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(RE) NASCER E ESCREVER ACADEMICAMENTE EM TEMPOS DE

PANDEMIA.1
Rosana de Medeiros Silva2

Caminhou quase todo o dia sem lhe acontecer coisa merecedora de ser contada; com o que
ele se amofinava, pois era todo o seu empenho topar logo onde provar o valor do seu forte
braço. Dizem alguns autores que a sua primeira aventura foi a de Porto Lápice; outros, que
foi a dos moinhos de vento; mas o que eu pude averiguar, e o que achei escrito nos anais da
Mancha, é que ele andou todo aquele dia, e, ao anoitecer, ele com o seu rocim se achava
estafado e morto de fome; (…)” (Dom Quixote, Cervantes)

Durante alguns dias da quarentena, senti assim: vagando, seguindo, estudando e


terminando os dias estafa e morta de fome – não de comida, mas de esperanças e sentido.
Vivenciando um momento ímpar na história: a COVID-19 nos tem isolado do contato físico
presencial, ou seja, das relações sociais.
O caminhar de Quixote e seu cavalo (rocim) nessa passagem me lembra a sensação de
navegar a esmo nas redes nos primeiros meses da pandemia. Parecia quase impossível
abandonar as telas, as informações, as próximas datas, as mais diversas transmissões online.
Lembro – me de um dia, ao acessar ao acessa o Instagram 3 transmissões eram incontáveis,
temas dos mais diversos.
Os dias se passavam, e nada de soluções, os números de casos e mortes aumentavam
tudo estava sendo cancelado. A esperança era a ciência, confiar nos pesquisadores, nas
pesquisas que estavam sendo desenvolvidas, mesmo sendo difícil a espera. Seguindo os dias
dentro de casa, quarentena total, o quarto tornou-se o lugar mais frequentado, aquele
lugarzinho predileto, novos hábitos, novas formas de organizar a rotina, formas de vivenciar a
casa e a rua, o mundo virtual e o presencial, a mudança do cotidiano social.

