha deu uma raladinha/
Agora o Gera Samba mostra pra vocês/ A dança do bumbum que pegou de uma
vez/ Bota a mão no joelho/ E da uma baixadinha/ Vai mexendo gostoso, Balan-
çando a bundinha/ Agora mexe vai,/ Mexe, mexe mainha/ Agora mexe, Mexe,
mexe lourinha/ Agora mexe,/ Mexe, mexe neguinha/ Agora mexe/ Balançando
263
a poupancinha4.
264
Primeiro Débora Brasil foi substituída por Sheila Carvalho. Depois Carla Pérez
saiu para a carreira de apresentadora de programas de TV, e foi substituída por
Sheila Melo. A seguir foi a vez de Beto Jamaica sair para a entrada de Renatinho.
Em todas essas ocasiões a mídia contribuiu para a escolha de novos integrantes,
com concursos feitos em programas de TV (Domingão do Faustão, da TV Glo-
bo) (Grifos e parênteses do original) (LEME, 2003, p. 107).
Figura 2: Captura de tela. Programas de Sílvio Santos e Raul Gil. Respectivamente: 1995 e 1999.
Fonte da esquerda para direita: https://www.youtube.com/watch?v=3veGcqDM04c. http://
www.youtu-be.com/watch?v=TSGOXOwCFHA.
265
e insistiam com os pais para ter roupas curtas lançadas pelas dançarinas. Com o
“É o Tchan”, a música extrapolava o simples ato de ouvir: mexia com os corpos,
mentes, gestos, valores e comportamentos – em que a criança disputava com o
adulto quem rebolava o bumbum mais sensualmente.
Os programas de televisão, que são um gênero do entretenimento te-
levisivo (FILHO, 1988, p. 50), possuíram em sua base um lado humorístico,
circense e com um apelo sensual à imagem feminina e infantil. Isso fez do teor
televisivo um atrativo tanto para crianças como para adultos. O sucesso do gru-
po baiano movimentou um mercado paralelo, o de roupas e acessórios, que
fazia referência aos componentes do “É o Tchan”. Nos anos que se seguiram,
com seu sucesso, surgiram “shorts da Carla Pérez”, sandálias, tamancos e outros
produtos que travestiram meninas em “mini-mulheres”, na década de 1990, o
mercado cultural infantil deslocou-se das apresentadoras para outras figuras de
referências, como as dançarinas do Tchan. Geralmente, os produtos paralelos
às músicas chegavam com versões para crianças. O que explica esse sucesso
com o público infantil? Seria difícil precisar de forma afirmativa o porquê de
esse gênero malicioso ter feito tanto sucesso entre crianças, para além das es-
tratégias de criação e difusão da Indústria Cultural. A recepção seria uma pos-
sibilidade fundamental de pesquisa - a recepção ao grupo pelo público infantil
- que demandaria mais tempo, e por isso este trabalho não se dispõe a fazê-lo
neste momento.
Considerações finais
266
Com o auxílio de autores da Comunicação Social, passei a entender a
televisão como meio de difusão e influência social, distribuída em diversos as-
pectos da vida cotidiana. Encontrei nos programas infantis um espaço dedica-
do às atividades da criança e que, segundo a bibliografia consultada, indicava
características de rompimento com as visões tradicionais da infância, cercada
de inocência e ludicidade, com a inserção de novas práticas possíveis de subje-
tivação para as crianças.
Daí em diante, pude enxergar atividades de comercialização da cultura
que envolviam as transformações em torno do corpo feminino e que estavam
conectadas com a infância no último século. Isso exigiu de mim um breve con-
tato com conceitos da psicanálise e teorias da sexualidade residentes na psico-
logia, o que para a prática da História é comum nas pesquisas interdisciplinares.
Se por um lado os programas infantis dos anos 1980 representaram para
uma geração de crianças um espaço na TV dedicado exclusivamente a elas e
sua diversão, por outro, fez delas uma nova categoria social pertencente ao gru-
po de consumidores em potencial. Se por muitos essa época foi chamada de a
geração da “babá eletrônica”, por outros foi acusada de provocar nas crianças
o desejo de ser como seus ídolos, adultos, de bota e perna de fora, exuberante-
mente sensuais, tornando-as consumidoras em potencial.
Atualmente, não é difícil encontrar, principalmente na internet, discus-
sões a respeito do uso da imagem feminina em letras musicais que expressam a
mulher como objeto de uso, por muitas vezes de forma desrespeitosa. Em certa
medida, a acusação de que o poder da Indústria Cultural sobre as pessoas faz
com que elas deixem passar desapercebidamente essas expressões musicais, a
custo do entretenimento, não pode ser concebida como uma determinação de
mercado predominante somente em nossos dias, mas presenciamos cada vez
mais a banalização de temáticas como essa.
A expressão da sensualidade do povo brasileiro ultrapassa a história das
formas massivas de informação eletrônica, está presente na literatura, como na
música, desde o início do século XX ou até mesmo antes disso. Porém, é bem
verdade que a submissão do tema a pesquisas se apresenta como algo urgente
para a problematização da cultura predominante em nossa sociedade, sempre
pensando o lugar ocupado pela criança em meio à mercantilização e banaliza-
ção de valores e pessoas.
Penso que esta é a principal contribuição que pode ser dada por este
trabalho: pensar a cultura visual como uma mercadoria vazia do modo de pro-
dução capitalista, dentro de um processo histórico que não despreza a criança
como sujeito histórico e objeto, consumidora e mercadoria. Ao tempo que a
267
infância chamou a atenção da Indústria Cultural como algo a ser trabalhado e
criado, para atender também interesses de um novo mercado que se formava.
Diante disso, cabe sempre nos perguntarmos: que tipo de infância continua a
ser construída no Brasil?
Referências
268
Narrativas de vida:
a biografia de Marcelo Thadeu de
Assumpção (1950-1970)
1 O objeto da história, portanto, não são, ou não são mais, as estruturas e os mecanismos
que regulam, fora de qualquer controle subjetivo, as relações sociais, e sim as racionalida-
des e as estratégias acionadas pelas comunidades: as parentelas, as famílias e os indivíduos.
