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2 A H A R
SEGUNDA EDIÇÃO

EDITORES
Outro livro de interesse

MARX: A TEORIA DA ALIENAÇÃO

ISTVÁN MÉSZÁROS

O problema da alienação vem sendo debatido há muito tempo,


sem que diminua o interesse por ele suscitado. Pelo contrário:
a julgar por acontecimentos históricos recentes e pela orienta­
ção de muitos de seus participantes, a crítica da alienação parece
ter adquirido uma nova premência histórica. Grande parte da
discussão do marxismo, em nossos dias, gira sobre os problemas
da alienação.
Esse estudo mostra como esse conceito de alienação teve
importância central em todo o desenvolvimento de uma crítica
da sociedade por M a r x , e rejeita a opinião de que existe um
“jovem M arx ” de orientação filosófica, e um “M arx maduro”,
preocupado com o determinismo econômico.
O livro divide-se, em sua primeira parte, em três temas
orincipais; as origens do conceito de alienação, desde a anti­
guidade judaico-cristã até o fim do século XVIII; a gênese da
teoria da alienação em M a r x , a partir de sua tese de doutorado
e de sua crítica do Estado moderno, e a estrutura conceituai da
teoria da alienação em M a r x .
A segunda parte é dedicada a vários aspectos da alienação:
econômicos, políticos, ontológico e moral, e os aspectos esté­
ticos. É nessa parte que vamos encontrar o exame de vários
problemas de grande interesse para a crise do mundo atual,
como o trabalho alienado e a natureza humana, as relações de
propriedade, a objetificação capitalista e a liberdade, a produ­
ção e o consumo em sua relação com a arte. Na terceira e
última parte o autor examina a significação contemporânea da
teoria da alienação em M arx.

ZAHAR EDITORES
!21
a cultura a serviço do progresso social
(co n tin u a çã o da 1.“ ah a )

Este livro encerra a contribuiçáo de mestres


e estudantes integrantes do Centro de Estudos
Culturais Contemporâneos da Universidade
de Birmingham. Aborda o constante proble­
ma da articulação de estudos culturais com
algumas teorias marxistas de ideologia. A
Parte I é explicitamente teórica, abrangendo
exposições e comentários críticos de impor­
tantes teóricos da ideologia — desde L u k à c s
e G ram sc i a A lthu sser e Po u la n tza s , e
uma panorâmica geral das abordagens socio­
lógicas. A Parte II examina o tema em rela­
ção a duas significativas contribuições para
as teorias e política social-democráticas: edu­
cação e “estudos de comunidade”. A Parte
III analisa os problemas suscitados pelas no­
ções de “subjetividade” e “individualidade”.
Partindo de uma série de compromissos teó­
ricos, o livro tem por objetivo fornecer pers­
pectivas que sirvam de base ao desenvolvi­
mento de estudos concretos e politicamente
importantes de um aspecto fundamental das
formações sociais contemporâneas.

ZAHA R EDITORES
a cultura a serviço do progresso social
RIO DE JANEIRO
DA IDEOLOGIA

2.® edição

Filha do Iluminismo, ideologia talvez signifi­


casse a princípio apenas ordenação de idéias.
Mas, com a Revolução Francesa, a busca da
verdade dos fatos pelos ideólogos acrescentou
à palavra pelo menos a intensidade das pai­
xões dos porta-vozes do pensamento revolu­
cionário por incumbência da Convenção de
1795.

O cunho político da origem jamais abandonou


o neologismo, por mais que se faça para iso­
lá-lo mediante requintadas análises. Foi com
essa carga de ardor político que M arx e
E ngels empregaram ideologia na célebre
obra conjunta da mocidade. Definir ideologia
como “sociologia do conhecimento” ou “falsa
consciência” não retira ao vocábulo pelo me­
nos a referência ao papel das idéias e, evi­
dentemente, a função delas na prática. Ideo­
logia como “perspectiva do mundo” ou “mun-
dividência” é já uma limitação quantitativa,
contrastando com o conhecimento em si, uni­
versal. Particularização maior se o “espírito”,
no sentido diltheyano, caracteriza um povo e
se exprime pela ideologia, e muito maior
ainda se o “espírito” for o de uma classe so­
cial. A ideologia de classe pode ser objetiva,
segundo L ukács , mas o termo é às vezes em­
pregado para designar a expressão individual
de uma verdade, e neste caso é quase sempre
possível detectar a subjetividade, a tenden-
ciosidade inextirpáveis de qualquer projeto
pessoal.

( co n tin u a na aba)
BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS SOCIAIS
SOCIOLOGIA
Segunda edição

ZAHAR EDITORES
RIO DE JANEIRO
T ítu lo original:
On Ideology

Tradução autorizada da edição inglesa,


publicada em 1978 por Hutchinson & Co. (Publishers) Ltd.,
de Londres, Inglaterra.
[Publicado originalmente em 1977 pelo Centre fo r Contemporary
CulturalStudies, Universidade de Birmingham, como
Working Paper in Cultural Studies, n° 1 0].

Copyright © 1977 b y
Centre fo r Contemporary Cultural Studies
AH rights reserved
Todos os direitos reservados.
A reprodução não-autorizada
desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação do Copyright. (Lei 5.988)

Primeira edição brasileira: 1980

Capa: Érico
Composição: Zahar Editores

1983
Direitos para a língua portuguesa adquiridos por
ZAHAR EDITORES S.A.
Caixa Postal 207 (ZC-00) Rio de Janeiro
que se reservam a propriedade desta versão
Impresso no Brasil
índice

Introdução

Stuart Hall
O Interior da Ciência:
Ideologia e a "Sociologia do Conhecimento'

Roisín McDonough
A Ideologia como Falsa Consciência: Lukács
A relação entre conhecimento e ação, 4S; A teoria da consciência de
classe, 49\ O proletariado como portador da verdade, 52; A concep­
ção historicista de ideologia. 54; A hostilidade contra as ciências na­
turais, 55

Stuart Hall, Bob Lum iey e Gregor McLennan


Política e Ideologia: Gramsci
I. Introdução
II. A matriz conceituai de Cadernos do Cárcere
Estrutura e superestrura, 62; Hegemonia, 64; O senso comum.
Intelectuais e o partido, 65
III. A ideologia e o problema do historicismo
IV. A apropriação estruturalista de Gramsci: Althusser
V. A apropriação estruturalista de Gramsci: Poulantzas
V I. Conclusão
Gregor McLennan, V ictor MoUna e Roy Peters
A teoria de Althusser sobre Ideologia 101
I. Introdução geral a Althusser 101
II. Formação social e superestrutura 102
6 IlMDICE

I I I . A ideologia em A Favor de Marx 1 08


IV. Z.er "O C apita!" 1 12
V. 0 ensaio sobre os AIE 118
1. O ponto de vista da reprodução, 120', 2. Os aparelhos ideológicos
do Estado, /27; 3. A natureza da Ideologia, 123
VI. Recapitulação 127
V II. Conclusão/crítica 130
John Clarke, !an Connell e Roisín McDonough
Identificação Errônea de Ideologia:
a Ideologia no Poder Político e nas Classes Sociais 138
Os conceitos gerais, 138; Erros nas concepções historicistas de ideo­
logia, 140: A concepção marxista de ideologia, 141: Ideologia polí­
tica burguesa, 144: Problemas com a teoria da ideologia, 147: O con­
ceito de modo de produção, 154: A constituição das classes sociais,
155: Conclusão, 156

PARTE II
PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

Eve Brook e Dan Finn


Estudos Comunitários e as
Imagens da Classe Operária sobre a Sociedade 161
Estudos comunitários no pós-guerra, 164: Lockwood: a comunidade
e o proletário tradicional, 169: Parkin; sistemas nacionais de signifi­
cado e o trabalhador acomodatício, 174: Conclusão, 179

Dan Finn, Neil Grant e Richard Johnson


Democracia Social, Educação e a Crise 186
introdução 186
I. O partido trabalhista 189
A via parlamentarista, 189: Partidos, política e educação, 192: O
partido trabalhista e a "contra-educação", 194: Escolas secundárias
para todos, 197: "A fluência" do pós-guerra e revisionismo, 203
I I . A sociologia da educação 206
Desenvolvimento, 207: I mpactos, 213
III. Professores e profissionalismo 217
Profissionalismo e reforma educacional, 218: Autonomia do professor
e progressivismo, 221
IV. Expansão educacional nadécada de 60 228
V. Crítica 234
Recapituiação: o repertório dual, 234; Crítica I : os elementos são contra­
ditórios, 237: Crítica II: os objetivos não podem ser realizados, 247;
Crítica I I I : as políticas devem fracassar, 242
Hm dice

VI. A crise 243


A democracia social e seus inimigos, 244; A importância de Bullock,
247; O DES e o "Grande Debate", 248

PARTE III
SUBJETIVIDADE E IN D IV ID U A LID A D E

Sfeire Burniston e Chris Weedon


Ideologia, Subjetividade e o Texto Literário 257
Seção 1: abordagens marxistas ao problema 258
A ideologia na teoria estética de Macherey, 260\ A teoria de Macherey
e abordagens marxistas alternativas: Lukács, Goldmann e Adorno ,
266', Forma e prática: Lukács, Brecht e Benjamin, 268', Posições e
problemas na tradiçáío marxista, 271
Seção 2; o sujeito e a prática significante: Lacan e Kristeva 273
A teoria de Lacan da constituição do sujeito na linguagem, 273', O pré-
edipiano, 2 /4 ; O complexo de Édipo, 276', O complexo de castração,
276', O papel da linguagem, 277; Desejo, 277; O falo, 278', Posições
familiais e sua relação com o falo na estrutura do simbólico, 279', A
repressão, o inconsciente e o sujeito, 280: A importância de Lacan para
a teoria de Kristeva do sujeito e da linguagem, 281: A teoria do sujeito e
da linguagem poética na obra de Julia Kristeva, 281: Conclusão, 287
Seção 3: o problema da teoria da formação social 288

Victor MoUna
Notas sobre Marx e o Problema da Individualidade 295
Introdução 295
Marx e a individualidade 296
Os indivfduos sob relações sociais definidas, 296: Os indivfduos como
"personificações", 302
Notas sobre o humanismo 308
Anti-humanismo, 308: Humanismo "socialista"?, 314: Humanismo
"cie n tffico ” ?, 322
Considerações sobre a ideologia 326
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Introdução

Esta coletânea fo i concebida como uma contribuição aos debates sobre a


natureza e teoria da "ideologia", dentro principalmente da tradição mar­
xista. As questões levantadas por esse termo têm sido discutidas e algumas
vezes aparentemente resolvidas: qual é sua conexão com outras noções (de
forma alguma simples em si) tais como "idéias", "consciência", "socieda­
de" etc.? Qual sua relação com a análise de formações sociais, composição
de classe e mudança política? Essas questões não são prerrogativas do mar­
xismo apenas (ver o primeiro artigo). Todavia, é dentro de uma estrutura
marxista que as afirmações em prol do caráter sistemático ou "c ie n tífic o "
desse conceito são mais comumente feitas e consideradas. Além disso, con­
tribuições provenientes de outras tradições têm sido uma resposta á atua­
ção teórica e política da prática socialista. É aos avanços feitos e aos pro­
blemas apresentados pelo materialismo histórico como base de uma teoria
da ideologia que este livro se refere.
A primeira parte é explicitamente teórica, compreendendo interpreta­
ções e leituras críticas de vários destacados teóricos da "ideologia". Esses
textos podem ser considerados como trabalhos individuais, cada qual com
seu próprio objeto específico de análise. Entretanto, espera-se que essa
parte como um todo apresente uma visão relativamente coerente e consis­
tente das diferentes perspectivas teóricas. O restante da coletânea consiste
de estudos mais específicos. Não há necessariamente unidade de aborda­
gem, embora a aplicação de alguns argumentos na Parte I traga à tona
"casos" mais delimitados de ideologia. A Parte II analisa o tema em relação
a duas significantes contribuições para as políticas e teorias social-democrá-
ticas: educação e "estudos de comunidade". A Parte III propõe algumas
abordagens dos problemas oriundos das noções "subjetividade" e "in d iv i­
dualidade".
Em geral, não se pretende ser exaustivo ou definitivo em cada um dos
aspectos ou "regiões" da ideologia. Não existe, hoje em dia, nenhuma teo-
10 DA IDEOLOGIA

ria intelramente satisfatória da ideologia; isso só pode emergir de um pro­


cesso de intercâmbio teórico e, principalmente, de análises concretas
confirmativas. Em conseqüência, existem, necessariamente, lacunas numa
coletânea deste tipo. Em particular, não é dada atenção a algumas ideolo­
gias politicamente mais importantes na atualidade: racismo, sexismo, na­
cionalismo. Num nível mais abstrato, um problema im plícito mas não
diretamente tratado é o da dimensão em que a perspectiva althusseriana
da ideologia está em oposição conceituai à distinção marxista mais usual
entre "relações reais" e "formas fenomenais", especialmente quanto ao
problema de "fetichism o". Além disso, as questões gerais envolvidas na
comparação entre ideologia e ciência continuam em aberto.
De qualquer modo, é claro, o interesse que nosso presente tema pa­
rece oferecer deve ser destacado. Como parte de uma problemática marxis­
ta, uma teoria da ideologia é ao mesmo tempo uma área de estudo central­
mente importante dentro da categoria mais geral dos "estudos culturais",
pois apresenta uma coerência teórica de que estes se ressentem. A história
dos estudos culturais — como o trabalho de nosso próprio centro tem cla­
ramente demonstrado — é algo que abrange não apenas um mas uma série
de paradigmas e tradições teóricas, da análise da verstehen weberiana,
passando pelas diversas correntes da perspectiva culturalista, até os mais
avançados enfoques marxistas; "cultural studies'1, por conseguinte, designa
descritivamente um vasto campo de interesses e não um corpo unificado
de teoria.
Nesse sentido, então, a natureza dos dois conceitos — ideologia e cul­
tura — não é de tipo a exigir uma escolha teórica dentre eles. O últim o in­
clui diversos elementos que atravessam diferentes campos teóricos dos
quais a teoria da ideologia é apenas um. Todavia, é possível e importante
identificar pontos de partida teóricos de onde eles surgem sem pretender
dogmaticamente que o sucesso da teoria subseqüente esteja assegurado. Se
os estudos culturais como um corpo de trabalho amplo e progressivo não
impedem o desenvolvimento de um marxismo sistemático em seu interior,
suá necessária generalidade metodológica nem sempre o estimula — pelo
menos teoricamente.
Especificamente, uma significante tendência dentro dos estudos cul­
turais tem como axiomática a estreita, se não causai, relação entre idéias,
instituições e contexto social. Nesta concepção, idéias e corpos de repre­
sentações ideológicas são considerados como completamente explicados
pelas descrições de suas condições sociais de existência. Aceitando-se isso
prontamente como um importante aspecto para a compreensão da ideolo­
gia, poderiamos afirmar que tal perspectiva não considera as diferenças
qualitativas — se não lógicas — entre os diversos conteúdos e formas das
idéias e práticas. Uma teoria da ideologia, como uma análise mais específi­
ca de algumas áreas da "cu ltura ", oferece a possibilidade de um conheci­
mento mais profundo que o que se tem hoje em dia da perspectiva geral
INTRODUÇÃO 11

dos estudos culturais. Em princfpio, ao menos, isso pode levar a um exame


mais coerente de ambos os pólos do par cultura/sociedade, e, feito isso,
evitar a redução de um dos termos â "expressiva" manifestação do outro.
Para concluir, não há soluções definitivas num empreendimento coletivo
dessa natureza. Se sugestões importantes originadas desses artigos forne­
cerem subsídios para futuros projetos e teorizações mais claras, o objetivo
deste livro terá sido alcançado.

Gregor McLennan

Pelo Grupo Editorial


o Interior da Ciência: Ideologia e a
"Sociologia do Conhecimento"

Stuart Hall

“ Ideologia" é um termo que não é facilmente pronunciável na língua ingle­


sa. Este vocábulo obstinadamente sempre se recusou a ser "naturalizado".
A teoria política inglesa por vezes refere-se a "ideologias", significando
simplesmente "corpos sistemáticos de idéias". Mas o conceito é amplamente
descritivo — ele não desempenha nenhuma função analítica significativa.
De modo geral, o conceito de "ideologia" nunca foi completamente absor­
vido pela teoria social anglo-saxônica. Em sua importante coletânea publi­
cada em 1949, Robert Merton incluiu dois ensaios sobre "A Sociologia do
Conhecimento" e sobre "KarI Mannheim".* Em sua introdução, Merton
propriamente referiu-se a estas obras como o ponto de "redescoberta" do
conceito de ideologia para a ciência social americana. Esta "redescoberta"
foi levada a cabo no contexto de um contraste geral entre dois estilos de
pensamento radicalmente diferentes — o europeu (no qual o conceito de­
sempenhou um papel significativo) e o americano (no qual até então o con­
ceito estivera de um modo geral ausente). Mas a abertura iniciada por Merton
não foi seguida de uma torrente de novos estudos orientados por este con­
ceito. Aquilo que ele chamou "a sociologia do conhecimento" se manteve
até bem recentemente restrito ao interesse de uma minoria na ciência social
empírica americana.
Em seu trabalho de redescoberta, Merton reconheceu abertamente que
"Nesse ponto, como em outros, o marxismo é o centro propulsor da wissen-
sociologie [a sociologia do conhecimento]. . . podemos retraçar suas fo r­
mulações principalmente nas obras de Marx e Engels. Portanto, a ausência
de interesse pelo problema da ideologia na sociologia americana relaciona-
se claramente com a ausência generalizada, nesta tradição de pensamento,
até bem recentemente, de qualquer confronto aberto importante com con­
ceitos marxistas. Um interessante ensaio poderia ser escrito sobre que
conceitos contribuíram na teoria social americana para o conceito
ausente de "ideologia": por exemplo, a idéia de normas no funcionalis-
16 TEORIAS

mo estrutural, e de "valores" no "sistema central de valor" em Parsons.


O interesse de Merton sem dúvida voltara-se para essa lacuna pelo cres­
cente volume de trabalho no estudo das comunicações de massa e de opi­
nião pública. Mas o conceito de ideologia nunca foi rigorosamente aplicado
a esta promissora área de trabalho.*
Bacon preconizou uma completa investigação e crítica das raizes da
erudição convencional — o que ele chamava de uma "critica dos ídolos". E
Helvetius - um favorito de Marx - extraiu o máximo da proposição segun­
do a qual "Nossas idéias são a conseqüência necessária das sociedades em
que vivemos". Mas a maioria das recentes "visões" do conceito ideologia
concordam em que a própria palavra, em seu significado moderno, teve
origem naquele grupo áe savants da Revolução Francesa a quem foi confia­
da, pela Convenção de 1795, a fundação de um novo centro de pensamento
revolucionário - uma iniciativa que foi localizada no então recém-fundado
Institut de France.^ Foi a este grupo que pela primeira vez se aplicou o
termo "idéologues". O destino destes constitui uma salutar advertência
para todos os ideólogos. Durante algum tempo este grupo de pensadores
foi o porta-voz de idéias revolucionárias —a Revolução Francesa "em pen­
samento". 0 objetivo do grupo era realizar na prática o que eles concebiam
como a "promessa" da Revolução — a liberdade de pensamento e expres­
são. Mas viram-se ás voltas com um dilema que atormentou o conceito de
"ideologias" desde o começo. Como assinala Lichtheim, eles se preocupa­
vam com "ideologia" em dois sentidos, que eram logicamente incompatí­
veis. Primeiro, eles viram a relação entre história e pensamento - o curso
da revolução e as "idéias" que a expressavam. Mas também queriam pro­
mover certas idéias "verdadeiras" - idéias que seriam verdadeiras qualquer
que fosse a conjuntura histórica em que estivessem situadas. Fizeram então
um acordo - "no interesse das idéias" - com aquele agente histórico que
imaginavam ter o poder de concretizar suas idéias: Napoleão Bonaparte.
Foi uma crença mal concebida. Napoleão adotou-os em 1799, no mo­
m ento" do Brumário, com o fim de conseguir apoio na classe em que os
savants exerciam maior influência — as classes médias educadas. Napoleão
chegou mesmo a assinar suas proclamações ao exército, durante o período
1798-99, como "Général en Chef, Membre de L 'ln s titu t". Mas em 1803,
no "m om ento" de sua Concordata com a Igreja, ele abandonou-os, deci­
dindo-se deliberadamente a destruir o núcleo do Institut, a classe des
Sciences morales e t poiitiques, de onde as idéias liberais e republicanas se
irradiavam através do estabelecimento educacional". "A história da dege-
neração de Bonaparte", conclui Lichtheim, "pode ser escrita em termos de
sua relação com os idéologues".
O interesse por ideologia, contudo, não desapareceu completamente
com a dissolução deste grupo. Destutt de Tracy inaugurou uma história
natural das idéias", tratando a história do conteúdo e evolução do pensa­
o INTERIOR DA CIÊNCIA 17

mento humano como uma espécie de zoologia — um empreendimento cujo


fundamento ele alegava ter encontrado em fontes como Locke e Condiliac.
Destutt de Tracy intitulou seu estudo Eléments dldéologie (1801-15).
Mas seu trabalho fo i comprometido pela mesma contradição de seus pre-
decessores. Ele queria revelar a historicidade das idéias — mas também que­
ria que essa revelação produzisse um conhecimento verdadeiro e univer­
sal da natureza humana. Seu “ tema materialista" estava "impregnado de
um propósito norm ativo". A natureza contraditória desse projeto revelava
suas verdadeiras raizes no lluminismo. Mesmo Comte, o herdeiro direto
dessa linha de investigação, não escapou a esta contradição. De acordo com
seus maciços esquemas evolucionários, Comte concebeu também um ramo
de "ciência positiva" que se dedicaria á evolução do pensamento humano
como um processo "social". Mas também acreditava que esse estudo reve­
laria que o social estava sujeito a "leis naturais invariáveis". Lichtheim
refere-se a isso como um "pensamento desanimador" que, apesar disso,
objetivava "manter a fé da razão em si mesma". 0 que este e outros exem­
plos desse período sugerem é que desde sua concepção moderna o conceito
de "ideologia" tem sido encoberto pelo seu "O u tro " - Verdade, Razão,
Ciência.
Independentemente de outros significados, o conceito ideologia faz
uma referência direta ao papel das idéias. Este conceito também implica a
proposição de que as idéias não são auto-suficientes, que suas raízes estão
alhures, que algo fundamental sobre as idéias será revelado se pudermos
descobrir a natureza da determinação que as nâb-idéias exercem sobre as
idéias. O estudo da "ideologia", portanto, pressupõe também uma crítica
ao idealismo, como um modo de explicar como surgem as idéias. Contudo,
a dificuldade é que, uma vez que o estudo das idéias está colocado no cen­
tro de uma investigação, um imenso trabalho teórico é exigido para evitar
que tal estudo tenda, de bom ou de mau grado, para o idealismo. Este dile­
ma está claramente expresso na história de uma das principais correntes
filosóficas que constituiu a base do estudo das idéias e ideologias — a tradi­
ção inaugurada por Kant.
O kantismo (com suas raizes tanto no racionalismo cartesiano quanto
no empirismo lockeano) adotou a noção abstrata de "Razão" do llu m i­
nismo e submeteu-a a uma crítica completa. Kant defendia o primado das
estruturas e categorias do "e spírito " sobre a matéria. Era o "e spírito " que
organizava a experiência em total idades inteligíveis. A mente "construía" a
realidade. A marca do kantismo pode ser encontrada em muitas das subse-
qüentes teorias da "ideologia", embora — por ser um idealismo crítico —
não tenha promovido um estudo das raízes históricas do conhecimento. A
coisa não é direta no caso do principal antagonista de Kant - Hegel - , embo­
ra este tenha "ultrapassado" o relutante idealismo de Kant. Pois o objetivo
de Hegel era corrigir a divisão kantiana do mundo em conhecimento decoi-
18 TEORIAS

sas, produzido por nossas categorias mentais, e "coisas em si mesmas", que


eram radicalmente incognoscfveis. 0 método de Hegel para superar esta
descontinuidade foi a dialética. A dialética propunha uma concepção espe­
cífica da relação entre conhecimento e mundo, entre espirito e matéria,
entre Idéia e História: a relação da substituição dialética de uma por outra.
Assim que a síntese hegeliana foi derrubada de sua base idealista e inverti­
da — como fizeram seus discípulos radicais — ela suscitou uma vez mais o
problema das raízes históricas do conhecimento como um problema teóri­
co. Então para Feuerbach (que levou a "inversão" de Hegel ás suas últimas
conseqüências) e na obra dos hegelianos de esquerda que o seguiram, uma
tarefa de importância fundamental residiu em revelar as raizes humanas e
sensoriais das idéias religiosas.^ A obra de Feuerbach, observou Marx,
"consiste em reduzir o mundo religioso a sua base secular . Mas,
Ele omite o fato de que depois de completar sua obra o principal permanece
por ser feito. . . a base secular precisa, portanto, primeiro ser compreendida em
sua contradição e depois. . . revolucionada na prática '.

Neste ponto Marx avançou explicitamente para uma teoria materialista da


ideologia baseada na inversão de Feuerbach do método de Hegel.
Para Hegel, obviamente, conhecimentos particulares - conhecimento
unilateral, conhecimento em qualquer "m om ento" particular — eram sem­
pre parciais. A Razão Analítica não podia ultrapassar esse limite. Mas na
Razão Dialética Hegel vislumbrou a possibilidade de um conhecimento ver­
dadeiramente universal. Se um "m om ento" consistia na objetivação do
Espírito na História, um outro "m om ento" representava a apropriação da
História no Espírito. Idealista consumado, Hegel fixou a apoteose final no
segundo destes obstáculos sintéticos — no desaparecimento do Real no
"Racional". Então - exatamente como os savants revolucionários antes
dele — não conseguiu resistir a localizar este Momento Universal numa con­
juntura histórica particular. Os savants escolheram Napoleão — Hegel esco­
lheu o Estado Prussiano. Esta "concretização" não foi mais útil a Hegel do
que Napoleão o foi aos savants.
Hegel reconheceu que os conceitos eram históricos; mas, argumentava
ele, "Os conceitos históricos possuem uma generalidade verdadeira porque
se referem a um agente universal que se revela através das histórias de
povos e civilizações particulares". Deste modo, argumentava Marx, para
Hegel, "o pensar conceituai é o verdadeiro ser humano. . . o mundo con­
ceituai como tal é, assim, a única realidade, o movimento das categorias
mostra-se como o ato real da produção".® Mas o sistema hegeliano, uma
vez "in vertido ", levou precisamente à conclusão oposta: "o real" — aquilo
que Feuerbach chamava "natureza humana sensorial" - é o único motor
da história; as idéias são simplesmente as projeções da natureza humana
sensorial e da praxis humana que elas refletem. Foi a partir desta "dialéti-
o INTERIOR DA CIENCIA 19
ca invertida que Marx partiu, mediante um novo rompimento, para inau­
gurar uma teoria materialista histórica da ideologia. (Apesar de, como sabe­
mos, sua primeira tentativa neste sentido - A ideologia Aiem ã - conter
ainda vestígios da "inversão" com a qual rompia, particularmente em sua
noção indiferenciada de "praxis humana".) É certamente dentro desta
estrutura geral que devemos entender a famosa asserção de Marx: "não é
a consciência que determina o ser m as.. . o ser social determina a consciên­
cia Mas a teoria materialista da ideologia deve ser entendida como um
rompimento com o sistema de Hegel — não meramente colocando o idea­
lismo de Hegel sobre sua base materialista, já que, como demonstrou Al-
thusser, a inversão de um sistema continua sendo o sistema invertido.® Pa­
ra Marx, Feuerbach simplesmente decompôs a religião em sua "essência
humana '. Mas a questão era "repensar" a essência humana como "o con­
junto das relações sociais". Assim, os hegelianos de esquerda revelaram as
"verdadeiras raízes humanas" da religião: Marx revelou as raízes históricas
dos hegelianos de esquerda. Ele chamava isto de "ajuste de contas" com
sua "antiga consciência filosófica".
A via materialista que se afastava de Hegel e Kant não era o único nem
tampouco o resíduo predominante deste encontro teórico. No pensamento
alemão, o problema da ideologia é enquadrado, no restante do século, por
uma dupla exposição: imobilizado, como Stedman Jones argumentou, en­
tre a dissolução dos sistemas kantiano e hegeliano.^ Cada um desses siste­
mas deixa sua marca distintiva. Esta via sinuosa não deixa de ter surpreen­
dentes atalhos que levam de volta ao marxismo. Referimo-nos aqui á linha
que descreve um tortuoso caminho desde Hegel, passando por Dilthey,
Simmel e Scheler, até Marx Weber e os neokantianos; e assim até Lukács,
Goldmann e Mannheim. O ponto de partida desta linha de descendência
está na concepção de Hegel de que, até sua unidade final com o Espírito, a
Consciência estava continuamente, através do processo da dialética, obje­
tivando-se a si mesma em formas palpáveis no mundo (História). A Cons­
ciência recebeu o que Hegel chamava "form a objetiva". Durante um longo
período, o estudo da ideologia é nada mais nada menos do que um estudo
da Consciência Objetiva.
Embora Hegel não fosse um evolucionista, não estava tão alheio aos
impulsos do lluminismo para ser incapaz de conceber esta interminável dia­
lética como organizada em distintos estágios ou épocas: a "idade" da Reli­
gião, a idade da Poesia, a "idade" da Ciência — coroadas, é claro, pela
Idade da Filosofia. Estas épocas tinham uma história indistinta delineada
dentro delas, embora não estivessem sob nenhum aspecto enraizadas com
precisão numa periodização histórica. Na verdade, como em grande parte
do pensamento do lluminismo, essas épocas começaram com o que parecia
ser um momento histórico, mas que era, de fato, algo mais como o mo­
mento essencial de gênese de toda a história humana: isto é, com os gregos.
20 TEORIAS

Foram os neo-hegelianos - principalmente Dilthey (1833-1911) - que


realmente captaram esta noção da Consciência objetivando-se a si mesma
através da História numa sequência de estágios distintos; e que tomaram
a iniciativa de construir tanto uma "psicologia social objetiva" como uma
"história objetiva" — uma história dos estágios do pensamento humano
- em seus fundamentos.*® As idéias, argumentava Dilthey, podiam ser
concebidas e estudadas como uma série de formas, progressivamente orga­
nizadas em estágios que se estendem através da história. Cada estágio era
caracterizado por seu próprio "estilo de pensamento". As muitas e diferen­
tes objetivações de cada período podiam ser estudadas como um todo
porque todas refletiam um "panorama" particular do mundo, uma visão
do mundo, uma Weltanschauung. Diferentes Weltanschauungen podiam ser
identificadas para cada período, para cada sociedade. A noção de Dilthey
era assim facilmente prolongada até a idéia de que cada nação ou ' povo
possuía sua própria e distinta Weltanschauung ou "E sp írito ". Essa idéia
ligava-se a idéias anteriores de "V o lk ", originadas no Romantismo Alemão,
e impregnou idéias subsequentes sobre o caráter e o destino histórico par­
ticular de cada nação ou cultura nacional. Um tema fundamental no pensa­
mento alemão poderia assim ser representado em termos da complexa his­
tória desta definição de "E sp írito " (Geist), em suas sucessivas manifesta­
ções, até seu aviltamento pela ideologia fascista na década de 1930. Marx
certa vez explicou a eterização radical de toda esta tradição em termos do
"superdesenvolvimento" da teorização alemã em contraste com o atraso
de seu desenvolvimento histórico e econômico. Mas a carreira do conceito
de "E sp írito " também refletia em grau significativo a complexa e tortuosa
história política da unificação alemã e a forma "peculiar" pela qual a Ale­
manha emergiu como um Estado-nação.
A transformação do problema das "ideologias" no estudo das Weltan­
schauungen constitui algo como a tradição dominante no pensamento
alemão durante a maior parte do século X IX. Sua evolução é complexa.
Ela contribui, como vimos, para o surgimento do nacionalismo alemão.
Impregnou as grandes escolas do "historicism o" alemão.** Nutriu — atra­
vés de sua atenção aos "estilos de pensamento" — uma ilustre tradição
da história da arte.*^ Seu legado é claramente visível na obra de Lukács:
em sua tradução da noção marxista de "ideologia" como "visão do mun­
do", bem como em sua utilização do conceito de Weltanschauung na análi­
se de textos e períodos literários.*® Os primeiros trabalhos de Lukács, A
Alma e as Formas e a Teoria do Romance, inspiraram-se diretamente em
Hegel e Dilthey - especialmente o primeiro, com sua sucessão de "form as":
épica, poesia lírica, romance. Em sua obra posterior Lukács procurou re­
lacionar "visões do m undo" particulares com visões de classe, mas a noção
subjacente de Weltanschauung está sempre presente. O conceito de que
cada nação possui sua própria "visão do m undo" é transposto, em História
o INTERIOR DA CIÊNCIA 21

e Consciência de Classe, para a noção de que cada ciasse possui sua própria
visão do mundo "objetiva". Assim, a presença constante desse conceito
explica, em parte, o historicismo radical daquele texto (para uma explica­
ção mais detalhada, cf. o artigo seguinte desta coletânea, sobre Lukács).
Através das primeiras obras de Lukács a tradição chega diretamente
até Goldmann. Ela forma toda a base teórica de Le Dieu Cachê — Gold-
mann conferindo-lhe um novo polimento marxista ou sócio-histórico.
Mas muitas das mesmas idéias estão presentes em forma não diferente na
obra de KarI Mannheim e naquilo que tem sido chamado "marxismo bur­
guês" de Mannheim. A preocupação de Mannheim com ideologia é eviden­
temente fundamental para sua obra mais conhecida. Ideologia e Utopia,
um texto no qual Mannheim submete à prova sua própria explicação para
o problema que, desde o início, afetava esta problemática: se as idéias são
"historicamente relativas", onde pode ser encontrada a "verdade"? (A
resposta de Mannheim está no pensamento relativamente não relativista da
inteiligentsia descompromissada.) Mas as conexões com Dilthey são ainda
mais pronunciadas nos primeiros estudos de Mannheim, por exemplo, os
ensaios Conservative T hought" (tratado como uma Weitanschauung) e
"On The Interpretation of W e ita n s c h a u u n g "A história desta série de
transformações dos elementos do sistema hegeliano delimita, portanto, um
dos pontos seminais de confluência entre um certo tipo de marxismo e
um certo tipo de historicismo — ambos profundamente coloridos por seu
momento hegeliano de inspiração.
O estudo da cultura como Espírito Objetivo (Geisteswissenschaft) e
da história como as "objetivações do E spírito" (Geistesgeschichte) tam­
bém suscitou um método particular de estudá-las. As objetivações humanas
exigiam seu próprio "m odo de conhecimento", diferente dos objetos do
mundo natural. Este método exigia um ato de "compreensão" (Verstehen)
— uma reconstrução de significados corporificados através de projeção ima­
ginativa ou "empatia". Isto permitiu que as sucessivas manifestações da
Consciência Objetiva através da história, e as "visões do m undo" que ex­
pressavam, fossem captadas como "todos". Manifestações particulares só
possuíam significado em relação aos "tod os" (ou totalidades) que expres­
savam. O Espírito, a essência da história, pode deste modo ser visto como
este modelo ou configuração maior em qualquer época, manifestado ou
expresso em cada uma de suas formas. O método de estudar a cultura atra­
vés da "interpretação" fo i chamaáo hermenêutica\e o processo de relacio­
nar as partes ao todo e o todo às partes, num interminável processo de
"ajustamento duplo", foi descrito como "o círculo hermenêutico".
0 debate entre hermenêutica e métodos mais positivistas de análise
veio a se constituir no campo de um debate teórico importante - a "luta
sobre o m étodo" — para o qual o sociólogo Max Weber apresentou uma
contribuição importante. Weber não era um diltheyano, embora o conceito
22

de "singularidade" da cultura, exemplificado em seus ensaios em Metodo­


logia das Ciências Sociais, é mais do que superficialmente influenciado por
formulações historicistas. Mas ele realmente se comprometeu com a tradi­
ção hermenêutica quando form ulou sua própria definição de ação social.
0 argumento girava em torno da questão de se havia, de fato, dois conjun­
tos de "coisas" a serem estud3 dos — o mundo da Cultura (idéias, ações
humanas. Espírito) e o mundo da Natureza — cada qual com seu método
de análise apropriado. O mundo cultural exigiria então uma liermenêutica
historicista", baseada na reconstrução imaginativa das estruturas de pen­
samentos e ações passados; ao passo que o mundo natural estaria sujeito ao
modo de explanação positivista ou causai-analítico. Esse debate dividiu o
mundo intelectual alemão. Marburg tornou-se um centro para a perspectiva
kantiana mais estrita quanto a esta questão. As personalidades ligadas a
Marburg preconizavam o rompimento radical entre as duas áreas e os dois
métodos, com a preeminência dada aos enfoques positivistas, como sendo
os únicos verdadeiramente científicos. Heideiberg era mais "historicista
em sua orientação, e portanto mais receptivo à obra de Dilthey e ao anti-
positivismo do influente sociólogo Georg Simmel. Windeiband e Rickert,
contra os quais Max Weber polemizou em seus ensaios de Metodoiogia,
eram professores em Heideiberg. Seu celebrado discípulo, o filósofo Emil
Lask, também era professor em Heideiberg. 0 grupo de jovens intelectuais
europeus m uito influenciados por Lask incluía Georg Lukács, cujas primei­
ras obras, como vimos, estavam embebidas na tradição da Geisteswissens-
chaft.
Weber, em sua busca de um método sociológico adequado, também
se interessou pelos mesmos problemas. Ele procurou combinar o melhor de
cada um deles, enquanto que kantianos mais radicais, como Lask, apresen­
tavam o problema como uma rígida opção. Desse modo, nos ensaios de
Metodoiogia, Weber sustentava que a Cultura, o produto de um processo
mais histórico do que natural, apresentava sua própria "singularidade"; não
se poderia esperar que seu estudo apresentasse leis universais do tipo que, de
uma perspectiva positivista, teria tornado aquele estudo verdadeiramente
"cie n tífico ". Por outro lado, ele queria um método mais empírico do que
o que era oferecido pela hermenêutica pura. Weber dessa maneira decidiu-
se, pelo menos metodologicamente, por uma posição de meio termo. A
formulação de modelos heurísticos - tipos ideais - cada um^ dos quais
acentuava um aspecto diferente de um fenômeno (uma posição que pre­
nuncia o reiacionismo de Mannheim), era uma maneira de assegurar uma
visão mais abrangente, e ao mesmo tempo mais cuidadosamente preceitua-
da, do fenômeno do que uma simples empatia com ele poderia oferecer.
No que concerne à explanação, Weber sustentava que objetos culturais
e acontecimentos históricos exigiam compreensão tanto hermenêutica
(Interpretativa) como causal-histórica. As condições objetivas causadoras
o INTERIOR DA CIÊNCIA 23

de um acontecimento ou de uma objetivação cultural tinham que ser rigo­


rosamente construídas, por assim dizer, de fora, demonstrando sempre que
possível como a cadeia causai produzia o "resultado" sob análise naquela
forma particular, e não um outro qualquer. Mas essa mesma via teria tam­
bém que ser seguida "de dentro" — em termos da lógica de seus significa­
dos. Explicações histórico-causais, argumentava Weber, também tinham
que ser ' adequadas a nível de significado". Existem muitos exemplos ofe­
recidos por Weber no curso de sua argumentação em favor desse compro­
misso metodológico em sua Metodologia das Ciências Sociais. Mas o fruto
mais importante desta síntese weberiana, do nosso ponto de vista, é certa­
mente a mais conhecida contribuição de Weber para a análise substantiva
de uma ideologia, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.\Neher
contrapôs explicitamente sua tentativa de reconstruir a "lógica interio r" da
relação do protestantismo com a ascensão do capitalismo na Europa ao
que ele definia como a unilateralidade de uma explicação materialista ou
marxista das ideologias. Ele afirmava compreender esta última como uma
forma de reducionismo econômico. Desde então travou-se violento debate
quanto a se <4 Ética Protestante é de fato necessariamente contrária á teoria
marxista da ideologia. Em seu estudo, em estilo tipicamente weberiano,
tanto o capitalismo como o protestantismo são construídos como "tipos
ideais — acentuações unilaterais. Por vezes Weber parece estar argumen­
tando que, obviamente, o protestantismo poderia ser encarado de um
outro ângulo — um ângulo mais materialista — e que aquela acentuação,
também, revelaria sua verdade relativa (embora não, como ele afirma que o
marxismo sustenta, sua verdade total). Não se trata aqui sirhplesmente de
uma concepção de Weber, já que sua obra subseqüente sobre as religiões
mundiais examina o judaísmo e as religiões da índia e da China Antiga em
termos das estruturas sociológicas que as sustentavam. Esta abordagem
mais "sociológica" - no sentido tradicional, de tratar a religião do ponto
de vista das instituições religiosas — não é, evidentemente, mais "m arxista"
do que seu método em A Ética Protestante. Em outro trecho, no últim o
texto, Weber realmente caracteriza sua obra como explicitamente "anti-
marxista"; no que concerne tanto à ênfase teórica quanto ao método, esta
caracterização sem dúvida era correta.
A relação entre protestantismo e capitalismo não era em si mesma
umai^uestão não-marxista. Tanto Marx como Engels assinalaram a cone­
xão. Essa questão tornou-se um tema favorito de estudo na escola histo-
ricista alemã. Na Inglaterra a obra de Tawney e Christopher HilI demonstra
ser possível dar a esta questão uma atenção prolongada sem cair numa pro­
blemática idealista sobre a necessária primazia das idéias na história. De
fato, a obra de HilI sugere que uma atenção ao papel crucial da ideologia e
da religião é um aspecto necessário de uma análise marxista da transição
do feudalismo para o capitalismo no século X V II. Poder-se-ia mesmo argu-
24 TEORIAS

mentar que foi a decisão de HilI de tratar as dimensões religiosas, ideológi­


cas e intelectuais da "Revolução Inglesa" seriamente em seus próprios
termos — e não simplesmente como um simples reflexo de forças econômi­
cas — que salvou sua obra de sua primitiva tendência para o reducionismo
econômico; isto é, salvou-a não do maspara o marxismo (o marxismo não
é um reducionismo econômico, embora, no período da II Internacional,
Weber tivesse às vezes pensado que era). Dizer isto é algo mais do que dizer
que uma atenção a "idéias" deve ser acrescentada a uma análise das forças
econômicas. É avançar uma proposição sobre a teoria marxista da ideolo­
gia, devidamente formulada.
O marxismo tenta compreender uma formação social como uma "u n i­
dade completa", composta de diferentes níveis apresentando sua própria
"autonomia relativa" ao mesmo tempo em que é determinada "em última
instância". Uma conjuntura particular como a Revolução do século X V II é
o resultado da acumulação de contradições originárias de cada um daqueles
níveis, e da superdeterminação de efeitos entre as instâncias relativamente
autônomas. É precisamente ao atribuir a qualquer formação social a plena
complexidade desta articulação, e ao não considerar uma correspondência
"dada", simples ou imediata entre os níveis, que o marxismo rompe com
a totalidade expressiva fundamental — entre outras tradições de pensamen-
ro - à abordagem Geisteswissenschaft esboçada acima. O fato de o surgi­
mento da burguesia no panorama histórico do século XV II ter assumido a
forma ideológica de um choque entre ideologias religiosas teve — para usar
uma expressão corrente — efeitos pertinentes. A superestrutura tem sua
própria efetividade, mesmo que o marxismo exija pensarmos nela como
sendo determinada pelo econômico "em última instância".** As ideologias
não são auto-suficientes; mas na teoria marxista da ideologia elas não são
formas vazias e falsas, nem puros vícios da imaginação. Do contrário, elas
não se constituiríam numa importante área de análise para o marxismo.
Quem quer que atente seriamente para os problemas de uma análise mar­
xista da crise da Irlanda do Norte encontraria muita dificuldade em dizer
que a articulação das lutas de classe através das ideologias religiosas não
é um aspecto pertinente. Na medida, portanto, em que o estudo da ideolo­
gia religiosa constitui um problema real para a teoria marxista, e não mera­
mente um "epifenômeno", a obra de Weber possui algo de importante que
pode ser útil aos marxistas. Weber traz uma contribuição importante para
a análise da estruturação interna de uma formação ideológica emergente.
Sua fraqueza radical emerge precisamente no ponto — crucial para todas as
teorias marxistas da ideologia — em que se lhe é exigido demonstrar a a rti­
culação entre a instância ideológica e outras instâncias. Sua falha neste
ponto relaciona-se claramente com sua maneira nominalista e ideal típica
dl' definir "capitalismo" (essencialmente, em termos de atividade econômi-
I I I .icionnlizada e regulamentada), e a ausência de uma teoria de formações

l
o INTERIOR DA CIÊNCIA 25

de classe em relação a uma análise conduzida ao nível do modo capitalista


de produção.
Os argumentos de A Ética Protestante - que é, sob qualquer ponto
de vista, um to ur de force intelectual — não podem ser detalhados aqui.
Mas alguns pontos mais atinentes à teoria da ideologia devem ser assinalados:
1. 0 ensaio se desenvolve através daquilo que Weber chama uma "a fi­
nidade eletiva" entre a estrutura de idéias puritanas (sobretudo as da vari­
ante calvinista) e a estrutura da racionalização da acumulação de capital
necessária ao desenvolvimento do capitalismo. Isto é, o ensaio opõe-se a
qualquer idéia de que uma mudança econômica fornece diretamente o
conteúdo das idéias capitalistas. Em vez disso, sugere que o que é impor­
tante é a "hom ologia" entre aquilo que o capitalismo precisava para to r­
nar-se um sistema sancionado de atividade econômica regulamentada, e o
impulso para "atividade" planejada e rotinizada no puritanismo. Weber
acrescenta a isto um termo mediador; a "estrutura de caráter" puritana/
capitalista. E digno de nota que a mudança de conteúdo para "homologias
de estruturas" é o avanço teórico chave representado em Le Dieu Cachê,
de Goldmann, e que a atenção à "estrutura de caráter" é um aspecto para
o qual tanto a "Escola de Frankfurt" como Reich iriam, posteriormente,
dedicar considerável atenção.'"^ Esta abordagem, embora afastando-se ra­
dicalmente de uma teoria marxista da ideologia, não contesta a proposição
de Marx (em A Ideologia Alemã) de que "as idéias da classe dominante são
em todas as épocas as idéias dominantes"; sugere, antes, um modo pelo
qual, historicamente, isto pode ter-se concretizado.
2. Deste modo, A Ética Protestante sugere uma abordagem à questão
de como as idéias poderiam se desenvolver para criar numa classe aquela
"compulsão interio r" para ordenar suas ações segundo certos modos; esta
abordagem assinala o aspecto "psicológico" das ideologias, sem descambar
para um psicologismo individual. Sugere também como uma ideologia
pode ser útil para romper a coerção de idéias tradicionais e dar a idéias
"novas" uma força irresistível para aquela classe na qual elas deitam raízes.
3. Sugere que, assim como a "lógica" estabelece uma conexão entre
ideologias e forças econômicas — puritanismo e capitalismo —, as ideolo­
gias possuem sua própria e complexa articulação interna cuja especificida­
de deve ser explicada. Quanto a este últim o aspecto, a demonstração de
Weber é surpreendente: pois ela se articula no paradoxo de que o mais
secular e materialista dos sistemas econômicos — o capitalismo — surgiu a
nível de ideologia, paradoxalmente, não através da secularização e erosão
graduais do catolicismo, mas através da espiritualização intensificada do
puritanismo. Foi somente muito mais tarde, quando a transformação se
consumia, que o componente religioso — aquilo que Jameson chamou certa
vez de "o mediador em vias de desaparecimento"*® — pôde desaparecer.
Assim, embora o desenvolvimento econômico e o ideológico apresentem, a
26

longo prazo, a mesma tendência, são articulados mais através de diferenças,


do que através de correspondências, em suas lógicas respectivas. A Europa
torna-se capitalista — ao nível ideológico — não por afastar-se mais de
Deus, mas colocando tudo, inclusive a atividade secular do homem, direta­
mente sob Seu escrutínio. Uma teoria da "autonomia relativa" da ideolo­
gia poderia, conseqüentemente, ser resgatada da obra de Weber, sem se co­
meter violência contra seu argumento. Deve ser acrescentado, evidente­
mente, que não é certamente desta maneira que Weber coloca a questão.
Ele não desenvolveu o que quer que seja que se aproximasse de uma teoria
"regional" da ideologia. Em seus estudos posteriores, ele simplesmente in­
verteu o ponto de vista. Não tirou deduções gerais para a teoria deste estu­
do virtuoso. Em termos gerais Weber permaneceu até o fim um "in d iv i­
dualista metodológico". Continuou buscando uma resolução para o pro­
blema do conhecimento dentro da estrutura da teoria neokantiana, não
da marxista.
Outras três linhas de descendência da tradição alemã que estivemos
examinando devem ser sucintamente indicadas. A primeira diz respeito ao
que anteriormente chamamos de certos curtos-circuitos importantes na
tradição que leva de volta ao marxismo. O paradigma aqui é o de Lukács.
A mais substantiva contribuição de Lukács para a teoria da ideologia — a
representada por História e Consciência de Classe — é examinada mais am­
plamente adiante. Mas Lukács é importante para esta parte da narrativa
devido a sua posição geral no nexo de duas tradições — o idealismo pós-
hegeliano e o marxismo. Lukács, que é freqüentemente tratado como o
perpetrador de um conceito simplista de ideologias — como "visões do
mundo" — por vezes também aparece como sua vítima. Ele deixou-se
enfeitiçar pela Geisteswissenschaft como um intelectual bem dotado no
clima excitante da "escola" de Heideiberg, conforme ele próprio admitiu.
Para escapar ás persistentes solicitações do positivismo, ele procurou re­
cuar "ainda mais" — até o próprio Hegel (o jovem Hegel). Para escapar
de Hegel ele voltou-se para Marx — mas o caminho de um até o outro não
podia ser erradicado: a presença ausente de Hegel atravessava o caminho
que Lukács tomou para chegar a Marx, como o rasto de um avião no céu.
Em seu caminho, ele passou pelos irracionalistas alemães —a vingança final
que os metafísicos hegelianos perpetraram contra o pensamento europeu.
O "irracionalismo" é a segunda linha de descendência. A "lu ta pelo
método" polarizara-se em dois campos principais: positivismo e histori-
cismo. Mas o historicismo era uma fusão de muitas correntes distintas.
Incluía o romantismo alemão, que nunca fora completamente domesticado
pelos esforços de homens como Dilthey para tornar o estudo da Consciên­
cia Objetiva (o "além da Ciência") ordenadamente, e a seu próprio modo.
"cie n tífico ". 0 estudo de Mannheim sobre o "Pensamento Conservador"
alemão revela claramente suas raízes irracionalistas. E no final do século
0 INTERIOR DA CIÊNCIA 27

esse impulso veio novamente à tona no pensamento europeu — desta vez


sob a forma do Vitalismo. Para Nietzsche, que fez de si mesmo seu mais
poderoso porta-voz, não havia nenhuma filosofia ou método condutor à
disposição. Havia apenas o desprestígio de todas as idéias e sua cruel re­
dução aos sórdidos interesses mascarados no bojo de suas generalidades
altissonantes. "Vivem os", afirmava Nietzsche, "apenas através de ilu­
sões. .. os fundamentos de tudo que é grande e vivo erguem-se sobre a
ilusão. O pathos da verdade conduz à destruição."'* Nietzsche acreditava
que a contradição existente na noção de ideologia tinha sido pelo menos
desmantelada; a Razão era um artifício; tudo que restava era a crua luta
pelo poder entre ilusões, entre interesses. A ilusão mais bem sucedida era
a que evidenciava a maior "vontade de poder". Sabemos o que Hitier e os
habilidosos senhores da ilusão que o cercavam na década de 1930 fizeram
com essa idéia. Eles transformaram a fantasia de Nietzsche em realidade:
trataram de construir um Gotendàmmerung. Quando a "Escola de Frank­
fu r t" apareceu, sob as circunstâncias de um fascismo plenamente no poder,
para examinar o problema da "ideologia", eles tinham, portanto, fortes
razões para tratá-lo como um problema que exigia não muito mais do que
a análise da manipulação de massa de "ilusões" servidas. Em seus esforços
para reconstruir a maneira pela qual a Idade da Razão tivera como resulta­
do a Destruição da Razão, Adorno e Horkheimer foram obrigados a se
voltar para o elemento irracionalista que, argumentavam eles, sempre es­
tivera presente no sonho do lluminismo: eles desencavaram o que chama­
ram de " A Dialética do lluminismo".^®
A terceira linha de descendência seguiu-se realmente, não do Geistes-
wissenschaft diretamente, mas da resposta ponderada de Max Weber a ele.
Embora em seus ensaios da Metodologia Weber tivesse entrado diretamente
em debates com o Geisteswissenschaft, em sua sociologia geral ele conti­
nuou sendo, como dissemos, um "individualista metodológico". Isto não
quer dizer que ele acreditasse que todos os fenômenos sociais pudessem ser
reduzidos ao nível de indivíduos históricos concretos. Ele queria dizer que
conceitos sociológicos, para serem "adequados a nível de significado",
tinham que ser construídos, heuristicamente, em termos das ações, signifi­
cados e orientações típicos que podiam ser conferidos a atores individuais
típicos. Daí sua definição de ação social ter sido atribuição de motivações
típicas a um "in d iv íd u o " cujas ações eram orientadas para "o outro".
I odos os conceitos sociológicos decorrentes desta perspectiva eram neces­
sariamente expedientes heurísticos - construções de segunda ordem. Uma
das personalidades-chave que tentaram desenvolver uma abordagem mais
rigorosamente socioiógica, a partir desta síntese weberiana, foi Alfred
Schutz.^'
Schutz era um "fenomenologista" que deixou sua Viena natal para
trabalhar como assistente do grande fenomenologista Husserl. Schutz acei-
28

tou o argumento da fenomenologia segundo o qual tudo que podia ser


devidamente "conhecido" consistia nos conteúdos e estruturas da consci­
ência. Enquanto o marxismo apresentava a tendência para tratar a cons­
ciência como uma esfera de "falsas aparências" (Marx, evidentemente,
acrescentou falsas aparências necessárias), a fenomenologia adotou a posi­
ção contrária: tudo que estivesse alheio à consciência tinha que ser "classi­
ficado à parte". O significado era o produto da intenção, e a consciência
era o dom ínio, por excelência, da intencionalidade. O que podia ser estu­
dado era a intencionalidade da consciência individual — e a interação entre
consciências, o dom ínio da intersubjetividadb. Em sua forma pura, certa­
mente, a fenomenologia era um recuo radical para o mentalismo. Mesmo
aquele "dram a" no mundo da ação social que Weber compreendera experi­
mentalmente foi inteiramente transposto para a consciência e os intercâm­
bios entre consciências.
Schutz apegou-se firmemente a esta perspectiva fenomenológica. Mas
ele acreditava que ela podia ser desenvolvida e ampliada numa "sociologia
rigorosamente fenomenológica".^^ O problema era como explicar os fenô­
menos do mundo social "re a l" deste ponto de partida fenomenológico.
Aqui, Schutz uma vez mais empreendeu um retorno dissimulado ao terre­
no da Consciência Objetiva. A intencionalidade da consciência era realiza­
da — objetivada — no mundo através da atividade. O homem, portanto,
tinha que viver nas estruturas de significado que objetivara:os significados
presentes em sua cabeça tinham "tom ado form a" no mundo exterior. Mas
estes "m undqs" objetivos não eram produto apenas da consciência inten­
cional isolada, mas também das permutas intersubjetivas entre consciên­
cias. O significado era, portanto, conseqüência desta reciprocidade — a
reciprocidade ou alinhamento de perspectivas. Essa "reciprocidade de pers­
pectivas" era o fundamento — o terreno comum — para os processos recí­
procos de "estabelecimento do significado" e "interpretação do significa­
do". Sua base mais ativa era o intercâmbio face a face, no qual cada ator
está co-presente ao outro: no qual são "consócios". Eles compartilham as
mesmas perspectivas, a mesma "história", e constantemente "constroem a
realidade social" juntos. Este espaço mutuamente construído constituía
o mundo intersubjetivo "vivid o ". Utilizando como meio — depósito — a
linguagem e os sistemas de signos, estes atores poderiam "a tivar" outros
domínios da existência não materialmente presentes nele (através da cons­
trução de sínteses mentais "típicas"). Eles também podiam convocar o
passado. Embora o terreno comum entre "consociados" constituísse, para
Schutz, a esfera da realidade, mais maciçamente "presente", mais óbvia, a
totalidade da vida social e histórica podia de fato ser teoricamente delinea­
da em termos destes processos básicos de construção de significado/inter-
pretação do significado. Uma vez que tudo que jamais existira no mundo
era produto da consciência intencional intersubjetiva, tudo era significado.
0 INTERIOR DA CIÊNCIA 29

Pensamentos ou referências a outros não presentes "na consciência" — sim­


plesmente ausentes, ou derivados do passado — bem como "teorias" sobre
ações sociais eram simplesmente sínteses mentais de segunda ou terceira
classe.
A linguagem permitiu que todos os domínios não concretamente pre­
sentes no intercâmbio face a face fossem preservados, armazenados, relem­
brados. Ações constantemente repetidas ou institucionalizadas produziam
o efeito de tornar estáveis e padronizados os significados ativos nelas. Os
significados que informavam tais ações não mais pareciam constituir um
domínio do significado. O significado, aqui, tornara-se padronizado, ins­
titucionalizado. O "m eio tipificador por excelência... é o vocabulário e a
sintaxe da vida cotidiana". Estas sínteses mentais, antes produto da cons­
ciência intencional, mas agora alojadas "no m undo", conquistaram uma
facticidade própria. Tornaram-se significados objetivados, capazes de re-
troagir sobre os sujeitos que as habitavam, como que "de fora". A ativida­
de (práxís) de construção do significado que as produziu perdeu-se para a
consciência (alienou-se). Agora elas pareciam impor seus significados, coa­
gir e governar os homens, de fora. Como Sartre, que foi fortemente influ­
enciado por este paradigma geral, escreveu;

"Desse modo, as significações provém do homem e de seu projeto, mas estáo


inscritas em toda parte, nas coisas e na ordem das coisas. Tudo a todo instante
está sempre significando, e as significações revelam-nos os homens e as relações
entre os homens através das estruturas de nossa sociedade."^

Embora a linguagem empregada por Sartre aqui esteja muito distante


da terminologia da "fenomenologia", e extraia elèmentos tanto de Marx
como de HusserI na mesma proporção, ela se insere bastante no mesmo
paradigma: em última análise, para os propósitos desta exposição, esta é
uma problemática enraizada naquilo qi'e veio a chamar-se a "dialética
Sujeito-Objeto". Seja qual for a forma em que apareça, a presença da dia­
lética Sujeito-Objeto sempre atesta o "fantasma de Hegel" não exorcizado.
Schutz argumentava que as muitas e várias objetivações no mundo cor­
respondem a diferentes níveis ou camadas da consciência. A realidade esta­
va estruturada em diferentes "regiões", cada uma com sua camada apro­
priada de consciência: as "m últiplas realidades" do jogo, sonho, transe,
teatro, teoria, eerimònia e assim por d i a n t e . À medida que se passava de
um dom ínio da realidade social para outro, cada um "propunha" seu pró­
prio esquema de interpretação: trazendo um modo de consciência para o
primeiro plano, e relegando o restante para um segundo plano. A região
mais sedimentada da realidade e da consciência era aquele setor da realida­
de que os homens tinham que tomar em grande parte por certo, já que fo r­
mava a base de suas ações ordinárias, cotidianas. Este era o dom ínio da
"vida cotidiana"; e o modo de consciência apropriado era o mais presumi-
.10 TEORIAS

Ho de todos os modos: o domínio do senso comum. Quando agimos de


acordo com o "senso comum", argumentava Schutz, não temos absoluta­
mente consciência de estarmos operando num dom ínio de significados
construídos. Simplesmente aceitamo-lo como certo. Schutz propunha que
a sociologia devia ocupar-se, acima de tudo, da "estrutura do mundo de
senso comum da vida cotidiana".
Na obra de Schutz, vemos a "sociologia do conhecimento" sendo le­
vada ao seu ponto extremo. Já não estamos preocupados com a relação
entre conhecimento social e relações sociais. As relações sociais são con­
cebidas essencialmente como estruturas de conhecimento (contanto que
consideremos o "conhecimento" em seu sentido comum, mais lato, e não
o confundamos com idéias sistemáticas, com "ideologias" em seu senti­
do mais limitado). Berger e Luckmann, os sociólogos contemporâneos
que, em The Social Construction o f Reality (1971), procuraram avançar
esta linha de pensamento até seus limites máximos, colocaram a questão
sucintamente:
A realidade social da vida cotidiana é assim apreendida num contínuo de tip ifi­
cações. .. A estrutura social é a soma destas tipificações e dos padrões recorren­
tes de interação estabelecidos através delas.

É sobretudo desta forma que a "sociologia do conhecimento" veio a


exercer uma poderosa influência dentro das tradições dominantes da socio­
logia norte-americana. As escolas do "interacionismo simbólico" e da "et-
nometodologia", surgidas posteriormente, são extrapolações diretas da so­
ciologia do conhecimento.^^
De um modo geral, a sociologia do conhecimento detém uma posição
complexa em relação à teoria da ideologia. As idéias já não são tratadas em
termos de suas raízes históricas, as classes que as subscrevem, as conjuntu­
ras específicas nas quais surgem, sua efetividade em conseguir a aprovação
das classes dominadas para o modo pelo qual o mundo é definido e com­
preendido pelas classes dominantes. A relação da instância ideológica para
com outras instâncias numa formação social foi obliterada. Sua função prá-
tico-histórica específica perdeu-se. As idéias receberam um âmbito muito
mais amplo e abrangente: elas formam o fundo de todos os processos
sociais. Na verdade, seria muito mais correto dizer que os processos sociais
são tratados essencialmente em termos de idéias. Eles são preeminentes
porque é através das idéias que construímos a própria realidade social. Não
existe realidade objetiva - e conseqüentemente não pode haver nenhum
conhecimento "cie n tífic o " dela. Existem apenas as diferentes tomadas
da realidade" alojadas nas diferentes perspectivas que os atores sociais con­
ferem ao mundo. A área das interações sociais cotidianas parece apenas um
lotor substancial da realidade, porque é a zona na qual a ampla maioria das
perspectivas individuais coincidem.
o INTERIOR DA CIÊNCIA 31

Desse modo, sejam quais forem as compreensões que possam benefi­


ciar uma teoria marxista da ideologia a partir desta tradição, devemos re­
conhecer que cada uma dessas compreensões tem origem numa problemá­
tica bastante diferente. Marx escreveu A Ideologia /4/ema justamente para
mostrar que o desenvolvimento histórico da sociedade não podia ser re­
construído "a partir do que o homem diz, imagina, concebe... do que o
homem narrou, pensou, imaginou, concebeu..." . A fenomenoiogia deve
supor que para a realidade histórica só existe o que o homem diz, imagina,
concebe... (Acrescentemos que, se para o marxismo a história não consis­
te daquilo que o homem diz, imagina, concebe, é ainda um problema para
o marxismo explicar por que o homem diz, imagina, concebe aquilo que
faz, onde surgem estes "pensamentos" e qual o seu grau de efetividade.
Mas este é um problema diferente.) De fato, para Schutz, o mundo não
é totalmente reduzido aos pensamentos existentes na cabeça do homem;
pois ele estava interessado na maneira pela qual os pensamentos ganharam
uma facticidade objetiva no mundo, e assim, ao moldarem as ações huma­
nas, afetaram a maneira pela qual a realidade foi construída. Mas esse des­
locamento parcial do impulso fenomenológico "p u ro " não levou-o de volta
a Marx, nem apontou para aquela direção. Em vez disso apontou para uma
outra — e bem inesperada — convergência: um encontro da fenomenoiogia
com a tradição da ciência social positiva como representada por Durkheim
e sua "escola".
A posição de Durkheim quanto a esta questão foi mal compreendida
em sua época e desde então tem sido muito mal representada.^* Quanto
a este aspecto devemos atribuir um papel crucial à maneira seletiva pela
qual a obra de Durkheim foi apropriada (expropriada talvez fosse um termo
mais exato) pela principal corrente da ciência social empírica norte-ameri­
cana.^”^ Durkheim é considerado o "p a i" da ciência social positiva porque
rejeitava todos os absurdos alemães acerca de idéias. Mente, Espírito. Ele
consignava as "idéias" a uma pequena caixa preta, não por serem desti­
tuídas de importância, mas porque não podiam ser analisadas. Em vez
disso ele decidiu-se a tratar o que podia ser analisado — interação social
padrohizada governada por normas e canalizada por estruturas institucio­
nais. Os aspectos observáveis destas tinham que ser tratados como se mos­
trassem a dureza e a consistência dos objetos no mundo natural. Daí a
famosa advertência — "tratar os fatos sociais como coisas".^* Durkheim
realmente acreditava que os fenômenos sociais possuíam uma realidade
própria — uma realidade sui generis; e que deviam ser analisados por mé­
todos de estudo rigorosos e objetivos. Em todos esses sentidos ele se
alinhou firmemente dentro da tradição do positivismo francês.
0 que geralmente é negligenciado por esta explicação é o fato de que
aqueles famosos "fa to s" que Durkheim queria tratar como "coisas" eram
ações sociais informadas p o r idéias — ou, para usar uma linguagem mais
32 TEORIAS

positivista, ação governada por regras e normas — comportamento gover­


nado por regras. Foram os efeitos constrangedores das "regras da vida
social" sobre as ações individuais que tornaram a "sociedade" possível para
Durkheim — e, ao mesmo tempo, sistematizando o comportamento, cons­
tituiu-o como o objeto possível de uma ciência positiva. Daí o interesse de
Durkheim por método — por coisas organizadas como classificações, pela
descoberta "da regra", pelo " tip o " e "va lo r" dos fenômenos sociais. Foi
por ter perdido a esperança na capacidade da hermenêutica em nos ofere­
cer um conhecimento adequado destas coisas que ele voltou-se para o mé­
todo positivo. Ele certamente estava interessado pela maneira segundo a
qual as idéias informavam as ações. Sua questão era: como descobrir que
normas estão operando? Até que ponto as normas são fracas ou fortes (e,
consequentemente, qual é o grau de solidariedade social)? Até que ponto
são unificadas ou pluralistas, obrigatórias ou opcionais? Em vez de pergun­
tar qual era a "intenção" oculta na mente do ator individual, Durkheim
começou no extremo oposto: do sistema de idéias codificado legal ou
moral. Pois estas idéias eram as "representações coletivas" de relações so­
ciais, e nelas pelo menos era possível encontrar, em forma passível de estu­
do, aquelas "regras" que o homem julgou conveniente incorporar ao siste­
ma formal da Lei. Neste sentido, o positivismo durkheimiano isolou-se
conscientemente de toda aquela dialética Sujeito-Objeto que Hegel inaugu­
rou. O positivismo optou por começar com uma realidade social já objeti­
vada: com a facticidade alcançada pelas "regras" da vida social, e sua força
constrangedora sobre a ação. O positivismo tratou o mundo "cognoscível"
como, já, uma reificação. E, apesar dos caminhos tão diferentes pelos quais
eles chegaram a este ponto, o positivismo de fato estabeleceu um terreno
até certo ponto comum entre o positivismo durkheimiano e a fenomenolo-
gia sociológica.
Portanto, apesar das aparências, Durkheim pertencia à tradição neo-
kantiana. A realidade "noumênica" tinha que ser estudada através de suas
formas aparentes — através da realidade "fenomenal". Duas relações cor­
relatas contribuíram para tornar flexível esta posição neokantiana em dire­
ções diferentes — levando ao que só pode ser descrito como "d ois" Durk-
heims. O primeiro era uma preocupação clássica com a natureza, o grau e
os tipos de solidariedade social. Neste particular, ele deu continuidade a
teóricos anteriores ao acreditar que os elos da solidariedade social tinham
sido grandemente enfraquecidos em sociedades de competição individual
(isto é, sociedades capitalistas de mercado). Este enfraquecimento seria
constatado com precisão no afrouxamento do poder constrangedor das
"regras" sobre o comportamento individual. A condição, típica de tais
sociedades, na qual as ações eram insuficientemente "reguladas" por nor­
mas foi por ele chamada de anômica. É este o terreno clássico da sociologia
positivista; e a ele Durkheim dedicou alguns de seus principais trabalhos.
o INTERIOR DA CIÊNCIA 33

incluindo A Divisão do Trabalho, O Suicídio e Regras do Método Socioló­


gico. Foi este Durkheim que a sociologia americana apropriou.
Mas Durkheim também acreditava que a integração social dependia da
integração normativa — ou, como disse Bourdieu recentemente, que "a
integração lógica é a pré-condição da integração m oral". A integração
"norm ativa" dependia ora da força, ora da fraqueza das normas na socie­
dade — ou aquilo que Durkheim chamava de conscience collective. Mas a
fonte das normas e das regras era a própria sociedade. Desse modo, as
categorias lógicas tinham na sociedade sua fonte de origem. Era a "socieda­
de" — fonte do normativo — que tornava as regras "sagradas", e conse-
qüentemente aglutinadoras; a "sociedade" idolatrada pelo homem (o argu­
mento central de The Elem entar/ Forms o f the ReUgious Life).
0 texto nodal no qual Durkheim elaborou esta parte de sua teoria
foi o que ele escreveu com seu discípulo. Marcei Mauss: Ar/m/f/Ve Classi-
fication. Nessa obra Durkheim propôs-se a demonstrar como as categorias
cognitivas e as classificações mentais que os "p rim itivos" utilizavam para
pensar seu mundo eram de fato modeladas pelas relações sociais. A so­
ciedade não fornecia — como admitiam um tanto grosseiramente os fun­
cional istas — o conteúdo de taxonomias sociais. Em vez disso, Durkheim
acreditava — seguindo Kant — que o que a sociedade fazia era fornecer
as categorias segundo as quais os homens "pensavam" o mundo. Evidente­
mente, ao passo que Kant preocupava-se com as categorias mais abstratas
— espaço, tempo — Durkheim preocupava-se essencialmente com catego­
rias sociais. Foi essa linha de pensamento que forneceu a principal inspira­
ção de Durkheim a seus seguidores e colaboradores franceses, e que distin-
guiu o grupo do Année Socioiogique reunido à sua volta.
Não é de surpreender, pois, que quando Lévi-Strauss assumiu a cáte­
dra de Antropologia Social no College de France e proferiu a aula inaugural
onde declarava que o ponto fundamental da Antropologia Social devia ser
o estudo da "vida dos signos presentes no âmago da vida social", foi-lhe
possível defender este empreendimento como sendo nada mais nada menos
do que a retomada da "parte esquecida do programa de Durkheim-Mauss".^°
O "estruturalism o" de Lévi-Strauss estava permeado de diretrizes diferen­
tes do de Durkheim e seus seguidores. As influências nele encontradas in­
cluíam Marx e Freud, Rousseau, a escola de lingüistica de Praga e a do fo r­
malismo russo, às quais Jakobson o apresentou, e a lingüistica antropológi­
ca de Franz Boas, o notável estudioso das línguas indígenas americanas.
Este últim o introduziu-o àquele ramo da Antropologia Cultural americana
que adotara o que é chamado de hipótese "Sapir-W horf" — segundo a qual
cada cultura classifica o mundo de modo diferente e segundo a qual o prin­
cipal inventário dessas taxonomias sociais encontra-se nas categorias da
língua nativa. De uma maneira ou de outra, foi a lingüistica que imprimiu
ao estruturalismo seu principal impulso, bem como forneceu-lhe a "pro-
34 TEORIAS

messa" — finalmente — de um estudo verdadeiramente "c ie n tífic o " da


cultura. Mas foi a herança proveniente de Durkheim e Mauss que capacitou
Lévi-Strauss a reivindicar com tanta confiança esta nova orientação para a
Antropologia Social. Assim, a primeira aplicação do estruturalismo de Lé­
vi-Strauss foi feita em dois temas clássicos da Antropologia Social: os siste­
mas de parentesco (em que a relação entre a terminologia kin e kinship é
crucial) e o totemismo.^* 0 estruturalismo francês deu início a sua obra
sobre este terreno clássico antes (em O Pensamento Selvagem) de ser
aplicado a uma vasta gama de classificações significantes e, subseqüente-
mente, ao rico terreno do mito.
A diferença essencial estava nos dois significados do termo-chave es­
trutura. Por "estrutura" a Antropologia Social clássica entendia as estrutu­
ras observáveis — as ordens institucionais — de uma sociedade. Em Lévi-
Strauss, o termo está mais próximo da "estrutura profunda": significa o
sistema subjacente de relações entre termos, conceitualizado no modelo
de uma linguagem. Já não existia nenhuma correlação simples, de um para
outro, entre esses dois níveis — a ordem de classificação e significado, e a
ordem de "relações reais". Os dois tinham que ser concebidos como a rti­
culados mediante alguma relação que não fosse a de reflexão ou correspon­
dência, ou mesmo de simples analogia. Esta abordagem, certamente, refu­
tava qualquer noção de que na linguagem o homem "dava nomes" a
simples objetos funcionais do mundo real. A distância que separa as duas
abordagens é nitidamente percebida na seguinte distinção: Malinowski
acreditava que os povos primitivos classificavam certos alimentos como to ­
tens porque eram bons (ou maus) de comer. A resposta de Lévi-Strauss foi
que eles eram classificados dentro de sistemas totêmicos "não porque são
bons de comer, mas porque são bons de pensar". Em Tristes Tropiques,
Lévi-Strauss afirmou que a geologia, a psicanálise e o marxismo eram suas
"três companheiras". Glucksmann está certo quando sugere que esta a fir­
mação possui um sentido acima de tudo metodológico.^'^ O que todas as
três tinham em comum com o estruturalismo de Lévi-Strauss era o fato de
que "Todas as três demonstravam que o entendimento consiste na redução
de um tipo de realidade a outro; que a realidade verdadeira nunca é a mais
objetiva das realidades, e que sua natureza já é aparente na precaução que
ela toma para escapar à nossa d e te c ç ã o ".C o m o disse Marx certa vez dos
economistas vulgares, "somente a forma fenomenal imediata dessas rela­
ções é concebida em seus cérebros e não sua conexão interior. Incidental-
mente, se fosse o caso dessa última, que necessidade haveria de uma ciên-
cia?"^‘* A redução de "observáveis imediatos" ao nível de estrutura, por­
tanto, constituía para Lévi-Strauss o núcleo de um método científico. Mas
era especialmente relevante para a maneira pela qual o pensamento, as
idéias, o significado, relacionavam-se ou correspondiam ao mundo real.
As cabeças dos homens também estavam cheias de "idéias", noções, racio-
o INTERIOR DA CIÊNCIA 35

naiízações e “ explicações" secundárias para suas ações. Também estas


últimas donstituíam uma série de léxicos culturais interminavelmente aber­
ta, variável e infinita. Também nesse caso era necessário expressara varie­
dade de idéias observáveis em termos do lim ite de suas estruturas subjacen­
tes para que fosse possível submetê-las a uma análise científica. Não foi
portanto acidentalmente que Lévi-Strauss declarou ser "o pensamento
selvagem" o seu interesse. Era o impulso do "pensamento" impor inces­
santemente formas aos conteúdos que assinalavam a origem do pensamen­
to, bem como o rompimento entre Natureza e Cultura. Na miríade de
combinações que isso produziu em diferentes culturas, Lévi-Strauss identi­
ficou o vestígio de uma atividade universal, comum ao bricoleur prim itivo
e ao moderno engenheiro. Esta era a atividade de fazer as coisas significa­
rem a atividade coletiva e inconsciente de significação. Para completar —
e confundir — o círculo, ele chamou essa faculdade universal "l'esprit
humain".

O surgimento do estruturalismo constituiu-se num importante desen­


volvimento da análise do dom ínio da cultura e do conhecimento. Poole,
em sua admirável introdução,** sugere que a transformação operada pelo
estruturalismo ocorre naquele ponto do desmantelamento do problema do
totemismo em que Lévi-Strauss substitui a pergunta clássica "que é tote-
mismo?" pela pergunta estruturalista "como estão dispostos os fenômenos
totêmicos?" Isto representa aquilo que alguns definiriam como a principal
transformação que o estruturalismo como método opera. É a mudança de
conteúdos para formas ou, como diria Lévi-Strauss, para estrutura. É
através da disposição de seu campo de significações que a "lógica da classi­
ficação totêm ica" relaciona-se com ou, melhor ainda, articula a combina­
ção de coisas e objetos no mundo do prim itivo australiano. É nas formas
da combinação — ás quais a constituição de uma estrutura nos dá um
acesso privilegiado — que as categorias mentais e sociais estão relacionadas.
Assim, analisando uma importante passagem do estudo de Evans-Pritchard,
The Nuer, referente a associações no pensamento prim itivo entre "aves" e
"gêmeos", Levi-Strauss observa que "Gêmeos 'são aves', não porque se
confundam com elas ou porque se pareçam com elas, mas porque gêmeos,
em relação a outros homens, são como 'pessoas do alto' em relação a 'pes­
soas de baixo'; e, em relação às aves, são como 'aves de baixo' em relação
a 'aves do a lto '."“ A relação entre os dois níveis não é uma relação de re­
ferência direta, função, reflexão, correspondência direta, ou mesmo de
semelhança ou analogia. É a combinação interna do campo de classifica­
ções que foi forçada a "assemelhar-se" à classificação interna do campo
dos objetos naturais e do homem. " A semelhança é entre esses dois siste­
mas de diferenças". Não são "as semelhanças mas as diferenças que se asse­
melham entre si".
36 TEORIAS

Conseqüentemente, somente seria possível decifrar as regras que go­


vernam a cultura e o conhecimento, examinando-se as relações internas
através das quais essas campos são produzidos. A lingüística estruturalista
(especialmente Saussure, mas também a obra nodal de Jakobson sobre as
características contrastantes do sistema fonético)^'' foi de valor crucial ao
contribuir para que Lévi-Strauss desenvolvesse um método para "decodifi­
car" sua produção. A combinação era uma combinação de coisas — ele­
mentos, termos, "fragmentos" — em categorias. Estas últimas compuseram
as séries classificatórias ou campos paradigmáticos nos quais os elementos
de uma cultura eram "inventariados". Conseqüentemente, era preciso
conhecer as regras segundo as quais certos termos ou elementos eram se/e-
cionados destas taxonomias culturais e combinados com outros, para emi­
tir qualquer "declaração" cultural específica. Este era o elemento sintag-
mático da articulação cultural. Para o estruturalismo, a "iniciativa" ele­
mentar básica era o que permitia ao analista expressar o últim o em termos
do primeiro: transpor um conjunto de significações culturais (por exemplo,
os mitos) para as classificações, os elementos e as regras de seleção e com­
binação a partir dos quais eram gerados. Esta era "a estrutura" de um con­
junto de mitos — muitos dos quais ainda não narrados! As muitas variantes
do m ito podiam então ser demonstradas como sendo geradas — como a
corda de superfície da linguagem falada — a partir das variações e transfor­
mações ocorridas na estrutura profunda. Cada variante era constituída por
meio da transformação ou transposição dos elementos numa estrutura
dada. Assim, um conjunto de mitos não era outra coisa senão o resulta­
do (ao nível superficial da expressão) de uma estrutura e suas variantes.
Diferentes "m omentos" do mito, ocorridos em diferentes épocas e diferen­
tes lugares, podiam portanto ser todos eles exprimidos como realizações
variantes da estrutura. Dessa maneira, o que parecia articulado através do
tempo (diacrònico) só podia ser cientificamente apreendido e estudado
quando tivesse sido reexprimido como uma "estrutura e suas variações"
- isto é, com o tempo suspenso (sincronicamente). Saussure argumentara
que o corpo de declarações reais e potenciais {paroles) não podia ser sub­
metido a um estudo científico, precisamente porque não era um campo fe­
chado. Somente "a parte social da linguagem" — o que Saussure chamava
langue — podia ser objeto de estudo lingüístico científico. Do mesmo
modo, para Lévi-Strauss, a infinita variedade de produções de superfície
de uma cultura era demasiadamente amorfa para constituir um campo
de estudo científico. Este campo primeiro tinha que estar sujeito à "ne­
cessária redução" aos elementos e regras de sua estrutura para tornar-se
um objeto de investigação científica. Em Totemismo Lévi-Strauss propôs:

Definamos o fenômeno em estudo como uma relaçSo entre dois ou mais termos,
reais ou supostos; construamos uma tabela de possíveis permutações entre os
termos; tomemos a própria tabela como o objeto geral da análise. . .
o INTERIOR DA CIENCIA 37

A cultura estava organizada "com o uma linguagem": conseqüente-


mente, só podia ser estudada na analogia da lingüfstica estruturalista.
Isto trouxe o estruturalismo diretamente para o terreno de classificações e
códigos: "análise das relações e transformações dentro de sistemas simbóli­
cos". Estas relações não eram as que experimentamos, mas as que u tili-
závamos para "pensar o mundo":con(:t/s, não vécus. 0 objetivo do empre­
endimento não era mais a decifração de conteúdos sociais aprisionados ou
de aigum modo expressos em formas simbólicas, ou o exame da relação
entre o que era concebido e quem o concebia. O objetivo era decifrar a
articulação interna: rachar o código. Este é, sem dúvida, o m omento da
formação, dentro da esfera do estudo da cultura e ideologia, de uma pro­
blemática nitidamente distinta, baseada numa noção completamente d i­
ferente de relação causai entre categorias sociais e mentais: o m omento do
nascimento daquilo que veio a chamar-se "causalidade estruturalista".
O nascimento do estruturalismo como uma teoria geral da cultura, e
do método estruturalista, é algo como uma revolução "copernicana" na
sociologia do conhecimento, apesar de suas bases teóricas e antecedentes
aparentemente heterogêneos. Como o modismo intelectual manifestou ten­
dências de afastar-se da obra de Lévi-Strauss para se aproximar de outros
pontos no campo estruturalista, assim o caráter original de sua interven­
ção, para tudo o que se seguiu, tendeu a ser retrospectivamente reprimido.
Existem pelo menos três "linhas de descendência", nenhuma das quais
pode ser retraçada aqui, a não ser da maneira mais sumária, mas que preci­
sam ser indicadas. A primeira é o desenvolvimento de um "estruturalismo
especificamente marxista", marcado sobretudo pela obra de Louis Althus-
ser. Isto é amplamente discutido numa outra contribuição para esta cole­
tânea, e não será desenvolvido aqui. Vale notar, contudo, que Althusser e
Etienne Balibar, seu colaborador num importante trabalho teórico (Lire
"Le Capital"), estendem-se consideravelmente nesse volume com a fin a li­
dade de assinalar as distinções entre seu "estruturalismo marxista" e o de
Lévi-Strauss. No volume subseqüente, Essays in Self-Criticism, Althusser
reconhece um certo número de débitos teóricos — inclusive, e mais signi­
ficativamente, a Spinoza — mas continua a conceder pouco ou nenhum
peso à influência de Lévi-Strauss (a seção "Elements of Self-Criticism "
contém apenas cinco páginas). Aqui ele repete o que em outra parte identi­
ficou como "a mais importante linha de demarcação": Lévi-Strauss tende
para "a produção ideal do real como um efeito de uma combinatória de
elementos", enquanto Althusser e Marx "falam da 'combinação' de ele­
mentos na estrutura de um modo de produção. Mas essa combinação não é
uma 'combinatória' form al".^* Althusser e Balibar enfatizaram esse ponto
específico em Lire "Le Capital".^^ Contudo, já que ambos os teóricos re­
conheceram posteriormente uma tendência para o "form alism o" naquela
obra, as diferenças entre um estruturalismo marxista e um não-marxista —
38 TEORIAS

não como são afirmados mas como aparecem na própria exposição — são
dignas de um cuidadoso reexame.
A segunda "linha de descendência" importante é constituída pelas
duas aplicações do método estruturalista ao campo da semiótica: a primei­
ra identificada claramente com o trabalho de Barthes, a segunda com o de
Lacan e Kristeva. A julgar pelos Elementos de Semiologia, fo i principal­
mente de Saussure, e não de Lévi-Strauss (isto é, da lingüística e não da
antropologia), que Barthes derivou o estímulo para seu trabalho em se­
miologia. Saussure via a utilização de todos os sistemas de signos como parte
da ciência geral da lingüística. Barthes inverteu esta proposição, ao declarar
que os sistemas lingüísticos eram apenas um elemento num campo m uito
mais vasto de sistemas de signos, cuja ciência era a semiótica. A semiótica
era o método pelo qual os sistemas mental e simbólico ou significante de
uma cultura podiam ser sistematicamente investigados. Mas a preocupação
de Lévi-Strauss em mapear os inventários de uma cultura foi fundamental
para Barthes.^® Ao contrário de Lévi-Strauss, Barthes conservou o conceito
de "ideologia" distinto do conceito geral de cultura, mas foi esse últim o
que se constituiu no objeto propriamente dito da "ciência dos signos".
As ideologias eram apenas os "usos" particulares de sistemas de significa­
ção particulares numa cultura, que as classes dominantes apropriaram
para a perpetuação de sua dominação. No posterior desenvolvimento da
semiótica, Barthes é talvez o proeminente caso do semiótico que conti­
nuou a se interessar pela convergência entre sistemas significantes e "frag­
mentos de ideologias". De um modo geral, a tradição dominante no início
da semiótica estava mais preocupada em identificar as regras segundo as
quais a significação como tal efetivou-se. Assim, embora a semiótica tenha
certamente colocado na agenda a possibilidade de uma análise mais sistemá­
tica e rigorosa de sistemas culturais e ideologias específicos, esta promessa
em grande parte deixou de ser realizada. "M yth Today" de Barthes,"** —
apesar de sua natureza experimental — continua sendo um dos poucos tra­
tamentos fundamentais da relação entre significação e ideologia no que
poderia ser chamado de a primeira fase da semiótica. O rompimento com
esta primeira fase da semiologia e com seu ímpeto diretamente lévi-straussia-
no foi estabelecido por Lacan. Curiosamente, a transformação de Lacan
tem início com uma "releitura" de Freud de um ponto de vista lingüístico;
e os termos da lingüística estruturalista continuam fornecendo-lhe certos
termos-chave em seu repertório conçeitual. 0 Freud de Lacan é o Freud da
linguagem dos sonhos e das "regras" da elaboração onírica — condensação,
deslocamento, etc.; o Freud de A Interpretação de Sonhos antes que de
O t go e o Id. Lacan também aborda o inconsciente como se fosse "estru-
luindo como uma linguagem". Os trabalhos de Lacan, e mais especialmen-
iit III. (lii «nus seguidores, também voltaram a se ocupar com a questão da
iiliiiiliium ", nmhora esse não seja o terreno de ideologias provenientes de
(I IN I KRIOR DA CIÊNCIA 39

'•*.iiuturas históricas específicas e objetivadas em representações sociais


II em linguagem públicas, mas o "posicionamento do sujeito"/?a ideologia,
.iiiavós dos mecanismos do inconsciente. (A obra de Lacan é abordada
mais diretamente em outro artigo deste volume.)
Tanto para Lévi-Strauss como para Barthes, o que permite realizar
um estudo sistemático de sistemas de signos é o fato de que o homem
l.imais cessa de "im por formas aos conteúdos" — ele está constantemente
"classificando o universo". Mas enquanto que, para Barthes, qualquer série
particular de significações é historicamente localizada, Lévi-Strauss estava
mais interessado nas regras de classificação e combinação em si mesmas —
legras que ele encarava como sendo sincrônicas etrans-históricas. A compa­
ração de classificação "p rim itiva " e "sofisticada" permitiu a Lévi-Strauss
demonstrar que toda cultura emprega os mesmos mecanismos' básicos a
fim de "fazer as coisas significarem". Ele prefaciou o Totemismo com uma
citação de Comte no sentido de que "As leis da lógica que em última aná­
lise governam o mundo do pensamento são... essencialmente invariáveis".
Na verdade, em Savage M ind ele definiu-se como alguém que fazia uma
modesta contribuição para "esta teoria de superestruturas que Marx abor­
dou de modo insuficiente".

Sem questionar a indubitável primazia das infra-estruturas, acredito que haja


sempre um mediador entre praxis e práticas, isto é, o esquema conceituai median­
te cuja operação a matéria e a forma são realizadas como estruturas.

Essas palavras estão entre as formulações mais ambíguas de Lévi-Strauss.


Contudo, a única caracterização que Lévi-Strauss aceitou sem hesitar foi
a descrição que Ricoeur fez dele como um "kantiano sem o imperativo
transcendental" (isto é, sem Deus).”*^
É d ifícil saber com precisão por que este legado kantiano, em suas
múltiplas permutações, continuou de modo tão persistente a obcecar a
teoria da ideologia. Uma interpretação sugere simplesmente que o idealis­
mo, em uma ou outra forma, constitui a tradição filosófica burguesa dom i­
nante (excetuando-se um empirismo comportamental que nunca se preo­
cupou muito com o problema das idéias); e o materialismo corre o perigo
constante de cair no idealismo. Uma outra interpretação sugere que algu­
ma variante da problemática kantiana continua exercendo sua força sobre
todo este campo devido aos espaços não ocupados, a natureza subdesenvol­
vida, da teoria materialista da ideologia. A primeira proposição é certamen­
te verdadeira; mas a segunda não deixa de ser pertinente.
A ideologia é uma das "regiões" menos desenvolvidas da teoria mar­
xista. E mesmo quando é possível construir o âmbito da ideologia e a re­
lação geral da instância ideológica para com outras instâncias, as formas e
os processos específicos a essa região continuam peculiarmente mal defini­
dos e subdesenvolvidos. A semiótica contribuiu grandemente para nossa
40 TEORIAS

compreensão de como funcionam os sistemas de significação, de como coisas


e relações significam. Mas — justamente na esperança de constituir um
campo fechado que possa ser submetido a uma investigação científica posi­
tiva — a semiótica tende a interromper sua investigação na fronteira onde
as relações internas das "linguagens" se articulam com as práticas sociais e
as estruturas históricas. A teoria materialista da ideologia fez progredir
consideravelmente nosso entendimento da natureza das determinações só-
cio-históricas e econômicassoóre as idéias — mas falta uma teoria adequada
da representação, sem a qual a especificidade da região ideológica não pode
ser constituída.
Bourdieu recentemente voltou a apresentar esta crítica em sua análise
de duas sínteses."*^ A primeira síntese é a que foi levada a cabo por Lévi-
Strauss num terreno delimitado por Durkheim e outros. Essa síntese
adota as relações internas de um campo de classificações como o objeto
de análise. Isto completa uma linha de pensamento — o kantiano. O mar­
xismo enfatiza as funções políticas de sistemas simbólicos: ele trata rela­
ções lógicas como relações de poder e dominação. Deste ponto de vista, as
ideologias "contribuem para a integração real das classes dominantes...
para a integração fictícia da sociedade como um todo, e conseqüentemente
para a desmobilização... das classes dominadas e a legitimação da ordem
estabelecida pelo estabelecimento de distinções (hierarquias) e a legitima­
ção destas distinções". Para Bourdieu isto representa uma segunda síntese.
Bourdieu sugere que ambas, tais como são apresentadas, são inadequa­
das. A primeira torna o estudo das relações internas de um campo de clas­
sificações auto-suficiente, autônomo; ao passo que a segunda faz cair o
campo simbólico da ideologia no campo social das relações de classe —ela
é, diz ele, reducionista. Bourdieu quer tratar o problema em termos da a rti­
culação mútua de dois campos descontínuos. As relações simbólicas não
são metáforas dissimuladas para relações de classe; mas tampouco são
"meramente significantes" E porque elas realizam um trabalho simbólico
de um certo tipo que podem funcionar como articulação de um outro cam­
po — o campo das relações de classe; e conseqüentemente fazem também o
trabalho de poder e dominação.

É como instrumentos estruturados e estruturadores de comunicação e conheci­


mento que os "sistemas simbólicos" cumprem sua função política como instru­
mentos de dominação... [Desse modo] o campo das posições ideológicas repro­
duz o campo das posições sociais numa forma transfigurada, (grifo nosso)'*^

Podemos ver imediatamente a própria — terceira? — síntese de Bour­


dieu nas seguintes formulações: sua preocupação com as "le is" que consti­
tuem muitos "campos" diferentes como distintos, cada um reproduzindo
outros campos, ao reproduzir-se a si mesmo — isto é, reproduzindo-os
"numa forma transfigurada". E esta síntese apresenta sua própria ordem
o INTERIOR DA CIÊNCIA 41

de problemas. Todavia, não pode haver dúvida de que Bourdieu está pro­
curando "pensar" a problemática da segunda smtese (a marxista) ao mes­
mo tempo em que se atém a alguns dos avanços realizados dentro da pro­
blemática da primeira (a estruturalista). Pois é um princípio primordial da
lingüística estruturalista que um signo não pode significar por si mesmo
(somente dentro de um campo de relações com outros termos); mas tam­
bém que ele não possui significado pelo fato de referir-se diretamente a
um objeto presente no mundo. Como Bourdieu parafraseia Saussure (e
Lévi-Strauss, para não falarmos de Althusser), o significado surge "na cor­
respondência entre uma estrutura e outra (campo ideológico e campo so­
cial) ou uma posição e outra (em cada um destes campos) e não entre um
elemento e outro". Quando Lévi-Strauss estava discutindo a relação entre
sistemas totêmicos e o mundo natural, ele insistiu no sentido de que era
impossível tomarmos qualquer termo isolado de uma classificação totê-
mica como "referindo" diretamente um objeto ou animal na Natureza. Era
a relação de um termo para outros termos dentro do sistema que se asse­
melhava — correspondia, em estrutura — à relação entre um animal e um
outro na espécie a que se referia.
Quer tentemos ou não desenvolver uma teoria marxista adequada da
ideologia a partir desse ponto, parece que o problema da ideologia nos
apresenta uma instância paradigmática da teoria marxista como ra/:oq ue
Althusser chamou de necessidade —e dificuldade — de nos atermos a "am ­
bos os extremos da cadeia" imediatamente: a relativa autonomia de uma
região (por exemplo, ideologia) e sua "determinação em última instância"
(por exemplo, o caráter determinante da ideologia por outras instâncias e,
em última instância, pelo econômico). Foi a necessidade de se ater ao ú l­
tim o protocolo que, de tempos em tempos, sancionou uma tendência de
reduzir os níveis de uma formação especial — em particular, reduzir
"idéias" ou ideologias â "base" (definida de modo limitado como "o eco­
nôm ico"). Por outro lado, foi a exigência de explorar o d ifícil terreno da
"autonomia relativa" (da ideologia) que conferiu ao campo da ideologia
sua abertura inadequada. E através desta brecha — para adotarmos uma
recente metáfora de Althusser — que o "filh o te " da semiologia continua
a "escapulir por entre as pernas" de uma teoria marxista da ideologia..

NOTAS

1 E m Social Theory and Social Structure, 1968.


2. Não é de surpreender que tenha sido Robert Merton quem reintroduziu esse tó ­
pico na sociologia americana, dado que suas primeiras obras tratavam das raizes
sociais da Revolução Científica do século XVII na Inglaterra; cf. "Puritanism,
Pietism and Science" e "Science and Economy of Seventeenth Century England".
42 TEORIAS

3. O que se segue foi tirado de G. Lichtheim, "The Concept of ideoiogy", em The


Concept o f Êdeology and Other Essays, 1974.
4. Ver, inter alia, David McLennam, The Young Hegelians and KarI Marx, 1969, e
Kari Lowith, From Hegel to Nietzsche, 1967 (uma discussão "hegeiiana" desses
probiemas).
5. Marx, "Theses on Feuerbach", em The German Ideoiogy, 1970.
6. Crundrisse (Introdução de 1857).
7. Uma das formuiações mais conhecidas de The German Ideoiogy.
8. A metáfora da "inversão" para descrever a reiação de Marx com Hegei é ampla­
mente examinada pr Althusser em For Marx, 1969.
9. Stedman-Jones, "The Marxism of the Early L\iV.Acs". New L e ft Review 70. ^
10. Não há muita coisa de Dilthey disponível em inglês. Mas, cf. Pattern and Meaning
In History, com uma introdução de Peter Rickman, e a longa e paciente exposi­
ção de suas idéias em H.A, Hodges, The Philosophy o f Wilhelm Dilthey, 1952.
11. Para um esboço desse desenvolvimento, cf. Cario Antoni, From History to So-
ciology.
12. A obra do crítico de arte e historiador Riegl é um bom exemplo. Mas a influên­
cia pode ser encontrada em Panofsky e Gombrich. Cf., por exemplo, In Search
o f Cultural History, de Gombrich (1969).
13. Lukács reexamina sua relação com Hegel no Prefácio à nova edição (1967) de
History and Class Consciousness (1968).
14. Cf. Essays on the Sociology o f Culture e Essays on the Sociology o f Knowledge,
de Mannheim.
15. Por exemplo, em Peasants War in Germany, de Engels, (1956) e em "Socialism,
Utopian and Scientific" e "Feuerbach and the End of Classical German Philoso­
phy", ambos em Marx-Engels Selected Works (1951).
16. A discussão mais esclarecedora de "determinação em última instância" continua
, sendo-"Contradiction and Over-Determination", de Althusser, em For Marx.
17. A "Escola de emStudies in A uth ority and the F a m ily,e em T . Adorno
et a!., The Authoritarian Personality; todas as obras de Reich, mas especialmente
em The Mass Psychology o f Fascism (1970).
18. F. Jameson em "The Vanishing Mediator: Narrativa Structure in Max Weber",
M/PCS 5 (1974).
19. Para a posição de Nietzsche nessa constelação, cf. Lichtheim, op. cit.
20. Adorno e Horkheimer discutem esse caso, especialmente em Dialectic o f Enlight-
enment (1974).
21. Cf. os três volumes de Collected Papers de Schutz (1966).
22. A obra de Schutz que desenvolve mais sistematicamente uma "sociologia feno-
menológica" da crítica de Max Weber é The Phenomenology o f the Social World.
23. J.P. Sartre, The Problem o f Method (1963), um ensaio de 1957 depois incluído
como prefácio ao volume I de Crítica da Razão Dialética. Sartre, que contrapõe
o existencialismo ao "marxismo ocioso" nesse ensaio, coloca Kierkegaard como
o "p ólo fenomenológico" do argumento.
24. Cf. o ensaio de Schutz sobre "M ultiple Realities" em Collected Works, vol I.
25. O "método documentário" de Schutz e Mannheim constitui a base principal
do volume que estabelece a "Etnometodologia" como uma perspectiva socio­
lógica — H. Garfinkel, Studies in Ethnomethodology.
26. Durkheim começa imediatamente a corrigir algumas das interpretações errôneas.
Cf. o segundo Prefácio a Ruies o f Sociological Method.
n Para a sociologia americana, Durkheim, em Division o f Labour, forneceu a pro­
blemática básica (os problemas de ordem, coesão social, consenso), em Ruies o f
■ ií» i lological Method, o método, e em Suicide (como correlação de variáveis), a

« iH M M in ^ fiiç ã n Uma simplificação importante estava envolvida em cada estágio.


o INTERIOR DA CIÊNCIA 43

0 momento real dessa expropriação é exemplificado de modo mais ciaro no


"trabalho” que Talcott Parsons realizou sobre Weber e Durkheim para elaborar
a síntese parsoniana, em The Structure o f Social Action.
28. A injunção muito mal interpretada de The Rutes o f Sociological Method.
29. Essa obra inclufa o trabaiho de Durkheim e Mauss sobre o totemismo austraiia-
no. os ensaios de Mauss sobre magia e "The G ift", o de Hubert e Mauss sobre sa­
crifício, de Hertz sobre o significado da morte e da mâo direita, a anáiise original
de Granet sobre a "mentalidade" da China antiga (uma das fontes desse conceito,
posteriormente desenvolvido peia escola dos Annales de historiadores francesesi,
o trabalho de Halbwach sobre as categorias da memória e a psicoiogia social de
classe social, a lingüistica estrutural de Meillet. Outros trabalhos originais menos
diretamente ligados à obra da escola do Année, mas com uma influência conside­
rável desta, incluem os estudos de Lévy Bruhl sobre a mentalidade primitiva e,
é claro, a teoria estruturalista da linguagem, de Saussure.
10. Em The Scope o f Anthropology (1967).
II. Os dois estudos são The Elementary Structures o f Kinship e Totemism. Mas
temas semelhantes são amplamente discutidos em The Structurai Study o f
Anthropology e The Savage Mind.
fj Cf. Miriam G\ucV.imanri, StructuraHst Analysis in Contemporary Social Thought
(1974).
13 Lávi-Strauss, Tristes Tropiques (1965).
14 Marx a Engeis, 27 de junho de 1867. Em Marx-Engels Correspondence (1955).
lli Roger Poole, "in tro d u ctio n ", em Totemism (1964), ed. Peiican.
36. Totemism, op. cit.
37. Cf. Saussure, Course in General Linguistics (1960), org. por Bally, e Jakobson
e Halle, Fundamentais o f Language (1956).
38. Seção 3 de "Elements of Self-Criticism", em Essays in Self-Criticism (1976).
19 Cf. o exame da distinção combinaçâo/combinatória em Reading Capitai, p. 215-16
e 226. Também a primeira "resposta" de Althusser â acusação de "estruturaiis-
m o" em sua obra: o Prefácio à edição italiana, reimpresso na edição inglesa de
Reading Capita! (1970).
40. Cf. a crítica de Barthes da obra de Lévi-Strauss, "Sociology and Socio-Logic",
tradução ingiesa, CCCS (Birmingham, 1967).
41. Em Mythologies (1972).
42. "O verture", em The Rqwand the Cooked (1970).
43. Para a tradução inglesa do artigo de Bourdieu "Symbolic Power", cf. Two
Bourdieu Texts. trad. de R. Nice, CCCS Stenciiled Papers n9 46 (1977).
44. Bourdieu, op. cit.
45 A metáfora ousada ocorre no final de "Science and Ideology", seção de "Elements
of Self-Criticism", de Althusser, em Essays in Self-Criticism.

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A Ideologia como Falsa Consciência: Lukács

Roisín McDonough

História e Consciência de Classe, como se tem dito freqüentemente, deve


sua permanente relevância à maneira pela qual Lukács retomou as dimen­
sões hegelianas do pensamento de Marx. De fato, como diria o próprio
Lukács anos mais tarde, o livro foi "uma tentativa de ser mais hegeliano do
que Hegel". Contudo, o que quer que possamos pensar de tal projeto e sua
relevância para o marxismo, não pode haver dúvida quanto á importância e
o significativo impacto do livro, tanto na época de sua publicação como
mais recentemente com sua tradução inglesa. A obra transmite uma asser­
tiva sistemátiça e é o locus classicus de muitos dos temas encontrados no
cerne de um permanente debate sobre a natureza do marxismo desde a
extinção da II Internacional. Mas o retorno a Hegel e ao jovem Marx evi­
dente na obra de Lukács não foi apenas uma simples redescoberta de uma
tradição perdida atualmente "em desgraça" dentro da tendência então
dominante da teoria marxista, foi uma re-leitura daquela tradição: uma re-
leitura profundamente imbufda de muitas das idéias filosóficas da escola
de pensamento de Heideiberg na Alemanha, que exerceu forte influência
formativa no próprio desenvolvimento teórico de Lukács. É a esta última
tradição, com suas raízes intelectuais particulares, que devemos retornar se
quisermos avaliar devidamente a importância de História e Consciência de
Classe como uma obra dentro da literatura marxista.
Gareth Stedman Jones, em seu excelente ensaio sobre o marxismo das
primeiras obras de Lukács, assinalou a ausência de uma forte tradição do
pensamento positivista na Alemanha, um aspecto que foi enormemente
reforçado pelo impacto da filosofia kantiana, fundamentada na premissa
de uma divisão da existência humana entre o 'fenomenal' e o 'noumênico'
(o homem é ao mesmo tempo um corpo físico e um ser espiritual). No
caso do mundo natural, Kant distinguia entre coisas tal como são (em si
mesmas), que são incognoscíveis, e o mundo fenomenal das aparências
46 TEORIAS

sujeito a leis causais. De modo correspondente, a existência do homem


possui uma estrutura dual semelhante: o homem como um ser fenomenal
encontra-se sob a influência de leis causais inalteráveis, ao passo que o
outro aspecto de sua existência (a esfera noumênica) é caracterizado pela
liberdade e autodeterminação. Deste modo, qualquer conhecimento do
homem como um ser social só poderia ser conseguido através dos métodos
especulativos da filosofia. A conseqüência da distinção de Kant foi a sepa­
ração radical entre fato e valor, relegando o primeiro ao dom ínio da natu­
reza e o últim o ao social. Dessa maneira, tudo aquilo que era especifica­
mente humano acerca do homem - cultura, história, filosofia, arte, etc. -
só poderia ser 'mtuiáo especulativamente e holisticamente como manifesta­
ções do espírito humano do homem; foi considerado que uma abordagem
atomística analítica só era apropriada às ciências naturais que eram carac­
terizadas pela descoberta de leis causais parciais.
O intelecto dominante da escola de Heideiberg era Dilthey, cuja obra
foi caracterizada, em sua maturidade, por uma mistura de neokantismo e
neo-hegelismo não ortodoxo. Ele acreditava que o conhecimento histórico
genuíno era um experiência íntima de seu objeto, que por sua vez era pas­
sível de compreensão porque a história era essencialmente composta de
^'objetificações" da mente humana. O estudo da história revelou a natureza
essencial do homem à medida que ela se desdobrava na totalidade da expe­
riência humana, e o historiador penetrava na vida das gerações passadas ao
reviver em sua própria mente os pensamentos e as ações através dos quais
se haviam definido previamente a si próprios. O entendimento destas obje-
tificações do espírito humano estava baseado num método de interpretação
sistemática que tentou desnudar as estruturas inatas da psique humana.
Estas objetificações do espírito, que em sua totalidade constituíam o
mundo do homem, eram acessíveis porque o pensador contemplativo era ele
próprio um ator no processo no qual a mente universal diferenciava-se
numa multidão de mentes individuais. A Geisteswissenschaft (ciência do
espírito), como era conhecida, diferia da Naturwissenschaft não apenas
quanto ao método, mas também quanto ao seu objeto. As ciências naturais
operavam com uma nítida distinção entre sujeito e objeto, pensamento e
matéria, ao passo que a "ciência do espírito" era considerada necessaria­
mente reflexiva e introspectiva e, em última análise, uma filosofia quietista,
seu tema sendo o mundo criado pelo espírito humano Este últim o era
essencialmente cognoscível através de uma reconstrução imaginativa da
relação entre o passado como um todo e os produtos individuais particulares
(digamos, de um artista, um poeta), que eram manifestações concretas
daquela era. O método desta reconstrução, relacionando a parte ao todo e
o todo à parte, era o mesmo da hermenêutica.
O aprendizado intelectual de Lukács em Heideiberg, o centro por exce­
lência do antipositivismo alemão, levou-o a um intim o contacto com a
l-ALSA CONSCIÊNCIA 47

sociologia de Simmel, que era seu professor, e a de Max Weber. As convic­


ções filosóficas de Simmel tinham um grande débito para com a concepção
de Dilthey, da cultura como uma objetificação do pensamento humano,
mas apresentavam implicações pessimistas. Gareth Stedman Jones caracte­
riza a filosofia de Simmel da seguinte maneira:

0 indivíduo produzia objetos de cultura para ampliar sua vida e suas potencia­
lidades. Para tal, ele tinha tanto que utilizar a soma total dos produtos humanos
(espirito objetivo) como aprofundar a interíorizaçáo e a reintegraçáfo destes pro­
dutos em sua própria corrente de \^ a . Mas essa reintegração de sujeito e objeto
era inatingível. O espiVito objetivo, moldado em formas acabadas, veio a desta­
car-se da corrente de vida e adotou sua própria dinâmica, desenvolvendo-se daf
por diante não mais como meios, mas como fins. Assim, o homem progressiva­
mente tornou-se escravo de seus próprios produtos.(A/Cfl 70, p. 40)

Tendências semelhantes são encontradas na sociologia de Weber do


mesmo período, embora sua variedade de neokantismo apresentasse m ati­
zes mais positivistas.' Sua caracterização do capitalismo como portador de
um certo tipo de racionalidade foi um tema importante que Lukács iria
desenvolver mais tarde. Para Weber, “ racionalização" era o destino inevi­
tável da sociedade ocidental desde a adoção da religião judaico-cristã,
que trouxe em sua esteira a liberação da magia, tradição e afetividade. O
'espírito do capitalismo" significava a burocratízação progressiva e o de­
senvolvimento da racionalidade, cálculo e controle instrumentais em todas
as esferas da vida humana.
Lukács escreveu História e Consciência de Ciasse enquanto ainda pro­
fundamente influenciado pelo impacto intelectual da sociologia de Weber
e Simmel e da filosofia de Dilthey. Suas categorias-chave de racionalização
e reificação, juntamente com sua hostilidade para com as ciências naturais
um aspecto inteiramente estranho a toda a literatura marxista prévia -
foram em grande parte inspiradas por seus colegas na escola de Heideiberg.
Contudo, o livro representou também uma importante reinterpretação do
marxismo baseada na utilização de um sistema de pensamento pré-marxista
l>ara construir seu próprio discurso teórico - o de Hegel. Hegel nunca
fora m uito estudado na II Internacional, sendo em geral considerado um
remoto precursor de Marx e já sem importância. Lukács alterou radical­
mente este juízo sobre a importância de Hegel, e esta reavaliação estava
destinada a ser profunda e duradoura para a toda a tradição subseqüente
do marxismo no Ocidente.
A rejeição, por parte de Lukács, do marxismo da II Internacional é ca­
racterizada por um desvio teórico da economia marxista. Mais do que isso,
trata-se de uma rejeição explícita de um marxismo determinista baseado
em leis econômicas que previam o colapso do capitalismo e da ação revolu­
cionária da classe trabalhadora. Tal determinismo mecanicista resultara em
(>assividade polr'tica, como foi evidenciado na prática poli'tica do mais im-
TEORIAS
48

portante partido da II Internacional - o Partido Socialista Alemão. A ên­


fase de Lukács sobre a ação autônoma, independente e determinada do
proletariado está no âmago de seus textos políticos. Biograficamente, o
principal período de sua própria atividade política ocorreu na época do
levante em massa da classe trabalhadora européia - no período imediata­
mente após a guerra quando foram formados os sovietes na Alemanha e na
Hungria, quando os operários italianos ocuparam as fábricas de Turim e,
acima dé qualquer outro fa to , imediatamente depois da Revolução Russa.
Isto talvez ajude a explicar o tom um tanto escatológico de seus textos
para aqueles que o léem hoje.
A novidade de História e Consciência de Classe é encontrada no trata­
mento que Lukács dá a dois tópicos-chave relacionados - primeiro, sua
concepção da relação entre teoria e prática (ou conhecimento e ação), e
em segundo lugar sua avaliação da ciência, particularmente as ciências
naturais.