1
Trabalho apresentado na disciplina de Metodologia de Ensino das Ciências Sociais, como obtenção da nota
parcial, com objetivo de aprovação na mesma. Ministrada pelo Prof. Dr. Wallace G. Ferreira de Sousa. Mestrado
Profissional de Sociologia em Rede Nacional – PROFSOCIO (UFCG/CDSA); Centro de Desenvolvimento
Sustentável do Semiárido (CDSA) Unidade Acadêmica de Ciências Sociais (UACIS).
2
Mestranda em Sociologia, no Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional – PROFSOCIO
(UFCG/CDSA). Graduada em Ciências Sociais (Licenciatura), pela Universidade Federal de Campina Grande
(UFCG), Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido (CDSA). Integrante do Núcleo de Estudos e
Pesquisa em Etnicidade e Cultura (NEPEC). Email: medeirosrosana01@gmail.com
3
Rede social de fotos para usuários de Android e iPhone. Basicamente se trata de um aplicativo gratuito que
pode ser baixado e, a partir dele, é possível tirar fotos com o celular, aplicar efeitos nas imagens e compartilhar
com seus amigos.
Logo no inicio da pandemia, da janela do quarto, era de onde podia ver o movimento
na rua, na mesma mais de 50% são pessoas idosas, que vieram da zona rural, algumas delas
têm o hábito de fazer caminhada logo cedinho do dia, outras vão à feira do sábado com seus
filhos, a rotina já não era mesma. Neste dia, fiquei um bom tempo apoiada na janela, pesando
se para mim era ruim, imagina para os meus vizinhos idosos, que agora se quer podiam fazer
suas caminhadas matinais, o quanto de benefícios elas traziam e agora a única opção era
ficarem trancados dentro de casa.
Neste tempo, para além da vida do contexto social, existe a vida acadêmica para dar
continuidade, uma pós-graduação para concluir, uma dissertação para escrever. E como
encarar tudo isso, numa “nova fase” tentando reinventar, novas formas, caminhar com todas
as dores que mim acompanhava, lutar contra pensamentos diários sabotadores “não vou
conseguir”, enquanto vencia, passava pelas aulas através de videoconferência, qualificava o
mestrado através de uma tela, e ate chegar atual a escrita da minha dissertação, foram
inúmeras formas para recuperar a concentração, não perder o foco, escrever em tempos da
pandemia é algo desafiador a cada dia, quando a escrita flui, mesmo como eu gostaria, mas
flui, o que faz entender mesmo em meio às dificuldades, mas continuo seguindo, e não foi,
nem esta sendo fácil fazer acontecer.
Em alguns momentos do dia, tento ler e me concentrar, mas é uma quase impossível.
Há dias que não consigo terminar um raciocínio, pois sou interrompida. Na madrugada é
onde encontro paz, apenas na madrugada, quase todos estão dormindo e eu aproveito para
estudar, a dedicação ao trabalho acadêmico requer uma demanda de muito tempo,
concentração e esforço intelectual, uma tarefa árdua, complexa. Neste sentido, busquei pensar
nos efeitos da escrita acadêmica e como a pandemia do COVID-19 afeta produção acadêmica
das mulheres durante o isolamento social, levando alguns fatores importantes como gênero,
raça e classe, a pandemia não atinge a todos de formas iguais, pelo contrário escancarou as
desigualdades, tornando um desafio ser mulher e ser mãe.
Provavelmente nem nos melhores roteiristas seriam capazes de criar um ano como
vem sendo 2020. A pandemia do Covid-19 atingiu o mundo todo e forçou uma mudança
repentina de hábitos como talvez em poucos momentos antes na história. Sem vacina ou
mesmo medicações com efeitos relevantes comprovados no combate a doença, o isolamento
social. No inicio, vivi momentos de pânico, e ao conectar as redes sociais, assistir noticiários,
ler noticias o medo de que o vírus chegasse próximo aumentava olhar para sociedade e
perceber o quão vulneráveis e desamparados estados pelos órgãos responsáveis, a população
estava diante desse caos, a cidade onde moro, Patos/PB, os casos aumentavam absurdamente,
chegou a ser uma das primeiras cidade do estado da Paraíba comprovação de morte pelo
COVID-19, em poucos dias, a cidade entrou para bandeira vermelha 4. Porém, o que mais
me deixava indignada era a forma de como os órgãos municipais estava agindo, mesmo diante
da bandeira vermelha, os órgãos responsáveis demoram a fiscalização, como também depois
de muitos caos, leitos de UTI lotado, mais de cinco mortes ao dia, foi quando começou a ter
uma fiscalização mais rígida. E tudo isso, acontecendo em uma cidade com 192 mil habitantes
cada dia é uma vitória. A cada divulgação de boletim, olhava atentamente as testagens
positivas, enquanto quase toda cidade estava “respirando” corona vírus nenhum caso era
anunciado no bairro onde eu moro. A crise de ansiedade tomou de conta, o psicológico já não
era mais o mesmo, começa os primeiros casos, começa as mortes de pessoas próximas, a
saúde mental vai sendo destruída, não é fácil, e em meio tudo isso, tinha a qualificação do
mestrado para escrever, confesso que os livros, as madrugadas, foram um meio para que por
algumas horas eu saísse um pouco do foco sobre o vírus.
Ver a pandemia que atingia todo o Brasil desde março deste ano e o descanso com que
o atual presidente do Brasil Jair Bolsonaro (sem partido) trata o vírus faz com que através de
símbolos e do seu discurso, enquanto todo o mundo procurava soluções, Bolsonaro fazia
piadas sobre o vírus. Sem nenhuma responsabilidade que um presidente durante a pandemia
deveria ter. Em nenhum momento houve adoção de medidas que incentivasse a adoção de
medidas para conter a propagação da doença, não houve exemplos pessoais para que pudesse
avalizar atitudes dos cidadãos. E o que fez o presidente? O oposto! Tentou minimizar a
extensão e letalidade da doença, incentivou a população a fazer auto medicação de um
remédio desaprovado pela OMS, andou sem máscara, sempre com aglomeração, dentre tantas
outras barbaridades cometidas por parte de um chefe de estado.
Chegamos a um ponto onde parte da população, esta grande parcela composta por
apoiadores do atual governo, seguiram a linha de pensamento na qual ele estava propagando,
duvidam da própria ciência, desprezam totalmente o conhecimento científico, muitos
baseados nas ideias do presidente da república, outros na ignorância e na fixação religiosa em
algum tipo de crença. Muitas pessoas só passaram a acreditar que algo grave acontecia
quando parentes mais próximos foram atingidos pelo vírus e em alguns casos, infelizmente ter
chegado a óbito.