[...] o olhar se desviou das regras impostas para as suas aplicações inventivas, das condutas
forçadas para as ações permitidas pelos recursos próprios de cada um: seu poder social, seu
poder econômico, seu acesso à informação (CHARTIER, 1994, p. 98).
270
É impossível compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento social que,
embora o acompanhe de forma inevitável, é independente do envelhecimen-
to biológico) sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos
do campo no qual ela se desenrolou e, logo, no conjunto das relações objetivas
que uniram o agente considerado – pelo menos em certo número de estados
pertinentes – ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e
confrontados com o mesmo espaço dos possíveis. Essa construção prévia tam-
bém é a condição de qualquer avaliação rigorosa do que podemos chamar de su-
perfície social, como descrição rigorosa da personalidade designada pelo nome
próprio, isto é, o conjunto das posições simultaneamente ocupadas num dado
momento por uma individualidade biológica socialmente instituída e que age
como suporte de um conjunto de atributos e atribuições que lhe permite inter-
vir como agente eficiente em diferentes campos. (BOURDIEU, 1996, p. 190).
271
cadeados e uma intriga codificada por fatos reais, interpretados”.
272
salta que é preciso questionar quais os caminhos e descaminhos que a própria
biografia seguiu na história e quais os distanciamentos e as aproximações que
se deram entre ambas. Em contrapartida, é necessário ter em mente as diversas
maneiras como os estudos biográficos foram pensados, criticados, negados e
praticados ao longo do tempo.
Nessa lógica, a pluralidade de formas de narrar a vida de um indivíduo,
nas décadas iniciais do século XX, vislumbrou-se com maior regularidade os
modelos de biografias que se constituíram em narrativas cronológicas e line-
ares, nas quais se percebia a vida de um indivíduo como começo, meio e fim
previamente definidos. Para tanto, em meados do século XX, começam a surgir
descontentamentos com esse tipo de abordagem biográfica, a exemplo de Pier-
re Bourdieu que, segundo Roiz (2012), vem expressar seu descontentamento
com esse tipo de abordagem.
273
narra experiência de si, questiona os sentidos de suas vivências e aprendizagens.
As biografias, segundo Doudement (2013), seguem uma linha de par-
cialidade que levam à compreensão da trajetória e da inserção social do bio-
grafado, tornando-se para o historiador uma ferramenta de compreensão das
maneiras como se pode filtrar o contexto histórico, bem como as intenções
por trás do discurso do biografado. Caracterizando, assim, as biografias como
conteúdos históricos que possibilitam vieses de investigações com discursos
retóricos.
Partindo desse pressuposto, as histórias de vida se constituem como um
enredo único e complexo que vão desvelando as relações familiares, pessoais,
o meio social e cultural em que o sujeito se insere, revelando uma espécie de
“teia narrativa” (ALMEIDA, 2011) em que a carreira profissional e pessoal se
desenrolam.
Mediante isso, procuramos compreender a trajetória de vida de Marcelo
Thadeu de Assumpção, a partir da perspectiva do uso ou do fazer biográfico na
história enquanto fonte documental de pesquisa, elencando os anos iniciais de
vida do biografado, as suas contribuições no cenário público enquanto médico,
educador e político.
Marcelo Thadeu de Assumpção nasceu na cidade de Caxias no dia 16
de janeiro de 1916, filho do comerciante Antonio Thadeu de Assumpção e de
Guiomar Assumpção, estudou o ginásio no Colégio Caxiense e no Liceu Ma-
ranhense, na capital São Luís, onde, devido à sua vocação de bem servir ao
próximo, envereda-se pelo Seminário, mas, por influência de amigos como Al-
derico Silva e de familiares, gradua-se na Faculdade de Medicina da Bahia, de-
dicando-se inteiramente ao curso, mas sem perder de vista a sua cidade Caxias.
Ainda na graduação, já era solicitado para dar sugestões ou contribuições para
a saúde de sua cidade. Na imagem a seguir, destaca-se o Diploma de Médico de
Marcelo Thadeu de Assumpção em 1944.
274
Figura 1: Diploma do curso de Medicina de Marcelo Thadeu de Assumpção.
Fonte: Memorial Humanista Dr. Marcelo Thadeu de Assumpção
(Fundação Educacional Coelho Neto).
Na verdade, a formação dele foi primeiro seminarista, ele foi seminarista, né,
dois anos fez seminário em São Luis, depois então foi que ele resolveu fazer o
concurso pra medicina lá na Bahia, ele teve oportunidade de fazer em São Luis,
mas naquele tempo tinha mais nome na Bahia, né, e ele depois dele terminar a
formação de seminarista ele também foi professor de francês e latim lá no colé-
gio caxiense. (ASSUNÇÃO, 2016).
275
sultar, de operar, passar receita, ainda dava o remédio, dependendo da condi-
ção financeira do seu paciente [...]” (BASTIANI, 1998, p. 21), bem como aten-
der a população na própria residência, pois a cidade ainda não disponibilizava
de um hospital para atender seus doentes.
Outra responsabilidade social assumida por Marcelo Thadeu de As-
sumpção foi no campo da educação, além dessas funções, Marcelo Thadeu de
Assumpção também permeia o cenário político caxiense.
276
de 1953 o ambulatório do hospital já funcionava, e era ele quem atendia esse
setor.
Marcelo Thadeu de Assunção, enquanto médico, exercia um trabalho
voltado para o assistencialismo e o preventivo. Segundo Bastiani (1998), um
dos trabalhos mais exaustivos que Dr. Marcelo Thadeu realizava era o parto,
pois, embora existissem as parteiras, elas já não eram tão solicitadas, a presença
de médicos com seus conhecimentos científicos inibia o chamamento dessas
mães de parto.