A relação entre conhecimento e açao

Como a autocrítica de Lukács deixou claro em algumas ocasiões, a obra


foi escrita à luz e com base na teoria hegeliana da identidade do sujeito e
objeto. Em seu "Prefácio à Nova Edição", de 1967, ele identificou um
de seus erros mais graves;
É em Hegel que encontramos pela primeira vez a alienaçSo como o problema
fundamental do lugar do homem no mundo. . todavia, no termo alienação
Hegel inclui todo tipo de objetificação. Assim, 'alienação' quando levada a sua
conclusão lógica identifica-se com objetificação. . . História e Consciência de
Classe é fiel a Hegel no sentido de que também equaciona alienação com objeti­
ficação. . Este erro fundamental e grosseiro certamente contribuiu para o su­
cesso de História e Consciência de Classe. (1971, p. xxiii)

0 erro do livro consistiu, portanto, na confusão de duas idéias: a concep­


ção de Hegel na qual a alienação é identificada com a objetividade da na­
tureza e, assim, com a exterioridade do ser em relação ao pensamento; e
a concepção inicial de Marx na qual, ao contrário, o objeto é alienado, não
no sentido de que seja "e xte rn o", mas no sentido de que ele assume o
caráter sócio-histórico de um bem de consumo que não pertence ao pro­
dutor. Esta confusão, como se tem dito, abala completamente os funda­
mentos teóricos sobre os quais toda a obra está baseada e, de modo mais
crítico, parece desmentir qualquer pretensão de o livro ser considerado um
texto "m arxista". Contudo, esta seria uma refutação m uito simplista, pois
não considera a originalidade do vínculo direto que Lukács estabelece en­
tre o marxismo e o proletariado através de sua teoria da consciência de
classe e do partido.
I ALSA CONSCIÊNCIA
49

A teoria da consciência de ciasse

I ukács começa seu ensaio sobre a consciência de classe fazendo uma dis-
imção, como o faz Marx em A Sagrada Família, entre uma classe-para-
si e uma classe-em-si.

A questão não é o objetivo que está sendo momentaneampnte considerado


por este ou aquele_ membro do proletariado, ou mesmo pelo proletariado como
um todo. A questão é que é o proletariado e que linha de ação ele será obrigado
a adotar de conformidade com sua própria natureza. (Marx, citado em 1971
p.46) •

A base da teoria da consciência de classe de Lukács não é a consciên­


cia empiricamente dada de indivíduos ou da classe como um todo, mas
antes o que a classe pode tornar-se. Nada acontece na história sem um
propósito consciente ou um objetivo intencional, porque não existe nenhu­
ma "força oculta" estranha aos homens, mas a história paradoxalmente
não pode ser compreendida através dos propósitos dos homens. A compre­
ensão da história tem que ir além da consciência dada dos atores que parti­
cipam do processo.

As muitas vontades individuais ativas na história produzem na maioria das ve­


zes resultados bem diferentes dos desejados - com freqüência, o oposto do que
se pretendia; seus motivos, portanto, em relação ao resultado total são iguai-
mente de importância apenas secundária. (Engels, citado em 1 9 7 1 , p. 4 7 )

Lukács conclui então que a essência do marxismo científico consiste


na compreensão de que as forças reais da história são independentes da
consciência (psicológica) qüe o homem tem delas. Inegavelmente os ho­
mens fazem a história, mas com uma falsa consciência, e para compreender
a história temos que compreender a falsa consciência. Em primeiro lugar,
lemos que ver sua racionalidade e validade subjetiva para os atores envolvi­
dos e, em segundo lugar, temos que ver como ela é produzida e como se re­
laciona com a sociedade em que ocorre. 0 materialismo dialético exige de
nós a investigação desta "falsa consciência" como um aspecto do processo
histórico e como um estágio do processo histórico, e não simplesmente
proclamar sua "falsidade". Depois de ter realizado esta análise, estamos
então numa situação em que podemos localizar a diferença objetiva entre
a falsa consciência dos atores envoividos e a sociedade que eles alegam
compreender, e ao mesmo tempo ver por que eles a compreendem da ma­
neira como o fazem.

A partir desta perspectiva, a consciência de classe consiste então das


reações apropriadas e racionais 'imputadas' a uma posição típica particular
no processo de produção" (1791, p . 51). Em outras palavras, a consciência
de classe (em oposição a uma dada consciência) é o entendimento mais ra-
donal e apropriado que está aberto a uma classe particular. A questão
crucial, considerando que para que uma classe esteja madura para uma he­
gemonia ela precisa ser capaz de organizar a sociedade como um todo se­
gundo seus interesses, é saber que classe possui esta capacidade no momen­
to decisivo. Para Lukács ocorre aqui uma dupla distinção - entre socieda­
de capitalista e pré-capitalista e entre a burguesia e o proletariado dentro
da sociedade capitalista. _
No feudalismo, os interesses de classe não estão plenamente articula­
dos com a economia porque existem amplos setores da economia que são
m uito mais auto-suficientes e menos intimamente inter-relacionados do
que no capitalismo (por exemplo, a aldeia medieval semi-autônoma). Ade­
mais, de conformidade com esta estrutura econômica menos rígida, as ins­
tituições políticas e legais possuem funções diferentes das postas em práti­
ca no capitalismo. Sob o capitalismo

estas instituições impiicam meramente a estabiiização de forças puramente eco


nòmicas, de modo que. . . elas freqüentemente adaptam-se a estruturas econô­
micas modificadas sem se modificarem elas próprias em forma ou conteúdo.
(1971, p. 57)

ao passo que na sociedade feudal as instituições legais intervém concreta­


mente nas relações entre forças econômicas: as categorias econômicas e le­
gais estão tão interligadas que se tornam inseparáveis. Evidentemente isto
não significa a negação de que exista um fundamento econômico real no
feudalismo, mas para Lukács o "conteúdo" destas relações econômicas é
ofuscado por sua "fo rm a " jurídica, isto é, a sociedade feudal é em grande
parte organizada com base em grandes propriedades detentoras de certos
direitos e privilégios legais. Este aspecto tem conseqüências importantes
para o desenvolvjmento potencial da consciência de classe. No feudalismo,
as classes só podem ser identificadas mediante uma análise post fscto
baseada nos métodos do materialismo histórico; elas não estão presentes
no entendimento dos atores individuais, porque os fatores econômicos
estão "ocultos" por trás das formas ideológicas que as dissimulam sob a
forma de religião. Assim,

não existe, portanto, nenhuma posição possível em tal sociedade a partir da qual
a base econômica de todas as relações sociais possa tornar-se consciente. (Ibid.)

No capitalismo, com a abolição das grandes propriedades feudais e a


criação de uma sociedade com uma articulação puramente econômica, a
consciência de classe chegou ao ponto em que pode tornar-se consciente:
os fatores econômicos já não estão ocultos por trás da consciência dos
atores, mas estão presentes na própria consciência (embora de um modo
leprimido). Isto significa que o conhecimento da história somente se torna
piinsível com o advento do capitalismo porque somente com o capitalismo
I A LSA CONSCIÊNCIA 51

o interesse de classe econômico emerge em toda sua rigidez como o motor


da história.

Todavia, tal conhecimento não é uniformemente possível no capita­


lismo, tampouco. No capitalismo existem apenas duas classes puras, estri­
tamente falando, apenas duas classes capazes de organizar a sociedade
segundo seus próprios interesses — a burguesia e o proletariado. A peque­
na burguesia, por exemplo, não pode ser uma classe hegemônica porque é
impossível conceber como a sociedade poderia ser organizada em conso­
nância com seus interesses de classe, já que isso implicaria a reorganização
da moderna produção capitalista numa produção baseada no pequeno
artesanato independente e métodos agrícolas de pequena escala. Tais
classes "intermediárias" ou de transição, como o campesinato ou a peque­
na burguesia, estão fadadas a uma incoerência ideológica. Da posição
destas duas classes, a sociedade como um todo não pode ser nem compre­
endida nem organizada.

A burguesia, por outro lado, como a classe que domina a sociedade


quando pela primeira vez a economia penetrou na totalidade da sociedade
deve inevitavelmente tentar compreender a sociedade em que vive. Contu­
do, a tragédia da burguesia é que sua supremacia vem acompanhada pelo
desenvolvimento de um desafio a essa supremacia, a partir de sua própria
incipiència, na forma do proletariado. É possível dizer-se que a burguesia
possui uma consciência de classe, mas

uma consciência amaldiçoada por sua própria natureza com o trágico destino de
ter desenvolvido uma contradição insolúvel no auge mesmo de seus poderes Co­
mo conseqüência dessa contradição, ela deve aniquilar-se a si mesma. (p.61)

Em essência, essa contradição é uma conseqüência direta da posição da


burguesia no processo produtivo, e não apenas um reflexo de sua incapaci­
dade de captar as contradições inerentes a sua própria ordem social. Teori­
camente, a burguesia deveria ser capaz de possuir uma "im putada" cons­
ciência de classe de todo o sistema de produção, dado que uma das ca­
racterísticas mais importantes do capitalismo é sua total penetração econô­
mica da sociedade; entretanto, ela é incapaz de fazê-lo por causa das
contradições e antagonismos inerentes àquele sistema de produção, a saber,
entre a socialização da produção e sua apropriação privada. Isto reflete-sé
na própria consciência da burguesia. Por um lado, o capitalista vê a si
mesmo como estando subordinado a forças econômicas impessoais que ele
não consegue controlar, e por outro lado ele é um ator econômico isolado.
Esta dicotomia é visível na antinomia presente no pensamento social
burguês, uma oscilação entre a compreensão da sociedade em termos de
um individualismo extremado e como uma totalidade governada por
poderosas leis naturais.
TEORIAS
52

A luta da burguesia em suas tentativas de consumar a dominação hege­


mônica é acompanhada de seus esforços para desenvolver uma teoria
coerente da economia, da política e da sociedade, e ainda para tornar
consciente e sustentar a fé em sua própria missão de controlar e organizar
a sociedade. Todavia,

a trágica dialética da burguesia pode ser vista no fato de que para ela é não ape­
nas desejável, mas essencial, identificar seus próprios interesses de classe em re­
lação a toda questão particular, enquanto que ao mesmo tempo esta conscienti­
zação torna-se fatal quando é estendida à questão da totalidade. (1971, p. 65)

Ao mesmo tempo que a burguesia domina a sociedade como um todo,


esta dominação é exercida por uma minoria nos interesses desta minoria, e
a condição para sua existência continuada é que tanto o proletariado como
a burguesia devem continuar mistificados quanto a esta exploração. A
burguesia não é capaz de compreender as contradições internas e insolúveis
de um sistema baseado na exploração e que serve aos seus interesses, pois
fazendo isto ela teria necessariamente que abandonar sua própria posição
de classe e reconhecer ter sido uma classe dominante historicamente
limitada. Portanto, os limites do conhecimento e da consciência da burgue­
sia são em última análise restringidos pelos limites objetivos da produção
capitalista, sendo que o reconhecimento deste fato pela burguesia signifi­
caria o auto-aniquilamento. Lukács comentou que

quando o Manifesto Comunista estabelece que a burguesia produz seus próprios


coveiros, isto é válido tanto ideologicamente quanto economicamente.

O proletariado como portador da verdade

Para Lukács a entrada do proletariado na história assinala a potencialidade


de um conhecimento consciente genuíno e não alienado. Pela primeira vez,
o homem pode tornar-se consciente de si mesmo como ser social, ao
mesmo tempo sujeito e objeto do processo histórico. Tal eventualidade era
impossível na sociedade pré-capitalista porque as relações sociais eram
interpretadas como relações naturais. A burguesia "socializara" a socieda­
de, mas realizara esta tarefa inconscientemente, já que sua consciência de
classe era incompatível com seus interesses de classe, isto é, havia uma
contradição entre a socialização da produção e sua apropriação privada no
interesse do empresário individual. Esta antinomia refletia-se na filosofia
burguesa no dualismo contemplativo e reificado de sujeito e objeto. O
surgimento do proletariado como uma classe amadurecida para a hegemo­
nia transcende este dualismo reificado: pensamento e realidade alinham-se
numa relação unificada e harmoniosa, sujeito e objeto tornam-se um, já
que para o proletariado fazer história deve fazê-lo conscientemente.
FALSA CONSCIÊNCIA
53

Somcnt© qu3ndo surge uma situação histórica na qual uma classB precisa compre­
ender a sociedade se quiser fazer valer os seus direitos; somente quando o fato
de uma classe compreender a si mesma significa que ela compreende a sociedade
como um todp e quando, conseqüentemente, a classe torna-se tanto o sujeito co­
mo 0 objeto do conhecimento; em suma, somente quando estas condições são
todas elas satisfeitas, é que a unidade de teoria e prática, a pré-condição da
função revolucionária da teoria, torna-se possível, (pp. 2-3)

Devido ao fato de que o proletariado é a classe mais totalmente alienada da


sociedade, ele deve abolir a si mesmo para conseguir sua própria libertaçâio
e, assim fazendo, necessariamente liberta o resto da humanidade. Para
compreender a si mesmo, ele também deve compreender a totalidade da
sociedade, sendo que essa compreensão implica uma mudança da mera
contemplação á práxis.

A unidade de teoria e prática é apenas o lado reverso da posição social e históri­


ca do proletariado. . . a um só e mesmo tempo o sujeito e o objeto de seu pró­
prio conhecimento, (p. 20)

Para Lukács, assim, compreensão e conhecimento per se implicam uma


transformação da situação objetiva do indivíduo. Conhecimento é sinôni­
mo de possibilidade de assumir a liderança da sociedade.

Obviamente, a consciência genuína do proletariado pode não coinci­


dir com sua consciência "atribuída". O proletariado é contaminado por
elementos da consciência burguesa reificada, tal como se evidencia em
sua separação entre luta econômica e luta política. Ao contrário de todas
as outras classes sociais que existiram historicamente, nas quais o antago­
nismo entre seus interesses de classe e os da sociedade estabeleceram um
limite externo na sua consciência, a consciência de classe do proletariado
não é limitada da mesma maneira.

Para a consciência de classe do proletariado, a relação dialética entre interesses


imediatos e impacto objetivo na sociedade como um todo localiza-se na consci­
ência do próprio proietariado. Esta relação não se desenvolve como um proces­
so puramente objetivo independente de toda consciência (imputada) - como foi
o caso, até então, com todas as classes. Assim, a vitória revoiucionária do prole­
tariado não implica, como nas classes anteriores, a imediata reaiização da exis­
tência da ciasse socialmente dada. mas, como o jovem Marx entendeu e definiu,
sua auto-aniquilação. Ip. 71). '

Mesmo em sua falsa ' consciência o proletariado aspira sempre chegar


à verdade. Ele não pode abdicar de sua missão. A única questão é até
que ponto ele tem que sofrer antes de atingir a maturidade ideológica, an­
tes de chegar a um verdadeiro entendimento de sua situação de classe e a
uma verdadeira consciência de classe.
54 TEORIAS

A concepção historicista de ideologia

A concepção de Lukács de ideologia tem sido freqüentemente chamada de


historicista tanto por Althusser como por Poulantzas. De fato, a linha
marxista particular de Lukács como um todo presta-se a esta objeção, mas
em nenhum outro aspecto ela é mais evidente do que em sua teoria de
consciência de classe e de ideologia.
A tese de Marx segundo a qual a ideologia dominante em qualquer so­
ciedade é a ideologia da classe dominante é interpretada como a saturação
do todo social pela essência ideológica de uma simples classe-sujeito, que
por sua vez é representada como um simples reflexo das condições de
vida e das concepções do mundo da dita classe. Cada classe-sujeito tem
uma concepção do mundo em que vive e esta domina o período
histórico durante o qual governa. Mais do que isso, essa concepção não
apenas domina, mas também permeia o todo da sociedade, excetuando-se
aqueles bolsões ocultos e intocados de consciência de classe "a tribuída" ou
revolucionária que são os precursores de um novo tipo de sociedade. Para
Lukács, existem apenas duas formas possíveis de consciência na sociedade
capitalista: a da classe dominante e a consciência de classe "a tribu ída " ou
revolucionária; pois existem apenas duas classes fundamentais - a burgue­
sia e o proletariado - cada uma das quais possui uma visão do mundo que
precisa exprim ir e tentar fazer hegemônica. As outras classes intermediá­
rias", tais como o campesinato ou os pequenos produtores urbanos, são
relegados à confusão ideológica e ao silêncio; a consciência delas é uma
consciência inexistente. Assim, Lukács escreve sobre o campesinato e a
pequena burguesia;

Não se pode falar propriamente de consciência de classe no caso dessas classes


(se é que podemos mesmo falar delas como classes no estrito sentido marxista
do termo). . . Consciência e auto-interesse. . . são nessa instância mutuamente
compatíveis. E como a consciência de classe foi definida em termos de proble­
mas de imputação dos interesses de classe, o fracasso de sua consciência de classe
em desenvolver-se na realidade histórica imediata torna-se filosoficamente com­
preensível. (p .61)

Conseqüentemente, não há espaço político ou teórico, na análise de


Lukács, para a possibilidade de o proletariado fazer alianças interciasses
com as classes que lhe são antes aliadas do que inimigas — uma possibilida­
de que excluiria qualquer dicotomia simples de uma consciência que é ou
a de uma classe dominante ou uma "atribuída". A consciência de classe
proletária vista sob esta luz não é meramente contaminada pela ideologia
burguesa ou simplesmente revolucionária, mas uniforme e impura, com fre-
qüência profundamente impregnada não apenas das ideologias discordan­
tes das diferentes classes, mas também moldada pelas dissensões internas
FALSA CONSCIÊNCIA 55

destas qlasses. Uma constituição tão complexa da ideologia é algo que


Gramsci tentou captar em seu conceito de ideologias proletárias "corpora­
tivas" e "hegemônicas". Em vez disso, Lukács ou simplesmente eleva o
proletariado à consecução de uma verdadeira consciência de classe (a cul­
minância de sua missão histórica) ou então condena-o a permanecer dentro
dos limites da falsa consciência, prisioneiro eterno da estrutura reificada do
pensamento burguês predominante.
Qual é então a força subjacente que permite ao proletariado chegar a
esta consciência "atribuída"? Apesar de todas as condenações de Lukács
do marxismo da II Internacional, sua resposta é desconcertantemente se­
melhante. 0 surgimento da consciência revolucionária é peremptoriamente
atribuído a uma teoria da inevitabilidade das crises econômicas capitalistas
que impelem o proletariado a cumprir sua tarefa histórica.

Quanto maior o avanço da crise econômica do capitaiismo, mais claramente esta


unidade no processo econômico torna-se compreensível na prática. A crise esta­
va lá, claro, também nos chamados períodos de normalidade, sendo portanto
visível do ponto de vista de classe do proletariado, mas a distância entre aparên­
cia e realidade era m uito grande para que aquela unidade tivesse consequências
práticas para a ação do proletariado, (p. 75; na primeira frase, a ênfase é minha)

Concluindo, pois, devido ao fato de que Lukács vê a ideologia como sendo


essencialmente uma manifestação ou emanação da reificação dos bens de
consumo (amplamente difundidos na sociedade capitalista avançada), e
portanto completamente determinada de um modo reflexionista pela econo­
mia em letras grandes, ele não consegue explicar a transmissão da ideologia
através de diferentes conjuntos de instituições e práticas, cada uma com
sua própria especificidade e contradições internas. A ideologia simplesmen­
te satura-se. Por ser vista como uma expressão orgânica das idéias de classes-
sujeitos particulares e não como uma representação objetiva e sistematiza­
da de relações sociais concretizadas em instituições e práticas materiais,
sua solução política torna-se necessariamnete uma solução de espontanei­
dade. A lógica interna da situação de classe contraditória do proletariado o
levará inexoravelmente a libertar-se das algemas de sua exploração.
Um outro aspecto do historicismo de Lukács é a concepção de história
implícita em sua teoria. Ela é vista como um processo teleológico universal,
no qual o sujeito histórico realiza seu objetivo autopostulado. Este sujeito
já não é a Idéia de Hegel, mas o proletariado. Já que o proletariado é a clas­
se mais completamente alienada da sociedade, ele deve abolir a si mesmo a
fim de atingir sua própria libertação, e fazendo isso também consegue a
libertação de toda a humanidade, já que o proletariado é o sujeito universal,
isto é, tanto o sujeito como o objeto encarnado. Assim, o dualismo da filo ­
sofia clássica é histórica e politicamente superado com o nascimento do
proletariado - o sujeito universal é objetivado e a reificação é transcendida
56 TEORIAS

numa síntese de sujeito e objeto, sendo a história apenas a realizaçâfo pro­


gressiva desta unidade até então inatingível. Ela é o processo da realização
filosófica da identidade entre sujeito e objeto, pensamento e ser, alcançado
autoconscientemente. Finalmente esta consciência é ela própria vista como
uma prática que ipso facto modifica seu objeto; a consciência é a interiori-
zação subjetiva de seu objeto. Em outras palavras, o acesso do proletariado
ao verdadeiro conhecimento necessariamente acarreta uma mudança no
estado de coisas existente, uma modificação em sua situação de classe.
Conhecimento e ação, teoria e práxis são fundidos. A identificação da
consciência com prática(s) de classe assenta-se sobre uma confusão muito
rnaís ampla de ideologia com poder, uma vez que a ideologia é concebida
em termos de sua dominação ou saturação do todo social. Assim, a burgue­
sia domina e organiza a totalidade social ao permeá-la com sua própria
consciência reificada, sendo que o desafio autoconsciente do proletariado
ao conhecimento burguês transforma a sociedade através de uma compre­
ensão dialética da natureza da totalidade social.

As medidas coercitivas adotadas pela sociedade... sâo freqüentemente duras e


brutalmente materialistas, mas a força de qualquer sociedade é, em última ins­
tância, uma força espiritual. E disto só podemos ser libertados através do conhe­
cimento. (p. 262)

A hostilidade contra as ciências naturais

A questão que surge é por que o conhecimento burguês é inevitavelmente


reificado e fragmentado, baseado num entendimento inadequado da to ta ­
lidade social, e por que, conseqüentemente, o conhecimento do proletaria­
do o é menos?
A justificativa epistemológica de Lukács para tais assertivas é postula­
da sob uma forma de relativismo extremo que reduz o conhecimento cien­
tífic o a uma simples expressão ideológica de uma classe que é "p orta ­
dora" dela. Assim, na sociedade capitalista a ciência e, em particular, as
ciências naturais são vistas como as armas ideológicas da burguesia. Tal
conclusão baseia-se numa análise particular da natureza do capitalismo
que pode ser formulada da seguinte maneira.
No capitalismo a forma de mercadoria impregnou a totalidade da eco­
nomia e, de fato, a totalidade da sociedade. Pela primeira vez, todos os
valores de uso possuem um valor de troca, isto é, são trocados um pelo
outro no mercado. Isto faz com que o trabalho, como todos' os outros
bens de consumo, tenha um valor de troca. Quando toda a produção vai
piira o mercado e, conseqüentemente, para a troca, as relações entre os
homiint assumem a aparência de relações entre coisas. A reificação, então,
mAii i .ipenas uma ilusão ou uma falta de consciência da sociedade como
■I iiHáii hurniina, mas possui suas próprias raízes objetivas num modo pelo
FALSA CONSCIÊNCIA 57

qual a sociedade está organizada. No capitalismo, o trabalho é "abstrato"


no sentido de que pode ser medido e comparado com tipos de trabalho
qualitativamente diferentes na aparência. Tal medição do trabalho com
exatidão cada vez maior implica sua racionalização cada vez maior, sua
divisão e fragmentação cada vez maipr em tarefas menores, já que esta é
a única maneira pela qual resultados podem ser previstos com precisão
e exatidão. Esta fragmentação do processo do trabalho decorrente da ne­
cessidade de uma calculabilidade crescente é acompanhada de uma frag­
mentação do produto — em cada fase um bem é movimentado no tempo
e no espaço de acordo mais com seu caráter de mercadoria do que de valor
de uso. Também o trabalhador experimenta esta fragmentação. Ele consta­
ta que o processo de trabalho lhe é preexistente quando ele entra na pro­
dução: não se trata de um processo que ele possa moldar ou determinar
de alguma maneira. "Ele tem que se submeter a suas leis quer goste ou
não" (p. 89). Para Lukács isto significa que a atividade do trabalhador na
produção torna-se cada vez mais contemplativa. Ao mesmo tempo em que
suas capacidades humanas são alienadas dele, seu trabalho torna-se uma
qualidade que se coloca sobre e acima dele; o tempo torna-se espaço;

O tempo derrama sua natureza qualitativa, variável, fluente; petrifica-se num


continuo exatamente delimitado e quantificável preenchido com 'coisas' quan-
tificáveis Ia 'performance' reificada, mecanicamente objetíficada do trabalhador
completamente separado de sua personalidade humana total): em suma, o tempo
torna-se espaço. Ip. 90)

Assim, O princípio da racionalidade e calculabilidade atinge mais profunda­


mente a vida humana, e no entanto, ao mesmo tempo, torna-se um poder
que se coloca sobre e acima do homem. Chegamos então ao paradoxo de
que, enquanto o capitalismo é um modo de produção que continuamente
revoluciona a si mesmo, esta produção apresenta-se aos produtores como
algo fix o e fora de controle. Em parte alguma esta fragmentação e reifica-
ção são mais evidentes do que no tipo de racionalidade revelado pelas ciên­
cias, especialmente aquelas ciências sociais baseadas nos métodos emprega­
dos pelas ciências naturais, isto é, os métodos do positivismo. Devido ao
fato de que uma ciência como a Economia, por exemplo, investiga apenas
a aparência da economia tal como se apresenta á ciência, e com base em tal
aparência tenta produzir leis que permitam uma previsão, ela se torna um
sistema cada vez mais estanque, incapaz de compreender seu próprio cam­
po. Em conseqüência, a ciência situa-se numa relação externa àquela que
está investigando, paralelamente á atitude contemplativa do trabalhador
para com seu próprio processo de trabalho. Devido ao fato de que a ciência
considera seus dados como dados e conseqüentemente não consegue expli­
car nem como a ciência nem como seu campo de estudo são produzidos,
segue-se que tais ciências fragmentadas não podem ser a base para uma
58 TEORIAS

compreensão da natureza da totalidade social mediante a soma delas pura


e simples. Assim, a incapacidade da ciência burguesa em compreender a
realidade burguesa não se deve simplesmente à "tendenciosidade" do pon­
to de vista burguês, mas é o resultado da natureza epistemológica da pró­
pria ciência burguesa. Mas paralelamente a uma tal condenação das ciências
burguesas existe uma forte tendência em Lukács para identificar todas as
ciências com a ciência burguesa to u t court e, talvez de maneira mais heré­
tica, para uma negativa da pretensão do materialismo histórico de ser cien­
tífic o , ou da necessidade de apresentar quaisquer verdades empíricas par­
ciais como parte de sua cientificidade.
Assim, no início do livro Lukács diz seriamente;

Admitamos, só para argumentar, que uma recente pesquisa tenha desautorizado


de uma vez por todas uma a uma das teses individuais de Marx. Mesmo que isso
fosse provado, qualquer marxista 'ortodoxo' de seriedade ainda seria capaz de
aceitar todas estas descobertas modernas sem reservas e, conseqüentemente, re­
pudiar todas as teses de Marx in toto — sem ter que renunciar por um só mo­
mento a sua ortodoxia... Ortodoxia refere-se exclusivamente a método. (p.1l

O marxismo é, pois, reduzido a um método. Este método é o da dialética


que se opõe ás leis parciais e reificadas que são o fruto do método positi­
vista empregado pela ciência burguesa. Estas leis são substituídas pelo mé­
todo da dialética.
Deve ficar claro, portanto, que qualquer tentativa para tornar o mar­
xismo científico no sentido entendido pela ciência positivista está fora de
lugar, e Lukács critica o marxismo da II Internacional precisamente por
causa desse erro. Mas ao fazê-lo ele não consegue distinguir entre aquilo
que tem sido chamado de "ideologias científicas" (baseadas em métodos
positivistas), e que na verdade haviam sido apropriadas soba aparência do
marxismo quando ele escreveu seu livro, e outras concepções alternativas
da cientificidade do materialismo histórico. Este fracasso leva-o a condenar
a ciência como tal. Leva-o também a reduzir o marxismo á teoria do auto-
conhecimento do proletariado:

O materialismo histórico nasce do princfpio vital "imediato, natural" do proleta­


riado; ele significa a aquisição do conhecimento total da realidade desse único
ponto de vista.

e, posteriormente,

a essência do método do materiaiismo histórico é inseparável da atividade 'prá­


tica' e 'crftica' do proletariado, (p. 292)

r nix.^n ponto que o problema mais óbvio de toda a abordagem de Lukács


iiiMwi «n aviiliiptn SUa argumentação de que todo conhecimento é social e
FALSA CONSCIÊNCIA 59

historicamente determinado é ampliada para a inclusão da total identifica­


ção do marxismo com a teoria do proletariado (vista como seu próprio
autoconhecimento, que por definição resulta na aquisição da verdadeira
consciência de classe e ação revolucionária). Em outras palavras, sua teoria
é uma tautologia essencialmente especulativa, incapaz de explicar teorica­
mente a ausência empírica de uma classe operária insurgente. O proletaria­
do é visto como a classe revolucionária que pode transformar a sociedade
porque sua teoria ou entendimento baseia-se no marxismo. Mas como sa­
bemos que o proletariado é a classe revolucionária?" Por causa da teoria
m arxista...
Dessa maneira, parece que a validade epistemológica do marxismo e
sua afirmação de ser uma ciência dependem da existência de uma classe
operária politicamente ativa. Uma vez que isso não seja identificável, a
adequação do marxismo como ciência, e não apenas como uma "filosofia
da práxis", torna-se inexplicável.

NOTA

Ver P.Q. Hirst, Evolução Social e Categorias Sociológicas, onde ele argumenta
que a versão de Weber do neokantismo apresenta tendências positivistas no sen­
tido de que Weber unificou uma concepção "cultural-científica" do conheci­
mento histórico/social com uma concepção positivista da natureza e métodos de
conhecimento empírico. Isso é particularmente evidente em sua insistência sobre
a separação entre afirmações de fato e avaliações e em sua tentativa de estudar
valores "objetivamente" e submeter proposições acerca deles a critérios de ver­
dade empírica. "O objeto weberiano de conhecimento tem um caráter dual. Con­
siste de fenômenos dados á experiência ("fatos") que se constituem como o
objeto coerente do conhecimento por valores. Os fenômenos 'reais' são isolados
analiticamente como o objeto de um conhecimento específico: o meio de isola­
mento desses fenômenos da "multiplicidade in fin ita " é sua relevância para cer­
tos valores culturais. Os valores definem a unidade analiticamente separada dos
fenômenos a serem estudados." Finalmente, "o conhecimento é limitado por
valores cuja existência se supõe anterior a ele e que determinam seu conteúdo, e
por um determinado campo de fenômenos que ele não pode questionar ou alterar".

BIBLIOGRAFIA

Lukács, G. (1971) History and Class Consciousness, Merlin Press, Londres


Colleti, L. (1973) Marxism and Hegel, NLB
Lichtheim, G. (1970) Lukács. Fontana Modern Masters, Londres
Stedman Jones, G. (1970) "IVIarxism of the Early Lukács", NLR
Hirst, P.Q. (1976) Social Evolution and Sociological Categories, Allen und Un-
win (Ed. bras.: Evolução Social e Categorias Sociológicas, Zahar, 1977)
Política e Ideologia: Gramsci

Stuart Hall, Bob Lumiey, Gregor McLennan

I Introdução

Não há uma teoria sistemática da ideologia na obra de Antonio Gramsci,


embora certamente seja verdade que existam muitas passagens e comen­
tários extremamente sugestivos. Uma explicação razoavelmente coerente
destas muitas e variadas percepções da questão só é possível se invocarmos
o caráter densamente imbricado dos principais conceitos de Gramsci. Não
se deve perm itir que a tarefa da abstração teórica encubra a marca caracte­
rística de seu pensamento. A primeira parte deste artigo será, portanto, um
perfil da problemática gramsciana, uma problemática que, argumentar-se-á,
volta-se precipuamente para as perspectivas e análises políticas, e não para
os princípios epistemológicos gerais. Um estudo concreto e historicamente
específico é da mais alta importância nos textos de Gramsci. No que diz
respeito ao nosso tópico presente, a base de tal especificidade é indicada
pela injunção de Gramsci de que a ideologia deve ser estudada como uma
superestrutura.^ Ora, esta última tarefa não pode ser empreendida sem
uma compreensão da abordagem gramsciana ao complexo estrutura/supe-
restrutura, cuja base é formada pelos conceitos de hegemonia, sociedade
civil, o Estado, o partido e os intelectuais. Sem esses conceitos, a ideologia
como Gramsci deve ter concebido não poderia ser "pensada"; ela ocupa
sua posição de extrema importância unicamente se subordinada às concep­
ções políticas em torno das quais o pensamento de Gramsci está orientado.
Já sugerimos que aqueles que procuram uma "filo s o fia " em Gramsci
ficarão decepcionados. Contudo, é fato b«..n sabido que ele fala do marxis­
mo como a "filosofia da práxis", dedicando a última terça parte de Cader­
nos do Cárcere a questões filosóficas. Esta justaposição aparentemente es­
tranha de asserti"as baseia-se numa avaliação das chamadas tendências "his-
toricistas" de Gramsci; e o problema geral do historicismo será abordado
mais adiante através de uma análise específica da maneira pela qual
POLfriCA E IDEOLOGIA 61

Gramsci é apropriado por Louis Althusser e Nicos Poulantzas. A perspecti­


va "estruturalista" destes últimos parece oferecer uma posição epistemo-
lógica em oposição aos momentos mais "organicistas" de Gramsci. Contu­
do, fica evidente que eles concordam ser esta última uma figura teórica de
desenvolvimento bastante diferente do decano por demais nefasto do his-
toricismo, Georg Lukács. Uma contradição a mais, ao que parece.
Argumentaremos que, particularmente no caso de Poulantzas, esses
autores não são expifcitos em relação a um débito fundamental para
com Gramsci quanto a conceitos de importância crucial para seus próprios
projetos teóricos. Argumentaremos também que o problema do historicis-
mo em Gramsci não é absolutamente uma questão bem definida. É certa­
mente verdade que em algumas de suas generalizações filosóficas Gramsci
tende a reduzir ou sugerir uma redução de ideologias como "concepções
de vida" de classes fundamentais organicamente ligadas a algum objetivo
histórico a longo prazo. É igualmente plausfvel dizer que Gramsci tende a
relativizar os critérios de validade teórica para suas condições históricas
de aprovação.
Estas "falácias" parecem refletir as principais restrições contra o his-
toricismo feitas por Althusser e Poulantzas. Todavia, o inigualável sentido
de Gramsci das formas materiais e da produção da ideologia e da luta po­
lítica, a restrição antipsicologística de que a ideologia é um assunto epis-
temológico e estrutural,^ e o valor duradouro de seus próprios conceitos
específicos (na pior das hipóteses, como» ocorrem em seu estado "p rá ti­
co"), todas essas realidades asseguram a complexidade, a natureza parcial
do historicismo de Gramsci. Se, além disso, puder ser demonstrado que os
conceitos de Gramsci encontram-se por trás de alguns dos principais
pontos das análises de Althusser, uma útil tarefa anti-reducionista terá sido
realizada. Dito isso, não afirmamos que Gramsci nos oferece uma rigorosa
teoria da ideologia, ou mesmo do que quer que seja. De modo particular,
toda a questão do marxismo como ciência (ou ideologia) e a delicada
questão da relevância de Gramsci para a estratégia comunista na Europa
Ocidental de hoje, para mencionar apenas dois prementes problemas teóri­
cos e políticos, permanecem abertas e urgentes.

II A matriz conceituai de "Cadernos do Cárcere"

Em Cadernos do Cárcere, Gramsci raramente utiliza o termo ideologia, mas


antes uma gama de termos que servem mais ou menos como equivalentes;
"filosofias", "concepções do m undo", "sistemas de pensamento" e formas
de consciência. Ele também emprega noções como "senso comum", que
embora não sejam equivalentes a ideologias referem-se a seus substratos.
Esses termos têm aplicações e formas de referência distintas desde o globa-
62 TEORIAS

lizante Weltanschauung até a forma particular de consciência. A complexa


concepção de Gramsci de ideologia tem que ser reconstruída a partir desses
termos, e tem que ser situada no campo de conceitos que ele utiliza para
analisar a formação social. É precisamente neste particular que ele dá sua
maior contribuição para a teoria marxista através da introdução de concei­
tos como "hegemonia" e "intelectual orgânico", e sua reconceituaçlo de
outros, particularmente "Estado" e "sociedade civil". A ideologia ganha
novo significado em seus textos como uma "força material" na história,
m uito distante da teoria da ideologia da II Internacional como um simples
reflexo da base econômica; mas ao mesmo tempo Gramsci explora as
formas específicas da organização e propagação da ideologia e da cultura
como um aspecto da luta de classes.

Estrutura e superestrutura
O ponto de partida para a exploração de Gramsci lhe é fornecido pelo mo­
delo marxista fundamental de estrutura e superestrutura. Em seus textos,
a estrutura, o "m undo da economia", está sempre presente; seus movimen­
tos estabelecem parâmetros para os desenvolvimentos na superestrutura,
mas é apenas a "m ola propulsora da história em última instância".^ As
análises de Gramsci da relação entre estrutura e superestrutura pouco
devem à economia política marxista. Seu débito é para com Marx, o histo­
riador do 18 Brumário, e não ao Marx de O Capitai Gramsci utiliza termos
de "análise político-histórica", tais como "bloco histórico" e movimentos
"orgânicos" e "conjunturais". Todavia, estes termos não se referem sim­
plesmente ao nível superestrutural. O "bloco histórico", por exemplo, re­
fere-se tanto à estrutura na qual as classes são constituídas ao nível econô­
mico (sobre esta base, Gramsci distingue entre classes "fundamentais" e
frações de classe), como ao nível político no qual as classes e as frações de
classe se combinam."* De modo semelhante, Gramsci emprega "orgânico"
e "conjuntural" para distinguir movimentos na superestrutura de acordo
com o grau em que estes movimentos têm uma base na transformação e
reorganização do modo de produção.*

Tem sido dito freqüentemente que Gramsci examina a formação das


superestruturas isoladas, fornecendo análises inteiramente político-cultu-
rais da história.* Embora isso seja verdade em termos de ênfase, a intenção
de Gramsci é romper tanto com a tradição culturalista/idealista representa­
da por Croce quanto com o determinismo econômico da II Internacional.
Uma série de conceitos utilizados em Cadernos do Cárcere contornam o
modelo topográfico simples de base e superestrutura (por exemplo, bloco
histórico, hegemonia) e abrem o caminho para um entendimento das com­
plexas articulações da formação social. Um dos conceitos-chave é "socieda­
de civil".
PO LItlCA E IDEOLOGIA 63

Sociedade civil é um conceito d ifícil de ser isolado, e Gramsci mostra-


se, quanto a ele, mais vago do que o habitual. Por exemplo, num trecho
sobre os intelectuais, a sociedade civil é chamada de um "nível da superes-
trutura",'’ enquanto que em alguns outros exemplos o termo também se
refere á estrutura.* Os tradutores ingleses dos Cadernos admitem alguma
perplexidade quanto às diversas aplicações feitas por Gramsci.’ Uma ma­
neira prática de se compreender sociedade civil é vê-la como um conceito
que designa a esfera intermediária que inclui aspectos da estrutura e da
superestrutura. É a área do "conjunto de organismos comumente chama­
dos 'privados'"; daí o conceito incluir não apenas associações e organiza­
ções como os partidos políticos e a imprensa mas também a família, que
combina funções ideológicas e econômicas. Portanto, a sociedade civil, nas
palavras de Gramsci, "situa-se entre a estrutura econômica e o Estado". É
a esfera dos interesses "privados" em geral. Mas esta noção de sociedade
civil não pode ser assimilada á dos teóricos políticos do século X V III, que
a concebiam como totalmente separada do Estado. Quando Gramsci aplica
a fórmula "Estado = sociedade política -i- sociedade c ivil", ele está indican­
do a verdadeira relação entre o formalmente "p ú b lic o " e "privado". Isto o
leva a decompor as idéias abstratas da Política e do Direito. No caso desse
últim o, Gramsci escreve que o bloco dominante precisa subordinar as
outras classes às exigências do processo produtivo não apenas baixando de­
cretos, mas mediante uma permanente transformação de valores e costu­
mes morais na sociedade civil.C o n se q ü e n te m e n te , a sociedade civil é
o terreno sobre o qual as classes brigam pelo poder (econômico, político
e ideológico). É neste ponto que a hegemonia é exercida, e no qual os
termos das relações da estrutura e da superestrutura são decididos.
A política, ela própria descrita por Gramsci como um "nível da supe­
restrutura", é o momento-chave nas relações de estrutura e superestrutura.
É o "m omento puramente p o lítico " que "marca a passagem da estrutura
para a esfera das superestruturas complexas" * ' e no qual a natureza das
relações de classe é definitivamente constituída e contestada numa rela­
ção de forças permanentemente variável. A intenção de Gramsci ao escre­
ver os Cadernos é uma teorização do nível político através de uma reflexão
sobre sua própria experiência e sobre a história da Itália. Para ele, o nível
político tem suas leis próprias, diferentes do econômico, e sua própria
"atmosfera incandescente",*^ sendo através de uma análise do político que
Gramsci concebe a ideologia.
Nesse contexto, as ideologias não são julgadas segundo um critério de
verdade e falsidade, mas segundo sua função e eficiência em aglutinar
classes e frações de classe em posições de dom ínio e subordinação. A ideo­
logia contribui para "cim entar e unificar" o bloco social.** Gramsci esta­
belece duas distinções correlatas concernentes à ideologia. A primeira dis­
tinção é entre maneiras sistemáticas de pensar ("filo so fia " e "ideologia".
64 TEORIAS

segundo o seu uso) e formas de pensamento agregadas e internamente con­


traditórias ("senso comum" e "fo lclo re "). A segunda distinção é entre
ideologias orgânicas, semi-orgânicas e não-orgânicas, isto é, de acordo com
o grau em que as ideologias correspondem às potencialidades e ao movi­
mento de classes fundamentais na história, e de acordo com sua capacidade
para análises concretas de situações. A "verdade" de uma ideologia, para
Gramsci, está em sua capacidade de mobilização polftica e, finalmente, em
sua realização histórica.
A inadequação teórica desta concepção, que tende a assimilar de
modo pragmático o materialismo histórico a outras ideologias, será tratada
na seção seguinte. Mas assinalemos aqui que Gramsci está abrindo um novo
campo com respeito à compreensão marxista da ideologia, que se im obili­
zara com a famosa formulação de A Ideologia A le m ã :"A s idéias da classe
dominante são em todas as épocas as idéias dominantes; isto é, a classe que
é a força material dominante da sociedade é ao mesmo tempo a força ideo­
lógica dom inante."'* Gramsci sustenta a importante concepção de Marx
segundo a qual a ideologia burguesa dominante apresenta-se a si mesma
como universal. Quaisquer manchas de "status e posição" que pressupõem
uma desigualdade inerente entre os homens serão lavadas. O poder do
bloco governante de falar em nome do "p ovo ", da "nação", "humanida
de", e assim por diante, é uma pré-condição para a fundação de seu pró
prio Estado e a garantia de sua sobrevivência.'* Todavia, Gramsci rompe
com a concepção de ideologia como simples reflexo de relações a nível
eçonômico e como a expressão uniforme da classe dominante. Embora a
ideologia dominante seja necessariamente sistematizada e se apresente
como universal, ela não emana automaticamente da classe dominante, mas
é geralmente o resultado da relação de forças entre as frações do bloco
dominante.'"' Por isso, Gramsci concebe a apropriação diferencial das
idéias dominantes dentro do próprio bloco governante e dentro da classe
dominada. A primeira tem sua base no fracionamento do bloco dominante
e numa divisão do trabalho entre funções intelectuais e funções mais prá
ticas; a segunda, no complexo processo de acumulação, transformação e
rejeição das idéias dominantes pelas classes subordinadas.

Hegemonia
Isto nos leva ao conceito gramsciano de hegemonia. Aplicações recentes
do conceito apresentaram tendências para assimilá-lo à "dominação ideo­
lógica" e para instrumentalizá-lo ao sugerir uma simples relação de do­
minação e subordinação.'® Deve, portanto, ficar claro que hegemonia, para
Gramsci, inclui o ideológico mas não pode ser reduzido àquele nível, e que
ela se refere à relação dialética de forças de classe. A dominação e a subor
dinação ideológicas não são compreendidas isoladamente, mas sempre
como um aspecto, embora crucialmente importante, das relações das
h >1 I IICA E IDEOLOGIA 65

I lnii.es e das frações de classes em todos os níveis: econômico e político,


lM»in como ideológico/cultural. O conceito de hegemonia é elaborado por
I irnmsci para analisar essas relações dentro das classes e entre as classes. O
niiiceito implica a organização de anuência "espontânea" que pode ser
I iiiii.nguida, por exemplo, quando o bloco dominante faz concessões eco­
nômicas que "entretanto não afetam seus interesses essenciais", combina-
ilni I om outras medidas que promovem formas de consciência que aceitam
iimn posição de subordinação (a que Gramsci refere-se como consciência
•lircional e corporativa).” O conceito permite uma análise que distingue
■Mi níveis da formação social e os mantém em combinação. Daí Gramsci
iiilllzar "hegemonia política"^® ou "hegemonia em filosofia"^* para indi-
' >it .1 instância dominante daquela hegemonia. Este uso mais especificado
ilo conceito não é teorizado por Gramsci, embora abra caminho para uma
niiçffo mais complexa e articulada de hegemonia.
Gramsci reconhece em Lênin a origem do conceito de hegemonia,
iimi. a idéia que este últim o fazia de hegemonia é m uito mais restrita ao
iiívfll político. Lênin definiu-a em termos da liderança do proletariado em
«iin aliança com o campesinato pobre. Gramsci sustenta esta utilização,
' iirno pode ser constatado em sua aprovação leninista dos jacobinos, mas
ampliou seu alcance porque para ele a hegemonia tinha que ser disputada
tid terreno da sociedade civil. A freqüente referência de Gramsci à "hege-
mnnia ético-política" indica esta amplitude; a hegemonia do bloco dom i­
nante é vista não apenas a nível político, mas como afetando todos os
■npectos da vida e do pensamento da sociedade.
Gramsci não possui uma teoria da ideologia tal como é imposta pela
I Iniie dominante nem uma teoria espontânea, imanentista, como Lukács.
I le combina elementos de ambas, mas assim o faz trabalhando numa pro-
hlitmática diferente da simples totalidade. Onde a maioria dos teóricos da
iilnnlogia pensam apenas no pensamento sistemático, ou se aplicam ao má-
■Imo para sistematizar formas de ideologia a fim de ressaltar sua coerência,
<íMimsci tem plena consciência da maneira pela qual a ideologia é uma "re-
i.ii.íü vivida". Sua experiência pessoal da cultura dos camponeses da Sar-
iliinha^^ e como organizador revolucionário na década de 1920 ensinou-lhe
■I importância de enfrentar o problema de como as idéias são apropriadas
■I I relação entre estas idéias e formas de ação e comportamento. Ele é
i'iluez o primeiro marxista a examinar seriamente a ideologia em seus "n í-
viii^ mais baixos" como sendo a acumulação de "conhecimentos" popula-
i>*i e as maneiras de ocupar-se com a vida cotidiana — o que ele chama
''«nnso comum".

11 <.9nso comum, os intelectuais e o partido


l‘mu Gramsci, o pensamento baseado no senso comum é ao mesmo tempo
iiinii formação histórica e específica de cada classe. Isso evidencia-se em
66 TEORIAS

sua explicação do desenvolvimento do conceito a partir de um termo dos


filósofos empíricos dos séculos X V II e X V III que lutavam contra a teolo­
gia até seu uso posterior como uma confirmação da opinião aceita e não
como sua su b ve rsã o .T o d a via , as breves notas de Gramsci sobre o senso
comum consistem de observações gerais sobre uma maneira de pensar. Ele
o caracteriza como sendo inerentemente eclético e desarticulado. Devido
ao fato de que o senso comum não é sistemático e não explicita sua pró­
pria maneira de raciocinar, ele pode combinar idéias que são contraditórias
sem ter consciência desse fato. Como conseqüência, o senso comum
acumula "conhecimentos" extraídos de ideologias anteriores e de uma
série de classes sociais:

"(O senso comum) . . . é estranhamente eclético; ele contém elementos da Idade


da Pedra e princípios de uma ciência mais adiantada, preconceitos de todas as
fases passadas da história a np'vel local e intuições de uma futura filosofia que
será a da raça humana unida mundialmente".^®

Gramsci identifica a ausência de uma "consciência da historicidade" e,


conseqüentemente, do autoconhecimento como o principal aspecto que
condena o pensamento baseado no senso comum a uma posição de depen­
dência e subordinação. Noções populares como "natureza humana" efeti­
vamente não levam em conta a possibilidade de mudança e "naturalizam "
a ordem social.^* 0 processo de "naturalização", que para Marx era fu n ­
damental na Economia Política burguesa, é considerado por Gramsci um
mecanismo-chave do pensamento baseado no senso comum. É justamente
na "materialidade" e na trivialidade que cercaram a noção de "natureza
humana" que podemos ver a articulação íntima da "estrutura em domi-
nância" das esferas "superior" e "in fe rio r" da ideologia.
A relação entre a ideologia dominante e o senso comum, não é, toda­
via, hierarquicamente fixada, mas impelida pelas contradições de classe em
seu interior. A primeira pode intervir "positivamente" no pensamento po­
pular a fim de recompor seus elementos e acrescentar novos, ou "negativa­
mente" ao estabelecer limites a seu desenvolvimento, ao mesmo tempo em
que lhe deixa a restrita liberdade de elaboração i n t e r n a . O s termos destas
relações são freqüentemente afetados por outros fatores, como linguagem,
que podem tornar-se um meio de autodefesa e de orgulhosa auto-afirmação
por parte das massas. Assim, uma dialética funciona tanto como a infra-
estrutura para o folclore e para o paroquialismo quanto como um meio de
resistência, que podemos chamar de os pólos negativo e positivo do corpo­
rativismo.^® No entanto, as contradições entre as maneiras de pensar per­
manecem e se manifestam dentro do próprio senso comum entre idéias
tomadas das ideologias dominantes e as espontaneamente geradas através
da experiência da solidariedade de classe. Nos momentos de conflito
aberto, estas contradições abrem uma fenda entre "a consciência superfi-
POLÍTICA E IDEOLOGIA 67

ciai, explícita ou verbal" e a consciência "im plícita em atividade".^® Estes


momentos freqüentemente são indícios de uma crise na hegemonia do
bloco dominante.
Embora a dinâmica das ideologias seja afirmada por Gramsci através
de seu posicionamento como um nível das superestruturas, ela nunca deixa
de ser consistente. Gramsci introduz a categoria de "intelectual" para
designar aqueles que têm como tarefa a organização, disseminação e con­
servação das habilidades e idéias associadas mais com o trabalho mental do
que com o trabalho manual. Para analisar a formação de ideologia e cultura
com relação às classes, ele faz uma distinção entre "intelectuais orgânicos",
que têm funções firmemente baseadas nos interesses de uma classe funda­
mental, e "intelectuais tradicionais", que pertencem a classes e a estratos
que são como que resíduos de uma prévia formação social.^® As duas cate­
gorias possuem um valor conceituai diferente, no sentido de que o "in te ­
lectual orgânico" refere-se a uma filiação de classe definida, ao passo que
o "intelectual tradicional" sugere uma ausência daquela filiação. A ques-
tão-chave refere-se à função no sistema, mas Gramsci é sensível à relação
diferencial de níveis da superestrutura com a estrutura e, conseqüentemen-
te, à importância de subideologias, que ele vê como particularmente impor­
tantes entre "intelectuais tradicionais". Esta perspectiva explica um grau
de filiação a um grupo ou organização que pode entrar em conflito com a
aliança devida a uma classe fundamental. Referindo-se à Igreja (o locus
classicus do "intelectual tradicional"), ele fala das "necessidades internas
de um caráter organizacional", e que

"se para toda luta ideológica quiséssemos encontrar uma explicação original ime­
diata na estrutura, seríamos apanhados desprevenidos".^*

A categoria do "intelectual" em Gramsci lhe permite analisar a organi­


zação e a produção da ideologia como uma prática específica não redutível
às classes às quais os intelectuais estão ligados. Conseqüentemente, as
idéias não expressam classes, mas compreendem um campo no qual o con­
flito de classes se dá sob formas particulares. Através de organizações como
a Igreja, a imprensa e os partidos políticos (órgãos da sociedade civil) e
através do Estado (quanto ao bloco dominante) os intelectuais desempe­
nham um papel de liderança na batalha para ganhar apoio espontâneo para
uma das classes fundamentais.^^
Na organização da hegemonia na sociedade capitalista, o bloco dom i­
nante mobiliza os órgãos tanto da sociedade civil como do Estado. Gramsci
chamou a atenção para os aspectos do governo de classe que não são coer­
citivos, enquanto marxistas anteriores a ele, inclusive o próprio Marx e
Lênin, viam o Estado, de modo geral, como a violência organizada da
classe dominante. Gramsci fala da influência "educativa positiva" das es-
68 TEORIAS

colas e da influência "educativa repressiva e negativa" dos t r i b u n a i s . A


relação vital, não obstante, para Gramsci, é entre o Estado e a sociedade
civil; isto é, em que medida o bloco dominante pode manter a sociedade ci­
vil sob sua hegemonia. Em última análise, o bloco dominante mantém o
poder por causa de seu controle sobre os aparelhos repressivos (polícia e
exército), que ihe permitem manter outras classes submetidas, mesmo
quando tenha perdido a hegemonia sobre elas.^^ Conseqüentemente, a
"guerra para tom ar" o poder estatal é um corolário imperativo da "guerra
de posição", na qual as classes se movimentam para tomarem as posições
vantajosas na sociedade civil. Contudo, a posição central do Estado na
manutenção do governo de classe é radicalmente reconcebida por Grams­
ci. Para ele, o desenvolvimento crucial da sociedade civil no Ocidente altera
a relação do Estado para com o resto da superestrutura, de modo que ele
se torna uma mera "trincheira avançada" das defesas. Isto acontece porque
a sociedade civil forma o "sistema de fortalezas e de fortins avançados"
que proporcionam a garantia a longo prazo de estabilidade para o bloco
dominante.^® Isto leva Gramsci a reconceitualizar uma estratégia para o
partido revolucionário baseada na conquista da hegemonia política antes
da tomada do p o d e r . J á que o bloco dominante estabelece o terreno po­
lítico e organiza cada vez mais sua hegemonia na sociedade civil, o partido
tem que explorar o terreno e construir uma estratégia correspondente.
Fundamental para isto é o desenvolvimento de intelectuais orgânicos pelo
partido e o afastamento de intelectuais tradicionais do bloco dominante.
A hegemonia baseia-se num "consentimento" voluntário e espontâneo,
mas assume formas diferentes, de acordo com as relações de classe que ela
materializa. Por exemplo, a Igreja mantém sua influência sobre as massas
mediante imposições externas: impedindo a liberdade de pensamento de
seus intelectuais e impedindo que as próprias massas saiam da confusão do
pensamento baseado no senso comum para acederem a formas mais siste­
máticas de pensamento. Contrastando com isso, a luta revolucionária do
partido pela hegemonia marca um rompimento com formas anteriores de
hegemonia. Os marxistas procuram elevar os níveis culturais e eliminar a
opressão cultural institucionalizada na rígida divisão de trabalho intelec­
tual e manual na sociedade capitalista. Gramsci propõe que o partido não
atue mecanicamente do exterior sobre o pensamento popular, mas que
entre na mentalidade do pensamento baseado no senso comum para revelar
suas contradições:
Não se trata de introduzir a partir de zero uma forma científica de pensamento
na vida de todo mundo, mas de renovar e tornar "c rític a " uma atividade já
existente 37

A relação do partido com as massas não é a de um mecanismo de sentido


único, mas uma dialética entre liderança e espontaneidade. Devido ao fato
PO LltlCA E IDEOLOGIA 69

de Gramsci não trabalhar com uma consciência verdadeira/falsa ou um mo­


delo ciéncia/ideologia, seu pensamento é dirigido para as possibilidades
contraditórias dentro de formas espontâneas, não-sistematizadas, de pensa­
mento e ação. E aqui ele faz uma avaliação positiva de apelos a atitudes
emocionais e morais, rejeitando uma noção racionalista de persuasão pela
lógica pura.^® Gramsci vê a espontaneidade em si mesma condenada
porque dividida por contradições internas e incapaz de fornecer uma expli­
cação sistemática do mundo; mas quando "educada e expurgada de contra­
dições que lhe são estranhas", aquela espontaneidade é, para Gramsci, o
motor da revolução.^*
A ideologia, como concebida em Cadernos do Cárcere, é obrigatoria­
mente política. É através da política que a "relação entre o senso comum e
o nível superior da filosofia é assegurada",^ ocupando-se a política essen­
cialmente com concepções do Estado. As análises de Gramsci da consciên­
cia seccional/corporativa e do pensamento baseado no senso comum tem
por objetivo revelar a incapacidade deste para compreender o papel do Es­
tado capitalista, resultando disso seu fracasso em perceber o político como
o nível crucial da formação social. A consciência corporativa e o senso co­
mum partilham um campo de pensamento especificamente não-teórico e
freqüentemente antiteórico. Neste particular, "sentim ento", "experiência
pessoal" e percepção empírica imediata são predominantes. Os comentá­
rios de Gramsci sobre o "subversivismo" do camponês aclaram estes aspec­
tos como uma resposta de classe "negativa":

Essas pessoas não apenas deixam de ter uma consciência precisa de sua própria
identidade histórica, mas não têm consciência nem mesmo dos . .. limites exatos
de seu adversário. Existe uma antipatia pelo oficialismo — a única forma pela
qual o Estado é percebido.^’

Existem, contudo, aspectos "positivos" na consciência corporativa e no


senso comum (Gramsci refere-se ao elemento de solidariedade de classe e
à "suspeita arraigada" presente no anticlericalismo popular). Todavia, estes
aspectos permanecem necessariamente subordinados e defensivos.
Toda a força da obra de Gramsci está em insistir quanto à importância
da teoria para a análise das formações sociais, precisamente porque o não-
teórico não consegue ir além das aparências imediatas, não podendo conse-
qüentemente identificar o "in im ig o ", a não ser de maneira vaga. 0 marxis­
mo é, para Gramsci, num importante sentido, diferente de qualquer outra
ideologia porque permite um entendimento do terreno sobre o qual as
lutas de classe têm lugar. Cadernos do Cárcere é notável como uma obra
teórica que de modo polêmico ataca a influência persistente da ideologia
dominante sobre partes do movimento operário. Ao fazê-lo, Gramsci reco­
loca toda a questão da ideologia em relação ao nível político.
70 TEORIAS

III A ideologia e o problema do historicismo

As concepções de Gramsci de política e formação social em geral, como


temos procurado indicar, são tentativas para explicar objetos complexos.
É importante ter em mente que sua obra é dirigida contra um marxismo
mecanicista e economicista, e a ideologia, correspondentemente, não pode
para Gramsci, em nenhum sentido, ser reduzida a um epifenômeno irrele­
vante. Nem pode ser interpretada de modo psicologístico como uma pro­
cura dos interesses tipo “ judeu sujo" de indivíduos de determinadas classes
( do mi nan t es) .Te ses de fatalismo e de conspiração não desempenham
papel de espécie alguma em sua obra. Correspondentemente, para Gramsci
tampouco existem "interesses" pré-dados para a classe operária. Ao mesmo
tempo em que reconhece o conforto moral que um economismo fatalista
pode oferecer às massas em períodos politicamente adversos, ele assinala
constantemente a necessidade de uma perspectiva política geral — uma que
necessariamente implique um reconhecimento da importância da ideologia.
Sua preocupação específica com o senso comum como sendo o substrato
das ideologias revela uma análise basicamente oposta a qualquer dicotomia
simples entre as "idéias" e a economia. A ênfase sempre repetida na com­
plexa unidade de estrutura e superestrutura deixa claro que Gramsci (cor­
retamente, em nosso ponto de vista) rejeita qualquer hierarquia causai uni-
linear. O próprio ponto de vista economicista tem suas raízes na experiên­
cia prática, é uma conseqüência material da luta cotidiana do trabalho assa­
lariado com e sob o capital, sendo uma tarefa fundamental do partido mar­
xista superar as dualidades e os regionalismos do que Gramsci chama de
consciência "corporativa". A ideologia não é um "a rd il" imposto pela
classe dominante a fim de iludir eternamente os trabalhadores e desse
modo impedir a classe de cumprir seu papel histórico (supostamente) pre­
determinado. As ideologias têm como base realidades materiais e são elas
próprias forças materiais. Entretanto, as concepções materialmente funda­
mentadas da classe operária não são inevitavelmente condenadas a con­
tinuarem corporativas. O senso comum e a experiência prática podem e de­
vem ser trabalhados. Eles contêm elementos de "bom senso" e de instinto
de classe"*^ que podem ser transformados numa perspectiva socialista coe­
rente porque aquela luta corporativa do dia-a-dia, embora caracterizada
por relações de dominação e subordinação, é ela mesma um fenômeno
contraditório.
A ideologia, pois, para Gramsci, possui, como a formação social da
qual é parte necessária, uma identidade complexa e contraditória. Ao con­
trário de Althusser, por exemplo, Gramsci não oferece uma definição epis-
temológica em acréscimo a uma explanação do papel social material da
ideologia. As ideologias como ideologias, para Gramsci, não são nem verda­
deiras nem falsas, embora possam ser certamente coerentes em maior ou
\

p o l ít ic a e id e o l o g ia 71

menor grau. A ideologia é vista principalmente como o "cim en to " que


aglutina a estrutura (na qual a luta de classes econômica tem lugar) e o do­
m ínio das superestruturas complexas. Todavia, se e até que ponto as ideo­
logias conseguem desempenhar esse papel, isto nunca é pré-dado. Segue-se
daí que há sempre uma certa abertura no terreno da ideologia, e particular­
mente no que diz respeito ao senso comum. Esta abertura é o espaço no
qual trabalha o partido comunista; romper com as limitações teóricas da
consciência corporativa (sob cuja influência as massas necessariamente
"tom am emprestadas" suas concepções do mundo da classe dom inante),^
para atingir o nível exigido de coerência e espaço político-cultural para o
exercício da hegemonia. Somente quando isso é obtido — e só pode ser o
produto da unidade diferencial de práticas políticas, econômicas e intelec­
tuais — é que se pode dizer que a concepção de vida em pauta é genuina­
mente "orgânica". Portanto, a adesão das massas é em última instância a
"validação" de uma ideologia. Mas o argumento de Gramsci acerca da fu n ­
ção intelectual objetiva de certos estratos "técnicos" orgânicos ao moder­
no capitalismo, e sua sempre repetida sugestão de que esses estratos devem
ser conquistados pelo partido político, são significativos. Estes pontos de
vista militam contra qualquer explicação da adesão das massas recorrendo
ao espontaneísmo ou à noção a p rio ri de uma classe-sujelto privilegiada.
É interessante notar que sempre que Gramsci se refere à "validade psico­
lógica" que a adesão das massas confere à ideologia sua explicação funda­
menta-se em termos antes metafóricos que literais.''* 0 reconhecimento de
que o próprio partido precisa funcionar de modo análogo a um "coletivo-
intelectual"^* a fim de adequar-se à complexidade do bloco estrutura/su-
perestrutura acentua seu sentido agudo de que a história só se faz em situa­
ções histórico-políticas concretas.
A esta altura, é relevante abordar novamente o problema do "histori-
cismo" de Gramsci, pois a formulação feita acima da "adesão das massas"
sugere o tipo de concessões ao relativismo que Althusser e Poulantzas,
entre outros, consideram características da tendência historicista. Em su­
ma, recapitulando, os historicistas são acusados de reduzirem a complexi­
dade de uma totalidade social a uma essência simples e uniforme, e de re­
duzirem a validade de posições teóricas às condições históricas do período
que as idéias presumivelmente "expressam". Ora, esse conceito acarreta
uma desarticulação a p rio ri da base e da superestrutura (ou níveis de uma
formação social) numa "unidade expressiva" que pode ser definida seja
economicamente, culturalmente ou espiritualmente. Por exemplo, a "es­
sência" de um período ou processo poderia ser considerada como o nível
das forças produtivas, que, de acordo com um esquema teleologicamente
definido, regula a marcha para uma série de estágios históricos "progressis­
tas". E na seção anterior vimos como uma apropriação "culturalista" de
Gramsci — em contraste com a posição "econom ística" — é realizada. To-
72 TEORIAS

davía, opondo-se diametralmente à do economismo, a apropriação cultura-


lista é excessiva exatamente no sentido oposto. Alternativamente, a histó­
ria poderia ser vista como um movimento em que a classe mais progressis­
ta é a que é potencialmente capaz do maior grau de auto-realização na
história. Assim, para Lukács, por exemplo, o proletariado é a primeira clas­
se capaz (no socialismo/comunismo) de chegar à autoconsciência total
e, conseqüentemente, à auto-realização na história, pois a história nada
mais é do que a unidade expressiva de consciência e prática. Formalmente
oposta ao economismo, esta concepção, com uma evidência que dispensa
demonstração, partilha com as outras duas um essencialismo que desafia
a verificação racional. É a natureza fundamentalmente abstrata, e até
mesmo mística, destas idéias de processos, essências, objetivos e sujeitos de
classes que preocupa as escolas marxistas francesas teoricamente "rigoro­
sas” . Numa ciência não há lugar para concepções, mesmo que sejam p o líti­
ca ou moralmente "progressistas".
Ora, Gramsci sem dúvida por vezes manifesta a tendência de se expres­
sar ele próprio em termos historicistas. Na seção seguinte deste artigo, este
problema recebe uma elaboração textual mais ampla em resposta a certas
construções estruturalistas das posições de Gramsci. É suficiente indicar
por enquanto a existência deste problema e sugerir a base ou elementos de
uma avaliação dele.
As ideologias são, como vimos, "concepções de vida". Este é um con­
ceito, poder-se-ia argumentar, que se aproxima da noção de Lukács de
"visão do m undo" ou "consciência de classe". Ademais, Gramsci argumen­
ta que ideologias orgânicas são aquelas vinculadas às "classes fundamentais"
e mediadas (outro exemplo de um "b loco ") por um partido político.'*'' De
fato, em certo momento Gramsci sugere que existe um partido para cada
classe; algo que confere ao nível político pouca autonomia. Ora, está claro
que há neste caso uma posição que poderia ser interpretada como im pli­
cando "sujeitos" de classe autônomos, cada um com suas idéias orgânicas
historicamente sucessivas. A necessidade das ideologias é, portanto, justi­
ficada por sua expressão e como a essência do próprio processo histórico.
Dissemos que as principais reflexões de Gramsci têm como premissa a
idéia de que a totalidade social é complexa, mas parecem surgir dúvidas
sobre esta assertiva quando a tese acima vem acompanhada de uma seleção
dos comentários filosóficos de Gramsci. Por exemplo, Gramsci afirma que
as atividades da economia, da política e da filosofia "form am um círculo
homogêneo".^® Isto podería ser considerado como Implicando uma harmo­
nia pré-dada entre níveis sociais, e parece enfraquecer a reivindicação de
qualquer complexidade real ou teórica. A noção de uma unidade essencial
entre história e práxis humana é levada mais adiante com argumentos dos
quais damos a seguir exemplos representativos;
p o l ít ic a e i d e o l o g ia 73

Parece que pode existir uma objetividade extra-histórica e extra-humana. Mas


quem é o juiz de tal objetividade? . . . Objetividade significa sempre "humana­
mente objetivo” , o que pode ser sustentado como correspondendo exatamente
a "historicamente subjetivo"; em outras palavras, objetividade significaria "sub­
jetivo universal".

Só conhecemos a realidade em relação ao homem, e já que o homem é um vir-a-


ser histórico, conhecimento e realidade são também um vir-a-ser, bem como a
objetividade.^’

Evidentemente, à luz destas observações hegelianas e um tanto mistificado-


ras, não se poderia esperar que o próprio marxismo estivesse livre de crité­
rios relativistas:

Mas até mesmo a filosofia da práxisé uma expressão de contradições históricas.*®

O imanentismo hegeliano torna-se historicismo, mas só é historicismo absoluto


com a filosofia da práxis — historicismo absoluto e humanismo absoluto.*’

0 problema, então, de se o marxismo é uma ciência ou uma ideologia é


um dos mais espinhosos em Gramsci. A diferença entre ciência (social) e
ideologia não parece ser uma diferença qualitativa. (0 caso das ciências na­
turais é mais problemático). Assim, não há um sentido explícito em que o
marxismo como uma concepção de vida seja diferente do, digamos, calvi-
nismo. Na verdade, as ideologias genuinamente orgânicas (e o marxismo
parece figurar entre elas) aparentemente só diferem nas circunstâncias his­
tóricas sobre as quais repousa a adesão em massa.
Podemos começar a lançar dúvidas sobre as acusações "historicistas"
em primeiro lugar lembrando outros pronunciamentos gerais de Gramsci
e, mais importante, argumentando que seus principais conceitos são ininte­
ligíveis se estas acusações forem corretas.

A afirmativa, apresentada como um postulado essencial do materialismo histó­


rico, segundo a qual toda flutuação de política e ideologia pode ser apresentada
e exposta como uma expressão imediata da estrutura deve ser contestada em
teoria como sendo um infantilismo primitivo.

Nem mesmo os comentários filosóficos de Gramsci são teoricamente uni­


formes. Por exemplo, não há dúvida de que ele confere considerável auto­
nomia às ciências,^^ e sua argumentação contra Bulcharin não é, como por
vezes se alega, uma rejeição da cientificidade. Antes, ao denunciar o meca-
nicismo deste últim o, Gramsci argumenta que cada ciência é específica,
sendo portanto impossível gerar um modelo geral e normativo de prática
científica. Um critério positivista, como o adotado por Bukharin, na verdade
estorva aquilo que se propõe facilitar: uma explicação do "m étodo" in trín ­
seco da ciência. Gramsci conclui que aquilo que em exposições posteriores
74 TEORIAS

tornou-se conhecido como "ciência em geral" é uma noção metafísica ou


filosófica, e que não pode cobrir diferenças dentro das ciências naturais
individuais, tanto quanto não o pode em relação às diferenças entre ciên-
ciais naturais e sociais. Gramsci sustenta que entre estas últimas há uma
diferença irredutível em método e objeto. Os que estão familiarizados com
a recente autocrítica de Louis Althusser (para maiores detalhes ver a con­
clusão deste artigo e o artigo sobre Althusser nesta coletânea) ficarão im ­
pressionados com a curiosa semelhança com estas idéias de Gramsci.
Todavia, é acima de tudo para os substanciais conceitos de Gramsci
sobre o materialismo histórico que nos devemos voltar para obter um quadro
menos simplista de seu historicismo. Esta argumentação será mais detalha­
da logo adiante. De modo semelhante, a ênfase de Gramsci sobre as formas
materiais da ideologia, sua falta de conteúdo uniforme, e sobretudo sua
produção social (os intelectuais) afastam-nos mais uma vez de posições
filosóficas simples (gerais).
É a insistência sobre a especificidade histórica (e não relativismo histó­
rico) que m ilita contra qualquer categorização genérica. Isto não significa
que contestemos — especialmente no que diz respeito a suas observações
filosóficas - o fato de que Gramsci adota às vezes posições próximas do
humanismo e mesmo do pragmatismo.®^ Contudo, é preciso reconhecer
que os melhores exemplos desta tendência estão presentes numa polêmica
contra o positivismo e o economismo teórico dentro do marxismo. É intei­
ramente justificável falar-se da unidade dos níveis de uma formação social
neste contexto, embora o próprio termo empregado por Gramsci de "c ír­
culo homogêneo"®® seja certamente um exagero. De modo geral, Gramsci
nunca questiona a complexidade de níveis sociais unificados.
A perspectiva que a identificação de classe, partidos e idéias hegemô­
nicas oferece não apresenta absolutamente quaisquer implicações de uma
teleologia prévia. Antes, estas concepções facilitam uma análise material
e teoricamente consistente do que é específico sobre conjunturas históricas
e, conseqüentemente, sobre a relação de um partido marxista para com tal
situação prática. A esta altura é crucial assinalar que uma explicação de
fatores "relativos" a uma conjuntura não implica uma necessária relati-
vização dos conceitos utilizados numa análise deste tipo. Os conceitos, é
obvio, são conceitos gerais, mas não se referem a entidades gerais. Para
Gramsci, a ideologia em geral não existe. Existem apenas concepções cujos
papéis políticos dependem do efeito material que provocam em situações
específicas. Gramsci não está interessado nas "elocubrações arbitrárias dos
indivíduos",®® mas no papel social e político que as idéias desempenham.
Se for este o caso, pareceria mais exato sustentar que Gramsci trata da
função prático-social das ideologias ás expensas de teses filosóficas, em
vez de erroneamente procurar uma unidade entre sua especulação filosó­
fica e sua contribuição ao trabalho substancial do materialismo histórico.
p o l ít ic a e i d e o l o g ia 75

Esta preocupação com a análise especifica das ideologias — sua relação


com a formação de classe econômica e a existência e o grau da hegemonia
exercida sobre uma conjuntura — é considerada por Gramsci como uma
precondição teórica a intervenções práticas por parte de marxistas. Esta
posição não pode ser reduzida às falácias do historicismo (o humanismo, e
principalmente o economismo), pois ela as extrapola de modo explicito e
convincente.

IV A apropriação estruturalista de Gramsci; Althusser

Já nos referimos à natureza complexa do "historicism o" de Gramsci. Esta


questão torna-se mais complexa quando examinamos a relação entre
Gramsci e os "marxistas estrutura listas" (referindo-nos aqui especificamen­
te a Althusser e Poulantzas). O marxismo estruturalista opõe-se diametral­
mente ao "historicism o” — na verdade, é construído com base em seu des­
mantelamento sistemático. A relação de Gramsci com o "historicism o" é
extremamente complexa. Como sugerimos, em vários aspectos importan­
tes, Gramsci não é absolutamente um "historicista", se tivermos em mente
alguém como Lukács como uma figura representativa desta tendência.
Conseqüentemente, a relação de Althusser e Poulantzas com Gramsci não
deve ser simples nem direta.
Gramsci freqüentemente referia-se ao materialismo histórico como
uma "filosofia da práxis". Ele de maneira clara levava esta designação a
sério — a referência não pode ser completamente explicada' como sendo
um eufemismo para "m arxism o" adotado por Gramsci para escapar aos
olhos do censor da prisão. Assim, quando os estruturalistas se ocupam de
Gramsci neste nível filosófico geral, ele se torna objeto de críticas agudas.
Contudo, mesmo neste caso Althusser delineia algumas distinções críticas.
Ele está sempre encontrando dificuldades para "excetuar" Gramsci da
crítica gera! de historicismo tal como dirige a Lukács, Korsch e Sartre.
Althusser também toma m uito cuidado em distinguir a posição de Gramsci
quanto ao status do "materialismo histórico" como uma "filosofia da
práxis" dos conceitos importantes deste últim o, que são focalizados para
merecer uma atenção favorável e positiva. Estas distinções são de grande
importância para a definição de alguns dos parâmetros dentro dos quais a
abordagem estruturalista de Gramsci tem sido realizada. Mas, acima de
quaisquer referências específicas a Gramsci ou de quaisquer reconhecimen­
tos a sua contribuição, pode-se ver claramente que Gramsci desempenhou
uma função geradora e ocupa uma posição fundamental em relação à obra
do marxismo estruturalista como um todo.
A relação entre Gramsci e os estruturalistas revela, contudo, uma desi-
qualdade significativa. Uma espécie de "gráfico" poderia ser feito, o qual
não somente representaria de modo mais acurado esta relação, mas de al-
76 TEORIAS

guma maneira também explicaria quando e p o r que a obra de Gramsci é


particulamente pertinente aos estruturalistas e quando não o é. A represen­
tação gráfica desta relação também contribui para o estabelecimento dos
principais pontos de convergências e divergências entre as duas posições. Em
seu ensaio fundamental sobre "Contradição e Superdeterminação" (em For
Marx, 1969) Althusser mostra-se preocupado em definir a natureza das "con­
tradições" dentro de uma formação social. Seu argumento é o de que uma
formação social não é uma simples "totalidade expressiva": as contradições
não surgem necessariamente em todos os níveis da formação social ao mes­
mo tempo, nem penetram todos os níveis simultaneamente a partir de al­
guma "contradição principal" alojada de algum modo simples "na base (e­
conômica)". As contradições possuem sua especificidade própria. O ponto
de importância é a maneira pela qual as contradições que surgem de "co r­
rentes absolutamente dessemelhantes", para usar uma frase de Lênin, po­
dem efetivamente "m ergulhar" ou "fundir-se" numa importante unidade
de ruptura, constituindo assim o âmbito de uma decisiva conjuntura po­
lítica. Esta questão é "pensada" por Althusser principalmente com refe­
rência a Lênin e 1917.*’ Mas o terreno de preocupações não é absolutamente
estranho ao que Gramsci explorou nos Cadernos do Cárcere —por exemplo,
sua discussão de como distinguir entre aspectos "orgânicos" e "conjuntu­
rais" de uma crise nas relações de forças de classe em "The Modern Prince".*®
À medida que Althusser evoluía para o período de Lire "Le Capital",
ele passou a preocupar-se com uma série diferente de questões — não sem
relação umas com as outras, mas proprastascom uma ênfase teórica significa­
tivamente distinta. Ele estava preocupado em identificar a natureza da
"imensa revolução teórica de M arx" em O Capital. Esta questão é "pensa­
da" mediante o auxílio de uma sériede conceitos característicos: a distinção
entre ideologia e ciência; a natureza da "prática teórica"; a função do mar­
xismo; a teoria da "causalidade estruturalista". Muitos desses conceitos são
desenvolvidos em confronto direto com o terreno conceituai do "histori-
cismo". Nesse ponto, Althusser encontra-se o mais distante possível de
Gramsci. Embora não haja, como veremos um pouco mais detalhadamente
logo adiante, uma condenação generalizada, a crítica do "historicism o" de
Gramsci constitui um elemento central no longo e importante ensaio em
Lire "Le C apitai" consagrado á proposição de que o "marxismo não é um
historicismo".
Depois disso surgiram dois desenvolvimentos significativos na obra de
Althusser. 0 primeiro é o importante "Ensaio sobre os A IE ", no qual
Althusser mais uma vez voltou sua atenção para a análise concreta da ins­
tância ideológica e para a função dos "aparelhos ideológicos do Estado" ao
reproduzir a hegemonia de uma ideologia dominante em formações sociais
particulares.®*’ 0 segundo é aquele notável trabalho de auto-esclarecimento
e modificação representado por Essays in Self-Criticism (1974). Não é
POLIYICA e i d e o l o g ia 77

possível fazer-se aqui uma avaliação completa deste últim o volume. Mas é
importante notar o seguinte; Althusser m odificou m uito a distinção simples
ideologia/ciência estabelecida em sua obra inicial. Ele admitiu o "teoricis-
m o" de algumas das posições adotadas; ele abandonou a idéia de uma "prá­
tica teórica" auto-suficiente; a filosofia é agora definida, não como uma
"garantia epistemológica" mas como uma intervenção na "luta de classes
em teoria". Embora o caráter científico das aberturas teóricas de Marx
não possa ser reduzido às condições históricas que as tornaram possíveis,
estas condições já não são consideradas irrelevantes para quando e como
tais "rupturas" acontecem. Althusser continuou insistindo em que essas
modificações — nem todas fundamentadas com segurança — não atingiram
os pontos essenciais em sua crítica do humanismo e do historicismo. Mas
a mudança de ênfase e as substanciais reavaliações tiveram o efeito de, uma
vez mais, remover algumas das barreiras entre o "marxismo estruturalista"
e a obra de Gramsci. Por exemplo, elas tornaram possível para os teóricos
estruturalistas reconhecerem o que os críticos do "teoricism o"de Althusser
sempre argumentaram: tjue, na atenção que Gramsci dá à especificidade do
"p o lític o ", seu ataque a todas as formas de reducionismo econômico e
sua insistência sobre a necessária complexidade do complexo estrutura-
superestrutura, encontramos já examinadas — apesar da terminologia m ui­
to diferente da empregada pelos estruturalistas — precisamente aquelas
questões sobre "a autonomia relativa" e a "sempre pré-dada complexa uni­
dade de uma formação social" que com razão acredita-se constituírem
a "imensa revolução teóúca" áe Althusser. Assim, seja Gramsci um "histo-
ricista" ou não, algo levou-o, em Cadernos do Cárcere, a registrar com fo r­
ça, clareza e consistência notáveis, seu necessário rompimento com o mar­
xismo concebido seja como um reducionismo econômico ou como uma
teoria de formações sociais como "totalidades expressivas". E isso foi um
rompimento com aquilo que Althusser definiu como a essência do "h istori­
cismo" — bem como de sua imagem refletida no espelho, o economismo.
Resumindo a questão: se Gramsci continua sendo um "historicista",
então seu historicismo rompeu com aquilo que os estruturalistas definiram
como sendo a essência da problemática do historicismo. E, portanto, um
"historicism o" com o qual os estruturalistas são obrigados a se conciliar
— a levar em conta, e não simplesmente ignorar. Gramsci é o caso lim ite
do "historicism o" para o marxismo estruturalista.*' Esta questão, longe de
estar encerrada, continua sendo um encontro aberto e não concluído, um
dos encontros mais importantes no campo da teoria marxista contemporâ­
nea. Objetivamente falando, esta é a posição na qual a problemática de
Gramsci e a de Althusser e Poulantzas se defrontam. A maneira pela qual
Althusser e Poulantzas efetivamente negociaram suas posições pessoais
particulares dentro desta conjuntura teórica em diferentes pontos de suas
obras é assunto para uma investigação mais detalhada. Existem apenas
78 TEORIAS

referências esparsas a Gramsci nos primeiros ensaios de Althusser {A Favor


de Marx). Todas es;as referências assinalam sua importância geralmente
contrastando diretamente com Lukács, o arqui-historicista. Gramsci é "de
outra estatura". Este aspecto é reconhecido especificamente em relação
à consciência de Gramsci quanto à necessidade de uma "elaboração da es­
sência particular dos elementos especfficos da superestrutura". A "hege­
m onia" é também especificamente citada como um novo conceito, uma
"solução notável". Nos últimos ensaios daquela antologia, Althusser come­
ça a desenvolver uma teoria da ideologia — primeiro através da distinção
ideologia/ciência, depois em termos da "maneira como os homens 'vivem'
as relações reais de suas condições de existência" ou como uma "relação
imaginária para com as relações reais de existência"; aqui a 'ideologia'está
sendo "pensada" por Althusser de modo geral sem favorecer a obra de
Gramsci.*^ As "grandes teses sobre filosofia marxista" de Gramsci são uma
vez mais identificadas em Lire "Le C apita!" como sendo de considerável
significado. Gramsci é evidentemente identificado com aqueles teóricos
marxistas - Lukács, Luxemburg, Korsch - que contribuíram para o desen­
volvimento do marxismo como um "humanismo e um historicismo revolu­
cionário", afirmando que é "avançando 'os hom ens'... que ao final acabam
sempre triunfando" (p. 120). Althusser reconhece que um certo apoio para
esta interpretação pode ser descoberto na própria obra de Marx. Mas ele
insiste em que Marx deve ser interpretado "sintomaticamente", atentando-
se para as problemáticas que se modificam de acordo com diferentes perío­
dos de sua obra e os "cortes epistemológicos" que diferenciam um perío­
do de outro. Todavia, como se poderia prever, é exatamente aí que surgem
as maiores críticas feitas a Gramsci. A apreciação de Althusser é cautelosa
— para que suas "observações necessariamente esquemáticas não desfigu­
rem o espírito desta obra de gênio extremamente delicada e s u til" (p. 126).
Ele fazia uma distinção entre a visão "historicista" de Gramsci do materia-
lismo dialético e da função da filosofia no marxismo e suas "descobertas"
no campo do materialismo histórico. A distinção leva Althusser a preconi­
zar uma "interpretação sintom ática" também de Gramsci. Suas afirmações
humanistas são "precipuamente críticas e polêmicas" (p. 127). A obra so­
bre ideologia está positivamente isenta. O aspecto comentado aqui — a
atenção de Gramsci para a função da ideologia em "fundamentar e unificar"
todo um bloco social, preservando sua "unidade ideológica" e seu enraiza­
mento da ideologia na superestrutura — leva ao ensaio sobre os AIE e ao
Political Power and Social Classes, de Poulantzas (1973). Mas a ênfase de
Gramsci sobre o aspecto histórico do "materialismo histórico" é compa­
rada desfavoravelmente à ênfase de Marx sobre o aspecto materialista.
Esta é a essência da crítica de uma filosofia da práxis; a de que ela promo­
ve a fusão do conhecimento e do "real". Assim, o marxismo torna-se não
um conhecimento científico, mas meramente outra das grandes ideologias
p o l ít ic a e i d e o l o g ia 79

orgânicas.*^ A problemática de Gramsci é cortada por mais de uma via:


mas quando o historicismo aporta, tudo o mais na argumentação “ subme­
te-se a sua lei".
Há ainda um outro aspecto em relação ao tratamento de Gramsci em
Lire "Le C apital"^ue exige mais um comentário. Em nota de pé de página,
Althusser critica o uso que Gramsci faz do conceito de "sociedade c iv il",
declarando que este devia ser eliminado do vocabulário teórico marxista.
Posteriormente, Poulantzas se mostraria ainda mais rigoroso quanto a ele.
Mas, como vimos, o conceito de "sociedade c iv il" é de importância funda­
mental para Gramsci — uma questão mais d ifícil por causa da ambigüidade
de algumas de suas formulações e da dificuldade de localizá-lo com preci­
são na topografia estrutura/superestrutura de Gramsci. Verifica-se nesse
particular mais do que uma simples discordância. Conseqüentemente, vale
a pena aprofundar um pouco mais essa questão, não apenas em virtude da
luz que ela poderia lançar sobre Gramsci, mas pelo que ela revela sobre
Althusser e Poulantzas.
Não há mistério quanto á hostilidade com a qual os althusserianos
consideram o conceito de "sociedade c i v i l " . E s t e conceito desempenhou
um papel proeminente tanto na economia política clássica como na teoria
política do século X V III, mas de modo mais significativo em Hegel. Todos
os três utilizam-no para referir-se á esfera do "individualism o" burguês por
excelência — o terreno do individualismo possessivo, das relações mercantis
de contrato entre "simples cidadãos", de "direitos e liberdades" individuais
burgueses, acima de tudo o terreno das necessidades econômicas e do ho­
mem econômico per se (homo economicus). Para os economistas políticos
é a arena econômica como tal. Hegel o via como aquela "egoística" esfera
de particularidade que tinha que ser guindada a uma universalidade mais
ampla — a da cidadania política — pelo Estado. Marx freqüentemente abor­
dava todos os temas propostos por esta problemática. Sua freqüente crítica
à economia política é a de que esta vê as relações de mercado como a es­
sência das relações econômicas capitalistas, ignorando por completo a
produção da mais-valia: fo i esse conceito que lim itou a economia política
clássica, aos olhos de Marx, a seu "aspecto burguês". A "naturalização"
do mercado é demolida em algumas das observações mais irônicas de Marx
em O Capita! sobre uma teoria econômica baseada no modelo de Robinson
Crusoe. Ele confrontou diretamente o uso que Hegel faz do conceito em,
inter alia, a Crítica da Filosofia do D ireito de Hegel. Marx atacou a no­
ção de que a destruição do capitalismo podia ser encarada como uma luta
apenas pelos "direitos políticos burgueses" — emSobrea Questão Judaica.
Em A Ideologia Alemã ainda podemos ver Marx utilizando o conceito,
mas agora com um significado próprio mais abrangente:
Esta concepção da sociedade depende de nossa capacidade de expor o processo
reai de produção, começando a partir da própria produção materiai da vida, e
80 TEORIAS

de compreender a forma de intercurso ligada a esta e criada por este modo de


produção (isto é, a sociedade civil em todos os seus diferentes estágios como ba­
se para toda a história).

Os estruturalístas querem insistir — corretamente, ao que nos parece — que


o Marx de O Capita! abandonara esta problemática. Eles querem eliminá-la
do vocabulário teórico marxista porque preservá-la é sustentar, no discurso
marxista, os ecos "humanistas" de uma referência à esfera das "necessida­
des dos seres humanos".** O marxismo, argumentam os estruturalístas, é
uma "teoria sem sujeito". A presença da "sociedade c iv il" na obra de Gramsci
é, portanto, considerada como um indicio im pifcito deste "hum anism o"
remanescente (embora esta atribuição não seja, em nossa opinião, susten­
tada por nenhum dos usos deste conceito que Gramsci faz. Mas se o con­
ceito já não preserva, em Gramsci, seu significado do século X V II I , a que
se refere ele? Tentamos anteriormente dizer como o conceito, para nós,
parece funcionar no discurso de Gramsci. Neste ponto queremos indicar
por que também gostaríamos de dizer que isso não é incompatível com a
problemática de Marx em O Capital, mesmo que Gramsci não use o concei­
to exatamente da mesma maneira.
No volume I de O Capitai Marx explicitamente avança a economia po­
lítica ao insistir em chegar, por trás das relações de troca do mercado, até
à "morada oculta" da produção capitalista, na qual a mais-valia é gerada e
a força de trabalho explorada. Marx evidentemente não elimina por com­
pleto o momento das relações de mercado e da "troca". Em Grundrísse
e também no vol. 1 de O Capitai, ele demonstra como o capital se repro­
duz um ritm o crescente e se realiza através do longo circuito da acumula­
ção do capital — um ritm o que exige a articulação entre diferentes "m o ­
mentos", entre diferentes formas de capital, incluindo a esfera "dependen­
te " da circulação e da troca. Tendo estabelecido o primado da determina­
ção da produção sobre todo o circuito do capital, no volume II de O Capi­
tai ele retoma as questões-chave da circulação e reprodução. As relações de
circulação e troca são também relações capitalistas - necessárias, embora
não determinantes. A esfera da troca articula-se com a esfera da produção,
não de modo desconexo e fo rtu ito , mas através de mecanismos específicos.
É na esfera da circulação que as mercadorias se tornam "trocáveis" através
da "passagem das formas" para a mais abstrata e universal das mercadorias
— o bem que tem a capacidade de mediar todas as trocas de bens — o d i­
nheiro. É através desta "metamorfose" — M — D — M' — que as mercado­
rias encontram sua expressão "equivalente" em termos de dinheiro — os
preços. Mas é também nesta esfera que o capital aluga a "força de trabalho
livre", através do mecanismo do mercado de trabalho (isto é, onde o capi­
tal compra aquela valiosa mercadoria que precisa fazer trabalhar na produ­
ção — a força de trabalho). E ainda nesta esfera que o capital paga ao traba-
p o l ít ic a e i d e o l o g ia 81

lhador individual os meios para sua subsistência, o custo da reprodução


de sua força de trabalho. Ambas estas funções absolutamente vitais para o
capital são pagas com o capital — elas são a "parte variável" do capital,
produzida pela força de trabalho, que o capital adianta para a reprodução
da força de trabalho. Mas esta "parte variável" aparece na esfera da troca
(ainda através da mediação do dinheiro) sob a forma de uma relação eco­
nômica particular — a relação de salário — o capital sob a "form a de sa­
lário". Na medida em que o capitalismo é um modo de produção baseado
no "trabalho livre", distribuCvel aos ramos da produção somente através
do mercado, e um modo de produção econômica no qual o trabalhador é
separado dos meios de existência, ele exige uma esfera de troca, embora
essa esfera dependa das relações de produção capitalista. As relações de
troca são, pois, as "formas fenomenais" das "relações reais" de produção.
Marx utiliza freqüentemente este argumento em O Capitai, mas a referên­
cia específica que temos em mente aqui é o capítulo sobre " A Compra e
Venda da Força de Trabalho", volume I de O Capitai (parte 2, capítulo
VI). Marx já não utiliza o termo "sociedade c iv il" para designar essa fase
do circuito do capital, mas certamente pensa sua relação como uma parte
das relações econômicas do capitalismo, retendo, se não o termo, pelo me­
nos o espaço conceituai que este designava.*''
Mas Marx diz várias outras coisas importantes sobre as relações ca­
racterísticas desta esfera de circulação e troca. Ele sugere que ela tem a
função ideoiógica de ocultar seus reais fundamentos — a geração e a ex-
propriação da mais-valia na produção. A "esfera ruidosa" da troca dissimu­
la a "morada oculta" da produção capitalista. E necessário abandonar a
primeira e penetrar na segunda para "forçar o segredo da realização do
lucro" (p. 176). Isto ocorre não simplesmente porque a primeira coloca
sobre a última o aviso: "Proibido a entrada a não ser a negócios". Um me­
canismo ideológico específico está presente. Trata-se do mecanismo de
representação ou reapresentação. Pois as trocas do mercado parecem aos
agentes envolvidos trocas "livres e equivalentes". Elas parecem trocar
"equivalente por equivalente". Assim, se tanto na teoria econômica como
na "experiência" o trabalhador "vive " a sua relação para com o capitalis­
mo exclusivamente nos termos e categorias com os quais é apresentado na
esfera do mercado, a fonte de sua exploração (na produção) se tornará
invisível. 0 trabalhador "viverá" — experimentará — as relações explora­
doras da produção capitalista como se elas fossem "trocas entre equivalen­
tes". Se e quando estas "trocas livres" se tornam o objeto da luta de clas­
ses, elas obviamente serão restringidas à tentativa de "devolver á sua pró­
pria equivalência" relações que na realidade são não-equivalentes, explo­
radoras em seus fundamentos. Tais lutas Lênin chamava de "economicis-
tas" e Gramsci chamava de "corporativistas" — como dizia Gramsci,
elas não "atingem o essencial".
82

Mas Marx diz algo mais sobre essa esfera. Dela, diz ele, surgem as
principais relações das superestruturas políticas e jurídicas da sociedade
burguesa, bem como os temas e discursos ideológicos chave. Esta esfera
"é de fato um verdadeiro Paraíso dos direitos inatos do homem. Somente
nela governam a Liberdade, a Igualdade, a Propriedade e Bentham". Isto
surge precisamente do fato de que essa "esfera ruido sa "^ a esfera (depen­
dente) da troca individual — e conseqüentemente a sede e a origem das li­
berdades políticas e jurídicas, "possessivas e individualistas", da sociedade
burguesa (todas baseadas no sujeito individual) e daquelas ideologias indivi­
dualistas que caracterizam o "senso comum" burguês. Assim, "Liberdade,
porque tanto o comprador como o vendedor de uma mercadoria, digamos
força de trabalho, são coagidos [isto é, parecem ser coagidos] somente por
sua livre vontade. . . o acordo a que chegam é apenas a forma pela qual ma­
nifestam sua vontade comum. Igualdade, porque cada um entra em relação
com o outro, como com um simples possuidor de mercadoria, trocando
equivalente por equivalente. Propriedade, porque cada um dispõe apenas
daquilo que é seu. E Bentham porque cada um olha somente para si mes­
m o" (p. 176). Em suma, para adotar uma frase do próprio Althusser,
essa "esfera ruidosa" fornece a base para aquelas práticas e formas ideo­
lógicas superestruturais nas quais os homens são forçados a "viver uma re­
lação imaginária" de equivalência e individualismo para suas condições
reais (não-equivalentes, coletivas) de existência. Esta não é apenas uma das
pouquíssimas passagens de O Capita! em que Marx assinala explicitamente
a articulaçço entre os níveis econômico, político-jurídico e ideológico
de uma formação social. É também o local onde, longe de simplesmente
abandonar tudo o que Hegel, Locke e Adam Smith queriam dizer com o
termo "sociedade civil", Marx o adota e, repensando-o, agora no terreno
conceituai transformado do capital e seu circuito, elabora um novo concei­
to. Ele já não é a sede e a fonte do individualismo. É apenas a esfera indi-
vidualizante do circuito das vias do capital para expandir a reprodução. 0
"individualism o", portanto, não é a origem do sistema — seja de fato ou em
teoria. Ele é o que o capital produz como uma de suas "formas fenome­
nais" necessárias — um de seus efeitos necessários, mas dependentes. 0
que mais diferencia a designação de Marx deste novo espaço teórico é seu
uso como um conceito para referenciar algumas das complexas relações
entre base e superestrutura. Identificar as "formas imediatas" do capital
nesse estágio em seu circuito é começar a retraçar aquilo que Gramsci
chamava a "passagem" da base para a "complexa esfera das superestrutu­
ras".
Althusser por vezes parece estar a ponto de apreender isto, mas recua
num momento crítico. Se retivermos o conceito de "sociedade c iv il", diz
ele, temos que reconhecer que ele não tem nenhuma existência econômi­
ca, mas é apenas um "efeito combinado de direito e ideologia político-le-
POLÍTICA E IDEOLOGIA 83

gal sobre o econômico". Esta interpretação não pode ser comparada com a
de Marx no capítulo citado anteriormente. Poulantzas compartilha esta in­
terpretação de Althusser — novamente identificando este conceito com o
nível do jurídico-político e do ideológico apenas. Mas Marx está demons­
trando claramente a acumulação de efeitos — econômico, político-jurídi-
co, ideológico — nesta instância única.
Gramsci, como já vimos, faz um uso m uito diferente do conceito de
"sociedade civil". Primeiro, sem que seja precisamente o mesmo que Marx
esboçou, Gramsci de fato parece estar m uito próximo da formulação
provisória de Marx; pelo menos no sentido de encarar "sociedade c iv il"
como um conceito que marca o efeito acop/acíor de base e superestrutura.
Mas Gramsci também o emprega num segundo sentido, mais amplo em
concepção, menos diretamenté atribuível à formulação de Marx em O
Capital, e pertencendo de modo menos ambíguo aos conceitos desenvolvi­
dos por Gramsci para "pensar" a especificidade da instância política e para
articular o conceito de hegemonia. Gramsci faz uma distinção crítica entre
a "dominação" de uma aliança da classe dominante sobre uma formação
social mediante força e coerção e a "direção" ou liderança de uma tal ali­
ança mediante consentimento. Para esse últim o momento ele reserva o ter­
mo "hegemonia". Esse momento é caracterizado pela capacidade de um
bloco dominante ampliar sua esfera de liderança e autoridade sobre a socie­
dade como um todo e ativamente ajustar a vida econômica, civil e cultu­
ral, as instituições educacionais, religiosas e outras ao seu domínio. Muitas
destas esferas estão aparentemente longe da autoridade direta do Estado,
da sociedade política e da economia;em seu segundo uso, estas são algu­
mas das áreas que Gramsci inclui sob a designação vaga de "sociedade civil".
Ora, a função da ideologia dominante e dos aparelhos estatais ideo­
lógicos em "consolidar e unificar" uma formação social sob a hegemonia
de uma aliança de classe particular é uma questão para a qual Althusser
voltou sua atenção <no artigo sobre os AIE. Mas seu desagrado da distinção
sociedade civil/Estado leva-o a abandoná-la, declarando ser a distinção pu­
ramente legalística sob o capitalismo, e não de importância real. Isto o
obriga a designar todos os "aparelhos ideológicos" como aparelhos do Es­
tado; Althusser os chama de "aparelhos ideológicos do Estado". Ele argu­
menta não ter nenhuma conseqüência o fato de que alguns desses apa­
relhos sejam diretamente organizados pelo Estado, e que outros sejam
organizados por particulares, uma vez que todos funcionam "debaixo da
ideologia dominante".*® Esta definição é tautológica. E também serve para
dissimular certas distinções críticas. Existem diferenças entre aparelhos
diretamente coordenados pelo Estado e os que não o são. Estas diferenças
são importantes — elas afetam a maneira pela qual tais aparelhos funcio­
nam, como se articulam com o Estado; podem também fornecer a base de
84

significativas contradições internas entre diferentes aparelhos dentro do


complexo do Estado e do bloco dominante. Por exemplo, no caso da
Grã-Bretanha, as funções de imprensa (propriedade privada) e da televisão
(indiretamente coordenada pelo Estado) são diferentes por causa de suas
diferentes maneiras de inserção; e estas diferenças Xêm efeitos pertinentes —
por exemplo, na maneira pela qual diferentes aspectos da luta de classes
são ideologicamente veiculados por cada uma. O papel ideológico da Igreja,
por exemplo, difere dependendo de se ela é ou não a base organizacional
de uma "religião de Estado" — como foi revelado claramente pela preocu­
pação de Gramsci com o Catolicismo na Itália. A complexa posição dos
sindicatos tampouco é resolvida ao se designá-los simplesmente, para todas
as finalidades práticas, como "aparelhos de Estado", pois isto dissimula o
"trabalho" que o Estado precisa realizar, e o faz incessantemente, ativa­
mente, para hegemonizar as instituições corporativas e defensivas da classe
operária. Assim, uma designação por demais apressada dos sindicatos á es­
fera do Estado obscurece a questão crftica da articulação entre capitalismo
moderno e democracia social. O mesmo, de um ângulo diferente, poderia
ser dito sobre a família. Os momentos em que as funções para a reprodu­
ção do capital e da força de trabalho, até agora executados pela família
como uma instituição "privada", são tomadas pelo Estado são momentos
de transição fundamentais e exigem uma análise cuidadosa. Althusser sem­
pre insistiu sobre a necessidade de especificidade como parte da "necessá­
ria complexidade" do conceito marxista de totalidade. Mas a oposição
ao conceito de "sociedade c iv il" possui o efeito teórico, no presente caso,
de precisamente levar-nos a abandonar a especificidade por uma generaliza­
ção m uito mais conveniente. Repetindo, Althusser insiste sobre o primado
da "análise concreta de uma situação concreta". Mas é o uso que Gramsci
faz da distinção entre Estado e sociedade civil, e entre diferentes momen­
tos e tipos de combinação dentro das diferentes formas de hegemonia, que
oferece a verdadeira recompensa para a análise de conjunturas específicas.
Identificamos um dos problemas que assediam o ensaio de Althusser
sobre os AIE — dissolução da distinção público-privado, absorção demasia­
do rápida de todos os aparelhos no terreno do Estado, e tendência para ver
as funções de "reprodução" do Estado para o capital como demasiadamen­
te não-problemáticas. Um problema de natureza bastante semelhante pode
também ser identificado em Political Power and Social Classes, de Poulan-
tzas, que segue Althusser de perto e que também demonstra uma tendência
para absorver tudo sob o guarda-chuva do Estado capitalista. Em um nível
mais geral, o fundamental ensaio sobre os AIE parece-nos impensável sem a
referência à obra de Gramsci. Todo o problema da ideologia foi repensado
com as categorias de Gramsci sempre em mente. A lista de Althusser dos
AIE é um empréstimo direto dos Cadernos do Cárcere. A ideologia é pensa
da, menos em termos de seu contraste com a ciência, mais em termos de
POLÍTICA E IDEOLOGIA 85

seu efeito prátíco-social na consolidação de um bloco dirigente sob uma


ideologia dominante. Esta é uma concepção m uito gramsciana. Althusser
define todo o terreno apresentado nesse ensaio como sendo o da "reprodu­
ção" — os aparelhos destinados a "reproduzir as relações de produção".
Mas não estamos longe da noção de Gramsci de que as superestruturas são
destinadas a "ajustar" a sociedade às necessidades a longo prazo de capital.
A centralidade dada por Althusser ao sistema educacional como um AIE —
com a família, o par AIE chave, substituindo o par Igreja-família — corres­
ponde à discussão de Gramsci do papel da escola e do sistema educacional
na elaboração das várias categorias de intelectuais.*® Ambos dão à educação
uma posição fundamental na complexa natureza das superestruturas no ca­
pitalismo moderno — e posteriormente Poulantzas se apóia basicamente no
sistema educacional como um AIE para reproduzir a distinção primordial
entre trabalho intelectual e manual.'® "Gramsci", reconhece Althusser, "é
o único que percorreu alguma distância no caminho que estou tomando. .
Infelizmente, "ele não sistematizou suas intuições..." A primeira meta­
de do ensaio sobre os AIE poderia ser representada como uma tentativa de
levar a cabo esta "sistematização inexistente" de Gramsci. Althusser efetua
isso não extrapolando diretamente as "instituições" de Gramsci, mas reco­
locando os conceitos de Gramsci no terreno estrutura lista mais firme da
reprodução . Essa recolocação de Gramsci indubitavelmente empresta
sistematização e rigor a Gramsci. Por vezes ela também tende a tornar o tra­
balho dos AIE em prol do capital menos problemático do que é em Gramsci,
com um efeito mais necessário e funcional, E em geral essa perspecti­
va centraliza o argumento mais numa "teoria geral" da ideologia, menos na
análise de conjunturas históricas particulares. Neste trabalho de transfor­
mação e transposição, que Althusser empreende, existem igualmente ga­
nhos e perdas. Talvez o ponto de convergência isolado mais significativo
entre o Althusser do ensaio sobre os AiE e Gramsci seja a firm e fixação
do conceito de "ideologia" nas práticas e estruturas das superestruturas.
Gramsci sempre pensa o problema da ideologia desta maneira. Para Althus­
ser, ele representa uma mudança de ênfase — mudança esta louvável — em
comparação com algumas de suas posições anteriores. Aqui o argumento
não é apresentado tanto para provar ou não provar uma linha de descen-,
dência teórica direta, ou fabricar "influências" abertas. A questão’ é de­
monstrar a íntima convergência das duas problemáticas. Para colocar a
questão metaforicamente, quando a mudança de ênfase com respeito á
"ideologia" ocorre na obra de Althusser, Gramsci está claramente, no sen­
tido teórico, "à mão".
Resumindo, diriamos que se o Althusser de Ler "O Capita!" eáeA Fa­
vor de Marx é sempre respeitoso e positivo em sua apreciação das "brilhantes
percepções' de Gramsci, o Althusser de "Os Aparelhos Ideológicos do
Estado" trabalha num terreno que em grande parte foi delimitado pela
86 TEORIAS

primeira vez pelos conceitos de Gramsci, embora seu tratamento do pro­


blema difira do de Gramsci no modo da formulação teórica e na direção
(muito mais para Lacan e "a constituição do sujeito na ideologia" — o
tema da segunda metade do ensaio sobre os AIE) para a qual aponta um
elemento do discurso de Althusser.