4
A bandeira vermelha, em essência, impõe restrições mais severas àquelas adotadas em áreas com bandeira
laranja. Nas regiões classificadas como bandeira vermelha, somente estabelecimentos que vendem itens
essenciais podem estar abertos, mantendo 50% dos trabalhadores. Os demais locais de comércio devem ficar
fechados.
Era um amanhecer de domingo, o claro do sol entrava pela janela no meu quarto, fui
fechar a janela, esta que acabou sendo o meu ponto de reflexão, parei por alguns minutos
olhando os pássaros cantavam sobre a mangueira da casa do vizinho, tinha tido uma
madrugada de leitura para escrever um dos capítulos da minha dissertação intitulado como
“As pretas no poder: enfrentando ao racismo epistemológico” e me veio o questionamento:
“como as mulheres negras estão administrando as novas disposições de tempo e espaço
para uma condição de escrita?” Como não pensar nessas mulheres que mesmo ocupando
“lugares de brancos” como diz Lélia Gonzalez, em quase sua totalidade são mulheres que
lutam diariamente contra uma sociedade onde as colocam e enxergam como subalternas, e
ao ocupar esses lugares elas resistem dia pós dia, o nosso país trata o acesso à cultura
acadêmica como privilégio, lembrando da frase de uma grande intelectual negra Conceição
Evaristo “durante muito tempo escrever foi considerado revolucionário pelas feministas
brancas. Eu digo, para mulheres negras escrever e publicar é revolucionário”. Alcançar
visibilidade e escutas conjugando as identidades de escritora e negra é uma grande vitória
individual e coletiva.
Imagine em tempos atuais, onde para a além do vírus que se alastram, as mulheres
negras estão cotidianamente ameaças por políticas conservadoras, elaboradas por um
patriarcado do século XXI, no qual o lar, os filhos e o orçamento doméstico definem, sem
pacimônia, o “ser mulher”. (XAVIER, 2020, p.44). Uma multiplicidade que evidencia a
sobrecarga trabalho, naturalizada pela estrutura patriarcal.
Precisamos parar de romantizar o termo “mulheres guerreiras”, termo usado para
elogiar mulheres que se desdobram entre diferentes rotinas, toda visão romântica da
realidade pode acabar atrapalhando análises profundas de alguns contextos sociais. Não é
normal mulheres terem jornadas muito mais que triplas, por exemplo: cuidar do lar, dos
filhos, vida acadêmica, profissional, saúde mental, dentre outros pontos, onde para algumas
e alguns é uma vida produtiva mesmo dentro de casa. Para as mulheres negras, ocupar o
espaço acadêmico é um processo complexo de destabilização do imagino de nascidas para
servir. (XAVIER, 2020, p.89).
Conforme comprovam os dados do IPEA no estudo online “Retratos das
desigualdades de gênero e raça, a luta por existir e resistir como instrumento atinge de
forma especifica as mulheres negras. Os números e as reflexões trazidas por Flávia
Oliveira, no texto intitulado “Calar é preciso”, titulo proposital, mostra o quão as mulheres
negras brasileiras estão em condições de vulnerabilidade.
Levando em consideração que no país onde mais 80% das trabalhadoras domésticas
são negras, segue algumas reflexões como: “quem tem o dinheiro de ser reconhecida como
intelectual no Brasil? Como a intersecção de gênero, raça, e classe colocam-se no espaço
acadêmico e na produção cientifica?
Partindo do levantamento do Movimento Parent in Science 5, intitulado “Produtividade
Acadêmica durante a Pandemia: efeitos de gênero, raça e parentalidade”, o trabalho buscou
entender este cenário, através de um levantamento realizado no Brasil, durante os meses de
abril e maio de 2020. Os questionários 6 foram respondidos por 15 mil acadêmicos entre
discente de pós-graduação, pós-doutorandas (os) e docentes/ pesquisadoras. Um dos grandes
