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INTRODUÇÃO ELISA LARKIN

Este volume vem em hora oportuna contrabalançar o peso de certa tendência a tratar o
racismo como um conjunto de desigualdades raciais mensuráveis por estatísticas. As
pesquisas realizadas nessa linha têm fundamental importância no sentido de dar
suporte técnico à reivindicação de políticas públicas endereçadas à eliminação
de tais desigualdades. Ao mesmo tempo, entretanto, tal enfoque corre o risco de
contribuir para esvaziar o racismo de sua função ideológica de dominação, sua
natureza e efeitos psicológicos, e seu impacto concreto e marcante como dimensão
do imaginário social. Além de estudar o supremacismo branco em seus diversos
aspectos – o cultural e o simbólico interligados com o social, econômico e político –,
os documentos aqui reunidos testemunham a contínua luta antirracista do negro
brasileiro e sua presença dinâmica em importantes fóruns do mundo africano,
revisitados na introdução do autor à primeira versão do livro em inglês (Documento
1). Complemento indispensável é o volume O Brasil na Mira do Pan-Africanismo.
No prefácio, o veterano escri- tor e ativista Carlos Moore oferece uma visão
panorâmica do pan-africanismo e nela localiza a atuação de Abdias Nascimento, que
enfatiza a dimensão humanista e propicia a “reintrodução do mundo simbólico na
política pan- africanista”. Moore identifica essa ação a partir da Carta Aberta do
Teatro Experimental do Negro ao Primeiro Fes- tival Mundial de Artes Negras em
Dacar¹. Outro marco dessa atuação está na comunicação de Abdias à I Conferência
Mundial Contra o Racismo, em 15 de agosto de 1978, por meio de telegrama
dirigido ao Secretário Geral da ONU, Kurt Waldheim, em que con- signa, diante
daquele fórum, a denúncia do “genocídio do negro brasileiro” e afirma o seguinte:
“Em meu nome e de milhões de afro-brasileiros quero expressar nossa esperança de
que medidas efetivas sejam tomadas contra o crime do racismo e da discriminação
racial que infelicita também a maioria do povo brasileiro constituída de ne- gros
descendentes de africanos.” Àquela época, era inédita e provocadora a insistência do
autor em caracterizar a população negra no Brasil como majoritária. Mais chocante
ainda era situá-la como a segunda maior população negra no mundo e realçar
a dominação dessa maioria por uma elite minoritária branca, semelhante ao regime
aparteísta da África do Sul. Polêmicas e contestadas, as duas comparações ganharam
vulto e voz com o tempo, passando a servir de refe- rência para organismos
internacionais de pesquisa e de direitos humanos. Assim, ao longo das décadas de
1970 e 1980, fazia-se ativa essa voz afro-brasileira que, além de dar conhe- cimento
ao mundo africano do racismo sofrido pelos irmãos brasileiros, alargava seus
parâmetros de análise. Nesse sentido, igualmente inédita era a insistência em
demonstrar que os “afro-americanos” se encontram do Canadá até a Argentina e que
a América Central e do Sul fazem parte do mundo africano. Os negros dos Esta- dos
Unidos (assim como os brancos) cultivavam o hábito de referir-se à “América” como
se esta consistisse ape- nas em seu país e não em um hemisfério inteiro; as
referências do pan-africanismo se limitavam aos Estados Uni- dos e ao Caribe de
fala inglesa e francesa. Além disso, porém, a posição marginal da América de fala
espanhola e portuguesa no contexto do pan-africanismo tem raízes na especificidade
do racismo ibérico, tema elaborado de forma didática no discurso dirigido pelo autor
aos africanos reunidos em eventos mundiais. No mais recente des- tes (Documento
10), ele sugere o padrão latino como novo paradigma mundial de racismo. Nessa
linha didática, Abdias oferecia aos irmãos de fala inglesa, francesa e árabe
informações sobre a his- tória da resistência ancestral na região. Figuras como
Zumbi, Chico-Rei, João Cândido, os quilombos brasileiros, as revoltas dos Alfaiates
e dos Malês – bem como Benko Bioho, Capitão Lemba, Diego Guzmán, Miguel, o
Afri- cano, o rei Bayano e os cumbes, cimarrones e palenques da Venezuela, México,
Colômbia e Cuba –, todos larga- mente desconhecidos fora da região, surgiam nos
seus discursos como exemplos insuspeitos de resistência pan- africanista. Na
continuação dessa tradição, temos a criação da Aliança Estratégica
Afrolatinoamericana e Caribenha e o sucesso da organização da sociedade civil da
região para a Reunião Preparatória das Américas (Santiago, 2000) e para a própria
3a Conferência Mundial Contra o Racismo (Durban, 2001). Novidade ainda
controversa na década dos anos 1970 era a utilização dos termos “afro-brasileiros” e
“des- cendentes de africanos” para acentuar a união da comunidade e desautorizar as
divisões hierárquicas impostas pelo critério epidérmico de classificação social que
prevalece na região. Abdias empenhava-se no objetivo de superar a identificação
pela cor da pele, já que a negritude se revela uma referência muito mais profunda
envolvendo ancestralidade e civilização. Tratava-se de um desafio aos postulados
ideológicos então vigentes tanto à direita como à esquerda. Efetivamente, ambos os
lados acusavam o autor de importar ou copiar o parâmetro de origem norte-americano,
bipolar, assim cometendo uma espécie de traição à Pátria, identificada de forma
