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DA RELIGIÃO
Estudo da cultura afro-
-brasileira: religiões
afro-brasileiras
Adriane da Silva Machado Möbbs
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Introdução
Neste capítulo, veremos como aconteceu a adaptação dos africanos no Brasil.
Sobretudo, contextualizaremos a diáspora africana no País, conceito que consiste
no movimento de dispersão de um povo e de uma cultura em âmbito mundial.
Amplamente utilizado para se referir ao povo judaico, nem sempre o conceito de
diáspora está relacionado ao movimento migratório forçado.
No que se refere ao povo africano e a sua diáspora, sabe-se, graças a uma
atualização da história, que houve os dois aspectos do movimento. Houve tempos
em que os africanos se estabeleceram fora da África em condições de soberania
e liberdade, e tempos em que a diáspora ocorreu de forma forçada, sobretudo
pelo processo de escravidão. Alguns autores consideram a diáspora a partir do
período de comércio escravo e, depois, nos movimentos de emigração. Contudo,
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Hoje, renovado interesse por parte dos descendentes de africanos nas Américas
e inédita colaboração entre africanistas e especialistas nas populações negras
nas Américas e em outros continentes apontam para uma “redescoberta” da
África espalhada pelo mundo. O Brasil, tendo recebido aproximadamente um
terço de todos os escravos trazidos para as Américas durante os três séculos
de duração do tráfico atlântico, é terreno importante desta busca. (MAMIGO-
NIAN, 2004, p. 33).
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Nas décadas de 1950 e 1960, pesquisa e intenso debate acerca das relações raciais
no Brasil marcaram o ramo dos estudos afro-brasileiros: tratava-se de contestar a
ideia difundida a partir da obra de Gilberto Freyre, de que o Brasil constituía uma
“democracia racial”, porque a miscigenação teria prevenido o racismo à americana.
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[...] Porque o termo diáspora africana reforça uma tendência entre aqueles que
escrevem nossa história para ver a história dos povos africanos sempre em termos
de paralelos na história branca. Devemos acabar com a expressão da diáspora
africana porque não somos judeus. Vamos usar outra terminologia. Falemos sobre
a dispersão africana [...].
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Os africanos no Brasil
Os primeiros registros da chegada dos africanos no Brasil por meio do co-
mércio escravo remontam a meados do século XVI. Os primeiros negros a
chegarem no Brasil vieram de Angola e da Costa do Marfim (Figura 1).
Figura 1. Gráfico do desembarque estimado dos escravos africanos no Brasil por procedência
regional.
Fonte: Adaptada de Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2007).
Tal relação comercial privilegiada foi favorecida pela proximidade geográfica das
duas regiões e alimentada pelo estabelecimento de sociedades entre comerciantes
e traficantes dos dois lados do Atlântico. A peculiaridade deste ramo do tráfico de
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[...] Estamos diante de uma comunidade que, na maioria das vezes, escolhia mu-
lheres escravizadas como madrinhas, recriando laços e constituindo redes de
reciprocidade entre semelhantes. Entendemos que a escravização não aniquilou
povos e culturas, assim como entendemos que a diáspora não criou uma única
identidade, mas identidades múltiplas que, como já foi dito, apropriaram-se desse
contexto para unirem-se no que tinham em comum: a África.
Existe toda uma simbologia que embasa e dá sentido aos ritos e cultos que constituem
grande parte da vida religiosa africana. Toda oferenda, todo sacrifício, os ritos de inicia-
ção e consagração implicam a transmissão, revitalização, restituição do axé, da força
vital. Nesta cosmovisão há uma unidade fundamental de todas as coisas. O todo está
dentro de cada parte, assim como cada parte está no todo. É uma conjuntura existencial
que liga todos os seres e os tornam interdependentes, em todos os níveis do cosmos.
É importante ressaltar que, como destaca Favero (2010, p. 4), “[...] o caso
das religiões africanas no Brasil oferece uma gama de modelos, valores,
ideais ou ideias, uma rica simbologia segundo certa visão mística do mundo
em correlação com o universo mítico e ritualístico”.