Acerca desse trabalho assistencialista e preventivo realizado por Dr.
Marcelo Thadeu, ressalta-se que no Brasil, até o início dos anos 1960, predomi-
nou o modelo político assistencial do sanitarismo campanhista, isto é, política
de saneamento destinada aos espaços de circulação das mercadorias ou contro-
le das doenças que poderiam prejudicar a exportação (POLIGNANO, 2009).
Naquela época, a saúde para a época era três vezes melhor que a de hoje, porque
naquela época tinha uma saúde preventiva, os médicos vinham em casa, Dr.
Marcello ele vinha com um guarda-chuva, a pasta e um aparelho de pressão no
ombro, com a bata branca, com o bolso cheio de injeções, ainda uma caixinha
na sua pasta de amostra grátis. Dr. Marcello, Dr. Achiles Cruz, DR. José Bran-
dão e Dr. Salvador Barbosa, eu conheci Caxias com quatro médicos, mas esses
quatros médicos eles traziam as ferramentas pra fazer o parto em casa, o Miron
já existia, mas o Miron ainda tava longe do povo, mas o médico fazia a busca do
povo, iam atrás em casa, era uma coisa muito bonita, a medicina era respeitada,
o médico naquela época era um mito [...]. (TEIXEIRA, 2015).
277
ricos ou pobres, como se observa, a seguir, no bilhete do seu amigo e Bispo de
Caxias, D. Luiz Marelin, enviado ao Dr. Marcelo Thadeu de Assumpção.
“Amigo Marcelo,
Marciano, bom rapaz, que me dá sempre dias de serviço aqui em casa, encontra-
-se doente, faz muitos dias. Não se sabe o que é.
Peço ao Sr. em nome de nossa velha amizade e de seu espírito humanitário, dê
um pulinho lá, para o examinar e medicar. Aí vai o nosso carro, que poderá
levá-lo e, depois, trazê-lo novamente”
Ficar-lhe-ei muito grato.
O amigo D. Luis. (BASTIANI, 1998, p. 22)
[...] A lembrança que eu tenho dele é que as mulheres parideiras gostavam mui-
to dele, na hora que sentia dor era ele, ele era um bom parteiro, um bom parteiro
mesmo, só que era naquele jeito dele. Até que eu tenho uma comadre, aí ela veio
do interior, trouxeram aqui pra casa, aí eu não sei como ele atendeu essa mulher,
e a mulher veio do interior com aqueles remédios que passam na barriga, tanta
coisa, aí chamaram ele lá dentro, aí ele procurou porque temperaram tanto ela,
menino mas a gente sorriu, a gente sorriu de mais, porque ele era assim todo
maluco, daquela forma... Os partos que ele fazia era tudo normal, mas nessa
parte ele era um bom médico. (GONÇALVES, 2016).
278
Trazendo como foco a educação, problematiza-se a trajetória profissio-
nal de Marcelo Thadeu de Assunção no cenário educacional caxiense. Nesse
viés, a discussão a ser empreendida, em relação à formação e trajetória educa-
cional, dá-se de modo articulado na história da cidade.
Coutinho (2005) afirma que “Caxias, desde os seus primeiros tempos,
mesmo nas eras mais remotas, em que lhe deram o nome de Aldeias Altas, pri-
mou sempre pelo amor à instrução, sentimento inato que sempre caracterizou
seus filhos”. Embora a afirmativa do escritor enalteça a prioridade educacional
dentro da cidade de Caxias, o que percebemos dentro da história é que nem
sempre a educação foi tão priorizada e oferecida a todos os filhos desta cidade,
tanto que no período trabalhado o índice de analfabetismo era muito elevado.
Dentre as escolas particulares existentes em Caxias na época estava o
Ginásio Caxiense, o pioneiro das escolas privadas, sendo fundado em 1935, em
seguida, o Ginásio São José, fundado em 1955, o Ginásio Diocesano, também
em 1955. Para o ensino público fica o primário, pois só em 1963 Caxias ganha
a primeira escola ginasial pública, o colégio Gonçalves Dias.
Foi dentro desse contexto que Marcelo Thadeu de Assumpção passa a
interessar-se pelo ensino, embora todos soubessem seu amor pela medicina,
Marcelo Thadeu não se conteve em exercer apenas a profissão da formação
acadêmica. Quando foi seminarista, aprendeu a falar francês e latim, até mes-
mo porque na Universidade da Bahia, onde se formou no curso de medicina,
era uma obrigação o aluno ter que dominar a língua francesa, pois muitos dos
livros eram escritos no referido idioma, familiarizando os alunos com a língua
estrangeira.
Bastiani (1998) afirma que Marcelo Thadeu fez o Curso Normal pelo
Colégio Santa Rosa, onde especializou-se em latim, francês, História Natural e
Ciências, com registro definitivo no MEC.
Sendo assim, em 1950, atende ao pedido de D. Luis Marelin para lecio-
nar latim e francês no Seminário, onde lecionou até 1954. A prática docente se
expandiu na vida dele, fazendo com que o médico-professor lecionasse tam-
bém nas grandes escolas da cidade, como Caxiense, São José, Diocesano, todas
tidas como “escolas de elite”.
Dentro do recorte temporal proposto, através da realidade educacional
mostrada pelos documentos e lembranças de pessoas que viveram na época,
percebemos de certa forma que a preocupação com a educação dos “caxienses”
era bem restrita, pois, se voltarmos nosso olhar para esse quadro, surgem inú-
meras indagações. Tendo em vista que a grande maioria das escolas existentes
279
no período era particular, ou seja, de acesso à elite, como as demais classes
caxienses seriam beneficiadas com a educação? Como relata Maria Ferreira da
Silva:
280
Figura 3: Nota pública sobre a autorização do Ginásio Coelho Neto em Caxias- MA.
Fonte: Jornal Folha de Caxias, 28 de abril de 1963, Ano I, nº 13, p. 1.
281
Figura 4: Fachada da Escola Coelho Neto, 2016.