dogmática com o modelo da hierarquia de cor. Atualmente, a noção de
“afrodescendentes” se estabelece como consenso, numa consequência lógica dessa
mesma razão crítica. Tal consenso se consolida, no processo da III Conferência
Mundial Contra o Racismo, com a criação dos fóruns de discussão (caucus) de
afrodescendentes e de mulheres afrodescendentes, bases para a formação de redes
mundiais antirracistas. Polêmico mesmo era o posicionamento independente do autor
diante do embate entre direita e esquerda. Hoje talvez o assunto seja pouco
mobilizador, mas a ênfase que recebe nestes ensaios corresponde a seu peso, então
fundamental, na condução da teoria e ação política. Numa época em que todos os
atores sociais se posicionavam à direita ou à esquerda, Abdias Nascimento rechaçava
as duas posturas e se opunha aos “reacionários de qualquer coloração ideológica”.
Para ele, a perspectiva e a experiência do afrodescendente alvo do racismo
prevaleciam sobre os dois polos políticos ocidentais, ambos os quais, ao longo da
história pan-africana, ora se aliavam ao negro e ao africano, ora os hostilizavam, de
acordo com interesses inteiramente alheios aos seus. Trata-se de um fato vivido por
ele de forma concreta no decorrer da luta contra o racismo no Brasil desde a década
de 1930 e confirmado na experiência de colegas de luta no exterior como George
Padmore, C.L.R. James ou Nicomedes Santa Cruz. A crítica à pomposa afirmação
do “socialismo científico universal” por parte de governos e correntes es- querdistas
de “linha correta” exemplifica essa postura independente. Apontando o etnocentrismo
que permeia a razão ocidental, Abdias toma o rumo de princípios fundamentais ao
pós-modernismo: Como poderiam as ciências humanas […] nascidas, cultivadas e
definidas por e para povos e contextos socioeconômicos diferentes, prestar útil e
eficaz colaboração ao conhecimento do negro, sua realidade existencial, seus
problemas e aspirações e projetos? Seria a ciência social elaborada na Europa ou
nos Estados Unidos tão universal em sua aplicação? Os povos negros conhecem na
própria carne a falaciosidade do universalismo e da isenção dessa “ciência”. Assim,
ele apresenta o quilombismo, proposta de síntese do saber ancestral africano, como
conceito científico com direito ao mesmo prestígio e credibilidade investidos na
ciência ocidental do socialismo. Se o método científico europeu constitui um saber
de origem tão específica quanto o conhecimento africano, a pretensão
ao universalismo é igualmente legítima tanto para um como para o outro. Essa
independência ideológica custou-lhe o apoio e a compreensão de parcelas
significativas da intelectualidade brasileira e da militância negra, alinhadas à esquerda
em razão de sua formação na resistência aos regi- mes autoritários de direita. Houve
quem assumisse uma postura de radical patrulha ideológica e se opusesse até ao
lançamento do livro. Mas a posição solitária de Abdias antecipava de longe a
conjuntura atual em que, derru- bado o muro de Berlim e passadas as etapas de
glasnost e perestroika, surgem os conflitos étnico-culturais como os grandes
divisores de águas e da humanidade. Como os conjuntos de políticas públicas
articulados e encaminhados ao governo pelo movimento negro em dois momentos
posteriores – a Marcha Zumbi dos Palmares de 1995 e o processo da III Conferência –,
o qui- lombismo é também herdeiro de um movimento social que, já em 1945,
apresentava suas propostas à Assembleia Constituinte encarregada de redemocratizar
o país². A singularidade de O Quilombismo está no fato de apresentar uma proposta
sócio-política para o Brasil, elaborada desde o ponto de vista da população
afrodescendente. Num momento em que não se falava ainda em ações afirmativas ou
compensatórias, nem se cogitava políticas públicas voltadas à população negra, o
autor deste livro propunha a coletividade afro-brasileira como ator e autor de um
elenco de ações e de uma proposta de organização nacional para o Brasil. Assim,
sustentava e concretizava a afirmação de que a questão racial é emi- nentemente uma
questão nacional. O quilombismo antecipa conceitos atuais como multiculturalismo,
cujo conteúdo está previsto nos prin- cípios de “igualitarismo democrático […]
compreendido no tocante a sexo, sociedade, religião, política, justiça, educação,
cultura, condição racial, situação econômica, enfim, todas as expressões da vida em
sociedade”; “igual
tratamento de respeito e de garantias de culto” para todas as religiões; ensino da
história da África, das culturas, civilizações e artes africanas nas escolas. O
ambientalismo também se faz presente, no princípio que “favorece todas as formas
de melhoramento ambiental que possam assegurar uma vida saudável para as crianças,
as mulheres, os homens, os animais, as criaturas do mar, as plantas, as selvas, as
pedras e todas as manifestações da natureza”. A propriedade coletiva da terra, o
direito ao trabalho digno e remunerado, a prioridade para a cri- ança e a
possibilidade da “transformação das relações de produção, e da sociedade de modo
geral, por meios não violentos e democráticos” estão entre os princípios humanistas
do quilombismo. O texto antecipa, também, a mais recente inovação na abordagem
das relações raciais, que parte do aspecto relacional sugerido pela óptica de gênero.