Parés retoma a tese que rompe com a ideia de invenção local do candomblé e
entende que os cultos de vodum na África deram origem ao modelo organizacional
que foi replicado para os outros grupos étnicos e suas divindades particulares.
Segundo o autor, a justaposição de várias divindades num mesmo templo e a or-
ganização seriada do ritual, que caracterizam o candomblé contemporâneo, vêm
da tradição vodum da área gbe desde pelo menos o século XVIII. Ao mesmo tempo,
a diversidade local das divindades, de seus atributos, gênero e funções levam ao
questionamento da própria ideia de um panteão, ou panteões jejes.
[...] A diferente origem étnica e a afiliação religiosa dos agentes sociais responsáveis
pela transferência transatlântica estaria na base de certas variações regionais
brasileiras. Esse fato vem salientar que, mesmo dentro da tradição jeje, havia já
uma heterogeneidade de práticas religiosas, até agora pouco conhecida.
Sabe-se que o candomblé foi fundado por Francisca da Silva, como afirma
Parés (2006):
Sabe-se que, houve, em certa medida, uma fusão entre as duas matrizes,
embora não se saiba exatamente se forçada ou espontânea e se foi realizada
no Brasil ou na África. Acerca disso, afirma Hofbauer (2011, p. 51):
A irmandade negra era vista pelos senhores e pela Igreja como um prático instru-
mento de catequese que deveria, inclusive, contribuir para o disciplinamento social
dos africanos e de seus descendentes no Brasil. Ao mesmo tempo, constituía a
única instituição legalizada na qual a população negra podia — mesmo sob a tutela
da Igreja — organizar-se, (re)criando e fortalecendo sentimentos de comunalismo.
Destaca-se, ainda, o fato de que, de acordo com Parés (2006, p. 272), como
cita Hofbauer (2011, p. 60), há, sem dúvida:
[...] uma tendência particular dos jejes (desconhecida entre outros grupos, como
p. ex. os iorubas), que seria a de incluir, assimilar e agregar novas divindades e,
dessa forma, criar um panteão de deuses, uma das características mais notáveis
do candomblé.
Nesse contexto, Matory chama a atenção para o fluxo de viajantes negros que existiu
entre a Bahia e o litoral ocidental da África (Nigéria e Benin atuais). Não somente
objetos religiosos e notícias circulavam. Matory cita vários líderes religiosos im-
portantes que viajavam. Assim, p. ex., Martiniano Eliseu do Bonfim, filho de libertos
africanos, passou onze anos (1875–1886) em Lagos, onde não somente frequentou
uma escola presbiteriana, mas foi também iniciado no sacerdócio de Ifá. De volta à
Bahia, introduziu elementos ritualísticos que conheceu na África (12 obás de Xangô)
no Ilê Axé Opô Afonjá, ao qual estava ligado. Teria, portanto, importante influência
sobre as práticas religiosas nessa prestigiosa casa e tornar-se-ia ainda informante
principal do “pai” dos estudos afro-brasileiros, Nina Rodrigues. (HOFBAUER, 2011, p. 61).
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Contudo, Hofbauer (2011, p. 64) faz questão de frisar que, à luz do que
afirma Palmié (1995):
Até que ponto a relação entre santos católicos e orixás representa uma corres-
pondência analógica, uma sobreposição (disfarce) ou mesmo uma fusão é uma
questão que faz parte intrínseca dos processos de construção e desconstrução
de diferenças e significados. Palmié, p. ex., tem argumentado (nas suas análises
sobre a regla ocha/santería) que, mesmo que haja semelhanças entre orixás e
santos católicos, nenhum “santero” sacrificaria um animal para a imagem do santo.
É o “assentamento” que propicia o acesso ao orixá, enquanto a imagem do santo
católico simbolizaria “somente” seus atributos.
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Referências
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Leituras recomendadas
LOPES, N. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. 4. ed. São Paulo: Selo Negro, 2011.
SOARES, M. C. Os "mina” em Minas: tráfico Atlântico, redes de comércio e etnicidade. In:
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 20., 1999, Florianópolis. História: fronteiras. Anais do
XX Simpósio da Associação Nacional de História. São Paulo: Humanitas — FFLCH-USP/
ANPUH, 1999, p. 689-695.