V A apropriação estruturalista de Gramsci: Poulantzas

Poulantzas é extensamente focalizado em outro ponto deste volume.


Conseqüentemente, sua relação com Gramsci é tratada aqui de modo mais
sumário — principalmente em termos do texto em que esta relação é de
importância fundamental, Political Power and Social Classes, de Poulantzas.
Esta obra objetiva aplicar um quadro marxista-estruturalista derivado de
Althusser para desenvolver uma teoria "regional" da instância política e do
Estado capitalista. Sua preocupação central, portanto, é com a "relativa
autonomia" do político, os tipos de regimes políticos, a relação entre as
classes e o Estado e questões concernentes à hegemonia e à ideologia do­
minante. Estas são, obviamente, as matrizes de problemas para as quais
também se volta a obra de Gramsci. Assim, por exemplo, Poulantzas abor­
da a distinção entre as "classes fundamentais" e as diferentes alianças de
classe que dominam o Estado — uma distinção também elaborada por
Gramsci.’'* Ambos o fazem apoiados amplamente na análise de Marx
sobre a Grã-Bretanha e em O 18 Brumário e Lutas de Classes na França
(alguns dos pouquíssimos textos de Marx que Gramsci pôde citar e lembrar
em detalhe na prisão). Poulantzas é o primeiro teórico marxista depois de
Lênin e Gramsci a conferir ao conceito "hegemonia" uma posição funda­
mental em sua teoria do Estado. Ele também compartilha com Gramsci (e,
como argumentamos, com o Althusser posterior) uma preocupação com a
função "consolidadora" da ideologia dominante numa formação social.
As muitas sobreposições e convergências, portanto, são claras. Eviden­
temente, como nota Poulantzas, a teorização de Gramsci é m uito menos
sistemática do que a dele. Gramsci nunca faz aquilo que Poulantzas cha­
ma de pleno avanço à teoria da "causalidade estrutural". (Para Althusser,
isto significa o abandono da noção de uma cadeia causai e a tentativa de
"pensar" a relação entre os diferentes níveis de uma formação social em
termos de "uma causa imanente em seus efeitos no sentido spinoziano do
termo. . . Toda a existência de uma estrutura consiste em seus efeitos"
(Reading Capital, p. 189). Poulantzas define-a como a necessidade de
teorizar "a autonomia específica de instâncias do modo de pro­
dução capitalista" (Political Power and Social Classes, p. 139). É evidente
que Gramsci nunca utiliza esta linguagem "estruturalista". Ele não pensa
uma formação social nos termos formais de relações entre "instâncias espe­
POLItlCA E IDEOLOGIA 87

cificamente autônomas". Por isso ele não tem uma teoria desenvolvida
das diferentes regiões de uma formação social, e portanto das teorias apro­
priadas para cada uma delas como teorias "regionais".'” Mas ele insiste, em
todos os seus textos, sobre a "autonomia relativa", a efetividade específi­
ca, do político e do ideológico; e opõe-se com vigor a todas as formas de
reducionismo das superestruturas à base, seja do tipo expressivo, econo­
mista ou espontaneísta. Gramsci também, em Cadernos do Cárcere —
como Poulantzas em PoUtica! Power - dá ampla atenção á política e ao
Estado. Por isso é d ifícil pensar sobre a estrutura teórica do livro de Pou­
lantzas, a não ser em relação ao campo para cuja abertura Gramsci contri­
buiu decisivamente, mesmo quando se admite que a maneira de Poulant­
zas teorizar essa área nãoé gramsciana, mas de caráter rigorosamente althus-
seriano, sendo que sua expressão é de inspiração rigorosamente lenínista. O
problema, portanto, é que Poulantzas é sempre m uito menos simpático a
Gramsci do que o é Althusser: m uito menos generoso em reconhecer seu
débito teórico. Seu ataque ao "historicism o" de Gramsci é m uito mais
purista do que o ataque de Althusser.'” E se alonga em detalhes para des­
vincular sua obra de qualquer contaminação gramsciana.
Algumas destas distinções são autênticas e frutíferas. Outras são dis­
tinções sem diferenças teóricas reais. Um exemplo das primeiras é o debate
sobre "cesarismo" e "bonapartismo" (isto é ainda m uito mais desenvolvi­
do no posterior estudo de Poulantzas, Fascism and Dictatorship). Estes são
os termos empregados por Gramsci quando ele discute tipos diferentes de
resolução política para momentos de crise e ruptura — resoluções não he­
gemônicas ou formas "excepcionais" do Estado capitalista. Gramsci os de­
fine de maneira um tanto inconsistente; Poulantzas, corretamente,
submete-os a um escrutínio mais sistemático. Poulantzas argumenta que o
conceito gramsciano de "cesarismo" refere-se àquele momento excepcio­
nal em que nenhuma das classes fundamentais consegue governar — quan­
do há um equilíbrio de poder, um impasse. O fascismo, contudo, não é o
resultado de um impasse entre classes, m uito embora, sob o fascismo, o
Estado capitalista de fato apresente certas características de "autonom ia"
que Gramsci identificava com uma "solução cesarista".'’* Isto permite a
Poulantzas distinguir entre tipos diferentes do Estado de exceção com mais
cuidado do que Gramsci. Trata-se, portanto, de uma distinção ú til e produ­
tiva.
O caso é bem outro no que tange à "hegemonia".'^® Poulantzas diz u ti­
lizar "hegemonia" para referir-se à "maneira pela qual um bloco no poder
composto de várias classes ou frações politicamente dominantes pode
funcionar". E ele distingue este conceito da maneira como Gramsci o u ti­
liza. Esta distinção parece ser falsa; decididamente, esta é uma das manei­
ras segundo a qual Gramsci utiliza o conceito. Poulantzas faz objeções ao
fato de que Gramsci também utiliza "hegemonia" para referir-se ás estraté-
88 TEORIAS

gías das classes dominadas. Ora, essa questão de se uma classe que não de­
tém o poder do Estado pode ser "hegemônica" apresentou anteriormente
problemas para o uso da obra de Gramsci. Em sua famosa troca de idéias
com Anderson, E.P. Thompson também questionou esta utilização do con­
ceito — adotando no caso paradoxalmente a posição de Poulantzas. Mas a
questão foi colocada de forma mais urgente e prática pela estratégia global
do Partido Comunista Italiano e seu objetivo de conceber uma "hegemo­
nia" social — por exemplo, através do "Compromisso H istórico" com a
Democracia Cristã — antes de assumir o poder do Estado: uma estratégia
para cuja construção, além do mais, o nome de Gramsci tem sido constan­
temente invocado. Se qualquer destas aplicações pode realmente ser san­
cionada com referência à obra de Gramsci, é uma questão aberta. Mas é
certo que, em sua delicada distinção entre uma "guerra de m ovim ento"
(um assalto frontal ao poder estatal) e uma "guerra de posição" (a ocupa­
ção e infiltração das trincheiras e fortificações da sociedade civil), Gramsci
de fato considera o partido da classe operária como, pelo menos, um parti­
do que exige uma "estratégia econôm ica".'* Poulantzas, contudo, argu­
menta, como Lênin, que as classes dominadas "não podem conquistar o
dom ínio ideológico antes de conquistar o poder p o lític o " (p. 204). A d ifi­
culdade é que Poulantzas não se contenta em reafirmar esta posição leni-
nista mais clássica. Ele vai mais além ao atribuir o que considera um erro
de Gramsci ao historicismo de Gramsci. Apesar de, diz ele, a problemática
de Gramsci "ser à primeira vista oposta à tese de Lukács" — o proletaria­
do ascendente como uma classe-sujeito, o portador de uma "visão do
m undo" universal. Isto parece derrubar as muitas diferenças reais e concre­
tas entre Gramsci e Lukács. Como o próprio Poulantzas reconhece em ou­
tras ocasiões, Gramsci de fato aborda teoricamente a "ru p tu ra " entre uma
ideologia dominante. . . e a classe politicamente dominante".^’ De fato,
essa atenção às "rupturas" é que fundamenta, teoricamente, a atenção de
Gramsci à especificidade do político e sua recusa em tolerar qualquer re­
dução ou simples identidade entre base e superestrutura. Este é o terreno
de uma importante e irreversível diferença teórica entre Gramsci e Lukács.
Poulantzas foi levado, por sua premência em atacar o "historicism o" em
todos os seus aspectos, a reduzir esta diferença — e assim a dar uma im­
pressão distorcida da contribuição teórica característica de Gramsci.
Não se trata de uma visão lukácsiana de classes-sujeitos e visões do
mundo imputadas. Trata-se de um conceito ampliado de hegemonia.
Gramsci reaimente usa, como tentamos demonstrar, o conceito de "hege­
m onia" num sentido amplo e abrangente. Ele o utiliza — embora "não
teoricamente" — para tratar de uma questão de suma importância na teoria
marxista: a questão dos meios complexos e freqüentemente indiretos pelos
quais todo o tecido da sociedade capitalista — freqüentemente por meio
daquilo que Althusser chamou uma "harmonia às vezes incompleta"™ — é
POLÍTICA E IDEOLOGIA 89

levado a conformar-se às necessidades a longo prazo do capital. Como já


argumentamos,'esta é a maneira de Gramsci abrir a questão que Althusser
colocou em termos de "reprodução". Como também assinalamos, no mo­
mento em que Althusser avança para esta questão, ele é obrigado a reconhe­
cer toda a importância de Gramsci. Poulantzas utiliza uma definição mais
restrita de "hegemonia". Ele tende a limitá-la ao terreno do p o lítico e do
ideológico na medida em que ela flu i do político e do Estado. É esse trata­
mento mais restrito, aliado à compulsão de atacar o "historicism o", que
produz sua "interpretação errônea" da problemática de Gramsci.^
Isso estabelece, então, uma conexão com certas outras características
da obra de Poulantzas em geral. Sua tendência para "superpolitizar" os
problemas atinentes leva-o a negligenciar o uso que Gramsci faz do concei­
to "sociedade c iv il" (também negligenciado nesse caso como "historicis-
ta "; ver as discussõ'es anteriores sobre esse ponto). E isso, por sua vez, tende
a levar Poulantzas (como argumentamos, também levou Althusser) a colo­
car tudo no terreno do Estado. (Dizemos isto ao mesmo tempo em que
reconhecemos plenamente a grande contribuição de Poulantzas para nossa
conceitualização do Estado capitalista.) É possível que isto tenha algo a ver
com outro aspecto da obra de Poulantzas neste livro: um certo "funciona­
lismo" em sua maneira de tratar o Estado e a ideologia. Quando Althusser
expôs-se ao mesmo problema, ele tentou remediá-lo ao invocar a "luta de
classes"; mas no ensaio sobre os AlE, ele o faz principalmente em notas de
pé de página, à parte e no pós-escrito, não estando tecido no centro da pro­
blemática de seu texto. O apelo à "luta de classes" tem uma função m uito
mais central na obra de Poulantzas — ela é invocada em toda a parte de ma­
neira generalizada. Mas permanece um sentido no qual ela está presente no
discurso de Poulantzas de maneira (para empregar um metáfora althusse-
riana) mais gestual do que teórica. Ora, embora o próprio termo nem sem­
pre esteja presente no texto de Gramsci, seu conceito nunca está ausente.
Para Gramsci não ex\ste nenhum estado ou momento de "hegemonia" que
não seja contestado; nenhum que não seja o resultado das alianças da classe
dominante controlando a luta de classes; nenhuma "hegemonia" que não
tenha que ser conquistada, assegurada, constantemente defendida. E isso
acontece mesmo quando o palco da luta de classes esteja aparentemente
m uito distante do terreno do econômico e do confronto direto entre as
classes fundamentais. E algo desse gênero que leva Gramsci a falar da ne­
cessidade de uma prática hegemônica exercida mesmo pelas organizações
políticas das classes dominadas; o que o leva a identificar a luta contíniíà
pela "hegemonia" mesmo quando o proletariado só pode lutar em terreno
desfavorável — na "guerra de posição". Ele pode, então, estar errado ao
falar da "hegemonia" das classes dominadas — estritamente falando, em
seus próprios termos, trata-se de um conceito contraditório. Mas não está
errado ao empregar o conceito "hegemonia" neste sentido ampliado, ou
90

encará-lo como uma luta para conquistar as classes dominadas, na qual


qualquer "resolução" envolve tanto limites (compromissos) como contra­

I
dições sistemáticas. Poulantzas de fato tende a tratar "hegemonia" como
uma "efetividade funcional" da dominação da aliança de classes no poder -
isto é, a tratá-la de modo não problemático. Disto Gramsci jamais é culpado.
Daí, enquanto para Poulantzas a "hegemonia" se apresenta como um
aspecto mais ou menos garantido da dominação do Estado capitalista por
uma aliança da classe dominante, Gramsci tende a tratar o conceito de uma
maneira mais contestada, mais conjunturalmente localizada. Para Gramsci,
as classes poz/em "governar" durante longos períodos sem serem "hegemô­
nicas": o exemplo da Itália fo i capital neste caso. Pode haver "crises de he­
gemonia" que não resultem num colapso do sistema. Pode haver mudanças
no tipo de hegemonia — momentos em que a "coerção" se afasta do "con­
sentimento", ou vice-versa. De fato, essa distinção a mais que Gramsci traça
entre formas "hegemônicas" e "não-hegemônicas" de dominação permi­
te-nos de modo mais preciso períodizar concretamente momentos e fo r­
mas diferentes do Estado capitalista e diferentes fases em qualquer uma
das formas. Isto nos leva diretamente ao que Gramsci concebeu como cons­
tituindo, por excelência, a especificidade da teoria marxista da política, a
análise de conjunturas particulares, de momentos particulares de "hege­
m onia" e das relações das forças de classe que mantêm um tipo de "equi­
líbrio instável" ou provocam uma ruptura nele. Também levou-o a conside­
rar a natureza dos "compromissos" que permitem a um bloco dominante
consolidar seu governo ao conquistar classes subalternas para o seu lado; e
examinar não apenas qualquer "equilíbrio de foiças" particular, mas ainda
o que a tenaência predominante em tal equilíbrio consistia — oferecendo
um terreno favorável ou desfavorável para a luta de classes, definindo assim
a estratégia para o partido do proletariado. Longe disto constituir, para to ­
dos os propósitos práticos, uma perspectiva lukácsiana, com a atribuição
de uma forma particular de "consciência de classe" a uma classe-sujeito in-
diferenciada, os conceitos de Gramsci aqui parecem apontar diretamente
para o terreno de Lénin: a "análise concreta de situações concretas". Sua
aplicação na análise de toda uma variedade de conjunturas políticas pare­
ce-nos rica em promessas — e mal começou.
Contudo, não é surpreendente —considerando o que argumentamos —
constatar que Poulantzas também discorda da distinção que Gramsci faz
entre "hegemonia" e "dominação", atacando Gramsci por este reservar o
termo "hegemonia" para aqueles momentos em que o consentimento pre­
valece sobre a coerção. Poulantzas faz objeções a esta distinção — funda­
mental para Gramsci (preso ás dicotomias coerção/consenso, dominação/
direção, etc.). Ele critica Gramsci por dizer que existe sempre uma "com ­
plementaridade" entre aqueles dois elementos de poder político ou estatal.
O Estado, argumenta ele — em acréscimo — não pode ser "hegemônico";
p o l ít ic a e i d e o l o g ia 91

somente as classes dominantes podem ser "hegemônicas". Com respeito à


primeira objeção, só podemos dizer que existe uma complementaridade
entre coerção e consenso, e a distinção é frutífera. E notamos como o pró­
prio Althusser considerou-a útil quando, no artigo sobre os A IE , ele de­
monstrou como os aparelhos de consenso também funcionam por coerção
(por exemplo, a censura dos meios de comunicação) e os aparelhos de co­
erção exigem consenso (a preocupação da polícia com sua imagem pública).
Com respeito à segunda objeção, parece verdadeiro que o Estado como tal
não pode ser "hegemônico". Mas o Estado desempenha uma função crucial
em elevar a dominação de uma aliança de classe particular sobre uma fo r­
mação social ao nível do consenso. Isto capta com precisão o conceito de
como o Estado funciona para manter a "hegemonia" ao conquistar, assegu­
rar e consolidar o "consenso" das classes dominadas. Esse também é o con­
ceito de Marx do Estado como o ponto de "universalização" — a legitima­
ção do governo de classe, o torná-lo invísivel, ao dar a forma do "interesse
geral" ao que são na realidade os interesses de frações de classe particulares.
O próprio Poulantzas explorou e desenvolveu fecundamente este argumen­
to.*® Mas reduzindo os dois "pólos" do poder do Estado — coerção e con­
senso — e restringindo a "hegemonia" exclusivamente às classes dominan­
tes, Poulantzas parece negligenciar aquilo que em outos pontos ele tem
dificuldade em acentuar: a saber, por que o Estado capitalista, baseado no
sufrágio universal, é por excelência o lugar necessário para a generalização
da dominação de classe. Assim, em sua pressa em se distinguir de Gramsci,
Poulantzas parece negligenciar argumentos, implícitos em Gramsci e em
geral bem desenvolvidos, que na verdade apoiam sua própria posição te óri­
ca. É certo que Poulantzas reconhece a importância do "consenso" para a
normalização da dominação no Estado capitalista, mas às vezes ele parece
considerá-lo uma coisa automática. O tratamento que Gramsci dá ao pro­
blema do Estado capitalista como, acima de tudo, um exercício na conquis­
ta e manutenção do consenso dos dominados à sua própria dominação não
nos permite nem por um momento negligenciar esse aspecto central da luta
de classes e do poder do Estado. E certamente verdade que, como argu­
menta Poulantzas, as "percepções" de Gramsci são provisórias e não siste­
máticas. Althusser chama-as de "brilhantes" —repetindo o termo que Marx
aplicou a um ensaio inicial de Engels que o influenciara grandemente; a
referência de Althusser pode ser encarada como um reconhecimento im p lí­
cito de um débito teórico.** Poulantzas e Gramsci exibem aqui forças — e
fraquezas — opostas. O que Gramsci perde ao nível da teorização sistemá­
tica, ele ganha ao nível da análise conjuntural. O que Poulantzas ganha com
seu rigor teórico, ele perde ao nível do específico e do concreto — a fonte
de seu funcionalismo residual. As referências de Gramsci às lutas de classe
e a conjunturas específicas — e o movimento entre conjunturas — são sem­
pre detalhadas, iluminando formações sociais particulares. Poulantzas ten-
92 TEORIAS

de a recorrer a conjunturas particulares "em forma de ilustração" (pelo


menos nesse livro) e a se sentir melhor quando trata de aspectos e funções
sistemáticas, menos afinado com "momentos nas relações de força". Gos­
taríamos de dizer que os conceitos de Gramsci são sempre conjunturais —
não há funções "gerais" ou conceitos "gerais". Isto é ao mesmo tempo
uma força e uma fraqueza. Poulantzas possui uma teoria de regiões mais
desenvolvida — de instâncias regionais e da autonomia específica de níveis
de uma formação social. Gramsci trabalha com um conceito de estrutura-
superestrutura fundido ou acoplado. Poulantzas é certamente mais claro,
mais rigoroso. Gramsci é mais dinâmico, menos fixo na forma de uma
combinatória de instâncias.

Não se trata, portanto, de uma questão direta de uma escolha teórica


entre Gramsci e Poulantzas. Se, como argumentamos, Gramsci constitui
algo como o caso lim ite para os marxistas estruturalistas, este encontro
teórico é incompleto, como os Essays in Self-Criticism de Althusser revelam
de maneira claríssima. O problema é que Poulantzas tende a fechar este
debate teórico. E ele assim o faz através do mecanismo — somos quase
tentados a chamá-lo de compulsão —de não apenas atacar o "historicism o",
mas de reduzir todos os "historicismos" â figura de um único Inimigo, ge­
ral e teórico; reduzi-los todos a seus elementos "historicistas", a sua lógica,
para depois atacar a problemática historicista onde e quando ela surge. É
isso que leva Poulantzas a superexagerar suas diferenças com Gramsci e,
assim, a simplificar a natureza do marxismo de Gramsci.

A conseqüência desse procedimento reducionista, e do "purism o" teó­


rico que o informa, é que ele deixa Poulantzas numa posição em que este
não está livre para reconhecer seu débito intelectual e teórico para com
Gramsci. Poulantzas apresenta Gramsci como uma figura mais reduzida do
que o faz seu grande mentor, Althusser. Nesse sentido, ele é mais althusse-
riano do que Althusser. Esta tendência é discernível em outros textos —
por exemplo, na "ortodoxia althusseriana" mais mecânica do capítulo
inicial de Poder Político e Classes Sociais. É particularmente d ifíc il susten­
tar essa ortodoxia uma vez que o próprio Althusser insiste em reexaminar e
redefinir constantemente sua própria posição — sempre, é claro, com seu
tipo pessoal de certeza polêmica. De um modo geral, há um agudo contras­
te entre Poulantzas e Althusser na maneira pela qual eles "apropriaram "
Gramsci. Nesse exercício, foi Althusser quem mais se aproximou de dar o
devido reconhecimento á complexidade necessária da obra de Gramsci. O
fato de Gramsci ter sobrevivido a essa apropriação, conservando sua posi­
ção independente, é um testemunho de sua permanente estatura como teó­
rico e militante marxista.
P O L friC A E ID E O L O G IA 93

V I Conclusão

Este artigo empreendeu duas tarefas que, esperamos, contribuirão para a


atual e ampla discussão de Gramsci. Em primeiro lugar, foi explicado como
o conceito "ideologia" relaciona-se e é apreendido na matriz teórica de
Cadernos do Cárcere. Em segundo lugar, a idéia de que Gramsci era um his-
toricista no sentido forte e simples foi rejeitada. A questão de se ele era um
historicista, e até que ponto, levanta em qualquer sentido tantos problemas
acerca da extensão do conceito de historicismo quanto acerca de Gramsci.
Argumentamos, com respeito á primeira tarefa, que não existe uma
teoria "ó bvia " da ideologia na obra de Gramsci. M uito embora esta teoria
possa ser construída a partir de seu "estado prático" nos Cadernos, o con­
ceito somente se torna significativo na medida em que ele se subordina ao
corpo de conceitos geral e politicamente inspirado de Gramsci. No centro
deste corpo estão as noções de "hegemonia", "senso com um " e os "in te ­
lectuais". Ora, para Gramsci esses conceitos existem para que se possa
examinar conjunturas históricas específicas; ou, para falarmos em termos
mais políticos, para analisar o equilíbrio de forças dentro de conjunturas
específicas. Trata-se, portanto, de conceitos de materialismo histórico.
Conseqüentemente, não surpreende que Gramsci se preocupe mais com
ideologias específicas do que com a questão da ideologia em geral. Isso
não quer dizer que os conceitos de ideologia ou hegemonia não sejam
conceitos gerais que podem ser definidos em nível geral (se — para Gramsci
— eles têm valor lim itado naquele nível). Contudo, isto é o mesmo que in­
sistir que ele não se refere a entidades gerais. A ideologia em geral não é,
para Gramsci, um objeto legítimo de exame. E já que ele não aceita uma
divisão entre o marxismo como ciência histórica e como filosofia (materia­
lismo dialético),®^ a ideologia em geral não poderia ser reconhecida como
um objeto legítimo para o marxismo. Conseqüentemente, embora Gramsci
não possa ser encarado como um relativista em relação à condição da teo­
ria (os conceitos não são inteiramente redutíveis às situações históricas ás
quais se referem), é certamente verdadeiro que o marxismo, para Gramsci,
é de uma só vez e ao mesmo tempo uma teoria filosófica e histórica de
fenômenos específicos, e somente específicos. A ideologia não é exceção.
Também argumentamos neste artigo que Althusser e Poulantzas,
apesar de suas críticas às formas historicistas do marxismo (e Gramsci é aí
incluído), têm maior débito teórico para com Gramsci do que eles (Pou­
lantzas em particular) estão dispostos a adm itir. Isto é especialmente ver­
dadeiro no que diz respeito a questões referentes ao papel e à autonomia
relativa da política e do Estado. A relação de teóricos tais como Althusser
para com o "historicism o" complexo de Gramsci torna-se complexa quan­
do consideramos as proposições apresentadas na xecente A utocrítica de A l­
thusser. Em vista disto, concluímos este artigo com um esboço desta posi-
94 TEORIAS

ção. Dissemos que Gramsci não se "ajusta" bem ao critério historicista.


Se, á luz da Autocrítica, este critério parece menos sólido do que acredi­
tou-se antes, então a obra de Gramsci não somente escapa a uma conde­
nação sumária das hostes anti-historicistas; ela pode ser recolocada numa
posição central em discussões sérias daquelas questões teóricas do marxis­
mo que continuam inadequadamente tratadas.

A critica do historicismo fo i em grande parte baseada nos argumentos


de Lite "L e Capital".^^ Para os nossos propósitos, o mais importante
desses argumentos é a afirmação de que o marxismo oferece uma epistemo-
logia científica e única; uma epistemologia que separa em definitivo o mar­
xismo de qualquer forma de empirismo ou idealismo. 0 historicismo obvia­
mente contém elementos de ambos. Se o caráter científico do marxismo
pode ser demonstrado em termos teóricos gerais, seguir-se-ia que todas as
formas ou elementos de historicismo nada têm que ver com o marxismo.
Deve ficar explícito aqui que tal argumento fundamenta-se na noção de
que a filosofia marxista é a única capaz de fazer tais distinções de cien-
tificidade. O materialismo histórico, ao contrário, tem objetivo bem dife­
rente: a análise de conjunturas concretas. (Alguns dos outros problemas de
Lite "Le C apita!" estão indicados em outra parte desta coletânea, sendo
portanto omitidos aqui.)

A autocrítica de Althusser rejeita a idéia de uma filosofia científica.


Ele reafirma a posição, implícita num marxismo mais "o rto d o x o " e explí­
cita em Gramsci, segundo a qual não existe ciência em geral nem uma dis­
ciplina como filosofia na medida em que esta última afirma ser o fiador ló­
gico da "Ciência". Althusser argumenta que, apesar das afirmações em Lire
"Le C apitai" no sentido contrário, um procedimento desse tipo não pode
escapar aos "problemas de conhecimento" (burgueses). Ora, no texto an­
terior, a ideologia (em geral) é definida em oposição lógica à ciência (em
geral). Contra esta posição "especulativa", Althusser sustenta agora que a
ciência deve ser entendida como "o mínimo de generalidade necessário
para poder apreender um objeto concreto".®^ Essa generalidade concei­
tuai, além do mais, deve ser situada dentro do materialismo histórico.*®
Se a autocrítica de Althusser está correta, então o divórcio generalizado
entre ciência e ideologia como uma proposição epistemológica deixa de ser
um princípio do marxismo, e com sua morte caem os argumentos que lhe
são dependentes. Pelo menos uma parte do argumento contra o historicis­
mo situa-se nesta categoria. Pois o historicismo implica uma oposição à
separação entre materialismo dialético e histórico, concentrando-se sim­
plesmente na redução dos conteúdos de teorias e ideologias á "expressão"
de suas condições e seus efeitos históricos — aspectos que fatalmente cai-
riam no eixo do marxismo filosófico. Seria, então, o caso de que os histori-
cistas estão, no final das contas, corretos?
p o l ít ic a e i d e o l o g ia 95

Felizmente, as coisas raramente são tão simples assim, e os debates


teóricos não são exceção. Defendendo o que consideramos os conceitos
fundamentais de Gramsci, não queremos dizer que a critica de historicismo
está equivocada. Nem estamos sugerindo que não possa haver uma volta
a uma interpretação "inocente" de Gramsci à luz da intervenção estrutura-
lista. Em vez disso, argumentamos que isto envolve um perigo de classificar
conceitos genuínos de materialismo histórico sob aquela categoria genera­
lizada. Existe, portanto, uma necessidade de reexaminar, por exemplo, a
idéia de que há uma equivalência teórica entre rec/tyz/V teorias e ideologias
às suas condições históricas de existência e relacionar teorias e ideologias a
tais condições. A segunda possibilidade, parece-nos, é uma proposição do
marxismo; a primeira, não. Igualmente, o próprio Althusser opôs-se de
modo intransigente ao historicismo, ao empirismo e ao idealismo, e quanto
a isso o problema não é de fácil solução. De modo específico, a A u to c ríti­
ca implica uma rejeição de apenas alguns àos aspectos da problemática ge­
rada em Lire "Le Capital". Na verdade, pode-se argumentar de maneira
plausível que a posição mais recente é internamente inconsistente (ou pelo
menos é uma obra "de transição” , à espera de tratamento mais corppieto)
e que, em conseqüência, uma teoria unicamente marxista do conhecimento
e da ideologia em geral ainda é uma necessidade. É certo que a filosofia
continua desempenhando, para Althusser, uma função teórica especial
(ainda que rebaixada) em relação às ciências.
Estas importantes questões não podem ser apreciadas aqui. O que
podemos afirmar é que ainda estão por ser feitos progressos no dom í­
nio da autodefinição do marxismo. Quaisquer que sejam os problemas pre­
sentes na perspectiva teórica de Althusser, sua afirmativa de que os concei­
tos da ciência e da ideologia devem ser incluídos no materialismo histórico
e não na filosofia não pode ser facilmente rejeitada. Trata-se de uma afir­
mativa feita de maneira consistente e persuasiva por Gramsci na elaboração
de seus conceitos científicos (em oposição aos filosóficos). Trata-se de uma
contribuição que devemos reconhecer abertamente.

Este ensaio fo i impresso antes da publicação do longo estudo de Perry


Anderson sobre Gramsci na New L e ft Review, 100. Não houve, portanto,
oportunidade de incluir qualquer exame da interpretação de Anderson
neste ensaio.

NOTAS

1. Gramsci, 1971, p. 376.


2. 1971, p. 164-5.
3. 1971, p. 164.
96 TEORIAS

4. 1971, p. 60.
5. 1971, p. 177.
6 . Segundo Norbeto Bobbio [Gramsci e Ia Concezione delia Società 'CivUe', Fel-
trinelli, 1971), o uso que Gramsci faz de "sbciedade civil" marca um corte radi­
cal com a tradição marxista. Enquanto Marx usa o termo para designar "tod o o
complexo das condições materiais de vida" (isto é, como um aspecto da base),
Gramsci mantém a "sociedade civil" na superestrutura. Com base nessa inter­
pretação, Bobbio faz uma leitura dos "Cadernos" em que a determinação da
base sobre a superestrutura é invertida, e as condições "objetivas" são transfor­
madas em instrumentos potenciais da subjetividade de classe. A fraqueza da in­
terpretação se torna evidente quando ele Identifica o uso analítico que Gramsci
faz de "sociedade civil" na sua obra histórica como simplesmente um meio de
identificar os biocos "progressista" e "reacionário". Bobbio está tentando reco­
locar Gramsci no modelo historicista, e consegue tornar seus escritos bastante se­
melhantes aos de Lukács.
7. Gramsci, 1971, p. 1 2 .
8. 1971, p. 52.
9. 1971, p. 208.
10. 1971, p. 265.
11. 1971, p. 181.
12. 1971, p. 139.
13. 1971, p. 328.
14. 1971, pp. 376-7.
15. Marx, 1970, p. 64.
16. 1971, p. 78.
17. 1971, p. 83.
18. CarI Boggs (1976) tende a fazer ambas as coisas. Em sua tentativa de refutar o
economismo da II Internacional, ele reproduz o outro lado da mesma problemá­
tica, isto é, o "historicism o". Por exemplo, sua explicação da hegemonia é em
termos de "permeação" dos sistemas de valores: "Hegemonia nesse sentido pode
ser definida como um 'principio organizador' ou 'visão de mundo' .. . difundido
por órgãos de controle ideológico e socialização em cada área da vida." O con­
ceito de hegemonia de Gramsci é, portanto, reduzido a um modelo marcuseano
de controle social. Charles Woolfson (1976), em seu artigo "Semiotics of Work-
ing-Class Speech", diz claramente que "toda hegemonia numa sociedade de clas­
ses é necessariamente limitada e incompleta, e existe em tensão"; contudo, ele
mistura hegemonia com dominação ideoiógica e subordinação
19. 1971, p. 161.
20. 1971, p. 57.
21. 1971, p. 442.
22. 1971, p. 357.
23. Isso se torna particularmente evidente quando se lê as "Cartas da Prisão", de
Gramsci {Letters from Prison, New Edinburgh Review Special Editions 1974)
24. 1971, p. 348. '
25. 1971, p. 324.
26. 1971. p. 355.
27. 1971, p. 420.
28. 1971, p. 325.
29. 1971, p. 333.
30. 1971, pp. 14-15.
31. 1971, p. 408.
32. 1971, p. 12.
33. 1971, p. 258.
34. 1971, p. 275-6.
35. 1971, p. 238.
36. 1971, p. 57.
37. 1971, p. 331.
38. 1971, p. 339.
39. 1971, p. 198.
40. 1971, p. 331.
41. 1971, pp. 272-3.
42. 1971, p. 165.
43. 1971, p. 197, p. 331.
44. 1971, p. 328.
45. 1971, p. 377.
46. 1971, p. 152.
47. 1971, pp. 152-3.
48. 1971, p. 403.
49. 1971, pp. 445-6.
50. 1971, p. 405.
51. 1971, p. 417.
52. 1971, p. 407.
53. 1971, pp. 432-40.
54.1971, pp. 446-7.
55.1971, p. 403.
56.1971, p. 376. _
57.Todo o artigo de Althusser "Contradição
quanto a isso.
58. Ver, especialmente, a seção intitulada "Analysis of Situations, Relations of
Force", no ensaio "The Modern Prince", Prison Notebooks, pp. 175-85.
59. Capi tulo 5 de Lire "L e Capital".
60 "Ideology and Ideological State Apparatuses: Notes towards an Investigation",
em Lenin and Philosophy and Other Essays, New Left Books, 1971. Menciona­
do como "o artigo sobre os A IE ".
61. Althusser diz que o caso de Gramsci é uma "situação-limite" em "Marxism is
not a Historicism", p. 131.
62 As primeiras formulações de ideologia como "relações imaginárias vivenciadas
encontram-se na seção IV do ensaio de Althusser "Marxismo e Humanismo , em
A Favor de Marx. Foram depois desenvolvidas em Lire "Le Capital", mas espe­
cialmente no ensaio sobre os AIE.
"Finalmente, assim como seu uso polêmico e prático do conceito, Gramsci tam­
bém tem uma concepção verdadeiramente 'historicista' de Marx; uma concepção
'historicista' da relação entre a teoria de Marx e a história real” . Althusser em
"Marxism is not a Historicism", p. 130.
A primeira investida critica de Althusser sobre o conceito de "sociedade civil"
aparece no contexto de uma discussão sobre "o fantasma do modelo hegeliano
novamente" e a assim chamada "inversão" que Marx fez de Hegel. Ver o ensaio
"Contradiction and Over-Determination", pp. 108-11; e Reading Capital, pp.
162 e segs.
Dado que a expressão "sociedade civil" aparece aqui no que (para esse texto)
deve ser considerado como uma formulação seminal, a leitura que Althusser faz
dessa expressão parece forçada: "Evidentemente, Marx ainda está falando de so­
ciedade civil' (especialmente em A Ideologia Alemã . .), mas como uma alusão
ao passado, para denotar o âmbito de suas descobertas, não para re-utilizar o
98 TEORIAS

conceito' . Seria mais exato dizer que aqui Marx realmeme "u tiliz a " o conceito
de modo transfigurado, Indicando assim o âmbito de suas descobertas. ..
66 . O argumento de Althusser é que a referência á "sociedade de necessidades" desa­
parece do discurso de Marx: portanto, ele não só inverteu, mas rompeu com
Hegel. Contudo, descobertas teóricas não podem ser limitadas a "fazer desapare­
cer velhos conceitos", devem também retê-los, mas numa posição alterada
dentro do discurso: ou designando o espaço teórico a que se referem diferente­
mente. Althusser sabe disso, pois tanto Marx quanto Hegel utilizam "a dialéti­
ca , embora, como ele demonstra, tenha significados diferentes para cada um
Sempre que Althusser aborda a questão da "inversão", parece ser compelido a
forçar distinções, que são corretas e necessárias, até um ponto absoluto Isso é
devido a uma utilização demasiadamente rigida de "corte epistemológico" - o
que o próprio Althusser reconheceu em sua Autocrítica.
67. Cf. Marx a Engels, 2 de abril de 1858: "A circulação simples, considerada em
S I mesma - e é a superfície da sociedade burguesa, obliterando as operações
mais profundas das quais emerge - não revela diferença entre os objetos de
troca, exceto diferenças formais e temporárias. Esse é o reino da liberdade igual­
dade e propriedade baseada no 'tra ba lho '... O absurdo, por um lado, dos que
pregam a harmonia econômica, os defensores modernos do livre comércio . . . em
manter essa relação bastante superficial e abstrata como sua verdade em contras­
te com as relações de produção mais desenvolvidas e seu antagonismo. (Por
outro lado), o absurdo dos proudhonistas . .. em opor as idéias de igualdade
etc., correspondentes a essa troca de equivalentes (ou coisas supostamente equi­
valentes) as desigualdades etc., que resultam dessa troca e que constituem sua
origem." Para uma exposição mais detalhada do mesmo argumento, ver os
capítulos 48, 49 e 50 de O Capitai, vol. III, parte V III.
68 . Inesperadamente, Althusser descobre uma confirmação dessa ruptura em Grams-
ci. Como um marxista consciente, Gramsci Já havia apresentado essa objeção
numa frase. A distinção entre público e privado é uma distinção inerente ao d i­
reito burguês e valida nos domfnios (subordinados) nos quais o direito burguês
exerce sua autoridade'." ("Ideological State Apparatuses", p. 253.) Evidente­
mente, Althusser está certo ao considerar que a distinção público/privado é
principalmente imposta pelo direito burguês e que, portanto, a fronteira entre
eles esta constantemente sendo alterada. Mas está errado se estiver argumentan­
do que a questão de onde, em qualquer momento histórico especifico, essa fron­
teira foi traçada e irrelevante para Gramsci. Como Althusser observa, sem tecer
comentários, na nota 5, quando Gramsci teve a "notável idéia" de acrescentar a
greja, as Escolas, os sindicatos etc." aos aparelhos repressivos do Estado "ele
in cluiu... um certo número de instituições da sociedade c iv ii" . Assim 'para
Gramsci, a distinção publico/privado continuava sendo importante, embora não
determinante na última instância".
69. Ver os ensaios de Gramsci "Os Intelectuais" "Sobre as Escolas" e "Americanis-
mo e Fordismo" em Cadernos do Cárcere.
70. Esse argumento é desenvolvido detalhadamente em Poulantzas, Classes in Con-
temporary Capitaiism, 1974.
71 Ver, especialmente, Political Power and Social Classes, pp. 227-52.
72. Sobre uma "estrutura regional como um obfeto de ciência", ver Political Power
pp. 16-18. '
73. Por exemplo, Political Power, pp. 137-9.
f4 Os trechos relativos a 'Cesarismo", "Bonapartismo" e "Fascismo" encontram-se
principalmente em Political Power, pp. 258-62.
99
POLfriCA E IDEOLOGIA

75 O conceito de "hegemonia" e as diferenças entre sua utilização e o uso que


' Gramsci faz desse conceito são examinados detalhadamente por Poulantzas em
Po//f/ca/Pokve/-, pp. 137-9 e 204-5. ^
76 G ram sci e la b o ra as distinções entre "guerra de posição e guerra de manobra
em "Notes on Italian History", pp. 108-10 e em "State and Civil Society . pp.
229-35, ambos em Prison Notebooks.
77. Political Power, p. 204.
78. A frase édo en saio sob reosA IE , p. 257. _
79 O trecho seguinte é um bom exemplo do que ele entende por
■ captar a relação entre esses dois 'momentos' ('força' e 'consenso ) ele (Gramsci)
utiliza o significativo termo 'complementaridade'. Dai surge uma confusão das
áreas em que a hegemonia é exercida, sendo a força exercida pelo Estado na
sociedade 'política', a hegemonia na 'sociedade civil' por meio da organizaçao
usualmente considerada como privada.. Essa distinção é a chave para o modelo
com o qual o historicismo apreendia as relações entre o economico e o político,
via o político (a luta de classes) como o motor, a força, das 'leis economias
concebido de modo mecanicista; em outras palavras, a política e concebida
como o motor do 'autonomismo' econômico." {Political Power, p. 26.)
A "complementaridade" entre os momentos de força e consenso pertence,
evidentemente, a Gramsci. Contudo, ele não atribui simplesmente a força à so­
ciedade política e o consenso à sociedade civil. Portanto, nao se pode concluir
que Gramsci pensa a relação entre o político e o econômico de modo h'S toric^
ta Seria certamente difícil reconciliar qualquer leitura de Gramsci considerando
a política como o motor das leis econômicas automáticas "concebido de manei­
ra mecanicista". Além do mais, o movimento final nesse reducionismo parece
operar por trás de um jogo de palavras - a palavra "fo rça " - que nao e confir­
mado por uma leitura de Gramsci (isto é, ele nunca utiliza ' momento de força
para se referir à política como "a força" das leis economicas automáticas). Re­
sumindo, quanto mais o argumento avança, mais claramente emerge o histori-
cismo" como um desvio teórico - mas também tanto mais nos distanciamos de
uma leitura que se refira de modo reconhecível à obra de Gramsci.
Particularmente em Political Power, pp. 210-28 ("Ideologia Política Burguesa e
80.
Luta de Classes") e pp. 274-307 ("O Estado Capitalista e o Campo da Luta de

81. Ver PourM arx, Maspero, 1965, p. 78 e 114n. Génial em francês, mas "b rillia n t
em inglês, em vez do "genial" em For Marx, p. 81 n. e p. 114n.
82. 1971, pp. 38, 434-5.
33_ \ / 0 r o artigo sobre Althusser nesta coletânea.
84. Althusser, 1976, p. 1 1 2 n., grifo no original.
85. íô/cí., p. 124/7.

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Capital", 2 volumes. Rio, Zahar, 1979.1
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C. Woolfson (1976) "Tlie Semiotics of Woriting-Class Speech" in IVorking Papers In
Cultural Stud/es 9, Birmingham,

l
A Teoria de Althusser sobre Ideologia

Gregor McLennan,
Victor Molina, Roy Peters

I Introdução geral a Althusser

A obra de Louis Althusser tem sido a mais significativa contribuição para


a teoria marxista em muitos anos. Nenhuma outra figura provocou tantos
debates e controvérsias estimulantes. O fato de sua obra ter encontrado
duras críticas não deve mascarar os efeitos benéficos gerais que seus impor­
tantes textos exerceram sobre a reavaliação e o esclarecimento daquelas
idéias que no contexto teórico e político de hoje são consideradas os con­
ceitos "básicos" do materialismo histórico. Todavia, nem todas as suas
concepções podem ser aceitas. De fato, neste artigo, lançaremos dúvidas
sobre algumas delas. Entretanto, não pode ser questionada a importância
da contribuição de Althusser. De modo particular, ele tem insistido acer-
tadamente em que uma crítica do stalinismo e do economismo e uma
interpretação exageradamente humanista de Marx devem ser fundamenta­
das teoricamente, e que tal desenvolvimento pode revelar muitas interco-
nexões submersas entre escolas aparentemente opostas do pensamento so­
cialista. Na linguagem althusseriana, estas escolas partilham da mesma
"problem ática", ou série de questões e pressuposições. Através deste escla­
recimento teórico, o objetivo de Althusser é deixar o marxismo mais bem
equipado para um confronto com as principais filosofias antimarxistas.
Investindo igualmente contra a interpretação mecanicista^da metáfora
"base-superestrutura" e contra a visão essencialista ou hegeliana da to ta li­
dade social, Althusser propõe um conceito bastante distinto do todo social
(formação social). Isto será delineado sumariamente mais adiante. Althus­
ser expõe a natureza fundamentalmente irracional de concepções da socie­
dade que justificam uma visão "economicista" ou "tecnicista" da história;
ou a assertiva da centralidade de agentes humanos, ou classes de agen­
tes, como sujeitos autoconstituídos da história. Ambas estas concepções e
sua conseqüente política, argumenta Althusser, compartilham uma concep-
102 TEORIAS

ção essencialista, e metafisicamente derivada, da história como um processo


em desdobramento que não ocupa qualquer lugar no marxismo científico.
Através de sua preocupação com racionalidade e cientificidade — e al­
guns argumentariam ser esta sua principal realização — Althusser reintro-
duz questões epistemológicas básicas na esfera da teoria marxista. Assim,
por exemplo, a idéia de que a história se desenvolve no sentido de um obje­
tivo (seja ele técnica ou espiritualmente definido) implica que os conceitos
analíticos utilizados para descrever tal processo só podem receber tais jus­
tificativas de sua realização naquele processo. Em concepções desse tipo,
pensamento e "realidade" formam uma única e indiferenciada unidade
derivada de um processo teleologicamente definido. Todavia, elas não con­
seguem fazer distinções analíticas cruciais entre diferentes categorias e
entre categorias e realidade (simplesmente "exprimem-se" mutuamente).
Althusser acusa o humanismo e o economicismo de compartilhar essa
mesma concepção "historicista". Sua intervenção surge tanto a partir de
uma preocupação com a racionalidade e com um modo teórico relativa­
mente autônomo de validade conceituai quanto com o fato de ser ela uma
polêmica política. Ao longo de toda sua obra Althusser argumenta que
essas noções "suspeitas" (teleologia, causalidade, processo, "práxis" in­
diferenciada, a "correspondência" de conceitos com "realidade") devem
ser totalmente erradicadas em nome de uma racionalidade científica ca­
paz de atribuir ao marxismo seu legítimo e bem distinto "continente"
de conhecimento.
Colocamos estas questões de maneira sucinta e provocativa. Elas são
levantadas não como um esboço definitivo do pensamento de Althusser,
mas devido a um certo número de motivos menos ambiciosos. Primei­
ramente, estas questões constituem o contexto indispensável da teoria
da ideologia de Althusser. Em segundo lugar, elas estabelecem a questão de
até que ponto sua contribuição ao marxismo é primordialmente uma con­
tribuição epistemológica. Em terceiro lugar elas demonstram que seja qual
for o grau de clareza alcançado em nossa exposição de "ideologia", muitos
pontos de debate terão que ser referidos ao tipo de explicação minuciosa
de todos os aspectos dos textos de Althusser, o que é obviamente impossí­
vel aqui, mas que deve ser feito se quisermos que uma crítica rigorosa e
uma avaliação séria de sua obra — política, epistemológica e genuinamente
marxista — substituam reações emocionais apressadas. Pois Althusser, maik
do que a maioria dos teóricos, demonstrou como criticar "problemáticas"
rigorosamente — inclusive a sua própria.

II Formação social e superestrutura

Nosso artigo tem como objetivo acompanhar de perto a temática geral da


presente coletânea, a saber, a ideologia. Não visa a um compromisso siste­
A TEORIA DE ALTHUSSER 103

mático com os muitos outros problemas teóricos de importância gerados


pela obra de Althusser. Mas na tentativa de analisar o conceito de ideologia
de Althusser, tornou-se necessário situar as várias formulações no contexto
de seu "sistema" teórico como um todo.'E m Althusser, provavelmente
mais do que em outros autores marxistas, a "ideologia" está integralmente
relacionada a vários outros conceitos importantes, particularmente os de
"ciência" e "formação social". Em alguns textos, especialmente A Favor
de Marx, a ideologia é concebida como um nível que, juntamente com os
"nfveis" econômico e político, compreende uma formação social. Em
outras obras. Ler "O Capital", por exemplo, a classificação do conceito
é principalmente epistemológica. Essa distinção, contudo, não deve ser
aceita como definitiva. Nas seções que se seguem procuramos desembara­
çar sua combinação e separação numa série de textos ou "fases". De fato,
existe um outro aspecto do conceito que percorre todos os textos de A l­
thusser, a saber, o de que a ideologia constitui o tecido da sociedade (por
exemplo, "Marxismo e Humanismo" e "Ideologia e Aparelhos Ideológicos
do Estado") na medida em que é o meio no qual ocorre toda a história e
o relé por meio do qual os homens vivem" sua relação com suas reais con­
dições de existência. Somente o termo "ideologia" é freqüentemente invo­
cado para especificar qualquer um destes significados, mas pode também
condensar uma pluralidade de usos. É importante, portanto, evitar-se qual­
quer supergeneralização desnecessária de aplicações particulares do termo
relacionando-o, e enraizando-o, com o conceito de formação social de
Althusser. Pois é este últim o conceito que está situado no centro de seu
empreendimento teórico. Como um prefácio para uma discussão mais de­
talhada de ideologia, propomos uma avaliação necessariamente esquemáti-
ca da formação social, em primeiro lugar.
O materialismo histórico é a ciência da história das formações sociais.
Um ponto central da contribuição de Althusser ao marxismo é sua explica­
ção da natureza dessa formação social que se baseia numa reformulação
particular da clássica unidade estrutura/superestrutura. Com esta reformu­
lação, Althusser transforma toda a problemática da dialética marxista,
submetendo-a ao primado do materialismo.* A especificidade da dialética
marxista (de sua estrutura e formas) consiste no fato de ser ela a dialética
de um tipo particular de materialismo que deve ser fundamentada num
conceito adequado da formação social.
O aspecto que distingue qualquer formação social deve ser encontrado
na unidade particular de níveis ou instãnciasia estrutura econômica (a ba­
se) e as sup,erestruturas política e ideológica. Estes níveis são diferentes
não apenas porque se referem a práticas ou objetos distintos, mas também
porque cada um deles difere em sua capacidade de determinar os outros
(seu grau ou índice de "eficácia"). A unidade que formam baseia-se numa
relação hierárquica entre os níveis nos quais constatamos que o nível eco-
104 TEORIAS

nômico determina, em últim a instância, os níveis político e ideológico,


mas sendo ao mesmo tempo superdeterminado por cada um deles.
A relação entre estrutura e superestrutura não é uma relação de "e x ­
pressão" em que as superestruturas são reflexos ou "fenômenos" derivados
da estrutura ou essência econômica. Antes, as superestruturas poderiam
ser vistas como sendo as condições necessárias de existência da base econô­
mica. A relação é de determinação recíproca, embora haja um desniveia-
mento nesta determinação porque ela é governada pela determinação em
úitima instância pelo econômico. Nesse sentido, a superestrutura possui
uma autonomia relativa com respeito à base: ela tem uma independência
relativa, cujos parâmetros são não obstante fixados por sua dependência
definitiva da "determinação em última instância".
Em oposição a uma totalidade simples, expressiva, uma formação
social existe sempre como um todo complexo estruturado. Seus elementos
e contradições são mantidos em relações determinadas de dominação e su­
bordinação. Althusser distingue entre o elemento numa formação social
que é determinante (que é sempre o econômico) e o que é dominante. Isto
é, que as mais importantes condições de existência de uma formação social
não são necessariamente econômicas. Nas formações sociais da Antiguida­
de, por exemplo, a política era o nível dominante. Contudo, o econômico
permanece determinante no sentido em que os níveis dominantes (e ou­
tros) são condições de existência de um modo específico de produção
econômica. Não existe, pois, um primado simples, unilinear, do nível eco­
nômico. Isto implica a possibilidade do deslocamento da dominação de um
elemento para outro, um tipo de causalidade metonímica. A formação
soçial, pois, é sempre estruturada em dominância. Essa complexidade irre­
gular representa o necessário caráter concreto das determinações de um
todo social. É nesse sentido que'Althusser refere-se ao "sempre pré-dado"
de um todo social complexo que é estruturado em dominância. Para
Althusser, jamais existe uma essência original ou causa única; existe apenas
e sempre uma articulação complexa de determinações e níveis, que é inva­
riavelmente pré-dada no todo concreto real. Para resumir, as superestrutu­
ras existem como as condições essenciais de existência da formação social.
As eficácias específicas do político e do ideológico estão assim presentes
na determinação complexa e estrutural de qualquer dos elementos na
estrutura da formação social.
Esboçamos alguns dos conceitos básicos de Althusser; a necessária au­
tonomia relativa das superestruturas, seu efeito superdeterminante sobre a
contradição principal (o econômico) e ainda a contínua determinação pelo
econômico "em última instância", muito embora, em termos históricos
reais, aquela "hora solitária da última instância nunca chegue". Com esta
expressão, Althusser volta a referir-se ao fato de que, para ele, o nível eco­
nômico nunca é o único determinante, e conseqüentemente que a eficácia
A TEORIA DE ALTHUSSER 105

causai real de outros níveis deve ser encarada com seriedade. Nunca há
uma causa única e original de um estado de coisas ou "conjuntura". É
certo que a relativa autonomia de outros níveis só é auferida em termos do
que é ou não é compatível com o modo principal de produção; mas tal
proposição implica a possibilidade de uma relação causai indireta de
maneira que "Sua Majestade, a economia" não aparece e não pode apare­
cer "em pessoa". Os níveis político e ideológico não revelam claramente a
presença do econômico esgueirando-se por trás deles. Em Ler "O Capi­
ta l", Althusser refere-se com freqüência a esta "determinação ausente"
como sendo a presença de uma "estrutura imanente em seus efeitos", ou
"causalidade estrutural" ("causalidade metonímica").^ Ora, são os termos
estrutura e causalidade estrutural que às vezes provocam as críticas. Indi­
caremos sucintamente aqui alguns dos mais importantes problemas daque­
le que é um debate complexo e presente.
Falando de um modo geral, estrutura refere-se, como indicado acima,
a uma formação social complexamente estruturada: complexa porque é
uma combinação de elementos "estruturados em dominância", porque os
vários níveis não podem ser reduzidos a uma única contradição. Um " n í­
vel" predomina sobre os outros; contudo, quer este nível coincida com o
econômico (como no capitalismo, por exemplo) ou não, os dois são teori­
camente distintos, e o nível dominante é ele próprio especificado pelo de­
terminante, isto é, o nível econômico.
A principal dificuldade gira em torno de se o conceito causalidade es­
trutural em Ler "O Capita!" implica uma mudança importante dos con­
ceitos de superdeterminação e estrutura em A Favor de Marx. Neste último
texto, o termo estrutura designa acima de tudo a formação social, como na
conceitualização de uma estrutura em dominância, onde não há lugar para
ambigijidade.^ Em Ler "O Capitai", causalidade estrutural ou Darstellung
parece ser o mesmo conceito. E num sentido no qual Althusser utiliza a
noção, não ocorre problema de continuidade, pois esta noção representa
um rigoroso reexame daqueles mecanismos da região econômica do modo
de produção capitalista (daqui por diante MPC) algumas vezes referido
pelos marxistas como a relação entre relações reais e formas fenomenais.
Althusser propõe "Darstellung" como um meio de analisar a real efetivida­
de de formas aparentemente "superficiais", tais como salários, ao mesmo
tempo em que retém a noção de que a produção (em oposição à troca) é,
por assim dizer, determinante na última instância. O par formas fenome-
nais/relações reais é, na opinião de Althusser, incapaz de uma explicação
adequada desta dupla articulação, pois repousa numa noção hegelianaque
reduz fenômenos dados às emanações de uma "essência" supostamente
não problemática.
Na citação que damos a seguir, Althusser associa Darstellung ao con­
ceito de superdeterminação. Ele cita a passagem extraída da Introdução,
106 TEORIAS

de 1857, na qual Marx refere-se à influência, e atribuição de grau e influ ­


ência, de uma estrutura predominante de produção sobre outras estruturas
de produção na formação social.^ "Esse te x to ", argumenta Althusser ,

discute a determinação de certas estruturas de produção que são subordinadas


a uma estrutura dominante de produção, isto é, a determinação de uma estrutu­
ra por outra e dos elementos de uma estrutura subordinada pela estrutura domi­
nante, e, portanto, determinante. Procurei anteriormente explicar esse fenôme­
no com o conceito de superdeterminação, que tomei emprestado da psicanáli­
se. .. Com que conceito devemos pensar a determinação de um elemento ou de
uma estrutura por uma estrutura? .. .Darstellung, o conceito epistemológíco-
chave de toda a teoria do valor marxista, o conceito cujo objeto é exatamente
designar o modo de presença da estrutura em seus efeitos e, portanto, para de­
signar a própria causalidade estrutural. (1970, p. 188).

Além de referir-se ao conceito de superdeterminação, a semelhança


de Darstellung com uma estrutura articulada em dominãncia não pode ser
negligenciada. Uma estrutura em dominãncia refere-se aos vários níveis na
formação social juntamente com suas respectivas contradições, cada qual
com aspectos principais e secundários. Como as contradições admitem as­
pectos principais e secundários, do mesmo modo a estrutura de concate-
nação particular de contradições e níveis é articulada em termos de uma
hierarquia de instâncias significativas. Esta articulação é a formação social
e constitui um "to d o complexamente estruturado e sempre pré-dado".
Mas é o econômico que atribui à contradição principal o seu papel, e assim
a superdeterminação e a autonomia relativa e a determinação na última
instância são todas preservadas nesta fórm ula.*
Todavia, quase não há dúvida de que Althusser tenha adotado um
conceito epistemológico específico (tirado, de fato, de Spinoza) por meio
do qual ele procura reformular suas primeiras noções. O conceito de causa­
lidade estrutural como sendo a presença de uma causa (estrutura) em seus
efeitos e como seus efeitos tem, poder-se-ia argumentar, conseqüencias
lógicas que não podem ser simplesmente reduzidas a "uma outra maneira
de dizer a mesma coisa". Se a estrutura especifica seus efeitos, embora
nada sendo fora de seus efeitos, a causalidade material ou múltipla da su­
perdeterminação aparece como tendo aberto c caminho para uma totalida­
de "essencialista" e auto-sustentada. Esta "eternidade" (como tem sido
chamada)® da estrutura logicamente impede o tipo de análise marxista de
troca e de processos históricos complexos que a "superdeterminação"
parecia oferecer.
Não nos é possível fazer uma avaliação deste contra-argumento, em­
bora seja ele um argumento ao qual Balibar é vulnerável. Mas gostaríamos
de assinalar que não fica claro em Ler "O C apital" a que exatamente,
pelo menos para Althusser, a "estrutura" se refere. Designaria ela um
modo de produção, por exemplo? ou a formação social? É possível, de
A TEORIA DE ALTHUSSER 107

fato, que se aplique a ambos, já que Althusser fala de um modo de produ­


ção "global" além de uma teoria "regional" do modo de produção (econô­
mica), sugerindo assim que o conceito "m odo de produção" refere-se a
algo mais amplo do que simplesmente o m'vel econômico. Ora, é razoável
a sugestão de que se o termo "estrutura" refere-se a formação social, então
a fórmula de causalidade estrutural na qual os "efeitos" são concebidos
como partes constituintes ou níveis de uma estrutura "global", é inteligível
e — assim nos parece — substancialmente correta.
Por outro lado, é certamente verdadeiro que se isto fo r interpretado
como uma estrutura global de estruturas regionais onde em ambas as ins­
tâncias uma "causa" (estrutura) está lógica e literalmente presente em seus
efeitos e como seus efeitos, na pior das hipóteses a universalidade formal
do conceito levanta dúvidas: não estará a especificidade de diferentes obje­
tos de análise sendo sacrificada às exigências lógicas do princípio filosófico
organizador? Uma estrita aplicação do modelo spinoziano dificulta mais do
que ajuda o esclarecimento dos conceitos "básicos" em questão.
Um últim o ponto de diferenciação surge se considerarmos que uma
teoria "regional" do modo de produção é freqüentemente referida por A l­
thusser como um conceito abstrato. Contudo, é plausível a assertiva de que
isto não é outra coisa que não a análise de relações no nível econômico de
formações sociais caracterizadas pelo MCP. A análise do "m odo global
de produção seria, então, a relação entre o econômico e os outros níveis:
uma relação estrutural que constitui formações sociais. É com base nesta
diferença no uso do termo "m odo de produção" que podemos postular
a ambigüidade de Althusser quanto às normas específicas de aplicação da
"causalidade estrutural". Esta defesa pode não ser a ideal — não é esta a
intenção — mas ela possibilita um certo número de "interpretações" das
quais apenas uma compromete Althusser com as eternidades estruturais
dos "elementos de uma combinação" de Balibar.’^
Levantamos estes problemas porque nos parecem tanto importantes
quanto, com freqüência, facilmente super-simplificados; todavia, eles
são centrais nos atuais debates dentro do marxismo. No todo — e isto exi-
giria várias qualificações — diriamos que a estrutura de Althusser, sem im­
plicar necessariamente causalidade estrutural, é melhor vista como uma
formação social específica: a combinação particular de três níveis hierár­
quicos — o econômico (definido primordialmente, mas não exclusivamen­
te, pelo modo de produção apropriado e dominante), o político e o ideo­
lógico. Também defenderiamos, como uma interpretação legítima de A l­
thusser, a noção de que "causalidade estrutural" é um conceito que, apesar
de suas conseqüências lógicas prejudiciais, Althusser utiliza para explicar
os mecanismos de superdeterminação. Pelo menos em sua aplicação de cau­
salidade estrutural na crítica que a concepção da economia política faz ao
modo de produção econômico, as posições são compatíveis e elaboradas de
108 TEORIAS

modo proveitoso. Ora, já que um modo de produção não existe senão em


suas formas concretas e variadas em formações sociais específicas, o nível
econômico de uma formação social constituiría a principal forma variante
do modo de produção dominante. Os níveis político e ideológico possuem
uma relativa autonomia no que diz respeito ao econômico e uma capacida­
de superdeterminante: eles entram diretamente na reprodução ou não-re-
produção de um modo de produção. Contudo, na medida em que o grau
de autonomia é auferido apenas em relação á "contradição" econômica,
estes "níveis superestruturais" são em última análise determinados pelo
nível econômico, como a formação social é articulada como uma comple­
xidade hierárquica de instâncias dominantes e subordinadas. Para resumir,
parece-nos que quaisquer que sejam as limitações das várias posições de
Althusser, uma concepção althusseriana de uma formação social cons­
titu i uma intervenção atraente e genuinamente inovadora no debate "base/
superestrutura".

111 A ideologia em A Favor de Marx

Os ensaios reunidos e publicados no volume A Favor de Marx (1969)


contém formulações sobre a ideologia que realmente cobrem toda a gama
de definições que mencionamos anteriormente. Em "Contradição e Su-
perdeterminação", a ideologia é um nível ou uma instância da formação
especial. Em "Sobre a Dialética Materialista", a ideologia é considerada
epistemologicamente como uma problemática teórica que é "cortada" pela
ciência mediante as operações das Generalidades (ver mais adiante a seção
sobre Ler "O Capitai"). Aqui, a Generalidade I designa (principalmente)
a ideologia — o dom ínio prático-social da experiência cotidiana. A Genera­
lidade II refere-se ao corpo de conceitos que constitui as ferramentas que
operam na Generalidade I (a matéria-prima de uma ciência) para produzir
a Generalidade III, que é um "conhecimento" ou ciência. O movimento
através das Generalidades define a especificidade da prática teórica, que
é colocada como um quarto nível da formação social.® Em "Marxismo e
Humanismo", igualmente, existe a noção de que a ideologia é coisa bem
diferente de ciência. A intervenção de Althusser nesse ensaio situa-se no
contexto de uma crescente influência de posições humanistas no movimen­
to socialista com base em certos textos de Marx que, argumenta Althusser,
precedem o "corte epistemológico" de Marx (ver mais adiante).
Neste ensaio há também a concepção de ideologia como sendo a tex­
tura e o meio de toda a sociedade — uma formulação que tem m uito em
comum com o ensaio sobre os AIE (1971).
Contudo, a principal elaboração de ideologia nesses textos se refere
à ideologia como um nívei ou uma instância da formação social. Esta pro­
posta é feita pela primeira vez em "Contradição e Superdeterminação" e
A TEORIA DE ALTHUSSER 109

retomada no ensaio sobre os AlE sob a forma de uma metáfora topográfica


de um edifício de três andares.® Enquanto as outras formulações são im­
portantes, esta importância lhes é em grande parte conferida como um ín­
dice do problema da ideologia. Ao teorizar o todo social, especialmente em
relação a seus próprios níveis e em relação ao poder que têm esses níveis de
superdeterminar-se mutuamente, Althusser refere-se aos níveis da forma­
ção social como sendo igualmente materiais:

Ao constituírem essa unidade, elas (isto é, as instâncias) reconstituem e comple­


tam sua unidade básica vitalizante, mas ao mesmo tempo também evidenciam
sua natureza: a contradiçâò é inseparável da estrutura total do corpo social em
que se fundamenta, inseparável de suas condições formais de existência, e
mesmo das instâncias que governa; esta contradição é radicalmente afetada por
estas condições, determinando mas também sendo determinada num mesmo e
único movimento, e determinada pelos vários níveis e instâncias da formação
social que anima; poderiamos dizer que ela é superdeterminada em seu princípio.
(1969, pp. 100-1).

Que a ideologia é material, isto é confirmado em "Sobre a Dialética Ma­


terialista", onde a definição de uma prática implica um trabalho de trans­
formação que não é outro senão um modo de produção determinado (refe­
rindo-se aos níveis político, ideológico, teórico, bem como ao econômico);

toda transformação (toda prática) pressupõe a transformação de uma matéria-


prima em produto acionando-se determinados meios de produção. (1969, p. 184)

A ideologia não é uma substância isolada e homogênea. Entretanto,


ela tem propriedades que lhe são específicas e que a definem como distinta
de outros níveis ou instâncias. Tampouco deve ser esquecido que os pro­
nunciamentos de Althusser têm o valor de um ataque contra tendências
vulgares economicistas e tecnologísticas no marxismo. Estas variedades de
marxismo sofrem todas elas de um reducionismo básico que na argumenta­
ção de Althusser têm suas raízes no hegelianismo: as superestruturas são re­
duzidas a epifenômenos da base; ou são formas fenomenais de uma contra­
dição simples, essencial — o econômico. A ideologia é, pois, relegada à
superfície das aparências, ocultando uma essência interior. A ideologia é
reificada e excluída da existência material, sempre mencionada por últim o
entre as superestruturas. A vital reconceitualização de Althusser desta me­
táfora transforma estas relações em relações de equivalência entre os
níveis, eliminando o determinismo clássico da base sobre as superestruturas
— pois, fosse esse o caso, uma revolução na infra-estrutura automaticamen­
te modificaria as superestruturas, especialmente as ideologias, "de um só
golpe" (1969, p. 115). Os níveis possuem seu próprio poder (específico),
ou eficácia, de determinarem-se mutuamente, inclusive o econômico. Que
o econômico é determinante em última instância, isto não é um acréscimo
110 TEORIAS

posterior, nem uma reconsideração, à problemática althusseriana; trata-se


de um momento crucial através de toda a determinação marxista. O fato
de ser a última instância implica que existem outras instâncias com deter­
minações efetivas: a instância econômica não é a primeira nem a única.*® É
esse primado que Althusser reafirma para níveis outros que não o econô­
mico (mas incluindo-o de modo m uito particular), o que caracteriza sua
intervenção como significativa e singular na história do marxismo.
Apesar das formulações diferentes, o que fica claro ao longo de A Fa­
vor de Marx é que a ideologia é necessariamente concomitante à formação
social, qualquer formação social. Existe uma relação necessária entre ideo­
logia e transformações históricas. Essa é a concepção apresentada em "M ar­
xismo e Humanismo".

As sociedades humanas secretam ideologias como o elemento e a atmosfera in­


dispensáveis á sua respiração e vida históricas.
Portanto, a ideologia não é uma aberração ou uma excrescência contingente da
história: é uma estrutura essencial à vida das sociedades. Ademais, somente a
existência e o reconhecimento de sua necessidade permitem-nos agir sobre a
ideologia e transformar a ideologia num instrumento de ação deliberada sobre a
história. 11969, p. 232).

Em toda sociedade histórica determinada, a ideologia tem um papel


específico a desempenhar. Como a ideologia, para Althusser, está firm e­
mente entrincheirada na função prático-social, o humanismo socialista é
ideológico porque reduz por completo categorias teóricas â seus efeitos
prático-sociais. Este prático-social refere-se ao dom ínio da experiência e
não pode ser confundido com conhecimento científico, que é o produto
específico da prática teórica. Esta última é caracterizada pela abertura de
sua problemática comparada ao sistema fechado de uma ideologia — mes­
mo que seja internamente consistente e coerente, como a teologia, por
exemplo. A distinção entre ciência e ideologia surge da distinção que A l­
thusser estabelece entre certos textos de Marx. A idéia de um corte epis-
temológico é derivada de Bachelard. Aplicada a Marx, o corte refere-se à
descontinuidade entre a problemática inicial ("humanista") nos Manus­
critos de 1844 e a obra madura. Introdução de 1857 e O Capital. A Ideo­
logia Alemã é um texto do corte porque historiciza a dialética hegeliana e
aponta para um rumo radicalmente novo de conceituaiização da dialética
e da história. A ideologia socialista e humanista tem suas raízes nos Manus­
critos de 1844, que se ocupam dos temas indeterminados e categorias
gerais de "hom em ", "alienação" e a restauração do homem pelo homem.
Enquanto na Introdução de 1857, por exemplo, estas categorias, diz Marx,
são m uito gerais para nos levar muito longe, precisamos produzir conceitos
específicos que sejam historicamente fundamentados de determinadas ma­
neiras se quisermos conhecer alguma coisa sobre uma formação social par-
A TEORIA DE ALTHUSSER 111

ticular. A ciência não é a verdada da ideologia no sentido de que se somen­


te a ideologia nos desse um pouco mais, ela traçaria um quadro "com pleto"
ou "verdadeiro". Trata-se de algo radicalmente diferente disto, no sentido
de que relações ideológicas ocultam, ou representam mal, relações reais,
embora ao mesmo tempo designem uma relação vivida e portanto real.
Esta relação não é ilusória, nem compreende as formas fenomenais de uma
essência interior. Ela é material e necessária. O que a qualifica é que ela é
uma relação imaginária, embora pouco tenha a ver com a consciência como
ta l;

A ideologia é de fato um sistema de representação, mas na maioria dos casos


estas representações nada tém a ver com "consciência":geralmente são imagens
e ocasionalmente conceitos, mas é acima de tudo como estruturas que elas se
impõem sobre a imensa maioria dos homens, não através de sua "consciência".

Assim, a ideologia é uma questão da relação vivida entre os homens e seu mun­
do. Esta relação, que não parece consciente a não ser sob condição de que seja in ­
consciente, da mesma forma só parece ser simples sob a condição de que seja
complexa, de que não seja uma simples relação, mas uma relação entre relações,
uma relação de segundo grau. Na ideologia os homens na realidade exprimem,
não a relação entre eles e suas condições de existência, mas a maneira pela qual
vivem a relação entre eles e sqas condições de existência: isto pressupõe tanto
uma relação real como uma relação imaginária, vivida. A ideologia é, pois, a
expressão da relação entre os homens e seu "m undo", isto é, a unidade Isuper-
determinadal da relação real e da relação imaginária entre eles e suas condições
reais de existência. (1969, pp. 233-234)

A ideologia nesse sentido está muito próxima da ideologia no ensaio


sobre os A IE ,'* Aqui, a ideologia é vista como um sistema de representa­
ções*^ indispensável a qualquer formação social dada, mas dotada de uma
existência e função histórica particular dentro daquela formação social
dada, cuja função prático-social é mais importante do que a função teórica
(como conhecimento).

Numa sociedade de classes a ideologia é o relê por meio do qual, e o elemento


no qual, a relação dos homens com suas condições de existência é acomodada
em beneffcio da classe dominante. Numa sociedade sem classes, a ideologia é o
relê por meio do qual, e o elemento no qual, a relação entre os homens e suas
condições de existência é vivida em beneffcio de todos os homens. (1969, p. 236).

Esta última formulação insere-se em algum lugar entre A Ideologia Alemã


e o conceito de hegemonia de Gramsci. Althusser move-se um tanto mais
próximo da última no ensaio sobre os AIE. É também interessante notar
que não existe nenhuma noção do "fim da ideologia". Pois esta noção im­
plica uma "quebra" e, a certa altura, uma fusão qualitativa em dois níveis
que para Althusser permanecem inteiramente distintos.
1 12 TEORIAS

IV Ler "O Capita!"

Nesta seção, devemos estar conscientes do argumento geral de Ler "O


Capital", isto é, de que O Capital de Marx fornece explicitamente os con­
ceitos de análise do MFC e implicitamente (do ponto de vista de uma "le i­
tura sintomática")** fornece uma epistemologia capaz de isolar ou especi­
ficar teoricamente a cientificidade de um conhecimento bem fundamenta­
do como tal. Se O Capitai deve ser considerado como a abertura única de
um "continente da história" científico, então deve conformar-se à cienti­
ficidade em geral: a construção (produção) de um único objeto de conheci­
mento, muito distante de todas as formas de ideologia. Assim, a questão da
ideologia surge sobre bases gerais em Ler "O C apitai" como o que o co­
nhecimento não é. A necessidade da distinção também é geral: se todas as
idéias são qualitativamente as mesmas, estruturalmente semelhantes, a es­
colha do indivíduo é determinada por fatores não de conhecimento. Estes
fatores (ideologias, "interesses", práticas sociais) são eles próprios igual­
mente "válidos", porque nenhuma "prática" é a pr/o r/ mais importante do
que qualquer outra, a não ser por motivos metafísicos ou morais, isto é,
subjetivos. Desse modo, o irracionalismo é a conseqüência lógica de não se
fazer a distinção entre ciência e ideologia. Tendo assumido esta posição,
Althusser deseja argumentar que podemos de fato estabelecer diferenças
estruturais entre o caráter do conhecimento e o de outras concepções. De­
vemos notar que sua maneira de proceder só se preocupa realmente com
ideologias que conscientemente se apresentam como conhecimento bem
fundamentado, embora seja verdade que esta noção, mais uma vez, é
central para uma definição de toda ideologia: apresentando-se necessaria­
mente como aquilo que não é, a saber, ciência.
Quais são, então, as principais formulações sobre ideologia?

No modo de produção da ideologia (que é muito diferente do modo de produ­


ção da ciência nesse sentido), a formulação de um problema é meramente a ex­
pressão teórica das condições que permitem uma solução já produzida fora do
processo de conhecimento porque imposta por instâncias e exigências extrateó-
ricas (por "interesses" religiosos, políticos, éticos) para reconhecer-se a si mes­
ma num problema artificial manufaturado para servi-la tanto como um espelho
teórico quanto como uma justificativa prática. (1970, p. 52, grifos no original)

Essa formulação contém grande parte do que, em diferentes locais, Althus­


ser tem a dizer sobre a ideologia. Em primeiro lugar, do lado positivo, a
formulação reconhece na ideologia a condição de uma prática separada:
ela tem uma identidade distinta. Mas na construção de seu "problem a" e
no modo de produção do "p rod uto " final ("conhecim ento" ideológico),
a prática ideológica "coloca-se" como científica. É esta peculiaridade que
implica que, numa análise da prática ideológica, é fundamental separá-la
da prática científica genuína.
A TEORIA DE ALTHUSSER 113

As características mais específicas da ideologia são (i) que suas con­


cepções são motivadas por "exigências" extrateóricas; (ii) que os "proble­
mas" que a ideologia propõe são "falsos" problemas no sentido de que
suas soluções têm sido prefiguradas nas "questões" formuladas por interes­
ses extrateóricos. Deve ser então o caso de que (iii) o modo de análise dos
ou as mediações entre os aspectos (i) e (ii) é uma espécie de "espelho" re­
lativamente autônomo ou estrujtura de reconhecimento, mesmo que tecni­
camente sofisticada. Devemos notar aqui que, embora os paradigmas da
ideologia sejam ideologias teóricas, este tipo de análise poderia ser facil­
mente reproduzido para explicar outros tipos de ideologia. Por exemplo,
a referência ao "senso comum" pode ser vista como a justificativa das
crenças da maioria das pessoas sobre questões práticas: acredita-se no que
se quer acreditar, ou no que melhor serve aos nossos interesses.
Este "problem a" da ideologia não é o mesmo da ciência. A ciência co­
loca problemas autênticos de uma natureza teórica para os quais não existe
absolutamente nenhuma solução já dada. Quando Althusser utiliza esta
idéia antidogmática para justificar sua própria e muito parcial identificação
do "efeito de conhecimento" peculiar á ciência (voltaremos a falar sobre
isto), ele fornece uma outra formulação típica e útil.

O círculo não é o círculo fechado da ideologia, mas o círculo perpetuamente


aberto por seus próprios limites, o círculo de conhecimento bem fundamentado.
(1970, p. 69)

A esta altura fica claro que a ideologia "fecha" teoricamente os argumen­


tos por causa dos problemas limitados que ela mesma propõe;

Ao contrário da ciência, a ideologia é ao mesmo tempo teoricamente fechada e


politicamente flexível e adaptável. (1970, p. 142)

À guisa de exemplo, procuraremos esboçar uma outra maneira pela


qual Althusser define esta mesma característica. Os "caracteres teóricos"
Sujeito e Objeto são indispensáveis à ideologia (1970, p. 55). Althusser
geralmente equipara empiricismo com idealismo porque, embora difiram
na ênfase que colocam sobre a relação sujeito-objeto (empirismo: objeto;
idealismo: sujeito), praticamente todas as filosofias clássicas aderem ao
assim chamado "problema do conhecimento" com um esquema de um Su­
jeito consciente-conhecedor-perceptivo e um Objeto de conhecimento a ser
conhecido, "lá fora". Para Althusser, Spinoza é uma exceção m uito impor­
tante, já que para ele Spinoza é o único predecessor filosófico de Marx
que, como Marx, foi enterrado pelos significados ideológicos impostos pela
história empírica/idealista dominante das idéias. Para o empirismo, falan­
do cruamente, o conhecimento é obtido através de um processo de "abs­
tração" pelo sujeito dos aspectos essenciais dos objetos a partir do não
essencial. Desse modo, este conhecimento é visto, através de uma projeção
daqueles aspectos essenciais sobre o objeto, e, é de se presumir, inconscien­
temente, como uma parte do próprio objeto; e uma vez que isso é tudo
que pode ser significativamente dito (conhecido) do objeto, esta essência
abstraída é, ou torna-se, o próprio objeto. Sujeito (conceito) e Objeto to r­
nam-se a mesma coisa. No empirismo estrito (sensualista ou positivista), o
processo de abstração é pouco mais do que aquilo que é perceptível pelos
seus ou pelos meus sentidos (isto é, o indivíduo empírico intersuDjetivo).
Explicada desta maneira, podemos perceber a relação entre as identifica­
ções algo obscuras de Althusser e as críticas hoje conhecidas feitas pelo
próprio Marx dos "erros da Economia Política Clássica".
Quanto ao Idealismo, apesar das diferenças intrínsecas (por exemplo,
Kant versus Hegel), o processo descrito acima é invertido: reconhece-se que
a abstração é impossível sem o quadro conceituai do Sujeito, de modo que
a "realidade" nada mais é do que as propriedades do Sujeito ou, na noção
extrema, sua própria criação. De acordo com Althusser, contudo, uma das
concepções (empirismo) não passa da inversão da outra (idealismo), e para
ele as inversões, simplesmente invertendo os termos de um problema,
mantêm sua qualidade e, assim, compartilham a mesma "problemática".
A problemática aqui é aquilo que ele chama de "tentação empírica" — a
tentação de preencher a lacuna entre conceito e realidade. Ao fazê-lo, a
distinção absolutamente crucial entre a ordem lógica e a ordem "re a l" (na­
tural e histórica, ou social) fica encoberta. Esta confusão, voltamos a repe­
tir, é uma característica da ideologia em oposição à ciência. O preenchi­
mento da lacuna é a elaboração da estrutura de reconhecimento que A l­
thusser vê como necessária aos mecanismos ideológicos.
Ora, é importante perceber que Althusser pretende afirmar que o pró­
prio Marx, dada a proposição inicial de Ler "O Capita!" de que existe na
obra de Marx uma epistemologia, conscientemente sustentava essa posição
— pelo menos implicitamentel De acordo com isso, constatamos uma longa
rejeição tanto da visão de Engels em Anti-Dühring (onde Engels insiste em
que o movimento da ordem real dita mudanças na ordem lógica) como de
algumas das formulações mais "ambíguas" do próprio Marx, principalmen­
te em A Ideologia Alemã. Em oposição a estes dois textos, Althusser con­
voca Marx para seu lado (principalmente na "Introdução de 1857" a
Grundrisse), alegando que o próprio Marx insistia exatamente sobre esta
distinção necessária entre as ordens conceituai e real que Althusser "re ­
cuperou". De fato, a sentença de Marx ("se as aparências não fossem dife­
rentes da realidade, não haveria necessidade da ciência") é sobre muitos
aspectos a pedra de‘ toque de todo o projeto althusseriano (embora, indu­
bitavelmente, ele pretendesse argumentar contra as conotações "hegelia-
nas" da metáfora "aparência/real").
A TEORIA DE ALTHUSSER 115

Uma conseqüência importante desta interpretação é a total rejeição


da assim chamada noção marxista de que a "prática" é o critério da vali­
dade teórica. Essa seria uma salda apropriadamente fácil para o que é de
fato um falso problema (ideológico) do conhecimento, ao mesmo tempo
em que são mantidos os termos do problema. Pois, que é uma prática? Que
práticas são materialmente efetivas e quando? Qual é precisamente a rela­
ção entre teoria e prática? Estas perguntas, para que tenham algum senti­
do, exigem um critério teórico bem fundamentado que a reivindicação de
"prática" tenta substituir. Althusser insiste, portanto, em que o marxismo
não é verdadeiro porque funciona; o marxismo funciona porque é verda­
deiro. Dependendo, como ocorre, de um substrato pré-teórico indiferen-
ciado, o critério da prática está aberto tanto ao empirismo e à arbitrarieda­
de quanto à especulação filosófica que tenta de modo confuso suplantar.
Conseqüentemente, uma das reformulações inovadoras de Althusser foi
propor sua própria noção de uma prática (ver seção III).
Q empirismo, portanto, implica concepções ideológicas, e não de ciên­
cia. Para Althusser, as aberturas teóricas mais importantes têm como pre­
missas (i) a distinção entre o objeto real e o objeto de conhecimento: esta
distinção pode ser melhor apreendida no exemplo que ele toma empresta­
do de Spinoza, o conceito "cão" não ladra; (ii) o fato de que todas elas,
sem exceção, afastaram o Sujeito do centro de conhecimento: Galileu na
física, Lavoisier na química, Copérnico na astronomia, Marx na história e
Freud na psicanálise. Q conhecimento descentraliza-se, ao passo que a
ideologia depende de sujeitos centrais fictícios, sejam eles empíricos ou
transcendentais.
A ideologia é, contudo, a pré-história da ciência. A ciência efetua um
corte epistemológico com seu fundo ideológico. A proximidade de ideolo­
gia e ciência até este ponto de ruptura sempre sugere que existe uma conti­
nuidade, como se a ciência fosse o ápice ou o objetivo da ideologia. Este
falso sentido de continuidade é uma concepção ideológica (nada mais que
um historicismo baseado no movimento interno de uma história das idéias).
Para Althusser, a ciência é a "surpresa" da ideologia, não seu objetivo. Em
outras palavras, existe uma descontinuidade radical porque o mesmo obje­
to já não é compartilhado, nem são feitas as mesmas perguntas: no caso da
ciência, a estrutura do tipo reflexo num espelho foi substituída. Uma nova
problemática foi aberta, tendo sido demonstrado que a velha era falsa, fe­
chada, incapaz de gerar conhecimento.
Apontamos as principais formulações da ideologia em Ler "O Capi­
ta l". Considera-se que as ideologias acarretam, consciente ou inconsciente­
mente, "falsos" problemas. Elas dependem da centralidade de um sujeito
filosófico fictício de conhecimento e ética. "Interesses" não teóricos preci­
sam de uma estrutura de reconhecimento especular com a qual a ciência
116 TEORIAS

precisa romper em caráter irrevogável. Para a ciência, contudo, não existem


coisas "dadas".

O conceito de uma história do conhecimento precisa ser construi'do antes que


"coleções" de "dados" empíricos sobre a ciência possam ser feitas. (1970,
p. 44, grifos no original)

Não existem garantias quanto à resposta a um problema científico; apenas


a filosofia ideológica implica uma busca de garantias. A estrutura da ciên­
cia é, portanto, aberta. Ela descobre suas próprias fraquezas ou lacunas
com base em sua própria problemática teórica ou campo teórico. Segue-se
daí que somente a sistematicidade dos conceitos teóricos constitui uma
ciência. Ademais, como se poderia esperar das visões de Althusser sobre as
formações sociais, a ciência não deve ser encarada como uma parte da
superestrutura (nem tampouco a linguagem). O marxismo não é (nem tam­
pouco qualquer ciência), como pretendem alguns historicistas e até mesmo
Grarnsci,*'' uma ideologia orgânica. Uma conseqüência final do conceito de
Althusser de ciência é lançar dúvidas sobre a clareza do par marxista rela­
ções reais/formas fenomenais. Essa fórmula arrisca a tentação empirista/
idealista de reduzir a efetividade específica de um elemento à sua "essên­
cia" metafisicamente postulada. A relação de interioridade, insiste Althus­
ser, deve ser encarada mais como a relação entre um fenômeno e o concei­
to ou conhecimento do objeto: uma iniciativa que nos impede de reduzir
a metáfora a um historicismo. Por outro lado, uma vez que tal perigo é ine­
rente às conotações hegelianas objetivamente pertencentes á expressão, os
próprios termos precisam ser substituídos por outros mais adequados.
A tarefa epistemológica, segundo Althusser, consiste em identificar e
elaborar os mecanismos através dos quais o objeto de conhecimento apro­
pria cognitivamente o real-concreto. Ora, não se trata aqui, proclama ele,
do velho "problema do conhecimento",'® já que se chegou a ele pela re­
jeição do esquema Sujeito-Objeto. Não existe uma correspondência direta
entre conceito e realidade, porque as duas ordens não são díretamente
comparáveis. Igualmente, não é uma questão de examinar-se as condições
necessárias para o aparecimento de conhecimentos específicos, porque a
segunda tarefa aceita os conhecimentos como produtos já dados, ao passo
que a preocupação de Althusser é descobrir o que é específico em relação
aos conhecimentos como conhecimentos: o que o "efeito de conhecimen­
to " é, como funciona, em oposição, digamos, ao efeito ideológico ou o
efeito estético. Numa polêmica com pensadores tais como Sartre, ele rejei­
ta qualquer esquema de "mediações" como uma resposta, já que essas nãõ
passam de versões mais ou menos complexas de uma fórmula simples (ex­
pressiva) de sujeito/objeto. Althusser encerra sua introdução dizendo que
"o efeito de conhecimento só é possível, portanto, dada a sistematicidade
do sistema que é o fundamento dos conceitos e de sua ordem de apare-
A TEORIA DE ALTHUSSER 117

cimento no discurso científico" (1970, p. 68). Ele justificaria, segundo


parece, a natureza críptica ou parcial desta solução ao invocar o caráter
aberto de questões científicas cruciais.
A essa altura, talvez fosse útil, tanto para o esclarecimento quanto
para uma crítica, destacar alguns contra-argumentos.
1. O primeiro problema, sempre presente, diz respeito à situação epis-
temológica do próprio marxismo. Se a filosofia marxista é o esclarecimen­
to e a justificativa epistemológica das proposições do materialismo históri­
co, não será essa filosofia simplesmente mais uma ideologia teórica? A ci­
ência, devemos lembrar, não existe no geral para Althusser: cada ciência
tem um objeto e uma prática específicos em seu próprio critério interno
de validade. Desse modo, a pormenorização das razões pelas quais uma
teoria particular poderia ser classificada como uma ciência não pode ser da
alçada da própria ciência. No entanto, esta justificativa teórica das ciências,
a busca de sua garantia epistemológica, é precisamente a maneira pela qual
Althusser define filosofia ideológica. Nos termos de Ler "O C apital", em­
bora provavelmente não em seus textos posteriores, este paradoxo não
pode ser abordado.
2. Na identificação da ideologia, muita coisa é imputada à "tentação
empírica". Trata-se de um paradigma suficientemente ampliado para nele
incluir-se tanto o idealismo clássico como as muitas escolas conflitantes do
empirismo lógico. Como muitos filósofos acadêmicos sem dúvida se regozi­
jariam em assinalar, essa categoria ampla reduz a precisão da crítica de
Althusser. Mas, o que é mais importante, a generalidade de sua concep­
ção não pode explicar suficientemente diferentes ideologias, em particular
aquelas associadas ao "senso comum cotidiano". É nesse ponto que prefe­
ríamos um confronto mais detalhado e independente com o tipo "descriti-
vista" de marxismo que conserva algum valor na idéia de que a ideologia é
mediada pela posição social dos agentes. Em outras palavras, por mais
"válida" que seja a explicação de Althusser da lógica da ideologia, além de
um certo ponto — e talvez seja esta uma conseqüência material de um en­
foque excessivamente formal — não existe muita coisa a mais para ser dita.
3. Se, como é pressuposto em A Favor de Marx e Ler "O Capital", a
"ideologia" a nível social persistir sob o comunismo, assumirá ela necessa­
riamente as formas da "tentação empírica"? Nesse caso — e a centralidade
da equiparação feita por Althusser de ideologia com experiência subjetiva
sugere isso — o conceito "ideologia" parece desnecessariamente restrito
àqueles tipos de visão que Marx, entre outros, atribuiria especificamente às
formas capitalistas de ideologia.
4. Há uma tensão entre a idéia de que a ideologia é um nível da fo r­
mação social, embora ainda tenha s\áo definida por sua antítese epistemo­
lógica à ciência, e por sua função como pré-história da ciência. Pode ser le­
vantada, portanto, a questão geral quanto a se a análise da ideologia per-
tence ao materíalismo dialético ou ao materialismo histórico. Em Ler “ O
Capital", a tendência geral de todos os textos de Althusser aponta para o
primeiro caso; mas, como vimos, os problepias não resolvidos referentes à
condição da própria filosofia marxista no texto afastam a possibilidade de
uma "extração" independente de sua teoria da ideologia.
5. Finalmente, uma das origens centrais de todas as dificuldades e si­
lêncios em Ler "O C apita!" gira em torno da seguinte interrogação: a po­
sição de Althusser sobre a especificidade dos "efeitos de conhecimento"
elimina definitivamente o "problema do conhecimento"? ou mesmo da
"correspondência" com a realidade? Para Althusser, o objeto real continua
ainda fora do pensamento, a ser de algum modo "cognitivamente apropria­
do" pelo concreto-em-pensamento (pensamento-objeto). Somente um rigo­
roso empiricista insistiria em que o problema de correspondência não
é levantado por esta formulaçãol Este problema, evidentemente, não é
novo, nem está ausente na obra do próprio Marx, mas parece-nos que a
afirmação de Althusser de ter eliminado um problema ideológico está
longe de ser totalmente verdadeira. Se este problema é ou não parte cons­
titutiva do conhecimento como quer que seja concebido, e se, conseqüen-
temente, este tipo de perspectiva epistemológica está eivado de problemas
sobre os quais o marxismo pouco tem a dizer, são questões complexas que,
num artigo como este, devemos nos contentar em meramente levantar para
serem discutidas.

V O Ensaio sobre os AlE

O artigo sobre os AlE apresenta algumas novidades no que diz respeito a


formulações iniciais sobre ideologia. Estas novidades relacionam-se com as
proposições contidas na chamada autocrítica feita por Althusser acerca de
alguns argumentos em A Favor de Marx e Ler "O Capitai".
Esta autocrítica implica uma reformulação radical de sua concepção
da filosofia marxista. Depois de Ler "O C apita!" a filosofia não mais
apresenta a condição de uma ciência (que em A Favor de Marx era "Teoria
da Prática Teórica"), não tem objeto, e não tem história. Daí por diante a
filosofia é concebida como sendo, em última instância, luta de classes no
campo da teoria. O propósito filosófico não é proporcionar o conhecimen­
to da ciência, mas representar tendências filosóficas informadas por lutas
de classe e intervir nesta luta de classe através de teses específicas e catego­
rias filosóficas.
Através de sua autocrítica, Althusser torna explícito que o que ele
pensa é um desvio teórico presente em A Favor de Marx e Ler "O Capi­
ta i", e que concerne principalmente sua interpretação do "corte epistemo-
lógico" que assinala o início da ciência marxista. 0 teoricismo consistiu na
redução da revolução filosófica feita por Marx ao fato teórico limitado do
A TEORIA DE ALTHUSSER 119

corte epistemológico e na interpretação racionalista-especulativa deste


corte em termos de uma oposição entre ciência em gera! e ideologia em
geral. Nesta oposição especulativa, a ideologia é reduzida a uma simples
categoria filosófica (erro ou ilusão) na qual a ideologia parece ser apenas
"o termo marxista para erro". 0 que foi esquecido nesta formulação é que
existe em Marx um corte com a ideologia burguesa, mas que o conceito
marxista de ideologia é um conceito científico concernente à existência
da superestrutura e que a luta de classes está presente desde o inicio (na
revolução filosófica que tornou possível o corte epistemológico).
Resumindo, há uma rejeição da formulação especulativa de uma dife­
rença entre ciência/ideologia em geral. Há, em vez disso, o reconhecimento
de que o que se faz necessário é outra coisa que não uma teoria da diferen­
ça entre ciência e ideologia. 0 que se faz necessário é (1) uma teoria da
superestrutura e (2) uma teoria áas condições (condições materiais, sociais,
ideológicas e filosóficas) do processo de produção de conhecimentos.
0 ensaio sobre os AIE é uma clara tentativa de detalhar esta teoria da
superestrutura como tal, livre da velha problemática epistemológica. A
problemática é nesse caso uma problemática que pertence claramente ao
"materialismo histórico". Isto explica o surgimento de dois novos proble­
mas teóricos: o da reprodução e o dos aparelhos de Estado.
As formulações referentes à teoria da superestrutura (o Estado e as
ideologias) lançou uma luz nova sobre a natureza da ideologia, mas para os
propósitos de análise deve-se fazer prudentemente uma distinção entre os
problemas da superestrutura e o problema da ideologia. Parece que nem
todas as formulações correspondem ao mesmo nível teórico nem têm o
mesmo peso teórico. Por exemplo, o problema da reprodução não coexiste
facilmente com um problema da "ideologia em geral" ou com o problema
dos "sujeitos". Todavia, deve-se ter sempre em mente, como declara Al-
thusser na abertura do ensaio, que se trata de "notas para uma investiga­
ção". Essas notas são uma significativa abertura para vários aspectos de
uma problemática; elas não estão organizadas como capítulos coerentes
de uma teoria já desenvolvida. Estas notas são acima de tudo relativamente
independentes uma da outra e o peso teórico das diferentes teses como
componentes de uma teoria da superestrutura ideológica não pode ser dire­
tamente percebido a partir desse ensaio.
Uma verdadeira discussão das implicações das proposições de Althus-
ser só pode ser debatida indo-se além desse artigo (por exemplo, revendo
o problema da reprodução em O Capita! e discutindo as formulações de
Poulantzas etc.). Dentro dos propósitos de nosso artigo, voltamo-nos para
o ensaio sobre os AIE apenas para esclarecer alguns pontos sobre o próprio
Althusser e o processo vivo de sua contribuição à problemática da ideologia.
As principais proposições do ensaio sobre os AIE dizem respeito a três
aspectos da problemática.
120 TEORIAS

1. O ponto de vista da reprodução


A proposta de Althusser é "pensar o que caracteriza o essencial da existên­
cia e natureza da superestrutura com base na reprodução" (1971, p. 131),
com o adendo de que esse problema não pode ser colocado, a não ser deste
ponto de vista, qualquer perspectiva teórica que não a da reprodução per­
manecendo abstrata (isto é, distorcida). Este ponto de vista apresenta o
caráter do próprio procedimento global de Marx em sua análise da repro­
dução capitalista.
Althusser aborda como problema imediato o da reprodução das rela­
ções de produção. E formula sua questão central: de que maneira é assegu­
rada a reprodução das relações de produção?
A razão desta pergunta e da resposta que ele posteriormente propõe
é clara:

A formação social capitalista, de fato, não pode ser reduzida à relação de pro­
dução capitalista isoladamente, nem, consequentemente, á sua infra-estrutura.
A exploração de classe não pode continuar, isto é, reproduzir as condições de
sua existência, sem as relações legal-poirticas e ideológicas que em última instân­
cia são determinadas pela relação produtiva. (1976, p. 203)

Notemos que Althusser apenas oferece uma contribuição à análise da


reprodução das relações de produção e de como ela é assegurada. Ele tem
plena consciência de que as relações de produção "são primeiramente
reproduzidas pela materialidade dos processos de produção e circulação"
(1971, p. 141), isto é, pela própria estrutura de produção (o processo de
auto-expansão da acumulação de capital). Mas ele sabe que esse não é um
processo automático de reprodução formal e tampouco um simples proble­
ma de reprodução da forma destas relações de produção. 0 processo de re­
produção é um processo em cujo centro está a luta de classes; é um proces­
so de exploração de classes, e o fluxo desse processo implica a intervenção
específica de toda a superestrutura.
A este respeito ele é muito claro:

A burguesia só pode assegurar a estabilidade e a continuação da exploração (que


ela impõe na produção) sob a condição de travar uma permanente luta de classe
contra a classe operária. Essa luta de classe é travada mediante a perpetuação
ou reprodução das condições materiais, ideoiógicas e poITticas da exploração,
Ela é levada a cabo r?a produção (cortes nos salários destinados à reprodução
da força de trabalho, repressão, sanções, dispensas, luta contra os sindicatos etc.).
Ao mesmo tempo ela é conduzida fora da produção. É aí que o papel do Estado
- dos ARE edos AIE (o sistema político, escolas, igrejas, canais de informação) —
intervém a fim de submeter a classe operária tanto pela repressão como pela
ideologia. ("Marxisme et Lutte des Classes", 1976, p. 65)

Este é um esclarecimento importante do problema da reprodução


como visto em Ler "O Capital", no qual é a especificidade das relações
A TEORIA DE ALTHUSSER 121

de produção como tipos de conexão (modos de ligação) entre agentes/


meios de produção e agentes/agentes que provoca a necessidade de im por e
manter estas conexões por meio da força material (Estado) eda força mo­
ra/(ideologias).** _
Aqui, essa manutenção está ligada ao problema da reprodução dos ele­
mentos de produção (meios de produção, força de trabalho) e à luta de
classe. A necessidade de condições específicas e superestruturais de existên­
cia deriva, pois, da combinação específica que dá ás relações de produção
capitalista seu caráter de relações de exploração que devem ser reproduzi­
das como tal.
Eis porque Althusser nos diz que adotar o ponto de vista da reprodu­
ção é, portanto, em última instância, adotar o ponto de vista da luta de
classes:’ ^ porque esta reprodução (estabilidade, duração, segurança) é
obtida através de uma permanente luta de classes que deve ser travada.
A função dos AIE, portanto, é tentar forçar a classe operária a submeter-se
às relações e condições de exploração através da ideologia. O problema da
reprodução extrapola uma simples repetição e manutenção da "fo rm a " da
combinação para implicar uma contínua re-produção das condições (econô­
micas, políticas, ideológicas) necessárias para que esta combinação/ímc/one.
2. Os aparelhos ideológicos do Estado
A problemática da reprodução, que implica a intervenção de toda a super-
estrutura, leva Althusser a reformular a teoria clássica sobre a natureza da
superestrutura e do Estado.
Ele confronta e resolve dois problemas:
i. Em primeiro lugar, a clássica metáfora base/superestrutura tem limites
teóricos que devem ser ultrapassados. Seu caráter descritivo (trata-se de
uma metáfora espacial de um edifício) serve para revelar o problema teórico
da determinação (o índice de eficiência) na estrutura do todo social, isto é,
mostrando o caráter complexo e hierárquico do todo social marxista. Ela
demonstra o problema da "determinação em última instância" pelo eco­
nômico, a "relativa autonomia" da superestrutura, etc. Mas nada diz sobre
a natureza da própria superestrutura. A única maneira de pensar a existên­
cia e a natureza da superestrutura é do ponto de vista da reprodução.
ii. A teoria marxista clássica do Estado também é descritiva e deve ser ex­
pandida. A realidade do Estado tem sido restringida, teoricamente, apenas
à sua realidade como um aparelho repressivo em torno do qual é resolvido
o problema do poder político (como poder do Estado). Este é o ponto es­
sencial para uma definição (que é uma identificação) do Estado como um
Estado de classes, mas o Estado é uma realidade mais complexa. 0 Estado
representa não apenas os aparelhos repressivos clássicos (A R E ), mas tam­
bém outros tipos de aparelhos com sua especificidade própria: os aparelhos
ideológicos do Estado (A IE ). Este acréscimo é essencial para uma explicação
teórica completa àos mecanismos do Estado em funcionamento.
122 TEORIAS

Esta distinção entre os a r e e os AIE encontra-se no centro da concep­


ção de Althusser da ideologia. Os AIE diferem dos ARE precisamente em
sua maneira de funcionar: eles funcionam maciça e predominantemente a­
través da ideologia. Este funcionamento é também o que unifica a diversi­
dade de instituições, porque a ideologia através da qual funcionam já está
unificada por baixo da ideologia dominante.
Isto implica que a problemática da ideologia está intimamente ligada
ao problema do poder do Estado e da dominação da classe. E o reconheci­
mento teórico de que "nenhuma classe pode manter o poder do Estado du­
rante um longo período sem ao mesmo tempo exercer sua hegemonia
sobre os AIE e neles" (1971, p. 139). Mais precisamente, é o reconhecimen­
to de que para a reprodução das relações de produção capitalista a hegemo­
nia ideológica exercida através dos AIE é indispensável.
O que se realiza através dos AIE é, em última instância, a ideologia da
classe dominante, a classe que mantém o poder estatal. Ademais, os AiE
representam a forma na qual a ideologia da classe dominante àeye neces­
sariamente ser realizada" (1971, p. 172). De fato, a ideologia da classe
dominante torna-se a ideologia dominante somente através da instalação
e desenvolvimento dos AIE específicos nos quais ela é realizada (a Igreja
no feudalismo, a escola no capitalismo, etc.), e esta instalação é o resulta­
do de uma luta de classe.
É interessante notar que esta problemática dos AIE só pode ser referi­
da quando se fala sobre a realidade de sociedades de classes, formações
sociais com ditadura de classe organizada através do Estado. Esta é uma
importante restrição com respeito a A Favor de Marx e a Ler "O Capitai",
nos quais a ideologia é uma "atmosfera indispensável" (1969, p. 232), re­
presentando o "poder m oral" necessário para a manutenção das relações
de produção mesmo em sociedades sem classes. E também uma restrição
com respeito ao tratamento da ideologia na segunda parte do ensaio, que
aborda a ideologia em geral e sua necessária existência material nos "apa­
relhos ideológicos" (sem serem aparelhos de Estado). Estas diferenças são
importantes quando discutimos o funcionamento das superestruturas do
ponto de vista da reprodução. A questão é: qual é a relação entre a natureza
da ideologia e a dominação de ciassel Em A Favor de Marx e Ler "O Ca­
p ita i" não há relação; nosso problema é ver se no ensaio sobre os AIE dá-se
o mesmo. Em suma, com a problemática dos a i e , defrontamo-nos com
uma teoria do Estado e/ou uma teoria da ideologia?
O papel dos AIE é exercido na re-produção das relações de produção.
A tese principal é que esta re-proáuf^o é assegurada, na maioria dos casos,
pelo exercício do poder do Estado nos aparelhos do Estado: tanto nos
ARE como nos A IE , sendo os a ie os que mais contribuem. Cada AIE con­
tribui a seu próprio modo para o mesmo resultado: a reprodução das rela­
ções de produção.'®

1
A TEORIA DE ALTHUSSER 123

Todo o funcionamento da ideologia dominante está concentrado nos


AIE e seu resultado,assegurando ascondições ideológicas para esta reprodu­
ção (os ARE assegurando as condiçõespo//'f/cas).
O AIE preponderante nas formações sociais capitalistas, segundo Al-
thusser, é o aparelho ideológico educacional, porque a reprodução das re­
lações capitalistas de exploração é obtida principalmente através de "um
aprendizado áe know-how revestido pela maciça inculcação da ideologia da
classe dominante" (1971, p. 148). O AIE educacional incute a ideologia em
relação às funções da divisão sócio-técnica do trabalho, com todas as van­
tagens de um aparelho educacional: uma participação obrigatória da tota­
lidade das crianças durante os anos em que são mais "vulneráveis", etc. No
capitalismo o par escola-famriia substitui o par feudal Igreja-familia.
A hegemonia ideológica necessária para a reprodução das relações de
produção organizadas através dos AIE baseia-se no poder estatal exercido so­
bre elas, mas a segurança específica para esta reprodução garantida pelo fun­
cionamento dos AIE está enraizada na natureza da ideologia como tal, que pa­
rece ser independente de sua existência particular em aparelhos do Estado.
De fato, os AIE parecem ser apenas o local em que uma "sujeição à
ideologia dominante" particular é organizada, na qual a função prático-so-
cial da ideologia dominante é consumada. Mas a efetividade da ideologia
dominante na reprodução deriva da natureza da própria ideologia, do fato
de que a ideologia dominante assegura para os indivíduos uma relação vivi­
da" específica com as relações de produção. Nesse sentido a garantia para
a reprodução das relações de produção é um processo que ocorre "na cons­
ciência, isto é, nas atitudes dos sujeitos individuais" (1971, p. 170).

