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Rio de Janeiro
Dezembro/2013
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Aprovada por:
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Rio de Janeiro
Dezembro/2013
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CDD 305.896081
iv
Dedicatória
Agradecimentos
À minha mãe, Maria Venina, pela referência de disposição para fazer bem feito as coisas a que
se propõe.
Ao meu pai, Antonio Paulo (in memoriam), pela afabilidade e bom humor, que sempre o
caracterizaram nas mais delicadas circunstâncias da vida.
Aos irmãos e irmãs integrados(as) pelo mesmo chão: Santo Amaro da Purificação/BA.
Aos meus filhos Milena, Adaceli e Franco, fonte incessante de rebuscamentos de minha
existência.
Aos/às meus/minhas netos(as) Rian, Luara, João Pedro, Raul, Prince e Ludmila, pelas
presenças inspiradoras.
À amiga/irmã Delma Boa Ventura, aos amigos/irmãos Roberto da Cruz Melo e Sinval Teles
Sacramento, e à queridíssima Geny Ferreira Guimarães, pela solicitude e apoio incondicionais.
Especiais agradecimentos:
Ao professor Roberto Carlos da Silva Borges, primeiro coordenador do Mestrado Acadêmico
em Relações Etnicorraciais pela proficiência e franco estímulo ao desenvolvimento deste
trabalho.
Ao professor Sérgio Luiz Souza da Costa, meu orientador, pela confiança e pela compreensão
de minhas limitações para conciliar trabalho e pesquisa.
vi
À jornalista do Jornal A Tarde, Cleidiana Ramos, pela amabilidade e constante solicitude diante
dos meus apelos.
Aos pescadores:
“Pai Velho”, “Cumprido”, “Mantega”, “Pigmeu”, “Bala na Testa”, Milton, pela ventura da
simplicidade e indispensável contribuição para a realização desta pesquisa.
A Armando Raúl Gömöry, pelo amor e pelo companheirismo traduzidos, sobretudo, pelos
registros das imagens em forma de vídeos e fotografias.
A todas as pessoas que não foram citadas, mas, lembradas por suas presenças direta e
indiretamente.
RESUMO
Orientador
Palavras-chave:
Cultura; Identidade; Mito; Pescadores; Yemanjá
Rio de Janeiro
Dezembro/2013
viii
ABSTRACT
Advisor
The present work consists of a set of reflections about the myth idea and it’s significant
in the place of culture, connecting of it with elements that produce light for n approximation
between the reality and the symbolic in the symbolic in the of identities constructions. Proposed
to analyze the representations of the "myth", surrounded by variables that move senses,
according to the times and the places. While focusing a group of fishermen from Salvador’s city
and it’s representations about Yemanja, it aims to investigate dynamism produced around
divinity Yoruba during the African Diaspora, looking to identify the new meanings to her borrow
in Brazil. In this perspective, establishes a dialogue with the theoretical productions of Stuart
Hall, Muniz Sodré, Barthes, Mellucci, Bhabha, Verger, Prandi and others, producing discussion
around identity, culture and mythology in the contemporary world. In the context the of studies
on mythologies and imaginary it evokes works of Eliade, Durand, Malinowski, Prandi and
Verger. Problematic concepts around hypothesis of cultural "purity", to the time which
recognizes ideological stratagems in the semantic and material configurations that wrap the
concept of culture. At the same time, Yoruba looks for approximation around a divinity of the
African Yoruba pantheon, through the fishermen’s collective of the Colony Z1, situated in the
district of Rio Vermelho in Salvador, represented by the image/sculpture of a feminine figure in
mermaid’s form, at the front Colony Z1. The field work allied to elements of the documentary
inquiry, offers methodological of legitimating of the objectives, because of favoring the sensitive
listening to the people, protagonists of the universe inquiry to the question.
Keywords:
Culture; Identity; Myth; Fishermen; Yemanjá.
Rio de Janeiro
Dezembro/2013
ix
Sumário
I. 2 Objetivos............................................................................................................................10
I. 3 Justificativa........................................................................................................................10
I. 5 Suporte metodológico......................................................................................................19
I. 6 Corpo dissertativo............................................................................................................23
metáforas?................................................................................................................. 26
Reflexões finais.......................................................................................................... 87
Referências bibliográficas........................................................................................ 90
Lista de figuras
INTRODUÇÃO
na política, nas artes, na cultura, na educação, nas religiosidades. Por essa razão, valemo-nos
da memória e já nos desculpando pela omissão involuntária, para mencionar alguns nomes e
gentes dignas de reverência pela passagem entre os mortais: Paulo Freire, Abdias
Nascimento, Lélia Gonzalez, Tereza de Calcutá, Zumbi dos Palmares, Chico Mendes, Beatriz
Nascimento e todas as etnias indígenas brasileiras que tombaram pela preservação de sua
cultura. É desta transgressão que estou a dizer, com vistas à liberdade de expressão das
culturas sintetizadoras da sociedade brasileira.
Tenho em PAULO FREIRE (1921-1997) uma referência transgressora. Sua obra
ultrapassa os muros da escola e abarca a sociedade brasileira em suas bases hegemônicas,
quando atenta para a questão da identidade cultural. A veia revolucionária de Freire, que o
confinou ao exílio na África, durante a ditadura militar do Brasil na década de 1970, contaminou
muitos educadores, no sentido de imaginar e desejar uma sociedade mais igualitária, por meio
do saber, da educação e do ensino. Em sua obra, livros como A importância do ato de ler
(1989)1, Pedagogia do Oprimido (1987)2, Pedagogia da Esperança (1992)3, Pedagogia da
Autonomia4 (1996), atestaram sobre sua opção política-ideológica, ou seja, o emprego de
esforço epistemológico para construir, (des)construir e (re)construir conceitos de educação e
de ensino, que pudessem alcançar todos os sujeitos sociais em direção à autonomização
política por meio do saber construído e socializado. O contato com Freire me animou a fazer
intervenções nas instituições educacionais por onde passei, e estimulou a qualidade
transgressora, que consideramos vital, diante de qualquer circunstância alienadora,
desumanizante e injusta. Nos papéis profissionais de docente e de pedagoga pude
experienciar olhares diferenciados do fazer pedagógico e das tramas que o abrangem. A
qualidade transgressora a que nos referimos quer significar problematização a tudo o que fere
a ética universal do ser humano em sua ontologia, em seu direito à diferença, à sua dignidade,
à sua capacidade de tornar-se autor do seu fazer histórico, experimentando alegria por sua
construção emancipatória. Portanto, à maneira de Freire, aprender junto, aprender com,
aprender ensinando e ensinar aprendendo, eis o desafio. Entre os “saberes necessários à
prática educativa”, disse Freire:
1
[...] Nesta obra, Freire (1989) destaca a importância da leitura de mundo anterior à palavra. Nós a utilizamos para demonstrar
como a instituição escolar brasileira tem excluído significativamente parcelas da população afrodescendente, por desconsiderar
experiências de sujeitos histórico-sociais portadores de culturas.
2
[...] Freire preconiza a alteração da ordem social desigual ao dizer: “Somente quando os oprimidos descobrem nitidamente seu
opressor e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua conivência
com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita puramente em plano intelectual, mas da ação, o que nos parece
fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas que esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja
práxis”. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p.52.
3
[...] Freire desenvolve um relato de suas experiências durante os períodos em que travou diálogos com vários grupos sociais
dentro e fora do Brasil, os quais buscavam soluções para as situações-limites em que viviam. Essas experiências culminaram
com a produção da “Pedagogia do Oprimido”.
4
[...] Freire discorre sobre as tensões e os conflitos gerados no processo do “assumir” a identidade cultural, utilizando sua
experiência intelectual nos diferentes países que visitara.
3
Na lógica do assumir-se com uma identidade cultural, FREIRE (1996) pontua que a
formação docente que se julga acima das “intrigas” provocadas pelas forças reacionárias à
frente da busca da assunção de si, concorre para a reafirmação dos obstáculos. Porque tal
investidura implica um conflito de experiências históricas, políticas, culturais e sociais de
indivíduos, incompatíveis, portanto, com o “elitismo autoritário” dos que se pensam donos da
verdade e do “saber articulado”. Trazemos duas expressões bastante significativas quando se
enseja analisar as gêneses de práticas sociais desiguais e excludentes, sobretudo, de viés
racista. O elitismo autoritário e o saber articulado estão intrinsecamente relacionados ao
exercício do poder em diferentes espaços, a exemplo do espaço de formação, que é a escola.
Sem prescindir da importância dessa instituição, há que refletir sobre os aspectos que a
constituem como lócus classificatório de indivíduos, por meio de critérios de seleção,
agrupamento, aferimento e, também, de estereotipias. A perspectiva crítica aliada à
observação empírica, à experiência profissional e à fundamentação teórica propiciam a
constatação de um modelo de escola que mantém elementos ideologizantes de dominação
eurocêntrica, cujo ideário de ser humano está consubstanciado no paradigma cientificista e
linear. Essa noção de ser humano tende a suprimir a diferença ou, na hipótese de reconhecê-
la, valer-se de arranjos para dissimulá-la ao máximo das possibilidades. Nesse contexto a
escola se revela como espaço em que os “diferentes” do padrão ideado costumam apresentar
maior vulnerabilidade quanto a assunção de suas identidades. Os desenhos curriculares, os
ritmos de aprendizagem, as classes sociais e as experiências dos educandos, quase sempre
tem sido desconsiderados, dada a obsolescência do modelo a que referimos. Onde estão
impressas na escola brasileira do século XXI, as matrizes civilizatórias africanas e indígenas?
Que imaginários foram construídos a respeito dos grupos étnicos nativos do solo brasileiro – os
indígenas -, e dos grupos étnicos traficados de África? Estas são indagações que se fazem
indispensáveis quando pensamos a questão da identidade cultural no e do Brasil, dadas as
implicações e imbricações derivadas dos processos de hibridização. As brechas observadas,
em especial pelo Movimento Negro e por frentes antirracistas, provocaram debates que
culminaram com alterações no texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de
4
CAPÍTULO I
O UNIVERSO DA PESQUISA
LOURO (1997) nos provoca uma reflexão pertinente, quando descortina a instituição
escolar como espaço de produção de desigualdades através das diferenças e das distinções.
Nossa perspectiva pedagógica acolhe as diferenças como fatores constituintes da condição
humana, mas, recusa a desigualdade enquanto justificativa. Daí a discussão do papel social da
escola, do empoderamento que lhe caracteriza e de sua capacidade de distinguir indivíduos,
segundo os critérios que a sustentam. Enquanto aparelho ideológico de Estado (AIE)
(ALTHUSSER, 1986), a escola replica a ideologia dominante, que sistematizou os saberes
segundo uma hierarquização de inteligências. Neste sentido, tem lugar a crítica a este modelo,
que detém pressupostos eurocêntricos baseados na ideia de sociedade engessada, a qual
“ignora” as diferenças individuais e culturais, ao tempo em que, ideologicamente, delas se
utiliza para fomentar exclusões.
Ao discutirmos certas práticas educativas veiculadas na escola, temos ciência das
complexidades que as caracterizam e, portanto, ensejamos ultrapassar qualquer indício de
ingenuidade. Estamos a dizer que a instituição escolar, lugar de onde vemos, tem contribuído
para alimentar desigualdades a partir das diferenças. E neste âmbito, vislumbramos a questão
étnico-racial. Em sua crítica, LOURO (1997) refere a MICELI (1988) para lembrar uma face do
ensino de história. MICELI refere à história tradicionalmente ensinada nas escolas brasileiras,
usando o exemplo de um livro didático de 5ª série do 1º grau (ensino fundamental), cujo
primeiro capítulo tem como título: “Selvagens e civilizados – Na época dos descobrimentos”.
Inferimos daí, como teriam sido construídos imaginários a respeito dos grupos em relação, a
partir da chegada dos portugueses: estes, com o domínio da escrita, poderiam escrever e
registrar suas conquistas. Pareceria “natural” pertencerem à História, enquanto que os demais
6
grupos – índios - por não disporem de idêntico atributo, seriam considerados “primitivos” e pré-
históricos.
A escola forjada pela sociedade ocidental moderna imprimiu sua cultura dentro de outra:
a cultura da colonização. Ao reproduzir o projeto hegemonizante, tem concorrido para uma
segregação mal dissimulada, separando brancos de negros e de indígenas, apartando
católicos de protestantes e de pagãos, crianças de adultos, homens de mulheres, segundo
LOURO (1997). Em incessante movimentação no interior do espaço escolar distribuído em
divisões de classe, de etnia, de gênero, de sexualidade, de religiosidade, as práticas sociais e
culturais denotam um estado de permanente tensão e de aspiração por reconhecimento dos
grupos excluídos. Concebida pela racionalidade eurocêntrica, ainda se verifica na escola forte
presença da dominação branca, cristã e heterossexual. O que se manifesta fora desses
parâmetros corre riscos de estereotipias comprometedoras do psiquismo, do desempenho
pessoal e da autorrealização dos sujeitos “diferentes”.
