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“O Historiador no Brasil ultrajado e humilhado”

In Benito Bisso Schmidt e Jurandir Malerba (orgs.), Fazendo


história pública, editora Milfontes, Vitória, E.S., 2021, pp.39-
52

Luiz Felipe de Alencastro


EESP-FGV e Sorbonne Université

No início dos anos 1960, quando eu era aluno do curso


clássico no Elefante Branco, Pedro Luiz Masi, um desses
professores que a gente não esquece, disse que eu devia ler “O
Abolicionismo” (1883), de Joaquim Nabuco. A primeira imersão no
livro, na atmosfera sufocante de Brasília logo após o Golpe de
1964, me chacoalhou bastante. Durante muito tempo citei e pensei
numa frase de Nabuco que acreditava ter lido no prefacio de “O
Abolicionismo”: ‘no Brasil, um homem de bem não pode se sentir
bem’. Nas turbulências da ditadura e da ida para a França em 1966,
onde fiquei 20 anos nesta primeira etapa, a ideia do desconforto
de ser brasileiro, perante as injustiças e desgraças do país, se
inscrevia regularmente no meu horizonte.
Depois constatei que a frase não existia. Porém, há um trecho
do prefácio com o sentido próximo, na altura em que Nabuco diz a
quem seu livro se destina. Aos “que sentem a dor do escravo como
se fora própria e, ainda mais, como parte de uma dor maior – a do
Brasil, ultrajado e humilhado; os que têm a altivez de pensar – e
a coragem de aceitar as consequências desse pensamento – que a
pátria, como a mãe, quando não existe para os filhos mais
infelizes, não existe para os mais dignos; aqueles para quem a
escravidão, degradação sistemática da natureza humana por
interesses mercenários e egoístas, se não é infamante para o homem
educado e feliz que a inflige, não pode sê-lo para o ente
desfigurado e oprimido que a sofre”. O tom parece moralizante e
filantrópico, mas “O Abolicionismo”, leitura obrigatória nesta e
noutras épocas de desastres nacionais, está bem longe disso.
Trata-se de um grande texto político, o melhor jamais escrito no
Brasil, em minha opinião, e ainda, do primeiro livro a articular,
fundado na análise do escravismo, “uma visão totalizadora da nossa
formação histórica” como observou Evaldo Cabral de Mello. Para
Nabuco, continua Evaldo, “o Brasil é o produto da escravidão, que
é a instituição que ilumina nosso passado como nosso presente e
nosso futuro mais poderosamente que qualquer outra”.
Tal interpretação me influenciou profundamente e se reflete
no que tenho escrito desde então. A assimilação desta análise
global e de seus desdobramentos na minha formação intelectual e
no modo de intervir no debate publico brasileiro passaram por
várias etapas. A naturalização da exploração social sempre fez
parte da paisagem brasileira e a herança escravocrata continuou
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se manifestando ao longo do século XX. No entanto, o combate à