3. A natureza da ideologia
O que Althusser procura detalhar na segunda parte de seu ensaio é uma
problemática m uito precisa, que não deve ser confundida com a dos AIE:
uma teoria da ideologia em geral. Este projeto, para ele, é pertinente por­
que a estrutura e o funcionamento da ideologia são sempre os mesmos. O
problema é o do mecanismo da ideologia, que é uma realidade não históri­
ca, isto é, imutável na forma através de toda a extensão da história das so­
ciedades de c/asse.*’
Sua restrição explícita à história das "sociedades de classe" é, uma vez
mais, uma importante distinção de suas formulações em A Favor de Marx,
mas não há nenhum argumento explícito sobre a razão para essa restrição
ou sobre a importância que ela tem para sua teoria da ideologia. Todavia,
esta restrição é lógica se quisermos manter o elo com a problemática da
reprodução e com os AIE, evitando o problema da "ideologia na sociedade
comunista".
Há uma outra restrição. O mecanismo da ideologia "em geral" é abs­
trato em relação às ideologias reais (ideologias regionais e de classe) exis-
124 TEORIAS

tentes numa formação social. Althusser reconhece implicitamente que a


conceitualização em torno desse "mecanismo" é tão pobre quanto a cate­
goria de "produção em geral" criticada por Marx (ver a Introdução de
1857). Se tomarmos esta comparação a sério, então sua "ideologia em ge­
ral" representa apenas a abstração dos elementos comuns de qualquer ideo­
logia concreta, a fixação teórica do mecanismo geral de qualquer ideologia.
Uma última consideração é que uma teoria das ideolog/as depende des­
ta teoria da ideologia em geral, que deve ser desenvolvida.
Tudo isso implica que nos encontramos agora num terreno conceituai
diferente do dos A IE . Se a problemática dos a ie e da reprodução está dire­
tamente relacionada com a problemática em torno do que poderiamos
chamar de "ideologia dom inante", a conceitualização em torno da ideolo­
gia em geral aplica-se a qualquer ideologia, mesmo àquelas ideologias "de
classes" não comprometidas com um processo de reprodução ou no fun­
cionamento dos A IE. Se a tese sobre ideologia em geral também se aplica
diretamente a uma ideologia revolucionária, é agora uma questão aberta.
Existem três teses principais nas quais Althusser explica a natureza da
ideologia e seu mecanismo geral.

a) A ideologia é uma representação da relação imaginária de indivíduos


com suas reais condições de existência
Esta tese, que procede de A Favor de Marx (ver a seção acima sobre A Fa­
vor de Marx), implica um corte definitivo com todas as conceitualizações
da ideologia como "falsa consciência". Em oposição à atual concepção so­
bre ideologia, para Althusser a ideologia não é uma representação da reali­
dade. Trata-se de coisa m uito diferente: uma representação de uma relação
(individual) com a realidade. O que está representado na ideologia é a
relação vivida dos homens com a realidade: uma relação com as reais con­
dições de existência, isto é, uma relação de segundo grau.“ Em suma, a
ideologia não é uma representação das reais condições de existência (isto
é, as relações de produção existentes e outras relações que delas derivam),
mas uma representação de uma (imaginária) relação de indivíduos com
estas condições reais de existência.
0 que está no centro desta formulação é que se existe uma distorção ima­
ginária numa ideologia é apenas por causa do caráter necessariamente imagi­
nário da relação representada na ideologia. A velha problemática da ideolo­
gia como uma "representação distorcida" é substituTda por uma problemá­
tica da ideologia conto uma representação de uma "relação imaginária".
A este respeito, a ideologia não se refere a "idéias" distorcidas sobre a
realidade, mas a "relações" reais com a realidade. Entre outras coisas, isto
implica que a realidade da ideologia não se encontra no mesmo terreno da
ciência. A ideologia está no terreno do prático-social e é uma instância
específica de uma formação social.
A TEORfA DE ALTHUSSER 125

b) A ideologia tem uma existência material


A existência da ideologia é material porque a ideologia existe sempre no in­
terior de um aparelho e suas práticas. As “ relações vividas" representadas
na ideologia envolvem a participação individual em determinadas práticas
e rituais em aparelhos ideológicos concretos. A existência material da ideo­
logia envolve um sistema completo que é resumido por Althusser desta
maneira: a ideologia existe num aparelho ideológico material que prescreve
práticas materiais governadas por um ritual material, práticas que existem
nas ações materiais de um sujeito. Dada essa existência particular da ideolo­
gia, surge uma importante tese: não há prática, a não ser numa ideologia
e por uma ideologia.

c) A ideologia interpela indivíduos como sujeitos


A ideologia representa relações individuais com a realidade e existe em
aparelhos materiais e em seu sistema de rituais e práticas. Esse funciona­
mento particular da ideologia implica que ela é dirigida aos indivfduos.
A função prático-social especifica à ideologia é constituir indivíduos
concretos como sujeitos, transformar indivíduos em sujeitos. De fato, é
através de seu funcionamento concreto nos rituais materiais da vida coti­
diana que todo indivíduo reconhece a si próprio como um sujeito. Esse re­
conhecimento de ser um sujeito (com características tais como individuali­
dade, liberdade, etc.), este reconhecimento do que parece ser um fato óbvio
e natural, é na verdade um reconhecimento ideológico de uma obviedade
imposta pela ideologia. Alguém se reconhece como um sujeito somente na
prática de rituais ideológicos concretos inseridos nos aparelhos ideológicos.
Isto implica que ser um sujeito (em primeiro lugar reconhecer a si pró­
prio como uma "subjetividade livre") é um efeito da sujeição à ideologia,
é um efeito da permanente inserção de indivíduos e suas ações em práticas
governadas pelos aparelhos ideológicos. O sujeito reconhece que está "tra ­
balhando por si mesmo" no exato momento em que está trabalhando por
uma ideologia e numa ideologia. Neste sentido, torna-se aparente que o
sujeito age na medida em que é alvo de uma ação pelo sistema material
da ideologia.^'
A constituição dos indivíduos como sujeitos é o resultado do funcio­
namento da categoria do sujeito, que é a categoria constitutiva de toda
ideologia e que opera através do mecanismo de interpelação. A ideologia
interpela os indivíduos como sujeitos em nome do Sujeito.

Algumas conclusões
0 ensaio sobre os AIE representa um avanço na teorização de Althusser
que é fruto de uma maior precisão e de uma explicação ampliada do terre­
no da "ideologia". Em primeiro lugar, a especificidade das estruturas da
ideologia (materialidade, aparelhos, constituição de sujeitos, etc.) ganha
126 TEORIAS

maior substância do que anteriormente. Em segundo lugar, há uma expli­


cação mais completa da inter-relação dos níveis ideológicos com a forma­
ção social como um todo: com a economia (reprodução das relações de
produção) e com o Estado. Estes desenvolvimentos possibilitam uma análi­
se mais completa das ideologias, uma vez que assinalam um avanço além do
tratamento da ideologia como simples "formações teóricas" e no sentido
de uma compreensão de sua efetividade específica na e pela luta de classes.
Esta última afirmativa parece paradoxal, já que a crítica mais difundida
ao ensaio consiste em reduzí-lo a uma explicação estática ou "funcionalista"
na qual a luta de classes está quase inteiramente ausente. 0 argumento desta
seção procurou demonstrar a possibilidade de uma interpretação do ensaio
à luz da qual a invocação retórica de Althusser da luta de classes no Pos-
fácio - tão freqüentemente considerado uma desculpa mal disfarçada pelas
lacunas do texto — não é simplesmente um artifício. Entretanto, tendo
mencionado tanto a defesa como a crítica, esta última deve ser esboçada
com mais detalhes, pois ela indica uma tendência no ensaio que não susten­
ta diretamente aquilo que consideramos suas principais qualidades.
Resumidamente, o argumento crítico^^ segue-se desta maneira: ao cíe-
fin ir o papel dos AIE como o mecanismo crucial de reprodução, Althusser
reconheceu de maneira insuficiente a relativa autonomia do nível político
em relação ao econômico. Além disso, a definição de todas aquelas institui­
ções da - nos termos de Gramsci - "sociedade civil" (sindicatos, família,
partidos políticos, etc.) como necessariamente/cíeo/dff/case como aparelhos
ideológicos do Estado, implica a queda do econômico, passando pelo po­
lítico, para a definição de funções ideológicas. Assim, a ideologia torna-se
um conceito "unidimensional", e a "complexidade" muito aclamada de
Althusser em relação à formação social é concomitantemente enfraqueci­
da. O papel do Estado é ilegitimamente a m p lia do -e , o que é importante,
mais por afirmação do que por argumentação. Antes de ser vista como o
produto de uma complexa luta em níveis múltiplos, a reprodução do MCP
passou a ser assegurada sem problemas.
Há alguma substância quanto a este ponto de vista, mas não deve ser
utilizado para denegrir os importantes avanços cuja ênfase tem sido até
aqui nossa principal preocupação. Parece-nos que tomado como um mode­
lo de como uma ideologia dominante concreta funciona, quando funciona
bem, mesmo o "funcionalism o" do ensaio não está completamente errado.
Evidentemente, como uma proposição geral sobre o MCP, o ensaio é passível
de apresentar algumas distorções. Mas estas "notas" são caracterizadas por
uma desigualdade tanto entre as duas partes do ensaio como dentro de
cada uma delas, e o sentido para o qual apontam os vários aspectos não é
necessariamente compatível. Parece racional, pois, tentar pensar as conti-
nuidades bem como os pontos de partida entre estes elementos. Denunciar
unilateralmente o ensaio como funcionalista não pode permitir esta aborda-
A TEORIA DE ALTHUSSER 127

gem. Nossa interpretação, neste artigo, tem sido uma interpretação que pro­
cura situar antes os avanços do que as discrepâncias reconhecidas no texto.
Vimos, pois, que o ensaio focaliza uma problemática diferente: a da
ideologia dominante (aparelho de Estado, reprodução) e a dos mecanismos
necessários de qualquer ideologia ("ideologia em geral"). Esta última tam­

{
bém deu origem a alguns enormes problemas: é ela simplesmente diferente
ou está em contradição com as conclusões da primeira parte? É importante,
no que diz respeito a esse debate, sustentar que o caráter "geral" da ideolo­
gia refere-se apenas aos mecanismos comuns e gerais de qualquer ideologia
concreta. Não se trata de uma ideologia "abstrata" em oposição a "concre­
ta ", nem um esquema abstrato procurando ou esperando "realização". Este
mecanismo da ideologia é investigado detalhadamente na terceira parte
desta coletânea. Este mecanismo deve ser situado de modo crucial ao nível
da individualidade (relações individuais "vividas em imaginação"), e não
pode ser encarado, portanto, como idéias simplesmente falsas ou "distor­
cidas". É possível, portanto, apesar das dificuldades remanescentes, mos­
trar a coerência de uma tese precisa mas complexa: as ideologias, para
Althusser são

corpos de representações existentes em instituições e práticas: elas se destacam


na superestrutura e baseiam-se nas iutas de ciasse. (1972, p. 7)

V I Recapitulação

Vimos que em A Favor de Marx a ideologia foi situada principalmente


como um nivel da formação social. Ora, ao mesmo tempo em que uma
definição epistemolôgica também foi utilizada (particularmente para indi­
car a pré-história de uma ciência), argumentamos que em A Favor de Marx,
ao contrário de Ler "O Capital", esta definição funciona para definir o lu­
gar da ideologia na formação social, e não apenas para esclarecer uma posi­
ção epistemolôgica. Devido ao fato de que a ciência não é a "verdade" da
ideologia, não devemos nos deixar enganar pelo fato de que a ideologia posa
como uma verdade teórica em graus variados; em vez disso, devemos per­
ceber que sua função não é precipuamente teórica, mas prático-social. A
análise deve começar por uma reformulação da questão da superestrutura,
impondo-se, portanto, mais como parte do materialismo histórico do que
do materialismo dialético ou da filosofia. Em A Favor de Marx, a ideologia
é um sistema de representações que é inconsciente e fundamentado nas
práticas da vida cotidiana. Não é, portanto, necessariamente ilusória, em­
bora de fato se apresente como verdade ou senso comum. Os interesses ex-
trateóricos de agentes que as formações ideológicas representam "refletem "
de modos relativamente autônomos a formação social estruturada (econô-
128 TEORIAS

mica, política e ideológica) na qual surgem. A ideologia como parte da


formação social, qualquer formação social, é uma proposição constante em
toda a obra de Althusser. Embora ela seja simultânea à história de qualquer
formação social, seu conteúdo e suas funções dependerão da natureza de
cada formação social dada.
Surge, todavia, um problema em relação á definição da ciência; esse
problema é levantado mas não amplamente abordado em A Favor de Marx.
Em Ler "O Capital", a questão do contexto social (materialismo históri­
co) permanece, mas passa para um segundo plano da discussão da ideologia,
cedendo o lugar a uma pormenorização filosófica dos conceitos. Como
observa Althusser constantemente, em seu Essays in Self-Critidsm , esta
"teorização" consiste em afirmar o primado da questão da ciência em ge­
ra l^ de modo que o marxismo (que parece dar origem ao próprio conceito
de ideologia) torna-se apenas um caso especial da tese epistemológica geral:
a separação e as diferenças teóricas absolutas entre Ciência e Ideologia.
A questão da ciência (prática teórica) foi levantada em A Favor de
Marx. Ela parecia constituir um quarto nível distinto da formação social.
No entanto, a filosofia marxista, ou a teoria da prática teórica, encontra­
va-se ainda mais distante das determinações sociais, operando precisamente
como o fiador da cientificidade da ciência — quanto a isso Althusser
reprova infatigavelmente a filosofia "burguesa". Esse aspecto de A Favor
de Marx, principalmenie em "Sobre a Dialética Materialista", é retomado
em Ler " 0 Capital". Nessa obra, a ideologia é definida como o que não
é científico, não tanto em virtude de sua função sócio-prática, mas pela or­
ganização teórica que esta função exige. São reiterados atributos semelhan­
tes aos encontrados em A Favor de Marx-. especialmente o aspecto da cir­
cularidade ideológica, auto-reconhecimento ou fechamento. Seus alvos
principais, como exemplificações desta estrutura inalterável de argumenta­
ção ideológica, são as "tentações" e tendências do idealismo/empirismo.
Os principais conceitos althusserianos gerados em Ler "O C apitai" (se­
paração entre concreto-em-pensamento e real-concreto, causalidade estru­
tural) são tentativas de evitar um fechamento ideológico em nome da ciên­
cia e de Marx; esta perspectiva é baseada numa interpretação particular da
introdução de 1857.
Através de toda a obra de Althusser, inclusive a Autocrítica, a noção
de que a ciência tem que romper com suas pré-condições ideológicas é fu n ­
damental ao pensamento do autor. Apesar de afirmar o contrário, tal po­
sição acarretou pelo menos o risco de definir a ciência como a verdade da
ideologia; o que a ideologia não é. A ciência, por definição, não é ideológi­
ca, portanto não é teoricamente fechada, empírica, ou idealista. Ela está
sujeita a critérios internos de qualidade (que não podem ser especificados
em geral). Ela não confunde o objeto de conhecimento com o concreto
real, e seu conhecimento não é "d ad o " mas produzido.
A TEORIA DE ALTHUSSER 129

A partir de “ Lenin e a Filosofia" e principalmente no ensaio sobre os


AIE, Althusser retorna ao posicionamento social de ideologia e, com efei­
to, satisfaz essa proposição, como ocorreu em A Favor de Marx (principal­
mente em "Marxismo e Humanismo"). O aspecto crucial é o de que a ideo­
logia intervém diretamente na reprodução das condições de produção (as
relações e as forças produtivas) numa sociedade de classe e, conseqüente-
mente, reproduz as condições de exploração. Devemos notar que isto
assinala um problema sobre a "eternidade" da ideologia como um nível:
trata-se de um retorno parcial ao conceito de superestruturas, as condições
superestruturais de existência das relações de produção. O Estado, no
ensaio sobre os AIE, é o mecanismo crucial para a unidade do nível ideoló­
gico. Apesar da tendência de superenfatizar o papel todo-poderoso e teori­
camente equivalente da ideologia e do Estado — unificando o que em
Gramsci continua sendo categorias distintas de Estado e "sociedade c iv il"
— o ponto de vista da reprodução permite e exige não apenas a possibili­
dade, mas a realidade da luta de classe. Esta dimensão está ausente de
forma notável em Ler "O Capital". Essa obra também se equipara com
outros textos importantes posteriores ("Lenin e a Filosofia", "Filosofia
como uma Arma Revolucionária" e a A u to crítica), nos quais a filosofia é
vista como uma intervenção política (luta de classes) no campo da teoria.
Longe de ser a garantia da ciência (marxista), a filosofia, como a ideo­
logia, é um campo de batalha no qual as posições de classe decorrentes de
descobertas científicas travam combate. A ideologia, portanto, nos textos
posteriores, transforma-se numa explicação do "efeito de sociedade" ind i­
cado em A Favor de Marx, mas um tanto deslocado na explicação do
"efeito de conhecimento" em Ler “ O Capitai". A função da ideologia dá
a ela sua natureza peculiar (alusão/ilusão) — que não é admitida apenas
porque a ideologia é considerada uma estrutura teórica em contraste com
a ciência em geral.
Procuramos indicar que as duas maneiras de começar a explicar a "ide­
ologia" em Althusser persistem em incômoda associação através de toda
sua obra. Este problema não é exclusivo de Althusser: podemos estudar em
detalhes concretos quantas ideologias quisermos, mas a menos que tenha­
mos uma clara idéia conceituai daquilo que teoricamente separa a ideologia
de outras realidades (e conceitos) — inclusive a ciência — não será possível
sabermos o que estamos estudando.
A análise das ideologias numa formação social específica (a articula­
ção entre os AIE de dominação-subordinção) depende ainda da existên­
cia de um aspecto estrutural comum a toda ideologia. Pelo menos, essa é
uma posição sustentada por Althusser no ensaio sobre os AIE. Em A Favor
de Marx e em Ler "O C apitai", essa posição foi formulada em termos da
peculiaridade (entre outras coisas) que tem a ideologia de colocar um Su­
jeito constitutivo e constituído no centro da história, teoria, ética, indi-
130 TEORIAS

vidualidade etc. Esta idéia recebeu atenção mais específica no ensaio sobre
os AIE sob a forma da tese segundo a qual a ideologia constitui agentes in­
dividuais como sujeitos. Indicamos a ordem dos problemas que esta tese
suscita, problemas que permanecem sem solução em Althusser, e talvez
ainda mais refratários à luz de sua mais recente Autocrítica.

V II Conclusão/crítica

O objetivo do presente artigo era principalmente expositório; contudo, em


vários momentos indicamos problemas na "le itu ra " de conceitos althusse-
rianos tais como "formação social" e "ideologia", ao mesmo tempo em
que incorporamos alguns pontos de crítica. Nesta seção, procuramos deli­
near alguns argumentos influentes que têm sido formulados contra Althus­
ser, permanecendo o mais próxim o possível da questão da ideologia, a fim
de ampliar a base de nossa apreciação.
Talvez a crítica mais comum feita à obra de Althusser como um todo
é a de que, apesar de sua importante categoria de "autonomia relativa", a
conseqüência teórica (principalmente em seus primeiros textos) foi con­
ferir aos "níveis" de ciência e de filosofia uma condição absolutamente
autônoma. Autônoma, nesse sentido, significa sem determinantes sociais.
Althusser, como se afirma, mostra-se inconsistente quando se recusa a con­
ferir à ciência e à filosofia da ciência (como a teoria da prática teórica) o
necessário caráter de determinação que é elemento constitutivo das rela­
ções entre níveis da formação social. Durante vários anos, desde as críticas
de A. Glucksmann e Geras até as mais recentes de Callinicos,^® tem sido
argumentado que esta condição privilegiada da teoria em Althusser com­
promete-o com o "idealism o" e com o "kantism o", e até mesmo com um
elitismo reacionário, um elitismo que Rancière vê como sendo típico do
PCF.
Essas críticas podem ser associadas a alguns comentários anteriores
sobre Ler "O Capitai". A insistência de Althusser quanto a uma separa­
ção definitiva entre ciência e ideologia, e quanto à permanência do nível
social "ideologia", não leva em consideração a importância das diferenças
entre ideologias distintas. Poder-se-ia argumentar que o nível de generali­
dade impede analiticamente uma "análise concreta de uma situação con­
creta", e politicamente a possibilidade de modificar as opiniões das pessoas
para uma perspectiva socialista. De fato, uma questão-chave para todo o m i­
litante (que segmentos da população, dada sua situação e idéias no momen­
to, têm mais possibilidade de serem conquistados para a causa da classe
operária?) tem pouca importância no esquema de Althusser. Existe ainda-
a questão de que, sejam quais forem as modificações no sentido da "luta
de classes" efetuadas pelo ensaio sobre os A IE , o papel abrangente e "está­
tico ", e portanto inevitavelmente conservador, da ideologia nesse ensaio
A TEORIA DE ALTHUSSER 131

encoraja um pouco mais. Paralelamente a este problema, tem-se insistido


de modo igualmente intransigente que a idéia de Althusser de que a ciên­
cia está livre da ideologia é puro absurdo: financiamento para programas de
pesquisa, a relação entre ciência "p ura " e tecnologia, e mesmo a opinião
dos próprios cientistas - estes fatores enfraquecem essa convicção tão
ingênua. Althusser, portanto, deve ser rejeitado com base em que suas
posições são um recuo do próprio marxismo: concebido não como conhe­
cimento puro, mas como ciência crftica, uma arma revolucionária afirman­
do o primado da prática de classes.
Dissemos que esta é uma generalização de argumentos freqüentemen-
te mais sutis. Mas parece-nos não haver razão para duvidar que ela é, não
obstante, a essência da maioria das crfticas publicadas. Cailinicos, por
exemplo, insiste em que os argumentos sejam examinados em termos de
coerência interna e não do ponto de vista da prática.^® Todavia, é essa
última concepção que definitivamente informa a crítica: a ideologia é o
local da luta de classes, e embora ela possa prolongar-se até o período de
transição para o socialismo, não pode por definição continuar indefinida­
mente (ela é o produto das sociedades de classe). Se a ideologia é o modo
pelo qual vivemos nossas relações com nossas reais condições de existência,
ela é portanto modificável e passível de ser totalmente eliminada. C ailini­
cos indubitavelmente distancia-se dos pronunciamentos mais extremados
de Rancière, mas ambos compartilham — com muitos outros — substan­
cialmente a mesma posição.
É interessante notar que tanto Althusser como Balibar retrataram-se
ante a abominável questão do teoricismo, embora ainda se recusem a ser
chamados de estruturalistas. Embora reconhecendo que não seja implausí-
vel identificar, como Glucksmann^^ o faz, similaridades entre Althusser
ye, digamos, Lévi-Strauss, indicamos que, pelo menos quanto a Althusser,
esta última acusação não pode ser satisfatoriamente confirmada. Portan­
to, não a discutimos.
O efeito de sua autocrítica, contudo, certamente não deixa de ser
um retorno problemático ao tipo de posição "o rtod oxa " esboçada acima:
uma posição, em que pese ser qualificada, baseada na idéia de que as ideo­
logias relacionam-se organicamente com formas historicamente especificas
de lutas de classe, definidas principalmente pelo nível econômico. Se A l­
thusser aceitasse esta linha de argumento, não apenas seu teoricismo, mas
seus ataques contra o economismo e o historicismo teriam sido trazidos à
baila. Mas eles não foram questionados, e o problema da autocrítica não
pode, portanto, ser reduzido a uma retificação da maturidade de um aca-
demicismo inicial.
Sem negar que houve uma mudança de pqsiçâfffí^^ííté a pena assThalar
que certos elementos básicos não se alteraram. O efeito da autocrítica é
rejeitar a posição conferida à tilosofia em A Favor de Marx e Ler "O
132 TEORIAS

Capital", mas não a da ciência. A natureza fundamentalmente diferencial


de ciências autênticas ou "continentes de conhecimento" não se modifica
em Althusser. Nem tampouco a condição da ideologia. Ora, freqüentemen-
te não fica claro que nada existe no "sistema" de Althusser que negue que
a pesquisa científica seja socialmente determinada. Mas, epistemologica-
mente, devemos estar conscientes de que a validade do conhecimento cien­
tífic o não pode ser de modo algum reduzida as suas condições sociais de
existência. Para Althusser, o conteúdo das ideologias pode ser reduzido
assim. Temos aqui a razão para sua caracterização da ciência como próxi­
ma da ideologia, sendo contudo sua "surpresa". Argumentar, pois, que a
reivindicação de uma diferenciação epistemológica entre ciência e ideolo­
gia contradiz a concepção de Althusser da formação social é simplesmente
uma atitude mal orientada. Permanece, contudo, o problema da filosofia.
Nos textos posteriores, fica claro que a filosofia já não é o fiador da ciência;
assim, embora ela não deva ser exatamente incorporada á categoria "ideo­
logia", não deixa entretanto de desempenhar uma função central "nas vi­
zinhanças das ciências" como "lutas de classe no campo da teoria" (1976,
p. 37n). Althusser ipso facto reconheceu neste campo uma certa diferen­
ciação e maleabilidade interna. Em princípio, o estudo das ideologias não
é descartado, embora se possa dizer com certa razão que Althusser não
demonstra nenhum compromisso teórico para com esses estudos conjuntu­
rais.
Portanto, os autênticos pontos de crítica precisam —até certo ponto —
ser respondidos. Contudo, a condição da ciência e da ideologia (não con­
fundir com suas condições qualitativamente idênticas de existência)
continua sendo num determinado sentido a mesma de antes. Por que isso?
Num trabalho proveitoso e de boa leitura. Paul Hirst^® declinou algumas
das razões. O marxismo de Althusser é o primeiro a romper teoricamente
com o economismo e com o historicismo. Se, ao rejeitar o "teoricism o",
Althusser também rejeitasse as especificações formais do conhecimen­
to, então sua teoria da ideologia — mesmo no ensaio sobre os AIE — sim­
plesmente não teria valor. Todavia, os elementos desta teoria de fato per­
manecem os mesmos e são dirigidos contra aquelas conseqüências que
muitos de seus críticos favoráveis ao antiteoricismo perfilham — o econo­
mismo e o humanismo (historicismo). Para Althusser, as idéias não derivam
do mundo "real", pois isso implica um reducionismo inaceitável. Elas não
refletem (mais ou menos) suas condições de existência. Tampouco "per­
tencem" a classes economicamente definidas misteriosamente ligadas ao
destino do mundo a longo prazo. Nenhuma dessas negativas implica um
esforço teórico intransigente para romper com o economismo e o empiris-
mo. Quando Althusser contrapõe a ciência á ideologia, apesar das aparên­
cias, ele não está dizendo que a ciência é a "verdadeira" ou "falsa" ideolo­
gia. Ao contrário, seus respectivos objetos de análise não são comparáveis.
A TEORIA DE ALTHUSSER 133

A ideologia é tão "re a l" quanto a ciência; seu papel está longe de ser insig­
nificante. O argumento de Althusser de que a ideologia tem de fato a ver
tanto com as práticas materiais, cotidianas^ quanto com as idéias-na-cabe-
ça deve precaver contra uma construção "idealista" desta posição. As
idéias da ideologia, portanto, são tão verdadeiras quanto são falsas, pos­
suindo posições reais, identificáveis, de existência. Qual é, pois, a diferença
qualitativa ou lógica entre ciência e ideologia? A ideologia é a maneira pela
qual os homens vivem sua relação com as condições reais de existência, e
esta relação é necessariamente imaginária. Em outras palavras, a ideologia
repousa sobre experiências subjetivas que se apresentam como se represen­
tassem as condições mais profundas, invisíveis e não sentidas da existência
social. Segue-se, pois, argumenta Hirst,que para Althusser a experiência não
é o tipo de coisa que pode chegar ao conhecimento das circunstâncias do
sujeito. O conhecimento não depende nem da experiência nem dos sujeitos.
Antes de prosseguirmos nesta linha de pensamento, devemos mencio­
nar a posição mais desenvolvida de Hirst,^* pois representa uma abordagem
de Althusser que é ao mesmo tempo original e diametralmente oposta á
primeira série de criticas. Resumidamente, Hirst aplaude a tentativa de
Althusser de romper com o economismo na teoria da ideologia. Todavia,
trata-se apenas de uma tentativa, porque o próprio Althusser, longe de pre-
(Conizar o "autonom ismo", é vitima de certos desvios economisticos per­
sistentes. No ensaio sobre os AIE, por exemplo, a ideologia e o Estado são
simples funções já dadas; mecanismos derivados por uma causalidade trans­
parente e proveniente de outro setor, isto é, da economia. Em suas obser­
vações sobre a natureza do "su jeito " da ideologia, Althusser é impedido de
manter um diálogo autêntico com disciplinas na área da subjetividade -
psicanálise e semiótica - porque ele retém um conceito de indivíduo hu­
mano que é pré-freudiano. Essa noção particular é mantida a fim de preser­
var a lógica da "representação". Isto é, que os meios imaginários da repre­
sentação ideológica (imagens, linguagem, emoções, símbolos, rituais etc.)
derivam daquilo que é representado ou lhe são subordinados. E para Althus­
ser, definitivamente, aquilo que é representado é um objetivo ou condição
economicamente definido (a perpetuação do governo de classe) cujo lugar
é preenchido por agentes humanos. Neste sentido, a coerência de suas ob­
servações é comprometida por seus fantasmas economicistas. Hirst argu­
menta ainda que o próprio conceito de representação — uma versão de au­
tonomia relativa — é, como o segundo conceito, inerentemente instável. Os
meios necessários de representação ideológica (como as superestruturas)
são tidos como possuidores de uma autonomia relativa face à sua função
social "objetiva". Não obstante, transparece na teoria de Althusser que
esses meios só podem ser situados de modo coerente em termos daquela
função. A autonomia relativa, afirma Hirst, quer se refira a "níveis" da fo r­
mação social, práticas políticas ou a mecanismos ideológicos, é um concei-
134 TEORIAS

to que, na tentativa de realizar uma síntese unificada, simplesmente justa­


põe duas noções (autonomia e determinação) logicamente opostas uma á
outra. Hirst insiste que temos de considerar seriamente o caráter distinto
das práticas ideológicas ou nos voltar aberta e honestamente a um simples
economismo! não há outra saida. O meio-termo de Althusser não rompeu
totalmente com o legado do economismo, embora tenha criado, mais que
qualquer outro, os conceitos para fazê-lo.
De maneira clara, nossa interpretação das atitudes dominantes em rela­
ção aos textos de Althusser sobre a teoria da ideologia não é mais do que
um guia para discussão crítica. Concluiremos esse artigo com uma rápida
avaliação de sua racionalidade. O primeiro ponto a considerar neste con­
texto é conferir à problemática a centralidade da filosofia na obra de A l­
thusser. Evidentemente, houve excessos ou, como ele prefere dizer, "des­
vios". Em particular, a teoria da prática teórica como o fiador da ciência
marxista (ou mesmo qualquer ciência), como Althusser e outros admitiram
desde então, é uma tese insustentável. Ela comete exatamente aqueles
erros da filosofia clássica contra os quais Althusser inicialmente dirigiu seu
projeto teórico. Por outro lado, procuramos demonstrar que, sem conside­
rar o "teoricism o", há uma permanente coexistência — e talvez uma tensão
insolúvel — entre a ideologia concebida como a antítese epistemológica da
ciência geral e concebida como um elemento intrínseco da estrutura ou
tecido das formações sociais. Seja o que for que se possa dizer ainda de
Althusser, procuramos demonstrar que sua explicação da formação social e
seus conceitos concomitantes — por exemplo conjuntura, superdetermina­
ção — constituem uma contribuição duradoura ao materialismo histórico.
A "filo sofia ", contudo, não é um divertimento irrelevante. Althusser tem
argumentado de modo consistente que a necessidade do anti-essencialismo
dentro do materialismo histórico deve ser (política e conceitualmente)
dependente de um esclarecimento das posições a que se chegou na filosofia
marxista ou no materialismo dialético.
E a essa altura que a clara exposição de Hirst da teoria althusseriana da
ideologia é recompensadora. A rejeição do teoricismo não implica um re­
torno às posições marxistas relativamente ortodoxas advogadas pela p ri­
meira das tendências críticas discutidas acima. Pois essas últimas de fato
exigem uma geração razoavelmente não problemática ou transparente da
ideologia (e da política) a partir de uma luta de classes economicamente
definida. E isso por sua vez depende de um certo materialismo não teoriza­
do mas necessariamente filosófico que considera a luta de classes e a "prá­
tica" como substratos pré-teóricos "dados" e, conseqüentemente, como
"mni» reais". São estes pressupostos filosóficos (suprimidos) que Althusser
«iilimiitou à consideração. O problerna de uma teoria adequada deve incluir
>1 .lll■ll«l< (Io tais premissas: neste sentido uma filosofia marxista não pode
iini i .kI h com slogans essencialistas como "voltar à prática". Pois fa-
A TEORIA DE ALTHUSSER 135

zê-lo obstrui uma teoria adequada da ideologia. Ao aceitar a racionalidade


desta linha de argumentação, conseqüentemente nos distanciaríamos das
conclusões da primeira tendência crítica. Concordar completamente seria
reduzir a posição teoricamente coerente de Althusser a uma ou duas "per­
cepções" ad hoc e, desse modo, não aprenderiamos a novidade e a serieda­
de de sua contribuição.
Ao tirarmos tal conclusão, conseqüentemente interpretamos a con­
cepção de Althusser de ideologia de modo m uito semelhante ao de Hirst.
Por outro lado, nossa insistência em que seja qual fo r sua confiança em
categorias filosóficas, a idéia de que a posição da ideologia como um nível
social relativamente autônomo é algo a ser considerado não seria aceita
pelo últim o. Isto porque Hirst vê o conceito de autonomia relativa como
uma obstrução lógica à análise científica tanto da política como da ideolo­
gia. Os meios das práticas políticas e ideológicas, argumenta ele, devem
ser dotados de uma condição autodeterminada, livre de matizes essen-
cialistas. Contudo, esta conclusão - apresentada aqui de modo talvez su-
peresquemático - deriva da contribuição mais recente de Hirst. Sua força
interna não pode ser examinada aqui apropriadamente. Todavia, parece
que, no ímpeto contra o economismo e o essencialismo iniciado por A l­
thusser, Hirst estendeu os termos de referência destes dois conceitos para
incluir o conceito de marxismo como uma ciência da formação social ba­
seada na determinação em última instância pelo nível econômico. Apesar
do caráter freqüentemente arbitrário de interpretações que parecem ser
justificadas pela "autonomia relativa", o chamado conceito instável de
Althusser pelo menos reserva um lugar central á determinação em última
instância. Isto considerado, diriamos que rejeitar o "economismo" de A l­
thusser (em oposição a suas "tendências funcionalistas") significa rejeitar
também a idéia de que o marxismo, independente do que mais possa ser
(apenas política revolucionária, por exemplo), pelo menos proporciona
uma análise científica (isto é, determinada) das formações sociais.
As críticas alternativas delineadas, ao mesmo tempo em que estão
intrinsecamente em oposição, parecem compartilhar aquela noção de um
dilema com que se defrontam os marxistas e que foi levantada por Hirst:
economismo ou autonomismo? Sustentamos a tese de que o terreno apa­
rentemente m ítico da "autonomia relativa" — sejam quais forem seus pro­
blemas — continua sendo uma posição insustentável em relação á inter­
venção de Althusser e, de fato, ao próprio marxismo concebido como uma
análise científica das formações sociais.

NOTAS

1. 1976, p. 179.
2. 1970, pp. 182-93.
136 TEORIAS

3. 1969, p. 254.
4. Marx, 1973, pp. 106-7.
5. Ver 1969, pp. 193-214.
6. Hindess e Hirst, 1975, pp. 272-8.
7. Ver 1970, parte III, "The Basic Concepts of Historical Materialism".
8. Ver 1969, pp. 183-93.
9. 1971, pp. 134-5.
10. Ver 1976, pp. 175-87.
11. A noção de Imaginário, aqui, é bem semelhante á de Lacan. Ver, por exemplo,
New Le ft Review 51. '
12. 1969, p. 231.
13. 1970, p. 28.
14. Mas ver o artigo sobre Gramsci nesta coletânea.
15. 1970, pp. 52-3.
16. 1970, p. 177.
17. 1971, p. 171.
18. Ver 1971, p. 146.
19. 1971, p. 152.
20. 1969, p. 233.
21. Ver 1971, p. 159.
22. 1971, pp. 170-3.
23. Para o exemplo mais avançado desse argumento, ver Hirst. 1976.
24. 1976, p. 68.
25. Ver Bibliografia.
26. Cailinicos, 1976, pp. 7-9.
27. M. Glucksmann, 1974.
28. Hirst. 1975.
29. Hirst, 1976.

BIBLIOGRAFIA

Obras de Althusser

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(1971) Lenin and PhUosophy and Other Essays, em especial "Ideology and Ideolog-
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(1972) Politics and History, New Left Books, Londres.
(7/8 de janeiro de 1973) "The Conditions of Marx's Scientific Discovery", em Theo-
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(1976) Essays in Salf-Criticism, New Left Books, Londres.
(1976) Positions, Hachette, Paris.
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p ita l", 2 volumes. Rio, Zahar, 1979.1

Textos Críticos
A. Cailinicos (1976) Althusser's Marxism, Pluto, Londres.
N. Geras, "Althusser's Marxism: An Assessment and an Account" New Le ft Re-
view, 71.
137
A TEORIA DE ALTHUSSER

A. Glucksmann, "A Ventriloquist's Structuralism", New L e ft Review. 72


M. Glucksmann (1974) Structuralist Analysis in Contemporary Social Thought. RK. ,

B Hindt™*e P. Hirst (1975) Pre-Capita/ist Modes o f Production RKP, Londres. |Ed.


bras.: Modos de Produção Pré Capitalistas. Rio, Zahar, 1976 1
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P.Q. Hirst (nov. 1976) "Althusser's Theory of Ideology , em Economy and Soaety.
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ReferAncias
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J. Lacan, "The Mirror Phase", New L e ft Review. 51.
Identificação Errônea de Ideologia:
a Ideologia no Poder Político e nas Classes Sociais

John Clarke, lan Connell,


Roisín McDonough

Este artigo oferece uma consideração e uma crítica das formulações de


uma teoria marxista da ideologia apresentada por Nicos Poulantzas em Po­
der Político e Classes Sociais. Assim sendo, não se trata nem de uma tenta­
tiva de fazer uma consideração sobre a totalidade do te x to * nem de uma
avaliação das concepções da ideologia presentes na obra posterior de Pou­
lantzas. A principal razão para nos concentrarmos unicamente neste texto
particular é que ele assinala o mais sistemático e detalhado tratamento
dado por Poulantzas à ideologia, embora não seja o objetivo primordial de
sua investigação. Antes de abordar sua conceituaiização da natureza da
ideologia, torna-se portanto necessário considerar como esta conceitualiza-
ção está conectada ao nível político (o principal objeto de estudo do livro)
e a maneira pela qual se situa dentro de um quadro teórico geral conhecido
geralmente como "estruturalista".* *

Os conceitos gerais

A elaboração de Poulantzas de uma teoria regional do político assenta-se


numa exposição dos conceitos necessários do materialismo histórico, dos
quais os dois mais importantes são os de um modo de produção e forma­
ção social. Para Poulantzas, um modo de produção não é apenas o que é
usualmente designado como as relações de produção, mas é uma combina­
ção específica de estruturas e práticas (econômicas, políticas, ideológicas e
teóricas), na qual o econômico é "determinante em última instância". Um

• Ver o artigo mimeografado a ser publicado pelos autores, que é uma tentativa de
avaliar a teorização da natureza do Estado no capitalismo contemporâneo.
* • Para um exame mais detalhado do quadro estruturalista, ver a primeira seção do
artigo sobre Althusser nesta coletânea.
IDENTIFICAÇÃO ERRÔNEA DE IDEOLOGIA 139

modo de produção é caracterizado por uma unidade complexa na qual as


relações entre as estruturas/instâncias são relações em que a "estrutura
de dominância" governa a natureza dos outros níveis ao "atribuir-lhes seu
lugar e distribuir-lhes funções" (1975, p. 14).
Esta formulação implica uma rejeição do reducionismo econômico
atribuído a modelos base/estrutura, com sua suposição de que há uma
contradição principal expressa ou refletida em cada nível, e a inversão
destas formulações, a concepção historicista de uma "totalidade expres­
siva" cuja premissa é um propósito teleológico já dado que a história se
esforça por realizar. Conseqüentemente, o que distingue um modo de pro­
dução de um outro e especifica sua natureza é a forma de articulação man­
tida por seus níveis.
O nível econômico (que é determinante) é ele próprio composto de
três elementos invariáveis, que em modos de produção particulares são
combinados em relações específicas. Estes elementos invariáveis são:
1. O trabalhador, o "produtor direto", isto é, a força de trabalho.
2. Os meios de produção, isto é, o objeto e os meios de trabalho.
3. O não-trabalhador que se apropria da mais-valia do trabalho, isto
é, o produto.
Estes elementos existem numa combinação específica num modo de
produção particular, uma combinação composta de duas relações: primei­
ro, uma relação de apropriação real que se refere à relação do trabalhador
com os meios de trabalho (isto é, o processo de trabalho), e em segundo
lugar uma relação de propriedade que permite ao não-trabalhador intervir
como proprietário dos meios de produção ou da força de trabalho ou
ambos e, conseqijentemente, do produto. É essa última relação que define
as relações de produção, no sentido estrito. Tomados em conjunto, estes
elementos e instâncias constituem o "conjunto de estruturas" de um modo
de produção. 0 conceito de classes sociais como sendo o efeito do "con­
junto de estruturas" (o econômico, o político e o ideológico) decorre deste
princípio fundamental: as classes não são vistas como constituídas unica­
mente ao nível econômico (em relações de produção);elas são produzidas
através da combinação de todas as instâncias, e se manifestam em práticas
particulares — práticas econômicas, políticas e ideológicas. Há, em outras
palavras, uma firme distinção entre as estruturas e as relações sociais que
são os efeitos das estruturas: as classes não aparecem como estruturas, mas
como relações sociais (de produção, de política, de ideologia). Ao nível
econômico, estas duas áreas distintas são cobertas respectivamente pelos
termos "relação de produção" e "relações sociais de produção". O pri­
meiro termo refere-se à relação entre capital e trabalho assalariado (no
modo capitalista de produção — MCP), enquanto o segundo designa a distri­
buição de agentes/suportes em classes sociais como capitalistas e trabalha­
dores assalariados: isto é, a relação de produção corresponde ao que fora
140 TEORIAS

anteriormente denominado de combinação de trabaihadores/não-trabalha-


dores/meios de produção da estrutura.
A partir deste ponto de vista, as funções ou categorias de trabalhado­
res e não-trabalhadores ao nível econômico do MCP podem ser respectiva­
mente designadas como capital e trabalho assalariado, sendo combinadas
numa forma específica (em termos das duas relações que assinalamos
antes). Estas duas relações ocorrem naquilo que Poulantzas chama uma ho-
mologia no MCP. Isto é, em todas as sociedades de classes, a relação de pro­
priedade resulta sempre numa separação do trabalhador dos meios de tra­
balho, que são propriedades do não-trabalhador que, como proprietário,
se apropria da mais-valia do trabalho; mas a relação de apropriação real
pode estabelecer ou uma união do trabalhador com os meios de produção
(como nos modos pré-capitalistas de produção) ou uma separação do tra­
balhador dos meios (como no estágio da indústria pesada no MCP).

Na combinação característica do MCP, as duas reiações são homólogas. A se­


paração na relação de propriedade coincide com a separação na relação de apro­
priação reai. Ip. 27)

Essa é a primeira e determinante característica do MCP — é esta com­


binação econômica que determina a relação/articulação do conjunto dos
níveis que atribui funções e posições a cada um. Ela produz de modo cru­
cial a relativa autonomia do político em relação ao econômico. Isto é, a
separação do produtor direto dos meios de produção e o conseqüente rom­
pimento dos "laços de dependência pessoal" característicos do modo feu­
dal de produção provocam esta separação entre o político e o econômico.
É esta "autonomia relativa" do político que, para Poulantzas, torna possí­
vel a construção de uma "teoria regional" deste nível no MCP. Contudo, os
modos de produção não existem em estado puro — tudo que "realmente"
existe são formações sociais historicamente determinadas e que são com­
postas de vários modos imbricados de produção, nos quais um é predomi­
nante. Assim sendo, só é possível analisar concretamente uma formação
social num momento histórico particular, por exemplo, a França sob Louis
Bonaparte, a Grã-Bretanha sob Macmillan etc.
É esse, pois, o conjunto geral de conceitos no qual se situa a análise
da ideologia — tanto em termos de suas características gerais como um
nível particular de todos os modos de produção quanto das formas especí­
ficas que esta produção assume no modo capitalista de produção.

Erros nas concepções historicistas de ideologia

Poulantzas começa sua discussão da ideologia com uma crítica das con­
cepções "historicistas". Esta crítica volta-se para a posição do "jovem "
Marx segundo a qual a ideologia está contida no modelo: "O sujeito/o

l
IDENTIFICAÇÃO ERRÔNEA DE IDEOLOGIA 141

real/alienação" (p. 195), no qual "a ideologia é uma projeção num mundo
imaginário da essência mistificada do sujeito." Esta problemática leva à
redução da ideologia à consciência — ou, antes, falsa consciência. Todavia,
o alvo principal da crftica é a concepção de Lukács de^"consciência de clas­
se" e "visão do m undo", na qual a "visão do m undo" da "classe-sujeito"
particular da história apresenta-se como o princípio central no estabeleci­
mento da unidade de uma formação social. Poulantzas traça essa concep­
ção através de sua transfiguração e suas utilizações por diferentes mãos —
Weber, Parsons, New L e ft fíeview e Gramsci, embora admitindo que a obra
de Gramsci também implique "aspectos científicos e originais" — cujos
elementos mais significativos são: "a metáfora ambígua" do "cim ento" da
sociedade; e o rompimento "com a concepção de ideologia como um siste­
ma conceituai". Poulantzas volta a ambos os temas em sua própria análise.
Existem, contudo, outras objeções à concepção historicista, que con­
vergem em torno de sua conexão "genética" coma classe-sujeito particular.
Considera-se que esta concepção conduz a dois erros importantes. Primei­
ro, a "exagerada politização" da ideologia (p. 202), na qual as ideologias
são tratadas "com o se fossem distintivos políticos numerados nas costas
das classes sociais", torna impossível decifrar a relação concreta entre a
ideologia dominante e a classe ou fração politicamente dominante. Em
contraste, Poulantzas argumenta que
na realidade, a ideologia dominante não reflete simpiesmente as condições de
existência da classe dominante, o sujeito "puro e simples", mas antes a relação
política concreta entre as classes dominante e dominada numa formação social.
Ela é frequentemente permeada de elementos que derivam do "modo de vida"
de classe ou frações outras que a classe ou fração dominante, (p. 203)
Segundo, a identificação da ideologia com classes-sujeitos específicas torna
impossível estabelecer a existência, dentro da ideologia dominante, de ele­
mentos pertencentes às ideologias de outras classes que não a classe p o liti­
camente dominante e explicar a permanente possibilidade da contamina­
ção da ideologia da classe operária pelas ideologias dominante e pequeno-
burguesa, porque numa concepção historicista cada ideologia de classe
"funciona, por assim dizer, num vácuo" (p. 205).
Estas observações constituem uma importante abertura na reformula­
ção da questão da ideologia. Acima de qualquer outra coisa, ao afastar a ideo­
logia de sua construção por uma única classe-sujeito histórica elas levantam
a possibilidade de pensar as ideologias como unidades complexas, produ­
zidas sob condições específicas e moldadas e reconstituídas no processo
das lutas de classes. É esta a tarefa que se propõe nas seções subseqüentes.

A concepção marxista de ideologia


Poulantzas propõe uma definição de ideologia tanto como um "conjunto
relativamente coerente de representações, valores e crenças" quanto como
142 TEORIAS

um nível objetivo específico na formação social. Sua matéria-prima é o


mundo em que vivem os homens, suas reiações com a natureza, com a so­
ciedade, com outros homens e com sua própria atividade poiítica e econô­
mica, refietindo finalmente a ideologia a maneira pela qual os agentes de
uma formação "vivem " suas condições de existência.

A condição do ideológico deriva do fato de que ele reflete a maneira pela qual
os agentes de uma formação, os portadores de suas estruturas, vivem suas condi­
ções de existência, isto é, refletem sua relação com estas condições como ela é
"vivida" por eles. A ideologia está tão presente em todas as atividades dos agen­
tes que se torna impossível distingui-la de sua experiência vivida, (pp. 206-7)

Ao mesmo tempo em que Poulantzas rejeita a equiparação da ideolo­


gia com falsa consciência, sua própria formulação faz-se problemática pela
introdução do conceito "experiência vivida". Da citação acima podemos
constatar que "experiência vivida" é considerada, de alguma maneira,
como fornecendo a "m atéria-prima" da ideologia, isto é, a ideologia “ refle­
te a maneira pela qual os agentes de uma formação, os portadores de suas
estruturas, vivem suas condições de existência". Assim, parece, pelo menos
em termos analíticos, que "experiência vivida" pode ser separada de ideo­
logia. Contudo, tendo feito esta distinção, Poulantzas não especifica em se­
guida o que é que distingue "experiência vivida" de ideologia, seja em
termos de seus componentes ou em termos dos processos pelos quais a
primeira age sobre a segunda para produzir "um universo relativamente
coerente de representações, valores e crenças". De fato, Poulantzas vai
então abolir esta distinção, prática antes que teoricamente, alegando que
"a ideologia está de tal maneira presente em todas as atividades dos agentes
que se torna impossível distingui-la de sua experiência vivida". Assim, pelo
fato de serem coisas distintas, "experiência vivida" e ideologia aparecem
agora como sendo inseparavelmente uma só e mesma coisa.
Com a abolição "prática" da categoria "experiência vivida", a discus­
são de ideologia é recolocada em termos de sua relação funcional com a es­
trutura como um todo. A função social da ideologia "não é dar aos agentes
um verdadeiro conhecimento da estrutura social, mas simplesmente inseri-
los, por assim dizer, em suas atividades práticas que dão suporte a esta es­
trutura". De fato, a ideologia é, "portanto, necessariamente falsa" (p. 207).
Esta falsidade pode incluir "elementos do conhecimento", mas sempre
numa relação de "adequação/inadequação ante o real", "que Marx apreen­
deu sob o termo 'inversão'" (ibidem). Esta falsidade tem a característica
de "ocultar as contradições reais" e "de reconstituir num nível imaginário
um discurso relativamente coerente que serve como o horizonte da expe­
riência dos agentes: chega a este resultado ao moldar suas representações
de suas relações reais e ao inserir essas últimas na unidade geral das relações
de uma formação" (ibidem).
IDENTIFICAÇÃO ERRÔNEA DE IDEOLOGIA 143

A função da ideologia, pois, é a de "coesão" (o "significado funda­


mental da metáfora ambígua 'cimento' empregada por Gramsci") — e,
como o cimento, a ideologia "infiltra-se em todos os níveis da estrutura
social". Coesão designa a produção, ao "nível de experiência", de relações
que são "óbvias mas falsas", que permitem a continuação das atividades
práticas dos agentes. A coesão é sua conseqüéncia por causa da forma pela
qual a ideologia reflete a unidade de uma formação social.

Desse ponto de vista, seu papel especifico e real de unificador não é o de cons­
titu ir a unidade de uma formação social (como a concepção historicista gostaria
que fosse), mas o de refletir esta unidade reconstituindo-a num plano imaginá­
rio. (pp. 208-9)

Esta reconstituição imaginária — que a ideologia realiza através "da­


quelas deformações de inversão e mistificação que lhe são específicas" -
6 "imaginária" no sentido de que a unidade contraditória reai da formação
é reconstituída numa forma não-contraditória.
É a partir desta análise geral da ideologia que a natureza da relação da
ideologia dominante com a classe ou fração dominante pode ser colocada.
Ao contrário da concepção historicista, que reduz esta relação á suposição
de que a ideologia dominante é o produto direto da classe dominante, Pou-
lantzas propõe que a correspondência entre a ideologia dominante e a clas­
se dominante ocorre porque

k o ideológico (isto é, uma ideologia dada) é constituído como uma instância re­
gional na unidade da estrutura; e esta estrutura sofre a dominação de uma classe
dada como seu efeito no campo da luta de classes. A ideologia dominante, ao
assegurar a inserção prática de agentes na estrutura social, tem como objetivo a
manutenção (a coesão) desta estrutura, significando isto acima de tudo domina­
ção e exploração de classe, (p. 209)

Assim, Poulantzas propõe uma distinção na ideologia de uma forma­


ção social entre a "ideologia dominante" e o que ele chama de "subcon­
juntos ideológicos" (por exemplo, subconjuntos feudais e pequeno-burgue-
ses). Existem relações complexas presentes nesta formulação porque estes
subconjuntos são dominados pelas ideologias das classes correspondentes —
feudal, pequeno-burguesa — mas somente na medida em que as ideologias
que dominam os subconjuntos são elas próprias dominadas pela ideologia.
0 que Poulantzas apresenta, então, é uma série de ideologias, cada
uma das quais correspondendo (embora o peso teórico desse conceito não
esteja claro) a uma classe ou fração de classe específica na formação social.
Cada uma destas ideologias específicas forma o elemento dominante num
conjunto ou subconjunto ideológico particular; mas o conjunto também
contém elementos de outras ideologias — são "contaminados". Ademais,
cada uma destas ideologias específicas é ela própria dominada pela ideolo-
144 TEORIAS

gia dominante — a que corresponde à classe dominante — ao ponto de as


classes dominadas "freqüentemente . . . viverem até mesmo sua revolta con­
tra a dominação do sistema dentro do quadro de referências da ideologia
dominante" (p. 223). ^
Contudo, esta "ideologia dominante" não é ela mesma "p u ra "; trata-
se de um conjunto cuja

estrutura (unidade) .. . não pode ser decifrada a partir de suas relações com uma
consciência de classe/visão do mundo, consideradas num vácuo, mas do ponto
de partida no campo da luta de classes, isto é, a partir das relações concretas
entre as várias classes em luta, a relação na qual funciona a dominação de classe,
(p. 209)

Esta concepção da relação entre a ideologia dominante e a classe do­


minante, diriamos, ajusta-se com dificuldade a suas formulações iniciais
sobre esta relação em termos de uma correspondência estruturalmente
gerada. Voltaremos a este assunto mais adiante.

Ideologia política burguesa

A atenção dada por Poulantzas à ideologia política burguesa recebe uma.


considerável importância não apenas porque está empiricamente em cone­
xão com o principal objeto de suas investigações, a saber, o Estado capita­
lista, mas porque desempenha um papel especifico e significativo na estru­
tura das formações sociais burguesas. Nas formações sociais dominadas
pelo MCP, é possível não somente identificar uma variedade de regiões
ideológicas na ideologia dominante, mas também decifrar a dominância de
uma região da ideologia sobre outras. Esta região é a "região jurídico-políti-
ca", sendo que seu aspecto mais crucial é o chamado "efeito de isolamen­
to ". Este último, ao contrário do que afirma a suposição historicista, não
é um aspecto inerente da estrutura das relações capitalistas de produção,
que os historicistas consideram os agentes que engendram a produção
como indivíduos, mas é antes o resultado de operações das estruturas ju rí­
dicas e ideológicas que exercem sobre as relações sócio-econômicas o efeito
de ocultar dos agentes o fato de que suas relações são relações de classe.

Este efeito de isolamento é terrivelmente real; ele tem um nome: competição


entre trabalhadores assalariados e entre os proprietários capitalistas da proprie­
dade privada. Na verdade, é apenas uma concepção ideológica das relações capi­
talistas de produção que concebe estas como encontros comerciais entre indiví-
duos/agentes de produção no mercado. Mas a competição está longe de designar
a estrutura das relações capitalistas de produção; ela é precisamente o efeito do
jurfdico e do ideológico sobre as relações sócio-econòmicas. (pp. 130-1)

A questão para Poulantzas é que este isolamento resulta da estrutura


liirídico-política do Estado e sua correspondente ideologia jurídico-polí-

i
IDENTIFICAÇÃO ERRÔNEA DE IDEOLOGIA 145

tica, que define os agentes de produção como agentes individuais e não de


classes, e que esse isolamento, portanto, forma o substrato real áa aparên­
cia do Estado como "nação".

Dessa maneira, o Estado capitalista aparece constantemente como a unidade


política de uma luta econômica que é ela própria um indfcio desse isolamento,
O Estado capitalista apresenta-se como o representante do "interesse geral" de
interesses econômicos competitivos e divergentes, que ocultam seu caráter de
classe dos agentes que os experimentam... O Estado capitalista esconde sistemati­
camente seu caráter de classe político ao nível de suas instituições políticas;
trata-se de um Estado popular-nacional-de-classe no sentido mais verdadeiro
(p. 133)

Um outro aspecto da ideologia jurfdica-política burguesa através do


qual o Estado capitalista apresenta-se como um Estado popular acima de
todas as classes é o de que "todos os vestígios de dominação de classe estão
ausentes de sua linguagem". Esta situação está em flagrante contraste com
o Estado pré-capitalista no qual as diferenças eram ideologicamente "ju s ti­
ficadas" como "naturais" ou "sagradas".
O aspecto característico do Estado capitalista leva á questão de sua
relação com a ideologia: uma relação que Poulantzas reconhece ter sido a­
preendida na formulação de Gramsci do papel "é tico-p olítico " do Estado.
Poulantzas reformula esta relação com sendo "organizacional": ela "é me­
ramente o resultado da inserção do papel unificador e específico do Estado
capitalista no discurso que é ele próprio construído segundo o papel parti­
cular da ideologia burguesa dominante". Alguns elementos são identifica­
dos no funcionamento da ideologia em relação ao Estado. Primeiro, a re­
presentação do Estado como a corporificação do "interesse geral", no qual
a dominação de uma classe específica está ausente de suas práticas e insti­
tuições. esta noção está contida nas noções de representatividade e repre­
sentação. Aqui, a função da ideologia é intervir

no funcionamento do Estado para suprir os atores de classe com o verniz da


representação por meio da qual eles podem se insinuar nas instituições do Esta­
do de classe popular geral e sob cuja capa podem mascarar as divergências inevi­
táveis no Estado capitalista entre as ações desses atores e as classes que represen­
tam. (p. 216)

Segundo, o significado político destas ideologias está oculto "de uma


maneira m uito específica"; esta ocultação é conseguida pelo fato de que
as ideologias apresentam-se explicitamente como ciência.

A ideologia política, na forma de opinião pública, apresenta-se como um corpo


de normas práticas, como conhecimento técnico, como "a consciência ilumina­
da" dos cidadãos de uma prática específica, como a "Razão" desta prática. Esta
é a concepção subjacente de toda a série de liberdades políticas: liberdade de
146 TEORIAS

expressão, liberdade de imprensa, etc. A opinião pública, que é um fator necessá­


rio no funcionamento do Estado capitalista e que é a forma moderna do consen­
timento político (consenso), na realidade não consegue funcionar a menos que
consiga apresentar-se e ser aceita em termos de técnica cientifica "racional , isto
é, na medida em que se estabelece em oposição àquilo que designa e demarca
como utópico. A opinião pública, assim, designa como utópica qualquer repre­
sentação na qual a luta de classes esteja presente sob qualquer forma. (p. 218)

Aqui, Poulantzas tenta indicar os meios pelos quais a ideologia p o líti­


ca dominante procura se apropriar do dom ínio do debate político empre­
gando seus próprios elementos constitutivos e designando os limites do
"debate" — ou, nas palavras de Marx e Engels, apresentando suas idéias
como as únicas racionais.
Firralmente, notemos que ao final do capitulo sobre ideologia Poulan­
tzas uma vez mais nos leva de volta á complexa tarefa de compreender as
formações ideológicas em sua discussão do problema da legitimidade.
O tipo de legitimidade predominante numa formação social depende
da complexidade das relações entre a ideologia dominante e a forma pela
qual esta domina os subconjuntos ideológicos, isto é,

a dominação política corrqsponde a um modo de aceitação e consentimento da


unidade de uma formação, incluindo as classes dominadas, (p. 223, grifo nosso)

Isto não é O mesmo que postular a ausência de luta de classes ou ver essas
relações de luta como tendo sido incorporadas ou integradas na formação
social através do mecanismo de consentimento, mas apenas apontar a com­
plexidade das relações ideológicas de dominação e subordinação. Assim,
as classes dominadas podem viver "até mesmo sua revolta" contra a dom i­
nação do sistema dentro do quadro de referências da ideologia dominante:
por exemplo, no çaso da "ideologia reformista clássica" ou mesmo no caso
da "coexistência de uma ideologia revolucionária poderosamente articulada
com uma ideologia sujeita à estrutura básica da legitimidade dominante".
Essa advertência quanto à complexidade das relações ideológicas de
dominação e subordinação é ainda mais enfatizada pela observação de dife­
rentes tipos de legitimidade que podem coexistir numa situação concreta,
incluindo aliança de classe (em termos ideológicos) com outras classes e
frações. Por exemplo, a legimitidade feudal não apenas freqüentemente
caracterizou estruturas feudais coexistindo em estados capitalistas, mas até
mesmo estruturas típicas de Estados capitalistas: é o caso da Grã-Bretanha
contemporânea, com uma classe executiva moderna que coexiste e apóia a
legitimidade monárquica. Ao abordarmos tal exemplo, não devemos subes­
tim ar a existência de tal forma de legitimidade que depende de uma ideolo­
gia de classe particular - a de uma aristocracia quase inexistente.
Este retorno (e esta ênfase quanto) à necessária complexidade das rela­
ções ideológicas de dominação e subordinação conclui o tratamento que
IDENTIFICAÇÃO ERRÔNEA DE IDEOLOGIA 147

Poulantzas dá á ideologia. Em seções subseqüentes, apresentaremos algu­


mas criticas a este tratamento e procuraremos explicitar a base que infor­
ma nossas criticas, assinalando ao mesmo tempo os aspectos de sua obra
que são úteis e esclarecedores e que por isso gostaríamos de reter.

Problemas com a teoria da ideologia

Para nós, o aspecto mais imediatamente notado das formulações de Pou­


lantzas sobre a ideologia é o grau de confusão teórica que elas apresentam.
Não nos foi possível identificar um único principio teórico organizador
que domine estas formulações. A seguir reproduziremos os que parecem
ser os exemplos mais significativos desses erros e confusões, mas começa­
remos assinalando alguns aspectos gerais desta confusão.
No decurso da exposição fizemos reparos ao papel peculiar que o con­
ceito de “ experiência vivida" desempenhava na formulação inicial de ideolo­
gia e á evasiva de Poulantzas quanto a se este termo é separado da ideologia
ou constituído por ela. O primeiro caso pareceria implicar uma problemá­
tica que distinguisseideologia e experiência vivida, na qual a ideologia tives­
se a força de uma presença externa incidindo sobre as experiências dos
agentes e moldando "suas representações de suas relações reais". Enquanto
o segundo caso deriva de maneira mais reconhecível da concepção althusse-
riana segundo a qual os agentes são constituídos pela ideologia e vivem ne-
j. Ia. Poulantzas, contudo, omite a distinção ao simplesmente reduzir a expe­
riência vivida à ideologia.
Uma evasiva semelhante é evidente em sua tentativa de definir a cone­
xão entre ideologia e o real; primeiro, sua função não é proporcionar
conhecimento verdadeiro"; assim, afirma-se, ela é "necessariamente falsa".
Mas Poulantzas recua imediatamente do rigorismo desta posição para admi­
tir que a ideologia pode ter "elementos de conhecimento". Esta confusão
realmente ocorre em torno de uma questão vital na análise da ideologia —
a forma da relação entre ideologia e o real — mas a proliferação de defini­
ções conflitantes não nos leva a uma resposta decisiva.
Argumentaríamos ainda que a utilização de umivocabulário empírico
de verdade e falsidade envolve Poulantzas numa concepção excessiva­
mente supersimplifiçada da natureza das "relações reais" — um ponto ao
qual voltaremos. Finalmente, todas essas proposições são colocadas parale­
lamente a uma concepção de ideologia também derivada de Althusser,
ideologia como uma "relação imaginária com as relações reais". A força de
imaginária para Althusser não implica falsificação empírica, mas uma
lorma especifica da relação. As tentativas de Poulantzas de apreender esta
relação em termos de sua verdade/falsidade são também manifestas em sua
apropriação surpreendentemente acrítica dos termos "inversão" e "m is ti­
ficação ' para definir as "distorções" da ideologia. Existe aqui, em meio a
148

toda a complexidade das proposições, mais do que uma presença residual


da denegrida metáfora "câmara obscura" da ideologia encontrada em A
Ideologia Alemã.
Finalmente, nesse contexto, devemos notar as dificuldades reconheci­
das levantadas pela proposição de que a ideologia estabelece relações "que
são óbvias, mas falsas". 0 problema é como pensar esta "obviedade". De
vemos apreendê-la naquilo que denominamos acima a primeira problemá­
tica — a de que os agentes experimentam suas condições de existência, e
de que a ideologia se conecta com esta experiência (óbvia), mas a mistifica
(falsa)? Ou será que a própria ideologia se constitui na "experiência" dos
agentes, que ela produz essas relações como se fossem experiência? Se for
o segundo caso, a ideologia não pode ser outra coisa que não óbvia, já que
ela forma toda a experiência —nada existe contra o qual os agentes possam
reconhecer estas relações ideológicas como óbvias.
Não podemos fazer mais do que levantar estas questões como sendo
ambigüidades teóricas profundas e não resolvidas do texto. O próprio
Poulantzas não nos oferece linhas de orientação para resolvê-las, e não te­
mos a capacidade de afirmar poder fazê-lo em seu nome. Contudo, exis­
tem outros problemas no discurso sobre a ideologia que exigem mais aten­
ção, em parte porque se situam na tendência teórica mais ampla do texto
como um todo. Nas linhas que se seguem focalizamos dois destes problemas.
Uma das dificuldades centrais e recorrentes é a tensão entre o peso
teórico atribuído à noção de causalidade estrutural e o im p orta n^ papel
que a luta de classes recebe em Poulantzas. Ao nível mais abstrato, esta
relação é dada de maneira não problemática — á luta de classes é o efeito
(manifestado nas relações sociais de produção, ideologia, política) do "co n ­
junto das estruturas". A posição teórica básica é, assim, uma posição de
efetividade estrutural. Todavia, em pontos mais detalhados no argumento
as estruturas são restringidas ao seu papel na determinação de um campo
de variações possíveis no qual a luta de classes determina as conseqüências
particulares neste campo de variações (cf. p. 188).
Esta ambigüidade é novamente refletida em momentos cruciais de seu
argumento em que ele freqüentemente repete suas explicações causais. Por
um lado, uma característica particular é identificada como a conseqüência
da função ou papel representado por uma instância particular, enquanto
que por outro lado esta característica é atribuída ao equilíbrio específico
de forças na luta de classes. Assim, em sua análise da questão de ideologia
dominante, Poulantzas passa (na mesma página) de um enfoque da ideolo­
gia dominante, que identifica sua correspondência com as classes dominantes
como sendo uma conseqüência de sua condição como um nível da estru-
tu ríq u e sofre a dominância de uma classe dada como seu efeito, à proposi­
ção de que a unidade da ideologia dominante só pode ser decifrada "a partir
do campo da luta de classe".
IDENTIFICAÇÃO ERRÔNEA DE IDEOLOGIA 149

A primeira formulação implica uma transferência automática da doml-


nância, formalmente estabelecida nas estruturas, para o terreno da formação
ideológica de cjasse, enquanto a segunda implica a existência de alguma
coisa pela qual se deve lutar, sendo que essa luta possui uma efetividade
particular. Gostaríamos de argumentar que a segunda formulação é a mais
válida na discussão da. ideologia. Em vez de atr\b\^\T formalmente á ideologia
a função de "u n ific a r", sugeririamos que uma ênfase sobre a luta de classe
ideológica dirige nossa atenção para sua função de unificação como o resul­
tado contingente de uma luta na qual uma classe procura "universalizar-se"
para transformar a dominância econômica numa dominação ideológica he­
gemônica. A correspondência estrutural entre dominação ideológica e do­
minação de classe tem o tefeito de reduzir o peso a ser dado ao queGramsci
chamava de "passagem para as superestruturas"; esta correspondência aplai­
na o desnivelamento e as disjunções entre as diferentes formas de dom i­
nação de classe e a especificidade das diferentes lutas numa correspondência
estruturalmente "expressiva" de dominação de classe em todos os níveis
da formação social.
Essa causalidade estrutural formal também tem a conseqüência de
produzir resultados mais fechados do que se pode justificar teórica, empí­
rica ou politicamente. Esta atribuição do papel de unificador á ideologia
é acompanhada de uma pré-suposição de sua efetividade: a unificação é
conseguida de modo não problemático. De maneira semelhante, a pro­
posição de que "a ideologia recusa-se a adm itir uma contradição nela"
(p. 208) pareceria negar a possibilidade de luta de classes nesse nível — se
uma unidade não contraditória é estabelecida, com que materiais e sob
que formas ocorre a luta de classes ideológica? Estas proposições parecem-
nos implicar um segundo erro, que é a transposição de tendências caracte­
rísticas da ideologia dominante para a ideologia em geral, por exemplo, a
"capacidade" de a ideologia unificar e excluir contradições. Isto também
pode ser constatado no argumento de Poulantzas de que tanto a ideologia
dominante como o nível ideológico têm a "função" de "inserir agentes em
suas atividades práticas".
Esta combinação do nível ideológico e da ideologia dominante em ter­
mos de sua "função" é sintomática de uma confusão e de uma omissão
m uito mais ampla em todo o capítulo de Poulantzas sobre a ideologia, no
qual torna-se freqüentemente impossível distinguir se ele está se referindo
a ideologia em geral, á ideologia no modo de produção capitalista, á ideolo­
gia em formações sociais capitalistas particulares, ou â ideologia dominante
ner se. Isto, argumentaríamos nós, ocorre como uma conseqüência da ten­
tativa de Poulantzas de especificar uma série de proposições gerais e formais
sobre a natureza da ideologia ao nível mais abstrato (o que vemos como
um corolário necessário de seu esforço para apropriar "os conceitos gerais
do materialismo histórico" — ver a Introdução). E a generalidade desta
150 TEORIAS

análise que inevitavelmente o leva a reduzir a concepção de ideologia a um


imperativo funcional. Contudo, não pode ha\ier nenhuma análise da ideolo­
gia neste nível geral. A colocação da questão da ideologia nessa maneira
abstrata e funcionalista é teoricamente incompatível com um entendimen­
to concreto das formas e condições sob as quais opera a ideologia. Esse úl­
tim o tipo de análise é algo que o próprio f ’oulantzas oferece naquelas pági­
nas concernentçs á natureza da luta de classes ideológica. Entretanto, ele
mostra-se incapaz de realizar qualquer unidade teórica entre estas duas
formas de análise precisamente porque as séries de conceitos são geradas
em diferentes níveis de abstração.
A contribuição mais substancial de Poulantzas á análise da ideologia
parece, a nosso ver, sua tentativa de demarcar o campo da luta de classes
ideológica. Sua negativa de uma relação de simples expressividade entre
uma classe-sujeito e sua pura representação ideológica leva-o às form ula­
ções mais complexas e satisfatórias envolvendo conceitos tais como "con­
juntos e subconjuntos ideológicos", que constituem o campo ideológico.
Desse modo, por exemplo, a pequena-burguesia não vive num mundo
ideológico pura e simplesmente pequeno-burgués, mas em relação a um
subconjunto ideológico no qual a ideologia pequeno-burguesa é contami­
nada por elementos de outras ideologias e que existe num campo ideoló­
gico, dominado pela ideologia dominante. ^
Nossa segunda área de crítica se refere á afirmação sobre a ideologia
jurídica-política burguesa — mais especificamente a tese de Poulantzas
sobre a natureza do "efeito de isolamento". Como notamos anteriormente,
a produção de "meros indivíduos" não é um aspecto inerente das rela­
ções capitalistas de produção, sendo antes um efeito da estrutura ju rí­
dica, da ideologia jurídico-política e do ideológico em geral. De modo
crucial, Poulantzas mostra-se incapaz de especificar como a separação
entre o produtor direto e os meios de produção, que ele corretamente
afirma efetuar a socialização do processo de trabalho, estabelece ao mesmo
tempo os agentes de produção como "indivíduos-sujeitos" jurídicos e po­
líticos sem assentar uma base objetiva real para esta "individualização" ao
nível do econômico, algo a que ele resolutamente se opõe. Assim, quando
Poulantzas afirma que

A superestrutura jurídico-política do Estado capitalista está relacionada com a


estrutura das relações de produção. Isto se torna claro assim que nos referimos
a lei capitalista. A separação do produtor direto dos meios de produção é refle­
tida aí pela fixação institucionalizada de agentes de produção como sujeitos
jurídicos, isto é, pessoas-indivíduos políticos, (p. 128, grifo nosso)

dir-se-ia que ele está contradizendo seu argumento anterior de que os agen­
tes de produção de fato aparecem como indivíduos somente naquelas rela­
ções superestruturais que são relações jurídicas, e não na estrutura das
IDENTIFICAÇÃO ERRÔNEA DE IDEOLOGIA 151

relações de produção. A questão nesse caso é: qual o mecanismo desta re­


flexão e, o que é mais importante, qual a base desta "reflexão"? Nosso pon­
to de vista é que a individualização dos agentes realmente ocorre no pro­
cesso de troca das mercadorias. Marx coloca a questão da seguinte maneira:

Pelo próprio ato da troca, cada indívrduo é refletido em si mesmo como seu su­
jeito exclusivo e dominante (determinante). Com isso, então, a completa liber­
dade do indivfduo é estabelecida... O interesse geral é exatamente a generalida­
de de interesses que se buscam a si mesmos. Conseqüentemente, quando a forma
econômica, a troca, estabelece a igualdade multllateral de seus sujeitos, então
o conteúdo, tanto o indivíduo como o material objetivo que leva à troca, é a liber­
dade. {Grundrisse, Penguln, 1973, pp. 244-5)

A análise de Marx da relação de troca demonstra a necessária igual­


dade entre as duas partes envolvidas na troca como sua base constitutiva;
e note-se que variações menores (isto é, fatores contingentes tais como a
astúcia particular de um dos contratantes) não interferem nessa base fun­
damental de igualdade entre as partes. Este aspecto tem importância cru­
cial, pois que toca um dos problemas fundamentais da "econom ia" de
Marx — a criação da mais-valia. Marx nega enfaticamente que a mais-valia
possa ser criada por meio da troca de modo regular e sistemático. Nem
mesmo a relação de troca mais dominante do capitalismo — entre o traba­
lhador assalariado e o capitalista — está isenta desta "igualdade".
De maneira clara, portanto, a incógnita da equação que é o elo inter­
mediário entre a esfera da troca e a da produção é a força de trabalho
ou, mais precisamente, a transformação do valor e do preço da força de
trabalho na forma do salário, o valor e o preço do trabalho, sobre o qual
diz Marx:

Esta forma fenomenal, que torna invisível a verdadeira relação e que, de fato,
mostra o oposto direto desta relação, forma a base de todas as noções jurídicas
tanto do traballiador como do capitalista, de todas as mistificações do modo de
produção capitalista, de todas as suas ilusões como a liberdade, de todas as mo­
dificações apologéticas na atitude dos economistas vulgares.

Embora Marx chame o salário, a relação de troca, etc., de formas fe­


nomenais, ou formas de aparência, elas não são nem podem ser reduzidas
a meras ilusões ou erros por parte dos "sujeitos" desses processos, quer ve­
jamos esses sujeitos como partes constituintes desses processos ou mera­
mente exercendo a função de "suportes". Nós estamos lidando com pro­
cessos reais, formas reais de relação. Os agentes de fato trocam, compram
e vendem, o trabalhador assalariado de fato vende seu trabalho e recebe
um salário em troca (igual). São exatamente estas relações que são "falsas",
mas falsas num sentido m uito específico — não, como dissemos, no sentido
de que não são reais, mas falsas porque escondem outras séries de relações
e processos de qualidade e natureza m uito diferentes.
152

Nem, é preciso enfatizar, só porque Marx usa a terminologia de "apa­


rências", "formas fenomenais", "formas de aparência" e assim por diante,
pode a distinção que ele está fazendo entre estas formas e as relações reais
ser compreendida como um par idealista de essência e aparências. Fazer
isto seria o mesmo que reduzir as aparências a meras irrelevâncias epifeno-
menais, nas quais apenas a "essência" tem alguma importância. Os esforços
de Marx, ao contrário, dirigem-se para uma direção totalmente oposta —
as "aparências" não são apenas séries reais de relações, mas também aóso-
lutamente necessárias à produção capitalista. A esfera de troca é ao mesmo
tempo o ponto inicial e final do processo de produção capitalista — ponto
inicial porque é nele que o capital sob a forma de dinheiro é trocado pela
força de trabalho e pelos meios de produção para dar inicio â própria pro­
dução; e ponto final porque é apenas com a troca das mercadorias criadas
no processo de produção por dinheiro que a mais-valia é realizada. A troca,
então, e especificamente a troca de equivalentes, é um elemento absoluta­
mente necessário do circuito do capital como analisado por Marx. A troca
não pode ser tratada como um complemento meramente epifenomenal
do processo "re a l" de produção.
Devemos agora desenvolver esse argumento. De modo mais completo,
a relação entre a forma fenomenal e o processo real ifnplica uma contradi­
ção necessária que as aparências superficiais mascaram. Assim, a liberdade
de individuos isolados e atomizados é um corolário da crescente socializa­
ção do processo de produção no capitalismo; isto é, um corolário da cres­
cente interdependência dos indivíduos. De modo semelhante, a igualdade
de troca entre trabalho assalariado e capital fundamenta-se na relação pre­
existente e mais fundamental de desigualdade na distribuição dos meios
de produção. O que temos, então, é a análise de um processo — a circulação
do capital — que se baseia num conjunto fundamental de relações (as do
capital e do trabalho assalariado), mas que pode ser dividido em vários pro­
cessos particulares e suas correspondentes séries de relações (produção,
troca, distribuição, etc,). Alguns desses processos subordinados (os da circu­
lação e troca) envolvem relações e processos de ordem qualitativamente
diferente das relações fundamentais sobre as quais repousam e que servem
para mascarar.
Não estamos afirmando aqui que o que é fornecido pela análise de
Marx de circulação do capital seja uma teoria da ideologia. Não é o caso.
Não somos informados de como funciona a ideologia, como os agentes são
inseridos em relações ideológicas, como opera a luta de classes ideológica,
etc. A informação que nos é dada é que no capitalismo o "e rro " de pensar
os homens como sendo "livres", individualizados e iguais não é um "e rro "
produzido pela ideologia e nela, mas que está fundamentalmente situado
nos processos reais da acumulação capitalista. A ideologia nos fornece um
ponto de partida necessário para pensarmos os processos e o conteúdo da
IDENTIFICAÇÃO ERRÔNEA DE IDEOLOGIA 153

ideologia burguesa, e é af que Marx fundamenta sua análise de uma ideo­


logia burguesa — a da economia poITtica burguesa, cujos erros ele localiza
em sua incapacidade de penetrar nas formas e processos superficiais do
capitalismo. Mas não nos podemos deixar seduzir pela idéia de integrar
a especificidade de processos ideológicos na análise do econômico. Dedi­
camos considerável atenção à questão do efeito de isolamento, mas isto
não é simples desculpa para uma exposição alongada de seus erros e sua
correção. O efeito de isolamento é um elemento crucial da argumentação
geral de Poulantzas; esse efeito está vinculadoà sua análise do nivel político
e, especificamente, à natureza da ideologia jurídico-política burguesa e
seus efeitos tanto na luta de classes econômica como no modo de funcio­
namento do Estado capitalista. Trata-se, pois, de um mecanismo teórico
central para a obra como um todo.
De modo semelhante, o que para Marx é um aspecto da produção ca­
pitalista (no sentido lato de circuito do capital) é mal apropriado por Pou­
lantzas como sendo uma característica do Estado e da ideologia capitalistas.,
Esse aspecto não é simplesmente confinado a sua tese sobre o “ efeito de
isolamento". Ele é sintomático de uma tendência dentro da obra como um
todo, que é o de incorreta e sistematicamente superestimar o significado
do político em relação ao econômico. Esta tendência para a "superpoliti-
zação" tem sido notada por outros de diferentes maneiras.
Para sermos claros, contudo, não estamos afirmando que Poulantzas
esteja errado quando ele diz que a ideologia jurídica, a jurídico-política
e a ideologia em geral têm como efeito ocultar dos agentes o fato de que
suas relações são relações de classe; nem estamos negando que o econô­
mico é superdeterminado pelo político e pelo ideológico. O que está em
causa aqui é a maneira pela qual esta superdeterminação é pensada; nós
argumentamos que este "efeito de isolamento" é a apropriação no político
e no ideológico de processos e relações econômicas reais que, desse modo,
formam a base do conteúdo da superdeterminação política e ideológica"
do econômico. Esse isolamento — a produção de indivíduos "simples"
— ocorre principalmente no econômico ao mesmo tempo em que a socia­
lização das forças produtivas e a criação do "trabalhador coletivo", mas se­
gundo diferentes aspectos do circuito de capital, o primeiro na troca, a
segunda na própria produção. Tanto a produção socializada como a criação
de sujeitos livres e iguais no processo de troca são elementos absolutamente
necessários do processo de acumulação de capital.
Argumentaríamos que esta tendência para a "superpolitização" obser­
vada em Poulantzas m uito deve à concepção do modo de produção no qual
ele localiza suas análises mais específicas, e que os erros originados aí têm
profundos efeitos sobre sua análise das relações entre o econômico, o po­
lítico e o ideológico.
154

O conceito de modo de produção

Travamos conhecimento com um conceito de modo de produção que é


visto como consistindo de uma combinação de instâncias (o econômico, o
ideológico, o político, etc.). Esta nos parece ser uma concepção errônea
para a qual não há fundamento em Marx. Marx constantemente designa de
"m odo de produção" apenas o nível econômico, ou, segundo suas palavras,
a "estrutura econômica da qual surge uma superestrutura legaf e política
e à qual correspondem formas definitivas de consciência social" (Prefácio,
de 1859). Em vez de tentar reproduzir as ocasiões em que Marx usa essa
formulação ou suas variantes, simplesmente nos referiremos a uma citação
que o próprio Poulantzas utiliza neste caso para indicar como, mesmo com
uma citação seletiva, o conceito de modo de produção não pode ser gene­
ralizado para incluir as instâncias ideológica e econômica:

Meu ponto de vista de que cada modo de produção especial e as relações sociais
que lhe são correspondentes, em suma, de que a estrutura econômica da socie­
dade é a base real sobre a qual a superestrutura jurfdica e política é levantada e
à qual formas sociais definitivas de pensamento correspondem... (citado em
Poulantzas, p. 28). y

Para evitarmos a acusação de estar simplesmente "citando os clássicos"


em apoio a esta argumentação, podemos chegar ás inadequações da teoriza-
ção do modo de produção como uma combinação numa maneira diferente.
Na análise da instância econômica, Poulantzas especifica quais são os ele­
mentos que constituem essa instância (trabalhador, não-trabalhador, meios
de produção), mas mostra-se incapaz de especificar os elementos que cons­
tituem os outros dois níveis remanescentes — o ideológico e o político
— dos quais se ocupa. Argumentaríamos que esta lacuna teórica ocorre
porque os outros dois níveis são de ordem fundamentalmente diversa do
econômico. São, de fato, níveis que entram na análise de sociedades con­
cretas, de formações sociais dominadas por um modo de produção particu­
lar — sãosuperestruturais.
Esta questão é fundamental para se compreender a constituição de
classes sócias. Poulantzas insiste em que são o "efeito global" da combina­
ção das estruturas, mas nós argumentaríamos que a constituição de classe
deve ser pensada no nível econômico. Isto não quer dizer que considere­
mos "Sua Majestade a Economia" avançando pela planície da história tão
nua quanto se estivesse vestindo as novas roupas do Rei. Do mesmo modo
como o modo de produção althusseriano sempre existe numa formação
social concreta, assim as formulações de Marx sempre sublinham cada modo
de produção "especial", juntamente com suas relações sociais particulares,
suas superestruturas e formas correspondentes de pensamento como cons­
tituindo sociedades particulares. De fato as classes surgem e lutam nos ter-
IDENTIFICAÇÃO ERRÔNEA DE IDEOLOGIA 155

renos da ideologia e do Estado, mas estes não podem ser compreendidos


como formando a constituição das classes. São antes a re-constituição de
classes economicamente produzidas nos diferentes níveis de uma formação
social — são “ as formas ideológicas nas quais os homens tornam-se-cons­
cientes desse conflito e o resolvem por meio de lu ta " (Prefácio de 1859).

A constituição das classes sociais

Qualquer análise da constituição das classes em formações sociais domina­


das pelo modo de produção capitalista deve começar por situar-se numa
compreensão da complexidade da constituição econômica das classes nes­
se modo. Esquematicamente, existem aqui quatro pontos principais.
Primeiro, as classes sociais fundamentais são determinadas por sua
relação com os meios de produção.
Em segundo lugar, e de modo mais completo, isto significa prosseguir
a análise de Marx sobre a circulação do capital — apreendida como um pro­
cesso com momentos específicos (produção, distribuição, troca e consumo)
que são elementos necessários e irredutíveis do modo de produção capita­
lista e nos quais a produção é determinante. É nesse processo que as classes
são complexamente constituídas — elas nunca aparecem como uma enti­
dade homogênea. Desse modo, por exemplo, é possível distinguir entre ca­
pitalistas fundiários, industriais e financeiros, etc. Este fracionamento da
burguesia produz necessariamente um proletariado fracionado — criado
por sua absorção em diferentes tipos de capital. Além disso, a análise de
Marx da circulação do capital indica outra forma de diferenciação interna
do proletariado, na qual o trabalho humano no plano abstrato só é mani­
festado em formas concretas específicas: a produção de cada mercadoria
específica precisa de força de trabalho de um tipo particular porque envol­
ve a transferência de valores de um grupo específico de matérias-primas e
de instrumentos de produção para uma mercadoria final particular (cf.
O Capitai I, p. 200).
Em terceiro lugar, é na estrutura econômica que encontramos a base
do que Marx descreve no 18 Brumário como "interesses particulares mais
mesquinhos e sórdidos" da burguesia — pois o auto-interesse competitivo
e particular é a estrutura fundamental do capital, é a forma necessária toma­
da pela tendência inerente do capital para a auto-expansão. Este auto-inte­
resse, juntamente com o fracionamento já notado do capital, é que constitui
a base da relativa autonomia do Estado em relação às classes dominan,tes;
não há nenhum interesse geral econônico da burguesia neste nivel.
Em quarto lugar, para Marx a produção é também reprodução — tanto
das forças como das relações de produção; trabalho assalariado e capital,
trabalhadores assalariados e capitalistas, e proletariado e burguesia são re­
produzidos. O que é significativo, porém, é que esta reprodução é inerente-
156 TEORIAS

mente contraditória — trata-se da reprodução de uma relação de classe per­


manentemente antagônica e, como reprodução em constante expansão, é
o desenvolvimento permanente daquele antagonismo a níveis mais altos.
Assim, embora a reprodução ocorra no nível econômico, suas conseqüên-
cias (como reprodução contraditória) não podem ser contidas nele — elas
devem ser organizadas e conduzidas no nível do Estado. O Estado, pois,
como reconhece Althusser corretamente, assegura (ou, antes, tenta assegu­
rar) a reprodução das relações de produção sociais.
O que procuramos fazer aqui foi levar de volta de modo esquemático
o debate a seus elementos fundamentais, começar com a determinância do
econômico (e com uma concepção de sua complexidade, o que considera­
mos ausente em Poulantzas) a partir do qual a especificidade de outros n í­
veis deve ser pensada. Sem isto, argumentaríamos nós, as tentativas para
pensar a determinância (em última ou qualquer outra instância) são passí­
veis de ser reduzidas a um esquema funcionalista abstrato.
Estas críticas são as que dirigiriamos à tentativa de Poulantzas para
explicar a ideologia. São estas tendências que enfraquecem aqueles aspec­
tos de sua análise que consideramos ter valor positivo e que os tornam de
importância mais periférica do que poderiam ser numa tentativa continua­
da para compreender esses problemas. Para equilibrar as nossas críticas,
devemos finalmente assinalar onde estão estes aspectos positivos e a dire­
ção para a qual nos conduzem. Em primeiro lugar, aceitamos a existência
de um irredutível avanço proporcionado pelas críticas ao esquema histori-
cista da ideologia como o produto do par sujeito/consciência e pela insis­
tência em que as ideologias não podem ser pensadas como se existissem
"num vácuo". As ideologias de classe, portanto, jamais são o produto
transparente de um sujeito de classe puramente pensante, mas são encon­
tradas no terreno da luta de classes, com sua pureza (abstrata) sempre su-
perdeterminada pelos efeitos dessa luta de classes.
Em segundo lugar, assinalaríamos a análise do papel da ideologia no
funcionamento do Estado capitalista, particularmente o papel vital da
ideologia em conectar (e desconectar) o indivíduo e os interesses gerais
através dos processos de repr.isentação, nos quais a arena política constrói
esse "interesse geral". Isso nos parece identificar áreas e mecanismos
cruciais das operações do Estado e ainda identificar a importância vital do
Estado e suas ideologias associadas no funcionamento e manutenção de
formações sociais capitalistas através de sua persistente transposição de in­
teresses de classe para a forma do interesse geral.

Conclusão

Argumentamos até certo ponto detalhadamente, na seção anterior, a res­


peito da necessidade de apreender a conexão entre ideologia e o ecoiiô-
IDENTIFICAÇÃO ERRÔNEA DE IDEOLOGIA 157

mico. Isto não apenas porque acreditamos que a análise do econômico que
oferecemos é uma análise cuja importância tem sido reduzida dentro dos
princípios de Althusser, mas porque é esta conexão — o econômico e a
ideologia — que acreditamos ser o ponto vital de qualquer teorização mar­
xista sobre ideologia. Poulantzas criticou corretamente os erros das con­
cepções historicistas da ideologia —sua redução à consciência de sujeitos de
classe economicamente definidos —mas deixou de oferecer uma alternativa
rigorosa e substancial a esta posição.
A construção da ideologia mediante sua função não é um fundamento
adequado para esta teoria alternativa. Ela supõe (incorretamente, argu­
mentaríamos nós) que os problemas de uma análise marxista da estrutura
econômica são resolvidos e encerrados, sendo que o recuo à função da ide­
ologia ocorre justamente porque Poulantzas não consegue especificar a
relação entre as relações reais nas quais se localizam os agentes, e as formas
ideológicas nas quais são pensados, compreendidos e representados. A
"fun ção " da ideologia está diretamente inserida nesse espaço teórico.
Não pretendemos ter resolvido a natureza da relação entre essas re­
lações fundamentais e suas formas ideológicas. O que tentamos fazer foi
acrescentar um modo de pensar metade da relação. Partimos do econô­
mico e procuramos demonstrar como Marx identifica a base de aspectos
fundamentais da ideologia burguesa no contexto de diferentes aspectos
da estrutura econômica do capitalismo. Estas apreciações, contudo, não
são marginais às análises de Marx sobre o funcionamento do capitalismo,
elas reaparecem através de toda sua crítica da economia política burgue­
sa. De fato, formam um elemento crucial destas críticas quando Marx in­
siste em que os erros da economia política derivam do fato de que esta
não consegue penetrar nos movimentos superficiais do capitalismo.
Estas observações, contudo, não constituem uma teoria da ideologia.
Elas disto se aproximam ao especificar como esta teoria deve ser apreen­
dida a partir de um lado da relação entre o econômico e o ideológico. Elas
não nos fornecem uma maneira de pensar a Ideologia. Contudo, insistem
em que o "prim ado" do econômico na teoria marxista deve ser pensado
de uma maneira mais persistente e ativa do que sua redução à "m a triz "
das estruturas levada a cabo por Poulantzas levaria a crer. A dificuldade de
se pensar a ideologia adequadamente é a tarefa de sustentar esta concepção
ampliada do econômico sem perm itir que outras análises recaiam num eco-
nomismo vulgar no qual a ideologia e a política são tratadas como epife-
nômenos meramente refletivos. Quanto a isto, aceitaríamos os avanços
definitivos conseguidos pelo paradigma althusseriano (embora não necessa­
riamente as soluções que prescreve) em torno da irredutibilidade da ideo­
logia, a descentralização dos agentes com respeito às relações e processos
nos quais estão inseridos.
158 TEORIAS

A tarefa para uma teoria marxista da ideologia, sugeririamos nós, é a


de apreender esta conexão de aspecto duplo — do econômico e seus efei­
tos próprios e das formas ideológicas nas quais os agentes vivem essas re­
lações — sem abolir a efetividade específica de cada lado desta conexão.
É exatamente esta conexão que é identificada por Althusser como sendo
uma relação com as relações reais; a natureza da conexão, contudo, não
é resolvida por sua definição como uma relação imaginária. Isto não nos
dá o direito de pensar a determinação do econômico sobre o ideológico,
nem os processos específicos envolvidos na representação ideológica.
Finalmente, voltando a Poulantzas, é absolutamente necessário que
estas relações sejam apreendidas como relações de classes e como um pro­
cesso de lutas de classes, em cada nível, nas formas econômicas e nas
"formas ideológicas nas quais os homens tornam-se conscientes da luta e a
resolvem lutando". É esta a questão teórica em jogo aqui, e seu significado
político não pode ser subestimado.

BIBLIOGRAFIA

K. Marx, (1974) Capita! vol. I, Lawrence andWishart-


K. Marx, (1971) Prefácio de 1859, Contribution to the Critique o f Poiitical Econo-
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ses Sociais no Capitalismo de Hoje. 2? ed.. Rio, Zafiar, 1978.]
* <41
Estudos Comunitários e as Imagens
da Classe Operária sobre a Sociedade

Eve Brook, Dan Finn

Uma das características que definem a sociologia, e suas subdisciplinas,


tem sido uma irresistível preocupação com questões de classe social, par­
ticularmente em relação à classe operária. Seu principal encontro com as
experiências localizadas da classe operária tem sido realizado através dos
estudos comunitários, e neste artigo desejamos avaliar o impacto e o de­
senvolvimento desses estudos como um gênero. Essa avaliação é particular­
mente importante porque as conclusões desse núcleo de trabalho têm fo r­
necido material, direta e indiretamente, que tem sido utilizado na análise
das imagens de classe e dos sistemas de significado baseados em classes.
Por isso, este artigo focaliza a maneira pela qual as imagens da classe
operária têm sido tipificadas por certos sociólogos e os argumentos que
eles têm apresentado para justificar essas tipificações.
Argumentamos que a introdução do termo "ideologia" numa dis­
cussão sobre as imagens da classe operária é essencial. O principal proble­
ma parece ser o de se chegar a uma definição operacionalizada do que é
realmente a ideologia. Para muitos marxistas a ideologia é vista como uma
forma sistematizada de falsa consciência (mais outro conceito elástico), e
nesse caso ela seria as idéias da classe dominante em seus melhores trajes
— construções teóricas formalizadas e epitomizadas, por exemplo, na
religião. Por outro lado, considera-se que as ideologias têm origem na pró­
pria classe operária — o sindicalismo como uma força puramente defensiva
é um exemplo disso.
Ambos esses exemplos têm significado nacional, e mesmo internacio­
nal, e talvez por isso sejam vistos com freqüência como existindo "lá em
cima", como forças controladoras e a-históricas. De igual modo, essa é a
razão pela qual elas são vistas freqüentemente de modo abstrato, como
"sistemas gerais de valor", impondo coerções sobre o comportamento hu­
mano. Contudo, não podemos aceitar nenhuma definição da ideologia
como existindo independentemente da vida material. Isto significa que as
ideologias não somente se expressam e se baseiam na vida material, mas
162 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

que estão também sob constante pressão para se modificar, assim como se
modificam as condições da vida material. Segue-se daí que a primeira parte
de nossa definição seria de que é a vida material que determina a ideologia.
A questão seguinte é, inevitavelmente, como? Não discordamos de
que certos aspectos da ideologia da classe operária são representações dos
interesses das classes dominantes, embora possamos discordar de qualquer
sugestão de que isto ocorra de maneira conspiratória. Mas, mesmo nesse
caso, as idéias da classe dominante são endossadas, modificadas ou rejeita­
das segundo certas condições materiais.
As condições materiais, evidentemente, existem ao nível das experi­
ências cotidianas de classe e das práticas de classe. Estas experiências e prá­
ticas diferem não somente entre classes, mas também no interior dessas
classes — gerando frações de classe ocupacionais ou locais. Assim, não são
apenas as idéias das classes dominantes que são testadas na experiência
da classe operária, mas, o que é igualmente importante, sugerimos nós, a
prática de classe gera seu próprio tipo de consciência e cultura. Assim, a
natureza contraditória da consciência da classe operária reflete a dife­
rença entre a experiência real da produção capitalista e as formas fenome­
nais do mercado refletidas na superestrutura. A experiência coletiva e
vivida da produção capitalista fornece grupos alternativos de práticas e de
organizações materializadas na cultura da classe operária. A consciência ge­
rada é, ideologicamente, "senso com um ": aprender através da experiência
o que pode e o que não pode ser feito em condições dadas. Portanto, isto é
ideológico porque as condições são dadas, não são questionadas - somente
a melhor maneira de manipulá-las para conseguir vantagens é considerada.
Nessas condições, localização e local de trabalho tornam-se extrema­
mente importantes. A base material do seccionalismo repousa num mercado
de trabalho diferenciado pela indústria, por variações entre firmas nas in­
dústrias, e pela divisão do trabalho em locais de trabalho particulares. Em­
bora, em termos gerais, grupos geograficamente distintos de operários co­
nheçam os mesmos tipos de problemas, os problemas de qualquer grupo es­
pecífico são particulares e únicos. São limitados no tempo, giram em torno
de pessoas particulares, sendo confinados a um local de trabalho particular
ou a uma seção deste local.
Desse modo, os operários da linha de montagem de televisões não dis­
cernem sua dependência definitiva do mineiro de carvão, não havendo
nenhuma razão de "senso com um " pela qual deveriam fazê-lo. Nestas
situações, a atividade de classe teín sua base na indústria ou na localidade.
As alianças são formadas numa região, numa fábrica ou através de uma
ocupação, sendo que em algumas circunstâncias essas alianças podem tor­
nar-se tão exclusivas a ponto de dissimular a realidade definitiva de ser
classe operária. A melhor coisa que pode acontecer nesse caso é uma indi­
ferença às lutas de outros operários. A pior é um co nflito aberto entre
ESTUDOS COMUNITÁRIOS 163

seções da classe operária; por exemplo, a recente luta entre portuários e


trabalhadores dos transportes, cuidadosamente orquestrada pelos interes­
ses dos industriais, mas que demonstraram aquela incapacidade de trans­
cender interesses seccionais. Além das ideologias "particulares" existentes
numa base ocupacional, também podem existir onde a ocupação é idênti­
ca, mas a localidade é diferente. Cousins e Brown, num artigo sobre operá­
rios navais, dão um exemplo:

O favoritismo baseado no bairrismo e local de residência é um fator de emprego


numa indústria e numa área onde o desemprego é um problema grave. O "mer­
cado" ou recrutamento diário Incentiva o bairrismo. Um encarregado do extinto
estaleiro Blyth, um pouco mais ao norte e agora fechado, disse-nos que conosco
o negócio foi sempre manter os Tynies afastados". (1975, p. 581

As condições materiais que caracterizam este seccionalismo não são d ifí­


ceis de serem identificadas — o desemprego a longo prazo numa indústria
em dificuldade. Mas uma ideologia paroquial é a maneira de reagir ao pro­
blema — a reação é dirigida contra outros operários, em vez de contra os
proprietários.
É a relação entre essas ideologias locais e fracionadas e as ideologias
teoricamente desenvolvidas geradas por instituições nacionais que tem
estado no centro da tentativa de a sociologia compreender as imagens que
a classe operária faz da sociedade. Neste artigo é a compreensão destas
"imagens" desenvolvida por dois teóricos de importância que pretendemos
considerar. Ambos voltam-se para a questão de como as "imagens" dife­
rentes são criadas/determinadas naquelas secções da classe operária carac­
terizadas, por um lado, como privatizadas e tradicionais, e, por outro lado,
como acomodatícias. São eles Lockwood (1975), que enfatiza a primazia
do trabalho imediato e das relações na comunidade, e Parkin (1971), que
enfatiza a dominância ideológica de sistemas de significados nacionais.
A tipologia de Lockwood distingue três imagens diferentes da classe
operária sobre a sociedade, espontaneamente geradas através da experiên­
cia de trabalho e dos valores da comunidade local. Primeiro, o proletário
tradicional, tipificado pelos mineiros, portuários e operários navais. Segun­
do, o reverente tradicional, cuja característica é a tendência para trabalhar
numa indústria rural ou artesanal e que estabelece relações diretas com um
empregador paternalista. Terceiro, o trabalhador privatizado que em sua
atitude em relação ao trabalho é "instrum ental" e em sua vida familiar é
"privatizado".
Antes de avaliar a adequação teórica dessas tipificações, queremos
adotar uma linha de investigação sugerida por Lockwood, segundo a qual
deveria ser possível examinar esses tipos e "recheá-los" ou rejeitá-los em
termos dos dados obtidos nos estudos comunitários. Todavia, como espe­
ramos demonstrar, isto não é tão simples, e para deixar claras nossas reser-
164 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

vas é necessário dizer alguma coisa sobre^ o desenvolvimento histórico,


ideológico e metodológico dos estudos comunitários como gênero — par­
ticularmente em suas formas social-democratas. A definição e crítica dos
estudos comunitários é longa, mas julgamos justificada por causa de sua
posição como a mais importante fonte acreditada de explicações "qua li­
tativas" sobre a cultura da classe operária.