A categoria “gênero” implica relação entre homem e mulher, assim deslocando o
foco da tradicional “questão da mulher”. Da mesma forma, para compreender a
questão racial é preciso focalizar tanto o privilégio desfrutado pelo branco como as
desvantagens sofridas por negros. Já na dé- cada dos 1940 e 1950, Abdias e outros
intelectuais negros, entre eles o sociólogo Guerreiro Ramos e o advogado Aguinaldo
Camargo, vinham criticando o enfoque tradicional brasileiro sobre “o problema do
negro”. Atribuem ao escritor Fernando Góes a sugestão, feita numa atitude de fina
ironia, de se realizar um Congresso dos negros para estudar o branco. Essa sugestão
e suas implicações são retomadas, e dotadas de semelhante carga de ironia crítica, no
texto de O Quilombismo. Trata-se de mais uma afirmação do racismo como fenômeno
relacional mais amplo, profundo e complexo que aquele denotado pela constatação
das chamadas “desigualdades raciais”. Nesta obra, merecem um capítulo à parte,
além de serem focalizadas em todos os textos, as peripécias específicas da mulher
negra, que envolvem aspectos múltiplos e complementares. A questão racial e a de
gênero se tecem juntas numa teia que hoje se denomina “interseccionalidade”,
conceito de certa maneira antecipado no conjunto das obras do autor ao integrar a
mulher negra como prioridade temática de sua análise. Mais de uma década antes de
instituir-se a reserva de vagas para mulheres nas listas de candidaturas a cargos
políticos, cons- tava entre os princípios do quilombismo o seguinte: Em todos os
órgãos do Poder do Estado Quilombista – Legislativo, Executivo e Judiciário –, a
metade dos cargos de confiança, dos cargos eletivos, ou dos cargos por nomeação
deverão, por imperativo constitucional, ser ocupados por mulheres. O mesmo se
aplica a todo e qualquer setor ou instituição de serviço público.³ O conjunto de
textos deste volume vem contribuir para o registro histórico de aspectos pouco
divulgados do pan-africanismo, um dos mais importantes fenômenos do século XX.
Demonstra também uma continuidade e coerência com assuntos eminentemente
contemporâneos, pois reconhecemos nestes ensaios, em particular no “ABC” e em
“Alguns Princípios e Propósitos do Quilombismo”, a formulação de ideias e
polêmicas ainda hoje emergentes. A atualidade de O Quilombismo não se esgota
nos temas que apontamos. Creio que cada leitor irá vislum- brar, para além dessas
questões, outras talvez mais interessantes. Rio de Janeiro, outubro de 2001.

ELISA LARKIN NASCIMENTO Doutora em Psicologia pela USP e mestre em


Direito e em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Nova York, diretora
do Ipeafro-Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros
Bibliografia
MOORE, Carlos. Abdias do Nascimento e o Surgimento de um Pan-Africanismo
Contemporâneo Global. In: NASCIMENTO, Abdias do. O Brasil na Mira do
Pan-Africanismo. Salvador: CEAO/EDUFBA, 2002. NASCIMENTO, Abdias do. O
Brasil na Mira do Pan-Africanismo. Salvador: CEAO/EDUFBA, 2002. ____. O
Negro Revoltado. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. [1. ed. Rio de Janeiro:
GRD, 1968]. ____. Carta Aberta a Dacar. Tempo Brasileiro, v. 4, n. 9/10, 2o
trimestre, 1966. [Diário do Congresso Nacional, suple- mento, 20 abr., p. 15-17, lida
na Câmara dos Deputados pelo então deputado Hamilton Nogueira.]
In: NASCIMENTO, Abdias do. O Brasil na Mira do Pan-Africanismo. Salvador:
CEAO/EDUFBA, 2002.

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