Fonte: Acervo pessoal de Marcus André Chaves Soares da Silva, 2016.
Vale destacar que alguns dos alunos que passaram a estudar na referida
escola, apesar de ser uma escola particular, eram bolsistas vindos da zona rural,
chegando até a morar na própria escola, pois, por conta desse fato, funcionava
também como república para esses alunos. Podemos perceber isso nas lem-
branças de Manoel de Pascoa Medeiros Teixeira, pois diz que:
A escola, para quem dela fazia parte, e para quem era beneficiado pelas
bolsas dadas pelo Dr. Marcelo Thadeu, era vista e conhecida como uma escola
popular, lugar de pobres e ricos. Quanto ao corpo docente da escola, faziam
parte dessa equipe pessoas que, embora não tivessem uma formação específica
na docência, tinham alguma afinidade com a disciplina que ministravam. Fa-
ziam parte desse seleto grupo:
282
dominava ciências, as quais lecionaram em algumas escolas, inclusive na escola
dele. (FARIAS, 2015).
283
maior do grupo político encabeçado por Sarney era não perder o governo de
um dos maiores e mais importantes municípios do estado.
Para um melhor entendimento sobre a entrada do Marcelo Thadeu de
Assumpção na vida política, devemos partir do momento em que foi candi-
dato a prefeito no ano de 1955, mas não obteve êxito, perdendo a eleição para
João Machado, representante da oligarquia vitorinista2 em Caxias. Em 1959,
candidata-se pelo PTB a uma vaga na Assembleia Legislativa do Estado do Ma-
ranhão, assume uma cadeira como Deputado Estadual, sendo esse, de fato, o
início de sua carreira política.
Segundo Bastiani (1998), como deputado, o Dr. Marcelo Thadeu prestou
muitos serviços a Caxias, tais feitos retrataremos no decorrer do trabalho. Vale
ressaltar que o mesmo escritor destaca os prestígios de Marcelo Thadeu não só
na imprensa local, mas também da capital, como Jornal do dia, Jornal do Bolso,
Jornal O Imparcial, sendo que todos circulavam na capital São Luís, esses jor-
nais sempre elogiavam o desempenho dele.
Em 1967, é reeleito Deputado Estadual para mais um mandato de quatro
anos, porém, antes do término do seu segundo mandato, Dr. Marcelo torna-se
membro do partido ARENA (Aliança Renovadora Nacional), do qual faziam
parte os que ele considerava como grandes amigos e incentivadores na vida
política, eram eles: Alexandre Costa, Aluizio Lobo (prefeito na época), José
Sarney (Governador na época), também tinha o apoio de Alderico Silva, que
era considerado um dos homens mais influentes da cidade.
Conforme dito por dona Maria Idelcineide Assunção, de todos os ci-
tados acima, Alexandre Costa foi o maior motivador para ele seguir carreira
política, podemos perceber isso através da escrita de Bastiani (1998), quando
afirma que:
O seu grande amigo Alexandre Costa não tinha local nem hora pra enaltecê-lo.
Além da grande amizade existente entre os dois, Alexandre sempre procurava
colocá-lo no topo, quase versejando as qualidades. Não fosse a sua incapacidade
de saúde, com certeza estaria escrevendo páginas e páginas enaltecendo o amigo
de sempre de todas as horas. (BASTIANI, 1998, p. 47).
2 “O Vitorinismo, com efeito, foi um coronelismo. Das suas formas de ação exclui-se a
propensão para a dominação econômica. Nesse caso (ao nível de Estado), essa dominação
se processava de forma indireta, ou seja, por meio do apoio que dispensava as suas bases
de sustentação, através da concessão de garantias específicas. No plano político propria-
mente dito- esfera exclusiva do interesse do Vitorinismo - a sua ação se centrava em torno
do controle dos partidos políticos e das sub-lideranças políticas com ele identificadas que,
juntamente com os coronéis do estado davam a configuração real do vitorinismo” (CAL-
DEIRA, 1978, p. 60).
284
Depoimentos do autor e de quem o conhecia revelam que a amizade
existente entre os dois não era segredo, creio que foi através da motivação de
seu amigo (ou amigos) que ele aceitou mais esse desafio, o qual marcaria mais
ainda sua participação na política, dessa vez, Marcelo Thadeu foi convidado
para mais uma vez concorrer às eleições para a prefeitura de Caxias, tendo
como adversários o Dr. Raimundo Nonato Medeiros e Filomena Teixeira (Tia
Filozinha), duas pessoas que tinham grande prestígio dentro da cidade.
Dr. Raimundo Nonato Medeiros por ser um grande médico, e Filomena
Machado Teixeira, “Tia Filó”, por ser “professora de muitas gerações, abnegada
pela causa da educação, querida tanto pelos alunos como pelos seus pais” (BAS-
TIANI, 1998, p. 35).
É válido destacar que “a Filozinha muito fez por Caxias, e para os caxien-
ses, no magistério, na política, no feminismo, nos movimentos sociais, nas rei-
vindicações populares e, em tudo, imprimindo moral irrepreensível” (LOBO,
2003, p. 151).
Essa era a imagem que muitos tinham dos opositores do grupo que estava
no poder, fazendo com que a preocupação e o medo de sair de cena crescessem
cada vez mais, pois naquele momento o governo do atual prefeito Aluízio Lobo
não estava indo bem aos olhos dos caxienses e o risco de perder as eleições era
imenso e, dentro dessa realidade, o número de opositores crescia cada vez mais.
Pelo fato de o quadro político de Caxias, no final do mandato do prefeito
Aluízio Lobo, não está a favor do grupo ARENA3, e pela oposição ser muito
forte, viram no Dr. Marcelo Thadeu a chance de vencerem aquela disputada
eleição, pois o prestígio de Aluízio Lobo não era o suficiente para que o grupo
ARENA vencesse as eleições.