Estudos comunitários no pós-guerra

Os estudos comunitários no pós-guerra podem ser vistos como uma reação


contra certos desenvolvimentos da sociologia, juntamente com apreensões
sobre o rumo da democracia social. Como muitos outros desenvolvimentos
da sociologia na década de 1950, estes estudos podem ser vistos contra o
fundo da proliferação de teorias da "sociedade pós-capitalista" e do "abur­
guesamento", que, mesmo a contragosto, acrescentaram uma nova dimen­
são à discussão de classe. Para resumir um argumento familiar, durante a
década de 50 dizia-se comumente que o capitalismo como tal deixara de
existir e fora substituído pela sociedade "pós-industrial", Todos os teóri­
cos que tinham algo em comum com esta tese sustentavam o ponto de
vista de que as velhas fontes de conflitos de classe estavam sendo elimina­
das progressivamente ou tornadas irrelevantes, e que a sociedade ocidental
estava sendo remodelada num estilo classe média.
Essas interpretações fundamentavam-se em três assertivas básicas.
Primeiro, a de que as democracias liberais e sociais eram pluralistas, o
poder sendo exercido por um certo número de grupos sociais. Segundo,
que as desigualdades concretas do início do capitalismo estavam dim inuin­
do e perdendo seu antigo significado: as diferenças de renda estavam sendo
diminuídas e outras desigualdades estavam sendo contornadas por uma
economia estabilizada pela aplicação da política econômica keynesiana.
Em decorrência da nacionalização, passou a existir uma economia mista;
e, o que é mais importante, a implementação, após 1945, do Relatório Be-
veridge, de 1942, reduzira através do Estado do Bem-Estar Social as desi­
gualdades remanescentes — um processo representado na Grã-Bretanha
pela segurança social, habitações populares, o Serviço Nacional de Saúde, a
educação secundária subvencionada pelo Estado. Terceiro, por essas e
outras razões, as dissenções radicais foram progressivamente eliminadas ou
enfraquecidas, à medida que novos padrões de vida e de aspirações cruza­
ram os velhos horizontes limitados por classes. Entre os trabalhadores bra-
çais a fé na ação coletiva foi sendo substituída pela confiança na realização
individual; as velhas alianças de classe foram sendo substituídas por preo­
cupações com a condição social —os valores da classe média.
O maior impacto ideológico desse desenvolvimento foi a crença forte
e generalizada de que as classes estavam "desaparecendo" ou tinham desa-
ESTUDOS c o m u n it á r i o s 165

parecido. Esse utopismo não era simples complacência, mas um diagnósti­


co de algo real e importante na década de 1950: a apatia da classe operária
e a falta de entusiasmo por objetivos coletivos. De fato, o número de auto­
res que esposaram a tese era uma espécie dè prova de que a apatia política
da época não era uma ilusão — um fato nem sempre reconhecido por
alguns de seus oponentes.
Os sofismas subjacentes a essas concepções permaneceram incontesta-
dos, pelo menos ideologicamente, até o surgimento da "Nova Esquerda" —
que teve origem na desilusão tanto com a eficiência das reformas sociais
do Partido Trabalhista quanto com a esterilidade do pensamento de es­
querda organizado. O impacto desta postura ideológica em transformação
ficou caracterizado em certos livros-chave: Uses o f Literacy, de Hoggart
(1957), Culture and Society, de Williams (1958). Apesar da diferença de
perspectiva, objeto e ênfase, essas obras preconizaram de uma ou de outra
maneira uma avaliação favorável dos significados da cultura da classe ope­
rária. Como deixa claro Hoggart;

Considero que tal impressão está errada se nos leva a construir uma imagem da
classe operária simplesmente a partir da soma da variedade de estatísticas dadas
em alguns desses trabalhos sociológicos . .. precisamos claramente tentar enxer­
gar, para além dos hábitos, aquilo que os hábitos representam, enxergar através
das declarações para ver o que as declarações representam . .. detectar as diferen­
tes pressões emocionais por trás de frases idiomáticas e observâncias ritual ísticas.
(1957, p. 17)

Na interpretação da Nova Esquerda da cultura da classe operária, a


idéia de "com unidade" desempenha um papel central. A "com unidade" é
importante porque permite que a questão Cultura/Sociedade seja pensada
através de uma série de dimensões. Vinte anos passados, é d ifíc il apreciar
as implicações radicais desta perspectiva — mas o que mais distinguia esses
estudos literários/culturais à época era a atenção dada a "significado";
como textos/rituais/instituições separados se inter-relacionavam em "tod o
um modo de vida". A idéia de comunidade pressupunha necessariamente
um compromisso intelectual para superar o empirismo imediato, o texto
"ó b v io ", isolado, para interpretar fenômenos culturais em termos de rela­
ções estruturais ou partes de um todo.
Os desenvolvimentos críticos de Williams e Hoggart estavam intima­
mente vinculados a um movimento na administração social, no qual Titmuss
(1958) era a figura mais importante, que enfatizava as lacunas e desigualda­
des no serviço social, até que ponto os padrões materiais da classe operária
estavam abaixo dos da classe média, argumentando que a política partidá­
ria, e não a competência individual, era responsável por essas diferenças.
O tema que unia as duas áreas era a idéia de que as pessoas da classe
operária tinham características que não eram explicáveis em termos da
166 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

posição financeira; de que as propostas para modificações precisavam fun­


damentar-se numa compreensão teórica mais completa da vida da classe
operária. É nesse contexto que encontramos o desenvolvimento daqueles
estudos comunitários que nos interessam diretamente (ver Apêndice).
Estas publicações, assim como o trabalho do Institute of Community Stud-
ies, foram realizados numa época em que eram raras as pesquisas sociais
mais aprofundadas e em que a sociologia como disciplina acadêmica se es­
tabelecera solidamente apenas numas poucas universidades.
Estes estudos comunitários na verdade ignoraram amplamente as asser­
tivas da tese da sociedade "pós-capitalista'7"aburguesamento"; ou no
máximo admitiam que salários mais altos significaram uma elevação do
padrão de vida da classe operária, mas afirmavam que isso não acarretara
nenhuma diferença real para a cultura da classe operária. De modo impor­
tante, pois, o conceito de classe era compreendido principalmente como
uma formação cultural, e não como um fenômeno gerado pela produção.
Os estudos comunitários saíram em campo para "redescobrir" a classe, e
nesse sentido a "com unidade" tinha conotações que só podem ser qualifi­
cadas como políticas. Havia uma espécie de processo clandestino segundo
o qual a idéia de "comunidade" era identificada com a preocupação socia-
lista/social democrática com as culturas de classe. Não por acidente, pode­
riamos acrescentar, pois esse processo baseava-se em parte nas reais ansie­
dades quanto à base eleitoral do Partido Trabalhista. Nesse contexto vale
notar que muitos dos estudos realizados na segunda metade da década de
1950 eram de autores com alguma conexão formal com o Partido Traba­
lhista (por exemplo, Jackson [1968], Young e W ilm ott [1962], Dennie,
Henriques e Slaughter [1969], Townsend [1957]). A idéia de "comunida­
de" com seus matizes de tradição e de cultura oponente exercia uma
atração óbvia.
Assim, ao mesmo tempo em que podemos ver que o desenvolvimento
dos estudos comunitários, era, em parte, uma reação à tese mais vulgar do
aburguesamento e um reflexo da preocupação gerada pela evidente erosão
da base eleitoral do Partido Trabalhista, é também evidente que muitos
dos estudos comunitários objetivavam especificamente a prática da política
social ou dirigiam-se para um esclarecimento daqueles "problemas sociais"
definidos mediante consenso. Desse modo, para Young e W ilim ott:
A suposição era de que os políticos eram . . . insufícientemente informados das
necessidades e pontos de vista da classe operária, que forma o grosso dos usuá­
rios dos serviços sociais, e nós esperávamos que as pesquisas sociais poderíam
contribuir para fornecer uma base mais realista para a política. (1961, p. 2)

Enquanto que, para Jackson: "Os anseios da comunidade poderiam então


ter sido canalizados para o bem comum." Ele tomou " . . . o exemplo da
produtividade para mostrar a contribuição prática que pode advir de uma
compreensão da diferença da vida da classe operária". (1969, p. 156)
ESTUDOS COMUNITÁRIOS 167

É importante a essa altura recuarmos e procurarmos compreender a


posição que ocupa a sociologia na ideologia burguesa e explicarmos o cres­
cimento fenomenal da sociologia, tanto como uma disciplina acadêmica
quanto como uma ciência aplicada, no final da década de 50 e na década
de 60. A sociologia, como Gouldner (1971) procura assinalar, surge e a fir­
ma que os "problemas sociais" não podem ser solucionados no quadro da
economia burguesa:
A sociologia focaliza as fontes não-econômicas da ordem social. A sociologia
acadêmica refuta polemicamente que a mudança econômica é uma condição su­
ficiente ou necessária para a manutenção cada vez maior da ordem social. (1971,
p. 4)

Isto quer dizer que, quando o caráter social da produção capitalista torna-
se aparente no estilo de vida e nas atividades oposicionais da principal
força produtiva, a classe operária, a sociologia aparece como uma teoria de
como responder a essa oposição sem abolir o modo de produção capitalista.
A sociologia reconhece o caráter social da produção — mas nega que
ela tenha algo que ver com a produção, que é, afinal de contas, a preo­
cupação da economia. Os "problemas sociais", isto é, aquelas atividades
ou fenômenos que colidem com os interesses do capital, são vistos como
o resultado da vida "social" — não como contradições econômicas. Já não
é a "fam ília-problem a" individual que está desorientada, é uma porção de
"fanhílias-problema" vivendo numa "área-problema". Assim, por exemplo,
no que diz respeito à educação, podemos ver agora que é a comunidade
que determina amplamente o êxito educacional:
O que permanece incontestado, contudo, é o fato de que o conceito de comuni­
dade nos fornece um guia esclarecedor quanto às expectativas e necessidades da
população das áreas de captação escolar, bem como os fatores que prevalecem
no comportamento de seus alunos e professores, (Eggleston, 1967, p. 361

Esta função ideológica é claramente exemplificada na idéia de uma


"cultura da pobreza". Essa noção argumenta que o pobre constitui uma cul­
tura ou comunidade distinta na sociedade; que as experiências, atitudes e
valores gerados em comunidades pobres são transmitidos de uma geração
para outra num ciclo que não termina. Assim, essa cultura pode:
. . . perpetuar-se de geração a geração por causa de seu efeito sobre as crianças.
Quando as crianças de bairros pobres chegam à idade de seis, sete anos, geral­
mente já absorveram as atitudes e valores de sua subcultura, não estando psico­
logicamente preparadas para aproveitar plenamente as condições que se m odifi­
cam ou as oportunidades mais numerosas que possam ocorrer durante sua vida.
I Lewis, 1968, p. 60)
Portanto, a culpa não é de trabalho não-especializado e irregular, ou más
condições de habitação, ou falta de instrução - o que está errado são suas
atitudes básicas.
168 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

Assim, dentro do contexto total da ideologia burguesa, a sociologia


fornece importantes dados metodológicos e científicos para os fautores
da política social. Em decorrência de não compreender as contradições
numa estrutura total, a sociologia está conceitualmente limitada a compre­
ender o conflito de classes em termos de privação cultural ou individual,
suas formulações políticas reduzindo-se a "remendos improvisados na má­
quina" — ignorando o motor. A um só e mesmo tempo, a sociologia é re­
formista e repressiva. Ao oferecer paliativos a problemas materiais concre­
tos, concebidos em termos de "problemas sociais", a sociologia também,
por definição, assegura os meios de controle social.
Esta incapacidade de compreender a sociedade como uma estrutura
total significa que a sociologia em geral, e os estudos comunitários em par­
ticular, automaticamente limitaram-se à aparência das coisas, nunca pro­
curando analisar as relações latentes nas próprias coisas. É nessa área, e por
este motivo, que os estudos comunitários recorreram ao funcionalismo,
particularmente como manifestado na obra de antropólogos sociais. Uma
prática, um costume ou uma crença são interpretados em termos de suas
funções presentes e contínuas na sociedade. Mas ao passo que os antropó­
logos nas sociedades de pequena escala podem estudar a vida social em
primeira mão, os sociólogos adotaram o mesmo modelo como se suas "c o ­
munidades" não participassem das estruturas nacionais de classes ou de
política.
Na prática, este enfoque leva a uma concentração sobre fatos "norm a­
tivos" (a tratar os fatos sociais como coisas), de modo que a estrutura so­
cial se refere a relações entre fenômenos sociais reais e empiricamente
dados. Estas relações ou são dadas nos fatos diretamente observados ou
concluídas mediante uma simples abstração dos fatos. Assim, a estrutura
social quando utilizada em análises funcionais refere-se a nada mais nada
menos do que à organização real de um sistema social dado.
A partir desta perspectiva o comportamento social é visto como deter­
minado por "norm as" impostas por sanções implícitas ou explícitas. Estas
estruturam, de modo regular e previsível, a vida social e as relações dos in­
divíduos. Assim, para Young e W ilim ott, a relação mãe/filha é uma relação
em que: "Embora ambas tirem benefícios da relação, trata-se de algo mais
do que um mero arranjo para conveniência mútua. A ligação entre elas é
apoiada por um poderoso‘código moral." (1962, p. 193)
Assim, muitos estudos comunitários erigem uma realidade social que é
considerada como dada e apresentando de si mesma uma aparência imedia­
ta. Estamos diante de uma totalidade social de nível único consistindo de
atitudes, comportamentos, atividades, instituições e relações entre essas
coisas. Existe pouca consciência do processo ou das relações dinâmicas
entre diferentes forças e grupamentos; não há sentido deni'veis dentro do
todo social, e em particular nenhuma noção das relações e mediações entre
ESTUDOS COMUNITÁRIOS 169

nível subjetivo de experiência, ideologia e condições materiais determinan­


tes. Geralmente, as pessoas são vistas como passivas, com as coisas lhes
acontecendo, em vez de demonstrando algum esforço para criar suas vidas:
não há dialéfica entre fatores objetivos e subjetivos.
A construção ideológica de um mundo que é auto-evidente, nivelado e
funcionalmente inter-relacionado, no qual as Idéias estão como sempre
estiveram, transmite um tipo específico de inconsciência metodológica. Já
que uma realidade está presente para ser vista, não existe mais do que uma
maneira de vê-la — por que então dar as bases ou os detalhes de suas obser­
vações? Não é um mundo reflexivo, então por que deve a sua metodologia
ser reflexiva? As técnicas são "naturalistas", diretas e não problemáticas
e geralmente não registradas.
Sem uma clara declaração dos paradigmas nesta obra; sem qualquer in­
formação sobre técnicas de pesquisa, ou como os consultados respondem
aos pesquisadores; sem nenhuma Informação independentemente apresen­
tada no que diz respeito à relação do pesquisado com o pesquisador e no
que diz respeito aos dados brutos não tratados pelas teorias dos autores —
é impossível para nós triangular, remontar a leitura ao longo das linhas da
predisposição teórica prévia, desconstruir e reconstruir, chegar à nossa
própria interpretação da evidência baseada em princípios.
Os estudos comunitários formam o encontro isolado mais maciço com
a experiência localizada da classe operária e são a principal fonte acredita­
da de explicações "qualitativas" da cultura da classe operária. Como tal,
esses estudos devem ser desmistificados e igualmente resgatados como
fontes para os nossos próprios, esperamos que mais reflexivos, processos
de pesquisa. Tal como é, "remontar a leitura" dos estudos comunitários é
u_m exercício incerto. Estamos lidando com uma problemática peculiarmen­
te não teorizada, naturalizada, coligida, que metodologicamente esconde
suas próprias trilhas.
Desse modo, se considerarmos axiomático que as pessoas não estão
simplesmente do "lado receptor" de sua posição de ciasse objetiva, então
torna-se aparente que suas ações são parcialmente projetadas em termos de
expectativas e definições criativas. Infelizmente, como demonstramos, a
maior parte do exame desta camada semi-autônoma da experiência da clas­
se operária tem sido levada a cabo através dos estudos comunitários, e é
com esse material imperfeito que se tem realizado o exame das tipificações
das imagens da classe operária e das modificações em seu interior.

Lockwood: a comunidade e o proletário tradicional


Retornando à tipologia de Lockwood, constatamos que ele argumenta
haver duas variáveis cruciais na formação das imagens da classe operária
sobre a sociedade — trabalho e a comunidade local. E faz então uma dis­
tinção entre dois modelos básicos de imagens de classe: um modelo basea-
170 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

do no poder, no conflito e numa dicotomia entre classes; e um modelo


baseado em prestígio, condição social e hierarquia. Lockwood argumenta
que o proletário tradicionalista é o mais propenso a endossar um modelo
dicotômico, concluindo, portanto, que esse tipo de operário é o que tem
mais consciência de classe. Conseqüentemente, é sobre este aspecto da aná­
lise de Lockwood que nos concentraremos nesta seção.
O proletário tradicionalista é o sujeito arquetípico dos estudos comu­
nitários, sendo certamente o representante mais colorido, romântico e ina­
cessível de sua classe. É inevitavelmente do sexo masculino e geralmente
trabalha numa situação de desconforto físico e de perigo. Não obstante,
consegue manter um alto grau de envolvimento no trabalho e uma forte
ligação ao seu grupo de trabalho mais chegado. Sua cultura ocupacional
estende-se ao seu tempo livre, facilitado pelo fato de que a maioria desse
tipo de trabalho exige uma "comunidade ocupacional".
O estudo comunitário clássico nesse campo é sem dúvida Coa! is Our
Life (1956). Esse estudo moldou toda uma geração de acadêmicos e seus
modos de ver o mineiro. Os dados para este estudo foram coligidos na
década de 50, sendo explicitamente um estudo comunitário influenciado
pela antropologia. A nota de cautela que este detalhe nos causa parece ser
partilhada por pelo menos um dos autores: Henriques em particular é mui­
to sensível às implicações de sua abordagem e método. Na introdução à
segunda edição, diz ele: "Por seu enfoque do 'quadro comunitário' como
tal, essa técnica tenderá a abstrair-se do quadro social em todos os níveis da
vida social" (1969, p. 7). Seu exemplo é que ao mesmo tempo em que as
relações entre marido e mulher e a natureza da atividade de lazer são:

Vistas precipuamente do ponto de vista de apreender suas relações com as for­


mas de atividades e relações sociais impostas pelo trabalho na mina no qual se
baseia a comunidade, esta ênfase tenderá a obscurecer o fato de que cada uma
destas séries particulares de relações estende-se para além da comunidade, tanto
em espaço como em tempo. Por si mesma, a técnica do estudo comunitário não
provê nenhuma maneira de se medir o significado de suas constatações contra
fatores "externos” . (1969, p. 7)

Os mineiros de Ashton certamente manifestam uma imagem de classe


dicotômica; mas se isso se ajusta ou não ao modelo de Lockwood será dis­
cutido posteriormente. A questão de se isso é espontaneamente gerado
através de relações sociais de trabalho está sujeita a amplos debates. A cita­
ção acima sugere que Henriques reconhece o fato de que os mineiros pode-
riam estar se baseando em fatores extralocais para suas imagens de classe.
Os aspectos centrais da vida comunitária descrita por Dennis e outros
são os repetidos conflitos e atitudes dos mineiros quanto à sua pobreza e
isolamento culturais e à opressão de suas mulheres. Estes fatos são encara­
dos como o resultado de relações econômicas e condições de trabalho
ESTUDOS c o m u n it á r i o s 171

reais. Da situação de classe peculiar e da situação de trabalho (para utilizar­


mos os termos de Lockwood) do mineiro, segue-se muita coisa mais. Cer­
tamente que existe uma conexão lógica entre a experiência de trabalho
comum do mineiro e uma imagem social dicotômica, mas a lógica nunca
criou um fato. Uma objeção é a experiência de vida totalmente distinta das
mulheres que vivem em regiões mineiras. Enquanto os homens foram reu­
nidos pelo carvão, este exerceu a influência oposta ou "centrífuga" sobre
as mulheres. Para elas não há trabalho remunerado, a menos que deixem a
região. Nem podem identificar-se facilmente através da fam ília: o casamen­
to e a família constituem uma arena de luta, e parecem completamente
destituídos de afeição. Homens e mulheres estão efetivamente separados
como esquimós e africanos. De fato, a experiência dos sexos é de tal modo
diferente que é preciso fazer-se um esforço para lembrar que eles vivem
juntos na mesma cidade. Considerando que Lockwood está afirmando que
a experiência de trabalho e da comunidade é fundamental na formação de
percepções de classe, é razoável esperar-se que as imagens do homem e da
mulher seriam diferentes.
Não obstante, os resultados de eleições em regiões mineiras (uma evi­
dência reconhecidamente m uito parcial) tendem a demonstrar que as mu­
lheres votam da mesma maneira que os homens, sugerindo pelo menos em
parte que elas partilham o mesmo tipo de imagem de classe. Esta interpre­
tação tendería a sugerir que, longe desta imagem ser espontaneamente gera­
da, as pessoas estão reconhecendo algum tipo de ideologia nacional, sendo
que sua aceitação ou rejeição desta ideologia é mediada por sua experiência
e trabalho locais.
Segundo Lockwood, contudo, as velhas tradições da classe operária
quanto à comunidade e à cultura coletiva estão passando por uma substan­
cial transformação. A tendência moderna é de romper comunidades operá­
rias tradicionais — "ocupacionais" ou não —e lançar as pessoas em moradias
particulares de baixo custo ou em conjuntos habitacionais — as condições
de vida do "trabalhador privatizado". Esta transformação, argumenta
Lockwood, tem sido uma evolução no sentido de uma nova espécie "mais
estreita" de coletivismo — não mais "in stin tu a l" baseada nos laços de
parentesco tão ao agrado dos antropólogos sociais, mas "instrum ental",
baseada num cálculo racional do auto-interesse. Mas apesar de suas cono­
tações durkheimianas, não vemos razões porque a segunda forma deva ser
julgada tão "mais estreita" do que a primeira. Pelo contrário, uma "solida­
riedade" baseada no parentesco, na comunidade e na localidade é ela mes­
ma uma forma "estreita" de consciência social por causa de seu caráter
seletivo.
Desse modo, existem vários problemas com a formulação de Lock­
wood sobre o operário tradicional. Em primeiro lugar, uma vez que a tip o ­
logia de Lockwood é heurística, não é apropriado criticá-la com a alega-
172 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

ção de que em todos os casos ela não coincide com a realidade empírica.
Temos procurado evitar isso criticando aspectos do tipo, em vez de indagar
se grupos particulares de trabalhadores se ajustam ou não à categoria. Além
do mais, "tra dicion al" e "proletariado" parecem-nos ser termos contradi­
tórios quando aplicados à consciência da classe operária. Sugerimos que
alguns dos fatores que Lockwood associa à comunidade tradicional — a
existência de interações emocionais diretas no trabalho, o mercado de tra­
balho localizado, e o alto grau de envolvimento no trabalho — inibem o
desenvolvimento da consciência do proletariado em vez de estimulá-la.
Uma vez mais, como assinala Westergaard (1970), os desenvolvimentos eco­
nômicos subjacentes à resposta cultural da privatização estão levando a
uma transparência cada vez maior no nexo do dinheiro — um desenvolvi­
mento que não deixa de ser problemático para o capitalismo.
Finalmente, um outro problema é a idéia determinista/positivista de
consciência manifestada por Lockwood neste artigo específico. A consci­
ência é vista simplesmente como um reflexo da atividade na base. Isso é
surpreendente tendo em vista os trabalhos (anteriores) de Lockwood sobre
"a classe operária afluente", nas quais, examinando o aburguesamento, ele
insistiu que três aspectos da atividade da classe operária devem ser levados
em consideração: o econômico, o relacionai e o normativo, todos apresen­
tando uma relativa autonomia, com o relacionai agindo como mediador
entre os outros dois. Neste sentido, a consciência jamais poderia ser apenas
um reflexo do que fazem as pessoas, já que as mediações de como o fize­
ram, e com quem, eram cruciais. Em Sources o f Variation in Working Class
Images o f Society, Lockwood parece derrubar os níveis do econômico e
do relacionai, dando-nos em seu lugar uma crua formulação base-superes-
trutura com determinações mecanicistas. Um exemplo desse mecanicismo
é manifestado na identificação que Lockwood faz do tradicionalista prole­
tário como o trabalhador que possui maior consciência de classe. Eis a ex­
plicação de Lockwood de sua imagem da estrutura social:

Moldada por solidariedades ocupacionais e sociabilidade comunal, a consciência


social proletária está centrada numa consciência do "nós" e "eles". "Eles" sêo
patrões, diretores, colarinhos brancos e, por extensão, as autoridades públicas
da sociedade em geral. (1975, p. 18)

Esta caracterização mostra uma simplificação crua de uma imagem d i­


cotômica do "n ós" e "eles". Moldado pelo trabalho e pela comunidade
local, o tradicionalista proletário vê os "eles" como uma hierarquia em
choque com as atividades do trabalho da comunidade, uma característica
imputada do trabalhador privatizado. Fundamentalmente, uma concepção
dicotômica de- "eles" e "n ós" reflete um poder e uma relação de classe
com ramificações mais amplas do que as da comunidade local. Este ponto
reflete a crítica de Westergaard de que o esquema de Lockwood não admi-
ESTUDOS COMUNITÁRIOS 173

te uma "consciência de classe radical", isto é, uma consciência que trans­


cenda as ocupações e as localidades e se generalize a outras seções da classe
operária. Já que são ambos hierárquicos, nenhum dos modelos de Lock-
wood apresenta matizes radicais e nenhum representa uma imagem de c/as-
se dicotômica.
Posteriormente, Lockwood limita-se a argumentar que somente quando
um sentido de "privação relativa" penetra na consciência da classe operária,
é que alternativas radicais surgem como objetivos viáveis — quase sugerindo
que o desemprego em massa é o pré-requisito da atividade revolucionária.
Sua incapacidade de estabelecer uma distinção entre a experiência do pro­
cesso de trabalho e a experiência da relação de capital complica sua reifica-
ção da diferença entre o trabalhador privatizado e o trabalhador tradicional.
Em termos poifticos a consciência do proletário tradicional de Lock-
wood é uma "acomodação" ao capitalismo — mais uma transcendência cul­
tural do que uma transformação material. Longe de engendrar uma cons­
ciência de classe radical, o tipo de relações comunitárias experimentadas
pelo proletário tradicional tende a provocar o resultado oposto — um
auto-interesse paroquial. E, como Westergaard assinalou em numerosos
artigos, o localismo e o paroquialismo são endêmicos na classe operária,
este fator inibindo os trabalhadores na busca de seus interesses.
Ao mesmo tempo em que concordamos com Westergaard quanto à
importância de ideologias baseadas na localidade e na comunidade, acha­
mos sua formulação desse fenômeno um tanto bizarra:

Os reformadores e os críticos vitoriartos . .. com freqüêncía reconheceram expli­


citamente o choque (real ou potencial) entre as restrições conservadoras do lo­
calismo, por um lado, e as implicações radicais e, portanto, assustadoras de
quaisquer rompimentos destas restrições, por outro lado. Quanto á esta questão,
sempre me vem à mente Thomas Chalmers que, em seu livro The Civic and
Christian Economy o f Large Towns, na década de 1820, advogava um sistema de
"localism o" para fragmentar os distritos da classe operária nas grandes cidades
em pequenas unidades . .. para sufocar qualquer tendência à rebelião. Seu argu­
mento era justamente o de que se os interesses da classe operária pudessem ser
voltados para a localidade, então os trabalhadores seriam impedidos de formar
alianças por cima das fronteiras restritivas da localidade; e a ordem social seria
preservada. Dividir para governar. (1975, p. 252)

Consideramos insustentável a tese de Westergaard na medida em que ela


sofre da fraqueza de todas as teorias conspiratórias, na medida em que ela
atribui demasiado poder e inteligência aos conspiradores. Achamos mesmo
que existe algo de pungente quanto à carreira intelectual de Westergaard,
construída principalmente com a exprobação da classe dominante por sua
estupidez, em que pese apontar nesse artigo os complós diabolicamente
hábeis que esta classe consegue imaginar para manter o trabalhador num
estado de "falsa consciência".
174 PROBLIiMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

Uma coisa parece m uito clara. Os trabalhadores podem não ver a es­
trutura de classe de uma maneira, mas de maneiras diferentes e contraditó­
rias. Isto é mais compreensível em vista dos efeitos sobre a consciência e
as imagens de classe do sistema educacional e dos meios de comunicação.
Dadas todas as diferentes influências que operam sobre a consciência dos
trabalhadores, sugeririamos que qualquer tipo de "imagens da sociedade"
coerentes seria a exceção e não a regra. Se nem a situação social de um
grupo particular de trabalhadores, nem as interpretações destas situações
são homogêneas, como sugere Lockwood, está aberto o caminho para con­
tradições aparentes entre atitude e conduta e ainda para uma considerável
variação nas próprias atitudes.

Parkin: sistemas nacionais de significado


e o trabalhador acomodatício

Examinando as categorias de Parkin, constatamos diferenças significa­


tivas no modo pelo qual as imagens da classe operária são tipificadas. Fun­
damentalmente, estas categorias não se referem a ideologias geradas espon­
taneamente, mas a ideologias nacionais impostas de uma maneira ou de
outra e ás quais diferentes frações da classe operária prestam fidelidade.
Em primeiro lugar, existe o sistema de valores dominante, cuja fonte social
é a classe dominante. De modo típico, esse sistema é aceito pela classe ope­
rária "deferente" ou "aspirante". Em segundo lugar, o sistema de valo­
res subordinado, cuja fonte social ê o sindicalismo e no qual são incorpora­
dos o "proletário tradicional" e o "trabalhador privatizado", que Lock­
wood distingue. Em terceiro lugar, o sistema de valores radical, que não é
propriedade da classe operária, já que esta é incapaz de gerar de modo au­
tônomo sua própria crítica sistemática do capitalismo; "a classe operária,
por si, só pode desenvolver uma consciência sindicalista." Resta-nos a in­
terpretação de que indivíduos, e não grupos sociais inteiros, subscrevem
este sistema de valores, já que seu único portador institucional é o "partido
político de massa", não sendo sugerida nenhuma condição para sua aceita­
ção social. *

Ligada a essas categorias há uma tese política específica sobre a natu­


reza do sindicalismo e do partido político da classe operária, no caso o
Partido Trabalhista. No primeiro caso: "as negociações coletivas não abor­
dam a questão dos valores subjacentes à estrutura de recompensa existente.
Poder-se-ia de fato dizer que o sindicalismo estabiliza a ordem capitalista
moderna ao legitimar mais ainda as regras e os procedimentos que gover­
nam a alocação de recursos." (1972, p. 91). Assim, os sindicatos são vistos
como uma resposta acomodatícia à desigualdade.
1 STUDOS COMUNITÁRIOS 175

Além do mais, no caso do Partido Trabalhista, a única fonte do siste­


ma de valores radical, Parkin assinala seu revisionismo do pós-guerra, e
argumenta;

Parece-nos plausível sugerir que se os partidos socialistas deixassem de apresen­


tar a seus seguidores um sistema de significados radical e classista, nesse caso tal
orientaçSo não continuaria por si mesma entre a classe subordinada. Uma vez
que o partido de massa da subclasse passa a endossar plenamente os valores e
as instituições da classe dominante, não resta nenhuma fonte importante de
conhecimento e informação políticos que possibilitasse à classe subordinada
encontrar sentido em sua situação, em termos radicais. (1971, p. 98).

Ora, o erro básico cometido por Parkin em suas análises tanto dos sin­
dicatos como do Partido Trabalhista é o de generalizar em categorias atem­
porais características peculiares a um período histórico particular. Antes
de mais nada sua descrição de economismo, apesar da citação que faz de
Lénin, é uma simples caracterização do movimento trabalhista numa con­
juntura particular. Lénin apontava as limitações do sindicalismo como
força política e revolucionária — sua relação com a atividade política. Fun­
damentalmente, seja qual for o grau de reformismo dos líderes sindicalis­
tas, a própria existência de um sindicato ipso facto afirma a diferença in­
transponível entre capital e trabalho numa sociedade de mercado; ela cor-
porifica a recusa da classe operária em integrar-se no capitalismo segundo
os próprios termos do capitalismo. O sindicalismo tem sido sempre uma
resposta direta às forças econômicas — uma resposta a um sistema em que
os trabalhadores são forçados a vender sua força de trabalho como uma
mercadoria no mercado. Como Benyon (1973) assinala, esta situação gerou
uma consciência de classe nas fábricas que compreende as relações de clas­
ses em termos de sua manifestação direta em conflito entre empregadores e
trabalhadores numa fábrica. Esta consciência está enraizada no local de
trabalho onde as lutas são travadas pelo controle do emprego e dos "d ire i­
tos da diretoria e dos trabalhadores. Embora possa ser uma "p olítica da fá­
brica” , o fato de se ocupar com exploração e poder indica que ela contém
elementos políticos definidos. Os sindicatos, portanto, refletem e expri­
mem uma "consciência da classe operária": uma consciência que reconhe­
ce a validade do proletariado como uma força social distinta, com seus pró­
prios interesses corporativos na sociedade. Isto pode não ser o mesmo que
uma consciência socialista, mas deve ser reconhecida como uma precondi-
ção necessária para seu desenvolvimento.
Além do mais, enquanto o "coletivismo instrumental" dos trabalha­
dores é exprimido com um economismo agressivo e um controle fabril de­
fensivo, a correlação que Parkin faz disso como sendo simplesmente "aco-
m odatício" é unidimensional. Ele pressupõe que as exigências economistas
serão satisfeitas de modo consistente e que o controle fabril é algo que só
176 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

precisa ser defendido de tempos em tempos. Ambas estas pressuposições


são controversas. De modo crucial, o delicado equilíbrio do poder de barga­
nha na indústria moderna não é determinado por quaisquer padrões abs­
tratos de “ harmonia". Trata-se de um equilíbrio instável de forças. Se
uma das forças se enfraquece, a balança penderá para um lado. No momen­
to ela está pendendo contra os sindicatos. Contra uma imprensa hostil, ela
própria uma arma total da estrutura do poder, os sindicatos acham-se sob
constantes ataques. Ao mesmo tempo, pressionados por um Estado igual­
mente subordinado ao poder dos monopólios, os sindicatos vêem-se na si­
tuação de responder a uma série de pseudo-opções cuidadosamente impos­
tas, como "ou você aceita uma política de restrição salarial ou haverá uma
alta taxa de desemprego" — no caso, os sindicatos têm sido obrigados a
aceitar ambas as opções. Ao mesmo tempo, em cada indústria são feitas
tentativas para reduzir as áreas de controle que iniciativas sindicais locais
já estabeleceram sobre as prerrogativas da diretoria (o exemplo mais recen­
te foi o caso dos door-hangers na Fords, em Dagenham). O motivo por trás
de todas essas pressões, evidentemente, é o reconhecimento da fraqueza
competitiva da indústria britânica e a conseqüente necessidade de dim inuir
os custos. De modo semelhante, tanto as exigências economísticas como a
capacidade de o sistema abrir mão delas estão sujeitas a mudanças e flutua­
ções, sendo que isto impõe limites à lógica do sindicalismo. Assim, embora
Parkin explique a consciência da classe operária até certo ponto, o entendi­
mento é superficial, no sentido de que não há uma compreensão das ten­
sões e contradições na fórmula controle fabril defensivo/economismo
agressivo. O nexo de dinheiro do instrumentalismo é um "frágil laço" com
implicações problemáticas e cambiantes para o conflito trabalhista e a cons­
ciência de classe.

De modo semelhante, o desenvolvimento da oligarquia e/ou do con­


servadorismo nos sindicatos, com o conseqüente controle da militância
oficial, deve ser visto dentro de um contexto econômico e político particu­
lar, em vez de como um resultado da dinâmica da organização per se. Por
exemplo, como Lane (1974) argumentou, as políticas conciliatórias dos
sindicatos de artesãos na década de 1880 devem ser vistas dentro de um
contexto das reais concessões feitas pelo Estado num clima econômico par­
ticularmente favorável; ao passo que as tendências mais militantes da déca­
da de 1910 representavam em parte reações a ameaças econômicas e legais
concretas. E, ainda, dentro dos sindicatos existem contratendências que se
confrontam com tendências oligárquicas e que não devemos perder de vis­
ta. Assim, enquanto na maioria dos sindicatos existe uma contínua oposi­
ção a lideranças reformistas, grupos locais, através de uma força de barga­
nha paroquial, podem tomar suas próprias iniciativas e agir como fontes de
oposição (ver Benyon, 1973). Assim, na década de 1960 movimentos gre-
I M l IDOS COMUNITÁRIOS 177

«niii*. n lo oficiais geraram uma radicalização de setores da burocracia


»lnilii .iliiia e viram o renascimento da greve "o fic ia l".
Nilo estamos afirmando que os sindicatos constituem uma base revolu-
' iiiiiAil,i da qual um ataque efetivo á sociedade capitalista possa ser feito.
Nii vnidade, reconhecemos que no fundo os sindicatos são organizações
iloinniiviis criadas e apoiadas por trabalhadores que precisam de proteção
Mii timtcado de trabalho. Mas, ao contrário de Parkin, diriamos que os sin-
illiiilii'i são mais do que isso. Trata-se fundamentalmente de organizações
■1,1 I liiiso operária e, conseqüentemente, os numerosos conflitos vividos
iinloi iiübalhadores encontram expressão no sindicato. Como diz Benyon:

A (liijunçáo Bntre aquilo que tem sido chamado uma "consciência sindicalista" e
unin 'consciência po lítica" náo é clara. A política e um entendimento político
piKlem estar implicitamente presentes na maneira pela qual os trabalhadores e os
iillv litu i encaram e compreendem seu sindicato e seus empregadores. O que está
C.lnro, contudo, é que enquanto a política está presente no sindicalismo, os sindi-
( nloi antes restringem do que desenvolvem esta consciência política. . . Segundo
a liadição, o movimento sindical britânico tem enfrentado a contradição de
<M>ür se ao empregador ao mesmo tempo em que o reconhece através da dicoto-
mla das alas "industrial" e "p o lítica " do movimento trabalhista. Qualquer coisa
leliclonada a uma mudança na sociedade foi transferida para o Partido Tra-
bnlhlita, (1973, p. 231)

Abordando o tratamento que Parkin dá ao Partido Trabalhista, cons-


i.ii.imos que ele inicialmente o define como a principal fonte histórica do
ililm iia de valores radical. Ele argumenta, então, que no período do pós-
uuiiiia o Partido tem sido caracterizado por sua aceitação do statusquo e
|Hil() conseqüente abandono de quaisquer polfticas voltadas para uma alter-
nnliva radical. A primeira observação que faríamos é que caracterizar o
l';iiiid o Trabalhista anterior á guerra como "radical" é ilusório — se com
itli) o autor quer dizer um radicalismo com consciência de classe. A carac-
in iíitic a fundamental do Partido Trabalhista desde sua criação tem sido
■■nu inabalável compromisso com a rotina parlamentar e com o reformismo.
Embora admitamos que a transição de um partido de oposição para
um partido de governo tenha visto o Partido Trabalhista adotar cada vez
mais o papel revisionista de "gerente" de uma economia mista, rejeitamos
II afirmativa de Parkin segundo a qual isto não apenas levou a uma desra-
ilicalização da classe operária, mas que efetivamente impede a classe ope­
rária de desenvolver uma perspectiva radical.
Assim como a década de 1950 pode ser vista como um período de
"consenso" caracterizado pelo imobilismo da classe operária, a década de
1960 deve ser vista como um período de conflito econômico caracterizado
por uma crescente militância da classe operária. Foi um período em que o
capital se concentrou nas mãos de corporações cada vez maiores e em nú­
mero cada vez menor. Isto, combinado com o declínio da taxa de lucro
178 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

sobre o capital nacional e uma economia inflacionária, produziu uma situa­


ção econômica na qual as noções de "um só país” , tão em voga na década
de 1950, estavam começando a ruir. "A década de 1960 reavivou a existên­
cia das classes sociais e da luta de classes" (Benyon, p. 148).
O ressurgimento da militância sindical encontrou um paralelo na ten­
dência crescente de a ação direta estender-se a outras áreas. Isto ficou espe­
cialmente evidenciado no setor da habitação, onde ocorreu um rápido
crescimento de associações de inquilinos. Este desenvolvimento, e outros,
geraram um intenso período de lutas políticas radicais extraparlamentares
— no campo da política habitacional e comunitária, na política feminista,
tanto pessoal como econômica, no movimento dos representantes sindi­
cais, e assim por diante (à guisa de exemplo, ver Bailey, 1973; The Body
Politic, Feminist Books, 1972; Blackburn e Cockburn, 1967). É evidente
que não se reduziram às atividades de estudantes e intelectuais descontentes.

Nosso argumento, pois, é que em sua maneira de tratar a atividade dos


sindicatos e a política radical Parkin abstrai desenvolvimentos históricos
particulares de seu contexto econômico e político. Nesse processo, im por­
tantes contradições e tensões são absorvidas e escondidas numa apresen­
tação unidimensional de uma análise superficial mente coerente. A suges­
tão é de que o Partido Trabalhista e, conseqüentemente, a classe operária
estão agora num processo irreversível de desradicalização e que o sistema
de valores radical irá agora apenas "influenciar pequenos partidos da peri­
feria p o lítica " (1971, p. 101). Não detectamos aí uma nota de determinis­
mo? Além do mais, a luta de classes não é um vício da imaginação dos
"intelectuais". Trata-se de um processo dinâmico real proveniente dos inte­
resses contraditórios do capital e do trabalho. Embora aceitemos que num
período histórico particular — em que um consenso "orquestrado" exclui a
articulação de quaisquer opções socialistas — os partidos tradicionais de es­
querda podem tornar-se agentes do status quo, este processo não está isen­
to de contradições, sendo que esta conjuntura não é fixa para sempre.

Tendo creditado o sistema de valores radical ás "torres de m arfim ",


Parkin fica com dois sistemas de significado que caracterizam as imagens
da classe operária — o dominante e o subordinado. Ele identifica o sistema
de valores subordinado como sendo gerado na comunidade operária local:

As comunidades de classe subordinadas lançam seus diferentes sistemas de valo­


res mais ou menos independentemente uma da outra: não existe sistema de va­
lores subordinado "nacional” como existe um sistema de valores dominante ver­
dadeiramente nacional. A semelhança nos padrões normativos das comunidades
de classe operária deriva em grande parte da semelhança das condições a que
estão expostas. Elas geram um sistema de significados cujo sentido é meramente
paroquial, e que representa um projeto de vida baseado em conhecimento social
localizado e relações face a face. (1971, p. 90)
ESTUDOS COMUNITÁRIOS 179

Uma das mais importantes condições a que estão expostas é o sistema de


valores dominante através do aparelho educacional, dos meios de comuni­
cação, e assim por diante. A classe operária mostra-se incapaz de negar
esses valores, assim como lhe faltam outras fontes de conhecimento e in­
formação, já que não há partido radical, de modo que sua reação não é
no sentido de rejeitar esses valores"... criando assim um sistema norm ati­
vo completamente diferente, mas negociá-los ou modificá-los à luz de suas
próprias condições de existência" (1974, p. 92). "Baseado nisto, é válido
considerar os valores subordinados como uma forma negociada de valores
dominantes" (1971, p. 95).
Nessa concepção são nivelados tanto o tradicionalista proletário como
o trabalhador privatizado. Embora tenhamos criticado a tipificação de
Lockwood, ela pelo menos fez alguma referência á história, enquanto que
Parkin incorporou todo o desenvolvimento da cultura da classe operária
na categoria "sistema de valores subordinados", sua característica defini­
dora sendo uma resposta acomodatícia á desigualdade. Todavia, até mes­
mo este sistema de valores é simplesmente uma negociação de valores
dominantes, e uma vez mais parece que estamos no reino do determinis­
mo. Pois os sistemas de significado da classe operária são meramente uma
negociação de valores dominantes para satisfazer as exigências predomi­
nantes da comunidade operária. Não nos é fornecido nenhum sentido do
aspecto criativo da resposta da classe operária a condições materiais nem do
reservatório acumulado de práticas e significados culturais corporificados
na cultura da classe operária que agem como determinantes e como ferra­
mentas para a transformação da cultura em resposta tanto a condições
materiais em transformação quanto a ataques ideológicos da burguesia,
sob a forma de educação, segurança social, habitação etc.
Desse modo, com efeito, Parkin tem apenas um sistema de valores e
uma categoria residual. O primeiro tem uma versão dominante e uma nego­
ciada, enquanto a segunda está limitada a intelectuais "flutuantes" e à
"esquerda festiva".

Conclusão

Delineamos uma crítica de duas tipologias conceituais e do que considera­


mos sua base empírica. No caso de Lockwood, argumentamos que quase
todos os trabalhadores no regime capitalista estão submetidos a uma tal si­
tuação contraditória real que é improvável que possam desenvolver subcul-
turas coesas e isoladas do tipo que o autor postula. Conseqüentemente,
argumentamos que as "imagens da sociedade" são mais passíveis de serem
contraditórias do que homogêneas, demonstrando ambiguidades nas a titu ­
des e no comportamento e mesmo atitudes contraditórias. Metodologi-
camente, argumentaríamos também que as tipologias heurísticas nas quais
180 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

se baseia a argumentação de Lockwood são por demais estáticas para aju­


darem na compreensão da relação essencialmente dialética entre capital e
trabalho.
Parkin tenta explicar essas contradições argumentando que em situa­
ções abstratas os trabalhadores responderão em termos do sistema de va­
lores dominante, mas em situações que envolvem opção e ação eles recor­
rerão ao sistema de valores subordinado negociado. Todavia, a natureza
m onolítica e determinística desse sistema de valores não provê uma força
explanatória. Sistemas de valores abstratos e reificados, que cobrem a
complexidade e as divergências culturais das imagens da classe operária,
aliados a uma tese política desistoricizada, servem para sufocar os elemen­
tos oposicionais em potencial demonstrados na natureza contraditória da
consciência da classe operária.
Em ambas estas tentativas sociológicas para se compreender as ima­
gens da classe operária é postulada uma relação homóloga entre idéias e
experiência, consistindo a diferença na ênfase colocada nos diferentes n í­
veis — Parkin enfatizando as idéias, e Lockwood o trabalho e a experiência
comunitária. Ambas as tipificações, argumentaríamos nós, degeneram num
determinismo cru e nivelado porque reúnem tanto a consciência como a
ideologia numa "imagem de sociedade" uniforme.
Nosso argumento básico é que, na análise das "imagens de sociedade"
da classe operária, o que deve ser colocado no centro da análise é a natu­
reza histórica dessas imagens. O desenvolvimento histórico da relação
entre capital e trabalho lançou formas específicas de resistência peculiares
às condições materiais e estratégias de conjunturas particulares. Estas fo r­
mas específicas podem ser analisadas em termos de desenvolvimento desi­
gual do capitalismo, não apenas num nível internacional, mas também
num nível intranacional, conduzindo assim a diferenças no desenvolvimen­
to industrial regional ou mesmo a diferenças numa região. O livro de John
Foster, Class Struggle and the Industrial Revolution, é um ponto de parti­
da útil para esse tipo de análise, pois aborda o desenvolvimento de diferen­
tes graus da consciência de classe em três cidades, com base em diferentes
relações entre capital e trabalho e diferentes formas do processo de traba­
lho. Também metodologicamente úteis são as análises de Lênin (1960) e
Gramsci (1971) sobre o desenvolvimento do capitalismo na Rússia e na
Itália.
Uma vez estabelecidas, formas particulares de resistência conseguem
expressão institucional, por exemplo, nos sindicatos, nos clubes de traba­
lhadores etc. Nestas instituições, que estão em permanente processo de
luta, são construídas ideologias — sobre o trabalho, sobre a região, sobre
relações sociais locais específicas — que acabam exercendo grande influên­
cia sobre aqueles que servem e aos quais são dirigidas.
I STUDOS COMUNITÁRIOS 181

Todavia, essas ideologias não são simplesmente determinantes; elas


não apenas influenciam, mas modificam-se de acordo com os desenvolvi­
mentos da vida material. Esse processo é examinado sociologicamente no
estudo de Stacey (1960), sobre Banbury, que na época era uma pequena
cidade com uma indústria artesanal. O livro de Stacey explora as mudan­
ças na composição de classe e na consciência de classe decorrentes da
introdução de máquinas modernas numa fábrica de plásticos. No livro, o
autor quase vê a contradição inerente entre classe e comunidade, mas a
análise acaba falhando porque não examina a relação entre essas ideologias
e a experiência real de trabalho assalariado como mediado através da cons­
ciência. É também esse nível contraditório que Parkin e Lockwood incor­
poram às “ imagens", sendo esta camada semi-autônoma da experiência da
classe operária que lança novas “ formas" de resistência e defende e adapta
velhas “ formas" para satisfazer novas condições.
Assim, a busca de “ imagens de sociedade" da classe operária integra
contradições em sua procura de coerência. A coerência estabelecida é atin­
gida "unidimensionalmente" num nível verbal, à custa da desistoricização
dos fenômenos complexos em questão. De modo crucial, uma análise de
desenvolvimento desigual do capitalismo e do processo de trabalho com
suas ideologias concomitantes — local, ocupacional e nacional — é neces­
sária para se compreender as relações e as mediações entre o nível subjetivo
da experiência, a ideologia e as condições materiais determinantes.

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APÊNDICE

Incluímos este Apêndice para ilustrar como o interesse dos sociólogos se focalizou
tanto na "comunidade” como uma ideologia quanto nos estudos comunitários na
década de 50. Incluimos trabalhos realizados nos Estados Unidos para comparação,
pois um desenvolvimento semelhante lá ocorreu nos anos 30.

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Democracia Social, Educação e a Crise

Dan Finn,
Neil Grant, Richard Johnson

Introdução

Há um desafio a todos nós atualmente, e um desafio em educação é examinar suas


prioridades e assegurar uma eficiência tão elevada quanto se possa conceber através
da aplicação sábia dos 6 bilhões de libras dos recursos disponíveis.
Permitam-me repetir alguns dos campos que exigem estudo porque causam preo­
cupação. Há os métodos e os objetivos da instrução informal. A alta prioridade do
chamado currfculo básico de conhecimento. Qual é a maneira apropriada de acompa­
nhar a aplicação dos recursos para que seja mantido um padrão nacional apropriado
de realização? Qual é a função da inspetoria em relação aos padrões nacionais e a sua
manutenção? E há a necessidade de melhorar as relações entre a indústria e a educa­
ção. (James Callaghan, Ruskin Coliege, outubro de 1976)

As principais perguntas do primeiro-ministro trabalhista assinalaram


uma mudança fundamental nos debates sobre os recursos e os objetivos da
educação. Essas perguntas assinalaram, ao nível político "mais a lto", o fim
da longa fase de expansão educacional no pós-guerra que fora em grande
parte promovida pelo próprio partido de Callaghan. Seu discurso, apesar
do conteúdo bem banal, foi um acontecimento público bem preparado,
pronunciado em local apropriado, importante mais pela expectativa do
que pela fala. Destinado, na ocasião, a ser um acontecimento extraordiná­
rio — uma redefinição pública de objetivos educacionais — o discurso foi
também uma resposta a acontecimentos mais imediatos. A história da crise
econômica e dos cortes nas despesas públicas e, o verdadeiro desafio de Cal­
laghan, a importância polêmica da crítica do Partido Conservador ao passa­
do do Partido Trabalhista na educação. Se o compreendermos corretamente,
o discurso de Callaghan cristalizou muitos aspectos da atuai situação.
É nossa intenção no que se segue, como um projeto político-intelec-
tual, contribuir para o entendimento dessa conjuntura. Escrevemos especi­
almente para pessoas que, como nós próprios, trabalham num sistema
educacional sob cerco ou que têm bloqueada sua entrada neste sistema.
Para todos nós a consciência da crise educacional é reforçada pela experi-
EDUCAÇÃO E CRISE 187

ência diária de insegurança ou pela perda de autonomia aparente. Mas


nossa contribuição é de um tipo particular e limitado: tomamos por objeti­
vo as ideologias sobre a educação-, abordamo-las historicamente; vemo-las
como tendo bases e efeitos sociais determinados (ou "m ateriais").’ É im­
portante nos estendermos um pouco, neste ini'cio, para caracterizar essa
abordagem.
Em análises de sistemas educacionais (ou da obra ideológica do Estado
em geral) é útil distinguir dois aspectos. Na literatura disponfvel esses as­
pectos estão freqüentemente divorciados, mas na verdade devem ser vistos
em conjunto. O primeiro aspecto é o trabalho das próprias escolas e facul­
dades; suas estruturas institucionais, sua disposição de conhecimento, suas
relações pedagógicas, suas culturas e organização informais. Designamos
esse aspecto de trabalho ideológico da própria escola. Mas, em segundo
lugar, estes processos primários são também objeto de definições e práticas
mais amplas. Este debate sobre educação é freqüentemente construído a
alguma distância dos processos que ele pretende descrever. Este debate,
contudo, através das políticas, exerce um efeito real sobre o próprio siste­
ma educacional. Ele também faz parte de um discurso político geral. Em
formas desenvolvidas do Estado democrático (que pressupõe uma cidada­
nia igual) os debates sobre educação são parte de uma história da hegemo­
nia; são uma instância regional do processo de solicitação da anuência dos
governados. A esfera educacional possui, em outras palavras, suas ideolo­
gias próprias, designadas por Althusser (um tanto monoliticamente) como
"uma ideologia universalmente reinante da escola" (Althusser, 1971). Tais
ideologias (e continuaremos insistindo na forma plural) exprimem versões
particulares do que significam as escolas, de como funcionam e do que
podem elas realizar. Estas ideologias são apropriadamente assim chamadas
sempre que se pode demonstrar que elas não reconhecem, mascaram ou
apreendem de modo incompleto as finalidades primordiais das instituições
que focalizam mais de perto.
Esse ensaio preocupa-se principalmente, portanto, com o segundo as­
pecto. Ocasionalmente referir-nos-emos ao nosso próprio entendimento
de processos educacionais primordiais, sobretudo para lançar uma luz
sobre as inadequações de ideologias em relação às escolas. Nossa posição é
melhor delineada onde é relevante e onde entra em nossa crítica de outras
posições. Mas existem dois aspectos principais que consideramos igualmen­
te essenciais para uma teoria adequada. A primeira teoria deve apreender
as relações entre escola e outros locais de relações sociais. Os mais impor­
tantes destes locais podem ser especificados: família, trabalho e a esfera
política formal. Mas mesmo esses lugares serão apreendidos de modo ina­
dequado se não forem observados em suas relações numa formação social
particular. Estas são algumas das razões por que optamos por trabalhar
dentro da problemática marxista da reprodução, ao mesmo tempo em que
188 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

reconhecemos que existem variações mais ou menos adequadas dela. Isto


nos leva ao nosso segundo ponto em ordem de importância. Uma das fra­
quezas de algumas versões desta teoria, a de Althusser por exemplo, é que
elas parecem destinar pouco espaço àquela capacidade de resistência que
pode ser oferecida por crianças e professores nas escolas (Althusser, 1971;
Willis, 1977).
Outros aspectos de nossa abordagem — uma preocupação em definir
historicamente nosso objetivo e relacioná-lo a uma base social particular —
são apresentados melhor e mais concretamente. A ideologia do sistema
educacional, que é nosso principal objeto, tem uma história particular.
Ela foi construída por forças particulares e produzida por uma coalizão
social particular. Todos os elementos dessa coalizão têm sua origem nos
anos anteriores à Segunda Guerra Mundial; dois dos três, na verdade, pos­
suem uma história consideravelmente mais longa. Mas foi somente no
mundo do pós-guerra, e especialmente na década de 60, que esses elemen­
tos combinados conseguiram uma hegemonia sobre a poiftica educacional
como um todo. A crise educacional dos anos 70 é, em parte, uma crise
desta formação e da coalizão social que a consubstanciou.
Cada partido da aliança fez sua própria contribuição, mas o núcleo
efetivo foi o Partido Trabalhista. A ideologia do progresso pela educação
foi uma expressão regional daquilo que os crfticos pertencentes à esquerda
do Partido apelidaram de "trabalhism o" e que nós vemos como uma va­
riante da categoria geral "democracia social". Como demonstramos com
mais detalhes mais adiante, os programas educacionais do Partido Traba­
lhista levam a marca da formação interna dos partidos e de suas relações na
sociedade britânica. Seus políticos e intelectuais têm sido os principais vei-
culadores dessas ideologias. Antes da profissionalização dos relatórios e
pesquisas educacionais, eram intelectuais de profissão de fé fabiana ou so­
cialista britânica que proviam a principal fonte de informações para as po­
líticas do Partido. A ausência de uma contribuição menos passiva dos tra­
balhadores é assunto de que nos ocuparemos mais adiante.
O Partido, ele próprio uma complexa aliança social, recebeu a con­
tribuição de outras forças. Essas últimas não são constituídas, em qualquer
sentido prático, de classes orgânicas ou mesmo de frações de classes. São
antes constituídas de intelectuais especializados de uma tendência parti­
cular e dos interesses profissionais organizados da esfera educacional. O
surgimento de uma sociologia da educação especialista e acadêmica foi,
em nosso ponto de vista, um dos desenvolvimentos mais significativos da
educação no pós-guerra. Os sociólogos da educação substituíram, ou pelo
menos suplementaram, os intelectuais mais antigos. Trabalharam num esti­
lo mais técnico em um campo intelectual que especificava problemas bem
limitados. Foi essa aliança com a experiência sociológica que deu ao pro­
grama trabalhista do pós-guerra muito de seu estilo e forma.
EDUCAÇÃO E CRISE 189

O terceiro componente da aliança foi o próprio professorado, ou, mais


especificamente, a tendência para o profissionalismo docente. Se o Partido
Trabalhista proveu o contexto político-ideológico geral e a sociologia da
educação especificou alguns objetivos a longo e médio prazo, professores
e educadores proveram muito do conteúdo educacional. Eles preencheram
as lacunas nas contribuições mais politizadas. Eles cultivaram "o jardim
secreto do currículo".
A seguir desenvolvemos o esboço delineado acima, considerando cada
uma das partes da coalizão do pós-guerra, examinando suas contribuições
específicas. Na Parte IV demonstramos como esses elementos foram arti­
culados nas políticas e nos relatórios da década de 60. Embora seja impos­
sível divorciar a exposição da crítica em seções que a precedem, demons­
tramos depois, na Parte V, algumas das inadequações intrínsecas da posição
social-democrata. Finalmente, analisamos a própria crise a partir dessa
perspectiva — como uma crise da ideologia social-democrática e como
uma cisão em sua base social.

I O partido trabalhista

Não é nossa intenção, nesta seção, recontar a história conhecida do Partido


Trabalhista nem detalhar suas políticas educacionais. A história do Par­
tido já foi m uito estudada (Peiling, 1965; Nairn, 1964; Anderson, 1964;
Coates, 1975; McKibbin, 1974; Howell, 1976; Miliband, 1972). Há tam­
bém relatos úteis de sua contribuição às políticas educacionais do Estado,
especialmente para o período que vai até 1951 (Barker, 1972; Simon,
1974). O objetivo é antes examinar, mais "estruturalm ente", certos aspec-
tos-chave do Partido ,que parecem ter determinado sua orientação educa­
cional. Estamos menos preocupados com as mudanças de política do que
com suas continuidades — o padrão de ênfases e lacunas que foi a principal
contribuição do Partido para as ideologias educacionais do pós-guerra.
Nossa explicação não tem a pretensão de ser "o riginal", exceto na medida
em que possa tornar problemático um padrão de assertivas normalmente
consideradas auto-evidentes. Esse padrão de assertivas foi inicialmente fo r­
mado nos anos iniciais do Partido e reforçado durante sua história no pe­
ríodo entre as duas guerras. Eis porque, nesta seção deste artigo, optamos
por nos concentrar no período anterior à Segunda Guerra Mundial.

A via parlamentarista
Uma das determinantes fundamentais do Trabalhismo tem sido a relação
do Partido com a classe trabalhadora. Apesar das aparências em contrário
e, principalmente, das tentativas no pós-guerra dos "socialistas democrá­
ticos" para' "am pliar as bases" do apoio eleitoral do Partido, ele tem
dependido do voto da classe trabalhadora e de uma aliança histórica com
190 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

O sindicalismo. O crescimento desse apoio desde a Primeira Guerra Mundial


até os primeiros anos da década de 1930 baseou-se em parte na emancipa­
ção de novas frações da classe e em parte njuma mudança de alianças popu­
lares advindas do Partido Liberal, o foco tradicional do século XIX das po­
líticas do movimento trabalhista organizado (McKibbin, 1974, p. 236-47).
Mesmo as estratégias do Partido após a guerra que tinham por objetivo
outras frações de classe continuaram conservando as antigas identificações,
e no caso do sindicalismo chegaram mesmo a ampliá-las.
A segunda determinante fundamental das ideologias do Partido tem
sido a aceitação daqueles conceitos de legalidade e de convenções político-
constitucionais que Miliband (1972) chamou de "parlamentarismo". Estas
pressuposições foram materializadas nas práticas políticas britânicas muito
antes do aparecimento do Partido Trabalhista, embora somente tenham
sido plenamente completadas ou realizadas com a conquista posterior do
sufrágio universal e com o surgimento do Partido como um representante
"le g ítim o " da classe trabalhadora. Noções como a soberania do Parlamen­
to, especialmente da Câmara dos Comuns, derivam na verdade dos dias de
um sistema parlamentar baseado na propriedade privada, representativo
de diferentes frações do capital. Outros elementos — igualdade formal pe­
rante a lei, por exemplo — têm uma história ainda mais longa. A inserção
de políticas de interesse da classe trabalhadora nessa estrutura é também
anterior ao aparecimento da representação trabalhista em separado. O par­
lamentarismo do Partido foi prefigurado na aliança, em meados do sé­
culo X IX , do liberalismo popular radical com o grosso do trabalhismo
organizado. A formação do Partido Trabalhista, contudo, consolidou essa
relação em vez de desafiá-la. Como escreve Miliband, enfatizando de modo
característico o enigma da liderança do Partido Trabalhista:

Dos partidos políticos que alegam ser o socialismo seu objetivo, o Partido Tra­
balhista sempre foi um dos mais dogmáticos — não quanto ao socialismo, mas
quanto ao sistema parlamentar. Empíricos e flexíveis quanto a tudo o mais, seus
líderes sempre fizeram da devoção a este sistema seu ponto de referência fixo e
o fator condicionante de seu comportamento político. Isto não quer dizer sim­
plesmente que o Partido Trabalhista jamais tenha sido um Partido da revolução;
tais partidos normalmente sempre se mostraram dispostos a aproveitar as opor­
tunidades que o sistema parlamentar oferecia como um meio de ampliar seus
objetivos. Antes, foram os líderes do Partido Trabalhista que sempre rejeitaram
qualquer tipo de ação política (tal como movimentos grevistas com propósitos
políticos) que se desviasse, ou que assim lhes parecesse, dó quadro e das conven­
ções do sistema parlamentar. O Partido Trabalhista não tem sido apenas um
Partido parlamentar; ele tem sido um Partido profundamente imbuído de parla­
mentarismo. (1972, p. 13)

Vale a pena esmiuçar o termo "parlamentarismo" e considerar o que


ele implica. Em primeiro lugar, o termo envolve uma fé na neutralidade
ou na neutralidade potencial do aparelho do Estado: nada existe nesta
EDUCAÇÃO E CRISE 191

"maquinaria" que a impeça de ser utilizada em benefício de todos. O


termo implica ainda uma fé nos procedimentos legislativo-administrativos
como a principal rota para a solução dos "problemas sociais" ou a equali-
zação das condições. Isto por sua vez concede uma primazia aos processos
políticos formais — basicamente a defesa do voto popular nas eleições
como meio de se alcançar a hegemonia do Partido Trabalhista. De acordo
com isso, formas menos mediadas de poder de classe são encaradas com
desconfiança: elas são no máximo um embaraço às propriedades parlamen­
tares, e na pior das hipóteses constituem uma ameaça realmente antidemo­
crática. A única exceção evidente a essa inibição são as ações da classe ope­
rária consideradas como movimentos grevistas. São estas as preocupações
próprias ào alter ego do Partido — o movimento sindical.
A força desta análise pode ser reconhecida quando revisamos a relação
do Partido para com outras tendências na política da classe operária no
período 1910-26. Durante esse período, surgiram formas de política da
classe operária que se diferenciavam acentuadamente daquilo que se to r­
nou a adaptação trabalhista dominante: um sindicalismo que uniu os mo­
vimentos grevistas e os objetivos políticos; movimentos orientados pelos
elementos do Partido, suspeitos de terem um caráter oficial e de ameaça­
rem o Estado durante a guerra; a evolução do comunismo britânico e uma
tradição de ação industrial direta e greves que recebiam a simpatia da
massa. Sem esses legados a Greve Geral não teria acontecido; sua derrota
foi uma das maneiras pelas quais tendências como estas foram tiradas do
repertório das classes por meio de persuasão. O panorama não pode ser
explicado em detalhes aqui, mas é importante situar nele o Partido Traba­
lhista. Poderiamos notar que as políticas do Partido não estavam direta­
mente relacionadas com essas lutas, embora necessariamente as afetassem.
A partir de 1910, o Estado interveio cada vez mais em importantes confli­
tos trabalhistas, os próprios trabalhadores exigiam a reorganização das in­
dústrias pelo Estado, e a classe como um todo se viu envolvida em lutas
radicais para defender os níveis salariais existentes e as horas de trabalho.
Na prática, senão em teoria, essa oposição implicou um repúdio das p olí­
ticas econômicas que tornaram "necessários" os cortes nos salários. O
papel que nestas circunstâncias um partido político poderia representar
teria sido apoiar e organizar essas exigências, repensar ortodoxias econômi­
cas e combinar a agitação com a greve (necessariamente) política. O Parti­
do Trabalhista, em vez disso, começou a perorar sobre a respeitabilidade
parlamentar, evitando uma ação "inconstitucional". Sua marginalidade
durante a Greve Geral foi apenas um notável exemplo de uma situação
geral. Tudo isso foi habilmente manipulado por políticos burgueses para
obterem vantagem prática a curto prazo; o apelo ao "constitucional" con­
tra o "revolucionário" deu início ao tema propagandístico chave. Durante
aqueles anos não havia nenhuma hegemonia completa; em vez disso, ocor-
192 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

riam crises sucessivas e estabilizações parciais maciçamente apoiadas na


força. Os pontos altos da estratégia conservadora foram aqueles períodos
de governo trabalhista m inoritário em que foi permitido a este "governar",
mas permanecendo m uito fraco, irresoluto e desorientado por problemas
econômicos, impedido assim de dar prosseguimento às suas próprias poh'-
ticas de reformas com qualquer força. Em 1931, uma facção da liderança
do Partido foi literalmente recrutada para as hostes de uma coalizão bur­
guesa para ajudar na execução da tarefa que o Partido Conservador não
poderia ter realizado sozinho. Daí, para o Partido Trabalhista, o fracasso
político do início da década de 1930, a perda de apoio eleitoral e a neces­
sidade de uma importante recuperação posterior. O resultado disso, nos
anos 40, foi uma forma de trabalhismo mais autoconsciente do que em
qualquer época desde 1918, mas está claro que as principais conseqüências
a longo prazo dos anos entre as duas guerras foi uma doutrinação no senti­
do de um sindicalismo "le g ítim o " e as necessidades da via parlamentar.

Estas relações, para a classe operária e para o Estado, estavam na base


da posição do Partido quanto à educação. As tendências educacionais na
classe foram negligenciadas e uma forma de política educacional foi elabo­
rada pelo Estado. Para compreendermos a particularidade desta adaptação,
precisamos compará-la a outras experiências históricas e a outra maneira de
pensar o papel de um Partido da classe operária. Vale a pena comparar
aquilo que Marx satirizou como "cretinismo parlamentar" com a teoria de
Gramsci do "novo Maquiavel". A opção de Gramsci e do Partido Comunis­
ta italiano num momento contemporâneo é particularmente apropriada,
já que a relação de um partido com sua classe foi a problemática funda­
mental de Gramsci. Esta opção especificava suas principais preocupações;
o papel do próprio partido, sua relação com o Estado, o problema dos inte­
lectuais e a categoria dominante de "hegemonia".

Partidos, política e educação


Segundo Gramsci, os partidos surgem sobre as bases de classes sociais par­
ticulares. Ele próprio preocupava-se especialmente com os partidos da
classe operária do período de transição para o capitalismo monopolista e
suas estratégias apropriadas. Os partidos sempre controlam e dirigem suas
classes, sempre têm uma função "policiadora". Todavia, esta função pode
ser executada de diferentes maneiras. Em modos "regressivos" da relação,
um controle externo da classe pelo partido é de suma importância. A
função "educativa" do partido tem caráter negativo. Aceitando as defini­
ções existentes de legalidade, de posse de apenas uma análise parcial do
lugar de sua classe na formação social, perseguindo reformas imediatas e
limitadas, o partido age no sentido de manter a classe dentro da ordem
vigente. A alternativa de Gramsci era um partido da classe operária cujo
EDUCAÇÃO E CRISE 193

papel fosse posítívamente educativo. Um tal partido dirige, educa e "c iv i­


liza" sua classe, elevando suas atividades a um novo nível de legalidade.
Esse partido funciona de acordo com as crjncepções do senso comum sus­
tentadas pelo operário e pelo camponês, mas eleva-os a um poder mais alto
de autoconsciência e coerência críticas. Ele ensina ás classes o lugar que
ocupam na formação social e na "história" como um todo. Adota funções
"globais", além dos limites do "econòmico-corporativo", abrange em seus
programas toda a gama de questões sociais e desenvolve uma visão parti­
cular do futuro. Tal partido forma um Estado dentro do Estado, um Esta­
do em preparação. Uma vez que o Estado é um organismo "é tic o ", bem
como coercitivo, o partido deve ter uma "filo s o fia " própria, capaz de
tornar-se o cimento de uma nova ordem social. Esta filosofia deve ter suas
raízes não apenas no marxismo ("a filosofia da práxis"), mas também nas
condições de existência de operários e camponeses. Ela só pode ser desen­
volvida ("desenvolvida" porque não é dada nas formas atuais do marxis­
mo) e propagada por "intelectuais orgânicos" que compartilham as condi­
ções de existência das classes populares. Sua produção e articulação com
outros grupos (notadamente com intelectuais de um tipo mais velho e "tra ­
dicional") são preeminentemente tarefa do partido. Tal partido de classe
já terá desenvolvido um efetivo controle cultural e político ou "hegemo­
nia" sobre a "sociedade civil", principalmente sobre classes intermediárias
ou subalternas antes de chegar ao poder do Estado. O principal objetivo
do partido, na verdade, pode ser definido como a construção de uma tal
contra-hegemonia ou hegemonia-de-baixo-para-cima. Esta estratégia é
m uito diferente das formas de atividade de classe especificadas pelas fo r­
mas economicistas do marxismo ou pelo anarco-sindicalismo da fase ini­
cial do sindicalismo italiano ou do fabianismo do Partido Trabalhista da In­
glaterra. Muitas das diferenças são resumidas no par comum de Gramsci (e
comumente mal-cómpreendido): "econòmico-corporativo" e "hegemôni­
co". Também é importante chamar a atenção para a distância de Gramsci
da linguagem comum da esquerda política revolucionária — "consciência
sindicalista" versus "consciência de classe revolucionária". É claro que
Gramsci era um revólucionário, mas ele possuía um sentido singularmente
completo e sutil do que tal transformação exigia.
O valor de suas formulações para aquilo que nos propomos reside em
sua ênfase sobre a "educação" como um aspecto necessário de transforma­
ção política. Esse emprego da "educação" é evidentemente muito amplia­
do. A educação dá-se não apenas na escola, mas também através da lei e de
outras práticas do Estado e ainda através de todos os organismos da socie­
dade civil — inclusive os aparelhos culturais de diferentes classes — que,
cada um a sua maneira, cultivam a aprovação geral. A educação ocorre pri­
mordialmente nos partidos políticos de todas as classes. É dessa maneira
que Gramsci refuta a noção restrita de educação que foi erigida em torno
194 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

do ensino estatal como parte da ideologia da região. (Sob certos aspectos,


suas análises sobre o ensino são realmente decepcionantes — ver Gramsci,
1971, pp. 26-47). Todavia, se concordarmos com ele na rejeição da iden­
tificação educação = escola, ou<^aculdade ou universidade, a definição am­
pliada nos dá uma vantagem analítica real sobre as estratégias "educacio­
nais” adotadas por qualquer partido.
É possível perceber, por exemplo, através desse conjunto de catego­
rias, que o objeto educacional do Partido Trabalhista britânico não era,
nem nunca foi, sua própria classe, ou classes. É interessante encontrar inte­
lectuais trabalhistas, posteriores na tradição, literalmente desautorizando o
que consideram um modelo marxista "europeu" de 1920 - o modelo do
PCI e do SPD inicial (Crosland, 1962, pp. 210-11). Como um partido nacio­
nal (em oposição a um aglomerado de grupos e tendências), ele nunca foi
um movimento educacional-agitacional. Ele não conheceu um ponto de
partida em alguma concepção da educação socialista. Nem começou dos re­
cursos culturais e educacionais das comunidades operárias existentes. Suas
políticas educacionais, como sua política geral, basearam-se, antes, numa
máquina preexistente - nesse caso, uma estrutura de escolas do Estado e
uma distribuição particular de oportunidades "educacionais" formais. Foi
isto que o partido dispôs-se a reformar. Desse modo, o partido começou
como um provsdor educacional das classes populares, e assim permaneceu,
não um organismo educacional delas e nelas.
Este deslocamento tem ocorrido ao longo da história do partido,
tendo acarretado importantes conseqüências às quais aludiremos na Par­
te VI. É possível compreendê-lo mais completamente, se atentarmos para
as principais ausências e presenças na estratégia educacional do partido no
período entre as duas guerras. A principal ausência foi a incapacidade de o
partido aliar-se, como um todo organizado, a uma tradição revivida de
auto-educação coletiva da classe operária, o que foi uma característica
acentuada do período 1880-1926. A principal presença foi a primeira ela­
boração detalhada de uma política de ensino estatal na forma apresentada
em Secondary Schools fo r A ll, livro de R.H. Tawney, publicado sob os aus­
pícios do partido em 1922.

O partido trabalhista e a “ contra-educação"


Segundo algumas visões da classe trabalhadora britânica que ameaçam tornar-
se uma ortodoxia, a política e a cultura da classe operária britânica foram
formadas segundo um modelo corporativo e nunca o abandonaram desde
então (Nairn, 1964; Anderson, 1964;Stedman Jones, 1974 - mas há mais
do que urna simples sugestão desta interpretação na maioria dos escritos
marxistas do Partido Trabalhista e do Sindicalismo). O momento forma-
tivo tem sido identificado de várias maneiras: a tendência defensiva da
EDUCAÇÃO E CRISE 195

"Representação Trabalhista" (uma resposta dos sindicalistas à contra-ofen­


siva dos empregadores em 1890 e ao julgamento de T aff Vale); a "re-feitu-
ra" da classe sob ideologias imperialistas na passagem do século, ou mesmo
a derrota original da "prim eira" classe operária na crise cartista do início
da década de 1940. Um dos problemas apresentados por essas interpreta­
ções é que elas negligenciam a "educação" (dando-lhe um sentido seme­
lhante ao de Gramsci) que acompanha a expansão dos sindicatos e a forma­
ção do Partido Trabalhista. ,
A partir da década de 1890, assinalou-se um acentuado renascimento
de uma política educacional e cultural de caráter radical ou socialista. Sob
muitos aspectos, este renascimento assemelhava-se ao impulso contra-edu-
cacional radical do início do século XIX, no qual as classes populares de­
senvolveram suas próprias concepções de conhecimento, suas próprias
formas educacionais e uma crítica do ensino "p ro vid o " (Johnson, 1976).
A agitação do final do século X IX não tinha uma fonte organizadora úni­
ca, ela foi organizada por uma pletora de grupos à esquerda do centro ideo­
lógico de gravidade do Partido Trabalhista, mas foi maciça e difusa, sendo
ainda hoje mal-documentada. Ela compreendia o trabalho educacional dos
socialistas que lideraram o "novo sindicalismo" e as insurgências "sindica­
listas" anteriores à guerra. Dela faziam parte grupos de estudo marxistas
promovidos pela Federação Social-Democrática, a Liga Socialista, o Parti­
do Trabalhista Socialista, o Partido Socialista britânico e o antigo Partido
Comunista da Grã-Bretanha. Nela encontrava-se a tendência para uma edu­
cação autogovernada para adultos da classe operária representada pela
Plebs League e pelos Labour Colleges e, finalmente, a política cultural mais
difundida e "fraternal" das Escolas Dominicais Socialistas, as Igrejas Tra­
balhistas e o Movimento Clarion. Ainda nos falta um quadro de tudo isso
tão completo e integrado como temos para a fase cartista-owenista (mas
ver E.P. Thompson, 1960 e 1976; Simon, 1974; P. Thomson, 1967), em­
bora alguns aspectos sejam suficientemente claros. Mais uma vez uma im­
prensa radical e socialista foi m uito importante; mais uma vez foram lança­
das críticas contra formas educacionais ortodoxas. Antiimperialistas e
radicais e os Labour Colleges contestavam o humanismo liberal da "exten­
são universitária" e a Associação Educacional dos Trabalhadores.
Este processo de educação deve ter contribuído para as alianças libe­
ral e conservadora conquistarem ("converterem", segundo a linguagem da
época) a classe operária. Este processo certamente, nos primeiros tempos,
forneceu a liderança do sindicalismo, e muitos baluartes trabalhistas lem­
braram posteriormente suas conversões. Sem todo este movimento, seria
d ifíc il compreender o sentido maior de segurança do Partido Trabalhista
imediatamente depois da guerra e seu rompimento com o Partido Liberal.
Todavia, uma vez plenamente desenvolvida no cenário político, a relação
196
PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

do partido com um contínuo ^ .


e até mesmo, quando havia rivais
ção política já examinada por nós
^ 3 inércia educacional do partido
com excecao de momentos Ho m^u i- ~ ^ i-iuu,
u-co o I- -i- I * ftiobilizaçao eleitoral, também tinha por
base a aliança sindical. Após i n i f t j .
f . . ■ -O# dw modo cada vez mais acentuado
foram
, os grandes sindicatos, eles pr^Drios
nrAr,r:^, V6Z lHãís huropraíipr^ç o
estabilizados, que proveram o nartin « vcí nidis ourocraticos e
cionais Cnm^ .j Pa'^t'do com seus organizadores locais e na-
ciondis. Como McKibbin demonstrnn l^Q lA\ « __ ,
mais dessa aliança e modelou s ^ o r o a l l i
catos. 0 partido baseava-se c o n la ü ln t °
to ideológico, mas num tipo de a c o l o T l l a l ' T
um sindicalismo plenam enl f o r l a d l í f '«^'^ades de
com sua classe pode ser vista na slrte H e ^ f essencialmente passiva
o declínio do ILP, a subordinação ^ais agitavam:
dos sindicatos, a eliminação do o Í e l a l m ^ p '
suspeita de "intelectuais s o c i a l i s t Í T “ ^
do partido. Este partido na~o estava a r n organizaçao
orgânicos da classe operária seguido e T
vamente, a educaça~o continuada da h Significati-
Comunista e a certos Sindicatos d o t^ a r P a ir o r ^ T h ls i:'^

r â ri,/i.
ia iiii -rteiLSorui:
j . 'Jma SsS r do Esta-
assistência educacional através
teria t í d l o L m « Is o ^ ra d m a r’^ ! ! * ' ° dificilmente
estabelecimentos de ensino sob o L n tr o L S ' r i
owenistas haviam explorado essa t r i l T ®
*- í ^ ^ * quase cem anos antes. 0 aue os sus­
tentara então, face a recursos materii^ic m/nirrti-sc -r •
êxitos políticos iminentes. De acordo L I ' T i ' .«^‘ P^^ativa de
Partido Trabalhista sobre o p o rtu n id a rie llm
era bastante racional, sendo a i n d r u r l h°
e pelos liberais populares A fla g r a n tlf ^
Conservadores, governos com p o lític a T d lL ^ ^ ^
capital
rolorss-rN tornaram
D * j a com
luta necessária
• ' ' « 6e pooerosa.
p o d e l i Contudo,
r ''^ '^ ^ ^ como veremos a
relaçao do Partido o sistpm^ . cicmua, a
sua relaça~o com o Parlamento. Esta r lí a í^ lle T tr " " ’ "
toto. incluindo muitas das ideologias Ha rL iã T l t

de crianças da educaca~o de " educação


ensino e as condições de existência d a rn à ""1 ® °
tornou impossível explorar a tradição
nas escolas. Mas todos esses a s p lc t l a fim de travar lut_as
fundamental, só se tornarão realmente d a ro s n iiÍrrÍ'L s s e % n T a L ° ''""'''"°
EDUCAÇÃO E CRISE 197

Escolas secundárias para todos


Existem várias razões pelas quais o texto de Tawney é exemplar. Em pri­
meiro lugar, o próprio Tawney era o mais importante "filó s o fo " da social-
democracia britânica durante o período entre as duas grandes guerras.
Gaitskell chamava-o de "o socialista democrático por excelência", embora
devesse ter acrescentado que Tawney freqüentemente surpreendia a si
mesmo numa extremidade antifabiana do que ele próprio gostava de cha­
mar "socialismo britânico". Ele foi o autor de dois clássicos socialistas,
The Acquisitive Society (1921) e EquaUty (1931). Como intelectual, ele
tipificava seu tempo e o movimento ao qual servia. Seu trabalho intelectual
mais duradouro estava relacionado com a história e não com a "teoria".
Sua atitude em relação a Marx, apesar de ocasionalmente reconhecer o
"gênio" deste últim o, era mais distante do que sua relação para com Weber.
Ele é apropriadamente situado por Raymond Williams na tradição inglesa
de cultura e sociedade (1968). Um intelectual de uma espécie "tra dicio ­
nal", um idealista e um moralista, ele foi recrutado para as hostes trabalhis­
tas como um educador externo, primeiro como orientador do WEA, e
depois como assessor do partido. Secondary Schools fo r AH foi também
um texto significativo. Esse texto foi produzido por uma Comissão de As-
sessoria Trabalhista que parece ter sido dominada pelo próprio Tawney e,
como diz um recente comentarista, é "uma perfeita ilustração do caráter
do Partido Trabalhista". 0 trabalho exprimia opiniões que iriam continuar
típicas de sua política educacional até m uito depois de ter cessado a influ­
ência direta de Tawney (Parker, 1972, p. 37).
Finalmente, a Comissão surgiu numa conjuntura significativa. Ela
foi em grande parte produto da fase formativa do Partido Trabalhista no
período imediatamente após a guerra. Ao mesmo tempo, o texto foi escrito
depois de uma mobilização geral da classe operária. Como vimos, esta mo­
bilização manifestou-se em parte através de movimentos educacionais inde­
pendentes, mas também assumiu a forma de exigências por plenos direitos
educacionais da parte de organizações da classe operária e do aumento da
pressão popular quanto às vagas existentes nas escolas secundárias. Não há
dúvida de que o documento de Tawney mediou e moldou esta pressão das
organizações operárias e de alguns pais.
Desejamos chamar a atenção para cinco aspectos principais do texto:
a crítica de Tawney da educação inglesa em termos da persistência da he­
rança vitoriana; sua identificação de um consenso educacional progressivo
em oposição a este "legado fa ta l"; a natureza absolutamente mecânica das
soluções de Tawney — sua ênfase sobre os meios de acesso à educação ou
"a armação material da política, administração, organização e finanças; a
principal lacuna do texto — a inveterada falta de clareza de Tawney quanto
ao conteúdo e propósitos da educação secundária; finalmente, o caráter
198 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

geral dos argumentos de Tawney sobre aspectos tais como seleção em com­
paração com outras posições no Partido Trabalhista.
A análise de Tawney, de modo característico, foi elaborada como his­
tória. A educação desenvolvera-se ao longo de linhas de classes no século
X IX , como um sistema de spsrtheid social. Havia dois setores distintos:
a educação elementar era o treinamento de "uma classe especial", de tra­
balhadores e criados; a educação secundária estava reservada aos seus se­
nhores. Os sistemas eram paralelos; era impossível uma progressão entre
eles, mesmo para um aluno individual. As premissas desse sistema - "as
doutrinas de 1870" — têm sido de algum modo enfraquecidas desde 1902.
Apesar da recente deturpação dos propósitos inadequados de Fisher,
alguns elementos de ligação entre os dois sistemas foram erguidos. Mas a
divisão elementar/secundário continou substancialmente intata: formas
"exclusivas" de seleção e abrir passagem para os de capacidade excepcio­
nal constituíam um compromisso cujo objetivo era perpetuar a divisão.
Para isto também concorriam esquemas fragmentários como a continuação
diurna ou a extensão da educação dentro do sistema elementar. Para a
maioria dos alunos, a "educação elementar" era o máximo que podiam es­
perar; a educação secundária continuava sendo "um privilégio educacional
excepcional".
O objetivo, então, era garantir "uma conexão viva e orgânica" entre o
ensino elementar e secundário, reclassificando-os como estágios sucessivos
e definidos segundo a idade, através dos quais cada aluno devia avançar in­
dividualmente. Somente assim cessaria a intromissão ilegítima de "classes"
nas questões "educacionais".
Vale a pena acentuar a essa altura que, embora "classe" seja uma das
palavras-chave de Tawney, ele a usa muito vagamente. Em Secondary
Schools fo r AU, a palavra é geralmente usada para denotar pressuposições
e preconceitos, principalmente quando estes são vistos como fatores arcai­
cos ou irrelevantes para a questão em pauta. Assim, embora Tawney por
vezes se refira a "estratificação de classe" à maneira sociológica, sua u tili­
zação típica é idealista e moralista. O termo "classe" é invariavelmente pe­
jorativo: "as irrelevâncias vulgares das desigualdades de classe e da pressão
econômica", "a odiosa doutrina da dominação de classe", "a vulgaridade
do sistema de classe". Às vezes "classe"contrapõe-se a "comunidade", di­
visão contra uma harmonia social: "Sua política (do Partido Trabalhista)
não visa vantagem de nenhuma classe isolada, mas o desenvolvimento dos
recursos humanos de toda a comunidade" (p. 64, grifos do autor e cf. a
seção sobre "classe" em Equality).
Contra os resíduos das doutrinas do passado baseadas no conceito de
classe, Tawney discerniu (e ajudou a propagar) um movimento crescente
de oposição. Por vezes esse aspecto era apresentado simplesmente como
mais um aspecto de "comunidade" — "nosso senso comum e nossa huma-
EDUCAÇÃO E CRISE 199

nidade", um veículo para valores com os quais se devia concordar por


definição, excetuando-se certos direitos adquiridos. Mas os partidários (e
os adversários) do progresso educacional também foram identificados com
maior precisão:

Tanto nas criticas contra o atual sistema como nas propostas para melhorá-lo,
existem indícios de um acordo fundamental que nãío existia há dez ou mesmo
cinco anos atrás. Na Inglaterra, não é indigno de um cavalheiro roubar meio cen­
tavo de uma criança; e os interesses industriais, podemos admitir, opor-se-ão a
qualquer reforma que interfira com a oferta de força de trabalho juvenil barata.
Mas entre educadores e professores, economistas e assistentes sociais, administra­
dores e, não em últim o lugar, os próprios pais, não se verifica uma ampla diversi­
dade quanto ao principal ponto fraco do atual sistema, (p. 18)

Em todo O texto, é mantida esta identificação dual: o progressivo consenso


compreende, por um lado, os pais e o Movimento Trabalhista e, por outro
lado, todos aqueles que profissionalmente se preocupam com o sistema
educacional: "Praticamente todos os educadores esclarecidos" (entre os
quais Tawney procura incluir o Times e os primeiros aplicadores de testes
de inteligência), professores e administradores sociais. Os argumentos de
cada um destes são devidamente apresentados. Os pais, tendo, com uma
imprecisão bíblica, "provado da árvore do conhecimento", não serão agora
iludidos com "verborréia educacional". 0 Movimento Trabalhista deve
lutar contra a dominação de classe nas salas de aula, do mesmo modo
como o faz no Parlamento e nas fábricas. A maioria dos educadores apóia a
extensão da educação secundária. Os psicólogos educacionais revelaram a
distribuição aleatória da capacidade e argumentam que "grande parte do
potencial educacional ressente-se de oportunidade de educação". Uma pes­
quisa social demonstrou os resultados desastrosos da negligência educacio­
nal, principalmente no caso dos adolescentes. 0 "senso comum" e a "h u ­
manidade" realmente apoiam a reforma.
Devemos notar dois aspectos principais acerca da aliança progressiva
de Tawney. Primeiro, ela prefigura numa forma antagônica justamente o
tipo de coalizão dominante que discernimos no período após a II Guerra
Mundial. Particularmente significativo é o modo pelo qual ele trata os pro­
fessores. Tawney dedica todo um capítulo à posição e às perspectivas des­
tes últimos. 0 Partido Trabalhista apóia suas legítimas exigências, inclusive
objetivos profissionais como a defesa da escala Burnham, a busca de segu­
rança no trabalho, a oposição a "relatórios secretos" sobre professores, e o
fortalecimento da autonomia do professor. A unidade da profissão é vista
como o corolário natural da eliminação das barreiras na organização esco­
lar. Tawney finaliza essa seção com uma peroração que apontava de modo
significativo para as futuras relações entre o Movimento Trabalhista e os
professores:
200 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

O objetivo deveria ser o de tornar nosso sistema educacional uma unidade or­
gânica, viva em todas as partes, servida por professores unidos, autOnomos e
Hvres. (p. 123,grifos nossos)

Em segundo lugar, deve-se notar a ausência notória de quaisquer in­


teresses industriais na aliança. A indústria, príncipalmente a Federação das
Indústrias Britânicas (a CBI do período entre as duas guerras), era o princi­
pal alvo da sátira de Tawney. O consenso progressivo foi articulado confra
a indústria e aqueles que a representavam no governo e no Partido Conser­
vador. Como veremos, é intenção precisa de Tawney resgatar as crianças
das garras dos empregadores e definir uma educação contra as exigências
de emprego.
As propostas concretas àeSecondary Schools fo r AU focaliza exclusiva­
mente questões de acesso. Estes assuntos essenciais, mesmo que mecânicos,
são distinguidos por Tawney dos “ aspectos imponderáveis da personalidade,
espírito e atmosfera", que são ainda mais importantes, mas impossíveis
de serem legislados. Sua obra está igualmente abarrotada de metáforas de
acesso e exclusão, um tanto mais coloquiais do que clichês posteriores: as
escolas secundárias são "um patamar sem escada"; as escolas primárias são
como "uma escada sem patamar"; a educação em geral é um "beco sem
saída"; os sistemas de bolsas de estudo são"pontes", "corrimões frágeis"
ou mesmo "paus-de-sebo". As escolas primárias são "com o uma corda que
o faquir hindu levanta no ar para terminar no vazio".
Como, pois, acabar com essa segregação? O objetivo deveria ser garan­
tir a transferência de todos (ou a maioria?) os alunos dos estágios primário
e secundário como parte de uma educação contínua e a tempo integral até
a idade de 16 anos. Todas as propostas derivavam disto: a classificação de
todas as escolas em secundárias ou primárias; a abolição das taxas nas es­
colas secundárias; o aumento das ajudas de custo; o aumento de vagas nas
escolas secundárias. Apesar do títu lo de sua obra, Tawney continuou
sendo vago quanto à universalidade do ensino secundário. Ele por vezes
parecia aceitar o fato de que apenas 75% das crianças eram beneficiadas,
uma estatística fornecida por alguns psicólogos. Por vezes ele apresentava
esse dado como um alvo provisório a ser atingido como uma "etapa da
reforma", para ser depois superado. Voltaremos ao assunto para considerar
esta ambivalência.
A maior parte do livro foi utilizada para a discussão da viabilidade
destas propostas. Elas eram apresentadas de modo cuidadoso e pragmático,
com argumentos de peso e sob o slogan "Idealista, mas não visionário".
Todavia, a discussão sobre aquilo que as escolas deveriam ser ou sobre
aquilo que deveria constituir o conteúdo e os objetivos da educação era,
em contraste, superficial e vaga. As próprias convicções de Tawney sobre
esses assuntos constantemente têm que ser inferidas de sua abordagem de
EDUCAÇÃO E CRISE 201

outros temas. Suas tentativas diretas de definição eram formalistas, tauto-


lógicas e frágeis:

Definida pelo estágio da vida para o qual provê, ela é a educação do adolescen­
te. Definida por seu currículo, ela pressupõe que o trabalho preparatório de
desenvolver os processos mais simples de pensamento e expressão foi alcançado,
e que seus alunos estão aptos a serem introduzidos, pelo menos em linhas gerais
e por etapas, às matérias que os interessarão como adultos, e a um conhecimento
que pode ser razoavelmente esperado da parte de homens e mulheres instrurdos.
Definida por seu propósito, seu objetivo principal não é o de ensinar a técnica
ou o ofício especializado de qualquer profissão particular, mas desenvolver as
faculdades que, por serem um atributo do homem, não são peculiares a qualquer
profissão ou classe particular de homens, e criar os interesses que, ao mesmo tem­
po em que possam tornar-se a base de uma especialização num estágio posterior,
possuem um valor que se estende além de sua utilidade para qualquer vocação
específica, porque são a condição de uma vida racional e responsável na socie­
dade. (p. 291

À primeira vista, esta e outras passagens parecem não ter conteúdo, e num
certo sentido assim é. O significado delas é quase que inteiramente negati­
vo. O que é significativo é o que é negado. De modo particular, Tawney
opõe definições de educação secundária derivadas do futuro emprego do
aluno. O Movimento Trabalhista deve rejeitar, escreve ele posteriormente,
"o comercialismo vulgar que concebe a fabricação de datilógrafos e mecâ­
nicos eficientes como objetivo primordial da educação do adolescente"
(p. 111); em outras palavras, o legado das Central and Junior Technical
Schools. A doutrina da determinância da ocupação é ''fundamentalmente
viciosa", sacrificando as chances de um desenvolvimento humano mais
completo das crianças à produção de mão-de-obra para a indústria.
O antiindustrialismo de Tawney produz um emaranhado particular
de argumentos. Por um lado, a educação é vista como uma esfera cuja
autonomia em relação a considerações econômicas e sociais (isto é, as
"classes") deve ser defendida. Isto leva-o a definir certos critérios como
meramente "educacionais", de modo que, por exemplo, noções psicológicas
de "desenvolvimento natural" são invocadas contra considerações de u tili­
dade econômica. Os "especialistas" da região são também proporcionalmen­
te exaltados juntamente com "o progresso da ciência educacional". A ten­
dência desta parte da argumentação é separar radicalmente a formação
social e um meio principal de sua reprodução, uma posição estranha para
um socialista que procura modificar o mundol Por outro lado, a educação
é vista como tendo alguns efeitos pertinentes em um nível mais do que in­
dividual, Ela de fato (se for do tipo correto) desenvolve e melhora a ordem
social. Tawney mostra-se tão capaz como qualquer economista de cunhar
a frase sonora sobre educação e capital humano:
É possível tanto o pessoa! como o equipamento material da indústria serem sub-
capitalizados, e uma nação que tenha a coragem de investir generosamente em
202 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

suas crianças "economiza", no mais estrito sentido econômico, mais "capital"


do que a mais parcimoniosa comunidade que sempre tenha vivido com os olhos
na Bolsa de Valores, (p. 144)

Neste sentido, a educação é vista como fator de aumento da produtividade


da força de trabalho — "ela se adiciona àquele tipo particular de força pro­
dutiva da qual a capacidade de utilizar todas as outras vantagens natu­
rais . . . depende em última análise" (p. 145). Todavia, estas contradições
na versão de Tawney das relações da escola com a economia nunca foram
plenamente exploradas, nem pelo próprio Tawney, nem por qualquer
outro intelectual da tradição que ele contribuiu para estabelecer.
O fracasso de Tawney em especificar positivamente um conteúdo edu­
cacional pode ser explicado de diversas maneiras. Ele se recusava, por
princípio, a especificar qualquer currículo preciso no interesse da variedade.
Tawney insistia na importância de se confiar nos professores. É também
evidente que ele foi fortemente influenciado pela psicologia desenvolvi-
mentista do período, daí a definição do ensino secundário como "educa­
ção de adolescentes", apropriada a um estágio no processo de amadureci­
mento da criança. Mas se a "natureza" em termos muito gerais especificava
o que devia ser aprendido, há pouca necessidade de se preocupar com o
que a "sociedade" (ou interesses e experiências de classe) possa exigir, a
menos que ela realmente entre em choque com a "natureza". O argumento
derivado de natureza parece ter sido reforçado por um argumento derivado
de "cu ltura ". Pois Tawney indubitavelmente concebia a cpitura de uma
maneira completamente arnoldiana; trata-se de uma herança potencialmen­
te desvinculada de classes, que as escolas (ou o WEA) poderiam levar a
todos. Ao contrário da "eficiência utilitá ria ", ela possuía um conteúdo
não-problemático. Assim, em últim o recurso, Tawney estava amplamente
satisfeito em endossar sem maiores comentários a lista das matérias da Co­
missão de Educação. Finalmente, devemos assinalar a complementaridade
de tudo isso á noção de "direitos" que informava toda a posição de Tawney
e especialmente a de elementos igualitários mais sintonizados com a classe
trabalhadora. Aquilo que era aclamado como direito era evidentemente o
que algumas crianças privilegiadas já possuíam. Afinal, a educação secundá­
ria já existia; o problema era generalizá-la.
Mas as conseqüências desta ausência eram m uito importantes. Nesta
fase e posteriormente, a social-democracia não tinha nenhuma concepção
da natureza nem objetivos da educação que se pudesse dizer fossem uma
concepção própria. Ela confiava no humanismo liberal de intelectuais
simpáticos como Tawney ou nos próprios profissionais da educação, ou
em processos sociais mais subterrâneos, segundo os quais era fixado o ver­
dadeiro significado da escola. Faltava-lhe, íntão, o único componente
realmente essencial; uma concepção de conhecimento realmente útil que
KDUCAÇÃO E CRISE 203

pudesse ser confrontada tanto com o utilitarism o capitalista como com a


atraente, mas impossível, idéia de "cu ltu ra " desvinculada de classes.
É importante, finalmente, situar Secondary Schools o f A ll num con­
texto mais amplo dentro do pensamento* do Partido Trabalhista quanto
à educação. Podemos começar lembrando o fato de que o Trabalhismo em
geral é um complexo de ideologias. Como fo i observado por vários comen­
taristas, muito do caráter do partido pode ser compreendido em termos de
uma persistente dualidade. Por um lado, o Partido Trabalhista esposou um
anticapitalismo amplo e ético, preocupado acima de tudo com justiça
social, e de natureza igualitária. Esta tendência tem sido representada pelas
tendências radicais no seio do partido e por intelectuais ingleses mais ou
menos independentes como Tawney, G.D.H. Cole ou George Orwell. Por
outro lado, o repertório do Trabalhismo inclui a tradição da orientação
social fabiana, melhor compreendida como um incentivo à "eficiência na­
cional" e muito pouco incompatível quer com um liberalismo corporativo,
quer com um capitalismo de Estado. Esta dicotomia tem sido certamente
visível na educação, e nós a analisaremos detalhadamente neste ensaio,
mais adiante. Por enquanto, podemos acompanhar Rodney Barker (1972),
notando a oposição entre um igualitarismo educacional e a ênfase mais eli­
tista ou meritocrática de Sidney Webb e o antigo LCC.
Tawney tinha perfeita consciência desta oposição, escreveu de modo
eloquente sobre as diferenças entre "igualdade" e mera "igualdade de
oportunidades" e estigmatizou as políticas do LCC como inegualitárias. En­
tretanto, seu tratamento da crucial questão de seleção era m uito curioso.
Ele identificava dois tipos: "seleção exclusiva", que era um meio de levan­
tar pontes que as crianças poderiam transpor em caráter individual, e "sele­
ção inclusiva", o que equivalería quase que a uma provisão universal. (O
objetivo de 75% de crianças nas escolas secundárias era provavelmente um
exemplo.) A peculiaridade destas formulações é que, embora sejam clara­
mente igualitárias em espírito, elas não conseguem preconizar-explicitamen-
te a provisão universal. Toda a tendência dos argumentos de Tawney e de
sua retórica e posição moral era igualitária; no entanto, ao nível prático,
até mesmo sua obra parece ilustrar o poder das categorias dos testes de in­
teligência e sua construção de tipos gerais de crianças. Como sugere a pró­
pria aceitação de Tawney, posteriormente, do tripartidarismo, até mesmo
o "filó s o fo " líder da social-democracia não escapou da dualidade do pen­
samento educacional do Partido Trabalhista. Mas talvez seja uma medida
de sua posição o fato de que as tensões e contradições surgem mais hones­
tamente aqui do que em outros momentos da tradição.

"A fluê ncia " do pós-guerra e revisionismo


Alguns aspectos fundamentais das políticas da década de 1960 já estavam
presentes em Secondary Schools fo r A ll. O desenvolvimento no período
204 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

do pós-guerra foi, sob muitos aspectos, um aperfeiçoamento, em condições


radicalmente alteradas, daquela posição básica em relação ao Estado e ao
sistema educacional. A subsequente história do Partido constitui um teste
prolongado da adequação das polítidas da social-democracia. É importante
enfatizar, todavia, pelo menos de modo geral, as alterações do contexto
no período do pós-guerra. Se forem ignoradas determinações mais podero­
sas, há o risco de se superestimar as contribuições dos professores ou dos
"especialistas" em educação.
Em primeiro lugar, e que é o mais óbvio, a coalizão durante a guerra,
a vitória de 1945, e o período do terceiro governo trabalhista,transforma­
ram a posição do partido no cenário político. Nos anos entre as duas guer­
ras, apesar dos períodos de governos minoritários, ele fora um partido de
oposição, submetido a acusações ridículas de bolchevismo e identificado
com os pobres e oprimidos. Êxitos políticos e responsabilidades governa­
mentais fortaleceram os elementos liberais e "progressistas" do partido á
custa de seu socialismo. O Trabalhismo contribuiu de modo crucial para a
hegemonia consensual do pós-guerra, aceitando a "economia mista" e
construindo o "Estado do Bem-Estar Social". Uma integração mais ampla
nas formas do Estado capitalista e as realizações de muitos objetivos social-
democratas significaram, entre outras coisas, que a tendência para se iden­
tificar a classe trabalhadora com os "Interesses Nacionais" era mais forte
do que nunca.
A guerra, a recuperação e o progresso do pós-guerra também transfor­
maram a natureza dos "problemas econômicos" que o Estado capitalista
tinha que enfrentar, qualquer que fosse o partido no poder. As soluções
keynesianas mitigaram a principal fonte do descontentamento do período
entre as guerras — desemprego em massa e estrutural. O problema a ser
enfrentado era agora o do "crescimento", ou uma taxa de acúmulo com­
parável à de outras economias capitalistas e livre da inflação ou de crises
monetárias. Apesar da tendência apresentada na década de 1930 para o
monopólio, da guerra e do longo período de expansão econômica, a indús­
tria britânica e, talvez, a formação social como um todo pareciam conti­
nuar "arcaicas". Mesmo os críticos marxistas aceitaram este diagnóstico
em meados da década de 1960 (Anderson, 1964). A orientação política do
Partido Trabalhista foi sendo cada vez mais moldada por esta análise. O
que se fazia necessário era uma "modernização" social, econômica e edu­
cacional maciça.
Todo o elenco das ideologias do Partido Trabalhista foi afetado de
modo semelhante pelos êxitos do partido depois de 1951. O partido aju­
dou a formar a hegemonia do pós-guerra, mas foi o conservadorismo de
Macmillan que completou o edifício e presidiu sobre ele. Naquilo que foi
chamado "uma das poucas fases privilegiadas de hegemonia por consenso
na recente história da Grã-Bretanha" (Hall, 1975, pp. 21-22), isto é, de
EDUCAÇÃO E CRISE 205

1951 a 1960, o êxito do Partido Conservador, sob os lemas de "afluência",


"aburguesamento" e "consenso p o lítico " precipitou o "revisionismo" tra­
balhista. Os teóricos mais importantes do Trabalhismo na década de 1950,
como Crosland, aceitaram a maior parte do m ito da afluência e procuraram
oferecer programas políticos aceitáveis na "atual sociedade, em oposição à
capitalista" (Crosland, 1962). 0 programa resultante foi adequadamente
resumido como sendo "um ataque contra os elementos atribuíveis da socie­
dade britânica que eram apresentados como causas da ineficiência econômi­
ca e das distinções sociais ofensivas" (Howell, 1976, p. 193).
Para finalizar, é importante notar que a própria legislação do Partido
Trabalhista na década de 1940 solapou a maior parte das bases de suas
ideologias tradicionais. O apoio da classe trabalhadora durante o período
entre as duas guerras mundiais dependera em grande parte da exclusão
aberta e declarada dos trabalhadores de algo que se assemelhasse a uma ci­
dadania completa. A Guerra, a eliminação da "Velha Camarilha" (Old
Gang), as reformas do Partido Trabalhista e a prosperidade após a guerra
sem dúvida tiveram como conseqüência uma melhoria real em alguns dos
aspectos mais contingentes e fenomenais das relações de classes, dando
uma maior aparência de igualdade. Neste sentido, o "revisionismo" foi
uma adaptação suficientemente sensível, mais convincente do que qual­
quer coisa que a "esquerda" pudesse oferecer, e perfeitamente consistente
com o reformismo fundamental do partido (Howell, 1976). Na medida em
que o velho igualitarismo precisava ser preservado, ele tinha que assumir
formas de algum modo mais sutis e discriminatórias — ou isto, ou então a
natureza de classe tinha que ser apreendida de modo mais completo.
Estas modificações tiveram três efeitos principais sobre o pensamento
do partido quanto à educação. Em primeiro lugar, estes efeitos tenderam a
alterar o equilíbrio de ênfases no repertório social-democrático. O fato de
assumir responsabilidades econômicas (ou sua perspectiva), juntamente
com todo o argumento sobre a modernização, colocaram uma ênfase es­
magadora sobre as razões econômicas para a expansão da educação. Con­
tudo, considerações econômicas não eram absolutamente vistas como in­
compatíveis com os objetivos educacionais. Crosland, ao mesmo tempo
que invocava a argumentação geral de Tawney, não partilhava as suspeitas
deste em relação à indústria. Pelo contrário, supunha-se haver uma harmo­
nia não problemática entre a igualdade de oportunidades na educação e as
necessidades de "crescimento". A primeira era uma condição necessária
das segundas.
Em segundo lugar, a educação assumira, no final da década de 1950,
uma posição muito proeminente na estratégia global do partido e contri­
buiu, à sua maneira, para os êxitos dos anos subseqüentes. Em geral, o "re­
visionismo" apresentava o Partido Trabalhista como um partido da "re for­
ma social" e dava à educação uma prioridade dentro daquela definição. A
206 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

educação tornou-se de fato um campo de inovações políticas que se disse­


minou para outros campos, "discriminação positiva" e "áreas prioritárias",
por exemplo. A educação foi definida como a área-chave das desigualda­
des de classe remanescentes, "a maior influência divisionária" (Crosland,
1962). Além do mais, não há dúvidas quanto ao sucesso substancial,
num nível ideológico, dessa parte do programa do partido. Desde o início
da década de 60 até o surgimento dos primeiros Black Papers e dos novos
radicalismos educacionais, as concepções social-democráticas sobre a edu­
cação adquiriram uma preponderância quase monopolística. Nesse sentido,
a educação fornece uma importante exceção para a explicação esquerdista
convencional dos êxitos do Partido Trabalhista de 1945 até 1965 - uma
queda das alturas épicas ao ridículo.
Por fim , as modificações do pós-guerra evidentemente alteraram o ter­
reno real das políticas trabalhistas. O programa inicial do Trabalhismo de
"escolas secundárias para todos" foi garantido por antecipação através
da Lei Butier de 1944. A principal questão depois disso tornou-se as for­
mas do ensino secundário, uma batalha travada primeiro no interior do
próprio partido. Foi nesses conflitos e na cristalização das soluções do Par­
tido Trabalhista que os professores e os sociólogos mostraram ser de tanta
importância.

II A sociologia da educação

Nesta parte examinaremos o surgimento da sociologia da educação, sua


localização institucional e seus paradigmas intelectuais característicos.
Mas ao mesmo tempo desejamos enfatizar que a sociologia da educação
foi uma tradição de investigação em desenvolvimento, com mudanças de
ênfases e de métodos, bem como de limites e de continuidades. Nessa his­
tória interna, é possível distinguir duas fases principais, com uma alteração
no início da década de 60. Uma consciência dessa alteração estruturou nos­
sa explicação. Embora em ambas as fases o paradigma intelectual tenha
sido amplamente "funcionalista", os funcionalismos iniciais assumiram
uma forma classicamente institucional, lidaram com problemas num nível
"m acro" e recorreram maciçamente a técnicas quantitativas. Posteriormen­
te, os sociólogos recorreram a um funcionalismo de ' normas e de siste­
mas de valores" para explicar aspectos mais microscópicos e mais locais do
sistema educacional e sua relação com "classe". Ao mesmo tempo, os mé­
todos tornaram-se mais "qualitativos". Procuramos delinear os principais
determinantes externos dessa mudança. _
Mas preocupa-nos também a relação da sociologia da educação para
com a social-democracia e para com a política do Partido Trabalhista. Em
quase todos os níveis, incluindo as próprias carreiras de indivíduos, tanto
como sociólogos quanto como conselheiros do Partido Trabalhista, a rela-
I miCAÇAO E CRISE 207

^:llo foi, como demonstraremos, peculiarmente íntima. Ideologicamente,


inmbóm, havia tanto convergências quanto pressupostos e influências com-
(iiiitilhados. A tradição fabiana, por exemplo, era elemento constituinte
■l.i formação real da sociologia da educação. Mesmo assim, os sociólogos
n lo deixaram de apresentar sua própria contribuição específica para o mo-
i ImId do pós-guerra, e é este detalhe que nos leva a encarar toda a constela-
^llo Partido Trabalhista/Sociólogos da Educação como uma coalizão, e não
«punas como uma unidade. Os sociólogos não eram meramente conselhei-
IIII do partido — a ala acadêmica do partido. Eles freqüentemente iam mais
■ilêm dessa função do que os intelectuais do partido no período entre as
duai guerras. Eram também acadêmicos de um tipo particular, aparecen­
do i.omo os especialistas" da região, conquistando um trânsito mais
nmplo e uma autoridade para seu trabalho fora do âmbito do partido. Suas
idoias tornaram-se dominantes no aparelho educacional. Na medida em que
liio dizia respeito ao partido, foi através do trabalho deles que novos objê-
ilvos acrescentaram-se à herança de "escolas secundárias para todos" e que
O I objetivos do Partido Trabalhista após 1944 ganharam precisão. Embora
o lótulo de "revisionismo" tenha sido realmente justo, a contribuição foi
Mipecífica.
No que se segue, abordamos primeiro a sociologia e os sociólogos, e
depois sua influência dentro do sistema educacional e sobre a política do
Partido Trabalhista.