Alguns episódios do cotidiano escolar, empiricamente observados na década de 2000
possibilitaram configurações indicadoras de práticas preconceituosas e discriminatórias, quanto
a grupos em relação. Entre idas e vindas pelos pátios e corredores do ambiente escolar, há
alguns anos, deparamos com uma situação em que um grupo de estudantes evangélicas
7
de parte dos legados culturais indígenas e africanos. Estudos sobre essas culturas tornaram-se
objeto inadiável no campo das ciências sociais, numa perspectiva interdisciplinar, de modo a
situá-las com a relevância que lhe é devida na agenda política de construção da igualdade e da
solidariedade social de direito, por todo o planeta. Ao relacionar fundamentos da antropologia,
da sociologia e da pedagogia, buscamos perquirir caminhos, cujas pistas nos auxiliem na
compreensão de processos conceituais acerca de cultura, mito e identidade através das
diásporas, sobretudo a diáspora africana no Brasil.
Quanto às relações sociais nos espaços acadêmicos, no tocante à diversidade cultural
em que estão factualmente imbricadas, consideramos oportuna a problematização dos saberes
articulados, de modo a refletir sobre possibilidades de reorientação de práticas pedagógicas
demarcadas pela pluralidade cultural, com vistas à inclusão e pelo respeito às diferenças entre
sujeitos diferentes em constante processo de interação. Apesar da inclusão discursiva da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDB 9394/1996)6 em seu artigo 1º,
encontramo-nos equidistantes de tal realidade, para a qual seria necessária uma radical
transformação nas concepções de sociedade e de educação.
Uma escola que não discute internamente, que não dialoga com os movimentos sociais,
que não questiona as desigualdades, a que propósito serve? A experiência de ter participado
da instauração da política de cotas e seus desdobramentos, e as limitações para a implantação
da Lei 10.639/2003 na instituição de onde venho, endossa a necessidade de realização de
estudos acadêmicos que possam reverter obscuridades no campo da(s) cultura(s). O
desconhecimento generalizado acerca das culturas africana e afro-brasileira no interior da
escola reflete o intenso trabalho de ocultamento do valor histórico das etnias formadoras da
sociedade brasileira, hoje relegadas a um plano secundário. No entorno da cidade de Salvador,
graças às minhas andanças e ao meu olhar atento; e às minhas participações em eventos
político-culturais, em que as questões étnico-raciais se constituíam temáticas, pude alinhar
impressões que reforçam a hipótese de um racismo espraiado em diversos espaços formais e
informais. Racismo que, gestado nos discursos bioantropológicos, concorreu para a construção
de imaginários que subvalorizam o ser negro no Brasil e, em Salvador, expõe sua feição
excludente. Racismo que se enreda de tantas maneiras quantas são suas sutilezas ou
evidências, tornando-se prática institucionalizante.
6
[...] Art. 1º “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no
trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e nas manifestações culturais. LDBEN 9394/1996.
9
I. 2 OBJETIVOS
I. 3 JUSTIFICATIVA
pensada, também, em sua efetiva capacidade estrategista, uma vez que reunira centenas de
indivíduos, homens e mulheres identificados(as) por semelhantes condições de vida e
interesse comum: a liberdade. Distante do interesse em classificar, mas, atenta às armadilhas
do pensamento monolítico a respeito da trama original da composição cultural brasileira,
arriscamo-nos a ultrapassar as dicotomias tão desgastantes quanto infrutíferas.
Compreendemos a experiência da diáspora como um leque de possibilidades e de
contradições.
A Bahia, primeiro solo de desembarque, encenou o processo colonizatório brasileiro,
iniciado no século XVI, com a expansão do projeto de dominação mercantilista europeu na
América. Do regime imposto aos africanos à época, resultou, como consequência primeira,
uma espécie de ruptura no conjunto das etnias e das culturas de diversos grupos aglutinados
na grande travessia oceânica, alterando seus códigos amalgamados por idiomas, práticas e
iconografias. Contudo, os sobreviventes criaram arranjos que, até então se fazem refletir na
cidade de Salvador, estado de maior contingente populacional de descendentes africanos:
trouxeram sua sabedoria milenar, sua musicalidade, uma estilística literária, uma culinária, uma
expressividade corporal. As gentes africanas escravizadas “inventaram” os quilombos e
fincaram as bases de uma religiosidade: o candomblé. Todas essas estratégias de
sobrevivência, utilizando a corporalidade como instrumento de luta e de preservação, a
exemplo da capoeira. Insistimos em problematizar a identidade neste contexto. Como se deu e
se dá a construção da identidade nos grupos sociais de afrodescendentes? De que maneira se
sentem e se veem, enquanto sujeitos da cultura? Que sabem a respeito de seus ancestres
africanos?
Com estes questionamentos, optamos pela abordagem investigativa do imaginário, em
direção a um dos aspectos mais emblemáticos da matriz civilizatória africana no Brasil: sua
cosmogonia. A cidade de Salvador cultua um dos mais conhecidos mitos do panteão africano -
o orixá Yemanjá. A cidade possui um grande número de terreiros de candomblé - 1.164 -,
segundo SANTOS, J. T. (2008) e o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade
Federal da Bahia. Entretanto, Salvador reflete antagonismos em relação a sua expressividade
cultural/religiosa: de um lado, flui em grande festividade a homenagear um orixá7, no dia 2 de
fevereiro; por outro lado, em seu cotidiano discrimina grupos sociais praticantes de candomblé.
7
[...] Etimologicamente, o termo orixá foi utilizado por Frobenius (FROBENIUS, 1939) e outros pesquisadores, quando de sua
visita ao continente africano, em pesquisa etnográfica no século XVIII. O termo é de origem inglesa, mas, segundo Ramos, seu
significado é indefinido. Entre os antropólogos, seus contemporâneos, a palavra orixá deriva de asha, cerimônia religiosa; outros
a associaram à formação de ri – “ver”, “achar”; e sha – “escolher”, “selecionar”. A experiência está descrita no livro “As culturas
negras: uma introdução à Antropologia”. Rio de Janeiro, 1972. Não constatamos consenso a respeito do conceito de orixá.
Entretanto, a tradição yorubá associa orixá diretamente a cada elemento da natureza. Segundo Verger (VERGER, 1948) o orixá
teria sido “um ancestral divinizado que, em vida estabelecera vínculos que lhes garantira controle sobre certas forças da natureza
como o trovão, o vento, as águas doces e salgadas... assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caça,
o trabalho com metais... adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização... O poder, axé do
ancestral-orixá teria, após sua morte, a faculdade de encarnar-se, momentaneamente, em um de seus descendentes durante um
fenômeno de possessão por ele provocada” (VERGER. Pierre Fatumbi. Orixás, 2009).
12
réplicas da Igreja na maioria das capitais e cidades do Brasil. Toda essa engenhosidade
construída pelo braço africano, para quem as “estranhas catedrais”8 não possuíam sentido. No
entanto, se questionarmos acerca do protagonismo do povo negro, em condições de igualdade
social em todos os espaços de visibilidade, que resposta teremos que já não seja conhecida?
Em que nichos da sociedade brasileira a cultura negra se destaca? Que atenção a sociedade
baiana dispensa ao patrimônio iconográfico dos povos africanos? Que religiões praticadas por
contingentes de negros são toleradas socialmente? O fato de terem aprendido a “ocultar” sua
cosmogonia durante o período colonial concorreu para desvalorizá-la, relegando-a a algo
condenável?
O universo da pesquisa esboça algumas hipóteses, prevenindo conclusões aligeiradas,
que poderiam desviar seu objetivo primeiro. Pontuamos que a pesquisa de campo propiciou
rica experiência, em que a escuta se destacou como ferramenta mais valiosa e surpreendente,
quanto ao desvelamento de seus elementos constitutivos.
A abordagem sobre imaginários se coloca como ponte entre a academia e a sociedade
circundante, enquanto tentativa de aproximação de categorias representativas do legado
cultural africano. Ao mesmo tempo desponta como evocação ao acervo civilizatório de povos
africanos, a quem legitimamente se deve a edificação simbólica e material do Brasil. Neste
sentido, investigar um mito da religiosidade de matriz africana yoruba no Brasil - um orixá -,
quer significar problematização do preconceito a sujeitos do candomblé, por exemplo, que,
ainda encontram restrições de assunção de sua prática religiosa, que vão da autodeclaração
ao exercício de rituais públicos, como “arriar”9 uma oferenda para um “orixá”.
Enquanto medida de Estado, o ensino obrigatório das culturas afro-brasileira e indígena
parece não ter alcançado seu objetivo nas escolas de Salvador, uma vez que constatamos,
empiricamente, um “alheamento” generalizado sobre a própria cidade onde estão localizadas
as marcas dessas culturas. Entre os indicadores desse “alheamento” apontamos a Festa de
Yemanjá, que acontece em Salvador há décadas todos os anos e integra o calendário de
festas populares. A arquitetura da cidade foi basicamente construída pelos africanos,
espelhada no Centro Histórico - Pelourinho, Terreiro de Jesus, Praça Municipal e a Praça da
Sé –, nesta última se encontra a escultura de Zumbi dos Palmares. Acrescentamos o centro
comercial de Salvador, com suas construções seculares, e o Mercado Modelo. O conjunto
arquitetônico das igrejas católicas espalhadas pela cidade compõe um retrato inequívoco da
presença africana. As esculturas de orixás no Dique do Tororó, em Salvador, sinalizam o
legado mítico da cultura africana. De autoria do artista plástico Tati Moreno, essas esculturas
evidenciam a relação entre África e Brasil, conformando uma estética bastante vívida e
marcante para quem reconhece na cultura, uma fonte de conhecimento e de sentidos do existir
8
[...] Expressão utilizada por Chico Buarque de Hollanda, na produção poética “Vai passar”, de 1984.
9
[...] “Arriar” é uma palavra recorrente no ambiente de candomblé e costuma referir a uma oferenda para orixá, em local privado
ou público, que, no último caso, pode ser a rua ou espaços onde a natureza é mais presente.
14
I. 4 REVISÃO DA LITERATURA
10
[...] Denominação geral dada pelos franceses aos africanos da Costa dos Escravos. Cf. RAMOS. Culturas Negras - Introdução
à Antropologia Brasileira. Volume III, 1972.
16
diferentes sobre mim” (BHABHA, 1998). Podemos inferir de seu discurso, que Bhabha admite a
imprecisão conceitual de cultura. Entretanto lhe atribui caráter de melancolia, uma vez que o
“local da cultura” é, de certa maneira, o local onde forças tirânicas se confrontam em disputas
de morte simbólica ou material, ou de ambas. Quando não de forma material, há que observar
as transformações produzidas nos corpos dos sujeitos “aculturados”, cujas consequências
reverberaram em novos modos de se verem e se portarem no mundo em relação, nas relações
sociais construídas a partir das diferenças. Desta maneira foram gestadas outras
sociabilidades, outras religiosidades, outros agenciamentos políticos, outras formas de
sobrevivência e outros modos de conceberem cosmogonias originárias. BHABHA (1988)
inaugura a possibilidade de uma terceira via para a questão da cultura, que transcenda os
binarismos conceituais.
Na esteira das abordagens psicanalíticas de Bhabha nos movemos. Suas cognições
proporcionam extraordinária contribuição para os estudos culturais, assim como a FANON
(2008) recorremos para expor um viés do psiquismo afetado pelo contato com a diferença. Sua
refinada acuidade se fez presente quando relatou a própria experiência de transição cultural
entre seu país de origem – as Antilhas - para a França e escancarou o problema do racismo de
forma dramática, colocando-nos de frente para uma circunstância histórica que beira a
insanidade. Sua eminente obra Peles Negras, Máscaras Brancas expressa a crueldade do
viver à sombra das fronteiras de um caos instaurado pela hegemonia da matriz civilizatória
europeia, que se impunha à mercê da alteridade do Outro, submetendo-o à destrutividade do
eu profundo do ser diferente, no caso, o não branco, o “negro”. O artifício da linguagem como
instrumento ideologizante eurocêntrico incidiu tal qual uma foice sobre o pescoço do
condenado, qual seja o subalternizado de qualquer origem ou etnia. As diásporas influenciaram
as culturas, desestabilizando a hipótese de purismo. Contudo, aplicou considerável peso na
linguagem. Como dissera acertadamente FANON (2008), “há na posse da linguagem um
extraordinário poder. Paul Valéry sabia-o, quando fazia da linguagem “o deus na carne
perdido””. Ainda lembra FANON (2006) que:
lhes fora exigido o domínio da língua dos que se encontravam na posição de controle. Na
aventura, os demônios das disputas inter-étnicas se confrontaram em agonia e desespero. Não
teria se inspirado no horror ao tráfico humano o poeta Castro Alves, ao escrever “Navios
Negreiros”? Seu poema é um sintoma das tensões daqueles tempos.