O convite foi aceito pelo Dr. Marcelo Thadeu, tendo como vice Elmary
Torres, tais candidatos contaram com o apoio total dos seus aliados e com fer-
ramentas poderosas, podemos citar, sem sombra de dúvida, o jornal Folha de
Caxias, pois durante o período político se percebia a ênfase e a exaltação que
fazia sobre o nome do Dr. Marcelo Thadeu em cada matéria.
Apesar da acirrada disputa, a vitória foi de Marcelo Thadeu e Elmary
Torres, vitória essa que rendeu comentários, pois os boatos eram que havia tido
3 A ARENA foi criada por políticos conservadores ligados à Ditadura Militar, como par-
tido situacionista. A ARENA foi um dos dois partidos criados no período de vigência do
chamado bipartidarismo (o outro partido foi o Movimento Democrático Brasileiro- MDB),
montado pelo Regime a fim de dar aparência da existência de um jogo democrático no país.
(GUILHON, 1996)
285
fraude na apuração dos votos, e assim ficam os dois lados da história: a vitória
foi merecida ou houve a fraude apontada pelo grupo opositor?
Ainda hoje a eleição é vista como uma das maiores disputas políticas
existentes na cidade de Caxias, isso é notório na fala de quem viveu esse mo-
mento, a dúvida ainda acompanha uns e a certeza, outros. Através da fala de
Maria Júlia Soares Andrade, temos a impressão de que ela tem a vitória do
Dr. Marcelo como merecida, afirma: “Era a única opção, ele não era perfeito,
mas era o melhor para aquele momento”. Com isso, percebemos que, embora
a entrevistada não o visse como a solução dos problemas vividos pela socieda-
de caxiense naquele momento, mas, dos candidatos, ela via nele a tentativa de
resolver alguns.
Ao longo das entrevistas, alguns relatos frisavam essa eleição como um
‘passado negro’ de Marcelo Thadeu, pois alguns acreditam que houve fraude,
e o Dr. Medeiros e Filomena Teixeira eram os favoritos dos caxienses, porém,
o grupo que estava no governo não aceitava que o poder saísse de suas mãos,
como nos relata Manuel da Páscoa Medeiros.
Eu me lembro que eu votei nele pra prefeito, o Aluizio Lobo impôs a idéia de que
ele seria prefeito de um jeito ou de outro, Dr. Medeiros mais a Filozinha eram
os grandes favoritos desta política, e a política não foi legal, houve uma perca de
valores ético, também cívico, porque a política foi totalmente errada, quem foi
eleito foi o Dr. Raimundo Nonato Medeiros, mas os sistemas de votos contabi-
lizaram em favor do Dr. Marcello, foi encontrado na União Artística Operária
Caxiense muitos votos do Dr. Medeiros, depois queimaram e passaram para o
Dr. Marcello. Este é um capítulo negro da história dele, e também um capítulo
sujo na história política. (TEIXEIRA, 2016).
286
Figura 5: Nota acerca da posse de Marcelo Thadeu de Assumpção na prefeitura.
Fonte: Jornal Folha de Caxias, 11 de janeiro de 1970, Ano VIII, nº 409, p. 1.
287
Considerações finais
Referências
Fontes referenciais
288
Caxias/MA. Caburé Editora, 1998.
LÔBO, Libânio da Costa. Vulto singular, em meio a rico mosaico. Rio de Ja-
neiro: ALLPRINT Impressões e serviços, 2003.
289
OLIVEIRA JÚNIOR, Rômulo José F. de. Antonio Silvino: “de governador dos
sertões a governador da Detenção” (1875-1944). Dissertação de mestrado. Re-
cife: UFRPE, 2010.
Fonte hemerográfica
Fontes orais
290
Trópico & homem:
O mundo que o português criou de
Gilberto Freyre (1940)
292
Ainda nesse sentido, outro ponto visto como um problema se refere ao
fato de que sua obra teria sofrido um corte profundo e essencialmente negativo
a partir de 1940. Nesse ano, quando foi editada, com acréscimos de uma série
de conferências no exterior de 19384, sua obra apresentaria uma inflexão no
sentido de pensar num corte epistemológico em que agora (1940 em diante),
considerada madura, contrastaria com a obra da juventude (anterior a 1940),
contraste esse que acabaria por diminuir ainda mais as contribuições que no
início representava.5
Porém, essa ambiguidade pode revelar uma coisa importante, que é o
quase desconhecimento da obra de Gilberto posterior aos ensaios de interpre-
tação histórica dos anos 1930. E quando alguma interpretação é lançada sobre
as obras desse período, essa interpretação apresenta no geral alguns elementos
em comum. Um deles é a concepção de que esse período seria representativo
da formação de uma concepção teórica lusotropicalista. Uma pseudoteoria sem
grande relevância para os estudos sociais. Outro desses elementos é uma con-
denação ainda maior em relação à obra do autor, visto que o lusotropicalismo
apenas teria servido para legitimar a dominação imperialista em África pelo
regime salazarista (PINTO, 2001; CASTELO, 2011).
Ao longo de nossos estudos sobre a obra de Gilberto, detendo-nos par-
ticularmente sobre temas relacionados às suas reflexões em relação ao tema do
trópico, percebemos que essas interpretações, em grande medida, repletas de
ambiguidades são discutíveis quando não incorrem em equívocos evidentes
quando de uma leitura mais profunda. Um primeiro equívoco reside no fato de
que muitas vezes não se considera que a questão do trópico operava na obra de
Gilberto desde o seu início até o fim (como na epígrafe do nosso presente tra-
balho indicamos), atravessando, portanto, toda a sua vasta obra, sendo difícil
indicar um corte preciso em relação a isso.
Um segundo ponto que pode ser discutido é ainda a questão de que a
Tropicologia é muito mais que “lusotropicalismo”, pois abrigava a hispanotro-
picologia e propunha uma abordagem multidisciplinar numa tentativa ousada
e original de reinterpretar as interações entre homem e trópico.