Desen volvimen to
A sociologia da educação teve suas raízes na tradição de "aritmética polí-
iica da sociologia empírica, que se preocupava diretamente com questões
de pobreza e de desigualdade social. Foi durante a década de 1930, depois
da criação de um Departamento de Biologia Social na London School of
Economics ( l s e ), que foram realizados esforços sistemáticos para investi­
gar o papel desempenhado pela educação na manutenção e perpetuação da
estrutura de classes e na promoção da mobilidade social. Foi nesse contex­
to que as conclusões dos testes de inteligência, geralmente citados em
apoio a um sistema seletivo, foram utilizadas no sentido oposto. Em 1935,
Cray e Moshinsky, em seu artigo-chave, "A b ility and O portunity in Eng-
llsh Education (' Capacidade e Oportunidade na Educação Inglesa"),
combinaram técnicas psicológicas e sociológicas numa pesquisa da relação
entre capacidade e realização. Eles concluíram que havia uma "grande re­
serva de capacidade não utilizada" (1936, p. 364).
A institucionalização desse projeto de levantamento de fatos na LSE e
seu posterior desenvolvimento depois da Lei da Educação de 1944 assina­
lam o nascimento da sociologia da educação como uma disciplina acadêmi­
ca legitima. Nos termos dos problemas inicialmente abordados, a nascente
sociologia da educação foi grandemente influenciada por seus antecedentes
208 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

no socialismo fabiano e seus laços com a política educacional do governo:


de um lado uma preocupação com oportunidades iguais, e de outro uma
preocupação com os problemas gerados pela transição gradual para uma
economia de tempos de paz. No caso desta última, havia o imperativo de
se aumentar a produtividade para satisfazer as exigências da economia in­
terna e também para restabelecer os laços com os mercados externos. Num
período de pleno emprego, a resposta a estas "necessidades" implicou duas
estratégias: em primeiro lugar, aumentar a produtividade individual da
força de trabalho e, em segundo lugar, a utilização eficiente de habilidades
técnicas e seu desenvolvimento. De maneira crucial, o êxito desta estratégia
dependeria em grande parte do aumento da oferta de técnicos altamente
capacitados, e quanto a isso o sistema educacional era visto como inade­
quado. Assim, o foco primordial das pesquisas sociológicas, particularmen­
te as patrocinadas por organismos oficiais e semi-oficiais, eram aqueles obs­
táculos que impediam uma perfeita relação entre capacidade avaliada,
oportunidade de educação e desempenho.
A sociologia da educação da era de Halsey, Floud e Anderson preo­
cupava-se diretamente com a relação entre a educação, a economia e o
sistema social. Como Floud se exprime, eles estavam "fascinados pelo
espetáculo das instituições educacionais lutando para responder às novas
propostas de uma economia industrial avançada" (Floud, 1961, p. 60). A
partir desta perspectiva — um funcionalismo amplamente estrutural — a so­
ciedade é vista como um sistema de partes inter-relacionadas, cada uma das
quais executa uma função para as outras e, assim, para a sociedade como
um todo. Assim, nestes termos, faz sentido falar-se das "necessidades" da
economia, das "funções" do sistema educacional, e assim por diante.
De natureza caracteristicamente demográfica na abordagem, a sociolo­
gia da educação procurava analisar a influência sobre as realizações educa­
cionais de componentes tais como a idade e o sexo das crianças, o tamanho
da família e educação e hábitos de leitura dos pais. Eles identificaram e do­
cumentaram a sub-representação das crianças provenientes da classe traba­
lhadora na educação seletiva secundária e superior; o hiato nos resultados de
crianças de diferentes origens sociais; e o aumento desta diferença à medi­
da que as crianças avançavam através do sistema educacional. Como obser­
varam Floud e Halsey: " A melhoria generalizada da situação social após a
Segunda Guerra Mundial não eliminou as persistentes desigualdades de
classe na distribuição da capacidade e da realização" (1961, p. 7). Uma re­
serva não selecionada de talentos passíveis de receberem educação estava
sendo desperdiçada. Desse modo, o fracasso da classe trabalhadora na edu­
cação era visto como um desperdício dos "talentos da sociedade".
Paralelas a este trabalho foram as investigações de outros organismos
sobre a validade do próprio mecanismo de seleção. Em 1957, relatórios de
pesquisas da National Foundation fo r Educationa! Research e da British
I IMK AÇÃO E CRISE 209

l’iVi-hülogical Association .questionavam a credibilidade do exame de


■i<lmiis3o ao ginásio (eleven-plus) como avaliador da capacidade educacio-
íinl Estas constatações alimentaram a crescente insatisfação da classe
mádia com o processo seletivo e com o exame de admissão ao ginásio.
Antas a classe média tinha meios para pagar uma educação secundária, mas
.1 •iliuliçâo das taxas e o exame de admissão à sexta série impediram isto.
I iiu posição foi exacerbada pelos níveis desiguais exigidos para admissão
iiiii escolas secundárias nas diferentes municipalidades — que variavam de
Iü% a 45% dos candidatos.
O impacto das constatações dos sociólogos educacionais e do descon-
iimtamento geral quanto à educação seletiva não se lim itou ao Partido Tra-
liiilhista. O m ito da "paridade" entre as diferentes escolas fora derrubado,
■ no inicio da década de 60 voltava-se a manifestar preocupação com a in­
suficiência de cientistas e técnicos, uma preocupação que ganhou nova ên-
Inse à luz dos crescentes problemas econômicos enfrentados pela Grã-Bre-
iiinha. Em 1961, o Ministro da Educação conservador, Eccies, pediu ao
Conselho Consultivo Central (Central Advisory Council) um relatório
lobre o "aluno médio e abaixo da média" (Newsom, CAC, 1963). Macmil-
l.in também ordenou um relatório especial sobre a educação superior, a fim
i Ib considerar a maneira pela qual o sistema poderia ser atualizado (Rob-
bins, 1963). A Fundação Nuffield patrocinou os primeiros projetos de ela­
boração de currículos dedicados particularmente ao ensino de ciências,
II em 1963 foi criado o Schools Council on Curricuium and Examinations
(Conselho Educacional de Currículos e Exames).
Assim, no início da década de 60, a natureza do debate sobre a educa­
ção já havia se modificado fundamentalmente. Sir Edward Boyle, o suces­
sor de Eccies, assim se expressou sobre a questão:

Depois de 1963, deixou de ser controvertido afirmar-se que dispomos de provas


maciças do número de meninos e meninas aos quais se permitia ficarem abaixo
de seu verdadeiro nível de capacidade. Estimo que 1963 significou um divisor de
águas, tendo Newson e Robbins se manifestado naquele ano. Foram aqueles
relatórios que realmente solidificaram o trabalho que os sociólogos educacio­
nais realizaram em anos anteriores. (Kogan, 1974, p. 91)

Mas ocorreram outras modificações no início da década de 60 que fo r­


neceram um novo contexto para a incipiente sociologia da educação. Os
pressupostos predominantes subjacentes à ideologia da afluência eram sis­
tematicamente atacados em níveis tanto teóricos como empíricos. A redes-
coberta da pobreza, a crescente militância trabalhista e o surgimento na
arena política de uma série de problemas sociais, anteriormente submersos,
contribuiram para a "redescoberta" da classe. Na sociologia, esta "redes-
coberta dirigiu sua atenção para a comunidade. Ao mesmo tempo em que
era aceito o fato de que os padrões materiais da classe trabalhadora melho-
210 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

raram, argumentava-se que ainda constituíam grupos sociais distintos.


Através de toda a sociologia - desde as monografias sobre o Trabalhador
Afluente às investigações sobre a pobreza — teve início uma nova preo­
cupação com a realidade da classe.
No âmbito da sociologia da educação, esta mudança tornou-se aparen­
te num movimento que se afastou das preocupações "m acro" da ortodo­
xia, para se aproximar dos estudos em pequena escala da educabilidade —
um afastamento das "necessidades" da sociedade pós-capitalista e uma
aproximação das "definições" da comunidade local. Este enfoque é resu­
mido, por exemplo, na obra de Jackson e Marsden (1966) e nos primeiros
trabalhos de Halsey e Floud (1961). Ambos os estudos abordam a relação
entre crianças da classe operária e as escolas secundárias {grammar schoals),
mas seus enfoques metodológicos do problema são fundamentalmente dis­
tintos. De modo semelhante, esta mudança de abordagem e de ênfase foi
paralela a uma mudança na posição estrutural da sociologia da educação.
Como as outras ciências sociais, ela se expandiu juntamente com o cresci­
mento institucional da educação superior. Especificamente, ela foi se in­
corporando às faculdades de formação de professores e aos departamentos
de educação das universidades, fato que teve também significativas implica­
ções para a natureza dos "problemas" estudados pelas pesquisas.
Assim, a mudança no quadro teórico e na base institucional significava
que, por volta de 1960, a investigação já não se concentrava nos obstáculos
materiais tradicionalmente inerentes à desigualdade educacional. As pes­
quisas agora procuravam identificar os fatores sociais que colidiam com o
desenvolvimento intelectual de indivíduos, explorando ainda as circunstân­
cias sociais e culturais que afetavam o desempenho dos alunos provenien­
tes da classe operária num dado nível de capacidade. A atitudç das pesqui­
sas, isto é, o paradigma teórico empregado, teve importantes implicações
para o modo pelo qual o conceito de classe era encarado. Como disse um
sociólogo:

Considerando o tipo de sistema educacional e o tipo de relação entre escola e lar


existentes . .. a educabilidade diferencial está ligada ao fundo de classe social.
Mas classe social é apenas uma maneira sumária de se referir a um complexo de
fatores correlatos a uma profissão. O conceito descreve a distribuição ou a inci­
dência de um fenômeno, mas não explica sua ocorrência em nenhum sentido
causai. (Sugarman, 1966, p. 287)

Assim, a tarefa era explicar a ocorrência de modo significativo; uma vez


mais os sociólogos recorriam ao paradigma funcionalista, mas menos aberta
e cruamente, assimilando as sofisticações dos estudos em pequena escala
conduzidos por antropólogos sociais.
Desta perspectiva, o comportamento social é estruturado por normas,
determinado por sanções implícitas ou explícitas que organizam, de modo
t HUI AÇÀOE CRISE 211

••uuliti • previsível, a vida social de indivíduos e suas relações. Desse modo,


■ eii4likfl se concentra em normas de conduta como mecanismos de contro-
lii *tn;liil. no conjunto de normas que governam formas particulares de gru-
...... sociais, o parentesco, por exemplo; e nos efeitos destas normas
kiilir» n estrutura das relações sociais em dados setores da vida social. O
iiii iilii significativo" de que se constitui a vida social foi, conseqüente-
iiiniiifl, encontrado, não na cultura, mas em instituições consideradas
■limo relações sociais reguladoras. Esta abordagem de modo geral descriti-
vii iliK lenômenos sociais ganha uma certa dinâmica através da aplicação do
I «tii. t)iio de função - o "mecanismo causai adequado". As instituições são
■ como componentes funcionais de um todo social, como a comunida-
ilr i|ue servem para mantê-lo em condições mais ou menos estáveis. A lógi-
• II ilii iibordagem, assim, torna-se circular porque na medida em que estas
m iiiiiiições continuam a contribuir para a manutenção do sistema social,
i«iii á, se 0 sistema "funciona", então elas são consideradas funcionais para
■In I sta abordagem, por definição, conduz a um enfoque sobre os meca-
• III.IIIIIS de controle que servem para assegurar a aquiescência à ordem nor-
Miiitiva prescrita.
Na prática, esta abordagem leva a uma concentração em fatos "norma-
I ivi i s " ("tratar os fatos sociais como coisas"); desse modo a estrutura social
in liT e s e a relações entre fenômenos sociais reais, empiricamente dados.
1 «IMS relações ou são dadas nos fatos tal como observados diretamente ou
•I i'las se chega mediante uma simples abstração dos fatos. Desse modo, a
niirutura social, quando utilizada numa análise funcional, refere-se simples­
mente à organização real do sistema social — "você também poderia ver
iito, se se desse ao trabalho"
Para darmos um rápido exemplo de como essa abordagem é aplicada,
o de como ela realmente obscurece o que precisa ser explicado, podemos
nxaminar aqueles trechos da pesquisa de J. Klein, Samples from English
Culture, que abordam a atividade mental e a educação. Comunidades ope-
ârias tradicionais, como por exemplo a comunidade mineira estudada por
Henriques et al. (1956), são vistas como voltadas para si mesmas, com uma
estrutura social em grande parte baseada em funções atribuídas. Estes tra­
balhadores têm objetivos antes a curto prazo do que a longo prazo, não os
discutem de modo racional, insistindo num alto grau de conformismo.
Klein descreve esse estado mental como "pobreza cognitiva" — uma estag­
nação intelectual precipitada pelas pressões conformistas desse tipo de
comunidade,
À parte as críticas óbvias de que o nível de experiência educacional
não é considerado no estudo originai, ou por Klein, a sugestão implícita é
a de que a "pobreza cognitiva" surge inevitavelmente das condições de vida
da classe trabalhadora. Como Klein deixa claro;
212 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

Mesmo os que escrevem sobre os modos de vida da classe trabalhadora com a


maior simpatia, notam o que parece ser uma obstinada determinação de não de­
senvolver — e não permitir aos outros que o façam — atitudes ou comportamen­
tos que proporcionariam uma vida mais rica e individual. (1965, p. 7)

Mas isso não explica nada. Dá-nos um quadro necessariamente determinis­


ta: "São assim os trabalhadores nas comunidades tradicionais." A questão
ainda por ser respondida é: "P or que eles são assim?"

Voltando ao argumento principal, o ponto de partida da pesquisa foi


o de que as escolas e a educação eram coisas "boas". Assim, foi pressupos­
to que os fatores inibidores do desenvolvimento educacional das crianças
da classe trabalhadora eram exteriores à escola. Desse modo, era preciso
sair da escola e analisar o ambiente social do aluno. Para se compreender
suas atitudes em relação à educação e seu comportamento ha escola era
necessário compreender os valores recebidos em casa e na comunidade
local. Uma aceitação implícita da atual estrutura social e econômica da so­
ciedade levou a uma simples comparação das culturas dos que obtêm êxito
na escola e dos que não o obtêm. Assim, para surpresa nossa, somos infor­
mados de que a classe trabalhadora tem certas deficiências em relação à
classe média - em competência lingüística, em valores etc. E mesmo quan­
do se examinou o impacto das experiências escolares, o efeito foi conside­
rado inerente à compensação destas deficiências culturais mediante, por
exemplo, processos de seleção.

A sociologia da educação acadêmica desenvolveu-se inicialmente como


uma resposta aos "problemas" econômicos do pós-guerra tal como percebi­
dos no aparelho do Estado. Ela também foi moldada pelas ideologias meri-
tocráticas presentes na corrente fabiana das tradições do Partido Trabalhis­
ta. Para a sociologia, esta problemática dual teve importantes conseqüências
para sua compreensão da relação entre o sistema educacional e as crianças
da classe trabalhadora. A demonstração inicial de um reservatório inexplo­
rado de capacidades identificou certas correlações estatísticas associadas
com o insucesso da classe trabalhadora, mas não forneceu nenhuma expli­
cação. Detalhe importante, classe era entendida não como uma relação di­
nâmica, mas como um certo número de variáveis correlatas à renda. Assim,
buscava-se o mecanismo causai adequado e, em linha com os desenvolvi­
mentos gerais da sociologia, a causa do insucesso foi localizada nas atitu­
des, valores e linguagem da comunidade trabalhadora local. Posteriormen­
te, estas constatações foram articuladas mais claramente nas teorias sobre
uma "cultura da pobreza" ou o "ciclo da penúria". O fracasso da classe
trabalhadora na educação foi precipitado pelas deficiências em suas experi­
ências culturais e linguísticas e, logicamente, a orientação política devia
almejar a compensação destas deficiências.
I DUCAÇÃOE CRISE 213

Impactos
O impacto destas conclusões deve ser avaliado em dois níveis: em relação
.'ii políticas sobre atividades e organização interna das escolas, e em rela­
ção à política do Partido Trabalhista. No primeiro caso, este impacto rom­
peu a dominação da psicologia sobre a organização escolar e sobre métodos
de ensino progressivos. Como demonstra Simon (1974), a disseminação
dos testes de inteligência eo conseqüente processo seletivo geraram a intro ­
dução da seleção interna e, posteriormente, legitimaram o sistema tripartite.
Os sociólogos criticaram estas práticas e assinalaram o caráter duvidoso dos
mecanismos de seleção, questionando depois toda a base de diferenciação,
e finalmente demonstrando seu aspecto "auto-suficiente". Desse modo,
para J.W.B. Douglas, a seleção fortaleceu, sendo nelas amplamente basea­
da, as deficiências culturais/materiais da criança da classe trabalhadora
(1964).
Quanto ao segundo nível, o ensino centralizado na criança fora preco­
nizado em relatórios governamentais desde a década de 1930, juntamente
com propostas para se classificar os alunos de acordo com níveis de inteli­
gência. Ambos os conceitos estavam relacionados a uma interpretação psi­
cológica do homem como uma criatura com capacidades determinadas,
inatas. O nível de inteligência, contudo, era fundamental e estabelecia lim i­
tes às capacidades e potencialidades que poderiam ser exploradas através
de uma abordagem centrada na criança. Assim, a inteligência determinava
a estrutura e a organização, e dentro desses limites uma abordagem centra­
da na criança podia ser empregada. A compatibilidade destes pontos de
vista é demonstrada no apêndice do Relatório Hadow (1933), elaborado
por Sir Cyril Burt, "o pai do teste de inteligência", e Susan Isaacs, um dos
progressistas mais influentes. A sociologia, então, ao debilitar o conceito
de inteligência, retirou o pino teórico que legitimava a estrutura organiza­
cional e, conseqüentemente, libertou o progressivismo como método de
sua influência coercitiva e determinante.
Desse modo, os sociólogos puderam demonstrar que era a consolida­
ção, na escola, das deficiências da classe trabalhadora, e não sua incapaci­
dade inata, que contribuía para o insucesso da classe. Conseqüentemente, a
organização interna e estrutural do ensino tinha que ser reformulada para
compensar estas deficiências, em vez de ajustá-las. A força política deste
argumento aumentou com os relatórios do governo no final da década de
!j0 e inicio da de 60, que não somente reconheciam a necessidade de téc­
nicos mais capacitados, mas ainda defendiam o ponto de vista de que era
necessário um nivel maior de realização mesmo para aqueles que apresen­
tavam capacidade média. Estes relatórios puderam fazer isso apontando
a diminuição em números absolutos de trabalhos não especializados e o
aumento do nivel de especialização exigido pelas ocupações que surgiram
como conseqüência direta de avanços tecnológicos. Anteriormente, relató-
214 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

rios dessa natureza, como o Relatório Norwood, pressupunham uma crença


em três categorias gerais de crianças cuja capacidade e potencial intelectuais
eram em grande parte predeterminados. Contudo, à época do Relatório
Newsom, verificamos que essa suposição fora enfraquecida e que:

o talento intelectual nao é uma quantidade fixa com que temos de trabalhar,
mas uma variável que pode ser modificada pela politica social e pelas aborda­
gens educacionais. (1936, p. 6)

Isto significa dizer:

As constatações das pesquisas sugerem cada vez mais que a inadequação lingüis-
tica, a desvantagem quanto à base social e ffsica e o desempenho mediocre na
escola estão intimamente associados. Devido ao fato de que as maneiras !e se
expressar, que são tudo de que precisam para o uso cotidiano no lar e no am­
biente em que vivem, são restritas, alguns meninos e meninas podem jamais
adquirir os meios básicos para o aprendizado, e seu potencial intelectual é, por­
tanto, encoberto. (1963, p. 151

Conseqüentemente, o Relatório Newsom, com sua definição sociológica de


capacidade, pode argumentar que "os alunos médios e abaixo da média são
suficientemente educáveis de modo a apresentarem um talento adicional",
e com isso satisfazerem as necessidades do mercado de trabalho. Conside­
rou-se que isto exigia programas educacionais mais flexíveis e "relevantes",
a extensão da idade escolar e a provisão de pessoal e locais adequados.
De uma preocupação original limitada com seleção e mobilidade so­
cial, a atenção voltava-se agora para a educação como preparação para a
vida — particularmente a vida econômica. Assim, a posição teórica que se
desenvolvia na sociologia era mediada por relatórios governamentais e tra­
duzida em diretrizes educacionais para as escolas.
Ao examinarmos o impacto dos sociólogos educacionais sobre a p olí­
tica do Partido Trabalhista, é importante reconhecermos as implicações da
posição estrutural dos sociólogos. Já identificamos a relação entre o fabía-
nismo e o trabalho da LSE, reconhecendo-se amplamente que a maioria dos
sociólogos educacionais tinham algum grau de compromisso com uma re­
forma profunda e com o Partido Trabalhista. Contudo, a relação difere sig­
nificativamente da dos intelectuais trabalhistas antes da guerra, cujo traba­
lho estava organicamente vinculado, tanto em teoria como na prática, às
políticas do movimento trabalhista. Na verdade, este ponto é reconhecido
por Crosland quando ele diz:

A pesquisa educacional, um instrumento realmente novo, pode apresentar fatos


novos, iluminar a gama de opções, mostrar a melhor maneira de se conseguir um
objetivo dado, mas não é capaz de dizer qual deve ser o objetivo. Pois este deve
depender . . . de critérios que possuam um componente de valor e uma dimensão
social. (Crosland, 1974, p. 2071
I DUCAÇÃO E CRISE 215

O aparecimento de uma especialização, a sociologia da educação, trou ­


xe consigo compromissos com o trabalho profissional objetivo, implicando
uma divisão clara entre pesquisa institucional e atividade política. As con-
seqüências disso para o trabalho realizado são significativas. Há um aspecto
importante: operando dentro de uma área de conhecimento delimitada ins­
titucional e profissionalmente, que especifica problemas-chave e aborda-
gens-chave, o trabalho distancia-se das discussões políticas/morais/filosó-
ficas diretas que caracterizavam a obra de pessoas como Tawney e Webb.
Além do mais, as preocupações técnicas e a experiência profissional exigi­
das para uma literatura sociológica, a necessidade de um "o b je tivo " e um
tratamento justo do material e do assunto, geram ambigüidades políticas,
mas ao mesmo tempo ganham legitimidade como sendo "científicas".
A aliança do Trabalhismo com a sociologia da educação no período
pós-guerra — sua utilização da experiência técnica e das conclusões — in­
fluenciou diretamente a orientação e a implementação de sua política edu­
cacional. Kogan, em sua entrevista com Crosland e Boyle (Kogan, 1974),
aponta para o surgimento de um novo estabelecimento educacional no
final da década de 1950 e na de 60, constituído de cientistas sociais e
afins, que recorriam ao trabalho de especialistas profissionais como Vaizey
e Halsey. Além disso, este processo foi acelerado com a volta do Partido
Trabalhista ao poder. Crosland diz como explorou com eficiência as idéias
de sociólogos como Halsey e Burgess e como constituiu um organismo
consultivo informal composto de "especialistas" tais como Young e Don-
nison. Na verdade, Crosland atribui o êxito da abolição do exame de
admissão ao curso secundário a estes "especialistas":

Nâío foi na verdade o Departamento que quebrou a doutrina do exame de ad­


missão, mas principalmente elementos de fora, como Vaizey, Floud, Halsey e
os demais. (Kogan, 1974, p. 186)

Mais importante, o quadro de suposições no qual os sociólogos traba­


lhavam era compatível com o revisionismo trabalhista do pós-guerra e o
complementava. Ambos aceitavam a estrutura do capitalismo do Estado do
Bem-Estar Social e sua estrutura ocupacional hierárquica, que de algum
modo era vista como refletindo diretamente as exigências técnicas do pro­
cesso de produção. Aceitando esta estratificação como dada, a questão
colocada para a orientação política é acesso às posições dentro da hierar­
quia. Igualdade de oportunidades, nessa perspectiva, é compreendida como
sendo a equiparação das chances na loteria da oferta de trabalho. Mas
agora a base de diferenciação na educação, o teste de Ql, foi debilitada e
mostrou-se como sendo em grande parte uma função do ambiente. Conse-
qüentemente, a educação ganha uma nova função: devemos admitir, diz
Crosland, "a influência benéfica da educação para compensar as deficién-
216 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

cias de formação e das circunstâncias que a antecedem" (Crosiand, 1974,


p. 199).
Destas suposições decorre o argumento a favor das escolas de ensino
gerai (comprehensive) e outras iniciativas. Se considerarmos o importante
discurso de Crosiand em 1966 sobre a necessidade de escolas de ensino
gerai, constatamos que eie argumenta que as pesquisas da sociologia da
educação e os relatórios do governo provam que as crianças da classe tra­
balhadora, por vários motivos, são incapazes de explorar com eficiência
suas oportunidades educacionais. Portanto, a orientação deve necessaria­
mente voltar-se para a melhoria dos fatores que inibem as chances "iguais"
das crianças da classe trabalhadora. No entanto, a abolição das taxas e a
provisão de "educação secundária para todos" não melhoraram, como
comprovado de modo conclusivo e "cie n tífic o " por sociólogos educacio­
nais, a relação entre capacidade da classe trabalhadora e seus resultados.
As pesquisas também demonstraram que o exame de admissão não é digno
de confiança como previsor de capacidade, e, além disso, que a divisão tri-
partite na educação perpetua privilégios de classe e divisões anacrônicos
que já não são relevantes para uma moderna sociedade pós-industrial. Fi­
nalmente, as demandas da economia em termos do nível médio de qualifi­
cação requerida exigem uma educação mais eficiente e efetiva para o aluno
"de capacidade média e abaixo da média". Assim, ele conclui que o siste­
ma tripartite é "educacional e socialmente injusto, ineficiente, perdulário
e desarmonizador". (Crosiand, 1974, p. 165)
Estes argumentos e suposições, amplamente aceitos pelo Partido Tra­
balhista, representam e sintetizam uma mudança na maneira pela qual o
Trabalhismo entende a desigualdade e as mudanças sociais. Em vez da ênfa­
se sobre políticas redistributivas em larga escala que vigorava antes da
guerra, temos agora uma ênfase sobre um problema técnico/organizacional
num setor relativamente discreto de política social. Esta fragmentação ca­
racterizou a reação do Partido Trabalhista aos "problemas sociais" diante
do sistema político. Estes setores discretos refletiram, e em parte geraram,
as áreas intelectuais ocupadas por interesses profissionais organizados. No
âmbito da sociologia, por exemplo, as várias subdisciplinas relativas à p olí­
tica social funcionavam nas áreas intelectuais que especificavam problemas
empíricos bem limitados. Trabalhando com metodologias específicas e
abordando problemas "técnicos", foram apresentadas evidências e reco­
mendações, "objetivam ente", a fim de informar o processo decisório po­
lítico. Assim, o "problem a" da pobreza estava divorciado do da proprieda­
de, o "problem a" da educabil idade da classe trabalhadora estava divorciado
do das relações de classe fatuais e concretas, e assim por diante.
A sociologia da educação não apenas proporcionou a justificativa "le ­
gítim a" para o programa trabalhista de escolas de ensino geral, mas tam­
bém, de modo crucial, ajudou a gerar o consenso político sobre a educação
EDUCAÇÃO E CRISE 217

que caracterizou a década de 1960. Como reação aos "problemas" econô­


micos, políticos e sociais da época, as suposições e paliativos característi­
cos da aliança ideológica precipitaram a era da expansão educacional.

III Professores e profissionalismo

Antes de tentarmos situar a contribuição específica dos professores à coa­


lizão ideológica que estamos tratando, achamos necessário dizer algo sobre
sua situação como classe. À parte a rejeição da tese simplista de que classe
é uma característica familiar transmitida de geração a geração, também
argumentaríamos contra a tese de que os professores, por serem assalaria­
dos, são membros inequívocos da classe trabalhadora (Teacher's Action
Collective, 1975). Embora possa ser ú til considerá-los, juntamente com
a família, como desempenhando um papel fundamental na produção de
força de trabalho, na produção de valor que mais tarde aparece no merca­
do, argumentaríamos que é um erro, então, pressupor uma correspondên­
cia direta entre a escola e a fábrica. Fundamentalmente, a escola não é uma
fábrica caracterizada pela apropriação da mais-valia e pelas relações capita­
listas no sentido clássico, e além disso os professores não são proletários,
eles são trabalhadores "im produtivos".
De modo semelhante, a redução dos professores à condição inequívo­
ca de "trabalhadores" negligencia as determinações específicas daquilo que
Poulantzas (1975) chama de nível político e nível ideológico. Fundamen­
talmente, a tendência geral das organizações de professores tem sido a de
definir-se a si mesmos como profissionais, especialistas, e assim por diante,
para reforçar o fato de que em termos do trabalho que executam eles se
distinguem firmemente do trabalhador manual. Sua situação como classe
não é apenas determinada pela posição econômica como assalariados, mas
é também definida tanto ideologicamente como politicamente, sendo que
seu lugar na fronteira entre o trabalho intelectual e manual é crucial nesse
contexto. Assim, é um erro caracterizar-se "profissionalismo" como sendo
um termo "opiniático e subjetivo utilizado para colocar os professores e
suas organizações num limbo sem classe" (Lawn, 1975). Em vez disso, os
professores e suas organizações têm enfatizado (com invariável continui­
dade) sua condição profissional, na fronteira entre trabalhador intelectual
e manual, sua distância da qualidade de pais, de modo que a categoria dos
professores tem sido ideologicamente construída para acentuar diferenças
em relação à classe trabalhadora.
A ideologia do profissionalismo tem sido utilizada pelas organizações
de professores ou para defender sua condição de classe média ou para in­
cluírem-se nessa classe. Acuado entre o poder crescente do capital mono­
polista e os avanços da classe trabalhadora, o profissionalismo pode ser en­
tendido como uma estratégia pequeno-burguesa para promover e defender
218 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

uma posiçáio relativamente privilegiada. Para os professores, tem-se mani­


festado como uma estratégia ocupacional destinada a criar uma profissão
unificada e autodeterminada.
Revendo as realizações do NUT (Sindicato Nacional dos Professores)
ao completar seu centenário. Sir Ronald Gould, o secretário-geral que dei­
xou o cargo, sentiu-se á vontade para comentar que, com duas exceções, os
objetivos originais do sindicato foram amplamente atingidos. Estas exce­
ções foram o fracasso em garantir salários adequados para todos os seus
membros e o fracasso em garantir o controle sobre o ingresso na profissão
e sobre o registro de professores. Um dos objetivos que ele estima estarem
assegurados há muito tempo, um pré-requisito para a consecução dos
outros, é o direito de os professores estarem livres de "interferências espú­
rias". À luz de acontecimentos recentes, particularmente o discurso de Cal-
laghan, a convicção de Gould parece insustentável. 0 discurso de Callaghan
assinala uma confrontação direta com a classe dos professores, bem como
um desafio à autonomia que estes exercem no controle de seus próprios in­
teresses, tanto dentro como fora da sala de aula. Embora esta confrontação
tenha sido experimentada diferentemente pelas várias partes da classe dos
professores, as reações destes têm-se fundamentado num pressuposto a
nivel básico. Este pressuposto, comum às diferentes organizações de
mestres, diz respeito à natureza profissional do professor — m uito embora
não reconhecida sob qualquer estrutura formal — como anteparo a suges­
tões de interferências ou orientações externas.

Profissionalismo e reforma educacional


A luta pelo reconhecimento da condição profissional tem caracterizado as
organizações dos professores desde seu surgimento como uma força no ce­
nário político durante os debates sobre a educação no final do século XIX.
Suas intervenções iniciais no debate sobre o Código Revisto (Revised
Code) foram descartadas, caracteristicamente, por Robert Lowe, nos se­
guintes termos; "os professores que queriam criticar o código eram tão im­
pertinentes como galinhas que quisessem decidir sobre o tipo de molho
com que gostariam de ser servidas" (Coates, 1972, p. 8). Esta cínica reação
enfatizava a inexistência de condição profissional e de poder efetivo do
Sindicato Nacional de Professores Primários. O próprio nome da organiza­
ção refletia as divisões internas entre os professores. Organizações separa­
das representavam os professores das escolas públicas e particulares, e no
caso destas havia uma real determinação de defender a condição e o rela­
tivo privilégio de que desfrutavam contra o contingente cada vez maior de
professores das escolas primárias. Além do mais, entre os professores
primários as divisões eram coisa comum. A divisão entre professores diplo­
mados e não-qualificados produziu não apenas duas organizações distintas.
liDUCAÇÃOE CRISE 219

mas também um permanente conflito em torno de questões referentes ao


exercício da profissão. Mesmo quando era resolvido este problema, com
a aceitação pelo Sindicato Nacional de membros não-qualificados, a
questão de remuneração igual para as mulheres precipitou uma nova cisão,
com a formação da Associação Nacional de Mestres.
Deste alinhamento e realinhamento de forças surgiu uma política pro­
fissional relativamente coerente. Para os professores primários, a idéia de
autodeterminação profissional, com o controle do professor sobre padrões
profissionais e sobre o registro de professores qualificados, era vista como
um meio de equiparar as condições da classe e, conseqüentemente, de
elevar a condição dos setores elementares. Assim, o objetivo de uma única
profissão e a unificação das escolas num sistema único era fundamental
para o desenvolvimento de sua estratégia profissional. Enquanto os pro­
fessores das escolas secundárias argumentavam no sentido de manter os
sistemas primário e secundário distintos, os professores primários e os das
escolas mais adiantadas pediam a integração dos dois, com o direito de
transferência automática de um estágio ao outro como meio de estender
as possibilidades de educação para todos. Nesse contexto educacional
foram ouvidos os primeiros apelos para "igualdade de oportunidade" pro­
cedentes de organizações alheias ao ensino — tendo a TUC (Confederação
dos Sindicatos) feito tal apelo já em 1897, pedindo que a educação secun­
dária estivesse ao alcance de todos os filhos de trabalhadores.
A coexistência dessas exigências, uma articulada dentro do sistema
educacional pelos sindicatos, e a outra expressa politicamente pelo Partido
Trabalhista, era um dos aspectos-chave da política educacional no período
entre as duas guerras. Mas ao passo que a política educacional do Partido
Trabalhista era parte de uma estratégia política e social mais ampla, a o ri­
entação dos sindicatos era essencialmente educacional com sua própria
justificativa discreta.
0 principal objetivo prático das organizações de professores e do Par­
tido Trabalhista durante este período era a expansão da educação secundá­
ria, com o objetivo "fin a l" de "educação secundária para todos". A área
contenciosa era a natureza do que seria oferecido com a expansão propos­
ta. As organizações de professores apoiavam amplamente propostas "m u lti-
laterais" ou "multitendenciais” , segundo as quais uma escola poderia
cobrir toda uma série de especialidades num mesmo local, embora dividida
em seções acadêmicas e não-acadêmicas. A Associação de Mestres Assisten­
tes manifestou seu apoio a este esquema já em 1925, e o NUT também foi
favorável. As propostas "m ultitendenciais", ao mesmo tempo em que ofe­
reciam a equiparação de condições de trabalho, também ofereciam a possi­
bilidade de r r'’io.es oportunidades de trabalho para as mulheres, dai o
apoio de grupos como a Associação Feminina de Mestres Assistentes. De
modo semelhante, a divisão entre as escolas superiores e as secundárias
220 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

também podia ser superada com a implementação de um sistema de "esco­


las comuns". Assim, no NUT os professores das escolas superiores mostra­
vam-se particularmente entusiastas em seu apoio às propostas.
É importante não exagerar a distinção entre interesses profissionais e
políticos. Na verdade, uma das características daqueles anos foi a tendên­
cia geral dos professores em apoiar o Partido Trabalhista - escorada na
oposição do partido aos cortes e às medidas de economia e no seu compro­
misso em favor da reforma do sistema educacional. Essa tendência, princi­
palmente no início da década de 1920, provocou consternação nos c ír­
culos governamentais e alarma entre os professores conservadores. Falan­
do dessa tendência, um ex-presidente do NUT foi levado a argumentar que
"haverá perigo não somente para os próprios professores, mas também
para o Estado como um to d o " (Simon, 1974, p. 120). Esta preocupação
com a orientação política dos professores como grupo provocou, entre
outras coisas, a vigilância do Serviço de Informação em torno das ativida­
des da Liga Trabalhista dos Professores. Um grupo de parlamentares do
Partido Conservador apresentou um "projeto de lei contra o Ensino Indis­
ciplinado" destinado a impedir a difusão de idéias anarquistas entre a ju ­
ventude, sob pena de prisão.
No Partido Trabalhista, apenas a Liga Trabalhista dos Professores le­
vantou de màneira consistente o "conteúdo" da educação como assunto de
debate político. Sua "proscrição" pelo partido em 1927 anunciou a eva­
cuação da área pelo Partido Trabalhista. Para o partido, portanto, o nível
intermediário entre a escala de provisão e aquilo que se passava na sala de
aula, a saber, o nível do currículo, continuou incontestado. O grupo de in­
teresse dos professores, posteriormente reconstituído, a Associação Nacio­
nal de Professores Trabalhistas, concentrou-se quase que exclusivamente
na forma organizacional que deveria tomar a "educação secundária para
todos".
Enquanto o sindicato dos professores enfatizava os benefícios do mul-
tilateralismo, a NALT, como principal ponta-de-lança da política educacio­
nal trabalhista, mostrava-se ansiosa para pôr em prática a "escola comum"
como meio de mitigar os efeitos sociais divisórios do sistema existente.
Contudo, ao implementar a Lei da Educação de 1944, o novo Ministro
Trabalhista da Educação baseou-se no Relatório Norwood (1943), que
recomendara o sistema tripartite. Desencadeou-se uma controvérsia — por
um lado, o Ministro enfatizava a "paridade" das escolas separadas, isto é,
suas qualidades financeiras e organizacionais, e por outro lado sucessivas
resoluções da NALT eram aprovadas, rejeitando o sistema tripartite e preco­
nizando a rápida expansão dos esquemas de escolas de ensino geral. O re­
sultado final foi que durante o período de governo trabalhista apenas 13
estabelecimentos de ensino geral foram criados, com outros oito concedi­
dos ao LCC em caráter provisório.
l DUCAÇÃO E CRISE 221

Foi durante o período em que estava na oposição, no final da década


de 50, que o Partido Trabalhista passou a comprometer-se firmemente com
o programa de escolas de ensino geral e com a abolição do exame de admis­
são. Estas mudanças revisionistas no partido, e as constatações dos sociólo­
gos e psicólogos educacionais, discutidas acima, viram a "d ire ita " e o "cen­
tro " do partido, sob a liderança de Gaitskell, unidos em torno da política
de ensino geral.
Contudo, embora seja óbvio que os professores da NALT se beneficia­
vam pelo fato de pertencerem ao NUT, é evidente que a justificativa pre­
dominante apresentada pelas organizações de professores em apoio á "edu­
cação secundária para todos" era a de garantir condições iguais, bem como
ampliar seus objetivos profissionais e educacionais a longo prazo.

Autonomia do professor e progressivismo


Nesta seção pretendemos examinar estes objetivos profissionais e educa­
cionais a longo prazo, que ocupavam lugar de destaque no apoio dos pro­
fessores à reforma educacional. Queremos destacar particularmente o
desenvolvimento da autonomia do professor quanto ao currículo e seu
controle sobre ele. A exigência de uma situação profissional definida es­
tava intimamente relacionada à luta pela autonomia. Fato mais impor­
tante, foi o controle do professor sobre esta área e o desenvolvimento de
"relevância" e "progressivismo" que forneceram o centro que faltava das
políticas social-democratas na década de 1960, isto é, o conteúdo do cur­
rículo. Todavia, torna-se importante não somente analisar estes desenvol­
vimentos a nível político, mas também considerar o contexto escolar ime­
diato em que operam.
O controle sobre o currículo da escola secundária foi abandonado pela
Comissão de Educação em 1917, quando o controle efetivo passou às mãos
das comissões examinadoras. Estas instituições asseguravam que o currí­
culo da escola secundária fosse adequado à preparação para a universidade
e, já que as comissões determinavam os programas dos cursos, seu controle
podia ser indireto, mas era absolutamente efetivo. Da mesma forma, nas
escolas elementares, a preocupação era, depois de 1907, não apenas infundir
o bom comportamento e a disciplina, mas conseguir mais especificamente
o máximo de vagas "gratuitas" nas escolas secundárias, que eram agora
obrigadas a oferecer 1/4 de suas vagas, gratuitamente, aos alunos prove­
nientes das escolas primárias públicas.
A conquista destas vagas gratuitas como preocupação básica das esco­
las elementares levou à subordinação da organização interna da escola a
este objetivo. Quanto a isso, o processo seletivo interno representou a solu­
ção "pragmática", embora o número cada vez maior de crianças qualifica­
das para um número insuficiente de vagas resultasse na introdução de me-
222 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

canísmos seletivos mais sofisticados, particularmente os testes de inteligên­


cia. Assim, embora nos anos entre as duas guerras não existisse nenhuma
instrução "fo rm a l" quanto ao que deveria ser ensinado, uma série muito
real de determinações operava na situação do ensino através dos estágios
elementar e secundário. O reconhecimento público da "autonom ia" do
professor nesse particular veio de Lorde Percy em 1927:

Se o g o verno, seja m u n ic ip a l ou nac io n al, co m eç a r a d e te rm in a r ao professo r um


c e rto m é to d o de ensino , o u m esm o te n ta r in flu e n c ia r estas questões, correm os o
risco de e n fre n ta r to d o s esses males q u e tem o s visto sob várias fo rm as , ta n to na
Prússia do passado c o m o na R ússia de h o je. (B e rn b a u m , 1 9 6 7 , p. 9 0 )

0 currículo deveria ser, nas palavras de Sir William Pile, um "Jardim Se­
creto", no qual os políticos entrariam com risco próprio, já que qualquer
incursão poderia ser interpretada como totalitária tanto na intenção como
na natureza.
Para os professores, no período entre as duas guerras, uma das princi­
pais fontes de descontentamento com as práticas "educacionais" do siste­
ma ainda não reformado era a preocupação em garantir a liberdade quanto
ao currículo. A influência generalizada das comissões examinadoras e os
efeitos sobre as escolas elementares e secundárias dos processos seletivos
forneceram argumentos imediatos para uma iniciativa no sentido de provi­
dências institucionais mediante as quais a direção das comissões examina­
doras pudessem ser contornadas. Além disso, nos setores escolares menos
afetados pelas determinações externas — os níveis mais baixos das esco­
las primárias — reformas curriculares experimentais demonstraram a viabi­
lidade de métodos de ensino alternativos. À medida que a força represen­
tada pelos professores se expandia, diminuía a proporção aluno-professor.
Ao lado da introdução de métodos "progressivos", através de faculdades
de treinamento e do Inspetorado, o currículo da escola elementar começou
a se desenvolver num sentido centrado na criança e baseado nas pesquiras.
Contudo, essa iniciativa não era generalizada; relatórios recentes como o
de Plowden (1967) ainda instavam os professores a adotarem esta abor­
dagem. As pressões para que fossem apresentados mais e mais alunos para
os exames de seleção, e a exigência de maiores qualificações educacionais,
inibiram a difusão destes métodos.
Desse modo, dentro do sistema educacional a luta em prol das escolas
de ensino geral era dirigida não somente contra a organização formal do
ensino, mas também contra o controle externo exercido sobre o currículo
tanto pelos processos seletivos como pelas comissões examinadoras. O N U T ,
por exemplo, preconizou em 1946 a abolição dos exames externos. No pe­
ríodo após o término da guerra a proliferação de juntas externas de exames
intensificou o problema, sendo que somente depois do Relatório Beloe,
em 1960, os professores ganharam o controle sobre seu próprio sistema
I DUCAÇAOE CRISE 223

de exames — o CSE. Isto foi seguido de uma outra conquista em 1963,


quando, depois de muita controvérsia e discussão, os professores ganha­
ram controle sobre o Conselho Escolar de Exames e Currículos. Este
Conselho, como deixa claro uma de suas instruções, não tem nenhum
poder de influência sobre o currículo;

A intenção do Conselho, em todo o seu trabalho de desenvolvimento, não é


impor um novo currículo, mas reforçar a liberdade da direção em tomar suas
próprias decisões, estendendo a opção de cursos e matérias. (Schools Council,
1971, p. 5)

Assim, embora o Conselho estivesse preocupado em promover e dar início


a desenvolvimentos do currículo, sua constituição e posição agiam no sen­
tido de reforçar e acentuar a autonomia do professor na sala de aula. Par­
ticularmente na década de 1960, a introdução das escolas de ensino geral
e outras reformas abriram áreas e espaços nas escolas que exigiam um novo
conteúdo, e era essa área que os professores controlavam.
Contudo, este "co n tro le " não é uma qualidade abstrata, mas uma
liberdade que opera num contexto específico — a escola. Obviamente, a
atividade no interior da escola é estruturada por poderosos determinantes
externos, mas traz também dentro de si processos sociais e culturais de
considerável complexidade. Um dos mais importantes é a resistência carac­
terística de um grande número de crianças da classe trabalhadora aos obje­
tivos óbvios do ensino (Hargreaves, 1967; Lacey, 1970; Willis, 1977; Ham-
mersley, 1976). Esta resistência não pode ser explicada simplesmente pela
"deficiência" da classe trabalhadora, um modelo que pressupõe que se a
criança fracassa ou obtém êxito, então é um fator externo a ela que é o
responsável — sejam valores culturais recebidos em casa ou na comunidade
ou uma simples determinação estrutural, como a conquista ou não de uma
condição social. Mesmo quando são realizadas pesquisas na escola, são as
práticas institucionais de seleção, por exemplo, que são vistas como to ta l­
mente responsáveis pelo fracasso ou pelo êxito do aluno. Hargreaves
(1967), por exemplo, argumenta que o grupo de mesmo nível reforça e ba­
seia-se no fracasso. O fracasso, e a concomitante rejeição dos valores da esco­
la, fornece a convergência organizacional do grupo, sendo o prestígio no
grupo correspondente ao grau de rejeição. As implicações desse fenômeno
são, ao que tudo indica, que houve algum "pecado" original.
No âmbito desses quadros gerais, não é possível conceber uma com­
preensão das diversas maneiras pelas quais estas crianças criam uma cultura
em resposta às práticas institucionais e à organização da escola. Uma análi­
se que reduz esta cultura a valores herdados, a uma aceitação simplista ou
a uma inversão da mensagem "o fic ia l" da escola basicamente rejeita o
papel e a natureza da experiência subjetiva.
224 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

Fundamentalmente, as ações dos alunos nas escolas devem ser encara­


das como intencionais, lógicas, orientadas no sentido de fazer as coisas ou
providenciar para que sejam feitas. Nesse sentido, a experiência subjetiva
provê e informa o processo ativo e cotidiano da criação de estruturas de
significados que, no caso da cultura "antiescola", liquida com as expectati­
vas dos professores e com os objetivos da escola, incutindo no aluno atitu­
des, práticas e avaliações segundo as quais ele próprio interpreta as suas
situações. Igualmente, seria perigoso ver os "bem-sucedidos" como simples
vácuos para as mensagens óbvias da escola. Também nesse caso, embora
com diferenças importantes, os significados culturais são criados através
da experiência subjetiva. Os objetivos da escola e as expectativas dos pro­
fessores conseguem uma ressonância particular, mas em muitas áreas geram
ambivalência e mesmo oposição. A configuração de grupos de mesmo nível
no cenário social da escola suscita significados e filiações de considerável
complexidade.
À parte esta sobreposição e interpenetração social entre os próprios
alunos, devemos lembrar que o lar, o ambiente social, a classe, etc., forne­
cem um reservatório de significados acumulados e de práticas culturais que
são utilizados, modificados e apropriados pelas crianças ao criarem suas
próprias práticas e significados, a fim de se entenderem com a organização e
com a ideologia oficial da escola e,em certos casos, subvertê-las. Nesse senti­
do, as culturas dos grupos sociais dos alunos podem ser vistas como inspira­
das e situadas dentro do contexto mais amplo da cultura da classe traba­
lhadora.
Seria errado sugerir que estas crianças possuem total autonomia e
liberdade no desenvolvimento de suas próprias respostas culturais á escola.
O processo de resposta cultural ocorre estritamente nos termos e parâme­
tros delimitados pela estrutura: "Trata-se de um 'deserto árido' , que eles
têm que tornar habitável por seu próprio esforço". Assim, um currículo
oculto entra em ação — outras pessoas organizam a vida dos alunos, estes
são selecionados mediante "capacidade", é legítimo para os professores
fazer-lhes exigências, e assim por diante. Paradoxalmente, a criação de

f
estruturas significativas, dentro desses parâmetros, implica uma acomo­
dação com estas forças. Ela submete a postura oposicional potencial de
respostas culturais - não inevitavelmente, mas na prática.
Como Paul Willis procurou demonstrar em seu estudo sobre adoles­
centes da classe trabalhadora: "o problema não é tanto que a criação
de significados subjetivos e ações com ela relacionadas reproduzam as rela­
ções sociais de produção existentes, e sim que em suas conseqüências estas
coisas mantêm — na verdade constituem — o tecido da atual estrutura"
(Willis, 1976, p. 8). Assim, o "ê x ito " da "habitação" criada pela cultura an­
(
tiescola, o grupo de cultura informal, leva á cultura da fábrica e prepara
esse caminho.
EDUCAÇÃO E CRISE 225

Estes processos - manifestações da luta de classes ao nível da sala de


aula - são "Invisíveis" aos fautores da política educacional. Estes não
conseguem conceitualizar a classe como uma relação, trata-se antes de
um complexo de variáveis que se impõe à escola de fora. O ímpeto da p o lí­
tica é acomodar as variáveis através de um aprendizado baseado em recur­
sos, em currículo relevante, em esquemas de avaliação escolar, em departa­
mentos reparadores, e assim por diante. Desse modo abrem-se áreas na
escola que podem ser colonizadas e investidas com significação. Os "bem-
sucedidos", contudo, devem trilhar a linha entre o instrumentalismo árido
do compromisso com os exames e a atração, e adoção parcial, de signifi­
cados culturais visíveis no cenário social. Seria demasiado simplista inferir
que estas são as únicas opções culturais, mas o que queremos indicar são
as consequências não intencionais da reforma — sua utilização e apropria­
ção pelos alunos. Isto significa dizer que, enquanto as escolas reproduzem
as relações sociais da produção, "nas suas costas", elas também reprodu­
zem historicamente formas específicas de resistência.
É nesse contexto escolar que as determinações quanto à orientação
política esboçadas nos relatórios governamentais, documentos do Conselho
Escolar, etc., têm que ser traduzidas, pelos professores, em prática de sala
de aula. Nesse contexto, têm sido registrados três desenvolvimentos básicos
que alimentam o trabalho curricular da escola — o trabalho curricular de
ciências do início da década de 60, as determinações quanto à educação
"relevante" da classe trabalhadora nos relatórios governamentais, e o tra­
balho curricular do Conselho das Escolas. Todavia, a relação entre os pro­
jetos de currículos e as propostas geradas por "pesquisadores" e sua recep­
tividade na prática de sala de aula propriamente dita é complexa.
O trabalho curricular tem sido baseado em certos pressupostos quanto
à postura pedagógica dos professores e seu relacionamento com os alunos.
Fato importante, este trabalho foi elaborado para uso de acordo com uma
abordagem "centrada na criança", quando o tipo de educação mais antigo
e tradicional, como execução de trabalhos estafantes, foi substituído por
uma "comunidade de interesses" entre docente e discente. Estes pressupos­
tos pedagógicos dizem mais sobre a distância que separa os pesquisadores
das escolas do que sobre a verdadeira situação na sala de aula.
O progressivismo como ideologia tem uma história diferente das preo­
cupações mais utilitárias do profissionalismo. Suas raízes no romantismo
podem ser retraçadas até o Rousseau de Émite, ou mesmo antes. Todavia,
seu enunciado como estilo e abordagem pedagógicos está mais enraizado
no período de educação estatal compulsória. Sua receptividade inicial e
seu desenvolvimento na infra-estrutura educacional durante a década de
1930 foram comprimidos e canalizados através de sua subordinação ao
conceito central de inteligência. Suas determinações e sua aceitação nas
faculdades de treinamento alimentaram em parte as exigências dos pro-
226 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

fessores por autonomia na sala de aula. Sem esta autonomia, a flexibilidade


exigida por esta abordagem era grandemente limitada pelas determinantes
externas sobre a prática e a organização na sala de aula.
No período posterior á guerra, com o ataque contra o conceito de
inteligência e as estruturas divisórias da organização escolar, o progres-
sivismo foi sendo cada vez mais apresentado, através das faculdades de
treinamento de professores, dos "especialistas", e assim por diante, como
o método desejável de ensino. Na verdade, os relatórios do governo re­
conheciam e argumentavam que as determinantes externas estavam impe­
dindo a adoção mais generalizada destes me'todos. Crowther esclareceu a
questão em 1959:

a parte mais promissora do sistema educacionai quanto a experiências com no­


vos métodos de ensino de assuntos reiativamente difíceis estará nos cursos mé­
dios das escoias modernas — mas somente se forem libertados dos efeitos restri­
tivos de exames externos em grande escala. (1959, p. 94)

Assim, os argumentos políticos sobre as formas da educação secundá­


ria eram informados por um pressuposto im plícito quanto aos novos mé­
todos de ensino que esta organização modificada exigiria. Este aspecto,
todavia, foi separado como uma preocupação profissional, sendo desenvol­
vido e ampliado somente pela indústria de pesquisas e de treinamento que
surgiu na esteira das reformas institucionais. Esta abordagem, que conquis­
tou sua hegemonia própria nas faculdades de treinamento e nas instituições
de pesquisa, particularmente na década de 1960, correspondia à força e
espaço reais da autonomia do professor e relacionava-se diretamente à
ideologia relativamente espontânea do romantismo, corrtum a professores
e estudantes.
Todavia, se examinarmos em particular o trabalho do Conselho Esco­
lar, a mais importante instituição desse campo, encontramos complexas
mediações entre as conclusões das pesquisas e sua implementação na sala
de aula. Se examinarmos o documento intitulado Aro/efos (Projects),pub\\-
cado em junho de 1971, constatamos que dos 111 projetos discutidos, 76
situavam-se em universidades, 11 em faculdades de educação e dois em es­
colas. Além do mais, como assinalam Jenkins e Shipman:

O Conselho Escolar carece de infra-estrutura, de assessores e do apoio da muni­


cipalidade local para ir além dos projetos que desenvolvem idéias, métodos e ma­
teriais. .. e deixam atrás de si publicações e avaliações. A consequente conti-
nuaçéfo fica em grande parte nas mãos dos próprios professores. (1976, p. 53)

Esta posição é reforçada pelo princípio central entronizado no Conselho


Escolar, através do poder de voto dos sindicatos de professores, da autono­
mia do professor — suas propostas têm que ser apresentadas numa base vo-
luntarista. As contradições desta posição foram apontadas por M.F.D.
LDUCAÇÃO E CRISE 227

Young (1972), que assinala que embora seja legítimo os sindicatos terem
uma política quanto aos exames, eles estariam infringindo a autonomia se
fossem tomadas decisões de política em relação ao currículo escolar. Esta
noção individualista de autonomia transforma-se, na prática, no direito de
n io fazer nada. Os aperfeiçoamentos de currículos são recebidos e, então,
rejeitados ou aceitos. Isto implica uma resposta do professor, não uma ini­
ciativa. Desse modo, por exemplo, diante de alunos do RSLA, ele terti que
escolher entre ensino baseado nos recursos, estudos integrados, e assim por
diante. No entanto, a opção é feita dentro dos parâmetros dos projetos
específicos, e dos parâmetros da experiência passada, sua e de seus alunos.
Os níveis entre os grupos de pesquisa e a escola são ocupados por uma
complicada trama de instituições — desde "assessores" locais até os centros
de professores; desde as publicações dos organismos de classe às comissões
examinadoras locais. Até mesmo nas escolas operam hierarquias comple­
xas; desde inovações curriculares do vice-diretor às inovações do professor
substituto. É dentro desse contexto que temos que encarar a prática do
progressivismo, que pode estar bem longe das explicações teoricamente
coerentes desenvolvidas na pesquisa original.
A essa altura é importante acentuar a distinção entre "progressivismo"
e "profissionalismo", nenhum dos dois sendo redutível simplesmente ao
outro, muito embora tenham raízes comuns na ideologia pequeno-burgue-
sa. O profissionalismo como tal não se preocupa com o método ou com o
conteúdo do ensino per se, sua preocupação central é com a condição eco­
nômica dos professores. De modo semelhante, o progressivismo é uma
abordagem educacional e ideológica aos problemas técnicos e pedagógicos
do ensino e que nada tem a ver com a posição e condição profissional do
professor como tal. Ambas as ideologias, como são expressas no aparelho
educacional, possuem apoios e fontes institucionais — faculdades de treina­
mento, sindicatos, institutos de pesquisas, e assim por diante. É através
desses organismos que elas exercem uma poderosa influência sobre a con­
duta dos professores e sobre o que acontece na sala de aula. Ao mesmo
tempo, é importante notar a disjunção entre o nível de prática e a ideolo­
gia. A incorporação do progressivismo ás práticas da sala de aula, como
abordagem e como método de controle, tem lugar dentro dos fatores de­
terminantes das lutas de classe na sala de aula.
Argumentamos que a estratégia profissional das organizações dos
professores estava implicitamente vinculada com a racionalização e com
a equalização do sistema educacional. Além do mais, argumentamos que
em torno desta afirmação do profissionalismo — institucionalmente
apoiada por uma forma de educação à parte — foram construídas uma po­
lítica educacional dos professores e ideologias. Fato importante, a luta pela
autonomia tem estado intimamente ligada ao desenvolvimento da ideologia
do progressivismo. Assim, a capacidade de o professor responder às "neces­
228 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

sidades" de seus alunos foi acentuada devido ao controle de seus próprios


exames e currículos. Esta flexibilidade, embora mais aparente do que real,
tem tido importantes conseqüências para o desenvolvimento interno das
escolas. Ao mesmo tempo em que era possível ao Partido Trabalhista
evitar a questão do conteúdo, os professores eram obrigados a traduzir
diretrizes políticas em prática de sala de aula.

IV Expansão educacional na década de 60

Anteriormente, procuramos identificar certos elementos e instituições-


chave que, tanto ideológica como materialmente, legitimaram a expan­
são e o "consenso" educacional da década de 60. Fator crucial, a con­
vergência entre estes elementos, tanto institucional como politicamente,
forneceu um quadro de premissas básicas dentro do qual os "problemas"
educacionais eram compreendidos e as diretrizes políticas formuladas. A
dominância política desse quadro foi assegurada com a volta dos trabalhis­
tas ao poder em 1964. Nesta seção, com um breve esboço das políticas do
Partido Trabalhista, queremos inferir pressupostos fundamentais que se en­
contram na base dessas políticas e, oepois, examinando um texto-chave,
ver de que maneira esses pressupostos foram articulados ou sufocados na
ideologia.
Voltando ao poder, o Partido Trabalhista comprometeu-se com a abo­
lição do exame de admissão; com a reorganização das escolas de ensino
geral, com a expansão da educação superior; com um aumento substancial
no treinamento de professores para reduzir o tamanho das turmas a 30
alunos; e com o prolongamento da educação obrigatória. Esse era o "n o ­
vo" Partido Trabalhista dedicado a er-adicar os velhos problemas que frus­
travam o desenvolvimento tecnológico da Grã-Bretanha. O novo governo lá
estava para liderar, e para proteger e fazer progredir os interesses nacionais.
Em nenhum outro setor essas intenções eram mais evidentes do que na
educação. O partido introduziu reformas amplas e embarcou em planos
de expansão maciça. Pela primeira vez os gastos com a educação ultrapassa­
riam os gastos com a defesa. O compromisso dos trabalhistas em fazer fun­
cionar o capitalismo britânico, e seu impulso meritocrático, identificara
mais ainda a educação como sendo a alavanca da mudança social, contras­
tando com as políticas redistributivas do período anterior à guerra.
A década de 60 também fo i caracterizada por um consenso educacio­
nal, bem como pela expansão. À parte sua aceitação geral do argumento
meritocrático, a política do Partido Conservador em relação às escolas
de ensino geral mudou ra 'icalmente. Os porta-vozes conservadores, em
nível tanto local como nacional, reconheciam cada vez mais que o
princípio da seleção em baixa idade já não era viável, educacional ou elei­
toralmente. Uma relutante aceitação das "boas^* escolas de ensino geral
EDUCAÇÃO E CRISE 229

passou a fazer parte de seus discursos no início da década de 60, e em


1967 o enfoque dado a Secondary Education fo r A ll: A New Drive, de
1958, cujo objetivo tinha sido o vigoroso desenvolvimento de modernas es­
colas secundárias no sentido da "igualdade de crédito" em relação às esco­
las de programa científico {grammar schools), tornou-se o enfoque de
Heath, segundo o qual "nunca foi um princípio conservador o de que para
conseguirem (seleção ou agrupamento por capacidade) as crianças preci­
savam ser segregadas em diferentes instituições" (Jenkins, 1973, p. 131).
Os partidos ainda discordavam quanto a ritm o e detalhes da organiza­
ção das escolas de ensino geral, particularmente quanto a seus efeitos sobre
a situação das escolas de ensino geral independentes e diretamente subsi­
diadas, mas em relação à maioria das questões educacionais havia uma con­
cordância geral. Mesmo em 1970, um ano depois da publicação do primei­
ro Black Paper, ambos os Manifestos eram fundamentalmente semelhantes
— mais recursos para os jardins de infância e para as escolas primárias, es­
tendendo a educação compulsória até os 16 anos, expansão da educação
superior; a única diferença era o compromisso do Partido Trabalhista de
legislar para a reorganização da escola de ensino geral obrigatória e o com­
promisso dos conservadores no sentido de que as autoridades municipais
teriam o direito de determinar sua própria forma de ensino secundário.
Resumindo as políticas do Partido Trabalhista no poder na década de
60, podemos dizer que o partido adiou a RSLA até 1972. O partido endos­
sou o Relatório Robbins (1963) e transformou as Faculdades de Tecnolo­
gia Avançada em universidades. O Partido Trabalhista publicou um do­
cumento em 1966, estabelecendo o sistema binário na educação superior,
mediante o qual as universidades conservavam sua independência e outros
setores continuavam sob o controle da LEA. De modo semelhante, criou a
nova escola politécnica e o Council fo r National Academic Awards e ex­
pandiu o treinamento de professores. Quanto às escolas de ensino geral,
publicou a Circular 10/65,que deu início à fase de reorganização e realizou
estudos sobre a situação das escolas de ensino científico públicas e direta­
mente subvencionadas. Quando o Partido Trabalhista assumiu o poder,
havia 189 escolas de ensino geral em 39 regiões municipais. Ao ser derrota­
do nas eleições de 1970, o número de escolas de ensino geral tinha subido
para 1.300, oferecendo instrução a 35% das crianças (embora algumas exis­
tissem concomitantemente a escolas seletivas).
Finalmente, o desenvolvimento da educação pré-escolar foi ampliado,
particularmente depois da publicação do Relatório Plowden em 1967. Este
Relatório também teve implicações para as escolas, através de seu endosso
dos métodos de ensino progressivo, tendo sugerido uma política de discri­
minação positiva. Sua idéia básica, a Área de Prioridade Educacional, in­
dicava que uma diretriz política devia intervir nas desigualdades sociais.
O documento designava áreas em que a discriminação positiva, na forma
230 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

de melhores locais de ensino, mais professores, maiores recursos etc., devia


ser implementada. O governo respondeu com um programa de 16 milhões
de libras.
As políticas seguidas pelo governo trabalhista podem ser consideradas
como uma resposta a certos "problemas" que incidiam sobre o aparelho
educacional. Sua classificação como "problemas" deve-se a seus efeitos
sobre o "interesse nacional". Isto quer dizer que há um problema econômi­
co quanto às necessidades de mão-de-obra na economia e, ao mesmo tem­
po, urfl problema político e social quanto a oportunidades iguais e "reali­
zação dos potenciais individuais". Estes problemas são enunciados como
uma preocupação com o fracasso da classe trabalhadora na educação.
Fundamentalmente, este "fracasso" é visto como sendo socialmente
determinado - pelo "ciclo de penúria" ou pela "cultura da pobreza" -
sendo considerado que se pode ajustá-lo a uma política social e a aborda­
gens educacionais. Sob essa premissa há uma visão de classe que a vê como
sendo uma combinação de deficiências culturais e materiais - a solução
sendo compensar as deficiências através das escolas e de uma política
social. Contudo, a atual estrutura educacional é considerada irrelevante e,
em certos casos, nociva - por causa dos sistemas de seleção - , de modo
que precisa ser modernizada, em termos tanto de relevância como de orga­
nização. Fundamentalmente, a resposta para o fracasso da classe trabalha­
dora é a modificação da estrutura da educação e maiores oportunidades
educacionais.
Desse modo, se o fracasso da classe trabalhadora na educação pode ser
contornado mediante maiores recursos, melhores professores, um currículo
relevante etc., e se ao mesmo tempo uma força de trabalho melhor instruí­
da é uma determinante crucial do êxito econômico, não apenas é lógico
pedir mais "investimentos" na educação, mas uma reorientação de recursos
torna-se um imperativo econômico e social. Este processo lógico é susten­
tado por uma visão da educação como uma coisa "boa " por definição, uma
visão que constantemente apresenta-se a si mesma como um otimismo
ingênuo;

O governo acredita que a oportunidade de melhor educação pode, ao compensar


os efeitos da privação social e do ambiente material deprimente em que muitas
crianças são educadas, fazer uma importante contribuição para vencer a pobreza.
Urna melhor educação é a chave para melhores oportunidades de emprego para
os jovens nesses distritos e para capacitá-los a enfrentar as tensões sociais de uma
sociedade que se modifica rapidamente. (Departamento de Educação e Ciência
1967) '

Ora, quando o elo explícito entre a educação e a economia é estabelecido


em termos de "investim ento", isto necessariamente revela o conteúdo da
educação, para ver "se ela está cumprindo sua função". Ao mesmo tempo.
EDUCAÇÃO E CRISE 231

relatório após relatório têm enfatizado a necessidade de uma educação "re ­


levante" para os alunos "médios e abaixo da média", tanto para realizar
seu potencial individual como para drenar o "lago da capacidade". Estes
relatórios, e os acontecimentos políticos, também criaram áreas institu­
cionais dentro das escolas que exigem um novo conteúdo, por exemplo, o
lado "social" da educação nas escolas de ensino geral, os CSE etc. Todavia,
estas áreas não podem ser reduzidas a uma questão de diretrizes políticas,
mas inserem-se na capacidade da profissão de professor.
Embora a inovação e a pesquisa curriculares possam ser organizadas e
disseminadas, e a "boa prática" incentivada pelo Inspetorado, em última
análise o que é ensinado na sala de aula é, pelo menos teoricamente, do
dom ínio autônomo do professor. Um dom ínio ciosamente guardado pelas
organizações de professores e ampliado por seu controle sobre o Conselho
Escolar e os CSE. Até mesmo as comissões de exame externas estavam sob
ataque durante aquele período. Por exemplo, o secretário de estado traba­
lhista, Edward Short, em outubro de 1969, referiu-se a elas como "uma
pedra de moinho pendurada no pescoço das escolas", manifestando ainda
a esperança de que as pessoas ligadas à educação se dedicassem sem demora
"a livrar nossas escolas secundárias da tirania dos exames" (Locke, 1974,
p. 8).
A autonomia dos professores raramente era questionada na década de
60. Através de relatórios e documentos, pressupõe-se que, com facilidades
adequadas e treinamento, os professores podem cum prir sua furição —
tudo o que acontece nas escolas é da alçada deles. Podem ser feitas reco­
mendações e estruturas podem ser alteradas, mas é o professor quem con­
trola a implementação dessas mudanças.
Durante esse período, o organismo mais influente que articulava a
relação entre os problemas políticos quanto à educação e as mudanças ne­
cessárias na educação, através de seus relatórios, era o Conselho Central
de Assessoria do Ministério da Educação, estabelecido de acordo com
a Lei de 1944. Durante as décadas de 50 e 60, o Conselho publicou uma
série de influentes relatórios que forneceram a justificativa para importan­
tes iniciativas políticas, como o RSLA, apresentando linhas-mestras que
possibilitavam às escolas desenvolverem suas respostas internas a tais mu­
danças. Segundo Crosland, foi este organismo que documentou "o lado
bom e o lado mau do sistema e, em particular, legitimou a sociologia radi­
cal das décadas de 50 e 60" (Kogan, 1974, p. 174). Fundamentalmente,
estes relatórios expunham aquelas opiniões centrais que caracterizavam os
elementos básicos da convergência ideológica que estava ocorrendo duran­
te aquele período. Queremos agora examinar estas opiniões tal como enun­
ciadas num relatório específico — o Relatório Newsom — cuja importância
capital foi assinalada numa seção anterior.
232 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

O Relatório Newsom, H a!f Our Future [Metade do Nosso Futuro), foi


encomendado em 1961 com a finalidade de informar o Ministro sobre a
educação de alunos entre 13 e 16 anos de idade, dotados de capacidade
média e abaixo da média. O relatório propriamente dito adota uma postura
de resolver os problemas, embora estes nunca sejam claramente definidos.
Todavia, dois conceitos fundamentais se destacam. Em primeiro lugar,
"nossas crianças", como diz o relatório, manifestam tédio, são apáticas e
rebeldes na escola, e isto é considerado uma coisa "m á " e nociva ao poten­
cial do indivíduo. (Deve-se notar nesse contexto que o final da década de
50 e o início da de 60 testemunharam um visível aumento da delinquência,
com suas conseqüentes ameaças morais - os Teds, os Mods etc.). Além do
mais, as exigências de uma economia tecnológica ern rápida expansão são
vistas como criadoras da necessidade, não apenas de trabalhadores especia­
lizados, mas também de um nível geral mais alto de especialização do tra­
balhador médio. Assim;

o futuro padrão de emprego neste país exigirá uma reserva de talentos muito
maior do que a atual; . .. e pelo menos uma substancial proporção dos alunos
médios e "abaixo da média" é suficientemente educável para prover aquele
talento adicional. A necessidade não é de apenas mais trabalhadores especializa­
dos para preencher os empregos existentes, mas também de uma força de traba­
lho com melhor instrução e inteligentemente adaptável para satisfazer as novas
exigências. (1963, p. 5)

Aspecto importante, considera-se que a solução destes problemas está nas


escolas, particularmente quando hoje se acredita que a capacidade e a rea­
lização dependem das iniciativas e atividades da política social. A maior
barreira para "nossas crianças", como se acredita, está na incapacidade de
elas participarem e se comunicarem com eficiência, em virtude da
inadequação lingüística e da falta de relevância da escola em relação a suas
necessidades reais;

E x is te u m a grande distância e n tre aqueles que possuem e os m u ito s que não


possuem d o m ín io s u fic ie n te das palavras para p o d e re m o u v ir e conversar rac io ­
n a lm e n te . expressar idéias e op in iõ e s c o m clareza, e m esm o te r algu m a id éia. . .
T ra ta -s e d e qu estão tã o im p o rta n te p ara a vida e c o n ô m ic a q u a n to para a vida
pessoal; as relações trab alh is ta s , assim c o m o o casam en to, fracassam p o r causa
da fa lta de com u n ica ç ã o . (1 9 6 3 , p. 5 1 5 )

Desse modo, um período mais longo passado nas escolas que tenham recur­
sos adequados, além de alterações organizacionais internas e curriculares, é
necessário se quisermos que "nossas crianças" desenvolvam seu potencial.

Os autores do artigo não são ingênuos, na medida em que reconhecem


que para a maioria das "nossas crianças' o mundo do trabalho não oferece­
rá grandes oportunidades de expressão e realização pessoais;
EDUCAÇÃO E CRISE 233

No futuro imediato e previsívei, grande número de rapazes e moças que deixam


a escola obterão empregos que lhes farão exigências tão limitadas quanto as
feitas a A rthur Seaton:^ pode o tempo que passaram na escola ajudá-los a conse­
guir mais alimento para o resto de suas vidas do que fantasias de cores lunáticas?
(1963, p. 27)

A esta pergunta, eles respondem com um "s im " incondicional. As escolas


devem oferecer não apenas instrução nos três níveis, mas ainda experiên­
cias que "os auxiliarão a desenvolver plena capacidade de pensar, gostar
e sentir". Assim, num determinado nível, as escolas oferecerão relevância
curricular através de experiência de trabalho, prática de oficina, economia
doméstica etc., ao mesmo tempo que em outro nível elas também devem
oferecer uma educação social que será útil a "nossas crianças":

para desenvolver um sentido de responsabilidade para com seu trabalho e para


com outras pessoas, e para começar a chegar a algum código de conduta moral
e social que seja auto-imposta. É importante que elas tenham alguma compreen­
são do mundo material e da sociedade humana na qual estão crescendo. (1963,
p. 27)

É possível notar, então, que o relatório está preocupado com a função


econômica e social da classe trabalhadora. Embora a idéia de classe esteja
submersa em eufemismos como "socialmente destituídos", "interioriza­
dos" etc., o relatório reconhece que "cinco entre seis alunos tendem a per­
tencer a famílias de trabalhadores manuais, especializados ou não". Duran­
te todo o tempo o relatório manifesta preocupação com controle — para
impedir que os alunos se entediem e mostrem-se rebeldes, a educação deve
ter relevância; para impedir que os trabalhadores tenham "fantasias de
cores lunáticas" em trabalhos repetitivos e sem perspectivas, eles devem
ter interesses culturais/sociais externos que compensem a frustração no tra­
balho, e assim por diante. Embora assentado na linguagem da igualdade de
oportunidades, suas diretrizes políticas reforçam a condição social e as hie­
rarquias econômicas. De fato, o próprio títu lo H alf Our Future reifica
aquelas categorias criadas educacionalmente, que diferenciam entre "os
que trabalham com a cabeça" e "aqueles que trabalham com as mãos". É
a futura situação de trabalho que é o fator determinante — são as necessi­
dades naturais e não-problemáticas do mercado de trabalho que estruturam
as reformas educacionais sugeridas.
Para alcançar estes objetivos, o relatório argumenta que precisamos in­
vestir mais na educação e que os professores que lidam com "nossas crian­
ças" precisam de um treinamento mais apropriado, bem como de uma me­
lhoria de condição social e financeira. Não é surpresa que estes professores,
durante o treinamento, "devam receber algumas noções de estudos so­
ciais . . . para que possam colocar o própriô trabalho numa perspectiva
social e estejam melhor preparados para compreender as dificuldades dos
234 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

alunos em certos tipos de áreas" (1963, p. 103). O valor desta perspectiva


foi sem dúvida enfatizado pela natureza dos argumentos apresentados à
comissão por pessoas como Jean Floud, Brian Jackson e Basil Bernstein.
Em todo o relatório há uma confiança implícita na experiência profis­
sional dos professores. Ao mesmo tempo em que é legítimo sugerir tanto
aperfeiçoamentos no treinamento como matérias curriculares, a capacidade
de os professores executarem o trabalho sugerido nunca é posta em dúvida.
Dessa maneira,os pressupostos — de que a educação é uma coisa
"b oa ", de que precisamos "in ve stir" mais, de que os professores podem
"cum prir sua missão" com o material adequado, de que inteligência é ques­
tão de iniciativas políticas, e assim por diante — fornecem a estrutura ideo­
lógica do relatório. As contradições são facilmente resolvidas, ou nunca
chegam à tona. Interesses de classe conflitantes são reduzidos a uma inca­
pacidade de comunicação. Assim:

Dadas as oportunidades, nSo temos dúvidas de que elas ("nossas crianças") en­
frentarão os desafios que uma economia em rápido desenvolvimento oferece
tanto a elas como a seus irmãos e irmãs mais bem dotados. Mas não há tempo a
perder. Metade de nosso futuro está nas mãos delas. Devemos cuidar para que
esteja em boas mãos. (1963, p. xiv)

V C rític a

Periodicamente, neste ensaio, assinalamos pressupostos que têm sustentado


as determinações de "especialistas" e políticos. Esses pressupostos têm
sido surpreendentemente constantes dentro da tradição social-democráti-
ca. Nesta seção é nosso desejo recapitular as pressuposições mais profunda­
mente arraigadas e estabelecer uma crítica a elas. Argumentaremos que a
ideologia social-democrática procura reconciliar objetivos contraditórios,
propõe objetivos que não podem ser realizados com os meios propostos, e
fracassa em seus propósitos políticos - a mobilização do apoio popular.
Esta análise de inadequações "teóricas" ou intrínsecas será seguida, na Se­
ção VI, de uma demonstração prática da atual fraqueza das posições social-
democráticas. Pois a "crise da educação" é em grande parte uma crise da
democracia social, na qual a iniciativa ideológica passou a seus rivais.

Recapitulação: o repertório d uai


A ideologia social-democrática é uma formação complexa. Grande parte
desta complexidade provém, como vimos, da heterogeneidade de seus
apoios numa coalizão social e aliança política particular. Mas a ideologia
tem sido complexa num outro sentido: ela tem girado em torno de uma
persistente dualidade de idéias que, argumentaremos nós, tem estado ar­
raigada menos em qualquer base social direta do que em relações externas
I IKK AÇÃO E CRISE 235

.. iMiurnas do Partido Trabalhista como organização. Esta dualidade de


iiinnalra nenhuma está limitada à região educacional da ideologia trabalhis-
I* ala cobre todo o espectro de seu discurso político — mas é particular-
innnte evidente aqui.
A retórica educacional do Partido Trabalhista sempre se moveu, como
Miiinmos no início, entre dois pólos. Estes pólos podem (em linguagem
imiulgráfica conveniente e familiar) ser chamados de "igualdade" e "igual-
ilNiln de oportunidade". O anseio de "igualdade" tem sido de natureza es-
•nnclalmente social e cultural, um anseio por "com unidade", pela equipa-
iN(,ln das condições, pela formação de uma "cultura comum". A igualdade
mm lido estimada por se tratar de uma fonte de coesão; e a desigualdade
mliiiiada por causa de seu caráter divisório. Tais noções têm seu ponto de
lülitréncia final numa organização social partilhada com filosofias mais
. .im.iirvadoras, sendo que na Inglaterra têm sido sustentadas tipicamente
riii iiadição cultura-e-sociedade. "Igualdade de oportunidade", em contras-
m, i‘ melhor entendida como um objetivo econômico, baseado na concepção
il« «ducação como um "b em " que deve ser partilhado de modo mais justo,
p I ujos uso e consumo têm efeitos econômicos pertinentes. O ponto de re-
liiiáncia básico para esta série de noções tem sido uma concepção essencial-
mnnte liberal da sociedade como um mercado, no qual os indivíduos com-
pniom entre si. A questão, de acordo com esta "filo so fia ", é capacitá-los a
1 iim petir de modo mais justo.
Para ambas as posições, portanto, "classe" é um problema. Mas é um
problema em diferentes maneiras. Para os igualitários, trata-se de um pro­
blema porque cria co nflito social, inveja e dominação. Para os "fabianos"
(empregamos o termo no sentido mais geral), representa uma série de res-
li ições artificiais quanto à aquisição de habilidades ou ao emprego do talen-
lo. Para ambas as posições, igualmente, a educação é um meio m uito im ­
portante para uma reparação, mas é vista de maneira um tanto diferente.
Os igualitários enfatizam a aculturação e a absorção de valores democrá­
ticos; os fabianos enfatizam as habilidades, de modo especial as "úteis".
1 m matéria de "ascenção", também, há diferenças de ênfase entre os que
vêem a limitação de recursos como o único impedimento para a educação
universal (a posição igualitária) e os que vêem a seleção como algo neces­
sário, embora esperando que possa ser mais flexível e justa. De um modo
geral, os igualitários vêem a educação como um "d ire ito " coextensivo à
cidadania ou à "natureza humana"; de um modo geral, os fabianos vêem
sua distribuição como uma questão, fundamentalmente, de utilidade. Os
dois pólos podem, em suma, ser apresentados da seguinte maneira:

Igualitários Fabianos
"igualdade" "igualdade de oportunidade"
objetivos sociais/culturais objetivos econômicos
236 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

classe como divisão classe como inibição


educação como atitudes educação como habilidade
direitos utilidade
ordem social ou "com unidade" mercado ou "eficiência"

É possível citarmos exemplos relativamente puros de ambas as posições,


principalmente no começo da história do repertório. Como vimos, Tawney,
em sua posturã moral geral, se não sempre em suas propostas detalhadas,
personificava o igualitarismo educacional. Sidney Webb personificava a
"capacidade de conseguir" fabiana e uma unidade (de um tipo mais moder­
no) da "eficiência nacional" e argumentos meritocráticos. A distinção é
também inerente a debates mais recentes. Os defensores do "ensino comu­
n itário " ou de escolas de ensino geral não-seletivas, por exemplo, podem
ser classificados de igualitários (Jackson, 1970; M idwinter, 1972); os de­
fensores dos processos seletivos ou, numa outra esfera, do sistema binário e
da "nova politécnica", podem ser considerados fabianos extremados (exem­
plo: Robinson, 1968). M uito mais tipicamente, contudo, e principalmente
entre os políticos, as duas correntes têm-se combinado ou mesmo fundido.
Para Crosland, por exemplo, as escolas de ensino geral são necessárias para
acabar com o desperdício de talento revelado por Robbins e Crowther e
"para aumentar o sentido de coesão social na sociedade britânica contem­
porânea (1974, p. 206). Mas Sir Harold Wilson nos fornece, como sempre,
o exemplo clássico do dualismo trabalhista, quando fala ao partido, con­
fiante, durante a campanha eleitoral de 1964:

não podemos nos dar ao luxo de impor uma segregação a nossas crianças no está­
gio de admissão à escola secundária. Como socialistas, como democratas, opomo-
nos a esse sistema de apartheid educacional porque acreditamos na igualdade de
oportunidade. Mas isso não é tudo. Simplesmente não podemos, como nação,
nos dar ao luxo de negligenciar o desenvolvimento de um único jovem. Não po­
demos nos dar ao luxo de eliminar % ou mais de nossos filhos de virtualmente
qualquer chance de alcançarem a educação superior. Os russos não se dão, os
alemães não se dão, e os japoneses não se dão, nós tampouco podemos nos dar
a esse luxo.

A dinâmica do argumento é típica: primeiro o apelo "visceral" ao igualita-


risrho do partido ("segregação", "nossas crianças", "apartheid educacio­
nal"); depois a invocação de NOSSA POSIÇÃO "como socialistas" (e se isto
fo r um pouco forte demais para todos os presentes, também como "dem o­
cratas ); finalmente, a transição, através de "igualdade de oportunidade"
com sua fundamental ambigüidade, para os argumentos mais óbvios de
"eficiência nacional".
O interesse na análise desse repertório está, pois, mais em suas relações
do que no desaparecimento de componentes inteiras. Uma destas alterações
já foi notada: a mudança para a dominância de "igualdade de oportunida-
I IIIK AÇÃOE CRISE 237

ila” depois da guerra, juntamente com uma inflexão mais marcadamente


■I iinômica ou tecnocrática dentro desse próprio complexo. Mas mesmo no
«mjr do entusiasmo trabalhista quanto á "modernização", a retórica iguali-
lAiln (como mostram as citações de Croslande Wilson) não foi abandonada.
Politicamente, de fato, a coexistência dos elementos tem sido de im-
|iiMi.'incia fundamental. O igualitarismo do partido tem "falad o " aos socia-
litiiis, que constituem os trabalhadores mais ativos, e, talvez de modo mais
iBi.idual, aos pais da classe trabalhadora. A retenção desse igualitarismo
imn muito a ver com a necessidade de o partido ter uma base popular e
n im sua confiança no sindicalismo. O fabianismo trabalhista, por outro
Indo, reflete bem diretamente o compromisso estrutural e histórico do par-
iido com a reforma e a gerência de uma sociedade capitalista. Isto implica
'• garantia, através de políticas sociais e educacionais apropriadas, de uma
•iilaptação capitalista realmente progressista. A eventualidade ou a reali­
dade de estar no governo e as inevitáveis exigências de governar segundo as
nntruturas de um Estado capitalista inalterado tornaram predominante essa
parte do repertório. Dessa maneira, a ideologia social-democrática na edu­
cação é em grande parte uma expressão, não das "exigências" educacionais
d.i classe trabalhadora (ela própria uma concepção absolutamente proble­
mática), mas da posição particular do Partido Trabalhista na sociedade e
rui política britânicas.

Crítica I: os elementos são contraditórios


E um lugar-comum da filosofia social dizer-se que duas espécies de igual­
dade representam diferentes posições e apontam para conseqüências con­
traditórias. Em Equality, Tawney identificou igualdade de oportunidade
como um credo fundamentalmente burguês, nascido das lutas contra o
ancien régime, principalmente quanto a privilégios legais. Sua negação da
importância do credo quanto a necessidades mais populares é clássica e
merece ser citada:

A escravidão não se tornou tolerável só porque alguns escravos foram emancipa­


dos e por sua vez tornaram-se donos de escravos; nem, mesmo que fosse possivei
que as unidades que compõem uma sociedade fossem periodicamente remaneja-
das, que fosse indiferente o fato de que alguns deles devessem em qualquer mo­
mento ser condenados à frustração, enquanto outros recebiam um tratamento
privilegiado. O que importa para uma nação não é meramente a composição e as
origens de seus diferentes grupos, mas suas oportunidades e circunstâncias; são
os poderes e as vantagens que diferentes classes usufruem na prática, não os
antecedentes sociais dos variados indivfduos pelos quais, de tempos em tempos,
aqueles poderes e vantagens possam ser adquiridos. Até que tais poderes e vanta­
gens tenham sido de fato igualados, não apenas na forma, pela extensão da provi­
são comunal e do controle coletivo, a igualdade estabelecida pela eliminação das
restrições à propriedade e à iniciativa assemelha-se àquela produzida ao se soltar
um elefante no meio de uma multidão. Ela oferece a todos, exceto ao animal e
238 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

a seu montador, oportunidades iguais de serem esmagados. A casta é deposta,


mas a classe ocupa o trono vago. (1964, p. 111)

Como invocação de uma transição histórica, e pela segurança moral de seu


humanismo, esta passagem é soberba. Mas m uito tempo depois da publica­
ção de EquaUty em 1931 (e apesar de freqüentes recapitulações oficiais das
verdades de Tawney) a liderança do Partido Trabalhista continuou com­
binando ataques “ burgueses" contra os "privilégios" com concepções mais
socialistas que, corretamente, Tawney considerou incompatíveis com eles.
Quaisquer que sejam as falhas e os deslizes da língua, existe uma diferença
real, substancial e irredutível entre as duas concepções. A igualdade desafia
(embora inutilmente, na prática) a distribuição de "poderes" e "vantagens"
que divide as classes, ao passo que a "igualdade de oportunidade", embora
possa ser dirigida na prática á igualdade, está preocupada apenas com a
ocupação de lugares nas classes.
Politicamente, a mistura ideológica trabalhista obteve considerável ê­
xito. Fazendo-se, porém, um retrospecto, é fácil verificar que este êxito
baseou-se em condições especificamente históricas. Algumas de suas con­
tingências relevantes eram bem aparentes, reconhecidas dentro da própria
ideologia. Era abertamente parte da ideologia socíal-democrata, parte da
barganha realizada com "o povo", o fato de que uma taxa mais acelerada
de "crescimento econômico" era necessária para pagar, como se dizia,
"mais hospitais e escolas". Em outras palavras, a estratégia da expansão da
educação e da "equalização" das políticas sociais em geral dependia do
sucesso econômico, isto é, do sucesso de uma economia basicamente capi­
talista. Contudo, como já notamos, em meados da década de 60 a relação
inversa foi também considerada. A expansão e a equalização da educação
fariam uma tremenda contribuição para o êxito econômico. Corrigiriam o
"desperdício de talento" e acabariam com a "escassez de especializações".
Ao mesmo tempo, garantfriam algo que era importante em si mesmo —
uma maior justiça social. Podemos invocar, uma vez mais, as formulações
de Crosland, de 1966:

Mas há também. . . um desperdício social mais vasto. Se jamais houve um pais


que precisasse extrair o máximo de seus recursos, esse pais é a Inglaterra na
segunda metade do século XX; e o principal recurso de uma ilha superpovoada
é sua gente. Além do mais, a proporçáío de trabalhos relativamente não-especia-
lizados a serem realizados declina de ano para ano. Acreditar nestas circunstân­
cias como se houvesse uma taxa fixa de 25% de especialização máxima aos 11
anos não apenas desmente as evidências que citei: equivale a uma prodigalidade
ineficaz. (1974, p. 200)

Antes de examinarmos mais detalhadamente estes pressupostos, deve­


mos notar a importância absoluta do argumento de Crosland sobre "espe­
cialização". A idéia de que o capitalismo atual exige, de modo generalizado
I IMK AÇAOE CRISE 239

N iiiiii iipenas para suas elites, uma difusão mais ampla da “ especialização",
■ n i Ib que o sistema educacional pode provê-la, era uma convicção absolu-
U Além do mais, esta convicção mantinha aglutinados todos os principais
lll■m>tllos do repertório. Primeiro, ela proporcionava uma justificativa
iiiinlm unteobstinada e de um materialismo vulgar para as políticas de igual-
iliiln concluindo ou atenuando os processos de seleção, as escolas de en-
■imi gorai e até os EPA. Sem isto, a acusação de que tais políticas eram
iliMiirinárias" e mesmo "socialistas" era possível de ser aceita. Segundo,
■l« Miconciliava a inevitável tensão entre a característica humanista e a
iilDiilogia dos profissionais da educação — a importância de se fazer o má-
Niiiiii para o desenvolvimento pessoal de cada criança — e o mundo do tra-
imlho, posteriormente. Pois os educadores foram informados (apesar do
i|iiH lua experiência mais direta pudesse sugerir) de que sempre haveria
im iiio trabalho especializadoe interessante para seusalunos.Terceiro, já que
■I loima da relação entre escola e produção era deixada de modo extrema-
iiiiinte vago, os professores podiam conscientemente preencher os espaços
'iiiflo i com atividades relevantes e estimulantes, animados por um senti-
iimnto de sua utilidade, m uito embora os alunos pudessem parecer inexpli-
I «velmente desinteressados pela oferta. Finalmente, a combinação educa-
çéo crescimento econômico ajustava-se perf.eitamente ao tipo de aliança
i|ua a liderança trabalhista desta fase procurava formar: trabalhadores,
pimcipalmente os das tecnologias mais novas, profissionais pequeno-bur-
gueies, como os professores, e os setores mais progressistas do empresariado
■ do capital nacional.

De fato, como demonstraram os acontecimentos, a expansão educa­


cional, que é igualitária na forma e mais ou menos indiscriminada no con-
laudo, de maneira alguma é automaticamente benéfica ao capital. A recente
guinada do Trabalhismo assinala um reconhecimento disso. Agora é fácil
ciiticar a antiga opinião, mas é m uito mais d ifícil estabelecer alguma con-
i.epção alternativa desse importante conjunto de relações. O que ocorre
n io é apenas a consolidação de uma crítica á social-democracia, mas o
desenvolvimento de toda uma teoria sobre o movimento do capital no pós-
guerra e sua relação com a expansão educacional. Oferecemos aqui algumas
questões pertinentes.
Primeiro, o argumento da década de 60 baseava-se num conceito lim i­
tado, redutivo e em grande parte não examinado —"especialização". Como
observou Ted Benton (1974) numa excelente crítica à democracia social, a
década de 60 testemunhou uma exagerada ênfase quanto ao "desenvolvi­
mento técnico" e, com efeito, quanto a um determinismo tecnológico.
Assim corno o problema econômico geral foi analisado em termos da ne­
cessidade de progresso da técnica, da mesma forma as funções ocupacio-
nais foram limitadas a "especialização" ou "conhecimento técnico". Em
240 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

que pese duvidarmos de que na década de 60 a "ideologia tecnológica"


tenha sido tão difusa na educação quanto argumenta Benton (a nós pare­
ce-nos m uito mais forte na década de 70), seu efeito foi sem dúvida o de
mistificar toda a relação entre produção e escola e ocultar completamente,
nesse momento de análise, a relação entre a escola e as relações sociais de
produção. Como argumenta Benton, baseando-se em Althusser, a redução
à "especialização" negligenciou "o treinamento ideológico crucial para o
lugar que o estudante deverá ocupar na estrutura de relações de poder e
autoridade que está entrelaçada na estrutura ocupacional" (1974, p. 25).
Se quisermos pensar a relação escola-produção de modo mais complexo, é
provável que a categoria "especialização" tenha que ser abandonada por
completo em favor de categorias mais precisas: conhecimento técnico, ideo­
logia e controle. A inventividade diária de crianças "ineptas" numa sala de
aula é, afinal, uma "especialização" igual à capacidade de ler.
O que é verdade quanto ao aprendizado de uma "especialização" tam­
bém o é quanto ao seu exercício. "Especializado", "não-especializado" e
"semi-especializado" estão entre as categorias menos precisas da sociologia
industrial. São necessárias outras concepções que enfatizem a extensão do
controle dos trabalhadores ou dos capitalistas sobre o processo de trabalho
ou a extensão do divórcio entre concepção e execução de tarefas. Aplican­
do as categorias de Marx, Harry Braverman (1974) argumentou, com gran­
de vigor, que o capitalismo de pós-guerra nos Estados Unidos constatou
um processo tendencial de desespecialização, uma dependência maior do
trabalho em relação ao controle empresarial e a uma divisão rçais completa,
mesmo no lado "intele ctu al" do trabalho, entre execução e concepção. A
lógica de tal processo é sistematicamente rebaixar as exigências educacio­
nais do grosso das profissões, inclusive muitos empregos de escritório. Es­
tudos mais detalhados provavelmente revelarão um quadro bem mais com­
plexo e irregular: especializações tanto recompostas como destruídas; no
entanto, a tendência geral que Braverman descreve parece no momento
bem mais plausível do que as ortodoxias sociológicas que ele aplica.
Podemos concluir que o pressuposto de uma complementaridade não
problemática entre expansão educacional (em suas formas da década de
60) e o crescimento econômico era quase certamente incorreto. Parece ser
igualmente provável que a década de 60 foi um período de autonomia
acentuada do sistema educacional. As determinações finais decorrentes dos
movimentos do capital e das formas de luta de classes continuam por ser
examinadas. Mas está claro que elas funcionaram de modos mais completa­
mente mediados e subterrâneos do que a determinação através da necessi­
dade e de uma invocação de "especializações". No início da década de 70,
ao contrário, teve início um estafante trabalho no sentido de se retornar a
uma conformidade mais direta entre o sistema educacional e as necessida­
des de produção.
MMII A(,'A0E CRISE 241

I i i l i i a H : os objetivos não podem ser realizados


ln*l»lltnos aqui quanto ao caráter utópico da posição social-democrata,
I » III. iimimente de seu igualitarismo. Isto é melhor considerado através das
...........de "classe" que informam as estratégias equalizadoras e a retórica
|i iiiido. Sem estas concepções, a "igualdade" não pode ser pensada.
rniii a social-democracia, classe é desigualdade, principalmente de cul-
iiiin M condição social. Seu conteúdo econômico é redutível à renda ou, no
iiiiiiim n , à visão redutiva de "profissão". Mas os critérios econômicos ge-
'Mlinnnlu são limitados à esfera da circulação.
Cl.isse é, pois, um termo essencialmente distributivo. Segue-se que se
....Io tnr mais ou menos dela e que é significativo falar-se, como Crosland,
i Ib "distribuição da riqueza, poder e condição de classe" ou mesmo de
iimii iociedade mais sem classes" (1974, p. 107, grifos nossos). Segue-se
i|ii« n classe é passível de ser eliminada. De fato, em algumas versões ela
wi iliiinlve , ao toque do sociólogo, numa fragmentação de variáveis surgin-
•I" nponas em eufemismos de assistência social, como "privação", "inferio-
ihliiilu social" ou "desvantagem". Nas versões mais culturalistas, as solu-
..Hnt iiducacionais podem ser suficientes. Na principal corrente de política
■ ... . do pós-guerra, são considerados ataques combinados contra as priva-
sociais e culturais (que sempre pressupõem a inferioridade daquele
)|ii» "sofre"), a estratégia implicando a possibilidade de um êxito final ou
|Kil(i menos "uma sociedade mais sem classes". Às vezes, a "classe" é não
.i|iMnus eliminável, mas de fato arcaica e residual, uma lembrança passiva
ilo passado.
Como no caso da "igualdade", existem várias concepções, às vezes
■iiniraditórias, nesse caso. Nenhuma anatomia completa é possível. Apenas
Mdiarnos, de maneira especulativa, quatro tendências principais; as concep-
1. 1*11". sociológicas, mais técnicas, que já mencionamos; o ataque liberal ao
piivilégio (a noção de "classe" como tal, por exemplo, é empregada no de-
iiiiiii sobre a escola pública); o organicismo antiindustrial (e conseqüente-
mnnte anticlasse) da tradição cultura-e-sociedade; e, apenas visível sob
iiiilo isso, o igualitarismo superficial e relativamente espontâneo da cultura
iin classe trabalhadora, principalmente da cultura do trabalho. Todas estas
ii.idições, com exceção talvez da última, ao mesmo tempo em que reco­
nhecem que a noção de "classe" é importante, enfraquecem-na gravemen-
le, ou tornam-na efêmera. Assim, quando as "divisões" reaparecem repeti-
iliimente (mesmo depois de seu fim ter sido comemorado), as explicações
piiiecem bastante inadequadas. Na falta de algo melhor, ás vezes enfatiza-
lu características nacionais impressionantemente persistentes. Como diz
Erosland (1974, p. 44), " A sociedade britânica — lenta, rígida e marcada
pulos conflitos de classe — mostrou-se m uito mais d ifícil de ser modificada
(Io que se acreditava." Do mesmo modo, é d ifícil explicar-se, dentro do
242 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

otimismo intrínseco do quadro social-democrático, por que as políticas


compensatórias não conseguem eliminar as desigualdades que são diagnos­
ticadas. Como disse Marx a respeito dos sociais-democratas franceses de
meados do século X IX : "Nenhum partido exagera mais do que o partido
democrata os meios de que dispõe; nenhum partido tem mais ilusões tolas
quanto à situação" (1973, p. 176).
É sempre possível para os reformadores sociais pedir um outro julga­
mento. Mas é possível que na Grã-Bretanha de hoje este repertório parti­
cular esteja exaurido. Ela experimentou tudo, desde "escolas secundárias
para todos" até Áreas Prioritárias e "Ação de Pesquisa", esta última sendo
uma espécie de política agitacional comunitária atualmente deslocada, de
maneira extraordinária, para o próprio aparelho do Estado! Como sugere
a atual sorte dos Projetos para o Desenvolvimento Comunitário (Commu-
nity Development Projects), a ação de pesquisa representa o limite extre­
mo das soluções de política social — o ponto a partir do qual elas começam
a se transformar em outra coisa, tendo portanto que ser suspensas.
De fato, os socialistas britânicos têm repetidamente rejeitado ou igno­
rado algumas das categorias que realmente poderiam lançar luz sobre seus
dilemas. Tanto o socialismo de Tawney como o revisionismo de Crosland,
este últim o de modo bem explícito, foram construídos como respostas ao
(um tip o de) marxismo. Os trabalhos de Crosland estão cheios de ataques
contra os "marxistas" e contra a "Nova Esquerda". E se a classe na socie­
dade capitalista não fo r nem residual, nem passiva, nem eliminável, mas
uma fonte sempre presente de transformações? E se as classes forem in trín ­
secas à produção da própria vida material? E se elas forem sistemática e
diariamente reproduzidas como parte do funcionamento orgânico da socie­
dade simultaneamente com suas desigualdades concomitantes? E se, em
suma, a classe estiver arraigada nas relações sociais de produção, uma cate­
goria que é praticamente invisível na ideologia social-democrática? Do
ponto de vista dessa concepção da formação social, a inutilidade da p o líti­
ca social pode ser plenamente compreendida. Ela só pode atacar os sinto­
mas ocasionais, que devem reaparecer constantemente e devem servir para
ocultar o que está por baixo deles. Mais absurda ainda deve ser a tentativa
de "igualar" através da educação, que se acredita também servir para repro­
duzir relações na produção capitalista.

Crítica H l: as políticas devem fracassar


Inicialmente, como argumentamos, o compromisso do Trabalhismo para
com a expansão educacional estava afinado com as exigências da classe tra­
balhadora e, até certo ponto, com as aspirações dos pais. Posteriormente,
argumentou-se que a expansão, entre outras coisas, respondia aos interesses
e "necessidades" de pais e crianças comuns. Todavia, tem havido poucos
|l|M irA(,-A()b CRISE 243

iMilti liii, tiBíde 1945, de apoio popular maciço ao ensino geral ou a qual-
•VMi) nutro aspecto da política trabalhista. Os pais têm-se mostrado em
ll■llll Indiferentes; seus filhos têm na verdade resistido aos efeitos da polí-
iire i nrim sugerem as contraculturas na escola e a oposição ao RSLA.
lle lembrarmos o argumento apresentado no início deste ensaio, este
■liaienin paradoxo não deve nos surpreender. Nem precisamos invocar
............. noção da apatia natural dos pais pertencentes à classe trabalhado-
I I i|unnto à educação de qualquer tipo. O fato é que o Partido Trabalhista
...... .. piocurou educar as classes populares a partir daí. Mas esse estado
n ln á uma "engrenagem", como a social-democracia acredita; ele sistema-
iiiiiiin n ie transforma as exigências políticas que lhe são feitas em nome
lU i ■Iniiei subordinadas. Aquilo que se afirma ser "de d ire ito " volta sob
tn m ii Irreconhecível. A educação é o melhor exemplo desse processo.
Num lentido geral, a pressão para a extensão dos direitos sociais e para
iiiiiiiii "igualdade" tem sido o combustível para o crescimento a longo pra-
■II ilii ilitem a estatal. Mas na prática esse processo tem sido dobrado e tem
ini iihido seu conteúdo de aspectos específicos do Estado na área educacio-
>i>il ()i Bspectos-chave são a separação estrutural das escolas de outros
MiiiM. do ensino e sua tendência para monopolizar toda a noção de educa-
'.íii II profissionalização dos professores e a busca de interesses setoriais
nu aparelho; e, acima de tudo, a necessidade estrutural de os orientadores
« administradores educacionais levarem em conta os interesses do capital.
DImo decorre que, tanto na produção como na escola, uma necessidade im-
pniln pela natureza — aprender — é experimentada como algo alienígena.
>\ ni.rola torna-se, além do mais, o local das lutas de classe. As divisões
iMiiiii pais, professor e criança, antagonismos mal disfarçados, são intrínse-
I ai no próprio aparelho. Ademais, a tendência geral da política do Partido
I i.ih.ilhista em sintonia com os professores tem sido a de exaltar os "espe-
clnllitas" da região em relação aos pais e de desvalorizar o senso comum da
>ultura dos pais. A tendência social reformista na ideologia do partido con-
•ngue isso de um modo absolutamente insultuoso, m uito mal compensado
piit uma oposição romântica (Bernstein, 1973; Rosen, 1973). Ao mesmo
tampo, o progressivismo tornou o ensino cada vez mais esotérico. Desse
mndo, todo o posicionamento trabalhista quanto ao ensino, não apenas es­
vaziando o terreno da agitação, mas literalmente patrocinando novas
Intmas de opressão, abriu oportunidades maciças para um conservadorismo
demagógico, antiburocrático e anti-estatal.

VI A Crise

Nas seções anteriores oferecemos uma explicação e uma crítica dos aspec­
tos mais flagrantes da ideologia educacional da social-democracia na déca­
da de 60. Ao fazê-lo, procuramos apontar a fraqueza tèórica inerente à
244 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

perspectiva socíal-democrática e suas ramificações na política educacional.


Nesta seção queremos, conseqüentemente, abordar a natureza e a forma da
"crise" atual, à luz da análise já feita. Quando falamos de uma crise, esta­
mos nos referindo a algo mais do que as experiências individuais daqueles
que estão envolvidos na educação, aos quais aludimos na introdução, em­
bora esta dimensão subjetiva seja importante. A crise do setor educacional
está vinculada à crise geral da economia e do Estado. Mas ao mesmo tempo
que reconhecemos que a forma específica da crise educacional é determi­
nada pela crise geral, devemos insistir que a crise educacional é também
uma crise regional. Trata-se de uma crise que não é simplesmente redutível
à retração financeira ou ao colapso de um consenso, mas que deve ser exa­
minada em termos de sua própria base social e da coalizão que lhe deu
origem.