A hipótese de inferioridade cultural atribuída às etnias africanas submetidas ao jugo
colonialista seria de um reducionismo insuportável, quando pensamos a energia criadora e a
capacidade de luta daqueles povos, tão acostumados a guerrear em seus territórios de origem,
a exemplo dos yoruba. Daí utilizarmos rudimentos da ciência histórica11, a fim de revermos
contextos culturais necessários à consolidação do nosso argumento, ou seja: conhecer uma
realidade, sem a pretensão de querer reproduzi-la fidedignamente, mas, sim, compará-la,
articulá-la numa aproximação entre o passado e o presente, à maneira de uma vaga
lembrança, uma recordação, uma re-contação. Para tanto, demonstramos como as relações
interculturais podem ser delimitadas por campos de poder e de interesses em disputa; em outra
margem, podem estar impregnadas de sentidos, de afetos e de “desafios do presente”,
conforme dissera Benjamim (BENJAMIM, 1994). Empregamos a noção de “tempo” em duas
vertentes conceituais, a partir de duas matrizes: a europeia e a africana. O “tempo” submetido
à logica ocidental, racionalizado e cronometrado segundo interesses em disputa na égide do
capitalismo, e o “tempo” assimilado nas antigas sociedades africanas, em sincronia com os
dinamismos da Natureza. Nesta ordem, dialogamos com PRANDI (2000) e sua obra A
mitologia dos orixás.
O tempo moderno instaurado no Ocidente, com o advento da industrialização no século
XVIII, alterou radicalmente as relações humanas nas esferas do social. Moldado na invenção
do relógio, baseado numa racionalidade técnica, o tempo tornou-se ponto fulcral do capitalismo
moderno, sua pedra basilar. A Revolução Industrial do século XVIII, parida do ventre da
Inglaterra, produziu repercussões de dimensões globais no hemisfério ocidental. Tempo de
planejamento, objetivação, programação de metas, foco em resultados e avaliação em moldes
de feedbacks, com vistas ao reordenamento do plano inicial. Tal lógica incluiu condutas de
abstinência em face de prazeres comuns, objetivando o máximo em termos de acumulação e
capitalização de bens materiais. A ideia de tempo do paradigma judaico-cristão se enraizou e
se cristalizou no processo histórico da humanidade. Esse tempo imaginado como um
fenômeno cíclico ideado pelo cristianismo é apropriado pela época moderna, (des)envolvendo-
o do invólucro religioso, conforme enuncia MELLUCCI (1991), para associá-lo a progresso,
riqueza das nações ou revolução (MELLUCCI, 1991). À semelhança de sociedades
primitivas/tradicionais o cristianismo preserva a noção cíclica de tempo, mas introduz outro
elemento: a linearidade. Na mesma obra, MELLUCCI apresenta enunciações sobre o tempo
11
[...] A expressão foi cunhada pelo filósofo alemão WALTER BENJAMIN (1892-1940). Sua concepção de história destoa do
clássico e inaugura um conceito que associa o fato presente ao passado, numa relação de afeto e memória.
18
nas diferentes culturas humanas e suas relações com os sentidos que lhes dão consistência.
Na representação inicial do círculo, o tempo é apreendido como um fenômeno cíclico de todas
as coisas, determinado por uma lei imposta a partir de um fato primário e atemporal, que se
repete nos eventos visíveis. A repetitividade dos eventos passa a governar seu aparecimento e
desaparecimento regularmente, dando origem ao “mito”, como ocorre na história da fundação
de uma tribo. Segundo o autor, as coisas se repetem, nada está definitivamente consumado,
adquirido ou perdido, quando comparado com os vastos ciclos da natureza, nos quais essa
prática busca inspiração. A inspiração na natureza está presente em culturas as mais
equidistantes, na cultura chinesa, nas culturas ameríndias ou na Europa medieval. Portanto, as
culturas tradicionais sempre privilegiaram os ritmos profundos da natureza (MELUCCI, 1991).
A noção de tempo ocidental se orienta pela gênese e final dos tempos, pela ideia da
queda e da redenção do cristianismo, que se desdobra em um percurso linear. Representada
pela flecha, tal noção remete a uma finalidade que é um fim, em si mesmo, o ponto final que
empresta significado às etapas anteriores e dá luz às passagens intermediárias (MELUCCI,
1991). Essa lógica predomina na organização das sociedades modernas de tal maneira, que o
tempo se tornou senhor das ações humanas, ao ponto de se tornar diretamente associado ao
capital num famoso adágio popular que diz: “tempo é dinheiro”.
O Mestrado Acadêmico em Relações Étnico-raciais do Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ) foi gestado na concepção interdisciplinar,
a qual faculta a diversidade quanto aos modos de perceber e apreender um objeto comum no
ambiente acadêmico. A linha de pesquisa “Campo artístico e construção de Etnicidades”
desponta como um leque de opções interessantes, quando pensamos a sociedade brasileira,
diversa e acentuadamente criativa. A criatividade do povo brasileiro se expressa de tantas
formas, quantas variadas são as origens das classes sociais que o constituem. A arte brasileira
atravessa fronteiras geopolíticas e atrai pesquisadores, investimentos jornalísticos e produções
culturais, investimentos financeiros internos e externos, provocando intensa circulação de
trocas, dentro e fora do país. Ressaltamos que o campo artístico brasileiro efervesce em todas
as regiões brasileiras, resguardados os estilos e as singularidades. E neste campo, mais uma
vez, em analogia à experiência diaspórica, múltiplas vozes e identidades se confrontam em
profusões indescritíveis. A poética Reconvexo, de Caetano Veloso, ilustra a interculturalidade
ao mesclar África com Europa, Olodum com Henri Salvador e Andy Warhol, conforme o trecho
abaixo:
“Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra,
Você não me pega, você nem chega a me ver
Meu som te cega, careta, quem é você?
Que não sentiu o suingue de Henri Salvador,
Que não seguiu o Olodum, balançando o Pelô
E que não riu com a risada de Andy Warhol
Que não, que não e que disse que não?”.
CAETANO VELOSO, 1986.
19
Quem não ouviu falar da capoeira, das escolas de samba, da pintura de Portinari, da
música de Villa-Lobos, do ator Grande Otelo, do escritor Jorge Amado, do poeta e músico
Vinicius de Morais, das brasileiras que receberam o título de Miss? A arte brasileira é uma
referência a mais como elemento de fusão de simbólicos e de culturas. A arte e o simbólico
foram elementos de decisiva preservação de culturas em relação, coroando com a beleza, o
suplício do degredo. Apesar de toda essa profusão de arte, o fantasma do racismo nos
persegue, concorrendo para comprometer o desenvolvimento social e cultural do país.
Enquanto muitos países desenvolvidos já superaram questões dessa natureza e buscam
solucionar outras, relativas a direitos sociais, estamos às voltas com o espectro do racismo
secularizado. Atinamos com a necessidade de revisão da construção dos estereótipos,
descortinando as bases em que o racismo fez escola, para transcendê-los com determinação.
O esforço de setores da sociedade brasileira, no sentido de trazer para o centro do
debate o tema das relações étnico-raciais merece menção honrosa, pois alinha discurso e
prática, a exemplo do CEFET-RJ. Frentes que o antecederam na história dos movimentos
sociais merecem destaque, fazemos jus ao Movimento Negro. Contudo, muito há que fazer
diante dos desafios que se colocam inadiáveis.
I. 5 SUPORTE METODOLÓGICO
um mito da cultura negra, quer seja em performances públicas ou nos espaços formalmente
constituídos dos “terreiros”.
Revelou-se oportuna a obra de GEERTZ (1926–2006), considerando sua proficiência no
campo da antropologia. Fundador da antropologia interpretativa, nos anos 1960, esse norte-
americano criticou os critérios da antropologia dos anos 1950, pelo rigor metodológico da
tradição acadêmica, e inventou o enfoque interdisciplinar de abordagem investigativa. Suas
incursões antropológicas foram desenvolvidas entre os povos indonésios, com recorte sobre
religiosidades e crenças. Sua “antropologia do sensível” fez desse etnógrafo uma espécie de
rebelde avesso a essencialismos teóricos, colocando-se na condição de ser criticado em vez
de aclamado, pois costumava duvidar de seus próprios resultados. SCHWARCZ (2001) refere
a Geertz evocando uma de suas frases, em que dizia que “o antropólogo é um mercador do
espanto”. Para ele a experiência antropológica era um trabalho de corpo a corpo, revelador da
complexidade interpretativa do objeto circundado por “elipses, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos” (GEERTZ, 2008).
Quando fiz a opção por este universo de pesquisa, tive a intenção de me aproximar do
mito de Yemanjá, numa tentativa de captar faces do mistério, do encantamento que permeia
um povo diante de uma divindade africana; e entender melhor as contradições de que se
revestem as práticas sociais a respeito do candomblé. Ensejei decodificar as mensagens da
cidade de Salvador quanto ao caldeirão cultural que a caracteriza. Decidi, portanto, abordar um
grupo social protagonista do imaginário sobre Yemanjá: os pescadores do Rio Vermelho.
O método etnográfico propiciou aproximação concreta, por promover encontros com os
sujeitos diretamente vinculados ao universo da pesquisa. Contudo, suscitou muitas dúvidas
quanto às abordagens espontâneas nos primeiros contatos com os pescadores, para quem a
pesquisadora era um ser estranho e atípico ao lugar. Minha timidez inicial foi esmaecendo no
transcurso da caminhada. No primeiro encontro com o presidente da Colônia me apresentei
formalmente, portando a declaração do ex-coordenador do Mestrado Acadêmico em relações
Étnico-raciais do CEFET-RJ, professor doutor Roberto Borges, ao que Marcos Souza “Branco”
gentilmente acolhera, dizendo não ser necessária, pois já estava acostumado a receber
pesquisadores(as) de diversas áreas. Foram necessárias várias visitas limitadas à observação.
Iniciada na semana em que ocorreria a festa de Yemanjá, observei a intensa movimentação de
pessoas que adentravam a Casa de Yemanjá para levar pequenas oferendas no formato de
flores, de perfumes, de fitas e, também, para deixar seus pedidos e agradecimentos em
bilhetes dobrados e colocados, cuidadosamente, na gruta interna da Casa. Algumas tiravam
fotografias; grupos de jornalistas portando credenciais de emissoras de rádio de TV disputavam
espaços para realizar entrevistas. Na ocasião, fui entrevistada pela Rede Bandeirantes de
Salvador, quando falei das motivações que me levaram à Colônia Z1. Falei da importância do
legado cultural africano e de como o mito de Yemanjá reafirma a herança cultural de África no
21
Brasil. Nos dias seguintes, tornou-se mais comum minha frequência na Colônia, fato que
instigou a curiosidade dos pescadores, mas resguardada relativa distância. Em tom coloquial
me apresentei a um grupo de pescadores para falar da pesquisa e dos “porquês” de minha
presença, sendo atendida com presteza e respeito, o que facilitou minha circulação no espaço
nos dias seguintes.
O método etnográfico me permitiu conversar, sem me ater exclusivamente ao roteiro da
entrevista, apesar de respeitar seu papel norteador. No diário, registrei tudo o que me foi
apresentado em relatos orais, na maioria das vezes, compartilhados e complementados por
diversos atores no mesmo momento. Adotei como prática a escuta que observa os olhares, os
sorrisos, a postura corporal, as interrupções da fala, os silêncios.
Por sugestão de “Branco”, selecionei nomes de pescadores mais antigos, os quais já
aposentados continuavam a frequentar a Colônia, numa demonstração de afeto e sentimento
de pertença. Outros, mesmo aposentados, seguem desempenhando papéis de liderança, como
“Pai Velho”, da Colônia Z6 de Itapoan. A sugestão decorreu do cuidado à minha pessoa em
dois aspectos: o fato de os mais antigos pescadores terem vivido a instauração da festa de
Yemanjá daria maior autoridade às informações; e pelo fato de me encontrar no ambiente
próprio de pescadores, homens habituados às vivências mais duras do dia a dia, cujo perfil se
caracteriza por uma liberdade muito particular, que se traduzem pelo comportamento. Quando
conversavam sobre suas vivências pessoais ou de trabalho, ou de situações outras que
poderiam me causar constrangimento, inclusive no uso da linguagem que, vez por outra
deixava escapar palavrões. Entretanto, minha presença inspirara confiança e respeito mútuos,
num clima descontraído e cooperativo. Em uma de minhas entrevistas livres, um deles se
aproximara e passara a contar um pouco de sua história. Revelara, orgulhosamente, que tinha
65 anos e possuía três mulheres, com as quais tivera dezenove filhos, “mas, todo mundo na
escola, porque eu não quero que sigam minha profissão, é muito dura minha vida!”