Em que medida essas nossas problematizações em relação às leituras so-
bre a obra de Gilberto são importantes? Como se pode articular a partir delas
uma nova forma de abordar a obra de Gilberto Freyre? Para responder a essas e
outras questões, acreditamos que um roteiro deve ser estabelecido, esse itinerá-
4 “Trata-se da segunda edição de Conferências na Europa, com longa introdução do autor,
prefácio de Antonio Sergio e maior número de apensos” (FONSECA, 2002, p. 119).
5 Sobre isso, ver os trabalhos de SOUZA (2000) e SANTOS (2003).
293
rio passa primeiro pelo apontamento do tema do trópico em sua obra.
Depois abordaremos mais particularmente a forma como esse tema foi
posto no livro O mundo que o português criou e, por fim, buscaremos interpre-
tar a tropicologia e sua possibilidade de configuração como ciência ou quase
ciência tropical e sua possível contribuição para a prática historiográfica.
Esse estudo do homem situado em áreas ou espaços tropicais pode ser compro-
vado desde seus primeiros escritos, quando esboça intuições sobre o espaço, o
tempo e a duração, captando, também, diversidade e diferenciação de grupos
de populações segundo o tempo ou época de suas vidas e sua íntima correlação
com a natureza tropical. É o que se pode ver em Tempo de Aprendiz e no Livro
do Nordeste, (Comemorativo do 1° Centenário do Diário de Pernambuco), obra
coletiva por ele organizada, como o último livro até agora publicado Modas de
Homem e Modas de Mulher. (MIRANDA, 1987, p. 193).
294
português “plástico”. Conceitos em nossa compreensão que foram fundamen-
tais na construção dessa concepção tropicológica.
Segundo Freyre, devemos primeiramente considerar que: “quando em
1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois
de um século inteiro de contacto dos portugueses com os tropicos; de demons-
trada na India e na Africa sua aptidão para a vida tropical” (FREYRE, 1933, p.
1).6 No capítulo III “O colonizador portuguez: antecedentes e predisposições”,
o autor inseriu uma discussão bastante inovadora nos estudos sobre a forma-
ção social brasileira, destacando a plasticidade do colonizador luso, enfatizou o
caráter histórico do português como povo com experiência em miscigenar-se,
em misturar-se, como povo em que a “Europa reina, mas a África governa”.
Entretanto, a questão do trópico na obra de Gilberto Freyre não se apresentou
tendo um único sentido ou referindo-se a uma dada temporalidade ou região
geográfico-social. Afinal, de acordo com os historiadores Maria Lúcia G. Palla-
res-Burke e Peter Burke:
Importa assinalar que o que contava como trópico nunca foi muito claro. Como
sempre, Freyre hostil a definições precisas e fronteiras impenetráveis. Ele usou o
termo “trópico” em diferentes ocasiões para se referir a uma região, o Nordeste;
ao Brasil em sua totalidade (apesar de não se um país completamente tropical);
e partes da Ásia, da África e das Américas. (PALLARES-BURKE, BURKE, 2009,
p. 296).
6 Manteremos a grafia dos textos originais quando nos referirmos a esse texto e também
aos outros em análise.
295
3 O mundo que o português criou em análise
296
Ao suggerir a defesa da cultura luso-brasileira como essencial ao nosso desen-
volvimento autônomo em fave de qualquer imperialismo de cultura – o impe-
rialismo econômico seria, por inclusão, um imperialismo de cultura – que possa
nos ameaçar em futuro próximo (seja esse imperialismo europeu, asiático, ou
americano), não é nenhum nacionalismo estreito ou jacobinismo ranzinza que
advogo. (FREYRE, 1940, p. 38).
8 No texto: Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira, que foi primeiramente lido em forma
de conferência no Gabinete português, de leitura em 2 de junho de 1940, Gilberto Freyre
afirmou sobre o que considerava uma ameaça aos valores luso-brasileiros que no Brasil:
“[...]Já se realizam congressos culturais e políticos direta ou indiretamente anti-luso-brasi-
leiros [...]” (FREYRE, 1942, p. 69).
9 E onde todo escritor deveria trabalhar pela ratificação dessa unidade (FREYRE, 1940, p. 65).
10 O historiador Charles Boxer levantou muitas críticas em relação a isso. Sobre esse debate
ver: SCHNEIDER, 2013.
297
gueses, fundadores no Brasil, desde os primeiros tempos, de famílias mestiças,
não deve ser esquecido o aspecto romântico, para accentuar-se só o voluptuoso.
[...] Esse caracter humano da colonização portuguesa, se no Brasil é que teve a
sua expressão mais larga e ao mesmo tempo mais feliz, é, entretanto, commum
á obra colonizadora de Portugal. Em toda a parte onde dominou esse typo de
colonização, o preconceito de raça se apresenta insignificante [...]. (FREYRE,
1940, p. 45).
Nessa forma de ver de Freyre, teria sido esse amor histórico que fundou a
civilização luso-tropical no Brasil, África e mesmo na Índia. E isso seria funda-
mental para que “os luso-descendentes – puros e mestiços – de areas diversas,
quando se põem em contacto uns com os outros é para se sentirem espanto-
samente semelhantes nos seus motivos e nos seus estilos de vida” (FREYRE,
1940, p. 47). Essa unidade transnacional em que uma cultura viva envolvia-o
como uma muralha fazia desse mundo luso-afro-asiático-brasileiro uma uni-
dade cultural singular.
Porém, esse pensamento que de certa maneira apagava as diferenças,
embora Freyre insistisse que as diferenças regionais convergiam para a uni-
dade transnacional, também ensejava um sentido. Particularmente, ilustramos
aqui a questão da discussão em torno da democracia política. Em 1940, o Brasil
vivia um regime político chamado de “Estado Novo” desde 1937, Portugal já
estava sob a égide de um regime fascista, o salazarismo, as colônias portuguesas
em África viviam sob o rígido controle luso sem democracia política, liberdade
de expressão e participação popular.