A democracia social e seus inimigos


Recentemente, os pressupostos que sustentavam o programa educacional
do Partido Trabalhista têm sido cada vez mais atacados, tanto de dentro
como de fora do partido. Nossa consciência disso foi maior durante todo
o ano passado devido à maior intensidade desta crítica, sendo que o dis­
curso ue Callaghan reconheceu formalmente uma espécie de "estação aber­
ta " quanto a questões educacionais — cujo objetivo era ampliar a mudança
de política já em andamento. Mas as opiniões de Callaghan não eram origi­
nais para os políticos trabalhistas, embora o tom empregado pelo primeiro-
ministro o fosse. Durante o ano de 1969, por exemplo, foram feitas suges­
tões de que controles mais rigorosos sobre os professores poderiam ser im i­
nentes a fim de dobrar uma força de ensino cada vez mais militante. Edward
Short, na Conferência NAS, em 1969, referiu-se à adoção, pelos professores,
de estilos de luta sindicalistas, indicando que isto poderia resultar em con-
seqüências desagradáveis para eles:

Precisamos mesmo de um livro de normas que estabeieça as minúcias de como


o professor deve trabalhar? Permitam-me garantir-lhes que dentro de poucas
semanas vocês estarSo sob considerável pressêo para introduzirem um desses
livros. . . uma vez iniciado, o processo poderá ser difícil de ser contido e im­
possível de ser revertido. (Burke, 1971, p, 49)

Posteriormente, no mesmo ano, Harold Wilson fez menção à natureza curi­


osamente exposta do trabalho dos professores e à vulnerabilidade de sua
situação — uma advertência velada de que se abdicassem dos padrões "p ro ­
fissionais" em favor de métodos tradicionais de lutas salariais, então a opi­
nião pública poderia ser facilmente mobilizada contra eles.
O discurso de Callaghan mostra até que ponto a liderança trabalhista
se afastou da abordagem "luva de pelica". Em vez dos conselhos e "persua­
são" oferecidos aos professores no final da década de 60, a opção agora é
I IMK AÇÃO E CRISE 245

iiiiia um desafio m uito mais forte. Embora esta mudança tenha realmente
iitTi i.máter político imediato, ao fazer uma iniciativa antecipatória a fim
•tw tirar a iniciativa dos conservadores, a mudança subjacente depende de
uma lérie de outros acontecimentos. Estes acontecimentos dizem respeito
M«an( lalmente ao desafio sistemático aos pressupostos do programa edu-
I «rmnal anterior — um desafio que se tem desenvolvido desde 1969.
Podemos constatar que os pressupostos que deram origem ao Relató-
iiii Nawsom, discutido anteriormente, revelaram-se insuficientes, e portan-
iM .1'. formas institucionais deles decorrentes foram atacadas. Assim, do
liiin io de vista de que as escolas são o meio para se resolver um problema, a
•iilini, o fracasso da classe trabalhadora e suas conseqüências econômicas e
i iillurais, a ênfase agora é a de acusar as escolas pelo fracasso, apesar dos
iiM ursos investidos.
Concretamente, a mudança fo i marcada por uma série de "aconteci-
iimntos" educacionais que foram identificados contra um fundo de dissen-
«Bii. Durante todo o peri'odo em que o Partido Conservador esteve no go-
umno, com as lutas trabalhistas que o caracterizaram, mas também durante
» ultima parte da década de 60, a direita acabou por identificar a educação
I umo um importante fator causai da "crise m oral" da época. O Black Pa-
t»» de 1969 pôde identificar os efeitos subversivos do igualitarismo nas
rupturas de 1968/1969, enquanto os pânicos morais inerentes do período
■m torno da questão da "juventude" serviram para reduzir a base causai ao
i|uadro institucional da educação. Nesse contexto os acontecimentos edu-
1 .11 ionais foram publicamente definidos.
As alegações de um declínio nos padrões de instrução nas escolas da
III A entre 1968 e 1971 tocaram um nervo exposto — por causa das cono-
lições emocionais da leitura como talvez a razão de ser das escolas. Desse
mudo, quando Start e Wells viram publicadas suas conclusões pela Funda-
i.lo Nacional para a Pesquisa Educacional, em 1972, Thatcher conseguiu
nxplorar a controvérsia que se seguiu ao instituir o Relatório Bullock
(1975) na questão geral da instrução primária, sua avaliação e controle.
Mnli recentemente, na esteira das conclusões de Bullock, a atenção nas
■■colas foi acentuada pelos acontecimentos em William Tyndale e pela
pficepçáo dada ao relatório de Bennett sobre métodos de ensino (1976).
() continuado fracasso das crianças provenientes da classe trabalhadora e a
■parente falta de impacto do programa compensatório validaram as acusa­
ções de que a organização interna da escola, e especificamente os profes-
lures, são os culpados.
A responsabilidade das escolas, ao facilitár o fracasso educacional em
vez do êxito, tem sido um tema central dos Black Papers desde 1969. Seu
nquacionamento do progressivismo como um método, com o anarquismo e
■ desintegração moral como conseqüências, tem se somado a uma crítica
UBtal dos padrões em declínio’ na educação superior, sendo este últim o
246 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

fenômeno reduzido à natureza da expansão pós-Robbins. No Black Paper


de 1975, marcado pelo aparecimento de Boyson como co-organizador, esta
análise recebeu uma dimensão política programática. Uma linha muito
mais populista foi esposada, e o envolvimento dos pais no trabalho das es­
colas tornou-se um princípio básico do programa. A legitimidade das posi­
ções do Black Paper já não era procurada apenas através de discussões ex­
plícitas e acadêmicas sobre questões políticas e filosóficas, mas sim através
de critérios de aprovação dos pais ao trabalho que as escolas estavam fa­
zendo. Desse modo, definições populares dos propósitos da educação e dos
métodos de ensino mais apropriados foram invocadas contra a alegada orto­
doxia do progressivismo praticado pelos professores, que não eram respon­
sáveis perante ninguém fora do âmbito da escola. O reclamo era, então, por
"prestação de contas pública".
Um aspecto da ofensiva da direita foi o ressurgimento do debãte "na-
tureza/educação", que foi fomentado nas páginas dos Black Papers por
Cyril Burt, e promovido ainda mais por Eysenck, Jensen e outros na área
educacional. Sintomaticamente, este elemento não passou a integrar o con­
servadorismo popular, embora de fato ofereça uma explicação alternativa
para o fracasso das políticas educacionais da social-democracia. Seu reapa­
recimento nos Estados Unidos deu-se precisamente nesse contexto.
Enquanto a direita política desenvolvia sua própria iniciativa ideoló­
gica, uma crítica de uma ordem diferente adquiriu livre curso na sociologia
da educação. O surgimento da "Nova Sociologia" (Young, 1971), com sua
ênfase sobre questões epistemológicas, e sua rejeição de pressupostos po­
sitivistas que sustentavam a maior parte do trabalho prévio na sociologia da
educação, desafiou a hegemonia desses pressupostos, que eram tão impor­
tantes na coalizão sociologia da educação/social-democracia. Em vez de
fornecer a justificativa "cie n tífica " e teórica para as formas específicas de
expansão adotadas, como as escolas de ensino geral, a nova sociologia ar­
gumentava que tais mudanças de orientação política não alteravam funda­
mentalmente a situação anterior. O desempenho das crianças da classe tra­
balhadora não melhorara de maneira notável, e a razão para esta falta de
êxito devia ser procurada na localização política específica do ensino. A
implicação era, portanto, a de que uma ação remediadora não podia ser
determinada por diretrizes políticas. Conseqüentemente, a continuidade
lógica entre as conclusões das pesquisas sociológicas e o desenvolvimento
geral das políticas, tão fundamental para o ímpeto da expansão social-de-
mocrática na educação, estava perdida. A própria nova sociologia não tinha
implicações políticas claras; quando m uito, ela assinalava variantes da
desescolarização.
0 surgimento posterior de críticas marxistas e neomarxistas deste po­
sicionamento, e das perspectivas social-democráticas, por sua vez, afastou
mais ainda a sociologia dos persistentes pressupostos da social-democracia.

1
I DUCAÇÃO E CRISE 247

B de qualquer articulação política imediata com o Partido Trabalhista. En­


quanto a expansão da década de 60 foi vista como oferecendo uma mu­
dança qualitativa através de uma provisão quantitativa, a evidência surgida
na década de 70 era a de que esta mudança qualitativa de fato não ocorre­
ra. Parecia inevitável a conclusão de que a "igualdade de oportunidade",
mesmo que aceita em princípio, não poderia ser assegurada mediante
.irranjos institucionais, acesso universal ou programas compensatórios.

A importância de Bullock
A desintegração da coalizão sociologia/política social pode ser concreta­
mente identificada no processo de formação da política oficial. O Relató­
rio Bullock (1975), tão sintomático da década de 70 quanto o de Newsom
o foi na década de 60, preocupou-se com as questões fundamentais do de­
senvolvimento da linguagem e com a realização educacional. Baseava-se no
velho repertório da teoria compensatória, tão importante no Relatório
Plowden. A inovação conceituai, contudo, foi substituída por um conjunto
muito mais rígido de propostas políticas para a implementação da velha
teoria. O programa sugerido de intervenção pressupunha que a cadeia
causai do fracasso na educação podia ser retraçada até o estágio pré-lingüís-
tico do desenvolvimento da criança, especificamente até o ambiente social
pré-natal do "la r". A ação remediadora apropriada, segundo se entendia,
assumia a forma de intervenção sistemática nos ambientes domésticos da
população-meta, isto é, os lares de trabalhadores manuais não-especializa-
dos nas Áreas de Prioridade Educacional. O objetivo desta intervenção era
reestruturar o ambiente lingüístico inicial das crianças que estavam "em
risco". Tal programa teria exigido-uma considerável expansão do número
de visitantes e conselheiros, e teria levado à reductio adabsurdum de uma
"educação compensatória para o feto".

A despeito do ressurgimento de explicações genéticas para a desigual­


dade, Bullock manteve seu compromisso quanto à educação compensatória,
mas ao mesmo tempo explorou as determinações educacionais contempo­
râneas de fracasso. Nesse respeito, os professores foram identificados como
a variável crucial, cuja capacidade de ensinar podia oferecer a possibilidade
de êxito a longo prazo para crianças prejudicadas por fatores ambientais. O
relatório notava que, devido à predominância de métodos de ensino pro­
gressivo e da inexperiência de muitos professores jovens, havia uma consi­
derável confusão quanto aos métodos de ensino mais eficientes. A situação
poderia ser resolvida da melhor maneira mediante o desenvolvimento de
esquemas de ensino ao nível da escola, mas o relatório também propunha
a oportunidade de uma fiscalização regular, nacional, dos padrões de rea­
lização nas escolas. O pressuposto, tão evidente nestas propostas, era o de
que a competência dos professores já não podia ser automaticamente digna
248 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

de confiança. O ensino era basicamente m uito importante para ser deixado


a cargo dos professores.
Quanto a esse últim o aspecto, o relatório é exemplar, fornecendo es­
tratégias legítimas para intervenção no lar e na escoia. É, portanto, surpre­
endente que a recepção dada ao Relatório Bullock, pela imprensa nacional
tanto quanto profissional, tenha deixado de perceber as implicações a
longo prazo de suas recomendações. O principal ponto de discussão girava
em torno da questão contenciosa de se os padrões haviam caído, ao passo
que os aspectos expansionistas das recomendações eram geralmente bem
recebidos - principalmente pelo NUT. Contudo, ficou claro, com as obser­
vações de Prentice aceitando o relatório, que no contexto da retração fi­
nanceira as principais propostas eram impraticáveis por causa dos custos
proibitivos envolvidos (100 milhões de libras, segundo o NUT). Embora a
análise do fracasso dos professores e as propostas de avaliação e fiscaliza­
ção tenham provado ser perfeitamente cabíveis numa situação em que o
controle eficiente dos gastos públicos tornou-se uma questão importante,
ao tempo da publicação aquelas questões foram transferidas para a alça­
da do Departamento de Avaliação de Desempenho (Assessment o f Per­
formance Unit) do DES, cuja significação só viria á tona posteriormente.
A crítica de Callaghan, dois anos depois, foi claramente informada pela
análise de Bullock e pelas respostas internas do DES aos "pânicos públicos"
em relação a Tyndale e outras causes célèbres.
Dando expressão concreta aos esforços dirigidos à restrição da auto­
nomia do professor, Callaghan podia invocar indiretamente Bullock para
dar legitimidade a suas propostas. Isto não significa sugerir que era este o
propósito ou a intenção dos autores do relatório, mas seu trabalho propor­
cionou os detalhes para uma campanha política. O relatório fo i apropriado
de maneira seletiva, assim como Robert Lowe apropriara o relatório da
Comissão Newcastie em apoio ao Código Revisto de 1862.

O DES e o "Grande Debate"


Já vimos, então, de que maneira a hegemonia do Partido Trabalhista, dos
professores e dos educadores ruiu na década de 70. A crise econômica der­
rubou sua primeira premissa, a de que um capitalismo em expansão prove­
ria os meios. Ao mesmo tempo, uma crítica conservadora extraordinaria­
mente bem-sucedida e (em seus próprios termos) exata forçou a liderança
trabalhista a procurar outro terreno. Tornou-se também óbvio que as solu­
ções social-democráticas haviam quase atingido seus limites necessários, ou
então implicavam, como no caso das propostas de Bullock, gastos bastan­
te desproporcionais. Na sociologia da educação, a dominância daquilo que
fora antes uma tradição "radical" foi interrompida por sociologias ainda
mais "novas" e por um marxismo revigorado, o eterno antagonista oculto
da social-democracia.
I niK AÇÃO E CRISE 249

O colapso destas ortodoxias suscitou problemas políticos agudos para


>1 iioverno trabalhista, cuja posição política geral era, de qualquer modo,
iiaiii perigosa. Que substituiría a velha hegemonia? Alguma nova inflexão
.... . que ser dada à ideologia social-democrática; alguma nova combinação
ila elementos ou alguma simplificação drástica. De modo semelhante, havia
ume necessidade de novos (ou renovados) órgãos de controle, a fim de reo-
iiantar todo o sistema para uma nova trilha. As soluções-chave eram, de
(alo, uma reafirmação do controle por parte do DES e a obra ideológica
ilii "Grande Debate" Williams-Callaghan.
Num sentido geral, os acontecimentos da década de 60 viram o D E S
Mv.umir uma posição secundária em relação aos professores, quando passou
a lomar iniciativas específicas nas escolas. Por exemplo, quando o Grupo
iln [istudos Curriculares [Curriculum Studies Group) foi estabelecido em
IU62, pelo Ministério da Educação, para examinar a questão da organiza­
ção e da reforma curriculares, as organizações dos professores opuseram-se
II iile energicamente. A principal conseqüência foi o abandono do CSG e o
i;«i .ibelecimento do Conselho das Escolas. O desenvolvimento posterior dos
lumos do CSE a partir de 1965 e a implementação dos esquemas do Mo­
do 3 (avaliado pelos professores) em 1970 foram outros indicadores para a
guinada dos controles externos para uma regulamentação a partir das esco­
las. 0 estágio final desse processo foi a admissão das propostas de exames
16-plus que, se aceitas, dariam o controle quase total dos currículos aos
professores. A resposta a estas propostas apresentou tendência a cristali­
zar as diferentes preocupações quanto à autonomia do professor, e até
que ponto os professores controlariam os programas, em oposição a serem
meramente funcionários do "quadro-negro".
No "Y e llo w Book" de 1976, preparado pelo DES sob instruções de
Callaghan, o controle do professor é a questão principal, especialmente
H dominação dos interesses dos professores no Conselho Escolar. O êxito
do Conselho Escolar no desenvolvimento dos projetos de currículos, e seu
início de reforma através de meios não-estatutários, corroeu sistematica­
mente a influência de organismos externos — o DES e as Comissões Exami­
nadoras. Iniciativas para restabelecer o controle externo foram levadas pelo
Relatório Auld a William Tyndale. Este relatório abordava precisamente o
problema da autonomia do professor, argumentando que sem linhas-mes-
tras claras o Inspetorado é ineficiente e não pode executar suas funções de
garantir "padrões apropriados" nas escolas. Estas propostas já foram acei­
tas em Londres, onde também já se registrou um considerável aumento no
tamanho da instituição do Inspetorado. Assim, o papel do DES e do Ins­
petorado tem sido sistematicamente salientado como sendo o centro da
"sanidade" e árbitro de padrões, fiscalizando os excessos dos professores.
A intervenção de Callaghan no debate foi, como mencionamos antes,
um "acontecimento" público cuidadosamente organizado. Tendo adotado
250 PROBLEMAS DA DEMOCRACIA SOCIAL

o manto populista de Boyson para a ocasião, Callaghan pôde jogar as "le ­


gitim as" preocupações dos pais contra a organização prática da escola e
sua relativa inacessibilidade a elas. As propostas para um "currículo bási­
co", uma precondição para qualquer comparação nacional de "padrões",
foram apresentadas como condições equalizadoras, servindo aos interesses
tanto dos pais como das crianças e, assim, á estratégia política e econômica
do Estado. Está claro que, ao dar início ao "Grande Debate" sobre ques­
tões educacionais, o primeiro-ministro também estava preocupado com o
cultivo mais amplo do consenso político. Contudo, nas Conferências Re­
gionais posteriormente anunciadas, a implicação inicial de que o debate
pudesse ser um exercício de democracia participante foi um tanto reinter-
pretada - apenas 200 participantes e a imprensa foram convidados. Da
mesma forma, as agendas da conferência, apresentando preocupação com
currículo, avaliação, treinamento de professores e relação entre o ensino
e a vida, abordaram questões que foram desenvolvidas como sendo do in­
teresse dos pais, mas que não precisam de interferência dos pais para serem
resolvidas.^ Está implicitamente subentendido que os "interesses" dos pais
estão representados através da organização racional, pelo Estado, da tran­
sição escola/trabalho e da correspondência das especializações adequadas
às exigências do mercado de trabalho.
As principais guinadas ideológicas presentes no "Grande Debate" são
a retenção e maior ênfase, agora em formas mais precisas, dos argumentos
educação-igual-a-crescimento; a tentativa de encobrir a grande fraqueza
quanto á participação dos pais e o desaparecimento quase total do igualita-
rismo do Partido Trabalhista. Os objetivos de Callaghan — os professores
e sua autonomia — mostraram-se incapazes de oferecer uma resposta coe­
rente, além da luta econômica e apelos à oposição para qualquer form ali­
zação do controle central do currículo. A Associação Nacional dos Mes­
tres (National Association o f Schoolmasters) chegou mesmo a aderir aos
apelos para maior prestação de contas, a fim de estabelecer a competência
profissional de seus membros, quanto mais não fosse em oposição ao ale­
gado diletantismo do membro típico do NUT. De modo semelhante, a
posição de modo geral conservadora da NAS/UWT contra os métodos pro­
gressivos, e sua hostilidade a qualquer conteúdo didático radical, facilitou
uma conveniente aliança entre as duas entidades e a nova estratégia do Par­
tido Trabalhista. Esta fraqueza na organização dos professores é exem plifi­
cada pela pronta aceitação, por parte do Conselho Escolar, da necessidade
de reformar sua própria estrutura, à luz da crítica de Callaghan.
O "Grande Debate" revelou o caráter metafórico da educação. A edu-
■cação, a experiência universal e unificadora, tornou-se o veículo por exce­
lência para a exploração de questões sociais mais amplas. A relação entre
educação e economia e a relação entre o desenvolvimento do indivíduo e
o "interesse nacional" implicam outros temas que atualmente são parte do
I DUCAÇÃO E CRISE 251

discurso político. A busca do consenso e a criação de uma nova hegemo­


nia com base num capitalismo corporativo podem ser vista através do deba­
te sobre a educação. Fundamentais a ambas são os temas da disciplina e da
subordinação do indivíduo ao interesse coletivo. O interesse coletivo é
agora definido, contudo, menos nos velhos termos trabalhistas de uma "so­
ciedade mais igual", e mais em termos da sobrevivência de uma economia
capitalista.

NOTAS
1. Reconhecemos que não fornecemos uma explicação adequada, em termos ampla­
mente marxistas, da expansão do sistema educacional ocorrida no pós-guerra. Tra­
ta-se de uma Importante lacuna, que será preenchida por um outro trabalho. Gos­
taríamos de assinalar que nosso objetivo aqui é antes de mais nada um estudo das
ideologias educacionais, não a expansão do ensino como tal. No que concerne ao
processo mais amplo, rejeitamos as explicações simplistas do tipo, por exemplo,
que reduz o fenômeno em questão aos efeitos de uma tendência unidimensional
na base econômica. Exemplo: a desespecialização.
2. A referência a Sillitoe provém da introdução ao Capítulo 4 do Relatório, cuja
abertura apresenta a seguinte citação de Saturday Night and Sunday Morning.
"Se a sua máquina estivesse funcionando bem. . . você passaria a ter sonhos fan­
tásticos pelo resto do dia. . . Você viveria num mundo compatível de imagens
passando pela sua cabeça como uma lanterna mágica, em cores lunáticas vivas e
maravilhosas." Ip. 27)
3. A participação dos pais na direção das escolas está sendo considerada, entre outras
coisas, pela Comissão Tavior, que deverá apresentar seu relatório ao Secretário de
Estado no segundo semestre de 1977. Será um pouco tarde para que os pais te­
nham voz no "Grande Debate".

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Parte in

SUBJETIVIDADE E IN D IV ID U A L ID A D E
Ideologia, Subjetividade e o Texto Literário

Steve Burniston, Chris Weedon

Introdução
Este artigo teve inicio como uma tentativa de colocar o problema da rela­
ção entre arte, literatura e ideologia. Esta tentativa relacionava-se com nos­
sos projetos, cuja preocupação era desenvolver uma explicação teórica do
texto literário. Nós estávamos cada vez mais convencidos da impossibilida­
de desse projeto no momento. Por um lado, é impossível teorizar o texto
literário isoladamente de operações teóricas m uito mais amplas. Por outro
lado, as teorias mais amplas existentes não parecem prover uma base ade­
quada para a teorização da prática artística em geral, e isto seria um pré-re­
quisito para nossa tentativa de teorizar o texto literário. O artigo tornou-se
a primeira parte de uma tentativa de explorar este dilema geral.
Na Seção 1 examinamos as abordagens marxistas á questão da arte, li­
teratura e sua relação com a ideologia. Oferecemos uma crítica das inade­
quações destas teorias em seus próprios termos. Elas são vistas como uma
conseqüência das inadequações das teorias marxistas da subjetividade. De
acordo com esta perspectiva, na segunda seção apresentamos uma expo­
sição dos conceitos-chave da teoria lacaniana da subjetividade. Trata-se de
uma explicação da questão que esposa alguns dos aspectos básicos da teoria
althusseriana, à qual Althusser se refere freqüentemente e sobre a qual ele
escreveu extensamente (Althusser, 1971, p. 189). Isso também tem impor­
tância para a teoria de Julia Kristeva sobre a arte na formação social, que
é o outro assunto principal de nossa segunda seção.
Caracterizamos a obra de Kristeva como uma tentativa de dar ao mar­
xismo uma teoria da subjetividade que, todavia, sofre de uma considerável
falta de precisão em pontos essenciais; uma imprecisão no que diz respeito
à exata natureza do próprio projeto. Achamos que esta imprecisão situa-se
em torno do problema das relações entre o marxismo de Althusser e a psi­
canálise de Lacan. Na obra de Kristeva, a reconciliação entre estes dois
discursos é apresentada como um fa it accompli. Não podemos aceitar esta
solução, e na terceira seção deste artigo procuramos esboçar a natureza e
as dimensões deste problema. Argumentamos tratar-se de nada menos que
258
SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

o problema da teoria da formação social, uma vez que somente tal teoria
pode nos dar uma explicação teórica da relação entre as obras de Althusser
e Lacan. A tentativa de desenvolver uma teoria da ideologia e sua relação
com a prática artística e com o te xto jite rá rio depende, em nossa opinião,
de uma solução para este problema. ' '
Essas questões são exploradas m uito mais extensamente numa versão
anterior da Seção 3, que será publicada pelo Centro, intitulada “ Marxism,
Psychoanalysis and the Theory o f the Social Form ation". ’

Seção 1: abordagens marxistas ao problema

A natureza problemática da relação entre arte, literatura e ideologia é fun­


damental para qualquer tentativa de teorizar a função da arte e da litera­
tura na formaçao social. Até agora, as maneiras pelas quais a estética mar­
xista abordou o problema têm, todas elas, dependido da condição inicial
conferida a ideologia. Esta tem sido considerada de várias maneiras como
uma forma de falsa consciência, imposta ao indivíduo de cima pela classe
dominante, como conseqüência de uma visão limitada do todo, resultante
da situaçao de classe do indivíduo como um sujeito na formação social e
-levado ao extremo limite atual - como o resultado da natureza ideológi­
ca do sujeito per se, que ganha substância mediante sua inserção nas prá­
ticas ideologicas significantes, que formam a substância da experiência vi­
vida nos aparelhos ideológicos do Estado.
explicitamente economicistas da teoria estéti­
ca, as de Plekhanov, Mehring e até certo ponto Trotsky, nas quais a arte é
vista como um epifenômeno automaticamente produzido do movimento
historico economicamente determinado, os teóricos marxistas têm pro­
curado distinguir arte e literatura da ideologia como tal e atribuir-lhes
algum tipo de função mais ou menos efetiva nas lutas de classe Esta
perspectiva exigiu o reconhecimento de uma condição efetiva para as lutas
de classe ideológ/cas, o que pode ser constatado nos escritos de Lênin já
em 1905, mas exige também uma teorização adequada da relação entre os
níveis ideológico, político e econômico,o que para nós ainda deve ser feito,
Fundamental para a questão da natureza das lutas de classe ideológicas
é a condição do sujeito na prática significante. Por "su jeito " entenda-se
o "ego" ou "e u " tal como situado na linguagem, ou prática significante em
geral, que se refere a práticas na formação social, na medida em que pos­
sam ser analisadas em termos das condições psíquicas desta formação Este
aspecto não pode ser explicado detalhadamente aqui, mas será novamente
levantado na Seção 3. De modo geral, o sujeito assume uma de duas formas-
ou a do sujeito constitutivo, criando a história sob determinadas condições
históricas, como teorizado por Marx em A Ideologia Alem ã e depois por
Lukács em História e Consciência de Classe e em suas obras estéticas ou
o sujeito como agente ou portador de processos sócio-econômicos, como
260 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

que esta teorização fundamenta-se na noção de formação social como uma


totalidade expressiva, como uma significação, isto é, comunicação por
meio de signos, sejam lingüi'sticos ou de outra natureza, ela é reduzida a
um processo de expressão, em que o signo é a unidade não-problemática
de referência, significante (imagem gráfica ou sonora) e significado (con­
ceito). A teorização adotou uma nova abordagem do problema em termos
da relação entre ciência, ideologia e arte, ligada a um modelo da formação
social que procura atribuir uma autonomia relativa à arte e à literatura
(embora isto seja em si mesmo profílemático) para despojar de modo
mais completo a estética marxista desses aspectos idealistas. Esta aborda-
p m , claro, fundamenta-se na teorização de Althusser sobre a ciência e a
ideologia, que no caso da estética foi mais amplamente desenvolvida por
Pierre Macherey.

A ideologia na teoria estética de Macherey

Macherey adota a teorização da ideologia de Althusser como ponto de par­


tida, uma teoria na qual o papel da ideologia é dissipar as aparentes contra­
dições da experiência vivida ao oferecer uma falsa, mas aparentemente
adequada, resolução para um debate real. Uma ideologia é sempre um sis­
tema fechado, contido em seus próprios limites, que pressupõe sua existên­
cia e que ele próprio não pode reconhecer. Para continuar dentro destes
limites, um sistema ideológico deve manter-se calado em relação a questões
que ultrapassem seus limites, e para fazer sentido quanto a uma ideologia,
no contexto mais amplo da formação social, é necessário sair dele e dar
forma ar« que não consegue expressar. Uma vez que qualquer formação
social contém simultaneamente várias ideologias conflitantes, à parte aque­
la única que pode ser reconhecida como sendo a dominante, ideologias
conflitantes que têm sua base em vários substratos, grupos e frações dentro
da sociedade, e uma vez que estas várias correntes ideológicas são, segundo
Althusser, cor sideradas em seus efeitos nas práticas sociais, a interrogação
de um sistema ideológico do ponto de vista de um outro, apesar de não
conduzir ao conhecimento verdadeiro (que só a ciência pode dar), pode
estabelecer as limitações da ideologia em questão. Assim, a condição de
"verdade" dada á ideologia por indivíduos cuja experiência é estruturada
por eles nos termos dessa "verdade" pode ser enfraquecida. Althusser e
Macherey sugerem que arte e literatura oferecem um meio único para a
exposição da natureza ideológica (no sentido de ser incompleta e inverídica)
da interpretação da experiência vivida dada aos indivíduos pelos sistemas
ideológicos nos quais estão inseridos como sujeitos. Desse modo, Althusser
escreve:
a peculiaridade da arte é "fazer-nos ver" fnoi/s donner i voir), "fazer-nos perce­
ber", "fazer-nos sentir" algo que faz alusão à realidade. . . O que a arte nos faz
IDEOLOGIA E SUBJETIVIDADE 261

ver e, portanto, nos dá sob a forma de "ver", "perceber", "se ntir" (que nSo é a
forma de conhecer), é a ideologia na qual se banha, da qual se desvencilha como
arte, e á qual alude. . . quando falamos de ideologia, devemos saber que a ideo­
logia infiltra-se em toda atividade humana, que ela é idêntica à experiência vivida
da própria existência humana,- eis por que a forma pela qual ‘somos levados
a ver" a ideologia nos grandes romances tem como conteúdo a experiência i-
vida" de indivfduos. (1971, p. 204)

Maclierey toma como seu objeto a produção literária, em oposição à


produção artfstica em geral. De maneira mais específica, ele se concentra
na crítica literária, à qual procura dar algum tipo de fundamento c ie n tífi­
co, no sentido althusseriano de prática científica. Macherey situa a teoria
estética firmemente no reino da atividade teórica geral, sugerindo que ela
está intimamente vinculada à teoria política, citando Lenin e a obra deste
sobre Trotsky em relação à situação política da Rússia em 1905 como
exemplo da interligação das duas formas de teoria (Macherey, 1966, p.
126). Todavia, a precondição para se estabelecer a relação entre estética
literária e outras práticas teóricas é uma compreensão da relação entre rea­
lidade literária e histórica, que implica uma teorização de como funciona
a ideologia na literatura.
A teoria de Macherey, como toda estética marxista, pressupõe uma rela­
ção necessária de algum tipo entre o texto e o período histórico. O prim ei­
ro problema de análise, que Macherey convenientemente sugere não per­
tencer à estética ou à crítica literária, é construir este período histórico,
querendo com isto demonstrar sua unidade histórica e suas tendências con­
vergentes e dominantes. O período a que se relaciona um texto literário
não corresponde necessariamente à vida criativa do autor. O vínculo com a
história não pode ser reduzido ao espontâneo ou ao simultâneo. Pode mes­
mo haver uma defasagem de tempo entre a obra e seu período, o autor
pode ligar-se a tendências secundárias de sua época, ou a tendências rema­
nescentes do passado. A obra, contudo, de fato extrai aspectos característi­
cos de seu período e caracteriza-o ao evocar as contradições que lhe são
específicas. Todavia, já que a relação não é de simples reflexo, ou a expres­
são de uma totalidade expressiva, a coerência do período histórico e a do
texto literário devem sempre ser distinguidas.
Enquanto o período histórico produz uma série de ideologias determi­
nadas por relações globais de forças, a obra literária, escrita a partir de
uma perspectiva de classe específica, mas não redutível a ela, recorre a
uma ou duas correntes ideológicas ás quais procura dar condição de ver­
dade. Assim, o quadro transmitido por uma obra literária depende da pers­
pectiva de classe particular do autor, sendo isto inadequado em si mesmo,
não gerando conhecimento. Para obter conhecimento, seria necessário
ater-se a todas as correntes ideológicas ao mesmo tempo, a partir de uma
posição transcendente além dos limites da experiência vivida, experimenta­
da subjetivamente, uma posição impossível para a qual os únicos substitu-
SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

tos temporais e que oferecem conhecimento são as práticas científicas.


Assim, a literatura não fornece uma análise histórica completa, mas um
"p on to de vista", que é parcial mas não falso a pr/or/.
A função do autor é dar vida ás contradições inerentes à estrutura his­
tórica ao contar a história delas. É o elemento ficcional que dá à obra seu
valor literário, que não é medido em termos de sua perspectiva política ser
reacionária ou progressista, mas em termos de até que ponto ela é não-redu-
tive! a esta posição ideológica. Assim, no caso de Tolstoi, o autor apreende
as características de sua época com uma certa tendenciosidade e com tod^s
as inadequações inerentes ao seu ponto de vista. Tolstoi, apesar de ter tia^-
cido conde, membro da aristocracia feudal, aliou-se a perspectiva de classe
dos camponeses. Ele descreveu sua época como um tempo de sublevações,
mas mostrou-se incapaz de identificar a ordem que surgia e que assumia o
comando da situação. Ele era sensível ás conseqüências do desenvolvimen­
to do capitalismo, que questionava a existência tanto do conde como do
camponês, mas era incapaz de caracterizar o poder da burguesia ou de
compreender a formação da ordem burguesa. Daí decorre que o desenvol­
vimento das forças materiais fica completamente obscuro em sua obra. A
fragmentação que determina a série de relações parciais evocadas pela obra
de Tolstoi dá ensejo a uma ideologia particular através da qual o autor pro­
cura reintegrar a narrativa. Assim, a ideologia ou doutrina da obra literária
é inicialmente situada na perspectiva de classe do autor, mas não é criação
dele, ela é antes constituída independentemente dele por uma classe parti­
cular ou fração de classe, com a qual o romancista se alinha. Esta perspecti­
va de classe media sua relação com a realidade histórica de sua época e
forma o primeiro termo no processo de mediação que tem lugar entre a
realidade histórica e a literatura, o outro termo sendo o "estilo literário".
Para bem da clareza, notemos mais uma vez que "realidade histórica",
como empregada por Macherey, refere-se ao período tal como construído
por uma ciência teórica da história. A qualidade que define a "grande arte"
é que esta não é igual nem pode ser reduzida ao sistema ideológico que
contém, ao passo que a arte medíocre ou de má qualidade é meramente
ideológica e, portanto, atinge o leitor como déjà-vu, monótona e sem inte­
resse. Macherey escreve que:
O que produz o texto literário é fundamentalmente a operaçáo de uma ou mais
contradições ideológicas até o ponto em que estas contradições nâío podem ser
reíolvidas no âmbito da ideologia, é em última análise a operaçâio, no âmbito
da ideologia, de posições de classe contraditórias e intrinsecamente irreconci-
liáveis. (Macherey, Littérature, 14, p. 138)

O papel do escritor como indivíduo na produção deste efeito não é deter­


minante nem neutro;
Ele é um agente material, situado numa posição intermediária precisa dentro das
contradições que por definição nãó é capaz de controlar, e que são resultantes
IDEOLOGIA E SUBJETIVIDADE 263

de uma especifica divisão social do trabalho característica da superestrutura


ideológica da sociedade burguesa que ele individualiza, (ibid., p. 44)

As posições de classe írreconcílíáveis presentes nas contradições Ideológicas


só podem ser formuladas no texto literário. Assim, elas são percebidas nu­
ma forma que representa simultaneamente sua solução imaginária, ou antes
que as deslocam ao substituir contradições imaginárias e solucionáveis na
ideologia da religião, da política, da ética, da estética e da psicologia, trans­
postas para um plano fictício. A solução imaginária de contradições imagi­
nárias na literatura é o que é chamado de "estilo literário" por Macherey,
que nesse particular recorre á obra de René Balibar,^ sendo a linguagem l i ­
terária a chave desse processo. Citando Macherey e Balibar:

(A dialética do estilo literário) é capaz de produzir o efeito, a ilusão da reconcilia­


ção imaginária de termos irreconciliáveis, ao deslocar todo o conjunto de con­
tradições ideológicas para o terreno de uma delas, ou de um de seus aspectos, o
do con flito lingüfstico. Ubid., p. 44)

Assim, todas as formas da prática significante, que compõem a tessitura da


experiência vivida, são reformuladas exclusivamente em termos de lingua­
gem, e isto exige uma completa teorização da natureza da linguagem.
Macherey trata a linguagem, que ele entende como sendo linguagem
no sentido do discurso, do lado de fora, por assim dizer, tomando-a como
um sistema significante socialmente dado. Ele a trata como um sistema no
qual os indivíduos são inseridos como sujeitos, simplesmente por serem
observados como tal através da estrutura da língua utilizada. Esta estrutura
é sempre baseada numa relação sujeito-objeto transcendente mais ideológi­
ca do que "verdadeira". Macherey não toca no problema de como os in­
divíduos conseguem chegar a uma situação de responderem á linguagem
dessa maneira. Todavia, uma vez estabelecida esta função da linguagem em
relação ao indivíduo, quando não, desnecessário dizer, teoricamente funda­
mentada, Macherey volta sua atenção para a natureza social da linguagem,
no sentido de sua relação com as lutas de classe. Ele enfatiza a natureza
essencialmente não-neutra da linguagem, sempre entendida aqui no sentido
de discurso, não da noção de Saussure de um sistema de signos lingüísticos,
cada um composto de um significante (imagem sonora) e de um significado
(conceito). Ele sugere, como ponto de partida, que a literatura se desenvol­
ve numa língua "nacional" de uma determinada maneira. Por língua "na­
cional" ou "com um " ele quer dizer inglês, ou francês, etc., entendido
como uma língua que se desenvolveu (como, exatamente, não é especifi­
cado) como consequência histórica de lutas de classe específicas e vinculada
à democracia e soberania burguesas. Macherey sugere que o pressuposto de
que existe uma língua comum unificada é de fato empírico e ideológico, já
que a língua consiste de contradições entre diferentes práticas dentro
dela. A essa altura Macherey recorre à identificação que faz Althusser do
264 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

sistema educacional como sendo o aparelho ideológico-chave do Estado no


capitalismo avançado, comprometido com a reprodução das relações de
produção (Althusser, 1971, p. 39). Macherey indica que, enquanto uma
política de educação-para todos, que inclui a alfabetização, sugere que a
língua nacional é comum a todos, sua verdadeira natureza divisória é ins­
titucionalizada na estrutura hierárquica da educação, que admite diferentes
grupos sociais para diferentes níveis de alfabetização. A língua, que forma
a base da prática literária, nunca é, pois, inocente. As práticas lingülsticas,
por causa de seu caráter contraditório, não podem ser utilizadas como sim­
ples matérias-primas;

todo uso é uma intervençáfo, uma escolha de posições, uma tomada de posíçâío
dentro da contradição, e desse modo é uma contribuição ativa para seu desen­
volvimento. iibid., p. 39)

A resolução de contradições reais no plano imaginário da linguagem


funciona mediante uma identificação entre sujeitos ideológicos///t^ü/st/ca-
mente constituídos. Esse mecanismo, que na obra de Macherey é afirmado
e não teorizado, assenta-se precipuamente em elementos incompletos tira ­
dos da teoria psicanalltica de Lacan da constituição do sujeito no plano
simbólico, isto é, na linguagem. À parte o fato de que o reconhecimento
ideológico é reduzido a um elemento funcional da prática ideológica, todo
o fundamento e funcionamento do plano simbólico da linguagem não é
encarado como sendo um problema. A fonte imediata de Macherey nessa
teoria da literatura é a apropriação parcial de Althusser de elementos de
Lacan em sua teoria da "ideologia em geral", que segundo Althusser corro­
bora as práticas ideológicas que constituem a experiência vivida. Esta teo­
ria, sistematicamente definida no ensaio de Althusser "A Ideologia e os
Aparelhos Ideológicos do Estado" (1971), atribui uma estrutura e um fu n ­
cionamento necessários e imutáveis á ideologia em todas as formações so­
ciais. A ideologia em qualquer formação social especifica, segundo Althus­
ser, sempre existe como um aparelho em sua prática ou práticas, que por
sua vez existem nas ações materiais do sujeito.
Na literatura, as práticas dos sujeitos nos aparelhos ideológicos reais,
religião, política etc., são tranpostas para um plano fictício , no qual se faz
uma tentativa para a solução das contradições entre elas, que resultam de
diferentes interesses de classe, subclassificando-as numa perspectiva ideo­
lógica dominante. Para apropriar a ideologia do texto, é necessário que o
leitor seja transformado de um indivíduo real num sujeito ideológico. Isto
é conseguido através de um mecanismo de identificação. A literatura, suge­
re Macherey, está constantemente produzindo sujeitos em seus persona­
gens e no próprio autor em sua relação com o texto. Estes sujeitos dirigem-
se ao leitor como sujeito, conclamando-o a identificar-se com a posição
deles no texto, e assim conferem ao leitor como indivíduo uma subjetivi-
ini ( (I.OGIA E SUBJETIVIDADE 265

ilmle aparentemente real, mas que na verdade é ilusória. Este processo é o


i|iia Althusser chama de "função ideológica de reconhecimento" (1971,
P 161).

Nai palavras admiráveis de Sâio Paulo, é no logos (significando ideologia) que nós
"vivemos, nos movemos e existimos". Segue-se que para você e para mim a ca­
tegoria do sujeito é um "óbvio primordial (o óbvio é sempre primordial): é evi­
dente que você e eu somos sujeitos (livres, éticos etc. . .1 Como todos os óbvios.
Inclusive os que fazem uma palavra "dar nome a uma coisa" ou "ter um signi­
ficado" (incluindo, portanto, a "transparência" óbvia da linguagem), o óbvio de
que você e eu somos sujeitos, e de que isto náío causa nenhum problema, ê um
efeito ideológico, o efeito ideológico elementar, (ibid.)

r através dessa função ideológica do reconhecimento que o texto consegue


transformar o leitor num sujeito ideológico, possibilitando-o assim tornar-
•I o portador aparentemente "liv re " da ideologia no texto. Todavia, no
I aso da grande arte ou literatura, o processo não é de modo algum simples
D uniforme. As contradições presentes na obra, que não conseguem ser re-
tolvidas dentro de sua perspectiva ideológica, deixam livre o caminho para
o equivoco ideológico da parte do leitor, caso em que ele enxergará atra­
vés da ideologia e não será capaz de identificar-se completamente, como
■ujeito, com o sujeito na obra.
Macherey sugere que a falta de unidade interior simples numa grande
obra literária pode ser registrada nas muitas interpretações às quais qual­
quer obra está aberta. Tendo em mente as várias interpretações simultanea­
mente, o centro aparentemente unificado da obra — seu significado óbvio
acaba deslocado por significados conflitantes. E nesse ponto, sugere
Macherey, que reside a verdade da obra, não refletindo as contradições
históricas como tais, mas evocando-as ao perm itir que uma delas apreenda
as relações entre as contradições e,assim, os limites extremos das ideologias
presentes no texto. Assim sendo, embora a literatura seja incapaz de trans­
m itir conhecimento no sentido althusseriano de conhecimento científico,
ela proporciona uma percepção particularmente aguda da experiência vivi­
da, o que não é a mesma coisa que ideologia, embora seja por esta estrutu­
rada. Assim, o processo literário implica o solapamento da resposta imedia­
ta, óbvia, ideologicamente determinada, que a perspectiva ideológica do
texto oferece ao leitor.
Assim sendo, o que emerge é uma teoria da literatura como se fosse
uma evocação, em forma ficti'cia, do tipo de contradições estruturais que
estão presentes na realidade histórica. A principal perspectiva ideológica
presente na obra procura resolver estas contradições ao sugerir que elas
são parte da própria natureza das coisas, de uma ordem eterna na qual cada
coisa está no seu lugar. O conteúdo e a estrutura efetivos da obra, tal como
vistos em relação às respostas do leitor, sugerem que tal não ocorre. Um
reconhecimento, por parte do leitor, das contradições inerentes à obra
266 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

não exige a noção idealista de "sensibilidade de espTrito", mas decorre da


técnica do que Althusser chama de "interpretação sintomática", isto é, in­
terpretação de ausências.Este processo, contudo, é conseguido de manei­
ra mais completa e eficiente pelo crítico literário materialista, que empre­
ende um trabalho científico de transformação de seu objeto de estudo, o
texto literário, ao examinar imediatamente todas as respostas possíveis a
ele, à luz de uma compreensão do período ao qual o texto diz respeito.

A teoria de Macherey e abordagens marxistas


alternativas:Lukács, Goldmann e Adorno
É evidente que na estética literária de Macherey o texto precisa, em última
análise, estar relacionado com uma perspectiva ideológica particular que
é a de uma classe ou fração de classe. Isto está em conflito com outras
ideologias concretizadas nas práticas dos personagens e contrastadas com
a maneira pela qual o autor está querendo fazer o leitor vê-las. Contudo,
a noção segundo a qual a literatura está comprometida com uma aliança de
classe específica por parte do autor é antiga na estética marxista. Tentare­
mos agora ampliar a discussão até uma consideração de outras teorias mar­
xistas a fim de oferecermos crítica e comparação mútuas, que deverão, em
alguns aspectos, levar-nos além da posição teórica alcançada por Macherey.
Na teoria de Lukács e Goldmann, o texto literário é escrito a partir de
uma perspectiva de classe ou "visão do m undo", que é o resultado da alian­
ça de classe do autor. Todavia, a teorização de Lukács e Goldmann sobre a
relação do texto com esta perspectiva de classe é essencialmente diferente
da de Macherey. Tomando um modelo base/superestrutura da formação
social, e dando-lhe a forma particular de uma totalidade expressiva, Lukács
teorizou a literatura como a expressão estruturada de uma visão do mundo
unificada do ponto de vista de uma classe. Dado que a literatura em
questão é "grande", esta visão do mundo seria necessariamente a da classe
ascendente historicamente específica, e portanto poderia transcender a
ideologia. 0 modo de refletir a formação social nesse caso não é uma
simples imagem especular, mas antes a expressão dos aspectos típicos de
uma posição de classe particular e de uma visão do mundo à qual, ao con­
trário do que sustenta Macherey, a obra é em última instância redutível.
Assim, para Lukács, se uma obra literária não é totalizante, isto é, se não
corresponde a uma perspectiva de classe historicamente específica, então
ela cai no terreno da ideologia, da qual de outro modo estaria desligada.
Assim sendo, a literatura que descreve a sociedade como destrutiva e pu­
ramente negativa (Kafka é um exemplo típico) e que não contém em si
elementos para uma resolução potencial, é considerada por Lukács como
um reflexo meramente descritivo de arte parcial ou "m á ". Este ponto
relaciona-se com a teoria de Lukács do sujeito de classe como criador da
história sob determinadas condições, já que na descrição, em oposição à
Ilil iil UUA I SUBJETIVIDADE 267

..«Hiiiwi, II Indivíduo aparece como um objeto reificado, e não como um


ila lucledade, e a sociedade não aparece como o produto e a fonte
In «l ii ' l'm ii I ukács e Goldmann, é a qualidade totalizante da grande obra
lü «iiii i|iia II tira do terreno da ideoiogia, já que sua tipicidade faz com
i|iii aU ia|a verossímil independentemente do contexto imediato da obra
iMii -I I iifl possui uma unidade que não é a experiência vivida aparente e
•«•iiiliniia. mas uma expressão microcósmica da unidade essencial da tota-
i i i I h i Ib inrial,
I' iiiA i:liiro que existe aqui uma teorização radicaimente diferente da de
Mmliniay n Althusser, diretamente reiacionada às diferentes teorizações
'iMiiai iliiii autores sobre a formação social. Na totalidade expressiva, os
4 iiiii aipiictos da formação social são, como diz Goldmann, "estrutural-
...MMia luimólogos" (Goldmann, 1964), o fator unificador sendo a “ visão
■li. mundo" ou consciência potencial de uma classe social da qual somente
I ai Ia pude ser a expressão plena. Nesse ponto a ideologia é comparada a
um laflaxo — ou percepção — parcial da realidade, em termos de sua estru-
........ .iilipicente, e não como um quebra-cabeça incompleto, e não é uma
I'. >111111:111 luncionalmente necessária da formação social, como em Althus-
....... Mm herey. Em sua forma mais crua, como na obra de Lukács sobre o
inaliiim i crítico e socialista burguês (Lukács, 1963) ou de Goldmann sobre
. niii/viNiu roman (Goldmann, 1964), esta teoria da arte como expressão
ila iniiilldade social torna-se presa fácil do reflexionismo econômico, no
ijiial II luperestrutura artística e literária é vista como um reflexo da infra-
" iiiid iir ii econômica. No caso de Lukács, isto tem graves conseqüências
i>mn a iiu8 teoria da forma.
Ouiinio à formação social, Macherey está muito mais próxim o de
ddiiino, que a identifica como uma totalidade essencialmente contraditó-
IIII, 1'in oposição à expressiva. Adorno destaca que, a menos que um con-
i i>iiii de totalidade incorpore o que ela não é, isto é, aquilo contra o que é
diilinida, então este conceito só pode ser ideológico. Por exemplo (e isto
i' iiin vínculo crucial com Macherey), os valores de uma classe particular
I iiiiiiilBrados separadamente só podem ser ideológicos. Já que Adorno sus-
iiini.i que a arte não pode ser redutível á ideologia, segue-se que não pode
... iiiorizada como sendo a expressão de uma visão do mundo de uma clas-
III particular. Ao contrário. Adorno vê a grande arte como dando forma à
■lintradição histórica, como o faz Macherey. Contudo, Adorno coloca sua
•idiise firmemente na forma, o que Macherey não considera, às expensas
ilii conteúdo ideológico. No que concerne à forma. Adorno aceita um
modelo simples e refletivo da relação entre a arte e o nível econômico,
tiim a mediação lukácsiana da classe social economicamente constituída
1: historicamente ascendente, ao passo que Macherey, em sua teorização,
nllü vai além de especificar a relativa autonomia dos níveis ideológico,
artístico e literário.
268 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

Recorrendo ao conceito lukácsiano de reificação como o traço carac­


terístico da sociedade capitalista avançada. Adorno tenta desenvolver as
implicações da extensão da divisão do trabalho à vida privada, que a levou
a servir à produção de mercadorias. Adorno considera que este processo
prejudicou qualquer teoria de um sujeito unificado ou orgânico, que infor­
mou tanto a estética lukácsiana quanto a burguesa e idealista. Nesse con­
texto, a arte só pode servir de desafio à sociedade reificada, um desafio d i­
rigido ao sujeito individual cuja segurança, em sua existência manipulada,
este desafio deve solapar. A forma que assume este desafio é determinada
pela recusa da arte em representar qualquer outra coisa, isto é, espelhar
a realidade de modo coerente como sendo a expressão de uma totalidade
social unificada. Se fosse esta sua função, a arte se tornaria presa do con­
sumo de mercadorias. Em vez disso, as contradições tornaram-se a dialética
da forma estética. Assim, por exemplo, a fragmentação da subjetividade in­
dividual através da reificação no capitalismo avançado é assinalada pelas
formas musicais de Schoenberg e de Stravinsky, que substituem formas ge­
radas por concepções do indivíduo burguês unificado, como expressas, por
exemplo, no concerto para viôlino de Beethoven! Assim, no sistema de
Ad rno, a arte oferece uma crítica radical do status quo porque, ao dar
forma às contradições, ela desafia a falsa harmonia, baseada numa ociusão
ideológica que Adorno identifica como sendo o fundamento da dominação
na sociedade.

Forma e prática: Lukács, Brecht e Benjamin


A questão da forma, de tanta importância para Adorno, é fundamental
para a teoria estética. Como vimos, Macherey classifica o problema sob o
conceito de -estilo literário, que quando é bem-sucedido produz a grande
arte. Até certo ponto, trata-se de um resultado do objeto de estudo de Ma­
cherey, já que antes de mais nada ele está querendo apresentar uma teoria
científica para a prática da crítica literária científica. Resulta ainda de sua
tentativa de romper de modo definitivo com a estética lukácsiana, segundo
a qual a obra de arte é de fato criada pelo escritor como sujeito de classe.
Todavia, o tratamento que Macherey dá ao papel do escritor como um
agente material (Macherey, 1966, p. 134), que não é determinante nem
neutro, ao mesmo tempo em que faz dele um agente relativamente autôno­
mo, livre da determinação direta pelo econômico segundo Plekhanov, não
nos diz muito sobre a natureza específica da prática literária e o que a de­
termina além da aliança ideológica de classe do autor. Além do mais, deixa
de considerar completamente a questão da arte revolucionária engajada
como uma forma de prática na luta de classe ideológica, que reintroduz
a noção de prática subjetiva mesmo que esta seja ideológica, uma perspec­
tiva que se torna fundamental na estética de Brecht e Benjamin.
im ( »l OCIA E SUBJETIVIDADE 269

Lukács tentou abordar amplamente a questão da forma e da eficácia


....... In e da literatura. Todavia, por causa de sua insistência quanto à visão
ilii mundo da classe historicamente ascendente como o único fundamento
iMiiiiivnI da grande arte, ele foi obrigado a rejeitar toda arte que não pudes-
iii uir classificada dessa maneira. Recorrendo ao que identificava como o
iMiiiiu máximo da literatura burguesa, Lukács tentou extrair e universali-
....... forma historicamente específica do realismo do século X IX e rejeitou
h iiliii as outras formas de arte contemporâneas e pós-realistas como sendo
modurnistas". Assim, ele estabilizou os elementos formais da obra de
.iiiii, tomando como variável a perspectiva de cla*sse a partir da qual um
■ ■rmince era escrito. Este formalismo estava diretamente vinculado à sua
>>•'.'1 i.i da função ideológica e da eficácia da arte.
O efeito ideológico da grande arte e literatura na estética de Lukács
liiiuiiu se na noção de "catarse", uma transformação da consciência do
l■■llm que resolvería as contradições entre o aparecimento cotidiano da
iKiilidade e as forças que a moldam, e que assim emanciparia o indivíduo
diii. roerções deterministas que lhe são impostas pela ideologia dominante.
I'iii.i tal, a obra literária precisa ser necessariamente totalizante, isto é, pre-
• incorporar os aspectos típicos de uma posição de classe particular e
iimii visão do mundo de classe. Isto é conseguido através dos elementos
Inimais de um herói/heroína e de uma narrativa. Assim sendo, no romance
•< herói/heroína individual deve possuir os traços de sua posição de classe
■limo o sujeito de classe típico da história, devendo ser colocado numa si-
iiuçJo que contenha em si evidência das forças progressistas que moldam a
•'iciodade que a sorte do herói/heroína revela. A catarse acontece, sugere
I ukács, através da identificação do leitor com o herói/heroína típico.
A'iiim, o que o escritor deve fazer é, com efeito, encontrar o ponto de
npoio em meio às contradições sociais e analisá-las.
Brecht rejeitava sumariamente a noção lukácsiana da arte como sendo
uma totalidade catártica, expressiva, e o formalismo da estética de Lukács
(|un o levou a rejeitar todos os desenvolvimentos modernos das técnicas
■iilísticas. Ele também rejeitava a afirmação de que somente a empatia,
mnsmo no caso de um herói típico, podia proporcionar um entendimento
ila verdadeira natureza das relações sociais. Em vez disso, adotava uma prá-
llcii dialética na qual a empatia com os personagens de uma peça, isto é,
H aquiescência im plícita no entendimento de sua própria situação, é inter-
mmpida em pleno andamento por técnicas artísticas que quebram o fluxo
"natural" de percepção consciente e a questionam, permitindo que o pú­
blico veja a velha e óbvia realidade familiar sob uma nova luz. Isto impli-
( ou uma revolução nas técnicas artísticas, um rompimento com os gêneros
( lássicos e a introdução de novas formas.
A preocupação de Brecht era revelar contradições específicas histori-
I .irnente situadas, através do conteúdo cuidadosamente estruturado em sua
270 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

apresentação formal a fim de revelar contradições cujo significado se to r­


naria claro e poderia ser facilmente captado pelo público. Assim, nas peças
de Brecht o próprio entendimento dos personagens sobre sua situação é
questionado e o público é obrigado a ultrapassar este nível de consciência e
penetrar nas engrenagens da ideologia. Para Brecht, a arte era essencialmen­
te prática não apenas para os autores e/ou atores, mas também para o pú­
blico ou leitor. Ele rompeu definitivamente com as noções tradicionais de
"grande" obra de arte, em favor da autoria coletiva e da constante revisão
de peças, inclusive de obras tradicionais, à luz da discussão com o público.
Assim, a arte deveria ser ao mesmo tempo uma experiência agradável e um
ataque político premeditado contra a racionalização, aceita como natural,
da experiência vivida proporcionada pela ideologia dominante.
A radical rejeição de Brecht da categoria de "grande" arte e da alta
tradição cultural como um objeto de deleite reverenciai, e não de adapta­
ção à atual luta política, foi complementada pela teoria de Benjamin, sobre
o novo status e, consequentemente, o novo potencial da arte apresentada
em "The Work of A rt in the Age o f Mechanical Reproduction" ("A Obra
de Arte na Era da Reprodução Mecânica") (Benjamin, 1973). Benjamin
sustentou que a "grande arte, a arte autêntica", antes da era da reprodução
mecânica, localizava-se no culto e no ritual, como criação única de um só
indivíduo, cuja própria singularidade dava-lhe uma certa "aura". Nessa
época a reprodução era tida na conta de simples falsificação e, assim, a re­
ceptividade e eficácia da obra de arte era severamente limitada, acentuando
seu caráter elitista, de culto. Com o advento da reprodução mecânica, con­
tudo, as reproduções, já não mais consideradas falsificações, tornaram-se
amplamente acessíveis, indo ao encontro do público como, por exemplo,
o disco, que leva a sala de concertos para a sala de estar. Assim, a aparência
de autonomia da obra de arte foi debilitada e teve que ser firmemente relo-
calizada nas relações de produção de sua época e, de modo mais específico,
nas relações da produção literária. A conseqüência desse processo foi a
aberta politização da arte. Para citar Benjamin:

No momento em que o critério de autenticidade deixa de ser aplicável á produ­


ção artística, a função total da arte sofre uma reversão. Em vez de basear-se no
ritual, ela começa a basear-se numa outra prática, a política. (Benjamin, 1971,
p. 226)

Assim, Benjamin argumenta que a realização do progresso técnico na litera­


tura acaba modificando a função que ela pode exercer como arte. Isto
implica uma modificação nos meios intelectuais de produção e na condição
do escritor como produtor. O caráter cultuai do artista como um gênio
criador e do artefato como sua criação singular é substituído pelo artista
como produtor num contexto social e ideológico específico, que utiliza
os instrumentos de linguagem e estilo específicos àquele período a fim de
IIil 1)1 OGIA E SUBJETIVIDADE 271

|iiii(lu 2 Ír algo cuja medida de grandeza em relação a todos os demais pro-


iliiiD i culturais pode ser localizada na habilidade e na originalidade com as
iliin ii o(s) autor(es) manipula(m) a linguagem e o estilo para solapar con-
' apçAes do mundo já aceitas.

fSiilções e problemas na tradição marxista


lliiic h t e Benjamin viam a prática artística como uma forma direta de prá-
ili <1 política, na qual um esforço consciente, coletivo, é feito para criar o
•litllo ideológico de transformar uma interpretação dada da experiência vi-
xhl.i Para que isto seja possível, é preciso uma participação direta do pú-
lillco, na qual os espectadores são levados a um ponto em que as coisas po-
iliim e devem logicamente ser vistas de maneira diferente. Contrastando
I iim Brecht, Macherey e Adorno não véem a arte como uma prática políti-
I « i:onsciente. Eles sugerem que o processo subversivo de solapar ideologi-
■iimunte determinadas interpretações do mundo é sempre inerente à gran-
il" literatura, independentemente das intenções do(s) autor(es) em dar
liiim a à obra numa maneira particular. Para Macherey, a chave para se en-
innilnr o processo ideológico em ação num texto é uma leitura sintomática.
« iitiilevância quanto a se a arte é especificamente comprometida com o so-
I iitliim o em oposição á religião ou qualquer outra ideologia deriva em
imtle do fato de que a teoria da literatura de Macherey abrange a tradição
liimária em geral. Isto não suscita a questão da arte engajada como parte
iln luta atual, já que isto deve necessariamente estar diretamente ligado à
«iiiiil conjuntura, e vista em termos de análise científica a arte é em si mes-
m» Ideológica. Há, todavia, um dualismo não-resolvido e problemático
■nire a literatura em geral e a literatura como parte integrante da luta de
i IflMe ideológica, um dualismo que esconde todos os problemas da arte
I iinicientemente engajada, arte e propaganda, arte de massa etc. Brecht re-
'iiilve a questão rejeitando a noção de alta tradição cultural e reivindicando
i|im a arte seja relevante para o presente.

Qualquer tentativa para aproximar uma teoria que seja antes de mais
nmia uma teoria da crítica literária científica e uma teoria da prática artís-
tli .1, o que por extensão implica uma teoria do consumo (a receptividade
iln arte e da literatura), é em si mesma problemática, já que põe em
(|ii«stão o problema da prática subjetiva, que o sistema althusseriano tenta
Iim itir. Macherey consegue o m itir a questão de como e sob que tipo de
linterminações “ o homem faz sua própria história''® ao classificar a dimen-
ido da prática significante sob um mecanismo de subjetividade ideologica­
mente determinada dado em práticas ideológicas nos aparelhos ideológi-
I iis do Estado. Assim, o nível de prática significante desaparece de vista e
II prática artística no sentido brechtiano já não se vê incluída no objeto
d« uma teoria analítica científica. Argumentaríamos, contudo, que ambos
272 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

OS aspectos da teoria, uma teoria científica de como funciona a ideologia


na arte, e uma teoria para a prática política, que poderia atribuir à arte I
e à literatura uma função na luta de classe ideológica, são necessários à es­
tática marxista. Esta dualidade da teoria só se torna possível se o nível de
prática significante estiver incluído na teoria, isto é, se houver uma teoriza-
ção da condição e do papel do sujeito e da intencionalidade subjetiva; uma
teoria daqueles que estão agindo e daqueles que sofrem a ação. Embora o
caráter fundamental desta teoria quanto à prática política seja aparente, já
que só ela pode oferecer estratégias para a ação, nós argumentaríamos que
ela é também um complemento necessário à teoria analítica de Macherey
da literatura e da ideologia, que, tal como é, só pode teorizar o papel da
linguagem e da constituição do sujeito na linguagem de maneira descritiva,
como resultado de um mecanismo cujo conteúdo é determinado pela luta
de classe.

Lukács desenvolveu sua teoria estética a partir da perspectiva da práti­


ca política. Sua teoria do sujeito e da "prática significante" (Lukács não
usa esta expressão) é simplificada pela maneira na qual seu modelo teórico
é concebido. Assim, o sujeito é o sujeito de desse, transcendente, típico,
que cria a história. A teoria do sujeito de Lukács é o fundamento explícito
desta teoria estética, que Brecht ataca com tanto vigor. Já a teoria e a téc­
nica artística de Brecht não é teoricamente fundamentada no que concerne
à condição do sujeito. Embora Brecht trabalhe com um modelo im plícito
de consciência falsa ou ideológica, contido no quadro de um sujeito fixo,
transcendente, este não é colocado num modelo da formação social como
uma totalidade expressiva, com a classe como o sujeito constituinte. Ao
contrário, o sujeito permanece não-especificado e não-teorizado. Isto deixa
sua teoria e sua técnica abertas à apropriação por uma estética baseada
numa nova teoria do sujeito e da prática significante.

Como vimos, Macherey afasta-se radicalmente do modelo lukácsiano,


substituindo o sujeito absoluto, transcendente, pelo sujeito ideológico, que
é constituído no mecanismo funcional do reconhecimento ideológico,
que é um falso reconhecimento. Para Macherey, como para Althusser, não
existe reconhecimento ideológico pelo sujeito, já que a ideologia só pode
ser transcendida pela ciência, na qual o sujeito não desempenha nenhum
papel. Assim, enquanto que para Lukács a significação é um processo não-
problemático de identificação entre o referente,o significante e o significa­
do com base no sujeito transcendente, para Macherey todo o processo de
significação torna-se ideológico, não através de um questionamento da na­
tureza da própna significação, mas através da condição ideológica conferi­
da ao sujeito. O sujeito é o resultado de um processo empírico de reconhe­
cimento, e como tal não tem função no discurso científico. Contudo, não
basta afirmar que todo reconhecimento é per se ideológico. Este axioma
mi II l O d l A E SUBJETIVIDADE 273

iimc iiii ler sustentado por uma teorização cientTfica da constituição na lin-
iiimiiaim desse sujeito, da qual o indivTduo é portador.
A linha demarcatória ciência/ideologia na teoria althusseriana, segun-
ilii II i|Udl a experiência da subjetividade do indivTduo situa-se no campo da
lll■lll(l(|ia, em resultado do processo de falso reconhecimento que torna
poi^ivnii aquelas práticas ideológicas (nos aparelhos ideológicos do Estado)
iiiiR liiim am a substância da vida cotidiana, omite o conceito geral de prá-
III .1 iignificante. A prática significante, que tem como base a divisão sujei-
iii.iilije to , deve necessariamente incluir em si o discurso científico. É atra-
ila tentativa de tornar autoconsciente o sujeito velado do discurso
I iRMiífico que se poderia começar a reteorizar a divisão ciência/ideologia e
i(ii«i»ilonar, na perspectiva da prática significante, a natureza do sujeito e
..........nstituição na linguagem. É isto que forma a base do projeto teórico
ilii liilia Kristeva, o qual abordaremos em seguida.

•in^ iio 2; o sujeito e a prática significante: Lacan e Kristeva

II iihjeto da obra de Julia Kristeva é fornecer ao marxismo uma teoria do


mirnio e da prática significante baseada na psicanálise, o que tornará possí-
»nl explicar o que ela chama de discursos marginais, marginais â ordem sim-
liiillcu do significado, entre os quais se destacam a arte e a literatura. A base
liiMilamental nesse projeto é a teoria psicanalítica da constituição do sujei-
iii UH linguagem desenvolvida por Lacan, e é por aí que devemos começar,
>iiiii"i de podermos considerar em maiores detalhes o projeto de Kristeva e
IIin relação com o marxismo.

A teoria de Lacan da constituição do sujeito na linguagem


Nnsta seção apresentamos apenas uma introdução a Lacan em termos sim-
lillficados; trata-se de uma tentativa de uma leitura e de umasistematisaçao
i Ih psicanálise lacaniana.
Lacan apresenta sua obra como um retorno a Freud, um resgate dos
I iiiiceitos da obra de Freud da massa confusa de definições e redefinições.
() próprio estilo de Lacan é frequentemente ambíguo, sendo que muitas de
•iius frases fundamentais estão abertas a várias interpretações possíveis.
Num determinado nível, esta ambigüidade é uma função do método de La-
■iin, já que não existe nenhum significado final em sua obra, sendo que cada
I nnceito em seu discurso tem sua especificidade no caráter e na m ultiplici-
iliide de sua relação com os demais conceitos. (Há aqui um problema de
como caracterizar a obra de Lacan em termos de "cientificidade", o que
iiirá abordado na Seção 3.) Dentro dos limites deste artigo, só é possível
ulerecer uma breve introdução aos conceitos da psicanálise lacaniana e pas-
•III á função da linguagem mais detalhadamente. Os conceitos de Lacan são
274 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

apresentados aqui individualmente, devendo notar-se que a ordem de expo­


sição tem uma relação aperfas distante com a ordem na qual são concebi­
dos como ativos no desenvolvimento psíquico da criança. Deve também
ser lembrado que estados psíquicos iniciais podem coexistir na psique com
as evoluções posteriores e desempenhar um papel importante na formação
de sintomas neuróticos nos adultos.

O pré-edipiano
O pré-edipiano é ao mesmo tempo um sistema de conceitos e o momento
no desenvolvimento psíquico do indivíduo que estes conceitos constroem.
A distinção entre o edipiano/pós-edipiano e o pré-edipiano feita aqui é útil
apenas quanto aos propósitos de exposição e argumentação. Não é uma
distinção que se faria da mesma maneira na análise propriamente dita, na
qual o pré-edipiano penetra no edipiano, e na qual os sintomas associados
a ambos os momentos podem coexistir e interferir mutuamente.

Os conceitos do pré-edipiano
i} O corpo fragmentado
A criança é vista como estando voltada, primeiramente, para a exploração
da percepção sensória, e sua principal característica é o auto-erotismo.
Nesta fase a criança não distingue entre os dados associados a seu próprio
corpo e os que estão associados à exterioridade. Ela não tem senso de sua
separação física ou de sua unidade física. Este é o momento que será refe­
rido em caráter retroativo, após a "fase especular", pela fantasia do "corpo
em fragmentos".

ii) A fase especular: o eu e o ego


A fase especular é o momento em que a criança tem consciência da dis­
tinção entre seu próprio corpo e o exterior, o "o u tro ". A criança se vê re­
fletida num espelho e se identifica com sua imagem.

Temos que compreender a fase especular como uma identificação no sentido


amplo que a análise empresta ao termo; a saber, a transformação que se opera
no sujeito quando ele assume uma imagem.. . (Lacan, 1968, p. 72)

A imagem que a criança assume através da identificação aparece à criança

num tamanho contrastante que a fixa e com uma simetria que a inverte, que es­
tão em conflito com a turbulência dos movimentos que o sujeito, a criança, sen­
te animando-a. (ibid., p. 37)

A imagem com a qual a criança se identifica, que Lacan diz poder ser des­
crita como o "Eu Ideal", está situada no mundo exferíor â criança. Assim,
IIII OLOGIA E SUBJETIVIDADE 275

'I Ime especular anuncia a alienação situada no âmago da identificação, já


i|iio para que ocorra a identificação deve haver dois eus, um eu que percebe
■ um eu percebido. Para um entendimento da fase especular, é importante
illiiinguir-se o eu do ego e do sujeito.

|Na fase especular] o eu é precipitado numa forma primordial antes de ser obje-
tificado na dialética da Identificação com o outro, e antes que a linguagem lhe
restitua, no universal, suas funções como sujeito... esta forma [o eu] situa a ins­
tância do ego, antes de sua determinação social, numa direção fic tfc ia ... {ibid.,
p. 72-3)

A iiim , O eu é a pré-condição (primordial) para a constituição do ego, que


iitiulta da passagem do eu para uma identificação com um objeto no outro
(o nâo-criança). 0 sujeito, ao qual voltaremos mais adiante, é um conceito
próprio a uma outra parte da teoria, isto é, o Simbólico, sendo somente na
linguagem que o ego é constituído como um sujeito.

Ui) O imaginário e o não-reconhecimento


0 processo de identificação descrito por Lacan como a fase especular dá
Início a uma relação do "Im aginário" na qual o "im aginário" deriva da
imagem especular. Nas relações sociais o ego substitui o eu como o "sujeito"
(empregado num sentido geral) da relação imaginária com o objeto. É pos­
sível dizer que esta relação baseia-se num não-reconhecimento (méconnais-
sanee) no qual o indivíduo não reconhece como sendo ele próprio a ima­
gem perfeita (unificada, poderosa) que aparece no espelho e com a qual se
Identifica como sendo tudo aquilo que o indivíduo imagina que será. é na
fase especular que a estrutura básica do não-reconhecimento, fundamento
de todas as relações imaginárias, é constituída, um ponto que se torna im ­
portante na apropriação que Althusser faz dos conceitos de Lacan.

iv) A relação mãe-filho:as relações oral, anal e genital


Seguindo-se à fase especular, a primeira forma de identificação com um
objeto exterior à criança é a identificação da criança com a mãe. Esta rela­
ção determina a atitude da criança para com as zonas de seu próprio corpo,
de acordo com a significação que lhes é atribuída na relação. (Assim, Freud
assinala a relutância das crianças defecarem, exceto na presença de alguém
que conheçam bem. Freud sugere que, para a criança, soltar as fezes é um
sacrifício que só pode ser justificado pela atenção que ela exige do objeto
com o qual se identifica.) 0 fato de o aspecto genital da relação da criança
com a mãe não poder se desenvolver põe um fim á fase pré-edipiana.

W O início da linguagem na criança: ansiedade


A ansiedade associada às condições de existência do ego é exacerbada no
quadro da relação mãe-filho pelas periódicas (e, para as crianças, inexplicá­
276 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

veis) ausências da mãe. Freud via o inicio da linguagem na criança como


uma tentativa de dominar esta ansiedade. PoV exemplo, no jogo fort/da
com o novelo de linha, citado por Freud, o gesto da criança de puxar o
novelo e atirá-lo para longe, acompanhado das palavras c/a (aqui) e fo rt (lá),
permitia à criança simbolizar um controle da presença e da ausência de
objetos e, por extensão, do movimento do objeto primário, a mãe.

O complexo de Édipo
O "Complexo de Édipo" é o termo dado à fase ou momento em que a in­
tervenção do 'Pai' exige que a criança abandone sua relação exclusiva com
a mãe e sua passagem às estruturas da sociabilidade humana. À criança são
atribuídas uma posição na linguagem e na família e ainda a sexualidade
masculina ou feminina. A repressão daqueles elementos da vida psíquica da
criança que não se ajustam a este posicionamento constitui o inconsciente.

O complexo de castração
A tentativa da criança de incluir as funções genitais entre as que podem ser
expressivas da identificação entre criança e mãe fracassa porque a criança
se vê diante de um rival, o "P ai", contra quem ela é impotente. O termo
"P ai" não tem por finalidade designar o verdadeiro pai da criança, embora
o pai verdadeiro possa ocupar esta posição na estrutura. Contudo, nesse
caso, ele só o faz como a representação de todos os Pais ou do Pai funda­
mental (na cultura cristã. Deus). O Pai é essencialmente a autoridade que
pode intervir na relação mãe-criança e delimitá-la.

Em vista dessa autoridade que paira acima da identificação mãe-crian­


ça, a criança se vê diante da possibilidade de uma ausência, não temporária,
como a da mãe, mas absoluta. A mãe, que foi um repositório de toda iden­
tidade para a criança, a base da concepção que a criança tem de si mesma,
é vista agora como uma mera testemunha, vazia em si mesma, da presença
autoconstituinte, auto-suficiente, do Pai. A abertura desta lacuna,ou hiato,
na identidade inspira na criança o medo da castração. A este nível funda­
mental, o sexo da criança não afeta o medo, embora afete as formas espe­
cíficas assumidas pelo medo — o complexo — e sua resolução. Assim, é a
função genital que está sujeita á proibição que introduz de forma conclusi­
va a autoridade do Pai, e a ameaça representada para a criança pela exis­
tência e autoridade do Pai exprime-se aos olhos da criança como ameaça
aos órgãos genitais. Antes de prosseguirmos no exame das conseqüências
do conceito do complexo de Édipo para a teoria de Lacan, devemos vol­
tar a atenção para os conceitos mais complexos de Lacan — os que se rela­
cionam com a linguagem.
I»l ÜLOGIA E SUBJETIVIDADE 277

O pape! da linguagem
A "linguagem", na lingúistica pós-saussuriana, significa a estrutura formal
(|ue está na base dos atos individuais da fala e os torna possíveis. Trata-se
i Ih um sistema de normas que não é acessível á consciência do simples usuá-
ilii da linguagem, mas que só pode ser inferido através da análise lingüfstica
iiitemática. Os dois conceitos fundamentais de Saussure para nosso objeti­
vo no momento são o signo e o conceito de linguagem como sendo mera­
mente um sistema de diferenças no qual não existem termos positivos.
Para Saussure, o signo é a união do significante e do significado. O
'.ignificante é a palavra-imagem (quer acústica ou gráfica) e o significado
ó o conceito a que ela está associada. O signo como um todo recebe seu
dignificado não em virtude de sua referência a algum objeto no mundo real,
mas por sua diferenciação especffica de todo o corpo de outros signos ou
"léxico". Um signo tem um significado porque ocupa um lugar particular
no léxico. Isto é parte daquilo que se entende por linguagem como sendo
npenas um sistema de diferenças.
A noção saussuriana de signo é criticada explicita e implicitamente na
obra teórica de Derrida, Kristeva e Lacan. A base desta objeção pode ser
expressa da seguinte maneira: na união de significante (palavra-imagem) e
significado (conceito) é impossível atribuir-se qualquer condição irredu­
tível ao conceito (o significado). Se o significante pode ser unificado com
um conceito mental, é apenas em virtude do fato de que outros significan-
tes permitem á mente formular conceitos estáveis. Em vez de uma unidade
de significante e significado, temos um constante revezamento de signifi-
cantes. O significado (conceito) como significado puro nunca é atingido.
Por exemplo, o significante "cã o", segundo esta teoria, só seria inteligí­
vel em relação aos outros significados "canino" e "quadrúpede", e de modo
mais geral "anim al" ou "mascote". A linguagem é, pois, um vasto sistema
tautológico no qual o conceito puro (significado) nunca pode ser isolado.
A criança só consegue utilizar plenamente a linguagem ao submeter-se
a este sistema convencional que Lacan chama de Ordem Simbólica. Ela só
consegue começar a utilizar a linguagem de modo coerente ao assumir uma
posição nesse sistema de convenções. Isto é, a criança precisa identificar-se
com certos termos — "m enino" ou "m enina", " filh o " ou "filh a " — termos
que ganham eles próprios sua significação mediante sua relação com um
significante centrai.

Desejo
A fim de esclarecer a natureza deste significante central, primeiro precisa­
mos examinar mais de perto a reação da criança à ameaça de castração. A
criança só pode resolver a situação, por um lado, ao submeter-se á autori­
dade paterna, e, por outro lado, identificando-se com essa autoridade. Con-
278 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

sidera-se que este processo termina de maneiras diferentes, segundo o sexo


da criança, um ponto que será esclarecido mais adiante. Está claro que esta
identificação da criança com o Pai não pode ser do mesmo tipo daquela ex­
perimentada na relação mãe-criança. Esta identificação baseia-se não numa
relação de identificação imediata, mas numa suposta identidade eventual-,
isto é, tomando o caso da criança do sexo masculino, ela se submete á Lei
do Pai para que não perca o órgão genital — para que ela própria possa al­
gum dia ocupar o lugar do pai. Uma importante diferença entre a ide ntifi­
cação pré-edipiana e a pós-edipiana é que a primeira é perturbada pela an­
siedade e pela agressividade da criança - dois legados da fase especular -
ao passo que a segunda é perturbada pela agressividade da criança contra
a autoridade paterna e por sua culpa, devido a essa agressividade contra a
autoridade com a qual ela deseja identificar-se.
Como foi dado a entender, a submissão da criança á autoridade pater­
na inciui sua sujeição às normas da linguagem. Esta passagem para o simbó­
lico, que em definitivo é constitutiva do sujeito, possui o efeito de tornar
impossível ao sujeito expressar seu desejo. Esse desejo, que pode ser consi­
derado como sendo o impulso para conseguir a identidade com o Outro, o
Pai, é ao mesmo tempo alienado e insaciável. É alienado porque o sujeito
só pode expressar seu desejo através do sistema — a linguagem — que justa­
mente consubstancia sua submissão ao Pai e seu distanciamento dele. A po­
sição do sujeito na linguagem, como determinada pela Lei Paterna, torna
certas posições no discurso impossíveis para o sujeito. Assim, por exemplo,
um sujeito que está sendo posicionado como " filh o " pode desejar expres­
sar seu desejo pelo Pai representando o papel de "esposa" - esta é uma
maneira de expressar a posição do paciente na análise do "Homem dos lo­
bos", de Freud (Gardiner, 1973). 0 sujeito nesse caso é obrigado a reprim ir
qualquer aparência desse desejo transgressor em seu discurso, que consti-
tuiria uma transgressão à Lei Simbólica que estabelece que o destino próprio
do " filh o " não é tornar-se "esposa" e "m ãe", mas "m a rido " e "Pai".
0 desejo é insaciável por ser desejo não de uma pessoa real, mas de
uma posição simbólica - a posição que é poderosa, autoconstituinte, fonte
da lei, árbitro das possibilidades da expressão do desejo. 0 objeto desejado,
como o significado, está em constante recuo, sendo apenas a idéia de uma
garantia final, transcendente, da identidade. Tendo em mente esta visão do
desejo, podemos voltar à questão do significante central que sustenta a or­
dem simbólica.

O falo '
O significante fálico é o significante do desejo. Ele não é identificável com
o pênis real, mas, como significante, é parte do sistema Simbólico. E aqui
que o papel do pênis real torna-se crucial na passagem diferencial dos dois
11UiOLOGIA E SUBJETIVIDADE 279

Mixos ao Simbólico. (A explicação que se segue é mais implícita que expli'-


lica na obra de Lacan. ) Na situação com a qual a criança se defronta no
momento da intervenção do Pai na relação pré-edipiana, a autoridade pa-
lerna é inseparável da masculinidade. O pênis, a marca distintiva da mascu­
linidade e, assim, da possibilidade de identificação direta com o Pai <ao
menos, em perspectiva), torna-se', pois, o nó do complexo.
No sistema Simbólico, isto surge como o significante fálico — não sim­
plesmente o significante de um órgão masculino em particular, mas o signi-
licante de um poder em potencial em seu possuidor. O conceito "P ai" no
'.istema Simbólico é aquela posição que pode exercer o manejo do falo;
não devemos esquecer que a posição "P ai" é também uma posição simbóli-
i'a. O falo é o significante do desejo, e devido ao fato de que o lugar do Pai
i‘omo o árbitro da expressão do desejo é o mesmo que seu lugar como
manejador do falo, o controle do desejo (o falo) é próprio dele.
Na linguagem, o Nome do Pai (que em alguns casos, no judaísmo por
•xemplo, é considerado blasfematório pronunciar) é o nome do possuidor,
por excelência, do falo. Pode-se ver agora de que maneira o falo consegue
agir como um significante central em relação ao qual as posições na lingua­
gem tornam-se significativas para a criança em luta para resolver o comple­
xo de Édipo. Para esclarecer este ponto, podemos enumerar as posições
liimiliais que são constituídas no Simbólico em relação ao fàlo.

Posições familiais e sua relação com o fato na estrutura do simbólico


O Pai é o possuidor do falo, fonte da lei. 0 fHho tem uma relação mais
complexa com o significante fálico: por um lado, ele representa o falo em
uma etapa, por assim dizer, para a mãe; por outro lado, ele tem a perspecti­
va de possuir o falo como futuro detentor da posição paterna. O marido é
uma posição que deve ser distinguida da do pai. Em sua posição como
marido, o cônjuge masculino representa, como o filho , a posse do falo, em
uma etapa, para a mâe-esposa.
Esse aspecto se tornará mais claro se examinarmos a posição dos ter­
mos femininos em relação ao falo. Partindo do complexo de castração, fica
claro que o controle do acesso á fêmea (a mãe) é uma propriedade do con­
trolador do falo. O desejo de identificação com o pai surge do desejo pré-
•dípiano de identificação com a mãe. A única maneira de possuir a mãe é
tornar-se o pai. 0 desejo de identificação materna encontra-se, por assim
ilizer, por trás de toda a ordem simbólica; e este fato, ameaçador como é
■I esta ordem, não pode ser incluído ou expresso em sua estrutura. O poder
(Io pai aparece como um poder independente em si mesmo de todos os de-
■■Bjos, já que controla o desejo. Na realidade, então, o cônjuge do sexo mas­
culino não pode ocupar a posição simbólica do pai, ele só pode representar
uma referência a esta autoridade que justifica sua identificação com a mãe/
280 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

esposa. Ao nível desta identificação, ele reverte á posição de marido/filho.


Há aqui uma fundamental ambigüidade de posição.
Quanto à fHha, o complexo de Édipo só pode ser resolvido pela admis­
são de que o sujeito nunca terá posse direta do falo. Contudo, permanece
aberto à filha um papel que não é simbólico, mas pré-simbólico, o da mãe,
o objeto final do desejo. Pode-se ver que a ordem simbólica é constante­
mente perturbada ao nfvel da posicionalidade da famTlia pela própria base
sobre a qual se ergue: a relação materna. Contudo, a filha só pode preencher
uma posição materna na medida em que esta posição não passe, não im ­
porta quão ambígua seja a maneira, á ordem simbólica. Como a mãe, a mu­
lher é o objeto de desejo do filho ; como esposa/mãe, ela é objeto desse
desejo que reaparece como o desejo do marido. Como o objeto de desejo,
ela possui, ou antes inclui, poder fálico (o poder do manejador do falo) na
medida em que tem poder sobre os homens para os quais é desejável. Dessa
maneira, como esposa e mãe, ela possui o falo em uma etapa e, como filha,
ela tem a perspectiva de ocupar a posição materna.

A repressão, o inconsciente e o sujeito


Como notamos, a resolução do complexo de Édipo só é possfvel mediante
a repressão de tendências, o que é inapropriado ao posicionamento do ind i­
víduo na ordem simbólica. Este corpo de tendências reprimidas constitui o
inconsciente. Ele é

aqu e la posição da fa la c o n c re ta , tra n s ín d iv id u a l, que nã o consegue fic a r á d is p o ­


sição d o s u je ito para q u e e le /e la restabeleça a c o n tin u id a d e de sua fa la consciente.
IR ussel. N L R 5 1 )

Para nossa finalidade presente, dentro dos limites deste artigo, seria impos­
sível ir mais além no conceito lacaniano do inconsciente, já que isto exige
uma volta a conceitos lingüísticos avançados, fora de propósito aqui, jun ­
tamente com um exame m uito mais detalhado de todo o sistema teórico
de Lacan.
Como vimos, a noção do sujeito é apropriada pelo indivíduo na medi­
da em que este se tenha sujeitado à ordem simbólica paternalmente definida,
tendo assumido nela uma posição, isto é, na medida em que o indivíduo
possa utilizar a linguagem coerentemente com base em sua relação com o
significante central, o falo. Estritamente falando, é somente quanto ao su­
jeito que podemos empregar os pronomes ele e ela em qualquer sentido
que não seja o biológico, já que somente com a passagem completa á subje­
tividade é que a identidade sexual se torna um atributo fix o do indivíduo.
O sujeito, além do mais, é constantemente perturbado pelo "retorno do
reprim ido"; os efeitos da repressão aparecem no discurso do sujeito como
o "a to fa lho " freudiano, fisicamente como "sintomas histéricos" (exem­
plo: a constipação crônica do homem dos lobbs) e nos sonhos.
II )| OI.OGIA E SUBJETIVIDADE 281

.1 Importância de Lacan para a


im}rla de Kristeva do sujeito e da linguagem
I timo indicamos no inicio desta seção, a teoria de Lacan da constituição
ilii lujeito na linguagem, isto é, na Ordem Simbólica, através dos vários
iiiiimentos psfquicos definidos acima, é a base para a teoria de Kristeva do
•ujeito e da prática significante, que procura teorizar amplamente a natu-
in/d do discurso artístico e literário e, assim, dissipar as ausências que eram
innvitáveis na estética marxista que vimos examinando, através de uma re-
itiorizaçio da linguagem e da noção saussuriana da "significação" em ter-
moi de prática significante. Qualquer entendimento da teoria de Kristeva
■Klge uma boa vontade da parte do leitor para chegar a uma composição
I om sua terminologia inusitada e, como tal, d ifícil. A seguir, procuraremos
■piiiminar os dois momentos-chave na teoria de Kristeva. Primeiro, o con-
m ito de "sujeito em processo" que substitui o ego transcendental, que
Kristeva denomina o sujeito tético, que é fixado na linguagem, e que é o
iniultado do processo de desconhecimento na teoria de Lacan. Segundo, a
indefinição de Kristeva da significação, que passa a ser um aspecto dentro
ila prática significante como um todo, que Kristeva chama de signifiance.
SIgnifiance compreende o que Kristeva denomina o dom ínio simbólico, a
Ordem Simbólica de Lacan, que é o nível abordado pela lingüística saus-
iiiriana, e o dom ínio da semiótica, que corresponde ao inconsciente em
l acan e que tem seu lugar naquilo que Kristeva chama de coros semióticos.
lendo, assim, localizado a origem dos conceitos de Kristeva na teoria psi-
I .inalítica lacaniana, podemos continuar para examinar em detalhe a teoria
de Kristeva.

A teoria do sujeito e da linguagem poética na obra de Julia Kristeva


Como foi mencionado no início desta seção, o objeto da obra de Kristeva é
dar ao marxismo uma teoria da subjetividade baseada na psicanálise, capaz
de abordar os discursos marginais, particularmente o da poesia. É especifi­
camente em relação a uma leitura de Mallarmé e de Lautréamont que ela
empreende este projeto.
Kristeva começa teorizando a natureza da subjetividade "sempre-já"
dada, que constitui o conceito de Althusser da "ideologia em geral". Tal
projeto exige uma reteorização da formação social, o que Kristeva não faz
de modo amplamente sistemático. Ela toma o modelo althusseriano da fo r­
mação social, como se fosse não-problemático fazê-lo, e tenta demonstrar
como o modo de produção sócio-econômico e o modo de produção de
signos estão intrinsecamente ligados. Assim, ela tenta criar um espaço para
uma mudança revolucionária na condição do sujeito, que seria parte in trín ­
seca de qualquer mudança estrutural no modo e nas relações de produção,
e que é de fundamental importância para a luta feminista, já que esta mu-
282 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

dança desafia as normas daquilo queé constantemente referido como soc/e-


dade civil, incluindo a estrutura da família.
O ponto de partida de Kristeva é a fundamentação de toda a tradição
do pensamento ocidental no conceito do sujeito unificado, transcendental,
autopresente, que é a base do racionalismo e que sustenta a lingüfstica saus-
suriana. Esta noção alcança sua expressão mais clara em face da filosofia
da linguagem na fenomenologia de Husserl. (Por transcendental entenda-se
um sujeito que está fixado na relação sujeito-objeto e é uma de suas bases.)
Nesta tradição, a divisão sujeito-objeto, que é o pré-requisito para o uso
da linguagem, é dada tanto filosoficamente quanto na estrutura sintática
da linguagem como um sistema, que opera através da estrutura de sujeito e
predicado, que é visto tanto em relação ao sujeito como distinto dele. Existe
uma correlação entre o objeto significado e o sujeito transcendental, atra­
vés da mediação do significante, que deve também ser transcendente. Na
teoria de Kristeva, o sujeito é constituído na linguagem através do predicado,
isto é, através da relação sujeito-objeto tal como dada na sintaxe. Kristeva
chama este repensar do sujeito aparentemente transcendente o "sujeito
té tico" e localiza-o firmemente naquilo que chama de o dom ínio simbóli­
co, que é a ordem social e lingüística estabelecida, o dom ínio da signifi­
cação. 0 simbólico é o dom ínio que estabelece os limites e a unidade da
significação através da ligação de significante e significado no signo. É o
conjunto de leis da sociabilidade humana, o dom ínio de todos os discursos,
da lei e de seus julgamentos, etc., e funciona através da relação sujeito-
objeto da sintaxe predicativa. Contudo, Kristeva sugere que a prática signi­
ficante não está limitada a este domínio tético ou simbólico, que como na
teoria de Lacan é fundamentado numa repressão necessária para o estabele­
cimento de um significante transcendente, o falo, que é o suporte-chave da
estrutura da linguagem.
Na verdade, Kristeva sugere que na significação o signo omite o real
em benefício do significante transcendente e, como conseqüência, o signi­
ficado da linguagem é constituído para a consciência do sujeito "transcen­
dente" ao preço da repressão das pulsões, que é o que sustenta a ordem
simbólica, isto é, a psique. A partir daí, Kristeva sugere que existem práti­
cas significantes que não podem ser reduzidas à ordem simbólica e, como
tal, representam uma ameaça a ela; conseqüentemente, foram empurra­
das para a periferia do discurso. Destacam-se entre elas a linguagem poética,
a arte, a religião e a magia. Destas, Kristeva decide concentrar-se na lingua­
gem poética. Escreve ela sobre a linguagem poética que, na medida em
que funciona com o significado da linguagem e o comunica, a poética tam­
bém partilha os aspectos da significação simbólica, mas não está limitada
ao dom ínio simbólico.
P o d eria m o s ta m b é m d iz e r q u e e m b o ra a o p era ç ão p re d ic a tiv a té tic a e seus cor-
relato s (o b je to sig n ific a d o e ego tran sc e n d en tal) sejam válido s para a e c o n o m ia
IIII OI.OGIA E SUBJETIVIDADE 283

lig n ific a n te da linguagem p o é tic a , c o n s titu e m apenas um a de suas lim itações:


um a lim ita ç ã o c o n s titu tiv a , c e rta m e n te , mas n ão u m a lim ita ç ã o to ta l. Desta m a-
nalra, é de fa to possível estu dar o s e n tid o e a s ign ificação da linguagem po ética
(rev e la n d o o u suas e strutu ras o u seu fu n c io n a m e n to , de a co rd o com o m é to d o
p a rtic u la r e m p re g a d o ), m as, a fin a l, esse tip o de estu d o e q u iva le ría a red u zir a
linguagem p o é tic a ao h o riz o n te fe n o m e n o lõ g ic o e, assim, a negligenciar o que
eitá n o processo p o é tic o , qu e cai fo ra d o d o m fn io d o sign ificado e d o ego tran s­
c en dental e fa z d a q u ilo a que c h a m am os " lite r a tu r a " algo q u e não é c o n h ec i­
m e n to : o lugar m esm o o n d e o cód ig o social é d e s tru íd o e ren ovado. (K riste v a ,
1 9 7 5 , p. 1 1 )

A inferência de Kristeva ao horizonte fenomenolõgico é uma referência à


liMiblemática sujeito/objeto/significado dos fenomenologistas, como Hus-
•nil, por exemplo. 0 horizonte fenomenolõgico refere-se ao que está con-
iiilii no dom ínio simbõlico do significado fixo. O que cai fora deste hori-
/onle, fora do dom ínio simbólico, e o que a constituição do domínio
limbõlico reprime, é chamado por Kristeva de oràem semiótica. É a outra
iiiilem que está constantemente ameaçando o simbólico, e q\ie juntamente
com eie constitui a prática significante, que Kristeva chama signifiance.
I itas duas modalidades de signifiance, a simbólica e a semiótica, estão
♦limpre presentes na linguagem como uma prática social, combinadas de
várias maneiras, de acordo com o tipo de discurso e de prática significante.
Recorrendo à teoria de Lacan da constituição do sujeito na linguagem,
K risteva define a semiótica como aquilo que pode ser hipoteticamente pos-
iiilado como precedendo logicamente à imposição da ordem simbólica
lohre o indivíduo através da fase especular e da aquisição da linguagem,
r a composição já dada das pulsões e dos assim chamados processos pri­
mários que deslocam e condensam energias sob a forma de facilitações ou
niiilhos (Bahnungen, em Freud) e seu retorno ao sistema simbólico propria­
mente dito sob a forma de ritmos, entoações e transformações léxicas,
sintáticas e teóricas. Esta combinação de pulsões, que sustenta a lingua­
gem e a ordem simbólica, é chamada de coros semióticos por Kristeva. É o
lugar do que ela chama negatividade, o processo de geração semiótica me­
diante o qual as pulsões constantemente desafiam e transformam o sujeito
M.i ordem simbólica. A ordem semiótica é heterogênea ao significado, isto
á, externa a ele, estando o significado contido na ordem simbólica. Isto
(icorre, contudo, sempre com vista ao significado ou numa relação de nega­
ção ou excesso com respeito a ele. Kristeva enfatiza que na linguagem poé­
tica, que é socialmente comunicável, esta heterogeneidade semiótica que a
teoria pode postular é inseparávei da função simbólica da signifiance.
Kristeva afirma que os coros semióticos são revelados geneticamente
nas primeiras tentativas da criança para se expressar em ritmos e entoa­
ções pré-lingüísticos que tornam a ocorrer no discurso psicótico. Ela cita
Bstas duas áreas de pesquisa (crianças no estágio pré-especular e o discurso
psicótico) como tendo a finalidade de descrever o processo semiótico em
284 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

questão (ritmos, entoações) e sua dependência relativa ao corpo instintual,


ou sublimadas (interesses, investimentos, intenções, na teoria freudiana),
que acompanham as vocalizações. Na linguagem poética, a de Artaud, por
exemplo, Kristeva sugere que a rede de pulsões pode ser lida através das
bases pulsionais dos fenômenos não-semânticos na obra de Artaud.
Como assinalamos, ambos os modos de signifiance, o simbólico e o
semiótico, estão presentes na prática significante. Contudo, Kristeva sugere
que na linguagem poética o semiótico é não somente uma coerção, como o
simbólico, mas tende ainda a dominar como a coerção maior, em detri
mento das coerções téticas e predicativas da consciência crftica do suieito.
Assim, as coerções rítmicas não somente desempenham uma função estru
turadora em toda linguagem poética, que pode transgredir as regras grama
ticais, amiúde negligenciando o significado tético, mas ainda causam até
elipses sintáticas não-recuperáveis. Não obstante:

A fu n çã o s im b ó lic a persiste c o m o um a lim ita ç ã o in te rn a dessa e c o n o m ia bip o lar


p o rq u e u m s ig n ific a d o m ú ltip lo e às vezes im p e rc e p tív e l é c o m u n ic a d o . (K riste v a ,
1 9 7 5 , p. 1 4 )

A ordem semiótica é, como sugerimos, logicamente anterior â ordem


simbólica, e a constituição da ordem simbólica baseia-se num rompimento
com a ordem semiótica, que, de acordo com a teoria de Lacan, tem lugar
no desenvolvimento da criança através da fase especular e da resolução do
complexo de castração. A ordem semiótica é pré-lingüística, pré-simbólica,
e portanto não pode fundamentar-se em nenhum conceito de um objeto
fixo que seja constituído no dom ínio simbólico e do qual seja o suporte
centrai. O dom ínio semiótico é a pré-condição para a constituição do sujei­
to na linguagem, na ordem simbólica. Ele é o lugar daquilo que Kristeva,
de acordo com Hegel, chama de negatividade, um constante processo de
expulsão (a contrapartida da repressão), que está constantemente sendo re­
primido pela (re)constituição do sujeito no dom ínio simbólico. Ele é o lu­
gar daquilo que Kristeva chama de o "sujeito em processo", do qual a
fixação constantemente repetida do sujeito transcendental na prática signi­
ficante é apenas um momento. Assim, temos um modelo em que a prática
significante (signifiance) é determinada tanto pela ordem simbólica como
pela ordem semiótica. O sujeito na prática significante, como na teoria
lacaniana do sujeito, está sendo constantemente reformulado na luta entre
as duas ordens e reinserido na ordem simbólica como um momento fixo
(uma estase) no sujeito em processo, que diz respeito às duas ordens. As­
sim, Kristeva pode apresentar uma teorização de como o sujeito ideológico
(sobre o qual Macherey, recorrendo ao ensaio de Althusser sobre os apare­
lhos ideológicos do Estado, baseia sua teoria da literatura) é realmente
constituído na linguagem. Fica evidente que para Kristeva a ordem simbó-
IDIiOLOGIA E SUBJETIVIDADE 285

llca da ideologia e da significação ideológica, que está fundamentada na re­


lação sujeito-objeto, é parte da signifiance, que inclui o dom ínio semiótico.
Contudo, para Althusser e para Macherey a existência daquilo que Kristeva
I li.ima de ordem simbólica da significação, que ambos implicitamente abo-
iinm ao empregarem o termo "prática ideológica", localizada nos aparelhos
ideológicos do Estado, é considerada como uma explicação suficiente da
ideologia. Argumentaríamos nós, de acordo com Kristeva, que a dimensão
iln sujeito e da prática significante não pode ser teoricamente incluída num
iiirmo geral, como a prática ideológica, mas é essencial a qualquer teoria da
ideologia e da formação social. Kristeva tenta demonstrar, á luz de Freud e
de Lacan, que o que determina a ordem simbólica não pode ser simples­
mente localizado como o nível da luta de classe e da linguagem como um
■istema não-problematicamente dado, determinado pela classe, mas deve
lovar em conta a constituição do sujeito. Kristeva procura também de­
monstrar que a prática significante, que ela define como

a q u ilo através d o qu al o m o d o de p ro d u ç ã o sign ific a sua e sta b iliza ç ã o e seu a u to -


c o n s u m o — as cond ições de sua ren o v a çã o (K ris te v a , 1 9 7 6 , p . 6 4 I

não pode ser completamente reduzida à significação simbólica nos apare­


lhos ideológicos do Estado. Contudo, o problema que surge a essa altura
á o de se identificar

a in erê n c ia in trín s e c a de u m m o d o de p ro d u ç ã o de signos ao m o d o de p ro d u ç ão


d o to d o s ó c io -e c o n ô m ic o Ubid.).

Anteriorm ente, mencionamos que os coros semióticos consistem de


uma "combinação já dada" das pulsões, e é nesse ponto que Kristeva pro­
cura relacionar o dom ínio semiótico à formação social e, afinal, ao mate-
rialismo histórico e à prática política. Kristeva diz sobre a combinação das
pulsões nos coros semióticos da criança:

Q u a n tid a d e s d e s c o n tín u a s de energ ia atravessam o c o rp o , qu e vai se to rn a r mais


ta rd e u m s u je ito , e no curso d o vir-a-ser dele ou dela c o m b in am -s e de a co rd o
c o m as coerçõ es im postas a este c o rp o p e rm a n e n te m e n te s e m io tiz a n te pela es­
trutura social e da fa m ília (K ris te v a , 1 9 7 3 -4 , p. 2 1 ; g rifo nosso).

Kristeva sugere que a nova maneira pela qual as pulsões são combinadas
anteriormente à aquisição da linguagem é determinada do exterior pela fa­
mília e pela configuração social e pela maneira pela qual isto age sobre a re­
lação da criança com a mãe. Desse modo a criança está sendo constantemente
preparada para estar plenamente no simbólico: na linguagem e na auto-
consciência, através da resolução do complexo de castração que provoca a
repressão primeira e a formação do inconsciente. Uma vez que a criança
entrou na autoconsciência e na linguagem como sujeito, sua posição aí pre-
286 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

cisa ser constantemente reafirmada, já que, como assinalamos, ela está sob
constante ataque dos coros semióticos. As relações sociais (as relações de
produção tal como mantidas pelo Estado e pelo sistema legal) e as relações
de produção dentro da estrutura da famriia, que se fundamentam na re­
pressão das pulsões e na manutenção da Ordem Simbólica, mantêm no
lugar um certo tipo de relação entre unidade (o sujeito transcendente, a
Ordem Simbólica, a linguagem, a ideologia, o discurso científico etc.) e
processo (os coros semióticos).
Segundo Kristeva, é no sujeito falante que os dois domínios, o semió-
tico e o simbólico, se reúnem, e que o modo de produção sócio-econômico
encontra-se com o modo de produção do sujeito na prática significante.
Daí, existem dois níveis de contradição, articulados: entre as forças e rela­
ções de produção e a contradição do processo de signifiance, que encontra
expressão nos

e le m en to s ínsociáveís nas relações de re p ro d u ç ã o Ia e x p e riê n c ia da d ifere n ç a


sexu al, in cesto, pulsão de m o r te , processo de p ra zer). (K ris te v a , 1 9 7 6 , p. 6 8 )

Kristeva sugere que

a a n tro p o lo g ia m o d e rn a fo i bem -sucedida ao in c lu ir as relações de parentesco


c o m o um a parte in te rn a da 'fo rm a ç ã o e c o n ô m ic a e social' in sistindo q u a n to á
fu n ç ã o s im u lta n e a m e n te e c o n ô m ic a e p o irtic a que desem p en fiam estas relações.

É, porém, igualmente importante incluir-se o papel desempenhado pelas


práticas significantes semioticamente motivadas em qualquer conceituali-
zação de uma formação econômica e social.

São estas práticas s ign ificantes que p o d e m revelar a fo rm a ç ã o e c o n ô m ic a e social


q u e as abriga c o m o sen do u m a articulação provisória, c o n s ta n te m e n te u ltra p a s ­
sada e am eaçada pela p e rm a n e n te c o n tra d iç ã o p ró p ria d o processo de signifian­
ce — u m a c o n tra d iç ã o e n tre S im b ó lic o e s e m iô tic o in e re n te a q u a lq u e r ser fa ­
la n te a p a rtir d o m o m e n to e m q u e fa le a o u tro p o r m e io de signos (K ris te v a ,
1 9 7 6 , p . 6 8 ;g r ifo s nossos).

É esta contradição inerente à signifiance que segundo Kristeva faz de qual­


quer agente de estrutura um elemento de mutação potencial. Assim, a
partir do nível do sujeito, precariamente instalado na Ordem Simbólica,
que é sustentada por forças sócio-econômicas e familiais, torna-se possível
desafiar a unidade da formação social. Kristeva sugere que este desafio ao
nível da prática significante só poderia estar alinhado com as experiências
políticas e movimentos sociais que contestam as relações de produção vi­
gentes. Diz a autora que é agora possível submeter a unidade da formação
social a uma análise e conceder-lhe um papel que é ao mesmo tempo estru-
turador e efêmero. Potencialmente, este papel poderia basear-se no proces­
so de prazer, em vez de em sua repressão, o que levaria a uma relativização
IIHOLÜGIA E SUBJETIVIDADE 287

'l« lunção do Estado e da família e a uma nova posição para a mulher na


I iiilem Simbólica.
Nesta concepção da formação social, que inclui a "economia signifi-
I <nte da socialidade", certas práticas significantes, mais do que outras, cor-
"i'.ponderiam aos elementos dinâmicos, em oposição aos estabilizadores,
Mii formação social. Como vimos, a arte e a literatura são de importância
i'ilmordial entre as práticas significantes dinâmicas, já que são coagidas em
innior grau pelo semiótico do que por outros discursos, estando assim
numa posição de desafiar a unidade do sujeito e seu apoio na linguagem e
iiN formação sócio-econômica. A arte e a literatura são aqueles domínios
nm que o componente semiótico da signifiance decompõe em vários graus
II Ordem Simbólica, que é constituída pelas leis e convenções da formação
Kicial e lhes dá apoio, sendo o lugar da ideologia e de sua explicação "ra-
I lonal" da experiência vivida. Assim, Kristeva sugere que a arte pode fazer
mais do que meramente aludir à ideologia, como na teoria de Althusser e
Macherey; ela pode solapar as estruturas que dão apoio á própria ideologia.
A tentativa de Kristeva de introduzir uma teoria da subjetividade
numa teoria marxista da formação social baseia-se em dois fatores substan-
i Niis; primeiro, uma aceitação da "cientificidade" da teoria psicanalítica de
I acan; em segundo lugar, uma aceitação da unidade intrínseca do modo
íâcio-econômico de produção e do modo de produção da signifiance, en-
landida como uma unidade do simbólico e do semiótico. Kristeva justifica
■'ita reformulação da formação social ao assinalar "o truncamento rápido e
brutal da dialética hegeliana", que a autora vê como formando a base das
iiintativas marxistas para retraçar o discurso exclusivamente até o modo
•conômico de produção. Ela sugere que

Is to fic a a q u é m da te n ta tiv a hegeliana de pensar a efic á cia de u m sistem a sig-


n ific a n te sobre u m o b je to , um a sociedade e um a h is tó ria .(K ris te v a , 1 9 7 6 , p. 6 4 )

Kristeva localiza este truncamento de Hegel em Feuerbach, e não em Marx,


sugerindo que falta uma teoria da subjetividade ao marxismo, que não de­
ve, e não pode, ser fornecida pela teoria feuerbachiana. É para esta lacuna
leórica que se volta sua teoria do sujeito e da prática significante.

Conclusão
Assim, concluindo a Seção 2 deste artigo, defrontamo-nos com todos os
problemas que são levantados por qualquer tentativa de reformulação da
lormação social em termos de uma unidade intrínseca do modo sócio-eco-
nòmico de produção e do modo de produção da prática significante como
teorizada por Kristeva. O que falta na teoria de Kristeva é uma tentativa
séria e persistente de pensar a relação entre estes dois conceitos (modo eco­
nômico de produção e modo de produção da prática significante), que são
288 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

extrardos de discursos m uito distintos. Assinalamos a necessidade de uma


teoria da subjetividade para um entendimento da instância ideológica em
geral, e da arte e da literatura em particular. Contudo, em sua tentativa de
resolver o dilema do papel do sujeito, Kristeva aproxima dois discursos
(o marxismo althusseriano e a psicanálise lacaniana) sem conseguir uma
composição com as dimensões fundamentais, epistemológicas, de tal inicia­
tiva. É com a colocação destes problemas que a Seção 3 deste artigo se
ocupará.