A descrição densa a que GEERTZ (2008) refere foi uma escolha diante dos objetivos e
das circunstâncias a que eu me colocara. Portanto, nenhuma outra pessoa poderia fazê-lo em
meu lugar, ou seja, dialogar com uma categoria que, historicamente cultua uma divindade
negra, um ícone de África, que resiste na modernidade. Transcorrido um mês em campo, no
período de fevereiro a agosto de 2013, senti-me menos intrusa e mais independente, para
assumir outras iniciativas. Descia até a praia, quando me inteirava da chegada de alguma
embarcação. Ao ver o retorno da pescaria ao final da tarde, eu perguntava ao pescador o nome
do peixe e em que altura do mar fora pescado, ao que obtinha uma resposta imediata e rápida,
conforme o tamanho e o peso do peixe. Toda essa dinâmica representou uma fonte de
surpresas e de encantamento pelo seu aspecto inusitado: a relação dialética entre natureza e o
meio urbano, modernidade e ancestralidade, imaginários e luta pela sobrevivência. A Colônia
Z1, enquanto comunidade no bairro poderia ser comparada a uma tribo, onde os códigos são
22
compreendidos e internalizados, sendo raro que um pescador não se desse conta da ausência
de algum companheiro ao lugar.
Munida de câmera fotográfica, filmadora e um diário de campo, iniciamos a jornada em
direção ao bairro do Rio Vermelho, onde se tornou celebrizada a festa de Yemanjá, na Bahia. A
abordagem ao coletivo de pescadores se deu por meio de visitas à Colônia Z1, quando conheci
seu presidente, Marcos Santos Souza “Branco”. A dois dias da festa de Yemanjá, no dia 30 de
janeiro de 2013, a primeira visita se resumiu a observações do lugar, quando, depois das
conversas preliminares, pedi licença ao presidente para fotografar o espaço da Colônia. A
estrutura física da Colônia se caracteriza por uma construção composta de área assim
distribuída: a Casa do Peso e a Casa de Yemanjá, conjugadas, com a frente voltada para a rua
principal. À frente, a escultura de Yemanjá, na forma de uma sereia, confeccionada por Manoel
Bonfim, em 1970. Em uma das laterais a peixaria, onde é comercializado o produto pescado.
Ao fundo, o mar do Rio Vermelho com suas formações rochosas. Na outra lateral, a murada
margeada pelas águas. Na área livre, o barracão, defronte à peixaria é separada por uma
espécie de corredor entre a rua e o mar, que abriga os pescadores em horas vagas, quando
costumam conversar, contar histórias e jogar dominó e baralho. Alguns, sonolentos ou
embriagados, cochilam no passeio, encostados às paredes externas ao prédio. Outros, já
aposentados, comercializam pequenas variedades como balas, refrigerantes, cigarros. Nesse
ambiente, uma dinâmica própria reúne todos os dias, pessoas de diversas procedências, ora
para visitar o local, ora para comprar pescados. Turistas de dentro e de fora do Estado e do
país, equipes de jornalistas, pesquisadores(as) de diferentes áreas do conhecimento, gente
simples, devotos(as) que adentram a Casa de Yemanjá, curiosos de toda parte afluem ao local
durante todo o ano, atraídos pela fama que se espraiou em torno do “mito”. O movimento
diminui, apenas, nos dias de chuva.
A Casa de Yemanjá foi construída durante o governo de Antonio Carlos Magalhães,
1972, e em seu interior se pode avistar uma ambientação totalmente caracterizada por
simbolismos do “mito” africano: pinturas de distintas representações míticas da divindade
yoruba, fotos de pescadores em atividade; uma pequena gruta incrustada no piso, com a
imagem de uma Yemanjá projetada em sua entrada; várias pequenas imagens de Yemanjá ao
redor da gruta; presentes em forma de flores, velas, frascos de alfazema e fitas que as pessoas
depositam quando de suas visitas. A Casa de Yemanjá está sempre aberta durante o dia
A Casa do Peso funciona como escritório, onde são desenvolvidas atividades
relacionadas às políticas governamentais para a pesca, à vida profissional e à seguridade
social de todos os pescadores. Ali, o presidente costuma receber as famílias dos pescadores,
orientando-as sobre questões de variada caracterização. Outra classe de pessoas, com
interesses vários, também são recebidas por “Branco”, cuja postura demanda disposição e
presteza. No interior da Casa do Peso, fotos nas paredes retratam imagens de Yemanjá em
23
forma de quadros e pinturas de artistas de Salvador; imagens de santos, afixadas nas paredes,
refletem o hibridismo presente na religiosidade de Salvador; outras imagens registram ocasiões
da festa de Yemanjá.
A entrevista com “Branco” cooperou para desconstruir meu imaginário sobre
pescadores como sujeitos de sonhos e de fantasias, aqueles a quem certas canções
apresentaram por um viés romanceado. As circunstâncias históricas, políticas e sociais do
universo de pescadores pesquisado vão muito além do que aparentam e tem se constituído
objeto de investigação científica, como transcrevemos no Capítulo V, à página 63. Leitura de
dissertações, estudos etnográficos, entrevistas espontâneas e estruturadas, leituras
documentais, leituras de matérias jornalísticas e acesso à internet performaram um importante
acervo para a incursão histórica no contexto da construção do imaginário e na (re)descoberta
do Rio Vermelho, na Praia da Paciência.
I. 6 CORPO DA DISSERTAÇÃO
CAPÍTULO II
CULTURA(S): PRÁTICAS DISCURSIVAS, ROTAS E ITINERÁRIOS NA PÓS-
MODERNIDADE. OU, A DANÇA DAS METÁFORAS?
inteligível, dado que sua ocorrência se dá em qualquer ambiente da cultura. Segundo GEERTZ
(2008), a cultura não é um poder ao qual são atribuídos aleatoriamente os comportamentos, as
instituições, os acontecimentos sociais e os processos. Esses fatos simbolizam e dão
significação à cultura. A essa forma de descrição a que Geertz classifica “densa”, estão
imbricados significantes e significados.
A ideia de cultura tem se movimentado por nuances e metáforas segundo valores e
interesses de ordens societárias. Tal noção circula em torno de um sistema, de um campo
normativo e de práticas sociais organizadas simbolicamente (SODRÉ, 2005). No campo da
antropologia moderna ocidental, o termo cultura adquire posição mais universalizante,
compreendida enquanto “um modo de vida de um grupo em que se destacam formas
aprendidas e padronizadas de comportamento, universalmente reconhecidas como humanas”
(SODRÉ, 2005, p. 26). Na lógica do Ocidente, a palavra cultura resguarda singularidades
internas ao campo teórico, mas, conserva sua natureza eurocentrista de universalização da
verdade. No que tange às similaridades conceituais, incluem-se as questões do relacionamento
de cultura com a diferença e, portanto, com o sentido, com o valor atribuído às coisas, com a
representação.
Um conceito de cultura na perspectiva de construção de identidade na sociedade
multicultural brasileira remete a deslocamentos em relação à racionalidade europeia. A lógica
europeia consubstancia na razão, na produção e no trabalho, seus expoentes de
expressividade. Se tal pensamento se pretende universal, expõe sua fragilidade ante a
existência de outros modos de sentir, pensar e viver próprios de sociedades “estranhas” a tais
enunciações. Daí considerarmos válido o exercício do olhar, no sentido de perceber outras
perspectivas de sentido e de simbólico imanentes ao conceito de cultura, para além da lógica
ocidental. A nós importa apreender o sentido de cultura enquanto metáfora, jogo de
contradições na relação com o real, a exemplo do que formula Muniz Sodré em seu livro, “A
verdade seduzida" (SODRÉ, 2005, p. 37)
“Cultura é o modo de relacionamento humano com seu real. Esse “real” não
deve ser entendido como a estrutura histórica globalmente considerada nem
mesmo como um conjunto de elementos identificáveis” (SODRÉ, 2005, p. 37).
tentativa de caracterização absoluta, pois se apresenta de forma singular, única e, por isso,
distante de uma vã representação. Pode-se afirmar sobre a existência do cravo, de sua
materialidade, mas, não apreendê-lo categoricamente em sua identidade de objeto. A tentativa
de extração do real presente no cravo incorreria em riscos de jamais alcançá-lo, em face de
condições obscuras e inseguras, segundo Sodré.
Desvelar o que está nas entrelinhas, o que possui sentido e se movimenta, num jogo de
sedução pelo real. Aí, a cultura se inscreve. A aventura da busca de uma identidade
desestabiliza certas representações do real, faz oscilar significados socialmente construídos
sobre identidade, graças aos dinamismos imanentes ao movimento de eliminação de seus
atributos constitutivos.
Sodré formula que as sociedades humanas tem procurado sua identidade particular
numa soma de traços que pode ser compreendida como uma configuração de diversidade
suficientemente aceita.
Sociedades tem buscado sua identidade na totalidade de caracteres, que pode ser
assimilada como “um certo optimum de diversidade além do qual elas não poderiam ir, mas,
abaixo do qual elas não podem descer sem perigo (SODRÉ, 2005, p. 39, apud. LÉVI-
STRAUSS, 1993, p. 381). Podemos inferir da formulação de Sodré que a busca pelo sentido do
real implica a perda de referências de determinação absoluta da identidade, a eliminação dos
termos da significação e a destruição dos valores de representação.
O mito de Yemanjá, agora representado pela escultura de uma sereia branca na
Colônia Z1 estaria destituída de possível originalidade, após a aventura da diáspora? Ou
caberia na possibilidade de “perdas de referências” originais?
Na crítica à inconsistência conceitual de cultura emergente do Ocidente desde os
séculos II, IV, V e VI a. C, Sodré afirma que
social. Tal observação vem em boa hora, uma vez que, sua vivência diaspórica e os estudos
empreendidos sobre cultura e identidade facultaram cognições que podem ser empregadas em
outras realidades culturais.
A hipótese de superação do termo “raça” deslocando-o para outro, “etnia”, problematiza
a questão da “etnicidade”. O que está em jogo é uma epistemologia que contemple as
diferenças enquanto categorias blindadas, e delas se aproveita para atender a interesses. Por
outro lado, há que duvidar de formulações discursivas que intencionam abarcar o humano,
reduzindo sua singularidade e diversidade a uma totalidade, em que as tensões e as
contradições não constituem base material das relações sociais. Daí que pensar a “diferença”
enquanto categoria de análise equivale dizer que ela adquire nova roupagem e se articula com
tantos significantes quanto forem os contextos em que raça e etnia estejam presentes.
Segundo Hall (2003), o discurso sobre etnicidade se ancora em características culturais e
religiosas. Mas, será que os marcadores biológicos não são utilizados, também, para a
demarcação de significantes hierarquizadores entre culturas? Hall menciona o caso de
caribenhos e asiáticos no Reino Unido e como suas presenças causaram incômodo à
“branquitude” inglesa, sobretudo quanto às suas preocupações com a identidade nacional. O
fato gerou polêmicas que contribuíram para repensar o hibridismo, culminando com a busca de
referências mais compatíveis com aquela realidade social: aos afro-caribenhos foi aplicado o
termo “raça”. Aos asiáticos, o termo “etnicidade”. O marcador de cor dos afro-caribenhos
carrega grande contradição, haja vista sua imensa variabilidade, decorrente de longos
processos de miscigenação e “transculturação” das comunidades coloniais migratórias do
Caribe (HALL, apud. ORTIZ, 1940; BRATHWAITE, 1971; GLISSANT, 1981; PRATT, 1982).
Hall crítica o termo “etnicidade” aplicada aos asiáticos, em face da ausência de elementos
factíveis que possam situá-los em uma “raça” ou uma única “etnia”.
A provocação de HALL (2000) sobre identidade cultural em seu questionamento “que
negro é esse na cultura negra?” nos instiga a revisões sobre identidade, como um estado de
impermanência de qualquer conceito a ela referente. Hall está a dizer sobre um sujeito “negro”,
que não pertence unicamente à África, um sujeito que migrou, ou pela diáspora africana ou por
razões de outras ordens. Oportuna indagação, justamente, num momento em que são trazidas
à discussão na academia, as relações étnico-raciais. Oportuna porque coloca em xeque um
conceito de identidade, localizando-o numa cultura, a cultura negra, cultura que atravessou
fronteiras e se espalhou por outros continentes, transformando e sendo transformada. Hall
provoca reflexões em torno do paradoxo em que, no mesmo momento amarra, mas, também,
desata vários nós. Por exemplo: haveríamos que partir do ponto que situe “o negro” africano
em um lugar de origem, lugar geopolítico colonial; e outro lugar, o pós-colonial, com todos os
seus desdobramentos. Persistimos em abraçar o questionamento de Hall enquanto recurso
filosófico, mas resguardando o lugar de origem de determinados objetos da cultura. Não
32
dispomos de conhecimento de outro local de origem do “mito” Yemanjá, que não seja África,
que não seja o de pertencimento à cosmogonia do povo yorubá, cujos simbolismos a
relacionaram, intrinsecamente, às águas. Pensar, hoje, o “mito” Yemanjá significa um
deslocamento para o mundo das águas, rios e oceanos, o mar, a metáfora cultural da diáspora.
Em sua formulação, Hall coopera com a busca de sentidos, à maneira de Sodré, e
sugere possibilidades de outras cognições diante do mundo moderno, para além da ideia de
purismo cultural. Sua formulação consiste da análise sobre diáspora e os efeitos produzidos
nos comportamentos e práticas sociais de indivíduos e grupamentos humanos alcançados por
movimentos diaspóricos. Em condição análoga à experiência de caribenhos migrados para a
Grã-Bretanha retratada por HALL (1998), aproveitamos seus questionamentos, quando
pensamos o Brasil.