Paradoxalmente, Freyre a despeito dessas questões dos regimes fechados
que estavam por todo esse mesmo mundo português, ele reiterava que apresen-
tava uma democratização social ímpar. O que ele entendia quando se referia
em termos de democratização cultural?
298
predisposição do português para misturar-se a partir de seu histórico contato
com os povos do Norte da África, Gilberto acabou por generalizar a partir des-
ses elementos toda uma complexa e diferente no tempo e no espaço coloniza-
ção lusa em três continentes diferentes. Terceiro, considerando o tempo histó-
rico em que Freyre publicou essas afirmações, essas propostas se concatenavam
com o regime político português, além de satisfazerem às vontades pessoais de
Freyre em enfatizar que esse mundo português era fruto de uma história da
“cultura formada pela confraternização”, numa visão que privilegiava a coesão
social e minimiza os elementos contraditórios que eram vistos em “equilíbrio”,
minimizando, assim, o conflito social.
Esse tema e outros temas daquilo que posteriormente seria categoriza-
do como Tropicologia foi desenvolvido em outras publicações do autor, como:
Aventura e Rotina (1953), diário de uma longa viagem de Freyre a convite do
governo português - pelas colônias lusas em África e na Ásia; Um brasileiro
em terras portuguesas (1953), outro texto também dentro dessa perspectiva de
apontar a singularidade do mundo português; Integração portuguesa nos trópi-
cos (1958) e O luso e o trópico (1961).
Apesar dessas considerações, é difícil identificar com clareza as motiva-
ções intelectuais e políticas de Gilberto Freyre quando começou a publicar suas
interpretações sobre o mundo que o português criou a partir de sua análise
histórica em relação à colonização portuguesa pelo mundo, em especial pelas
regiões tropicais. Estaria ele apenas seguindo os critérios de estudo já traba-
lhados anteriormente – quando de sua análise sobre a formação social brasi-
leira – ou estaria a sugerir uma nova ciência social? Sobre isso, podemos supor
que “Freyre estavam então, tratando a teoria social européia [sic] do mesmo
modo que Heitor Villa-Lobos tratava a música clássica européia [sic], ou seja,
usando-a, mas abrasileirando-a” (PALLARES-BURKE, BURKE, 2009, p. 293).
Abrasileirando-a ou até mesmo tropicalizando-a. Em que sentido?
299
sobre esse conjunto de perspectivas sobre a interação homem/trópico, numa
perspectiva multidisciplinar, ainda espera por um estudo mais profundo, prin-
cipalmente sob o ponto de vista da história intelectual.
Em busca de definições, acreditamos que as palavras do próprio Gilberto
podem ser ilustrativas sobre a problemática da definição da Tropicologia, que
seria constituída de um conjunto:
300
várias regiões ou áreas tropicais, realizando com critérios de abordagens eco-
lógicas, que atende as necessidades situacionais, procurando compreender “as
relações desses homens com a natureza e de suas culturas com os ambientes”.
Para o seu exercício faz-se necessário o estudo teórico e prático do valor das
idéias [sic] e da praxis [sic], as influências do meio tropical, ao mesmo tempo
que ela, a Tropicologia, se confirma como consciência cultural, – física, social,
histórica – da integração dos valores e das técnicas e na história do homem.
(MIRANDA, 1987, p. 194).
Que Gilberto Freyre tem um lugar reservado como um dos autores cuja
contribuição foi muito importante para o campo da história isso é indiscutível
e já foi abordado em vários momentos.15 Porém, teria a sua Tropicologia – no
conjunto de propostas teórico-metodológicas para análise do homem situado
13 E aqui tomamos esse conceito de ciência a partir da noção de Thomas Kunh (KUNH,
2011, p. 13).
14 Sobre o Seminário de Tropicologia, ver: MIRANDA, 1987; MOTTA, 1985.
15 Sobre isso, ver: QUINTAS, 1970; BURKE, 1997.
301
no trópico – algo a oferecer à historiografia? Não somente, mas para a historio-
grafia brasileira em particular? São perguntas que, por si mesmas, já merecem
um estudo à parte, porém, de antemão, já apontamos que a resposta aqui não
pode ser fechada e muito menos definitiva.
Acreditamos que a Tropicologia, mesmo quando vista como fenomeno-
logia, não pode reduzir-se a isso, sendo, então, mais um conjunto de observa-
ções e de propostas de entender a dinâmica relação entre sociedade e trópico.
Então, pensamos em responder essa pergunta direcionando nossa argumenta-
ção em dois sentidos, indicando para duas perspectivas tropicológicas que nos
chamaram atenção por, particularmente, poderem ser úteis para a operação
historiográfica.
Em um primeiro sentido, indicamos o fato de que a abordagem ecológi-
ca propõe uma reflexão sobre a questão do espaço, sobre as relações diacrônicas
e sincrônicas entre a sociedade e o seu ambiente. Quando pensamos nisso, lem-
bramos o estudo de Freyre sobre o Nordeste – que é parte dessa Tropicologia
aplicada a uma região em particular – e podemos observar a forma como o au-
tor pensou a influência da cana-de-açúcar não apenas no seu sentido econômi-
co, mas no seu sentido cultural bem mais amplo, numa forma de alimentar-se,
numa forma de divertir-se – a partir do uso da cachaça, por exemplo, que é um
derivado da cana –, numa forma de habitar, numa forma de trabalhar, ou seja,
essa abordagem tropicológica direciona o historiador para uma análise em que
o ambiente é condicionado e condicionante. Algo absolutamente fundamental
para uma historiografia que pense capturar o processo de interação humana
com o meio ambiente como um aspecto importante da interpretação do passa-
do das sociedades.