objetivos foi mapear o impacto da pandemia visando o desenvolvimento de ações políticas
que impeçam o aprofundamento de desigualdades de gênero e raça na ciência. O estudo
questionou se essas pessoas estão conseguindo trabalhar remotamente, cumpri prazos
(solicitações de fomento, prestações de contas, etc.) e submeter artigos. Docentes e alunos de
pós-graduação formam os maiores grupos: 3.629 e 9.970 pessoas, respectivamente.
Ao longo do tempo, as mulheres foram vistas como mero acessório do homem. Não
podiam participar de uma vida política nem ingressar em universidades. Com movimentos
como o feminismo e o sufragismo, mulheres ganharam cada vez mais espaço em vários ramos
da sociedade. Segundo Lélia Gonzalez (1988), é inegável que o feminismo como teoria e
prática tem um papel fundamental, porém, na medida em que foram surgindo novas perguntas
as mulheres negras foram buscar novas formas de serem vistas na sociedade, Lélia em seu
artigo nos mostra que no interior do movimento feminista, as negras e indígenas são
testemunhas vivas dessa exclusão dentro das desigualdades existes. De acordo com os dados
mais recentes do Movimento Parent in Science existe uma profunda desigualdade, os
resquício do cenário dos colonizadores ainda perduram no contexto atual.
Ao pensar nesse processo de escrita fazendo o recorte a gênero/raça ainda fica mais
latente as desigualdades. Trazer aqui especialmente dados sobre as mulheres negras, que são
atingidas de todas as formas, por todo tipo de violência, em especial de gênero, raça, uma vez
5
O Moviment Parent in Science apresentou sugestões para as agências de fomento e as universidades a fim de
reduzir as desigualdades de gênero e raça na academia, como: aumentar o prazo para submissão em editais de
fomento; flexibilizar o prazo para prestação de contas e relatórios de projetos; elaborar editais específicos aos
grupos mais atingidos, para evitar um aumento da disparidade de gênero e raça, agravando uma situação crítica
que já existe; aumentar o tempo de análise do currículo para mulheres com filhos, em editais de financiamentos e
concursos; programar os horários de reuniões, considerando o horário escolar no qual mães e pais devem dar
suporte a seus filhos; redistribuir, sempre que possível, a carga horária didática e atividades administrativas de
maneira a não sobrecarregar os grupos de cientista mais atingidos pela pandemia.
6
Os questionários seguiram o padrão atual do IBGE como referência para a questão de raça ou cor. No entanto,
para a análise dos dados, pretas (os) e pardas(os) foram unidas(os) em um único grupo: negras(os). Não foi
possível realizar nenhuma análise considerando os grupos “amarelo” e indígena”, devido ao pequeno número de
respondentes que se declararam pertencentes a estes grupos.
que sofre as consequências do racismo estrutural, de acordo com Silvio Almeida (2020), o
racismo estrutural é essa naturalização de ações, hábitos, situações, falas e pensamentos que
já fazem parte da vida cotidiana do povo brasileiro, e que promovem, direta ou
indiretamente, a segregação ou o preconceito racial. Um processo que atinge tão duramente
— e diariamente — a população negra, e as questões diretamente relacionadas por serem
mulheres negras, acaba sofrendo dupla, ou triplamente.
Para além da constatação de que o Brasil é um país racista, machista e patriarcal, as
histórias de apagamento, invisibilidade, de silencia-se a produção cientifica de intelectuais
negras e hierarquizando saberes após anos, ainda se insere no contexto atual do nosso país
durante a pandemia, aumentando a desigualdade de gênero, raça e classe na academia. Na
Figura 01, segue o infográfico elaborado pela Parent in Science sobre a produtividade
acadêmica brasileira durante a pandemia.