Seção 3: o problema da teoria da formação social

Nas duas primeiras seções deste artigo, tentamos colocar o problema que
surge nas posições teóricas que vimos considerando, e relacionamos estas
diferentes posições entre si. Isto implica necessariamente a adoção de uma
posição exterior às teorias individuais consideradas.
Se quisermos ter bases sólidas para examinar as teorias de Macherey,
Lacan e Kristeva e sua relação mútua, estas bases só podem ser amplamen­
te propostas se ultrapassarmos o nível de exposição crítica. Um exame da
teoria de Macherey ou de Kristeva da arte e da ideologia, isoladamente,
seria evidentemente impossível. Mas ambas as teorias apresentam-se como
um meio de abordàr o texto artístico (especificamente, o literário). Se qui­
sermos tentar situar o texto artístico política e teoricamente, temos que
levar em conta o fato de.que estas teorias oferecem abordagens alternativas
e mutuamente excludentes para essa tarefa. É nosso desejo reter ambas as
teorias com suas inadequações e utilidade, prosseguindo nesta base para
uma análise das implicações mais amplas de sua coexistência.
A presente seção tem duas finalidades. Primeiro, objetiva prover
alguns aspectos introdutórios e comentários sobre nosso projeto mais
amplo. Em segundo lugar, objetiva justificar o que de outra forma seria
uma justaposição arbitrária e infundada das duas teorias da arte e ideologia
e uma mera afirmação da importância de sua inter-relação. Isto infelizmen­
te nos envolverá em assertivas referentes a questões teóricas de um tipo
mais geral, o que não pode ser amplamente fundamentado no espaço aqui
disponível.
Nosso problema imediato é o da teorização da inadequação e da uti­
lidade das teorias de Macherey e Kristeva da arte e da ideologia. Mas di­
ficilmente poderiamos não estar cônscios de que em ambas se encontram
teorias implícitas da arte e da formação social. No caso de Macherey, a
teoria da formação social na qual se baseia a obra é, como vimos, uma
teoria althusseriana. No caso de Kristeva, o problema é mais complexo:
uma teoria da formação social é mais suposta do que tornada explícita em
sua obra; Kristeva diz "seguir" Althusser e ao mesmo tempo critica o
marxismo num sentido radical.
im OLOGIA E SUBJETIVIDADE 289

A obra de Kristeva em geral demonstra a tendência de casar sem ceri­


mônia conceitos provenientes de fontes m uito diferentes — a fenomenolo-
i|ln de HusserI, a psicanálise de Melanie Klein e Lacan, o marxismo de Al-
ilujsser. Argumentaríamos nós que este método teórico não pode dar lugar
.1 uma ciência satisfatória da formação social no sentido em que entende­
mos esta expressão.
Dentro dessa perspectiva, podemos notar a relutância de todo o grupo
Ve! Que! em reivindicar para si qualquer condição científica (cf. a recusa
(Io Roland Barthes, em S /Z [Barthes, 1970]) para apresentar seus cinco
I ódigos da narrativa como conceitos científicos; estes permanecem sendo
«penas estratégias de leitura. Sugeririamos que a dificuldade e o caráter
■■vasivo do estilo lacaniano também dizem respeito a esta questão. A ten­
dência predominante nestes autores é a de neg' genciar todo o problema da
ciência; para eles, a tentativa de se constituir uma ciência é uma tentativa
Ideológica. Ela representa a ilusão de que o discurso pode entrar no objeto
real, dado, e descobrir sua essência. Ao contrário disto, Kristeva, Barthes
e, poder-se-ia argumentar, Lacan estão preocupados em celebrar a impossi­
bilidade de se fugir à prisão da linguagem. Seus escritos são concebidos
como estratégias para a constante reafirmação dessa impossibilidade — o
menor ato ideológico que o discurso pode executar sendo o de se dar conta
de sua própria arbitrariedade. (No caso de Lacan, o discurso em questão
sendo, de modo importante, o de sujeitos individuais.)
Nosso problema eram as teorizações alternativas da formação social
presentes em nossas duas teorias da arte e da ideologia. Podemos agora
dizer que não achamos que a obra de Kristeva apresente uma teorização
alternativa viável da formação social, apesar da qualidade sugestiva e o ri­
ginal de suas observações a esse respeito. Consideramos que os dois princi­
pais suportes teóricos da obra de Kristeva são a psicanálise lacaniana e o
marxismo althusseriano. Conseqüentemente, é ao problema da relação
entre estas duas teorias, e não ao da relação entre as obras de Althusser e
de Kristeva, que nos dirigimos.
Consideramos que as obras de Althusser e de Lacan representam as
formulações mais sofisticadas de suas respectivas tradições teóricas. Desse
modo, podemos caracterizar a relação entre estas duas teorias como sendo
a relação entre o marxismo e a psicanálise em geral.
Abordamos a tarefa de analisar a relação destas duas teorias ao longo
de dois caminhos intimamente relacionados. Precisamos desenvolver uma
posição fora da posição de ambas as tradições; e para tal precisamos cons­
truir o componente epistemológico e o componente teórico de tal posição.
A separação destes dois componentes é feita para maior clareza de exposi­
ção; nenhuma afirmação está sendo feita sobre suas inter-relações na ciên­
cia que constituem.
290 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

Epistemologicamente, começamos considerando que nenhuma ciência


pode proclamar ser, num sentido absoluto, "verdadeira". Argumentamos
que a questão da "verdade" é uma questão filosófica, uma questão sem
resposta. Esta posição, que deve algo à obra de Derrida, encontra sua fo r­
mulação mais explícita na obra de Althusser. Nela a filosofia é vista como
intervindo em nome da prática científica para traçar uma linha divisória
entre a ciência e as ideologias. A obra deste últim o argumenta que esta prá­
tica filosófica representa a luta de classes no dom ínio da teoria. A ciência
do materialismo histórico cria seus próprios critérios epistemológicos com
os quais justifica sua própria condição científica e se separa das ideologias.
Partindo desta posição, devemos tentar desenvolver o conceito de uma
ciência que possa ser vista como sendo até certo ponto determinada por
sua relação com a formação social da qual ela é um elemento. Ao mesmo
tempo, precisamos tentar ultrapassar o ponto de afirmar que um discurso
é científico na medida em que entra na luta de classe do lado dos elemen­
tos progressistas. Argumentaríamos que um aspecto importante da ciência
r^ão é o fato de ela ter uma relação expressiva com um mundo real, mas o
fato de ter a justificação de uma extensão de controle sobre o dado; isto
é, como um discurso que tem uma relação ativa com as coerções estrutura­
das que, ao mesmo tempo em que são incognoscíveis em qualquer senti­
do absoluto, devem ser levadas em conta como uma precondição da ação
eficiente.
Dada esta caracterização provisória da ciência, seguem-se duas conse-
qüências. Por um lado, os desenvolvimentos de ciências particulares podem
ser explicados em termos de suas inter-relações e conflitos ao nível parti­
cular da formação social própria dos discursos teóricos, bem como em ter­
mos de sua efetividade em outros níveis da formação social.®
Por outro lado, o fato de que uma ciência bem-sucedida implica uma
extensão do controle sobre o dado significa que uma ciência bem-sucedi­
da da formação social deve inevitavelmente ser uma força política progres­
sista. Isto pressupõe que a luta política progressista implica a extensão de
um controle racional consciente sobre as ações e os desenvolvimentos da
formação social.
Neste sentido, podemos acrescentar um critério político aos nossos
princípios epistemológicos. Isto nos permite iniciar a análise das condições
e das relações entre o marxismo e a psicanálise, já que estas duas disciplinas
rhanifestamente reivindicam significância política bem como teórica. Esta
posição epistemológica é uma extensão e um afastamento da posição assu­
mida por Althusser em Lenin and Philosophy (1971).
Teoricamente, nosso ponto de partida é a consciência simultânea dos
conceitos tanto do materialismo histórico como da psicanálise. Assim, os
dois sistemas de conceitos comentam um ao outro, sendo que os prós e
os contras de cada um podem ser avaliados. A respeito desse processo com­
IDEOLOGIA E SUBJETIVIDADE 291

plexo o máximo que se pode dizer é que um ato de distanciamento e de smte-


iB começa a tornar possível o desenvolvimento de novos conceitos.'' Deve
ler uma das primeiras tarefas da nova teoria prover uma explicação adequa­
da da confrontação entre o materiaüsmo histórico e a psicanálise.
O ponto de partida lógico desta nova teoria é a reconceitualização da
nspecificidade da formação social humana. Podemos começar colocando
lodo o dom ínio do "c u ltu ra l" e do "social" em sua relação com o "natu­
ral", isto é, desejaríamos pôr um termo à separação radical entre as ciên­
cias "humanas" ou "sociais" (a própria confusão de termos é sintomática)
• as ciências "físicas" ou "naturais".
Nesse estágio inicial devemos nos contentar em afirmar que a teoria
•m consideração é uma que caracterizaria a função definidora da formação
locial como "a manutenção de seus sujeitos". Esta manutenção é neces­
sária em dois sentidos: a formação social precisa manter seus sujeitos na
medida em que sua subjetividade exige como suporte a massa de animais
humanos individuais, que precisam ser alimentados, vestidos, alojados e
precisam se reproduzir. Do mesmo modo, a formação social precisa, por
ilefinição, manter seus sujeitos como sujeitos, num estado de sujeição psí-
«luica e organização. A formação social é vista como sendo, em seu aspecto
mais geral, uma estrutura tanto econômica como psíquica.
Conseqüentemente, podemos passar à tarefa de teorizar a confronta­
ção entre o materiaüsmo histórico e a psicanálise. Um dos primeiros objeti­
vos de nossa teoria é explicar suas próprias origens. Ao empreendermos
Bita tarefa, uma das primeiras necessidades deve ser a conceitualização da
lormação social na qual o desenvolvimento da nova teoria teve lugar. Argu­
mentaríamos que a formação social caracterizada pela dominância do
modo de produção capitalista implica uma contradição básica. Ao empreen­
der a tarefa de manter seus sujeitos num sentido econômico, a formação
precisa, devido às peculiaridades do modo econômico capitalista, questio­
nar o modo de sujeição psíquica e a organização de seus sujeitos.
Nas formações pré-capitalistas, a Lei que Lacan identifica ao nível da
Limília forma a base das instituições políticas. O sujeito vê sua subjetivida-
ile afirmada por todas as instituições com as quais está em contato. Con­
trastando com isso, as instituições que refletem as necessidades abstratas e
Impessoais da expansão do capital têm uma relação apenas distante e fre-
(|uentemente antagônica com as estruturas da subjetividade. A expressão
ilostas estruturas é relegada aos lugares subordinados das associações reli­
giosas, de família e "com unitárias".
É nos termos de uma formação social determinada por esta contradi­
ção entre o econômico e o subjetivo que situaríamos a prática política,
ou, como a chamamos anteriormente, "prática significante". Especifica­
mente, poderiamos mencionar a prática artística, concordando com a afir­
mação básica de Kristeva de que ela representa uma tentativa de composi-
292 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

ção com uma subjetividade enfraquecida e em crise. O mesmo processo


poderia ser visto como a base da possibilidade de uma conscientização fe­
minista e da luta contra o sexismo. É nos termos destas lutas, bem como
da luta da classe trabalhadora, que começaríamos a explicação dos desen­
volvimentos teóricos.
O marxismo e a psicanálise podem ser vistos como as representações
destas práticas ao nível da teoria. De acordo com isso, ambos poderiam ser
vistos como ciências no nosso sentido do termo; e já que ambas as discipli­
nas partilham esta condição, existe uma possibilidade de estarem numa re­
lação de confronto. Nossa análise dessa confrontação implica a hipótese de
que, falando sem rodeios, o marxismo e a psicanálise afirmam explicar o
mesmo fenômeno. Devido a isso, ocorre uma situação em que uma dessas
duas teorias tenta engolfar a outra confiscando seus conceitos e instalando-
os numa posição subordinada dentro de seu próprio sistema de conceitos.
Argumentaríamos nós que esta é a interpretação a ser dada ao tratamento
que Althusser dá à psicanálise em "Freud e Lacan" e na segunda parte do
ensaio " A Ideologia e os Aparelhos Ideológicos do Estado", intitulada "So­
bre a Ideologia" (Althusser, 1971). Esta interpretação evidentemente não
dependeria de Althusser nos dizer que é isto que ele tenciona fazer, e
tampouco a interpretação esperaria tal comunicação. Existe uma análise
ainda mais complexa a ser feita quanto às origens desta confrontação teóri­
ca nos fracassos, impasses e rivalidades das várias formas de luta política.
Podemos a esta altura afirmar termos delineado os elementos de uma
posição que é distinta dos elementos tanto do marxismo como da psicaná­
lise. Esta nova teoria da formação social atribuiría uma determinância bá­
sica ao psíquico, bem como ao econômico, como não o faz o materialismo
histórico. A teoria da subjetividade, que seria um componente da nova teo­
ria, diferiría da psicanálise não somente por causa das diferenças radicais
nos modos de pensar as formações sociais, como também entre os dois sis­
temas (basta pensarmos nos escritos de Freud sobre a civilização e suas o ri­
gens míticas para nos darmos conta disso). Essa teoria também diferiria ra­
dicalmente em seu modo de pensar a vida psíquica do indivíduo. A teoria
de Kristeva sobre a subjetividade (Kristeva, 1974) constitui o começo de
tal teoria.
Estes argumentos e invocações de argumentos podem fazer mais do
que servir de começo e de introdução a um debate m uito mais amplo. Eles
representam nosso progresso, até o momento, na tarefa de form ular um
modo de análise do texto artístico e de sua relação com a ideologia. Não
é preciso assinalar as conseqüências de amplo alcance deste projeto. O que
começou como uma tentativa de pensar as especificidades da arte e da
ideologia, e sua relação, necessariamente nos leva (ou assim nos parece) a
uma tentativa de construir e sustentar uma posição epistemológica e teóri­
ca inteiramente nova. Se nossa empresa parecer escandalosa, não poderia
IlilOLOGIA E SUBJETIVIDADE 293

lidver melhor testemunho da natureza escandalosa dos textos artísticos que


nos desafiam a analisá-los.
Ao mesmo tempo em que jamais poderiamos ter esperado solucionar
II problema da relação entre arte e ideologia, na falta de qualquer concei-
iiinlização final delas, esperamos ter começado a indicar esta solução.
(Aceitamos a impossibilidade de uma abordagem amplamente teorizada de
i|ualquer texto artístico agora e durante algum tempo ainda.) Por enquan-
iii, devemos nos contentar com o fato de que nossa argumentação aproxi­
ma muito mais o momento em que poderemos pensar plenamente as ina-
ilaquações e a utilidade das teorias de Macherey e Kristeva referentes à
iiilação entre arte e ideologia. Importante ainda, esperamos ter demonstra­
do o caráter central desse problema do artístico para o futuro desenvolvi­
mento tanto da teoria como da prática política. Nosso projeto teórico visa
it teorização, unificação e facilitação das lutas políticas consideradas como
lous precursores.

NOTAS

Ver Ler\'\r\, P arty Literatu re a n d P a rty Organisation, 1905.


Por exemplo os de Kant, teoria clássica alemã e romantismo.
A referência é a Les Français Fictifs: !e R ap port des Styles Littéraires au Français
National, Hachette, 1974.
Uma leitura sintomática é uma leitura que constrói a problemática incluindo a
ausência de problemas e conceitos num texto, isto é, a inconsciência do texto, no
modelo da leitura dos analistas freudianos dos relatos de seus pacientes. Ver L.
Authusser, F o r Marx, Allen Lane, Londres, 1970,
Ver K. Marx, The German Ideology, Lawrence & Wishart, Londres, 1970.
Estamos supondo aqui uma formação social incluindo um mvel de produção teó­
rica, embora seja uma questão que deve permanecer sem solução por ora.
Ao examinar essa questão é importante ter em mente a formulação de Althusser
(1970, p. 27): "Todo esse processo ocorre na crise dialética da mutação de uma
estrutura teórica em que o 'sujeito' não desempenha o papel que acredita estar de­
sempenhando, mas o papel que lhe é atribufdo pelo mecanismo do processo."

BIBLIOGRAFIA

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L. Goldmann (1964) Pour une sociologie du rom an Gailimard,
294 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

J. Kristeva (1975) The Speakinkg Subject a n d Poetical Language itrabaího apresenta­


do no seminário interdisciplinar sobre "Identidade em Antropologia", organizado
por Jean-Marie Benoist, sob a direção de Lévi-Strauss, Professor no Coliège de
France; a versão em inglês foi apresentada como uma conferência na Universidade
de Cambridge).
J. Kristeva (1976) "Signifying Practice and Mode of Production" Edinburgh 76 M a ­
gazine n9 1.
J. Kristeva (1973-4) The S ub ject in Signifying Practice (trabalho apresentado no se­
minário sobre teoria da literatura na Universidade de Colúmbia).
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P. Macherey e E. Balibar, "Sur Ia littérature comme forme idéologique: quelques
hypothèses marxistes” L itté ra tu re n9 14.
J. Roussel A n In tro du ctio n to Lacan NLR 51.
F. de Saussure (1974) A Course in General Linguistics Fontana.
Notas sobre Marx e o
Problema da Individualidade

Victor Molina

Introdução

A conceitualização da ideologia foi relacionada recentemente, sobretudo


pelas importantes formulações de Althusser, á problemática da individua­
lidade.
Este problema é polêmico em si mesmo, tendo uma história própria.
Ele sempre foi o campo de um "hum anism o" estranho ao marxismo,
teórica e politicamente. Um problema a ele relacionado, o da subjetivida­
de, tem sido uma arma crucial na argumentação que defende uma relação
entre o marxismo e, por exemplo, a psicanálise, uma combinação que tam­
bém coloca problemas teóricos e políticos. Em relação a ambos os proble­
mas existem tentativas para relacionar o marxismo às disciplinas "humanas"
tradicionais; antropologia, a própria psicanálise etc.
Quando se examinam os detalhes desta situação, pode-se ver que estes
problemas relacionam-se necessariamente a uma discussão sobre os p rincí­
pios básicos do marxismo. Se estas propostas envolvem concessões teóri­
cas, e achamos que assim é, então o problema não é meramente um proble­
ma acadêmico, porque o que há é uma "barganha em torno de princjpios".
Este artigo é um esforço para examinar alguns dos problemas teóricos
que surgem quando o problema da ideologia é relacionado com a "in d iv i­
dualidade" (e também com a "subjetividade"). Estes problemas dizem res­
peito à teoria marxista como tal. Nesse sentido, o artigo não é sobre um
tema como "ideologia e individualidade", mas implica uma ênfase unila­
teral sobre o problema da individualidade como tal.
Primeiro, examinamos o tratamento da individualidade como existe
na própria teoria do marxismo. Argumentamos em favor da validade de
duas teses essenciais sobre a "individualidade", com a conclusão de que
não existe uma "teoria do indivíduo" em Marx.
Em segundo lugar, examinamos alguns aspectos do problema de um
"humanismo" marxista, sendo que aqui argumentamos pela validade da
tese de um anti-humanismo em Marx.
296 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

Finalmente, examinamos brevemente a preocupação particular com a


"individualidade", que está presente nas formulações de Althusser sobre
a ideologia.

Marx e a individualidade

Os indivíduos sob relações sociais definidas


A condição teórica da categoria de "in d iv íd u o " é claramente formulada
por Marx quando ele retoma o "fio condutor" de seus estudos:

Na produção social de suas vidas, os homens entram em relações definidas que


são relações de produção indispensáveis e independerues de sua vontade . O
resultado total destas relações de produção constitui a estrutura econômica da
sociedade, o fundamento real sobre o qual se ergue uma superestrutura legal e
política e à qual correspondem formas definidas de consciência social. (Marx,
1859 Preface, p. 503)

Esta tese, que é a base para a obra teórica de Marx, foi formulada em A
Ideologia Alemã. Seu argumento fundamental é aí baseado numa concep­
ção dos "hom ens" em termos de homens em seu elo social dado, em con­
traste com Feuerbach, que "pára na abstração 'homens'". Daí em diante,
o interesse teórico de Marx será justamente a natureza desse "elo social"
dado, com base no processo social de produção.
Sempre há a tentação de se ver na formulação acima o ponto de parti­
da de uma conceituaçlo sobre o indivíduo concreto. Mas, ao contrário, é
justamente aí que Marx separa a si mesmo do "indivíduo concreto" como
um objeto analítico. Devemos ter em mente que todas as referências feitas
por Marx a indivíduos concretos referem-se apenas à existência de algumas
premissas óbvias:

As premissas de onde partimos não são arbitrárias, não são dogmas, mas premis­
sas reais. . . elas são os indivíduos reais, sua atividade e as condições materiais
em que vivem. . . A primeira premissa de qualquer história humana é, evidente­
mente, a existência de indivíduos humanos viventes. (Marx, The German Ideolo-
9V. P- 19)

Mas isto implica que


devemos começar estabelecendo a primeira premissa de qualquer existência hu­
mana e, consequentemente, de qualquer história, a premissa específica de que os
homens devem estar em condição de viverem para "fazer história". Mas a vida
implica antes de mais nada comer e beber, uma habitação, roupas e muitas ou­
tras coisas. O prim eiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para satisfa­
zer estas necessidades, a produção da própria vida material. {The German ideo-
logy, p. 30)
MARX E o PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 297

I in suma, A Ideologia Alemã mostra precisamente que a conceitualização


ilu Marx não é sobre a premissa dos "indivíduos viventes", mas sobre este
«to histórico". Ele está explicitamente procurando defender uma concep-
i.ío materialista da história fundamentada na existência particular áerela-
çlJes sociais:

Assim, é bastante óbvio desde o inicio que existe uma ligação m aterial entre os
homens, que é determinada por suas necessidades e seu modo de produção, e
que é tão antiga quanto os próprios homehs. Esta ligação está sempre assumindo
novas formas, apresentando, assim, uma "história", independentemente da
existência de quaiquer disparate político ou religioso que manteria os homens
unidos de maneira especial. {The Cerm an Ideology, p. 32)

I a concepção de Marx da história, que "depende de nossa capacidade de


oxpor o verdadeiro processo de produção" {The German Ideology, p, 41),
i|iie postula desde o início a fórmula conceituai com que pensamos teorica­
mente "in d ivíd u o ": indivíduos definidos sob relações de produção defini­
das (e outras relações sociais). Em outras palavras, o que confrontamos são
indivíduos dentro daquele "conjunto de relações sociais" que é, desde as
Teses sobre Feuerbach, apontado como o objeto da teoria de Marx. Isto
vignifica que o que encontramos em Marx não é absolutamente o desenvol­
vimento de uma teoria do "in d ivíd u o ", mas uma explicação teórica das
lelações sociais. A categoria de "in d ivíd u o " é a partir de então completa­
mente subordinada à teorização sobre estas relações, em particular das rela­
ções de produção. E esta prioridade não é metodológica (como a abstração
"sociológica" atual), mas baseia-se na especificidade das próprias relações
sociais.

Devido ao fato de Marx defrontar-se com uma análise das relações,


que são constituídas como um "co n ju n to " complexo de relações, há a
necessidade de se rejeitar a categoria de "hom em " como um conceito com
o qual se pensa a sociedade. Esta categoria não pode ser mais do que um
conceito inicialmente "u n itá rio " (Gramsci) com o qual a dialética das rela­
ções reais não pode ser pensada, exceto em termos daquela "relação idea­
lista do homem consigo mesmo" criticada por Marx (e que é a base idealis­
ta da noção humanista de "alienação").
Estas formulações têm importância decisiva, porque para Marx as rela­
ções sociais não são relações entre "indivíduos":

Estas relações não são relações entre Indlvfduo e Indivrduo, mas entre traba­
lhador e capitalista, entre camponês e proprietário de terras etc. [The Poverty o f
Philosophy, p. 87)

De fato, para Marx o conceito de "sociedade", e sua relação com a catego­


ria de "in d ivíd u o ", é muito específico:
MAKX E o PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 299

liliolístas de produção já está implicada uma separação entre uma existên-


• iti social e uma existência natural. É isto que está por trás do caráter du-
iiiii da mercadoria, por exemplo, e em conceitos como dinheiro e capital.
Alám do mais, o funcionamento das relações de produção capitalista im ­
plica a permanente extinção (no processo de produção capitalista) da indi-
wiiliialidade natural" de seus elementos. As relações capitalistas implicam
uma indiferença específica para com a particularidade e a individualidade
■naturais" de seus elementos. Não é apenas a troca de mercadoria que im ­
pinja isto, mas também o caráter "abstrato" do trabalho, o conceito de
dinheiro, e ainda o conceito de capital.
De fato, no funcionamento das relações de produção está implicada
uma existência particular da individualidade (em geral). Em outras pala-
■M.is, inerente à natureza das relações sociais existe uma relação particular
i;om a individualidade.
É nesse sentido que as relações de troca, por exemplo, implicam para
M irx a existência de "indivíduos que são indiferentes uns aos outros"
[l.rundrisse. p. 156). Esta "indiferença m útua" diz respeito a algo m uito
pieciso: na relação de troca os sujeitos são

iguais, e ao mesmo tempo indiferentes uns aos outros; qualquer outra distinçffo
individual que possa haver não lhes diz respeito; eles são indiferentes a todas as
suas outras peculiaridades individuais. (Grundrisse, p. 242)

I videntemente, nas relações de troca, esta indiferença está relacionada


i:om a "igualdade" pressuposta nesta relação (trata-se de uma relação de
■quivalentes), o que não é o caso para as relações mais específicas de pro­
dução (por exemplo, capital/trabalho assalariado), nas quais

os indivíduos relacionam-se mutuamente não mais como simples agentes de tro ­


ca ou como compradores e vendedores, mas em relações especfficas, que já têm
o mesmo caráter. {Grundrisse, p. 247)
Mas esta indiferença "a todas as suas outras peculiaridades individuais"
também é verdade em relação a todas as relações capitalistas, no sentido de
uma indiferença a peculiaridades "naturais", isto é, a peculiaridades (dife-
lenças) não procedentes das determinações da própria relação social. Ve­
remos, por exemplo, que o conceito de personificação baseia-se precisa­
mente nesta indiferença.
O que desviou algumas interpretações desta problemática é o fato de
que na relação de troca a "indiferença m útua" expressa não apenas uma
Indiferença a peculiaridades (diferenças) "sociais", provenientes, nesse caso,
das relações de produção:

Um trabalhador que compra mercadorias por 3 xelins aparece ao vendedor na


mesma função, na mesma igualdade - na forma de 3 xelins - do rei que faz a
mesma coisa. Qualquer distinção entre eles desaparece {Grundrisse, p. 246).
300 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

É a extinção e refutação de "formas mais desenvolvidas e contraditórias"


inerentes à relação de troca, considerada em seu caráter mais simples, que
está por trás do fetichismo particular que deriva desta relação, um feti-
chismo baseado naquela "abstração in fa n til" de alguns economistas c riti­
cada por Marx (ver, por exemplo, Grundrisse, pp. 249-50). Neste sentido,
na relação de troca encontramos uma extinção de todas as diferenças
"sociais" pressupostas por relações sociais contraditórias, nas quais "os
extremos que se opõem mutuamente são especificsments diferentes
(Grundrisse, p. 266) - por exemplo, capital/trabalho assalariado.
O caráter duplo desta "indiferença" (as determinações naturais e so­
ciais) levou a uma interpretação errônea da "indiferença m útua" como
sendo uma mera forma fenomemal ou "form a ideológica de uma desconexão
individual" tomada pelo que na realidade é uma relação de "interdepen­
dência m útua" individual (ver, por exemplo. Hall, 1974, p. 134). Para
Marx, contudo, a categoria "indiferença" não corresponde a uma categoria
da "independência": ambas referem-se a problemas diferentes. Quando
Marx diz que "a dependência recíproca e multifacetada de indivíduos que
são indiferentes uns aos outros forma sua conexão social" (Grundrisse, p.
157), ele não está estabelecendo uma oposição entre "dependência" e "in ­
diferença" mas apreendendo a especificidade de uma dependência objetiva
(caracterizada por "indivíduos indiferentes") distintamente de uma depen­
dência pessoal (na qual não existe, evidentemente, nenhuma indiferença a
particularidades pessoais). Eis por que Marx descreve as relações capitalis­
tas como caracterizadas por uma "independência pessoal baseada em
dependência objetiva" e por que ele fala de "conexão entre pessoas mu­
tuamente indiferentes".
De fato, a "indiferença m útua" inerente à relação de troca refere-se
principalmente ao caráter objetivo das relações capitalistas como exteri­
ores" aos indivíduos e diz respeito á negação de toda "peculiaridade" que
não derive das próprias relações. Neste sentido, não devemos nos esquecer
que o valor de troca, na argumentação de Grundrisse, é uma generalidade.
A atividade, não considerando sua manifestação individual, e o produto da ativi­
dade, independente de seu aspecto particular, são sempre valores de troca, e valor
de troca é uma generalidade na qual toda individualidade e peculiaridade são
negadas e extinguidas. (Grundrisse, p. 157)

Mas o conceito de trabalho abstrato implica esta "generalidade" e "in d ife ­


rença" também:
o trabalho não é este ou aquele trabalho, mas trabalho puro e simples, trabalho
abstrato: absolutamente indiferente à sua especificidade particular, mas capaz de
todas as especificidades... o próprio trabalhador é absolutamente indiferente à
especificidade de seu trabalho; este não tem nenhum interesse para ele como tal,
mas somente na medida em que seja de fato trabalho e, como tal, um valor de
uso para o capital. (Grundrisse, p. 296)
M M( X 1, O PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 301

I iiialmente, até mesmo o conceito de capital implica este caráter;

0 capital com o tal é indiferente a qualquer particularidade de sua substância,


aiditindo não apenas como a totalidade da mesma, mas também como a abstra-
cllo de todas as suas particularidades... o capital pode entrar em relação com
((ualquer trabalho específico, aquele trabalho particular com que se confronta
Muina ocasião dada é uma quastão acidental.

1 m suma, esta "indiferença m útua" diz respeito ao fato de que as rela-


i n«i capitalistas de produção e de troca "pressupõem a dissolução de todas
« inlações de dependência pessoais (históricas) fixas na produção" (Grun-
p. 156). Por exemplo, "na relação monetária, no sistema de troca
il«M.nvolvido... osvjnculos de dependência pessoal, de distinção de sangue,
it# ■■(lucação, etc. são de fato rompidos, dilacerados" {Grundrisse, p. 163).
1 1 <|ue ocorre é uma dissolução das relações de dependência numa forma
ii»'-/, na forma de relações que são exteriores e autônomas em relação aos
iMillvIduos. '
r por causa deste caráter objetivo das relações de produção que na teoria
iln Marx os mdivfduos estão relacionados apenas aos seus vínculos sociais.
II Indivíduo aparece apenas em seu "caráter econômico (social)" distinta-
iMmite de seu "caráter pessoal (natural)" como indivíduo.
O resultado desta argumentação complexa é m uito preciso: o indivíduo
iii»i leoria de Marx) é determinado exclusivamente pela sociedade, ele existe
»imnas com as determinações sociais decorrentes das relações de produção.
Viiiilica-se uma ausência teórica de qualquer determinação "n atural" (não-
«■Mml) para o indivíduo. Isto explica por que é impossível considerar a teoria
■In Marx como uma teoria sobre indivíduos concretos, cujo caráter concre-
I" implica precisamente algo mais do que suas determinações "sociais".
De fato, a conceitualização de Marx é sobre relações e não sobre os su-
/■»/fos presentes nestas relações. Isto porque, diz Marx, "em geral, as rela-
I iiiis podem ser estabelecidas como existindo somente por serem pensadas,
•II hirentemente dos sujeitos que estão nestas relações cada um com o o utro"!
Neste particular, a sorte teórica do indivíduo é semelhante à da merca-
■liiiia, que sofre uma "abstração" completa de sua existência natural (co­
mo uma mercadoria particular), sendo considerada na análise de Marx
imiramente em relação a sua existência econômica (como valor). E deve­
mos lembrar que a teoria de Marx não é uma teoria da mercadoria.
Voltando ao nosso indivíduo, devemos considerar que, evidentemente,
»li' í! um complexo de determinações "sociais" e "naturais"; mas a tese de
Miirx de um indivíduo "já pressuposto pela sociedade" implica uma dialé­
tica muito precisa: a da sociedade capitalista na qual "as relações pessoais
Itmcedem simplesmente das relações de produção e de troca" {Grundrisse,
|i 165). Neste sentido, as relações sociais (a sociedade) não são um mero
(Oino de fu n d o " referente aos indivíduos, mas representam o "co n ju n to "
302 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADi;

estrutural que constitui a própria individualidade. A individualidade é jus


tamente um produto do conjunto das relações sociais.
Quando Marx form ula o ponto de partida para a análise da produção
material como sendo a de "indivíduos produzindo em sociedade", ele
opõe esta categoria à do "indivíduo isolado" que aparece como um indi
víduo sem conexões sociais (Introdução de 1857, Grundrisse, p. 83). Na
sociedade capitalista, o indivíduo aparece como sendo "independente"
porque "livre de vínculos naturais". Mas o que a noção de "indivíduo iso­
lado" também não apreende é que esta independência de vínculos naturais
é simultaneamente uma subordinação total a vínculos sociais objetivos. De
fato, somente na sociedade capitalista

■é que as várias formas de conjunto social confrontam o indivíduo como um sim­


ples meio para seus propósitos particulares, como necessidade externa. Mas a
época que produz esse ponto de vista, o do indivíduo isolado, é também
justamente a das até agora mais desenvolvidas relações sociais (gerais deste ponto
de vista). O ser humano é no sentido mais literal um animal político, não sim­
plesmente um anim a! gregário, mas um animal que pode individuar-se somente
no seio da sociedade. (Introdução de 1857, Grundrisse, p. 84)

Esta concepção poderosa e rica de uma individuaçãoafrai/^sda determi


nação social condensa todas as teses anteriores. Este argumento também
demonstra estar errada qualquer concepção que apresente o indivíduo co­
mo a p rio ri em relação á sociedâde ou como seu ponto de partida. De­
monstra como sendo errada qualquer formulação de uma individuação
contra a sociedade (Marcuse). Também torna necessariamente errada qual­
quer afirmação circular segundo a qual o indivíduo é um produto-criador
da sociedade, como a de Schaff: "o indivíduo é sempre social — isto é, ele
é um produto da sociedade que cria" (Socialist Humanism, p. 145).Quanto
a esta última fórmula, deve-se notar que se trata de uma tese impossível
porque implica uma simultaneidade (de processos) d ifícil de ser sustentada
teoricamente e porque confunde numa fórmula simples uma tese perten­
cente a uma teoria da individualidade (o indivíduo como produto) com
uma pertencente a uma teoria da história (a sociedade como uma criação
do indivíduo), ambas exigindo uma argumentação completamente diferente
(a segunda sendo um absurdo teórico). Finalmente, qualquer tese que inter­
prete a Tese IV de Marx sobre Feuerbach em termos de uma tese sobre a in­
dividualidade ("o indivíduo como a totalidade das relações sociais" —Schaff,
Socialist Humanism, p. 144) obviamente é também inteiramente errada.

Os indivíduos como "personificações"


A linha de argumentação precedente, derivada principalmente de Grundris­
se, está completamente concordante com o tratamento da categoria de "in ­
divíduo" em O Capitai Ademais, é em O Capita! que Marx form ula com
Mamx I o PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 303

clareza o significado estrito de sua conceituaiização do indivfduo,


|iiii MMiio da tese sobre a "personificação":

>ii|iil os indivíduos sâo tratados somente na medida em que sáfo as personifica-


( Om de categorias econômicas, corporificações de relações de classe e interesses
ila classe particulares. Meu ponto de vista, segundo o qual a evolução da forma­
ção econômica da sociedade é vista como um processo de história natural, pode,
iniinos do que qualquer outro, fazer o indivTduo responsável por relações das
i/uáis ele perm anece sendo a criatura, por mais que subjetivamente possa elevar-
w .icima delas. (Capita! /, p. 20)

1*111 ■ nvitar problemas de tradução, podemos citar uma explicação mais re­
i enin desta tese:

cii Indivíduos são aqui tratados apenas na medida em que são as personificações
de categorias econômicas, os portadores (Tràger) de relações e interesses de clas-
■■ particulares. (Capita! /, Penguin, p. 92)

I oda a obra teórica em O Capita! pressupõe esta tese. Seja qual for a
ii|iinião que possamos ter sobre a tese althusseriana dos indivíduos como
iiiniiis "suportes de funções", uma coisa não pode ser negada: que O Capi-
i.if ■ uma análise de relações de produção capitalistas, nas quais a única
RaUilência dos indivíduos é como "portadores e agentes destas relações
II apita! III, p. 209).

Podemos mesmo concordar ou discordar de Marx, mas novamente não


um lemos negar que ele é muito exato quando afirma, sem ambigüidades,
i|iM' se refere a agentes de produção, isto é, "portadores das várias funções
PIO processo de produção" (Capita! III, p. 822).
As implicações teóricas dessa tese são m uito importantes, e são con-
•«((üência natural do caráter da teoria de Marx sobre capitalismo, na qual

os principais agentes deste modo de produção, o capitalista e o trabalhador assa­


lariado, são, como tal, simples corporificações, personificações do capital e do
trabalho assalariado; características sociais definidas rotuladas nos indivíduos
pelo processo de produção social; ps produtos destas relações de produção so­
cial definidas. (Capita! I I I , p. 880)

De fato, o que Marx está dizendo é que está tratando os indivíduos


nponas em termos de suas "características sociais", mas estas característi-
' 115 sociais não são determinações dos indivíduos como tal, elas constituem
um caráter econômico que é simplesmente "ro tu la d o " nos indivíduos. É
n'ila a razão pela qual os indivíduos são precisamente personificações do
I itegorias econômicas (categorias pertencentes a uma teoria "econômica",
iTias não a uma teoria do indivi'duo). Ewi outras palavras, a análise de M ai«
n uma análise que diz respeito à objetividade dos indivíduos. É uma niiálu.n
ili! uma realidade puramente social (Capital I, p. 54), a das rolflçftoi luclnli
304

em sua "form a pura", e esta realidade não é uma realidade de indivíduos,


mas é uma realidade na qual eles se situam.
Neste sentido, para os indivíduos, este caráter econômico é apenas "o
indicador da função social ou relação social de uns para os outros" (Grun-
drisse, p. 241). Quando Marx fala de capitalista e trabalhador assalariado
como personificações do capital e do trabalho assalariado, ele está falando
exatamente sobre "o caráter do capitalista e do trabalhador como os extre­
mos de uma única relação de produção" (Grundrisse, p. 297).
O Capital contém uma repetição particular dessa tese:

no curso de nossa investigação constataremos, em geral, que os caracteres que


aparecem no cenário econômico não passam de personificações das relações
econômicas que existem entre eles. [Capita! I, p. 89)

Os indivíduos aparecem apenas como "personagens econômicos" (Capita!


/, p. 147), confrontando-se mutuamente como comprador/vendedor, capi-
talista/trabalhador assalariado etc., isto é, de acordo com determinações
econômicas definidas pertencentes a relações sociais definidas e expressas
em categorias eco/7Ô/7i/cas. Assim, não é surpreendente ver que o capitalista
é "meramente o capital personificado e funciona no processo de produção
unicamente como o agente do capital" (Capital III, p. 819) ou que, se o
processo de produção inclui a produção e a circulação como funções do ca­
pital, então "ele inclui a necessidade de ter representantes destas funções",
isto é, agentes de produção e agentes de circulação (Capita! //,.p. 130).
Tudo isto implica indubitavelmente que a determinação de "capita­
lista", por exemplo, é atribuída a um indivíduo apenas quando ele está
representando uma função definida nos processos de produção. Ser um
capitalista não é uma definição de um indivíduo como tal, não é uma de­
terminação "in tern a" carregada pelo indivíduo, mas é uma categoria que
corresponde a uma função que ele está desempenhando — apenas isso. 0
fato de sua individualidade ser afetada por isso é outro problema.
Devido ao fato de em O Capita! estarmos tratando de um caráter
social "rotulado nos indivíduos", surge um problema interessante. Como
no caso dos meios de produção (que como tal não constituem capital), o
tratamento de indivíduos em O Capita! apóia-se na mesma base teórica em
que se apóia o tratamento de "coisas":

Não se trata aqui de definições, nas quais coisas [ou indivfduos, VM] tém que
ser enquadradas. Estamos lidando aqui com funções definidas que têm que ser
expressas em categorias definidas.ICap/ra/ //, p. 230)

Se as implicações desta tese forem tomadas seriamente, e elas são mui ]


to claras em O Capital, tudo indica que qualquer oposição ou mal-entendi­
do quanto à tese da "personificação" implica o perigo de um "fetichism o"^
MAKX E O PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 305

imitlcular em relação à problemática da individualidade. De fato, devido ao


Inici de que a teoria de Marx diz respeito às relações de produção sociais, a
|ipiil)lemátíca da especificidade e objetividade destas/■e/ações tem a mesma
liiima tanto para os indivfduos como para as chamadas "coisas". Em
imiras palavras, o problema da distinção entre uma existência soc/a/ e uma
itMtural, entre um caráter econômico e um material (natural) etc., tão cru-
1 1*1 para Marx, é também uma distinção que está presente no tratamento
I Dttceitual de Marx dos indivfduos.
É por isso que ele sempre fez uma distinção, por exemplo entre indi­
víduo pessoa! e de classe (A Ideologia Alemã), entre relações/^essoa/s e
objetivas {Grundrísse), entre caracteres sociais e natureza humana indivi-
iliml como tal (Contribuição) etc., e entre indivíduos como personifica-
\fíes e indivíduos como indivíduos (O Capital). Se estas distinções não
(oiem feitas, temos novamente a mesma confusão entre o que é um "cará-
ini econômico, social, impresso nas coisas no processo de produção so-
I iiil", e o que é um "caráter natural derivado da natureza material destas
■iiisas" (Capita! II, p. 229), uma confusão característica do tratamento fe-
iichista do conceito de capital (confusão capital/meios de produção), ou
II conceito de valor (confusão valor/valores de uso) etc.
Não podemos, aqui, avançar neste problema, mas parece-nos que toda
>1 argumentação de Marx tende a concluir que quando estamos diante da
inalidade dos indivíduos, estamos diante de uma realidade semelhante à das
mercadorias como "coisas dotadas de sentido e que são ao mesmo tempo
Mipra-sensíveis ou sociais" (Capita! I, Penguin, p. 165). Esta seria a razão
piila qual do mesmo modo que não encontramos em Marx uma teoria da
mercadoria como tal, tampouco encontramos em Marx uma teoria da indi­
vidualidade como tal. Em O Capita! encontramos apenas aquele caráter
econômico impresso nos indivíduos e nada mais.
Evidentemente, os indivíduos não são coisas. Eles são para Marx "re-
piesentantes conscientes". Quando um indivíduo funciona como um capi-
i.ilista, ele evidentemente funciona como "capital personificado e dotado
de uma consciência e de uma vontade" (Capita! /, p. 151). As relações de
produção são também, evidentemente, "contradições sociais de produção
tws quais o indivíduo é ativo” (Grundrisse, p. 172). Mas a existência dessa
consciência, vontade e atividade do indivíduo hão afeta a natureza das rela­
ções de produção (nem sua teoria). O importante para Marx, ao contrário,
é esta "personificação" (e esta atividade do indivíduo nas condições sociais
<1(1 produção), que indica a situação real do indivíduo com respeito às rela­
ções sociais (e com respeito à teoria de Marx). Nosso indivíduo não é uma
coisa, mas esta diferença refere-se apenas ao problema do processo pelo
i|ual as relações sociais são impressas ou rotuladas nos indivíduos. Os efei­
tos desta impressão na individualidade como tal (indivíduos como indiví­
duos) implicam a produção de uma individualidade específica por estes
306 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

efeitos, uma implicação que não está presente nas coisas. Em outras pala­
vras, esta implicação se refere ao problema daquela "individuação no seio
da sociedade" assinalada por Marx, concernindo ainda ao problema de
como "as relações pessoais derivam das relações de produção e troca". Mas
esta problemática não é de Marx.
Ao tratar o problema da criação da mais-valia, ao mesmo tempo em
que teoricamente permanecia na esfera da circulação, Marx pergunta a si
mesmo se a dificuldade em resolver este problema não viria de sua tese
sobre a "personificação":

Fiquemos, pois, dentro dos limites da troca, em que vendedores s5o também
compradores, e compradores, vendedores. Nossa dificuldade talvez tenha surgi
do do fato de termos encarado os atores c o m o p e r s o n ific a ç õ e s , em vez de c o m o
in d iv íd u o s . ^ C a p ita i I , p . 1 6 0 )

Em seguida Marx prova que não é este o caso. Mas o que ele estava
perguntando era precisamente se a causa do aparecimento de uma mais-va­
lia não veio de uma superioridade puramente individual de um indivíduo
sobre outro (nesse caso, maior esperteza), isto é, de uma diferença de o ri­
gem natural (individual), e não do caráter da própria relação social (nesse
caso, a relação de troca) personificada nos atores. Marx prova, então, que
sua insistência em considerar os indivíduos como "personificações" é não
apenas correta, mas necessária para a análise das relações capitalistas como
tal, explicando posteriormente a criação da mais-valia a partir da natureza
da relação de produção.
Mas o importante para nós é que Marx formula explicitamente uma j
distinção clara entre um tratamento teórico dos indivíduos como personifi­
cações (como portadores de categorias econômicas) e um tratamento dos I
indivíduos como indivíduos (de acordo com diferenças individuais não de­
rivadas da relação econômica propriamente dita). A pergunta e a resposta a
ela correspondem claramente a uma diferença entre qual é o problema da
condição da categoria de "in d ivíd u o " na teoria de Marx e qual seria o
problema de uma teoria da individualidade como tai, este últim o problema]
não estando presente em Marx.
Tudo isto está relacionado com o fato de que o conceito de personifi­
cação, o único através do qual Marx pensa a individualidade em O Capitai,
expressa a existência daquela indiferença a respeito de qualquer determi­
nação não derivada das relações sociais propriamente ditas, mediante as
quais Marx caracterizou as relações individuais em Grundrisse. Os indiví-^
duos existem dentro das relações sociais somente como portadores das de-|
terminações surgidas do conjunto destas relações. Isto, por sua vez, implicai
que os indivíduos na teoria de Marx são sempre pressupostos nesta indife-|
rença em relação à existência natural de sua individualidade.
MARX E o PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 307

Isto não surpreende se considerarmos a objetividade específica das re­


lações de produção como externas no que diz respeito aos indivíduos. A
■•Klerioridade e a autonomia destas relações, sua existência como funções
|•1 pressa em categorias econômicas, representam para Marx um caráter ac/-
ilfntal particular das relações (e das determinações que constituem) no que
ili/ respeito aos indivíduos.
Para Marx, o conceito de capital contém o capitalista, mas isto ocorre
■” tn uma completa indiferença quanto a que indivíduo concreto está im­
plicado nesta determinação. Criticando a tese socialista utópica de que
precisamos do capital, mas não do capitalista", Marx especifica;
Mas o capital em sua existência própria é o capitalista. Evidentemente, os socia­
listas podem por vezes dizer: precisamos do capital, mas n ío do capitalista. O
capital aparece como uma coisa pura, não como uma relação de produção que,
refletida em si mesma, é precisamente o capitalista. Posso perfeitamente separar
o capital de um indivíduo capitalista dado, transferindo-o para um outro. Mas,
ao perder o capitai, ele perde a qualidade de ser um capitalista. Assim, o capita!
é reaimente separável de um indivíduo capitalista, mas não do capitaiista, que
como tal confronta o trabalhador. Assim, também o trabalhador individual pode
deixar a existência própria do trabalho; ele pode herdar ou roubar dinheiro etc.
Mas ai' ele deixa de ser um trabalhador. Como um trabalhador, ele não passa de
trabalho em sua existência pròpr\a.{Grundrisse, p. 304)

De fato, Marx especifica que o caráter econômico do trabalhador assa­


lariado é o de ser o "condutor do trabalho como ta l", do trabalho abstrato
Iciiador de valor), e nestes termos ele existe como um trabalhador assala-
nado em oposição ao capitalista, isto é, numa relação de produção definida
Icomo um de seus extremos). Esta determinação existe apenas na própria
iitlaçâo, sendo acidental a todo e qualquer indivíduo específico, exceto
aquele que já está pressuposto nesta relação.
Isto está contido no caráter "abstrato" e "to ta l" (Grundrisse) do capi-
lal e do trabalho nas relações capitalistas. Está im plícito que

o trabalho é evidentemente em cada caso isolado um trabalho especi'fico, mas o


capital pode entrar em relação com cada trabalho específico; ele confronta a
totalidade de todos os trabalhos, sendo que o trabalho particular que ele con­
fronta num dado tempo é uma questão acidental. {Grundrisse, p. 297)

Esta acidenta!idade explica por que o tratamento dado aos indivíduos


nllo ultrapassa a conceituaiização deles como "personificações": a indivi-
iliialidade específica é irrelevante para a relação social como tal. As deter­
minações, funções, das relações capitalistas implicam, como vimos, ao mes­
mo tempo uma indiferença e uma capacitação de todas as especificidades.
I dentro destes limites que o problema do indivíduo existe para Marx.
0 mesmo ocorre com outras categorias. Marx gostava, por exemplo,
dii enfatizar o caso do dinheiro. Sendo também uma generalidade social, o
dinheiro
308 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADL

absolutamente não pressupõe uma relação individual com seu possuidor; a possi
do dinheiro não é o desenvolvimento de qualquer aspecto essencial particular di
individualidade do possuidor; mas sim a posse daquilo que não tem individuall
dade, já que esta (relação) social existe ao mesmo tem po como um objeto exter
no, sensório, que pode ser apanhado mecanicamente, e perdido da mesma ma
neira. Sua relação com o indivíduo aparece, pois, como uma relação puramenta
acidental. {Grundrisse, p. 222)

Como uma generalidade, no dinheiro constatamos, uma vez mais, que


"toda individualidade e peculiaridade são negadas e extinguidas" {Grun­
drisse, p. 157), O dinheiro não pressupõe uma individualidade específica,
mas, ao contrário, provoca efeitos na individualidade que o possui: " 0
indivíduo carrega seu poder social . . . no bolso." É interessante notar que
este problema relaciona-se curiosamente com aquela shakespeariana "equa­
ção do incompatível" (Grundrisse, p. 163) que Marx festejou nos Manus­
critos de 1844:
A extensão do poder do dinheiro é a extensão de meu poder. As propriedades do
dinheiro são minhas propriedades e meus poderes essenciais —as propriedades •
poderes de seu possuidor. Assim, aquilo que eu sou e aquilo de que sou capai
não é de modo algum determinado por minha individualidade. Eu sou feio, mai
posso comprar as mulheres mais bonitas. Consequentemente, eu não sou feio,
pois o efeito da feiura — sua força repelente — é anulada pelo dinheiro . .. Meu
dinheiro, portanto, não transforma minhas incapacidades em seu oposto? [Ma
nuscritos de 1844, p. 167)

Evidentemente, esta digressão é feita apenas como comparação curiosa,


sem intenção ou interpretação "humanista".

Notas sobre o humanismo

A n ti-Humanismo
O que assinalamos é a presença em Marx de diferentes teses concernentes à
individualidade. A principal consideração é a de que estas teses não consti­
tuem uma teoria da individualidade no sentido estrito, que por sua vez im­
plica ainda que o "in d iv íd u o " não é o objeto analítico de Marx (nem o
ponto de partida nem o ponto de chegada teórico). Nestas teses encontra­
mos uma coisa diferente: elas valem apenas como princípios teóricos com
os quais pensar a individualidade. A formulação de uma problemática da
individualidade pode surgir apenas do conhecimento existente sobre as re­
lações sociais capitalistas.
Estas teses nos levam a uma conclusão m uito precisa: os "indivíduos"
presentes no discurso teórico de Marx precisam ser pensados, como o faz
Luporini, apenas como "indivíduos nus". Com isto queremos apenas dizer
algo que já foi d ito: os indivíduos aparecem destituídos de toda determina­
ção, exceto aquelas decorrentes das relações sociais. Como diz Luporini:
MARX E o PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 309

A expressão "indivp'duos nus" está presente em Marx toda vez que ele adota a
palavra "hom ens" depois de ter destrüTdo o mito ideológico da "essência do
homem". Esta expressão não tem para ele valor próprio, mas uma função das re­
lações sociais, antes de mais nada das "relações de produção"; somente nesta
função é que ela tem valor científico. E é somente a partir dela que podemos co­
meçar a reconstruir o que é o indivíduo humano concreto de uma maneira não-
ideológica. {Dialectica Marxista, p. 63)

Este fato teórico é claramente formulado na tese althusseriana sobre


OI indivíduos (na teoria de Marx) como suportes das relações sociais:

A estrutura das relações de produção determina o lugar e as funções ocupadas e


adotadas pelos agentes de produção, que nunca são mais do que ocupantes destes
lugares, na medida em que são os "suportes" [Tràger) destas funções. {Reading
Capital, p. 180)

Por mais controvertida que possa ser esta tese, achamos que é a única
i|ue expressa a condição real da categoria do indivíduo na teoria de Marx.
Mas agora temos um problema diferente. No que diz respeito a uma
i:onceitualização marxista da "individualidade", parece que tudo o que
I onseguimos está, novamente, nas palavras de Luporini:

De modo algum a solução do problema do indivíduo . . . mas apenas o ponto de


partida para a formulação do problema. (Dialectica Marxista, p. 64)

De fato, no âmbito da discussão propriamente dita, não é apenas o ca­


ráter do tratam ento que Marx dá aos indivíduos que está em causa, mas
um problema m uito mais vasto concernente à pertinência de uma proble­
mática marxista da própria individualidade (a validade teórica de sua fo r­
mulação e seu desenvolvimento). No centro desta polêmica encontra-se
uma tese duramente criticada; a de Althusser quanto ao marxismo ser, teo­
ricamente, um anti-humanismo. Todo argumento sustentado neste debate
lorna-se claro quando o argumento assume uma posição em relação a esta
importante tese, que nem sempre tem sido entendida da maneira correta.
A principal formulação de Althusser é a seguinte:

Sob a relação estrita da teoria podemos e devemos então falar abertamente de


um anti-humanismo teórico de Marx e ver neste anti-humanismo teórico a condi­
ção de possibilidade absoluta (negativa) do conhecimento (positivo) do próprio
m undo humano e de sua transformação prática. Só se pode conhecer qualquer
coisa sobre o homem, na condição absoluta de reduzir a cinzas o mito filosófico
(teórico) do homem. Todo pensamento que então se pretendesse fundado em
Marx para restaurar de uma ou outra maneira uma antropologia ou humanismo
teóricos seria teoricamente reduzido a cinzas. (A Favor de Marx, pp. 202-203)

Esta tese é uma conclusão da concepção de Althusser do caráter do corte


que se encontra na base do fundamento teórico da ciência marxista e que é
310 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

um corte, antes de mais nada, com o humanismo teórico de Feuerbach.


Neste sentido, a teoria marxista estabelece-se nitidamente desde o começo
em oposição a uma filosofia antropológica.
Mas é ai que o problema começa. Deixando de lado a argumentação
apologética a favor de um fundamento antropológico da teoria marxista
(o "humanismo" habitual), encontramos algumas formulações que reco­
nhecem um aspecto positivo e um negativo nesta tese. Mencionaremos estas
formulações somente porque elas apontam diretamente para nosso proble­
ma da pertinência de uma problemática da individualidade no marxismo.
Por exemplo, Luporini expressa suas próprias reservas quanto à tese de
Althusser:

Considero que o corte epistemológico de que fala Althusser, e que Riazanov já


havia antecipado, é um fato cujo reconhecimento ou rejeiçSo determina qual­
quer atitude que se possa adotar com relaçáo ao marxismo teórico. Mas é neces­
sário dizer que se trata de um problema de fundamentos, um deslocamento de
fundamentos de um terreno "filosófico" para um terreno científico. Mas acho
que não há necessidade de se tirar disto conclusões contra o chamado "huma­
nismo" marxista (ou comunista, como queiram), como faz Althusser, pois
considero que nesta operação erradicadora confundem-se dois problemas com­
pletamente distintos: primeiro, justamente’ o dos fundamentos-, segundo, o da
problemática do animal humano (ou, se quiserem, de seu destino) no campo do
marxismo. O que é evidente é que esta problemática não pode continuar sendo
uma simples repetição, expansão ou acentuação de alguns temas do "jovem
Marx ', mas deve ser baseada, desde o início, na base científica do marxismo e
nos outros fundamentos científicos que lhe podem ser acrescentados. Podemos
dizer que humanismo e filosofia foram expulsos de seu lugar de "fundamento",
mas isto não é motivo para dar ao seu objeto de estudo um atestado de óbito.
("Introduction à Vidéoiogie Aiiemande" , p. 31)

Luporini está argumentando que o que achamos em Marx não é uma


denegação de uma problemática "humanista", mas uma transmutação cien­
tífica dela. Ele acha, por exemplo, que na Tese VI sobre Feuerbach temos
uma proposição elíptica, contra a interpretação althusseriana de ser ela
apenas um sinal. Para ele, esta tese prova que "a cientificidade do texto
de Marx consiste apropriadamente no fato de pensar as estruturas como
uma função dos indivíduos e vice-versa". Sua conclusão é a de que isto
"dá ensejo novamente ao problema do humanismo" (p. 34). A base para
esta problemática seria o reconhecimento de que "os indivíduos huma­
nos estão situados nas relações sociais" (p. 34) mas, ao mesmo tempo, eles
as interiorizam.

Um argumento mais extremado provém de Lucien Sève. Para ele, a


tese "anti-humanista" é correta somente no sentido de que expressa a rejei­
ção de Marx de qualquer humanismo especulativo, mas está errada em sua
rejeição de qualquer possibilidade de uma antropologia científica marxista:
MARX E o PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 311

A relação entre o marxismo da maturidade e o humanismo filosófico ainda pre­


sente nas obras do jovem Marx é frequentemente reduzida — incorretamente —a
um "corte", ao passo que a verdadeira relação é não apenas a de um corte com o
caráter especulativo de seu humanismo, mas também a de uma transmutação ci-
entrfica de seu conteúdo. {Marxism andthe Theory ofHum an Personality, p. 25)

É interessante ver o que significa esta transmutação, porque é aí que


■urgem as conseqüências desta tese com respeito a nosso problema da
"Individualidade":

Seu (de IVlarx) corte com as ilusões especulativas que predominam aqui é na rea­
lidade um desvio teórico necessário. Isto é feito com o objetivo de posteriormen­
te elaborar um conceito científico do homem e desse modo voltar aos indiví­
duos concretos e retornar ao problema do humanismo, (p. 28)

Aqui a problemática dos "indivíduos" é uma problemática que forma


uma unidade m uito particular com um "conceito do homem" e com um
"problema do humanismo". 0 que parecia ser apenas um problema sobre a
elaboração de uma teoria da individualidade, e uma defesa contra os exces­
sos althusserianos, é um argumento mais complexo.
Parece-nos necessário voltar a Althusser, porque seu "anti-humanis-
m o" é mais elaborado do que possa parecer. Sua tese é, no sentido estrito,
uma tese muito precisa:

o conhecimento do conjunto das relações sociais não é possível senão na con­


dição de prescindir completamente dos serviços teóricos do conceito de homem.
{A Favor de Marx, p. 216)

Na verdade, com respeito à problemática marxista científica, a tese


sobre o "anti-humanismo de M arx" é, acima de tudo, uma tese sobre a per­
tinência teórica de algumas categorias específicas. Em particular, esta tese
implica uma rejeição do conceito de homem como uma categoria marxista;
ele se refere explicitamente à:
eliminação do conceito de homem como conceito central pela teoria marxista
das formações sociais e da história. (Althusser, Essays in Self-Criticism, p. 200)

Em outras palavras, a rejeição "anti-humanista" althusseriana é con­


cernente às "pretensões (prétentions) teóricas de uma concepção humanis­
ta em explicar a sociedade e a história" {Ibid., p. 201).
Trata-se de um problema muito preciso, que não deve ser confundido
com o de uma elaboração de uma teoria da individualidade.
Paradoxalmente, nada há na obra de Althusser que possa ser interpre
tado como um encerramento de uma problemática da "individualidade .
O que há é apenas a formulação de alguns princípios rigorosos com o«
quais se pressupõe esta problemática, mas este rigor não deve ser confun
312 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

dido com um encerramento desse problema. Criticando a validade do pro­


blema do “ papel do indivíduo na história", Althusser afirma haver, real­
mente, outro problema: '

um verdadeiro problema, um que surge de direito na teoria da história: o proble­


ma do conceito das formas históricas da existência da individuaiidade 0 Capi­
tai nos fornece os princípios necessários para a colocação deste problema Ele de­
fine para o modo de produção capitalista as diferentes formas de individualidade
Migidas e produzidas por esse modo, segundo as funções, das quais os indiví­
duos sao os "suportes" [Trager) na divisão do trabalho, nos diferentes "níveis"
da estrutura. {Reading Capitai, p. 112)

Isto implica o reconhecimento de que

evidentemente, existe no homem algo mais do que o simplesmente econômico


e do simplesmente político. Existe o biológico, existe o psíquico etc Mas exis­
tem também (e necessariamente em virtude do tipo de eficácia social da estrutu­
ra sobre os indivíduos humanos) os efeitos da estrutura social sobre os indiví­
duos humanos. O erro de Schaff a esse respeito é o de descobrir numa teoria
imaginária da individualidade o que nada mais é do que os efeitos ausentes iinco-
nnus) da estrutura social sobre o indivíduo humano, é necessário elaborar uma
teoria da individualidade, das formas de existência da individualidade, partindo
das estruturas existentes do modo de produção existente: esta á a única maneira
de apreender o que constitui os efeitos das estruturas existentes sobre a indivi­
dualidade real. (Althusser, Polemica sobre Marxismo y Humanismo, p, 197)

Em suma, "o indivíduo é também objeto da ciência" (Althusser, Lenin and


Philosophy, p. 205).
Evidentemente não encontramos em Althusser um desenvolvimento
desta problemática, ele não vai além destas formulações. Mas estas form u­
lações são muito precisas e não excluem uma problemática teórica da indi­
vidualidade. A tese de um "anti-humanismo teórico", que é mais precisa­
mente uma tese de uma-humanismo (Reading Capitai, p. 119), é uma tese
sobre a natureza do materialismo histórico de Marx e deve ser confrontada
como tal. Não é uma tese "antiindividualidade", como implicitamente é
afirmado, por exemplo, por Sève.
É possível ver-se as dificuldades teóricas que as formulações de Sève
levantam quando constatamos nelas uma volta direta à velha fórmula hu­
manista quanto à história como a "realização do homem". Evidentemente,
ele também oferece uma versão "hum anista" de O Capitai\ "enquanto
tudo ISSO trata das categorias econômicas, é ao mesmo tempo sobre os indi­
víduos humanos" (p. 33).
Mas existe algo mais. Projetos teóricos como o de Sève não somente
dizem respeito a uma interpretação da teoria marxista, mas dirigem-se
especificamente a uma intervenção marxista no campo das chamadas "c i­
ências humanas". No caso de Sève, suas formulações são feitas como um
esforço para construir uma "teoria da personalidade", desta vez numa base
MAKX E O PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 313

mmxista, no campo da psicologia. Neste sentido, o esforço baseia-se no


loronhecimento de que o "marxismo, como materialismo dialético e mais
mpecificamente histórico, é a base da antropologia científica, a pedra an-
uiilar de todas as ciências do homem" (p. 54).
Esta proposição não está longe da de Althusser. Desde o início Althus-
«ir postulou como uma das conseqüências do desenvolvimento da teoria
marxista a "transformação dos domínios nos quais uma prática teórica
marxista ainda não existe" (For Marx, p. 169). Mas para Althusser esta
Intervenção-transformação implica um estrito ponto de partida: o conhe-
I. imento e a interpretação exatos do caráter da teoria marxista existente, e
é este conhecimento que está por trás de sua tese sobre o "anti-humanis-
m o". O problema das "ciências humanas" está também relacionado a um
entendimento de que existe uma situação particular na qual algumas " f i ­
losofias servem de substituto ideológico para uma base teórica que falta
ás "ciências humanas" (Philosophie Spontanée, p. 38), em parUcular as
filosofias da "essência humana" do homem. E isto implica que não há ne­
cessidade de se ver a teoria marxista como uma nova "filo s o fia " para as
ciências humanas; sempre há o perigo de novamente prover-se um "subs­
titu to ideológico". Achamos que se trata aqui de um problema real em
relação à polêmica "humanismo cien tífico " versus "anti-humanismo teó­
rico", e não o problema da rejeição/defesa de uma problemática (como a
"individualidade").
A resposta prática é fornecida pelo próprio Althusser, quando discute
o problema de uma teoria marxista da arte:

acredito agora que a única maneira com que podemos esperar chegar a um co­
nhecimento verdadeiro da arte, aprofundarmo-nos na especificidade da obra
de arte, conhecermos os mecanismos que produzem o "efeito estético , é
justamente passar um longo tempo e prestar a maior atenção aos princípios
básicos do marxismo, e não nos apressarmos a "passar a outra coisa’ , po^s se nos
movermos depressa demais em direção a "outra coisa" chegaremos nao a um
conhecimento da arte, mas a uma ideologia da arte, (Lenin and Philosophy.
p. 208)

Não estamos argumentando sobre a tese anti-hurnanista como tal.


Queríamos apenas dizer que esta tese não implica a rejeição de uma proble­
mática da "individualidade", mas, sendo uma rigorosa tese sobre o materia­
lismo histórico e concernindo diretamente à validade teórica do conceito
do homem, ela existe, ao contrário, como um princípio teórico com o qual
se pode postular qualquer problemática sobre a "individualidade". Neste
sentido ela situa-se no mesmo terreno da tese do "humanismo cientifico
em relação à "individualidade". Ela não é "extremamente nociva" (Seve)
a uma problemática da "individualidade", mas apenas a um desenvolvimen­
to "humanista" dela.
314
SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

0 que é nocivo a uma discussão deste problema é a confusão de argu­


mentos sobre a possibilidade de uma "ciência da individualidade" com os
argumentos sobre a natureza "humanista" da teoria marxista e com os de
uma "intervenção marxista nas ciências humanas". Trata-se de problemas
diferentes. Para pensar a "individualidade" (cientificamente) não precisa­
mos começar com um conceito do homem: eis todo o a n í/ humanismo que
temos.

Humanismo "socialista"?
Parece-nos necessário lembrar alguns aspectos da posição "humanista" clás­
sica e sua relação com o marxismo. Referimo-nos aqui especificamente
ao chamado humanismo socialista" que, apesar de suas várias tendências
sistemáticas, pode ser reconhecido como uma "problem ática" muito es­
pecifica. Veremos, partindo de alguns de seus principais princípios, que a
posição humanista (apresentada como uma posição marxista) apresenta
uma lógica humanista particular em ação, à qual toda e qualquer questão
teórica é referida e respondida. E é a atividade desta "lógica" que caracte­
riza o "humanismo" como uma ideologia particular. Abordaremos apenas
quatro aspectos deste problema.

1. O fato mais conhecido sobre a posição humanista é sua tese sobre a na­
tureza da teoria marxista. Seu principal esforço é provar que no centro da
teoria marxista existe uma filosofia do homem, isto é, que os fundamentos
teóricos da própria teoria de Marx residem numa filosofia antropológica.
Os conceitos básicos seriam os do homem, essência do homem, alienação
etc. A totalidade do materialismo histórico é reorganizada em torno destas
categorias. Assim, a^história é vista como a auto-realização do homem, a
sociedade é a "criação do homem", as relações sociais são relações "hum a­
nas" ou mesmo "existenciais", e assim por diante.
Basta lembrar algumas formulações:

Podemos dizer que a antropologia do jovem Marx é a chave para sua economia e
da mesma forma, para toda sua criação posterior. (Schaff, M a r x is m o , p. 40)
O cam.nlw para a wciologia de Marx começou com o problema do indivíduo
humano. U b id ., p. 85)
Seu e x a rp e da economia será especificamente compreendido tendo-se em mente
1 economia realizou o GATTUNGSWESEN (u n iv e r s a l-
le s W e s e n ) do homem. (Marcuse, M a r x y e i T r a b a jo A lie n a d o , p. 11)

Ou, de maneira muito sugestiva,

a interpretação marxista da história pode ser chamada de uma interpretação


antropologica dâ historia, se quisermos evitar as ambigüidades dos termos "ma­
terialista e economico", (Fromm, A ía rx /S u C o n c e p ro p 8)
MARX E O PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 315

Mas a posição humanista não é apenas uma interpretação errada da


teoria de Marx. Em outras palavras, não se trata apenas de uma expNcação
ruim da especificidade da teoria marxista, mas envolve uma negação real
desta especificidade. E é esta característica que está no centro das preten­
sões teóricas e práticas (políticas) de qualquer tese humanista.
Defender um fundamento antropológico para a teoria de Marx é negar
a cientificidade da teoria de Marx, que é seu aspecto teórico e político
específico. O marxismo não somente se fundamenta numa ciência (mate­
rial ismo histórico); a teoria de Marx não somente é uma ciência; mas a prá­
tica política marxista tem seus fundamentos numa "análise" cientifica
"concreta de situações concretas" (Lenin), como dever teórico das organi­
zações políticas marxistas-leninistas (como a premissa até mesmo do slogan
político mais simples). É a compreensão desta cientificidade que é retoma­
da na tese de umanfí-humanismo teórico de Marx, o que é claramente fo r­
mulado não apenas na obra de Althusser, mas também em Engels e Lenin.
Como dissemos, existe algo mais. 0 argumento antropológico relacio­
na-se claramente com uma tese sobre uma continuidade teórica e política
entre Marx e o socialismo utópico. Esta continuidade é particularmente
importante para a posição "humanista" porque nela^está implicada uma
continuidade com o próprio "hum anism o"; ela seria não apenas uma conti­
nuidade teórica, mas também uma continuidade política da ideologia hu­
manista como tal.
Com ambigüidade:

O socialismo cientffico de Marx, que transformou radicalmente a f o r m a pre­


existente de socialismo, mas n ã o seu p o n t o d e p a r t id a , que continuou sendo
o indivíduo humano e suas questões. . . (Schaff, M a r x is m o , p. 661

OU sem ambigüidade:
o homem foi a primeira e principal preocupação de Marx (que) nunca rompeu
os vínculos espirituais com o socialismo utópico. (Rubel, S o a a h s t H u m a n is m ,
p. 214)

Em suma, não há nem um corte com o ponto de partida teorico


(Schaff) nem um corte com os vínculos teóricos (o verdadeiro significado
da tese de Rubel) com o socialismo utópico, que para eles era "humanis­
ta ". É porque não há corte com um socialismo prõwo que é possível reor­
ganizar a teoria marxista segundo a lógica aprionstica do humanismo
socialista. ,,
É interessante notar que o chamado "humanismo socialista envolve
uma combinação contemporânea particular, apesar de alguns argumentos
em contrário (ver Mezraros), daquele socialismo filosoficamente "vordadei
ro " e daquele socialismo utópico criticado por Marx e Engels no Manifesto^
Comunista. Não apenas encontramos precisamente aquela "emasculação"
316 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

da "literatura socialista e comunista francesa" (desta vez é a literatura mar-


xista-leninista) baseada numa retórica sobre a "alienação" e representando
os interesses do "homem en^ geral" etc. (Marx, pp. 130-2), mas também
constatamos que para os humanistas (ver Marcuse, Fromm, Goldmann) o
proletariado "lhes oferece o espetáculo de uma classe sem qualquer iniciativa
histórica ou qualquer movimento político independente" etc. (p. 134).
Eis por que, entre outras coisas, a especificiade da teoria marxista é
reduzida meramente à de uma teoria crítica ■ .

A filosofia de Marx é uma filosofia do protesto. (Fromm, Marx y su Concep-


to, p. 8)
O materialismo histórico aparece, na primeira instância, como uma denúncia
do materialismo inerente à sociedade burguesa, e o princTpio materialista, neste
sentido, funciona como um instrumento critico de denúncia dirigido contra a
sociedade que escraviza os homens. (Marcuse, Marx y ei Trabajo Alienado
p. 1501

E, para Marcuse, esta natureza crítica da teoria marxista baseia-se em


outros aspectos cujo reconhecimento envolve um total desconhecimento
da própria teoria marxista; por exemplo, que em Marx há uma "restaura­
ção da categoria de vaior de uso no centro da análise econômica" (p, 50),
uma tese impossível de ser sustentada quando se lê O Capitai.
Assim, quando falamos de "humanismo", estamos argumentando a
favor de mais do que a utilidade de conceitos tais como alienação, homem,
essência humana etc. Estamos na verdade defendendo os protocolos de
uma interpretação idealista da história e da luta de classe.

2. Esta preocupação particular dos humanistas com os argumentos do so­


cialismo utópico, com o qual Marx é identificado, tambéni mostra o cami­
nho para o que é um eixo metodológico do humanismo socialista. Para
eles, a teoria marxista implica a formulação de um equilíbrio teórico em
oposição a um desequilíbrio real (existente na realidade). Este equilíbrio
existe na "u to p ia " (ver Rubel) ou na idéia de uma sociedade organizada se­
gundo a "natureza humana" (a sociedade comunista). Eis por que a histó­
ria é a auto-realização do homem. O movimento histórico como um pro­
cesso antagonístico de luta de classes desaparece. E é substituído por um
movimento feito pelos homens (uma categoria necessariamente unitária,
isto é, em equilíbrio) à procura da realização (futura) de um "id ea l" (a
realidade' de uma essência humana ainda não realizada): o equilíbrio a prio-
r i do conceito procurando um equilíbrio a posterior! do real. Eis porque
este "id ea l" (essência humana) pode servir, como em Marcuse, como uma
categoria crítica: o presente pode ser criticado pelo futuro. Todos nós co­
nhecemos esse tipo de argumento.
O pwocedimento teórico é claro. A possibilidade de uma interpretação
idealista d^*fíistória tem uma base teórica:
MARX E O PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 317

Os indívrduos, que já não estão sujeitos à divisão do trabalho, têm sido concebi­
dos pelos filósofos como um ideal sob o nome de "Homem". Eles têm conce­
bido todo o processo que delineamos como o processo evolutivo do "Homem",
de modo que a cada estágio histórico o "Homem" foi substitufdo pelos indiví'-
duos e mostrado como a força motora da história. Todo o processo foi assim
concebido como um processo da auto-alienação do "Homem", e isto deveu-se
essencialmente ao fato de que o indivíduo médio do período posterior sempre
fo i impingido ao estágio iniciai, e a consciência de uma era posterior aos indi­
víduos de uma era anterior. (The Cerman ideoiogy, p. 76)

No argumento humanista este estágio posterior é a sociedade comunista


(como uma utopia), através da qual a história é teoricamente concebida
como a realização contínua (mas nunca atingida) do homem (na qual o
homem é o homem da sociedade comunista, isto é, a essência humana rea­
lizada.
Esta versão simplificada do idealismo leva-nos a um problema interes­
sante. Os argumentos concernentes à realização de uma "essência humana"
e da "u to p ia " implicam um processo particular de eternalização de um
momento histórico "ideal". Metodologicamente, estamos diante do mes­
mo erro cometido pela Economia Política e duramente criticado por Marx.
De fato, no argumento humanista constatamos que as relações sociais
atribuíveis à sociedade comunista são concebidas como relações naturais,
da mesma maneira como a Economia Política concebeu as relações de produ­
ção no capitalismo;

Quando os economistas dizem que as relações de hoje — as relações da produçêo


burguesa — são naturais, eles supõem que estas são as relações nas quais a rique­
za é criada e as forças de produção desenvolvidas de conformidade com as leis
da Natureza. Estas relações são, conseqüentemente, elas próprias leis naturais,
independentes da influência do tempo. São leis eternas que devem sempre gover­
nar a sociedade. Assim, a história existiu, mas já não existe nenhuma. Existiu a
história, já que as instituições do feudalismo existiram, e nestas instituições do
feudalismo constatamos relações de produção bem diferentes das da sociedade
burguesa, que os economistas procuram fazer passar por naturais e, como tal,
eternas. (Marx, The Poverty o f Philosophy, p. 105)

Quando a tese humanista apresenta a "sociedade comunista" como


uma utopia, de acordo com alguma "natureza humana", temos a mesma
operação teórica. O que é apresentado como natural e "e terno" é evidente­
mente, não mais aquelas "relações de hoje" (como no caso da Economia
Política), mas as supostas "futu ras" relações comunistas, desta vez de con­
formidade com as leis da "natureza" humana. A única diferença é que na
Economia Política encontramos a eternalização no futuro (na consolidação
da ordem existente: a sociedade burguesa), ao passo que no caso humanista
encontramos uma verdadeira eternalização no passado (da consolidação
ideal da ordem já conseguida na "u to p ia "). De fato, temos novamente a pre-
318 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

sença do estágio posterior na análise (que pode agora ser uma "avaliação")
da realidade tanto passada como presente; no capitalismo, por exemplo.
Devido ao fato de que nesse caso o que é "eternalizado" é uma socie­
dade Comunista futura, estamos diante de uma inversão do problema da
história. Para a Economia Política, como observou Marx, "houve história,
ftias já não existe nenhuma". O argumento humanista, ao contrário, é de
que não houve história, de que a verdadeira história do homem só terá
início com o comunismo. Mas estas teses são a mesma coisa: se não houve
nenhuma história, foi porque houve instituições feudais, capitalistas etc.,
e encontramos nelas "relações bem distintas" das atribuídas à "natureza
humana".
Também encontramos aqui a necessidade humanista de uma substi­
tuição da análise científica por uma avaliação crítica (conceitos críticos
em Marcuse etc.) na qual há um confronto entre uma categoria "id ea l" e
uma realidade existente, esta categoria envolvendo não uma representação
da realidade, mas o equilíbrio utópico (a unidade expressa pelos conceitos
"Homem", "Natureza Humana" etc.). O que há aqui é o doutrinarismo
sempre presente no qual, como no caso de Proudhon, "a contradição só
existe entre suas idéias fixas e o movimento real" (Marx, Poverty o f Phi-
losophy^ p, 161). A idéia fixa humanista tem várias "faces unitárias": o
Homem, a essência humana, o comunismo (como um ideal) etc. E a con­
tradição que o humanismo descobre (entre suas idéias e a realidade) tam­
bém possui várias faces: auto-realização, auto-alienação etc.
Devemos notar que o que o argumento humanista apresenta é, talvez,
um problema real. A revolução proletária é, de fato, uma revolução que
"não pode haurir sua poesia.do passado, mas somente do fu tu ro " (Marx,
The 18 Brumaire, p. 400). Neste sentido, o que o socialismo humanista nos
oferece pode ser visto como uma "poesia do fu tu ro " positiva e útil para
convencer os oponentes e os indecisos, isto é, ú til para vencer uma luta
ideológica. É este o curioso argumento pronunciado por humanistas como
Lefèbvre (que explicitamente denota a importância "ideológica" do con­
ceito de "alienação"), Schaff, Goldmann etc.
Neste sentido, Schaff é muito claro:

o interesse intensificado na filosofia do homem deve ser colocado no contexto


das novas formas e significados da luta ideológica. Os marxistas estão agora cada
vez mais preocupados com a filosofia do homem . . . também porque estão inte­
ressados na luta ideológica. Pois a filosofia do homem tornou-se recentemente
não apenas o sujeito, mas também um instrumento desta luta. iS o c ia lis t H u -
'n a n is m , p. 148)

A luta ideológica é para ele um "argumento contra o sistema de valores que


se opõe a nossos pontos de vista" no qual "devemos propor nosso próprio
sistema de valores". Estes valores, evidentemente, são valores "humanistas".
MARX E O PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 319

A ideologia humanista, sendo teoricamente uma "filosofia do ho­


mem", reivindica sua função prático-social como ideologia, que será uma
função pragmática num movimento socialista. Mas o preço teórico é um
preço m uito particular: uma rejeição dos conceitos marxistas, e mesmo
uma correção do próprio Marx. Analisando este aspecto, chegamos perto
da especificidade da própria ideologia humanista: uma ideologia não-prole-
tária e uma teoria antimarxista.

3. Há, no argumento humanista, uma verdadeira rejeição da teoria de


Marx. Ela assume formas diferentes: às vezes trata-se de uma questão de
ênfase, e outras de uma correção explicita dos erros de Marx. Vamos exa­
minar uma destas formas, como exemplo das "operações" teóricas encon­
tradas por trás do discurso humanista.
Uma das teses preferidas do humanismo diz respeito a uma posição
quanto às condições revolucionárias do proletariado. Sua argumentação
baseia-se numa concepção particular de (a) uma lei econômica da absoluta
depauperização do proletariado e (b) uma teoria da alienação.
a. Para eles (Fromm, Goldmann, Marcuse, Rubel), o caráter revolucionário
do proletariado decorre de uma lei capitalista cuja conseqüéncia é a de­
pauperização progressiva do proletariado e "sua evolução necessária para
uma conscientização de seu próprio papel revolucionário" (Goldmann,
p. 43).
Em primeiro lugar, nada há em Marx que justifique tal lei. A tese mar­
xista é sobre uma depauperização "relativa" do proletariado sob o capita­
lismo. Falar de uma depauperização absoluta, como lei, significa que esta­
mos nos referindo a algo claramente incompatívei com a análise de Marx.
Em segundo lugar, isto significa que estamos adotando um critério
totalmente incompatível com o próprio critério de Marx: a pobreza como
uma "condição humana" passiva, baseada no que nada mais é que um "pa­
drão de vida" (a distribuição de valores de uso). Neste sentido, estamos
dentro dos mesmos limites teóricos do Socialismo Utópico: "somente do
ponto de vista de ser a classe que mais sofre é que o proletariado existe
para eles" (The Communist Manifesto, p. 134).
b. O caráter revolucionário do proletariado também reside, para eles, em
ser o suporte de uma condição de alienação, que é ainda uma "condição
humana". Quanto a isto:

Marx supunha que a alienação do trabalho, existente ao longo de toda a história,


atinge seu limite máximo na sociedade capitalista, e que a classe operária é a mais
alienada. (Fromm, M a r x y su C o n c e p t o , p. 60)
Marx acredita que a classe operária comandaria a transformação da sociedade
porque ela é ao mesmo tempo a classe mais desumanizada e alienada e potencial­
mente a mais poderosa, já que o funcionamento da sociedade dependia dela.
(Schaff, S o c ia lis t H u m a r tis m , p. ix)
A tese humanista retoma ambos os argumentos:

A concepção de Marx da revolução estava baseada na existência de uma classe


depauperizada e desumanizada. (Marcuse, L a S o c ie d a d , p. 40)

Este argumento é o resultado de uma assimílaçâio humanista da teoria de


Marx. Ambas as teses implicam uma distorção das próprias formulações
de Marx. Uma vez feita esta assimilação, nada é mais fácil do que provar
que Marx estava errado e propor a solução "humanista". De fato:

A história só fez uma correção do conceito marxista de alienação; Marx acre­


ditava que a classe operária era a classe mais alienada, eis por que a emanci­
pação desta alienação começava necessariamente pela libertação da classe
operária. Marx não previu que a alienação seria transformada na situação da
maioria, especialmente daquele setor que manipula os símbolos, e os homens
mais do que as máquinas. O empregador e o vendedor são agora mais alienados
do que o trabalhador qualificado (Fromm, M a r x y s u C o n c e p t o , p. 67)

Quanto a isso, Marx estava errado "em sua idealização romântica da classe
operária, conseqüência de uma atitude puramente teórica e não da obser­
vação da realidade humana de tal classe" (Fromm, PsicoanáUsis, p. 76)

O proletariado, qua deveria validar a equiparação de socialismo e humanis­


mo, pertencia a um estágio superado no desenvolvimento da sociedade indus­
trial. A teoria socialista, não importa quão verdadeira, não pode prescrever nem
prever os futuros agentes de uma transformação histórica (Marcuse, S o c ia lis t
H u m a n is m , p. 117)
A ação socialista nas sociedades industrializadas do Ocidente já não pode tomar
por base a premissa da crescente depauperização do proletariado e sua n e c e s ­
s á ria transformação numa força revolucionária. Os trabalhadores já não são
necessariamente levados pela crescente depauperização a escolher o caminho do
socialismo, como acreditavam os marxista do século X IX. (Goldmann,Soc/a//íf
H u m a n is m , p. 45)

Esta distorção humanista de Marx é completada por uma análise do


capitalismo moderno na qual este é chamado de "sociedade opulenta",
"sociedade industrial", etc. 0 que está implicado nesse conceito é que o
capitalismo moderno é uma sociedade que "superou as condições do capi­
talismo clássico" (Marcuse, La Sociedad, p. 45). E o que foi superado, cu­
riosamente, é a própria exploração econômica do capitalismo:

no pai's economicamente mais desenvolvido, os Estados Unidos, a exploração


econômica das massas desapareceu. (Fromm, P s ic o a n á U s is , p. 89)
Nas sociedades Industriais, a exploração econômica do proletariado continua,
mas atenuada. (Gabei, Soc/o/o^/e, p. 25)
No Ocidente, chegamos à situação em que as fronteiras que separam as classes
sociais começaram a desaparecer. (Gabei, Im a g e n , p. 72)
MARX E O PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 321

Evidentemente, a utilização que o humanismo faz do conceito de "e x ­


ploração" econômica nada tem a ver com o conceito de Marx, que é basea­
do na teoria de mais-valia. Aqui trata-se apenas de uma categoria relativa
a "padrões de vida": mas tem uma utilidade humanista porque serve para
transformar o problema num problema relativo à esfera do "consumo".
Exploração e alienação já não mais aparecem como atributos da esfera de
produção. Antes, sob sua aparência humanista, exploração e alienação
tornam-se aspectos da esfera do consumo, e o proletariado é conseqüente-
mente dissolvido num grupo indeterminado de consumidores.
Paradoxalmente, o jovem Marx é também superado, porque:

a forma de alienaçâfo tfpica do estágio real das sociedades industrializadas já nSo


é a alienação econômica. (Gabei, S o c io lo g ie , p. 25)
Ele (Marx) não previu o desenvolvimento do capitalismo ao ponto em que a
classe operária prosperaria materialmente e compartilharia do espTrito do capi­
talismo, enquanto que to d a a s o c ie d a d e se tornaria alienada em grau extremo.
Marx nunca teve consciência daquela a lie n a ç ã o a f lu e n t e que pode ser tão desu­
mana quanto a a lie n a ç ã o e m p o b r e c id a . (Fromm, S o c ia lis t H u m a n is m , p. ix)

E podemos continuar indefinidamente. Nosso único interesse é mos­


trar um caso particular de distorção da teoria marxista quando assimilada á
lógica humanista. E nesse caso as conseqüências são graves. 0 que está em
jogo não é apenas um problema acadêmico, mas justamente um problema
de importância fundamental ao debate p olítico sobre a revolução proletária.

4. Finalmente, podemos localizar o caráter de classe da ideologia humanis­


ta. Se levarmos a sério os mecanismos da lógica humanista, cujo resultado é
a distorção da teoria marxista — dissolução de seus princípios teóricos e
políticos, etc. — podemos constatar que estamos diante, na melhor das hi­
póteses, de uma posição não-marxista. Mas constatamos também qae o hu­
manismo implica, de uma maneira ou de outra, a realização de um interes­
se de classe não-proletário. Este caráter está explicitamerrte exposto por
Goldmann ao formular que o objetivo final da revolução proletária é, sem
ambigüidade:
uma integração dos principais valores h e r d a d o s d o h u m a n is m o d a classe m é d ia
(universalidade, liberdade individual, igualdade, a dignidade da pessoa humana,
liberdade de expressão) de modo a assegurai-lhes, pela primeira vez na história
da humanidade, uma autenticidade, em vez da condição puramente formal que
anteriormente tinham na sociedade capitalista { S o c ia lis t H u m a n is m . p. 40).
A sociedade socialista deveria restabelecer e desenvolver os valores do H u m a n is ­
já que este não apenas os despiría de seu caráter meramente fo r­
m o O c id e n t a l ,
mal ao eliminar toda exploração e distinção de classe, mas ainda os aglutinaria
organicamente numa comunidade ao mesmo tempo verdadeiramente humana e
plenamente consciente daqueles valores transindividuais que finalmente seriam
liberados dos graves empecilhos impostos pela pobreza e pela exploração nos
perfodos pré-capitalistas da história (p. 50).
322
SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

Neste sentido, o objetivo da revolução proletária seria o de dar uma existên­


cia prática aos valores de classe média. A revolução seria um ato de reaUza-
ção prática de valores, a realização da ideologia pequeno-burguesa. Eman­
cipação do proletariado significa acima de tudo emancipação de alguns
valores transindividuais organizados como humanismo. Trata-se explicita­
mente de realização do próprio Humanismo.
Na conceitualização humanista (que é uma explicitação de valores),
encontramos o fundamento (que é um fundamento filosófico) de uma de­
terminada organização da sociedade. E o importante é que estes valores
humanistas são os valores (expressão teórica de interesses de classe) da pe­
quena burguesia. 0 humanismo é, neste sentido, a expressão teórica dos
interesses da pequena burguesia quando ela pretende controlar, liderar ou
avaliar o movimento proletário. '
Podemos dizer ainda que, na melhor das hipóteses, e com respeito
à prática política marxista, a posição "humanista" expressa teoricamente
os limites conceituais nos quais a pequena burguesia como tal pode viver
tanto a prática marxista como a revolucionária. Ele mostra a maneira pela
qual o movimento revolucionário pode ser vivido a partir de uma posição
pequeno-burguesa. Em outras palavras, ele mostra o modo da interven­
ção pequeno-burguesa na luta do proletariado. Mas nada mais.

Humanismo “ científico "?


As formulações acima procedem do que é agora visto como um humanis­
mo especulativo", o que evidentemente ele é. Mas começando a partir da
primeira tese mencionada, de Luporini e Sève - como uma reação direta
contra a tese "anti-humanista" de Althusser - é possível colocar outra
vez o problema de um humanismo marxista. A nova formulação tende a
ser uma que argumenta a favor de um suposto humanismo científico.
Como vimos, para eles há em Marx não apenas uma rejeição de qualquer
oman^mo especulativo, mas ao mesmo tempo há uma transmutação de
conteúdo ào velho humanismo filosófico. Para eles o problema não diz res-
"humanismo" como tal, mas apenas a seu caráter, que pode ser
filosofico (quando postulado como fundamento da teoria de Marx) ou
cie n tifico " (quando baseado na teoria de Marx). Pode haver um huma
msmo cientifico sem que se coloque outra vez o velho e pernicioso proble­
ma? Até o presente não há provas de que isto seja possível.
Tomemos Sève. Para ele, confrontamos em Marx ao mesmo tempo
3 concepção do homem e da história"
(p. 27). Em Marx temos novamente uma teoria, que é agora científica da
essencia humana". Sem ambigüidades; '

Se o humanismo, no sentido teórico, significa que a história é vista como um


processo de rea/izaçao do homem, então é possível indubitaveimente dizer que o
marxismo á um humanismo que se tornou científico, (p. 29)
MARX E O PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 323

A condição “ científica" do humanismo deriva do fato de que agora


ele não se baseia numa redução dos conceitos materialistas a categorias
"humanistas", mas numa correspondência entre os conceitos do materia-
lismo histórico e as categorias sobre as instâncias humanas (indivíduo,
homem, etc.). Neste sentido, o marxismo é o "esquema do homem que
coincide com a ciência da história" (p. 30).
Mas esta "correspondência" leva Sève ao mesmo círculo teórico do
velho humanismo e, então, ao ecletismo: para ele, o indivíduo está 'v in ­
culado em sua essência às relações sociais que o produzem, ao mesmo tem­
po em que ele as produz" (p. 30). De fato, temos a mesma velha tese de
um indivíduo como produto/produtor das relações sociais, o que implica
uma concepção "humanista" da história. A noção de relações sociais como
sendo produzidas pelos indivíduos só pode ser tomada_como um argumen­
to "hum anista", e justamente um argumento que não é científico. Em
Marx não há lugar para esta "produção"; mesmo em sua teoria econômica,
as relações sociais nunca são produzidas, mas sempre re-produzidas por um
complexo processo que exclui, teoricamente, o indivíduo como tal. ^
Se há (para Sève) uma conexão imediata entre o humanismo e a ciên­
cia da história é porque na realidade existe uma conexão imediata entre os
homens (ou indivíduos) e as relações sociais. Uma destas conexoes imedia­
tas é por exemplo, a "entre as superestruturas e as ideologias, por um la­
do,é os homens, por outro lado" (p. 32). O perigo teórico (e político)
deste imediatismo pode ser visto claramente quando Sève formula sua pró­
pria conclusão; "A consciência dos indivíduos não pode. portanm, ultra­
passar os limites nem fugir aos problemas - e soluções - característicos de
sua classe" (p. 32). Esta tese está em total contradição com a de Marx, na
qual encontramos um exemplo da importância de se considerar teorica­
mente o caráter "acidental" das relações sociais com relação ao indivíduo.
Para Marx, a impossibilidade de ultrapassar os limites impostos pela relações
sociais existe apenas para a classe, mas não para os indivíduos como tal,
e esta formulação tem justamente sua maior validade no que diz respeito
à natureza das ideologias.
E o que é mais, este últim o problema tem sua maior importância quan­
do chega a vez da análise concreta, que justamente não é a vez do indivíduo
teoricamente "concreto". Lenin, em meio aos processos bem concretos de
1917, precisou formular o princípio anti-humanista de que um marxista
"tem ' que contar com fatos objetivos, com as massas e com as classes, e
não com indivíduos (e assim por diante)" (II, P- 42). É justamente a neces­
sidade de um entendimento materialista da distinção objetiva, não apenas
entre as diferentes classes, mas também entre as ideologias de classe, e assim,
também, entre tendências políticas, que torna importante, entre outras
coisas, um não-imediatismo teórico entre o indivíduo e as relações sociais.
É este, por exemplo, o argumento importante para Lenin quando ele
324 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

argumentou que 'todo marxista sabe que as classes são distintas, muito
embora os indivíduos possam mover-se livremente de uma classe a outra;
de modo semelhante, as tendências na vida política são distintas apesar do
fato de que os indivíduos podem mudar livremente de uma tendência para
qutra, e apesar de todas as tentativas e esforços para amalgamar as tendên­
cias" (II, p. 54).
Em suma, podemos dizer que o caráter "humanista" do argumento a
favor de um "humanismo científico" em Marx (contra a tese anti-humanis­
ta) deriva não do velho e direto reducionismo de conceitos marxistas a
categorias "humanistas", mas de uma tese mais sutil que coloca o proble­
ma teórico de uma "conexão entre a concepção do materialismo histórico
e a da estrutura da individualidade humana" (que em geral pode ser uma
problemática teórica válida em si mesma) como uma paradoxal necessidade
da coerência 'd a teoria marxista (Sève, p. 33). 0 conceito de homem, por
exemplo, está agora não no centro da teoria marxista, mas é um conceito
(um dos conceitos) do qual depende a teoria de Marx. Mas, quando entra­
mos nos detalhes, esta coerência nada mais é do que uma coerência "hum a­
nista . E trata-se de uma coerência m uito distorcida, na qual o conceito de
homem produz, como de hábito, milagres teóricos. Se a história é a "histó­
ria do homem", então não é de surpreender constatar-se que "cada forma­
ção social produz a longo prazo os homens de que precisa, incluindo os
homens de que precisa para transformá-la através da ação revolucionária"
(p. 33). A "formação social" é vista como um sujeito que tem a necessida­
de de produzir os homens "de que precisa". Voltando à tese leninista
acima, o esforço para amalgamar tendências", desta vez tendências
teóricas, é o problema sempre presente de qualquer "humanismo" e o
perigo para a teoria marxista.
E esta busca de uma coerência teórica para a teoria marxista que curio­
samente liga esta nova forma de "humanismo" científico a um outro amál­
gama contemporâneo: o que está im plícito na problemática referente à
"subjetividade". Não estamos negando os direitos teóricos a este objetivo
analítico como tal, mas achamos que quando este problema é postulado
em relação a uma necessidade do desenvolvimento de um "marxismo do
sujeito" as coisas se tornam problemáticas. Por exemplo, no artigo de John
EIlis em WPCS 9 testemunhamos novamente um esforço voltado para a
construção de uma "ciência da natureza humana" (EIlis, p. 205) que desta
vez permitiria uma explicação teórica daquilo que é concebido como o
"momento subjetivo do processo social".
Esta tese vai diretamente contra o alegado erro de pensar "os aspectos
externossem os aspectos internos" (por exemplo, com relação aos aspectos
do processo capitalista de reprodução) ou contra pensar "o objetivo sem o
subjetivo". Esta necessidade teórica de coerência é resolvida pelo amálga­
ma do marxismo com a psicanálise.
MARX E O PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 325

Após esta descoberta de um novo ecletismo (por um la d o ... e por ou­


tro lado...) que para Lenin é sempre uma substituição de dialéticas, torna-se
fácil relacionar o problema teórico a um problema político:

É vital para o marxismo levar em consideração este processo do inconsciente,


cujos efeitos são ouvidos e sentidos no consciente. Caso contrário, a psicologia
em funcionamento na propaganda e na ação poiftica continua sendo mecânica,
uma causalidade simplista. (EIlis, p. 214).

Em termos ainda mais claros, existe uma "lacuna fundamental na prin­


cipal corrente da política marxista", e esta é a lacuna da psicologia na p o lí­
tica (p. 216).

Deixando de lado as implicações desta afirmativa - em parte porque


ela é baseada num mal-entendido quanto às referências de Mao ao "subje­
tivo" (que estão longe de apelar para a psicanálise) - temos teoricamente
a mesma correspondência humanista entre relações sociais e homem. A
única diferença é que agora o momento do homem é o momento do " in ­
consciente". Aquilo que em Sève era apenas a "estrutura da individuali­
dade humana" é agora uma coisa precisa: o inconsciente.

É esta a razão pela qual este argumento é visto como "superando a


divisão tradicional do marxismo entre humanismo e anti-humanismo
(p. 205). Justamente porque a esfera "humanista" é agora postulada ex­
teriormente ao próprio marxismo, na psicologia, ou mais precisamente, na
psicanálise. Aquilo que é concebido a partir de muitas posições marxis­
tas (mas dominado pelo argumento "humanista") como uma intervenção
do marxismo na psicologia é aqui o seu reverso: uma intervenção da psico­
logia no marxismo. Esta posição é m uito mais complicada porque não há
necessidade de provar que o marxismo está correto ao desenvolver o pro­
blema da individualidade como "subjetividade". EIlis nunca se pergunta,
por exemplo, se o que ele vê como uma ausência da psicologia na política
(marxista) está relacionado a algo que é talvez mais importante e decisivo
(teórica e politicamente) para um marxista:uma falta de política (marxista)
na própria psicologia.

EIlis não precisa argumentar nesta polêmica sobre o humanismo justa­


mente porque ele não está preocupado com o problema de pensar o que
são os "princípios teóricos" da teoria de Marx e do marxismo em geral.
Mas, e se estes princípios implicarem a ausência teórica de uma "subjetivi­
dade" problemática? Nós achamos, avaliando o caráter e o desenvolvimen­
to da teoria marxista, que eles realmente implicam isto. Se assim for, então
qualquer amálgama não é mais, nem menos, do que um "distúrbio teórico"
no qual o perdedor é sempre Marx e o movimento revolucionário.
326 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

Considerações sobre a ideologia

Se voltarmos agora a Althusser por um instante, veremos que no centro


de suas proposições sobre a ideologia (ver A Favor de Marx e Lenin and
Philosophy) há uma tese m uito específica:

A ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas reais condi­
ções de existência. { L e n in a n d P h ilo s o p h y , p. 153)

Esta tese implica um rompimento total com uma conceituaiização da


ideologia em termos da "falsa consciência". De fato, para Althusser a ideo­
logia não se refere a uma representação (verdadeira/falsa) da realidade, mas
a uma representação da relação (imaginária) dos indivíduos com a realida­
de (relações de produção e as relações delas derivadas). Em outras palavras,

o que está representado na ideologia é, portanto, não o sistema das relações reais
que governam a existência dos indivíduos, mas a relação imaginária destes indiví'-
duos com as relações reais em que vivem. (Len/n and P h ilo s o p h y ^ p. 1 5 5 )

É nesse sentido que o que está representado na ideologia é uma "rela­


ção de segundo grau" (For Marx, p. 240). Este caráter da ideologia tam­
bém implica que sua existência diz respeito ao campo da chamada "expe­
riência hurriana" (como experiência individual). A ideologia refere-se ás
relações vividas dos homens com suas condições de existência, isto é, com
a maneira pela qual os indivíduos vivem suas condições de existência. Além
do mais pode-se dizer que:

quando falamos de ideologia, devemos saber que a ideologia penetra em toda ati­
vidade humana, que ela ê idêntica á experiência "vivida" da própria existência
humana. { L e n in a n d P h i lo s o p h y , p. 204I

É esta a razão por que, por exemplo, a idéia de "justiça" é uma noção
"ideológica": porque é uma noção sob a qual e na qual os homens podem
viver suas relações com suas condições de existência e com suas lutas (ver
Phiiosophie Spontanée, p. 57). Também é esta a razão pela qual uma situa­
ção de pobreza, como em E i Nost Miian, de Bertolazzi, pode ser vivida
nos argumentos da consciência moral e religiosa (ver For Marx, p. 140).
Neste sentido, a ideologia não apenas implica uma representação de relações
individuais com as relações sociais, mas é ao mesmo tempo uma representa­
ção dada aos indivíduos.
De fato, a ideologia é dirigida aos indivíduos. A função prático-social
da ideologia é Justamente construir indivíduos concretos com^ sujeitos,
isto é, transformar os indivíduos em sujeitos. Esta transformação-constitui-
ção é efetuada através do mecanismo particular de "interpelação" basea­
do na existência e funcionamento da "categoria do sujeito", que para
MARX E O PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 327

Althusser está no centro de toda Ideologia. Em suma, "a existência da


ideologia e o chamamento ou interpelação dos indivíduos como sujeitos
são uma só e mesma coisa" (Lenin and Philosophy, p. 163).
A natureza da ideologia (envolvendo relações vividas individuais) e
sua função prático-social (constituindo os indivfduos como sujeitos) são
baseadas na materialidade particular da ideologia: a ideologia existe nos
aparelhos ideológicos materiais, em seus "ritu ais" e práticas. E funcionan­
do "nos rituais práticos da mais elementar vida cotidiana" {Lenin and
Philosophy, p. 162) que os sujeitos se reconhecem como tal, isto é, é por
sua participação nas práticas de um aparelho ideológico (e não há prática
a não ser por e em uma ideologia e seus aparelhos) que os indivíduos con­
cretos são constituídos como sujeitos. Neste sentido, para os indivíduos,
a ideologia é claramente não um mero sistema de representações (idéias),
mas um sistema material completo (baseado num aparelho ideológico es­
pecífico) com um efeito particular; o de constituí-los como sujeitos.
Devemos notar que aqui, como na teoria de Marx, os indivíduos são
apenas os suportes destas relações sociais vividas que constituem a ideolo­
gia, os suportes deste processo de constituição dos sujeitos.
Nesta explicação muito descritiva das proposições de Althusser pode­
mos ver, finalmente, que estamos confrontando uma realidade específica:
a dos "indivíduos que vivem na ideologia" (Lenin and Philosophy, p. 156)
e sua existência social como sujeitor,
Paradoxalmente (com ó suposto "teoricism o" de Althusser), esta pro­
blemática diz muito menos respeito a um problema "epistemológico do
que a maioria das outras posições. De fato, as teses de Althusser estão m ui­
to longe de uma problemática concernente a uma "causalidade epistemoló-
gica" para a existência da ideologia. Seu esforço teórico diz respeito direta­
mente à especificidade da ideologia em termos de sua efetividade social
numa formação social. E é interessante notar que esta efetividade é realiza­
da a nível da individualidade.
Neste sentido, devemos lembrar que a problemática da ideologia é
para Althusser uma parte de seu programa teórico para explicar os meca­
nismos por trás do "efeito de sociedade" que constitui o complexo corpo
de uma sociedade como um todo social estruturado.

O mecanismo da produção deste "efeito de sociedade" só é completo quando


todos os efeitos do mecanismo tenham sido expostos, até o ponto onde são pro­
duzidos na forma dos próprios efeitos que constituem a r e la ç a o concreta, cons­
ciente ou inconsciente, d o s in d iv íd u o s c o m a s o c ie d a d e como uma sociedade,
isto é, até os efeitos do fetichismo da ideologia (ou "formas de consciêticia so­
cial" — Prefácio a A C o n t r i b u t i o n . ..), na qual os homens consciente ou incons­
cientemente v iv e m suas vidas, seus projetos, suas ações, suas atitudes e suas fun­
ções, como s o c ia is . (R e a d in g C a p it a l, p. 66)
328 SUBJETIVIDADE E INDIVIDUALIDADE

É esta separação de uma conceitualização "epistemológica", que ne­


nhuma teoria baseada na problemática da "falsa consciência" pode conse­
guir (tal como, por exemplo, a problemática das "formas fenomenais), que
se encontra no centro da abertura teórica implicada nas teses de Althusser,
uma abertura que por sua vez parece estar intimamente ligada ao inespera­
do aparecimento de uma problemática da "individualidade" em relação à
ideologia.
De fato, a tese de que "o que está representado na ideologia não é um
sistema das relações reais que governam a existência dos indivíduos" é,
ao mesmo tempo, uma tese sobre a ideologia como sendo ela própria um
sistema de relações (imaginárias) que governam a existência dos indivíduos.
Neste sentido, com o reconhecimento da especificidade do ideológico co­
mo um nível da realidade social, as formulações sobre a ideologia como
compreendendo "relações sociais imaginárias" (Poulantzas) e constituindo
por si mesma uma "área de relações sociais ideológicas" (Hirst) são irre­
preensíveis.
Assim, as "relações ideológicas" - através de sua natureza específica
- formam parte da totalidade de relações em que se situam os indivíduos.
Mas os indivíduos, como indivíduos concretos, aparecem como "suportes"
ou como "portadores" destas relações, da mesma maneira quanto às rela­
ções de produção. Em outras palavras, as "relações ideológicas", como
deterniinações sociais e específicas, são parte daquela "síntese de deter­
minações m últiplas" que fazem do indivíduo um indivíduo concreto. A
determinação ideológica opera através da luta de classe e através dos apa­
relhos ideológicos e de suas práticas materiais nas quais esta luta é travada.
Neste sentido, a luta de classe ideológica é uma luta por uma efetividade
ao nível da individualidade.
A problemática sugerida pelas formulações de Althusser apresenta
muitos aspectos a serem desenvolvidos e resolvidos: o caráter "im aginário"
da ideologia, o problema do "S uje ito" e dos "Sujeitos", etc. Mas em rela­
ção ao problema dos "sujeitos" deve ser notado que diz respeito a um pro­
cesso de constituição de sujeitos "sociais". Como assinala Hirst (p. 401), o
tratamento que Althusser dá a este problema baseia-se numa rejeição das
noções de um sujeito coletivo e de um sujeito consf/ft/f/Vo. Pode ainda ser
dito que este tratamento não se refere diretamente a um problema da
"subjetividade" em sua dinâmica psicológica (interna, subjetiva, etc.). Esta
última posição tem sido ás vezes interpretada como uma timidez, porque
em Althusser não é possível encontrar uma "reconciliação entre as desco­
bertas de Marx e de Freud" (EIlis, p. 210). Mas isto ocorre justamente
porque seu problema teórico é um problema que diz respeito à ideologia,
e não a um duvidoso "marxismo do sujeito". '
Como questão final e geral, é proveitoso concordar com Althusser e
com seu conselho de "demorar-se muito tempo e dedicar a máxima aten-
MARX E O PROBLEMA DA INDIVIDUALIDADE 329

cão aos princípios básicos do marxismo e não se apressar em passar a uma


outra coisa" (Lenin and Philosophy, p. 208). Um destes princípios, de
fundamental importância para a problemática da individualidade {que mais
uma vez diz respeito a uma explicação teórica da ideologia) é o principio
corporificado na tese anti-humanista. Resumindo todas as nossas proposi­
ções, e parafraseando Marx, pode-se dizer que se não pudermos explicar a
"individualidade" (e seus problemas correlatos) com base na suposição
"anti-humanista", não podemos absolutamente explicá-la.

B IB LIO G R A F IA

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