Destacamos o antropólogo CANCLÍNI (1997), um dos maiores expoentes dos estudos
de culturas hibridizadas, nas últimas décadas do século XX. Nascido argentino, traz na
bagagem a experiência de ator social em cruzamentos de fronteiras na América Latina,
inclusive no Brasil. Canclíni busca a superação das dicotomias comuns do tipo
opressores/oprimidos, erudito/popular. Sua análise tenta aprofundar o tema das “culturas
híbridas”, decorrentes dos “exílios e das novas raízes”, envolvendo artes, antropologia, história,
comunicação e políticas culturais da América contemporânea. Segundo CANCLÍNI (1997), o
deslocamento tão debatido atualmente, sempre marcara a experiência de escritores e artistas
latino-americanos em várias ocasiões em que suas obras foram realizadas no exílio. Daí que
atribuir autenticidade e pureza a algo produzido nessas circunstâncias seria arriscado, uma vez
que as obras em apreço se situam num espaço imaginário, objetivamente híbrido, em que
passado e futuro se combinam, gerando novas influências e descobertas. O antropólogo
descarta a hipótese do original puro e se aproxima do conceito de intertextualidade para
analisar a condição de artistas e escritores desterritorializados. Ele lembra que o artista de hoje
não está interessado em legitimidade e não pertence a nenhuma escola como acontecia há
muito tempo atrás. Desse modo sintetiza que
CAPÍTULO III
IMAGINÁRIOS, O NÃO LUGAR ONDE SE EMBRIONA O “MITO”
romântico; a mitologia da filosofia de Schelling, para o qual o “mito” define uma religião natural
do gênero humano.
“en los conceptos míticos no hay ninguna fijeza: pueden hacerse, alterarse,
deshacerse, desaparecer completamente. Precisamente porque son históricos,
la historia com toda facilidad puede suprimirlos. Esta inestabilidad obliga al
mitólogo a manejar uma terminologia adaptada sobre la que quisiera decir
algunas cosas, pues, a menudo, es fuente de ironía: se trata del neologismo”.
12
Barthes (1957) .
natureza, respectivamente Tupã, Jaci, Coaraci. Sobre a iconografia dos deuses e deusas
africanas, não se tem notícia de alguma alusão nos conteúdos curriculares oficiais. Tal omissão
concorreu fundamentalmente para uma compreensão desconectada de África, fator decisivo na
construção de um comportamento generalizado de recusa às práticas religiosas caracterizadas
pelos cultos às divindades da mitologia yorubana.
As mitologias grega e romana se destacaram nos currículos escolares, sobretudo na
disciplina História, disseminando o ideal de formação clássica do pensamento iluminista. De
inegável importância para os estudos da história da humanidade, o que se problematiza é a
ênfase de culturas em detrimento de outras. A oportunidade do presente permite, nesta
pesquisa, recuperar parte do conhecimento e da cosmogonia dos africanos diasporizados.
Em muitas sociedades as mitologias estiveram associadas às religiões, numa relação
intrínseca, tornando-se difícil distinguir diferenças entre elas. Por exemplo, a mitologia nórdica
– oriunda dos povos celtas – é caracterizada como um conjunto de lendas por alguns,
enquanto que, para outros, é considerada como religião. Semelhante fenomenologia ocorrera
nas sociedades tradicionais africanas, conforme atestamos nos escritos de Prandi, entre
outros. O caso dos yoruba protagoniza sua sobrevivência na contemporaneidade.
Em seu livro, “A Mitologia dos orixás”, PRANDI (2000) demonstra o sistema social
yoruba orientado por uma cosmogonia em que a relação com o tempo se dá de modo
simetricamente direto com a natureza. A obra de PRANDI (2000) expõe elementos da dinâmica
cultural africana e de como as concepções de tempo, aprendizagem e saber se consistiram na
formação do candomblé no Brasil. Segundo o autor, o tempo capitalista moderno constitui
desafio para a preservação das tradições africanas em território brasileiro. Embora inscrita no
domínio de religiosidades, sua produção nos interessa, também, na perspectiva de cultura, ou
seja: a mitologia enquanto elemento constitutivo da cultura e as noções de tempo nas
sociedades de cultura mítica. Manifestações em que religiosidades estão presentes constituem
recursos para a análise das alterações dessas noções na sociedade brasileira contemporânea
e como essas variáveis influenciam o conceito de cultura e de identidade. Para tanto, importa
considerar a religião dos orixás, trazida ao Brasil pelos yoruba no século XIX (PRANDI, 2000).
A trajetória diasporizada entre África, América e Brasil consegue abarcar no século XXI as
matrizes identitárias demarcadas pela ideia de alteridade? A imagem de uma Yemanjá branca,
à entrada da Casa de Pescadores no bairro do Rio Vermelho, em Salvador, da Bahia,
deslegitimaria a herança cultural africana no Brasil? Terá sido tal representação “branqueada”,
42
sobre as cosmogonias repercutiram de tal sorte nas culturas dos africanos escravizados que,
após cento e vinte e cinco anos da abolição, completados no ano de 2013, ainda estamos às
voltas com uma das formas de racismo que reverbera no campo religioso e se expressa pela
recusa, em alguns setores da sociedade, a qualquer demonstração de culto ao candomblé.
RUGENDAS (1989) demonstra uma faceta das nações africanas para sobreviverem em
território adverso, quando diz:
De autoria do artista espanhol Jaime Plensa, esta escultura foi instalada na Praia de Botafogo em 3 de
setembro de 2012. Intitulada “Olhar dos meus sonhos”, foi feita com pedra de mármore e resina.
Segundo o Jornal O Globo o autor se declarou devoto de Yemanjá. A imagem ressalta um rosto dotado
de força, de presença, cujos traços resguardam características fenotípicas de povos africanos: formato
dos olhos que, apesar de cerrados, insinua contornos oblíquos; o nariz, relativamente largo e os lábios
carnudos conferem às faces cheias, serenidade e altivez (impressões da pesquisadora).
“O homem das sociedades nas quais o mito é uma coisa vivente, vive num
mundo “aberto”, embora “cifrado” e misterioso. O Mundo “fala” ao homem e,
para compreender essa linguagem, basta-lhe conhecer os mitos e decifra os
símbolos. Através dos mitos e dos símbolos da Lua, o homem capta a
misteriosa solidariedade existente entre temporalidade, nascimento, morte e
ressurreição, sexualidade, fertilidade, chuva, vegetação e assim por diante. O
Mundo não é mais uma massa opaca, de objetos arbitrariamente reunidos, mas
um Cosmo vivente, articulado e significativo. Em última análise, o Mundo se
revela enquanto linguagem. Ele fala ao homem através de seu próprio modo de
ser, de suas estruturas e de seus ritmos”. (ELIADE, 2011).
47
CAPÍTULO IV
YEMANJÁ, A DIVINDADE NEGRA DAS ÁGUAS
corpo largo e seios fartos, que ela sustenta com as mãos. Sobre a cabeça um recipiente em
forma de tigela onde são postos seus objetos sagrados, as pedras sagradas (otás), que após
rituais de sacrifícios tornam-se portadores de sua força sagrada, seu axé.
Figura IV.1 Yemanjá dos antigos templos africanos/Foto da Fundação Pierre Verger
“A importância da mulher, tanto nos rituais que cultuam as tradições dos yoruba
quanto na sustentação da vida social da família, tem motivos históricos. A
mulher que, cotidianamente, vive em conflito aqui na cultura ocidental, porque é
relegada a um plano inferior da existência na sociedade capitalista, encontra
nos ritos de religiões africanas, mais precisamente yoruba, uma forma de
ritualizar este conflito. Somente para exemplificar, se no ocidente cozinhar é
uma tarefa menosprezada, sem valorização social, na sociedade yoruba terá
uma função de valor inestimável. Um privilégio que não cabe a todos”.
13
[...] Sociedade secreta de mulheres da sociedade yoruba, que cultua seus ancestres vestindo tecidos coloridos,
marcadamente em épocas especiais.
50
VALLADO (2008), em sua obra “Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil” citando a
GLEISON (1997: 36) fala que “o processo de criação resulta da complementaridade dinâmica
entre os opostos, da tensão que surge da necessidade de ambos existirem no mesmo
universo”. O deus supremo Olodumaré, também chamado Olorum e Olofim, sentindo-se
solitário em meio ao “nada” de seus domínios, envolto em seu próprio caos, nas sombras de
seus mistérios decide criar Yemanjá, as Águas, e Aganju, a Terra. Nesta explicação mítica
observamos que a vida consiste em estar com, deixar de ser só. Apesar de sua decisão,
Olodumaré retorna ao seu estado de solidão, ao se distanciar de suas criaturas, os orixás,
inclusive de Yemanjá. Este mito encerra um sentido primordial da gênese do mundo, da vida e
da humanidade, pois, dos sucessos ao “abandono” de Olodumaré, nasce o incesto entre
Yemanjá e seu irmão Aganju, gerando a Orugã. Orugã, por sua vez, apaixona-se pela mãe
Yemanjá, movida por sua beleza e inteligência. Quando da ausência do pai, tenta violentá-la.
Yemanjá se põe em fuga para escapar ao assédio do filho e cai desesperada. Na queda,
desfalece. A partir daí seu corpo assume proporções extraordinárias e dos seus enormes seios
brotaram os rios e o mar; do seu ventre nasceram os orixás, cada um com características
associadas à natureza e aos dinamismos dos comportamentos humanos: Xangô, deus do
trovão e do fogo, patrono das causas em que se clama por justiça; Ogum, deus do ferro e da
guerra, vinculado aos minerais e, atualmente relacionado aos avanços tecnológicos; Oyá,
deusa do rio Niger, relacionada com os ventos e as tempestades, senhora dos mortos
(egúngún); Oxóssi, deus da caça, associado à alimentação e responsável pelo cio das fêmeas;
Obá, deusa do rio Obá, associada ao poder masculino dentro da família e à fidelidade conjugal;
Xapanã, deus da varíola e de todas as doenças da pele; Oxum, deusa do rio Oxum, senhora
da beleza e dos encantos mágicos. Segundo Baudin (1884:13), nesse mesmo mito da Criação,
Yemanjá gerou Olocum (divindade do mar), Olossá (divindade dos lagos), Orum (o sol), Oxu (a
Lua), Oquê (divindade dos montes), Orixá Ocó (divindade da agricultura), sendo que estes
últimos foram transformados em outras divindades que se mantém cultuados. O último filho de
Yemanjá teria sido Exu, deus do movimento e da comunicação. Mas Exu faz parte de outros
mitos, os quais, deixaremos para momento mais oportuno.
Embora contestado por várias vertentes antropológicas como o maior de todos os tabus,
o incesto entre Yemanjá e Orugã inaugura a possibilidade de interpretação da cultura,
enquanto princípio demarcador e ordenador da sociedade.
O mito em que Yemanjá é esposa de Oquerê alude mais uma vez aos seus seios como
fonte de onde jorra, profusamente, a água. Essa evocação repetida nos leva a imaginar que
aos seios está associada a sacralidade, pois é deles que emana o alimento essencial e
fundamental de nutrição e de preservação da vida. Ao amamentar, a mulher assegura proteção
e firma uma profunda ligação entre mãe e filho. Por outro lado, os seios representam fonte de
prazer, também, para os homens, exercendo em alguns casos, até um relativo fascínio.
51
Ressaltamos que os seios constituem princípio sagrado em outras culturas e sociedades, além
da africana. Entretanto, no mito da Criação do mundo, Yemanjá tem papel preponderante.
Seus seios sagrados, os quais lhe deixam muito vaidosa, sintetizam o arquétipo do alimento,
sem o quê, nenhuma espécie é capaz de sobreviver.
O princípio de complementaridade no mito da Criação protagonizado por Yemanjá está
presente em várias situações: na lenda em que Xangô aparece como seu filho. Esta lenda fala
do episódio em que Yemanjá foge da casa por causa da briga com seu marido Oquerê e se
transforma num rio e segue em direção ao mar. Oquerê a intercepta, transformando-se em
montanha. Surge, então, Xangô, o filho mais velho de Yemanjá, acompanhado do raio e do
trovão. Ele se interpõe na desdita entre marido e mulher, separando a montanha para que sua
mãe pudesse alcançar o mar. A circularidade do mito se concretiza: do presente para o
passado e do passado para o presente. Ao ter sua liberdade defendida por Xangô, Yemanjá
lhe dá a vida e o alimenta com seus seios sagrados. As relações que se estabelecem entre os
orixás – dar, receber, retribuir – podem ser assimilados pelo ser humano como princípio
norteador das ações humanas.
Observamos o fato de que na maioria das lendas de Yemanjá a figura paterna é
ausente, à maneira da formação sociocultural de sociedades yoruba, onde as mulheres
costumavam estar à frente das atividades estratégicas da família, a exemplo da provisão
alimentar, da economia doméstica e dos negócios. Cabia aos homens a lida com a agricultura.