Figura 01 – Produtividade acadêmica durante a pandemia

Fonte: Produtividade Acadêmica Durante a Pandemia, 2020.

De acordo com o levantamento realizado o grupo de mulheres negras (com ou sem


filhos) na submissão de artigos científicos, as mesmas foram as mais atingidas pela
pandemia. As mulheres negras com filhos foram as que mais conseguiram cumprir o prazo:
46,5% contra 47,2% das mulheres brancas com filhos. Contudo 61% dos homens negros
com filhos conseguiram apresentar artigos contra 67,2% dos docentes brancos. Ou seja, os
docentes brancos sem filhos foram os menos afetados pela pandemia. Segundo os dados
77,3 deles conseguiram apresentar um artigo como planejado contra 67,9% dos negros.
Diante desses dados, trago Conceição de Evaristo para ajudar nas reflexões: “O que
levaria determinadas mulheres nascidas e criadas em ambientes não letrados e, quando
muito, semialfabetizadas, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o
movimento da escrita?” (EVARISTO, Conceição. 2007. pp.16-21).
As mulheres negras fazem parte de um grupo historicamente vitimado pela
violência racista, pelo epistemícidio (CARNEIRO, 2005) e pela exclusão. Elas fazem parte
de um grupo que tem/teve sua identidade violentada e deteriorada incessantemente. As
mulheres negras são silenciadas desde cedo, aprendem que apenas os brancos têm
privilégios. Lendo algumas “escrevivências” de mulheres negras, em grande parte os
relatos parecem serem únicos, elas miram forças desde pequenas para aprender, que no
meio onde vivem rodeando de opressão, através do saber é a maneira das quais buscam o
direito de erguerem a voz, de ter o direito de falar, fazendo jus do que se pensa se sente e
sonha.
Vivemos em tempos tenebrosos, mas é inegável que presenciamos um período de
insurgência (HOOKS, 2013), mesmo com a opressão e silenciamento, devemos ressaltar o
avanço de conquistas oriundas do Movimento Negro Educador no Brasil para que hoje
esses espaços colonizados sejam cada vez mais ocupados por vozes insurgentes,
intelectuais negras. Conforme bell hooks, “enfrentar o medo de se manifestar e, com
coragem, confrontar o poder continua a ser uma agente vital para todas as mulheres.”
(hooks, bell. 2019. p.55).
Chegamos ao mês dezembro, depois de muitas fases da pandemia, segundo os dados
do Ministério da Saúde (2020), chegamos ao total de 183,735 óbitos acumulados, com
recorde diário de 70.574 brasileiro infectado em 24 horas, número este atualizado dia 16 de
dezembro, ou seja, desde do primeiro caso 7 registrado em 26 de fevereiro.
De acordo com Nilzia Iraci, coordenadora de comunicação do Comitê Mulheres
Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030 8, considera que a “pandemia do Covid-19
7
Um homem de 61 anos, morador de São Paulo, que viajou para Itália em fevereiro, foi diagnosticado como o
primeiro caso no país logo após retornar ao Brasil.
8
Parceiro da ONU Mulheres Brasil no desenvolvimento de estratégia de comunicação e advocacy público para a
priorização das mulheres negras na resposta do Brasil aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e à Década
Internacional de Afrodescendentes.
revelou um retrato sem retoque de um país que insiste em não reconhecer a si próprio, e
onde o racismo institucional e distopia ditam as regras de quem deve viver e morrer”. Nilza
ressalta que a pandemia escancarou que são as mulheres pretas, pobres, periféricas as mais
afetadas, pois além de estarem nas ruas e nas casas das patroas trabalhando pelo sustento
de sua família enfrentando os cuidados com a casa, as crianças, os idosos, e os doentes e
lutando por justiça, muitas vezes ainda convivem com a violência doméstica dentro de
casa, que apontam índices alarmantes durante a quarentena.
Neste sentido, o ato das mulheres negras “erguer a voz” como afirma bell hooks,
neste contexto pandêmico não é uma expressão vazia, a voz liberta. Diante das
desigualdades sociais, de gênero, econômica, no Brasil, os dados do Ministério da Saúde
sequer eram separados por cor no inicio da pandemia. Só a partir do dia 11 de abril, quase
um mês e meio depois da confirmação de primeiro caso de COVID-19, graças à pressão da
Coalizão Negra por Direitos, começaram a notificar por cor, gênero e bairro. Uma análise
da Agência Pública mostrou dados desanimadores, há uma morte para cada três brasileiros
negros hospitalizados por COVID-19, enquanto entre brancos a proporção é de uma morte
a cada 4,4 internações. De acordo com um estudo da PUC-RIO, pretos e pardos apresenta
proporção de óbitos 37% maior, em média, do que brancos.
Diante dos índices de óbitos, infectados pelo vírus, sigo refletindo... “Vidas negras
importam”? O que fazer para dar visibilidades aos milhares de relatos de mulheres negras
que a duras penas, muitas vezes trabalhando o dia todo e a noite dedicando a vida
acadêmica. Cadê as campanhas? Em qual momento elas são enxergadas pela parcela branca
e excludente?
O óbito de milhares de indivíduos negras e negros infectados não comove mais.
Neste ano, de 2020 a Marcha das Mulheres Negras, no dia 25 de julho, quando e
comemorado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha e Dia
Nacional de Tereza de Benguela, este ano em espacial, não foi às ruas, houve programação
online partindo movimento negro e movimento feminista negro, dentre diversos temas
espalhados ao longo do das mobilizações um dos temas mais pautados estava o genocídio
da população negra e o bem viver.
Num país em que, no século XXI, a chance de uma negra ou negro ser analfabeto é
cinco vezes maior do que um branco, pensar em Carolina Maria de Jesus é um ato de firme
perseverança e a frase “o negro só e livre quando morre”, denúncia o óbvio. Carolina Maria
de Jesus, negra, catadora de papel e favelada foi uma autora improvável diante de uma
sociedade que lhe impedia o direito de ser quem é, e de fazer o que ama. Sociedade esta
que como mostra os dados ainda segue impedindo tantas outras mulheres negras.
Conforme a intelectual negra Djamila Ribeiro (2018) as mulheres negras ainda
vistas como diferentes, e por essa diferença serem consideradas problemáticas, fica de fora
das estruturas de poder. O rearranjo social nas etapas de flexibilização do isolamento
social, chamado como “novo normal”, traz novos desafios principalmente às mulheres
negras pelo aprofundamento das desigualdades de gênero e raça.
Esse isolamento intensificou as demandas que as mulheres negras reivindicam há
séculos, a garantia de direitos básicos que inclui os que são sexuais, reprodutivos,
acadêmicos. O racismo estrutural, institucional, acadêmico, do dia a dia, etc. Portanto,
devemos enfrentar o racismo denunciando o tratamento desigual por parte das instituições
ou indivíduos que prestam serviços de saúde e de proteção social, pois nos lugares mais
subalternos estão as mulheres negras.
Compartilhando o pensamento de Collins (2020), onde mesmo com todas as
dificuldades, se faz necessário tirar proveito desse contexto, do lugar onde cada uma está
inserida. Reconfigurar o mundo por meio de outros olhares pode ser uma perspectiva.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvo Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora
Jandaíra, 2020. 264p. (Feminismo Plurais/ coordenação de Djamila Ribeiro)