discriminação racial, pouco evocado nos anos 1950 e 1960, aparecia
como um elemento secundário da luta política. Da mesma forma, a
ideologia da democracia racial, apesar de sua denegação no
cotidiano e nas instituições nacionais, permanecia incontestada.
Setores dominantes da esquerda, incluindo sindicatos e sucessivas
lideranças da UNE, pensavam que o tema da discriminação racial
dividiria a frente de esquerda e, em seguida, a frente republicana
formada contra a ditadura. Acresce que a ausência de dados sobre
cor no Censo de 1960 (por inépcia administrativa resultante da
mudança da capital federal), e no Censo de 1970 (por pressão da
ditadura), dificultava o estudo das disparidades que se
acentuavam, na altura em que a população urbana sobrepujava a
população rural brasileira.
De meu lado, quatro anos na Universidade de Aix-Marseille,
a partir de 1966, me puseram em contato com estudos e estudantes
africanos que estimularam o interesse pela história africana.
Havia estudantes de vários países da África e do Oceano Índico.
Guardo grata memória de Aleme Ashete, historiador e líder de um
grupo de estudantes etíopes que retornaram à Etiópia, participaram
da linha de frente do movimento republicano e revolucionário que
destituiu o imperador Hailé Selassié, e acabaram sendo mortos,
encarcerados ou exilados pela ditadura de Mengistu Mariam.
Convivi também em Aix com jovens americanos oponentes à
guerra do Vietnam e estudantes refugiados do Oriente Médio. Em
vários países estava no ar a ideia de um engajamento político e
protestos estudantis que foram propulsados de maneira mais intensa
pelo movimento de maio de 1968 na França. Ao lado de discussões e
de palestras de todo tipo que passaram a pontuar o cotidiano da
Universidade, li dois livros fundamentais para o entendimento do
Brasil e da concepção global da Historia, a 2ª. edição em dois
volumes de “Brasil e África: Outro Horizonte” (1964), de José
Honório Rodrigues, obra a contrapelo do luso-tropicalismo, do
colonialismo português e da diplomacia servil do Brasil depois do
golpe de 1964, e o primeiro volume de Civilisation Matérielle et
Capitalisme (1967), de Fernand Braudel.
No Brasil, fatores internos e externos acentuaram o debate
sobre a discriminação racial em meados dos anos 1970. A emergência
do Movimento Negro Unificado (1978), que repercutiu nos meios de
exilados e emigrados políticos brasileiros e latino-americanos de
Paris, onde eu me encontrava cursando o doutorado, demarcou um
novo terreno de debate político. Reportagem publicada em março de
2019 no site UOL corrobora, com documentos de fontes policiais e
do SNI, o impulso do Movimento Negro à luta pela democracia,
registrado desde 1976 pelos espiões da ditadura.1

1
. Reportagem de 31/03/2019, acessível em https://noticias.uol.com.br/reportagens-
especiais/ditadura-militar-espionou-movimento-negro-reprimiu-e-infiltrou-agentes/
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Com o pseudônimo de Julia Juruna, publiquei no Le Monde


Diplomatique artigos sobre o tema.2 Paralelamente, novas pesquisas
acadêmicas, evidenciaram a persistência e a amplitude da
discriminação racial no Brasil. A publicação da PNAD de 1976, que,
pela primeira vez desde o Censo de 1950, atualizava os dados
nacionais sobre renda, escolaridade, etc. a partir da cor, mostrou
a extensão da discriminação. Neste contexto, Carlos Hasenbalg,
então professor do IUPERJ, publicou Discriminação e desigualdades
raciais no Brasil, (1979). Atualizando metodológica e
quantitativamente a análise sobre as desigualdades geográficas,
econômicas e sociais como causa e efeito do racismo, o livro
apareceu como um divisor de águas e me ajudou a firmar ideias
sobre o tema. Meu primeiro cargo na Universidade, como Chargé de
Cours (horista), foi para ensinar uma matéria nova na Université
de Paris VIII Vincennes, quando ela ainda estava no Parc de
Vincennes e guardava sua doutrina de universidade livre. A
disciplina se intitulava “O problema Negro no Brasil”. Eu dispunha
da pesquisa da minha tese de doutorado em curso, mas na preparação
do curso tive que ler muita bibliografia sobre o movimento negro
nos Estados Unidos, tema que estava nas manchetes dos jornais
americanos e franceses da época. Tive alunos franceses, africanos,
antilhanos trabalhando em torno do escravismo e da história afro-
americana, numa grande experiência em que certamente aprendi muito
mais do que eles.
Neste período, lemos e comentamos dois livros decisivos. A
tese de Pierre Verger, dirigida e editada por Fernand Braudel sob
título Flux et Reflux du Trafic des Esclaves entre le Golfe du
Bénin et la Baie de Tous les Saints (1968) e o balanço global do
tráfico atlântico de escravizados africanos, compilado em
analisado por Philip D. Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census
(1969). Curtin demonstrava que o Brasil era o agregado colonial e
nacional americano que mais havia importado escravizados
africanos, dado desconhecido até então dos pesquisadores
brasileiros e estrangeiros. Quanto a Verger, ampliando e
aprofundando a pesquisa já feita por Luiz Vianna Filho e outros
historiadores baianos, graças a pesquisas na correspondência
diplomática britânica, ele comprovou em seu livro que o tráfico
de escravos para a Bahia era bilateral. Com dados parciais sobre
Rio e Recife, se podia deduzir que o mesmo fenômeno ocorria nos
dois outros grandes portos brasileiros, como ficou mais tarde
patente nos dados globais publicados sob a direção de David Eltis
no Trans-Atlantic Slave Trade Database. Na mesma altura foi
publicado o livro de Leslie Bethell, The Abolition of the