Verificamos tal realidade em VALLADO (VALLADO, 2008, apud. Bernardo, 1989: 77), quando
cita:
relação de complementaridade, como podemos ver na lenda em que Xangô não havia se
tornado uma divindade. Nesta lenda, Yemanjá se inteirara das peripécias de seu filho Xangô,
que vivia a assustar as pessoas com as labaredas projetadas de seus olhos, narinas e ouvidos.
Tomada de senso de justiça Yemanjá o repreendeu, fato que contrariou a Xangô. Yemanjá
revela sua autoridade quando avoluma de forma desmesurada o corpo e, girando suas saias
provoca um mundo de águas em ondas que derrubam Xangô. A partir daí Xangô passa a
temer a autoridade feminina por meio da autoridade materna. O elemento água ressurge como
símbolo do retorno às origens.
Quanto a outras relações de complementaridade, por exemplo, entre homem e mulher,
limitamo-nos à lenda de Yemanjá como esposa de Ogum. VALLADO (2008) formula que há
mais antagonismos do que aproximações entre ambos, pois o gênio irascível de Ogum a
obrigara a procurar afeto em um amante, Aiê, a Terra. O arquétipo de desbravador, guerreiro e
destemido de Ogum o torna um ser de impossível convivência. Graças a sua intolerância
incumbiu seu cachorro de encontrar e atacar a Yemanjá e seu amante. O que foi feito, gerando
a partir dali uma aversão a cachorros por parte de Yemanjá.
Yemanjá se destaca na mitologia yoruba em tantos papéis quantas são as lendas que
inspirara: mãe, amante, filha e esposa, reunindo qualidades semelhantes às formas como a
mulher socializa sua presença na sociedade. Entretanto, a lenda em que Olodumaré a escolhe
como protetora de todas as cabeças dá a dimensão do poder que ela exerce no imaginário
coletivo, principalmente para quem cultua a religiosidade do candomblé. .
Olodumaré e Yemanjá, a mãe dos orixás dominaram uma parte do fogo no fundo da
Terra e o entregaram ao poder de Aganju, o mestre dos vulcões, por onde ainda respira o fogo
aprisionado.
A outra porção do fogo eles apagaram e suas cinzas se espalharam pelas mãos de
Orixá-Ocô, fertilizando os campos, propiciando o nascimento das ervas, frutos, árvores,
bosques, florestas, que, então foram cuidadas por Ossaim, que descobriu o poder curativo de
todas as folhas. Nos lugares onde as cinzas foram escassas, nasceram os pântanos e nos
pântanos, a peste, dada pela mãe dos orixás ao filho Omolu. Yemanjá encantou-se com a
Terra e a enfeitou com rios, cascatas e lagoas. Assim surgiu Oxum, dona das águas doces.
Quando tudo estava feito, cada parte da natureza na posse de um dos filhos de Yemanjá,
Obatalá, obedecendo diretamente às ordens de Olorum, criou o ser humano.
E o ser humano povoou a Terra. (Aróstegui, 1994: 8-10).
Yemanjá era uma rainha poderosa e sábia, tinha sete filhos, sendo o primogênito seu
predileto. Era um negro bonito e com o dom da palavra, seu nome era Xangô. As mulheres
caíam aos seus pés, e os homens tinham muita inveja dele e até mesmo os orixás padeciam
desse sentimento. Tanto fizeram e tantas calúnias levantaram contra o filho de Yemanjá, que
provocaram a desconfiança em seu próprio pai. O rei, marido de Yemanjá, deu ouvidos à
história de que seu filho Xangô, queria matá-lo para apossar-se de seu trono.
Levaram o filho de Yemanjá a julgamento e o sentenciaram à pena capital.
Yemanjá explodiu em ira e tentou de todas as formas aliviar a pena imputada a seu
filho. Os homens não a ouviram, contudo. Não se importaram com suas súplicas. Mais
54
adiante, essa humanidade soube sentir o poder da vingança de Yemanjá. Yemanjá declarou
que sobre a Terra os homens permaneceriam enquanto ela quisesse. Perdendo seu filho
amado, invadiria o mundo com suas águas salgadas e de sua água doce não mais
experimentariam.
Assim o fez e a primeira humanidade foi destruída. (CABREIRA, 1980: 32-33).
Xangô costumava deitar-se em sua esteira para deixar passar as horas, descansando o
corpo e o espírito. Sua mãe Yemanjá por vezes fazia o mesmo em companhia do filho,
passando horas e horas adormecidos lado a lado.
Certo dia Yemanjá sentiu correr por seu corpo um calor estranho, sentiu desejos pelo
corpo do filho, e pouco a pouco foi se aproximando, levada por seus ímpetos sexuais. Ao sentir
um corpo frenético encostado ao seu, Xangô despertou de seu sono, espantando-se ao escutar
de sua mãe palavras de desejo de tê-lo como homem. Desesperado, Xangô fugiu e subiu até
o topo de uma palmeira. Seu coração palpitava, a indignação era grande. Iemanjá correu atrás
do filho e ao pé da palmeira declarou palavras de desejo, sendo estas rebatidas furiosamente
por Xangô. Num ato histérico, Yemanjá jogou-se ao chão e roçou suas unhas na terra,
lançando gemidos extasiantes. Xangô a escutou e tentou esquecer-se da figura materna,
desceu da palmeira e abraçou-se a ela. Yemanjá e Xangô amaram-se como homem e mulher.
(LACHATAÑERE, 1992: 37).
Um dia houve uma reunião de todas as divindades com Olodumaré. Yemanjá estava em
sua casa sacrificando um carneiro, quando Exu chegou para comunicar-lhe sobre a realização
da tal reunião. Apressada, com medo de atrasar-se, e sem ter outra coisa para levar como
presente a Olodumaré, Yemanjá levou como oferenda ao deus supremo, a cabeça do carneiro
que havia sacrificado.
Ao ver que somente Yemanjá trazia-lhe um presente, Olodumaré disse: Awoyó ori dori
re (Cabeça trazes, cabeça serás). Desde então Yemanjá toma conta de todas as cabeças que
pensam (CABRERA, 1980:31).
Yemanjá era casada com Ogum. Ele era um negro forte, brutal, irascível, dono de
muitos cães. De tanto sofrer maus-tratos por parte do marido, Yemanjá não tardou a trair
55
Ogum, enamorando-se de Aiê, a Terra. Um dia, um dos cães de Ogum farejou o caminho de
Yemanjá encontrando-a nos braços de amante. O cão, fiel ao seu dono, não tardou levar Ogum
ao local onde se encontravam os amantes.
Atônito e irado pela descoberta da traição, Ogum incitou o cão sobre Yemanjá, que
assim foi violentamente ferida por ele. Ogum vingou-se e Yemanjá, desde esse dia, tem horror
a cães. (CABRERA, 1980: 45.)
Yemanjá vivia em Ifé, onde era casada com Olofim-Odudua. Tinha dez filhos. Um dia,
cansada da monotonia da vida em Ifé, Yemanjá partiu para o oeste, chegando a Abeocutá. Lá
chegando conheceu Oquerê, rei de Xaci. Encantado pela beleza e inteligência de Yemanjá,
Oquerê propôs-lhe casamento. Ela aceitou, mas ambos tinham tabus que não poderiam ser
violados, daí um não poder fazer alusão ao tabu do outro. Yemanjá tinha enormes seios e
Oquerê grandes testículos.
Certo dia, Oquerê voltou para casa embriagado e pôs-se a brigar com Iemanjá. Iemanjá,
irritada, chamou-o de bêbado e imprestável. Oquerê, irado, retrucou fazendo comentários
jocosos sobre os seios da esposa. Yemanjá, irritada, saiu em fuga para o mar, a casa de sua
mãe Olocum. Antes de partir, Yemanjá apanhou uma garrafa contendo uma porção mágica que
fora presente de Olocum, para ser utilizada em algum momento de perigo. Na fuga, Yemanjá
derrubou e quebrou o recipiente, nascendo nesse momento um rio, que a levou em direção ao
mar. Oquerê contrariado com o que via, saiu em perseguição à esposa, transformou-se em
montanha e interpôs-se no caminho de Iemanjá, impedindo-a na sua trajetória.
Yemanjá desesperada chamou seu filho mais velho, Xangô, que logo veio em seu
auxílio. Ele pediu oferendas para poder ajudá-la. Yemanjá cumpriu o pactuado e, no dia
seguinte, Xangô provocou chuvas seguidas de muitos raios. Num estrondo, um raio rompeu a
grande montanha em dois, dando liberdade ao rio que levaria Yemanjá ao mar. Novamente
Yemanjá retornou liberta à casa de sua mãe Olocum. (VERGER, 1981:190).
Aos ouvidos de Yemanjá estavam chegando notícias de que seu filho Xangô andava
pelo mundo queimando tudo e atemorizando as pessoas com o fogo que ele botava pela boca,
olhos e ouvidos. Preocupada, Yemanjá procura o filho para repreendê-lo. Xangô não gostou da
atitude da mãe e, enfurecido, botou fogo pelo nariz, olhos e ouvidos, devolvendo em desaforos
a reprimenda de Yemanjá. Ela, não aceitando a atitude do filho, girou sobre si mesma e fez
brotar de suas imensas saias, ondas que derrubaram Xangô. As águas estavam enfurecidas
56
quanto Yemanjá. Nesse momento Xangô saiu correndo gritando: “Onón komí!” (Me dás medo!).
Desde então Xangô respeita todas as decisões de Iemanjá (CABREIRA, 1980:41).
Olodumaré fez o mundo e repartiu entre os orixás vários poderes, dando a cada um
deles um reino para cuidar. A Exu deu o poder da comunicação e a posse das encruzilhadas. A
Ogum, o poder de forjar os utensílios para a agricultura e o domínio de todos os caminhos. A
Oxóssi, o poder sobre a caça e a fartura. A Obaluaê, o poder de controlar as doenças de pele.
Oxumaré seria o arco-íris, embelezaria a Terra e comandaria a chuva, trazendo sorte aos
agricultores. Xangô recebeu o poder sobre a justiça e sobre os trovões. Oiá reinaria sobre os
mortos e teria poder sobre os raios. Ewá controlaria a subida dos mortos para o orum, bem
como reinaria sobre os cemitérios. Oxum seria a divindade da beleza, da fertilidade das
mulheres e de todas as riquezas materiais da Terra, bem como teria o poder de reinar sobre os
sentimentos de amor e de ódio. Nanã recebeu a dádiva, por sua idade avançada, de ser a pura
sabedoria dos mais velhos, além de ser o final de todos os mortais, nas profundezas da terra,
onde os corpos dos mortos seriam por ela recebidos. Além disso, do seu reino sairia a lama da
qual Oxalá modelaria os mortais, pois Odudua já havia criado o mundo. Todo o processo de
criação completou-se com o poder de Oxaguiã, que inventou a cultura material.
Para Yemanjá, Olodumaré destinou os cuidados da casa de Oxalá, assim como a
criação dos filhos e de todos os afazeres domésticos. Yemanjá trabalhava e reclamava da sua
condição de menos favorecida, pois, afinal, todas as divindades recebiam oferendas e
homenagens enquanto ela vivia como escrava.
Durante muito tempo Yemanjá reclamou dessa condição e tanto falou, tanto falou nos
ouvidos, que este enlouqueceu. O ori (orí, cabeça) de Oxalá não suportou os reclamos de
Yemanjá. Caindo Oxalá enfermo, Yemanjá deu-se conta do mal que fizera ao marido e tratou
de curá-lo imediatamente, arrependida e temerosa. Em poucos dias, utilizando-se de banha
vegetal (Òri), de água fresca (omì-tutú), de obi (fruta conhecida com noz-de-cola), pombos
brancos (eyelé-funfun), frutas deliciosas (esó) e doces (adún), curou Oxalá.
Oxalá, agradecido, foi a Oxumaré pedir para que atribuísse a Yemanjá o poder de
cuidar de todas as cabeças.
Desde então Yemanjá recebe oferendas e é homenageada quando se faz o bori (borí,
ritual propiciatório à cabeça) e demais ritos à cabeça (Pesquisa de campo).
Observa-se, nesta lenda, a relação entre Yemanjá e os aspectos psíquicos dos seres
humanos, uma vez que é o “mito” que predomina no equilíbrio da mente.
57
Yemanjá e Oxum
Yemanjá não conseguia engravidar e por isso foi consultar o Ifá14. Ifá-Orunmilá lhe
orienta a levar ebó15 ao rio, próximo a sua casa, a cada cinco dias, antes do alvorecer. Este rio
ela deveria ir acompanhada de crianças. Devia levar na cabeça um pote pintado de branco,
contendo oferendas, para nele trazer água fresca que deveria beber e usar para banhos. Ela
repetiu este ritual durante muito tempo. Ao fim de muita espera, Yemanjá engravidou, mas,
continuou repetindo as determinações de Ifá.
Certo dia, após a entrega das oferendas, sentiu as dores do parto. Então pediu às
crianças que se afastassem e, sozinha, deu à luz, Oxum. Chamou as crianças e pediu a uma
delas que levasse a notícia a Orunmilá que, muito feliz, enviou um mensageiro para saudá-la.