CARDOSO, Cláudia Pons. Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia


Gonzalez. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 965-986, Dec. 2014. Disponível
em:<http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0104026X2014000300015&lng=en&nr =iso>. Acesso em 20 de
nov. 2020.

CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. Belo Horizonte: Letramento, 2018. 2018.

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha (Trad. de Viscondes de Castilho e


Azevedo). São Paulo: Editora Abril, 1978.
hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra/ bell hooks;
tradução de Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019. 380p.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a


política do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias. 1ª edição. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2019. 495p.

EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2013.


GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: SILVA, L. A. et al.
Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília,
ANPOCS n. 2, p. 223-244, 1983.

MULHERES NEGRAS AGEM PARA ENFRENTAR O RACISMO NA PANDEMIA


COVID-19 E GARANTIR DIREITOS DA POPULAÇÃO NEGRA NO “NOVO NORMAL”.
ONU MULHERES, 2020. Disponível em:
<http://www.onumulheres.org.br/noticias/mulheres-negras-agem-para-enfrentar-o-racismo-
na-pandemia-covid-19-e-garantir-direitos-da-populacao-negra-no-novo-normal/>. Acesso
em: 10 de dez 2020.

MULHERES NEGRAS E PANDEMIA: REFLEXÕES SOBRE RAÇA E GÊNERO.


OXFAM Brasil, 2020. Disponível em: < https://www.oxfam.org.br/blog/mulheres-negras-e-
pandemia/>. Acesso em: 09 de dez. 2020.

NETO, Vital. Painel Covid-19: acompanhe a evolução da pandemia do novo coronavírus


no Brasil. CNN BRASIL, 2020. Disponível em:
<https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/12/16/painel-covid-19-acompanhe-a-evolucao-da-
pandemia-do-novo-coronavirus-no-brasil>. Acesso em: 10 de dez. 2020.

RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? 1ª Edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.

XAVIER, Giovana. Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por
mulheres negras contando sua própria história. Rio de Janeiro: Malê, 2019. 182p.

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