2
. O historiador Rodrigo Bonciani, que organiza a tradução e publicação destes textos
no Brasil explicou o contexto em que eles foram escritos num artigo recente da revista
451, https://www.quatrocincoum.com.br/br/artigos/h/como-era-gostoso-o-meu-
frances
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Brazilian Slave Trade (1970) situando o conflito anglo-brasileiro


a respeito do tráfico atlântico de africanos no contexto da Pax
Britannica.
Na realidade, um dos avanços mais determinantes da
historiografia brasileira e da historiografia internacional sobre
o escravismo, a África e o Atlântico Sul consistiu na demonstração
do sistema de trocas atlânticas que tornou o Brasil o maior
importador de escravizados africanos e, depois da Independência,
o único Estado nacional que praticou o tráfico em larga escala e
manteve um escravismo de dimensões continentais até 1888. Com a
independência das colônias subsaarianas, e em particular das
nações lusófonas nos anos 1970, a presença africana se integrou
plenamente ao Atlântico Sul e à cultura brasileira contemporânea.
Completava-se assim, no final do século XX, às vésperas das
comemorações dos 500 anos do Descobrimento, um quadro de
referencias historiográficas e políticas que destacava a papel da
África, dos africanos e dos afro-brasileiros na longa história do
Brasil. Minha tese de doutorado tentou mostrar o caráter
estrutural do tráfico de escravizados africanos na formação do
Brasil e da unidade nacional.

Voltando ao país na altura das eleições para a Constituinte,


em 1986, dando aulas na Unicamp e pesquisando no Cebrap, aprendi
muito, principalmente com os trabalhos e as palestras da grande
demógrafa Elza Berquó, sobre a situação dos negros no Brasil
atual. Outros colegas do Cebrap me estimularam e ensinaram a
seguir os processos que atualizaram as desigualdades raciais no
período pôs-abolicionista e contemporâneo. De volta à França em
1999, dei aulas e dirigi teses sobre a temática brasileira, afro-
americana e africana na Universidade de Paris, onde criei o Centro
de Estudos do Atlântico Sul que trouxe depois para a Escola de
Economia de São Paulo da FGV, onde ensino atualmente. Tenho me
guiado, nas minhas pesquisas e nas intervenções na arena publica,
pela reflexão que expus em 4 março de 2010 na Audiência Pública
do STF sobre a constitucionalidade das cotas nas universidades
federais.3 Na ocasião, junto com a jurista Flávia Piovesan, da PUC
de São Paulo, tive a honra de representar a Fundação Palmares e
defendi que a política afirmativa, e as cotas sociais e raciais
para os indígenas e os negros, vão bem além da política
reparacionista ou do apoio à diversidade: elas são essenciais para
a consolidação da democracia. Por isso, concernem a nação inteira
e interessam todos os segmentos sociais brasileiros. Creio que

3
. Luiz Felipe de Alencastro, “O pecado original da sociedade e da ordem jurídica
brasileira”. Novos estudos - CEBRAP n.87, 2010, pp.5-11. Acessível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002010000200001&lng=en&nrm=iso.
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esse é também o entendimento dos membros da Comissão Arns de


Defesa dos Direitos Humanos, a qual tenho a honra de integrar.

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