O segundo sentido que destacamos – uma escolha dentre os vários sen-
tidos que a tropicologia aponta – é o sentido temporal. Existe um tempo do
trópico, um tempo que ao mesmo tempo é lento – como o tempo baiano que
passa devagar – e pode ser também veloz no sentido de uma rápida modifica-
ção. Pode, em sua conotação mais climática, ser, ainda, um tempo amargo de
seca ou inundações. Tempo irregular. Tempo, ainda, no sentido mais filosófico,
tempo tropicalizado, entendido como uma forma de experimentação do tempo
num sentido não linear, apegado ao que fora instituído, daí, pode-se originar
a reação antimoderna do Nordeste (ALBQUERQUE JÚNIOR, 2011). Sendo
mais ousados, até mesmo um regime de historicidade (HARTOG, 2015) pode
ser percebido, regime de historicidade tropical.
Sem dúvida, essa difícil tarefa de pensar/estabelecer a relação entre a
302
Tropicologia, entendida como um conjunto de sugestões de pesquisa que deno-
minamos como quase científicas, e a historiografia não é nada fácil. O sentido
aqui é claramente propositivo e sugestivo. Outros aspectos poderiam ser aven-
tados aqui num levantamento de contribuições possíveis, como a atenção dada
pelos tropicologistas aos esportes, à nutrição, habitação, aos recursos hídricos,
à medicina e aos usos de plantas tropicais como fármacos, à religiosidade po-
pular, no que se tem de tropicalização do cristianismo europeu, questões étni-
cas, sexualidade, enfim (MIRANDA, 1987). Tema para um estudo posterior
mais profundo. O que se pretendeu aqui foi algo bem mais modesto.
Particularmente, a partir da segunda metade do século XX, apresentou
para o campo da historiografia uma série de contribuições vindas da antro-
pologia, sociologia, filosofia e até psicanálise (ALBUQUERQUE JÚNIOR, In:
PINSKY, LUCA, 2011. p. 234). Porém, o que se nota é certa tendência da his-
toriografia brasileira em absorver as inovações e propostas feitas por pesqui-
sadores estrangeiros – o que não é algo em si negativo – e deixa – e nesse caso
da tropicologia de Freyre isso é perceptível – possibilidades de análises criadas
por brasileiros em uma espécie de limbo. Esse é um último ponto interessan-
te que talvez explique certo mutismo em relação à obra de Gilberto Freyre e
a bastante inexpressiva consideração de sua abordagem tropicológica para a
historiografia. Não que devamos absorver tudo sem filtro crítico, o que sem
dúvida seria bem antitropicológico.
Considerações finais
303
tizar as leituras sobre a obra de Freyre que apontam um corte epistemológico,
além do desconhecimento considerável da obra do autor do período posterior
aos seus textos de 1930. O segundo foi analisar particularmente o texto: O mun-
do que o português criou, de 1940, como um artefato histórico fundamental no
esforço de compreender como Gilberto Freyre analisou esse mundo e como a
problematização dessa leitura pode ser indicativa de uma forma tropicológi-
ca de pensar a histórica colonização portuguesa, as implicações culturais e os
contatos entre os povos colonizadores na perspectiva de Freyre. O terceiro foi
– ainda que de forma genérica – lançar uma interpretação sobre o que seria a
tropicologia, se se pode pensá-la como uma ciência do/no trópico e, ainda, as
possíveis interlocuções dela com a historiografia.
A volumosa produção de Gilberto Freyre ainda é um campo muito inex-
plorado pelos historiadores do campo da história intelectual. Para finalizar,
como apontou Roberto Motta, que consta em nossa epígrafe: “Quanta, mas
quanta coisa, ainda precisa ser escrita sobre Gilberto Freyre!” (MOTTA, 2000,
p. 126). É nesse esforço que nosso modesto ensaio se insere, buscando com isso
lançar uma compreensão sobre a obra de Gilberto, tendo o tema do trópico e da
tropicologia como objetos de estudo de uma forma mais particular.
Referências
Fontes primárias
________. O mundo que o português criou. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.
Fontes referenciais
304
e suas fontes. Ed. São Paulo: Contexto, 2011. p. 223-249.
BURKE, Peter. Gilberto Freyre e a história nova. Tempo social. Revista da USP,
n. 9 (2), 1997. p.1-12.
MICELI, Sergio. (Org.). História das Ciências Sociais no Brasil. Ed. Vol. 1. São
Paulo, Vértice/Idesp/Finep, 1989.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. Ed. São Paulo: Brasi-
liense, 1985.
305
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G., BURKE, Peter. Repensando os Trópicos:
um retrato intelectual de Gilberto Freyre. Ed. São Paulo: Editora da UNESP,
2009.
SOUZA. Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Ed. Rio de Janeiro:
Leya, 2017.
SCHNEIDER, Alberto Luiz. Charles Boxer (Contra Gilberto Freyre): raça e ra-
cismo no Império Português ou a erudição histórica contra o regime salazaris-
ta. Est.Hist, Rio de Janeiro, v. 26, n. 52, julho-dezembro, 2013. p. 253-273.
306
Sobre os organizadores e colaboradores
Organizadores
Apresentador
Prefaciador
Autores
308
– Sociologia (UFMA). Pesquisadora do NEÁfrica. Bolsista CAPES. E-mail: al-
dina.smelo@gmail.com.
309
Fladney Francisco da Silva Freire
Doutorando em Antropologia Social (UFG). Integrante do Grupo de Pesquisa,
Religião e Cultura Popular (GPMINA). Membro do Núcleo de Estudos, Pes-
quisa e Extensão sobre África e o Sul Global (NEÁFRICA). Membro do Grupo
de Estudos intitulado TELA: Transversalidade, Experimentações e Linguagens
Antropológicas, vinculado ao programa de Antropologia da UFG. E-mail: flad-
ney.freire123@gmail.com.
310
do Brasil pela Universidade Cândido Mendes UCAM. E-mail: kelianepib@
hotmail.com.
311
esta obra foi composta em minion e impressa pela
gráfica psi7 em ofsete sobre papel pólen para a editora cancioneiro
em novembro de 2020.
Editora Cancioneiro
cnpj 38.275.847/0001-51
Teresina - Piauí.
contato@editoracancioneiro.com.br
www.editoracancioneiro.com.br