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A (des)temporalização

da pandemia

Rodrigo Turin
Rio de Janeiro, 20 de maio de 2020
A (des)temporalização
da pandemia
As unidades de tempo não são unidades
de medida, mas unidades de um ritmo, no
qual a alternância das diversidades conduz
periodicamente ao semelhante.
Henri Hubert

Para quem pode e está em confinamento, esse privilégio


precário, a forma de se temporalizar durante a pandemia
mudou significativamente. Devido a isso, mais do que narrar
um dia específico desse estranho período, gostaria de apro-
veitar esse espaço para tentar descrever o substrato tempo-
ral que deu forma a, ou, melhor, que deformou, cada conteúdo
de experiência desses meus dias de isolamento social.
Dentre as várias mudanças que a pandemia trouxe, uma
das que mais me chamou a atenção é justamente a perda da
qualidade que distingue e dá ordem ao tempo. Os dias foram
se tornando embaçados, sem forma definida. Com os marca-
dores temporais do cotidiano suspensos, foi-se perdendo a di-
mensão que distingue os diferentes momentos da semana, do
mês, do ano. Se é terça ou quarta, sábado ou domingo, quan-
tas semanas já estamos sem sair de casa – a desorientação

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temporal torna-se uma nova forma de vida. Se a perda de
qualidade do tempo sempre foi uma marca da nossa socieda-
de moderna, comparado com outras formas de experiências
temporais – como as referidas acima por Henri Hubert –, agora
parece que essa perda ganhou novas proporções, desfazendo
o que restava do ritmo (mecânico) da vida. Um tempo sem
qualidade, precário.
Na verdade, durante a pandemia a vida não deixou de ga-
nhar novos ritmos, acelerados pela torrente de informações,
pelas inúmeras lives, pelos novos rituais de limpeza, pela
angústia do futuro incerto. Esses novos ritmos, no entanto,
se assim podemos chamá-los, são estruturalmente desagre-
gados, do mesmo modo como sua repetição faz com que eles
se tornem monótonos, in-diferentes entre si. Cada um de nós
vai tentando encontrar e se agarrar a novos marcadores
temporais, privados e em rede (mais do que “públicos”), por
mais frágeis que eles sejam. O dia da limpeza adiada, o dia da
ressaca, o dia de desinfetar as compras, o dia das polêmicas
nas redes sociais, o dia de evitar ler jornais, não necessaria-
mente nessa ordem, não necessariamente em ordem nenhu-
ma. O tempo da pandemia se mostra, assim, essencialmente
disruptivo, desarranjando nossas sincronizações cotidianas
e desfazendo os laços que uniam – precariamente – as dimen-
sões do passado, do presente e do futuro.
Todos, nessa condição, parecem viver experiências pare-
cidas, mas isso não as torna comuns. Essa temporalização é
isolada, por mais compartilhada que seja nas salas do Skype
ou do Zoom. Cada um dançando em sua própria sala, como
nessas festas online que surgiram mundo afora. O mundo
passou a se dividir entre os cômodos da casa e as janelas da
internet. A oposição entre o privado e público dá lugar a uma
outra coisa, nem privada nem pública. O dentro e o fora se

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interligam em um ambiente espectral, fantasmagórico. A mi-
nha sensação, no decorrer do tempo, foi justamente essa: de
me tornar um espectro, nem presente, nem ausente, peram-
bulando pela casa e pela virtualidade das redes, vivendo uma
assombração cujas formas não conseguem ganhar nitidez.
Uma das únicas constantes desse tempo, no meu caso, tem
sido acompanhar o crescimento do meu gato, o Miguilim, ado-
tado um dia antes de eu entrar em confinamento. Indiferente
ao caos da pandemia, ele foi descobrindo o seu novo espaço,
habitando e tomando posse de seus cantos escondidos, desen-
volvendo novos (e estranhos) hábitos, temporalizando-se em
um novo cotidiano, do qual eu e minha companheira fazíamos
– graças ao isolamento social – parte integral e essencial. Es-
tamos ali dispostos para ele todo dia, o dia inteiro. Sem nunca
ter conhecido a vida pré-pandemia – com nossas ausências,
com visitas de amigos, com viagens –, esse cotidiano é o seu
“único normal”. Observar ele descobrir e formar um mundo,
no mesmo momento em que eu tenho a sensação de estar per-
dendo um mundo, tem sido uma experiência incrível, ainda
que ambígua. Em um futuro próximo, se e quando houver,
tanto ele quanto nós teremos que descobrir um outro mundo,
outras temporalizações – diferentes, mas em comum.
Para todos nós que vivemos o tempo dessa pandemia, des-
cobrir esse novo mundo não será fácil. No entanto, no mundo
que vier, se essa disritmia e essa espectralidade da tempo-
ralização da pandemia servir para nos lembrar que o tempo
precisa ter qualidades; que ele precisa ser experimentado em
comum; que ele precisa de condições de possibilidade para
existir – já sairíamos ganhando muito. Um outro tempo, pelo
menos.

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