Yemanjá e Omolu
Há uma lenda que diz da imensa generosidade de Yemanjá para com Omolu, quando
este, rejeitado por sua mãe Nanã, foi abandonado na praia para que o mar o levasse. Nanã se
recusou a mantê-lo junto a si por não suportar a feiura do filho, que também era manco e cheio
de feridas.
Um grande caranguejo se aproximou do bebê e o atacou com suas pinças, tirando
pedaços de sua carne. Quando Yemanjá saiu das águas e o avistou, abrigou Omolu em uma
gruta e passou a cuidá-lo com curativos de folhas de bananeira e alimentando-o com pipocas
sem sal nem gordura, até que se recuperasse. Depois de curado, Yemanjá o criou como a um
filho. Desde então, uma profunda ligação se estabeleceu entre os dois orixás.
14
[...] Palavra de origem yoruba, que significa oráculo dos terreiros de candomblé.
15
[...] Ebó é uma palavra de origem yoruba que significa oferenda para um orixá.
58
Figura IV.2 Iemanjá dá à luz os orixás. Detalhe do painel de Caribé no Salão de Atos do Memorial da América Latina, São
Paulo, SP.1999. /Foto de Denise Camargo. Retirada do livro "Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil.
CAPÍTULO V
NO FLUXO DAS ÁGUAS, O REFLUXO DE IMAGINÁRIOS
apenas com sua embarcação e seus apetrechos, mas, isto, quando o distanciamento da costa
é curto, ou seja, menos de seis mil metros.
Integrados por uma das mais antigas e tradicionais atividades da cultura baiana,
compõem um contingente de trabalhadores da pesca artesanal do estado da Bahia e se
organizam politicamente, por meio da Colônia, à qual estão vinculados. A Colônia, nesse
sentido, é a entidade que regulamenta o exercício profissional e a seguridade social da
categoria. Contem acervo de todos os pescadores e suas classificações, conforme as
habilidades de trabalho: pesca artesanal, pescadores associados, sindicalizados, profissionais
e amadores.
De acordo com “Branco”, os pescadores enfrentam dificuldades que comprometem sua
sobrevivência, desde a formalização do trabalho às condições de trabalho: nos dias em que as
chuvas são intensas, os ventos muito fortes e o mar revolto, a embarcação avariada e ausência
de recursos financeiros para imediata reposição, tornam-se impeditivos para a saída ao mar. A
sobrevivência condicionada pela imprevisibilidade marca a vida dos pescadores, tal qual uma
travessia existencial sobre a imensidão das águas misteriosas. Em média os pescadores
costumam amealhar mensalmente um salário mínimo, em condições favoráveis de pesca. Do
contrário, ou seja, quando as condições são adversas, o valor arrecadado fica em média de
quatrocentos reais.
A categoria de pescadores é distribuída por várias colônias sediadas em núcleos
localizados na extensão da orla marítima de Salvador. Os núcleos são locais de embarque e
desembarque de pescadores nas rotinas de trabalho. A Colônia Z1 abarca os núcleos da Feira
de São Joaquim/Mercado Modelo; Gamboa; Porto da Barra; Ondina; Rio vermelho; Mariquita;
Amaralina; Pituba; Jardim dos Namorados e Boca do Rio. Cada núcleo desenvolve um estilo
próprio, conforme a topografia do lugar. Por exemplo: nas praias de Amaralina, Pituba, Jardim
dos Namorados e Boca do Rio, o estilo mais comum é a “rede de calão”.16 Para sua realização
os pescadores se deslocam para o mar desde as cinco horas da manhã. Os banhistas que se
encontrarem no local, sejam adultos, crianças ou jovens, poderão participar, pois, ao sinal do
pescador/mergulhador de entrada do cardume na enseada, são necessários muitos braços
para arrastar a rede do mar. São utilizados como instrumentos de pesca o bicheiro e o arpão.
Os participantes - visitantes ou frequentadores da praia – que cooperam com a puxada da rede
são usualmente chamados de “caloneiros”. A rede de calão provoca uma explosão de
sensações: os sentidos em alerta, à espera de um sinal do olheiro, a tomada de posição para
lançar a rede, a sincronicidade dos “caloneiros” para se aproximar e entrar no mar e, enfim, a
puxada. A partilha do pescado é outro momento muito especial, pois ali, podem ser observadas
emoções positivadas nas mãos que se movimentam em gestos de entrega, entre risos,
16
[...] Esse estilo de pesca se caracteriza por um indispensável espírito de grupo. Cerca de cem indivíduos são agrupados, entre pescadores e
pessoas externas à categoria. Costuma ser realizada em enseadas, graças à concavidade existente na costa, abrigo de determinadas espécies
de peixes. A rede de calão consiste no lançamento da rede ao mar para capturar cardumes inteiros numa puxada.
63
“a Mãe d’Água era uma mulher muito bonita e era vista sentada em uma pedra.
Mas, quando notava que era observada, se lançava no mar, deixando um
grande movimento de águas ao redor”
no mar, e o tempo! Antigamente, não existia o serviço de meteorologia. A gente partia pro mar
sem saber se o tempo era certo pra pescar. A gente só tinha a fé. Tem que ter fé. Além da fé,
tem que ter o saber.
P. E sobre a festa de Yemanjá, sabe de quem foi a ideia?
E. Quando eu cheguei em Salvador, já existia a festa de Yemanjá, mas não era tão famosa
como agora. Naquela época, tinha uma senhora daqui do Rio Vermelho, Dona Lió, que
comerciava comida. Os pescadores tinham costume de ir lá e ela ouvia as queixas deles, de
que não conseguiam trazer peixe, que os peixe sumiu do mar. De acordo com os mais antigos,
foi ela quem teve a ideia do presente. Ela achava que os peixe não aparecia porque a “dona
das água” queria um agrado dos pescadores. E tinha uma “mãe de santo”, que naquela
ocasião, orientou os pescadores a “arriar” um presente, primeiro para Oxum, porque 2 de
fevereiro é dia de Nossa Senhora das Candeias e 8 de dezembro, que é dia de Nossa Senhora
da Conceição da Praia.
P. Conhece alguma coisa sobre a imagem/escultura de Yemanjá na frente da Colônia de
Pescadores do Rio Vermelho?
E. O que eu sei é que foi um artista daqui, mesmo, do Rio Vermelho.
P. Será que Yemanjá é uma sereia, como aquela da escultura?
E. Eu acho que sim, porque muitos pescadores que já tiveram visão dela, disseram que ela é
assim, branca e com os cabelo bem cumprido. Mas ela não deixa ninguém chegar perto dela,
nem ver seu rosto. O pessoal daqui, os mais velho, dizia que a Mãe d’Água era uma mulher
muito bonita, e era vista sentada na pedra, mas, quando nota que era observada, se lançava
no mar, deixando um movimento de água ao redor.
P. Conhece alguma lenda local sobre Yemanjá?
R. Não.... não conheço nenhuma lenda de Yemanjá. Só sei contar minhas experiência. Ah... eu
tenho muita história....
destacando que já está acostumado a essas coisas, porque “muita gente vem aqui para fazer
estudo do lugar”. Assim, entre os sons das conversas nas mesas ao ar livre, as idas e vindas
de pescadores trazendo os frutos da pescaria, sentamo-nos sobre a proa de um barco
atracado e iniciamos o diálogo abaixo transcrito.
17
[...] O termo quer referir à paranormalidade, capacidade humana de “ver” para além dos olhos físicos. Segundo o dicionário de
Aurélio Buarque: visão sobrenatural.
71
as culturas se misturaram. Aqui tem pessoas com mais de cem anos, que cultua Yemanjá,
mesmo sem poder fazer as oferendas, são “devotos da crença”.
P. E sobre a festa de Yemanjá, de quem foi a ideia?
E. Essa festa começou tão simples... primeiramente, nós pescadores, tava todo mundo triste,
sem trabalho porque não tinha peixe, e sem saber o que fazer.
P. E a imagem/escultura de Yemanjá na frente da Colônia de Pescadores do Rio
Vermelho? Como foi parar ali?
E. Ah, minha senhora, isso eu sei muito, porque ajudei a carregar as pedras para botar ali onde
hoje está a estátua! Foi muito trabalhoso, mas, tinha outros companheiros como o velho Lídio...
A estátua foi construída depois que derrubaram o forte do Rio Vermelho e construíram a igreja
de Santana. Quando a igreja foi construída, não tinha nem terra para isso. Portanto, foi usado
cal, óleo e arenoso pra levantar a construção que até hoje se pode ver.
P. Conhece alguma lenda local sobre Yemanjá?
E. Eu não lembro agora de nenhuma lenda dela, mas sei que tem muitas. Eu só lembro minhas
histórias.
P. “Pai Velho”, como é sua relação com os outros pescadores?
E. Sou muito respeitado pelos pescadores. Quando fui presidente da Colônia, havia 3.770
pescadores da praia de Buraquinho até a Boca do Rio (praias de Salvador). Tinha três
categoria: os sócios, que só querem se agregar, ter companhia para conversar, comer um
peixinho... A outra categoria é a de sócio-amador: é o pessoal que tem emprego, tem sua
própria renda e complementa com a pesca. E a terceira categoria é a que é formada de
pescador profissional. Estes tem que atender aos requisito necessário.
P. Pai Velho, o senhor fala em Colônia, fala em Associação... Qual a diferença?
E. A Colônia tem caráter legal, de proteção dos direitos dos pescadores. Já a Associação tem o
papel de ampliar o quadro de pescadores, obter recursos, essas coisa.
P.E entre os pescadores, como eles se tratam uns aos outros?
E. Os pescadores são muito unidos, mas, tem aqueles mais difícil de labutar, a senhora
entende? Mas, eu tenho paciência, porque na vida do pescador é preciso ter muita paciência.
Às vez a gente quer pegar o peixe, mas, tem que esperar a hora que ele vem atrás da isca e
isso pode demorar ou não. O que a gente tem que praticar é o respeito uns com os outro. Mas,
a maior parte do tempo, eles brincam entre si, fazem gozação uns com os outro. Uma mania
que eles tem é de inventar apelido. Qualquer coisa ou situação que eles achem engraçado ou
diferente, então, logo se cria um apelido. Os pescadores são mais conhecido pelos apelido do
que pelo próprio nome. Aqui a senhora vai ver muitos apelidos: “Pigmeu”, “Bala na Testa”,
“Cumprido”, “Mantega”, “Nel”.... Ah, são muitos, muitos!
72
Partiu de “Pai Velho” a sugestão de que abordássemos pescadores mais jovens e foi o
que fizemos em outro momento. Interessada em coletar outros discursos entre os pescadores
da nova geração, entrevistei o pescador “Nel”, de 46 anos, também apelidado de “Pigmeu”.
Vinculado à Colônia Z6, “Nel” goza de relações sociaispositivadas com outros colegas da
Colônia Z1. Através dos contatos repassados por Pai Velho”, agendamos data e saímos ao
mar, sobre uma embarcação de uso da Colônia, em companhia do pescador “Bala na Testa” e
auxiliada pelo artista plástico Armando Gömöry com seu equipamento de gravação.
Numa tarde ensolarada de sábado, pudemos exercitar diálogos sobre a trajetória de “Nel”,
cuja personalidade simpática e extrovertida enriqueceu esta experiência. Trechos da entrevista,
apresentamos a seguir.
E. Não existe competição, quando um barco consegue ter sorte na pesca e o outro não se saiu
bem, então, a gente divide a pescaria, porque cada pescador precisa levar o alimento pra sua
família, não pode chegar de mão vazia.
O pescador “Nel” disse sentir muita gratidão por “Pai Velho”, atribuindo muito de seu
aprendizado sobre pesca ao velho pescador. Acrescentou que esse é o sentimento da maioria
dos pescadores que, tem em “Pai Velho” um exemplo de trabalho, sabedoria e
responsabilidade, sempre disposto a intervir quanto ao crescimento pessoal e na aquisição de
direitos.
Enquanto falava, gesticulando e demonstrando grande entusiasmo pelo momento que
protagonizava, “Nel” era observado por outro pescador, da mesma faixa etária, o “Bala na
Testa”, assim apelidado graças, segundo ele, a um acidente sofrido na adolescência, que lhe
deixara uma espécie de reentrância no meio da testa. Silencioso e bastante atento, esboçava
um sorriso ante a mal disfarçada perplexidade da pesquisadora, diante de “causos” e feitos tão
surpreendentes. “Bala na Testa” complementava as informações de “Nel”, fato que ensejou,
também, outra entrevista. A tarde já se recolhia quando concluímos as entrevistas. Contudo,
após ter trabalhado naquele dia, “Bala na Testa” se mostrou disposto a prosseguir.
E. Ah.... ela parece uma sereia muito grande, com um rabo enorme. Ela é metade mulher e
metade peixe.
P. Você tem alguma religião?
E. Eu não vou muito pra a igreja, só de vez em quando. Nem vou pra o candomblé, mas, não
tenho nada contra.
P. Você sabe que Yemanjá é um orixá do candomblé?
E. Sei, sim.
P. E sabe de onde ela veio?
E. Mais ou menos(sorri nesse momento). Acho que ela veio da África.
P. Então, será que ela é negra?
E. Acho que ela deve ser branca.
V. 1. 2 Atividades de rotina
embora a pesquisadora tenha sido alertada por um deles, o “Milton”, de que tivesse cuidado
com as abordagens de gente “interesseira”. Afirmando-se praticante de candomblé e ogã18de
um terreiro, esse pescador faz parte dos que estão aposentados. Entretanto, Milton lá está na
Colônia Z1, com sua esposa, a comercializar pequenos doces, balas, chicletes, cigarros,
refrigerantes, amendoim.
O pescador M., em um dos momentos de conversa informal, assumiu uma postura
dissonante do grupo a que a pesquisadora estava habituada a conversar. Para ele a escultura
da Yemanjá sereia à entrada da Colônia, nada tem de verdadeira. Seu imaginário do mito de
Yemanjá se revela quando diz que “sua morada é o mar e ninguém nunca viu Yemanjá, porque
ela é puro mistério”. Tampouco aceita o fato da instalação da Casa de Yemanjá na Colônia,
reafirmando que a casa de Yemanjá é o mar e que “toda essa gente que entra na Casa de
Yemanjá não entende nada dela. Ela mora no mar, não entre quatro paredes”. Tipicamente
“preto” pelos fenótipos característicos, ao ser consultado sobre sua etnia, sobre como se
definiria entre negro, mulato, moreno, branco, ele respondera que “pescador não tem cor,
pescador é de qualquer cor e de qualquer lugar”. A presença e o discurso de M. na Colônia dão
o tom da complexidade e da diversidade dos pescadores, bem como, de suas necessidades e
anseios, carências de variadas origens.
As atividades são iniciadas pela manhã, por volta de sete horas, distintamente de outros
tempos, quando, segundo “Cumprido”, era necessário madrugar mar adentro em embarcações
conduzidas a remo. Hoje, por conta da modernização, algumas embarcações possuem
bússolas, rádios, medicamentos e coletes, dentre outros apetrechos. A rotina se altera de
acordo com as necessidades locais. Situações ocorrem em que, enquanto alguns pescadores
se deslocam para o mar, outros estão retornando de sua jornada. Os que tiveram êxito, ao
chegar, atracam as embarcações e se dirigem diretamente à peixaria para a negociação de
preços, de acordo com o tipo de peixe. Algumas espécies são mais frequentes na Colônia, a
exemplo de corvina, sardinha, guaricema, que possuem menor preço; e de vermelho, dourado,
que custam mais. Em meio aos peixes são trazidos os mariscos, denominação dada às
pequenas espécies marinhas, a exemplo de camarões, polvos, ostras e sururu. A alguns
pescadores cabe o trabalho de limpeza do pescado, que, em parte, é feito nos fundos da
Colônia, sobre a murada. As vísceras são lançadas na praia, contrariando regras de
preservação da natureza e do espaço público. Em dias de sol, esse costume provoca um odor
desagradável e a impossibilidade de banho na parte de trás da Colônia. Ato seguinte à
evisceração dos peixes, os mesmos passam por uma rápida lavagem para retirada residual de
escamas e são entregues aos auxiliares internos à peixaria, onde é efetivada a
comercialização do produto e armazenado o excedente da pesca. A peixaria é constituída de
18
[...] Ogã é uma palavra designativa de um cargo ocupado por homens no terreiro de candomblé.
77
pias, vários freezers, utensílios para a limpeza dos pescados, facas, balanças e sacos plásticos
para envolver os peixes.
A chegada dos pescadores se assemelha a uma ritualística, quando observada a
repetitividade dos gestos e da sincronicidade generalizada que se instaura, consolidando a
identidade do grupo, por meio de falas, trocas de informações, risos, contatos físicos mediados
por aperto de mãos e/um toque nos ombros. Enquanto alguns companheiros se ocupam de
atracar a embarcação, outros acorrem a ajudar no transporte do pescado até a colônia.
Nas ocasiões em que o(s) pescador(es) não foram bem sucedidos, percebemos
variação de humor, sem, contudo, constituir empecilho para novas tentativas. A esperança de
obter farto pescado ou, na melhor das hipóteses, o suficiente para alimentar a família,
caracteriza todo o coletivo. Nada pode ser comparado ao orgulho expressado quando
conseguem pescar um peixe grande, à semelhança do que fotografamos.
Nesta foto registramos o retorno de um pescador em sua jornada de um dia de trabalho, ao anoitecer,
trazendo dois peixes – badejos – que, segundo o relato, foram pescados próximo à costa. Sua
expressão ante nossa aproximação era de visível orgulho e alegria. Embora não tenha integrado o grupo
de entrevistados selecionados no trabalho de campo, demonstrou entusiasmo ao ser abordado
(comentários da pesquisadora), permitindo-se fotografar e fornecendo breves informações a respeito de
sua história.
78
Barbosa Almeida. Mas, não se resumiu a, apenas esse fim. Após a abolição da escravatura, no
século XIX, adquiriu fama de que as águas de seu mar produziam a cura e assim se tornou um
relicário, uma fonte medicinal de saúde e bem estar, local preferido da elite da cidade. Dessa
maneira, o rincão dos pescadores foi transformado em um atrativo ponto de turismo. O Rio
Vermelho experimentou, então, uma reconfiguração de status: de antigo arraial habitado,
basicamente, por pescadores distribuídos em “núcleos” nos portos da Mariquita e de Santana
(locais vinculados ao bairro) a estação de cura e local preferido das famílias ricas. De acordo
com FILHO (1991), entre 1880 e 1930, o Rio Vermelho “sofre” (grifo da pesquisadora) intensas
alterações em sua feição original, demarcadoras das sociabilidades do bairro, pelo recorte de
classe: a alta burguesia e a classe pobre, sendo a primeira constituída pelos grandes
capitalistas e a segunda formada de grupamentos humanos distribuídos nas atividades
domésticas, manuais, de serviços gerais e no comércio. Verifica-se que as mudanças
socioculturais no bairro foram reordenando sua identidade, que passara de um aldeamento
indígena tupinambá, no século XVI, a um povoado de pescadores e pequenos lavradores, no
século XVII e um nicho da burguesia soteropolitana no século XIX.
Localizado no setor sul do litoral da cidade de Salvador, no estado da Bahia, o Rio
Vermelho compreende o trecho entre os bairros de Ondina e Amaralina, também, margeados
pelo mar. Quanto à denominação de Rio Vermelho, encontramos distintas explicações: ora
deriva de um topônimo que, a exemplo de outros nomes de bairros de Salvador – Bogari,
Vassouras e Gameleira -, está relacionado com a flora da cidade de Salvador, conforme alude
FILHO (1991), em seu livro “Histórias de Salvador". Outra versão, publicada no site oficial do
Rio Vermelho19, menciona a origem do nome do bairro como um topônimo criado pela língua
tupi, em referência ao curso fluvial que possuía embocadura na praia da Mariquita. Outra
narrativa atribui o nome às impressões do explorador Diogo Álvares Correia, que, ao observar
a cor vermelha das águas do rio Camurugipe, cuja foz desembocava no mar, resolveu
denominá-lo de Rio Vermelho. O bairro, oficializado com o nome geográfico de Camurujipe,
surgiu entre os anos de 1511 e 1520, foi uma enseada ocupado originariamente por indígenas
tupinambás, que lhe deram o nome de Camarajy. Na ocasião havia abundância de flores de
matiz vermelho, denominadas camará ou cambará, que cresciam à margem do rio.
Literalmente, camarajipe quer dizer: rio dos camarás. Além dos nativos indígenas, a antiga
Enseada dos Pescadores foi povoada por europeus (franceses e portugueses) e, depois, por
grupos africanos, oriundos do tráfico negreiro. Segundo FILHO (1991), a história do Rio
Vermelho antecede a fundação da cidade de Salvador. A chegada do explorador europeu
Diogo Álvares Correia instaurou os pilares da dominação europeia no Brasil. As tramas de
sobrevivência entre as culturas culminaram com a invisibilidade de vestígios dos tupinambás e
estreitaram maior aproximação entre brancos e negros.
19
[...] Conferir o site www.portaldoriovermelho.com.br
80
Figura V.4 Rio Vermelho antigo/Foto do livro "O bairro do Rio Vermelho", de Ubaldo Marques Filho.
dia 30 de janeiro, encontrei o clima festivo, com gente de fora circulando desde a metade da
manhã.
A reverência a Yemanjá a cada ano no dia 2 de fevereiro, na cidade de Salvador possui
um histórico controverso, pois, muitas são as narrativas, como podemos verificar no Projeto
História dos Bairros de Salvador publicado em 198420. Segundo fontes indiretas oriundas de
vozes do bairro do Rio Vermelho e de outros, a Festa de Yemanjá foi criada na década de
1920. Transformada em patrimônio cultural da cidade, integra o calendário civil de Salvador
como evento cultural/religioso que atrai milhares de pessoas da capital e do interior do Estado,
conformando um ciclo de festas populares massivamente divulgadas pelas mídias de rádio,
televisão, impressa e pela internet. Independentemente da orientação religiosa, a participação
na festa ocorre de maneira a integrar multidões que a ela afluem, motivadas por um sentimento
difuso e emocionado.
Durante algum tempo a festa guardara mais características de diversão e prenúncio do
carnaval, à semelhança das chamadas “festas de largo”21 (SERRA, 1999). O caráter religioso
teve origem na festa dedicada a Senhora Santana, mas, após alguns anos passou foi
reconfigurada nos rituais em homenagem a Yemanjá no ambiente dos terreiros, sob
responsabilidade de lideranças religiosas, sobretudo as yalorixás.
Relatos orais partilhados por vários pescadores e coletados em rodas de conversa,
atribuem a festa a Yemanjá a partir de 1923, quando uma mulher desconhecida alertara os
pescadores sobre a necessidade de oferecerem um presente à rainha do mar, para superar a
escassez de pesca. Proposta aceita, os pescadores realizaram tal ato, após a missa celebrada
a Nossa Senhora de Santana, na igreja de Santana, situada ao lado da casa dos pescadores,
no bairro do Rio Vermelho. Utilizando uma caixa de sapato, os pescadores colocaram ali
perfumes, espelhos, fitas, flores e peixe e a depositaram no mar.
Outra versão oral diz que a festa começou em 1924, quando um grupo de vinte e nove
pescadores decidiu oferecer presentes ao mar para obter mais sorte na pesca. A obrigação era
coordenada pela yalorixá Mãe Júlia Bogan, cujo terreiro já não existe. Cumprida a obrigação os
pescadores comemoraram com comida e bebida.
A organização da festa naqueles idos contou com a participação da igreja católica até
quando irromperam conflitos entre pescadores e um padre que contestava a mistura entre
Nossa Senhora das Candeias e Yemanjá. O 2 de fevereiro é, também, dia de Nossa Senhora
das Candeias, santa da iconografia católica, associada pelo sincretismo a outra divindade
africana das águas: Oxum. O hibridismo com Oxum não se consolidou, dadas as
20
Cf. Projeto História dos Bairros de Salvador, 1984, desenvolvido por uma equipe da Fundação Cultural do Estado da Bahia na
década de 1980.
21
[...] As festas de largo são celebrações que acontecem em espaços públicos, geralmente praças vinculadas a sítios de igrejas
católicas correspondentes às santidades a serem celebradas dentro do calendário. Segundo Ordep Serra, tipologicamente, elas
correspondem às velhas celebrações católicas. populares realizadas em dias de santos em centros urbanos, com grande
participação do povo e intensa movimentação comercial e lúdica.
84
onde são arriadas as oferendas. Participam da festa vários terreiros de Salvador e do interior
do estado da Bahia: de Alagoinhas, Santo Amaro da Purificação, Cachoeira etc. De outros
estados: Rio de Janeiro, Pernambuco, Brasília, do Rio Grande do Sul. A chegada ao Rio
Vermelho é recebida com uma alvorada de fogos de artifício.
P. Como chegou até a casa de pescadores a escultura de Yemanjá?
E. Isto eu não sei responder, não conheço o artista, só sei que é baiano.
P. Conhece alguma lenda local sobre Yemanjá?
E. Ah... tem muita história de Yemanjá....
P. O que representa para a senhora o orixá Yemanjá?
E. Yemanjá representa tudo para mim, representa uma grande alegria e enquanto ela me
quiser, estarei à frente para servir, se ela me der saúde e vida para isso.
Mãe Aíce se declarou, também, católica, acrescentando que nunca abandonou seus
hábitos junto à Igreja: frequência regular às missas, às procissões, às cerimônias religiosas da
Igreja. Mantém relações sociais com padres e já encomendou missas para serem realizadas no
terreiro. Embora surpresa com tais declarações, a postura da yalorixá nos pareceu agregar
mais um emblema à questão dos processos de hibridização da cultura brasileira, enquanto
fenômeno constituinte de paradoxalidades frente a qualquer possibilidade de fechamento
conceitual sobre uma identidade cultural.
O fato de Mãe Aíce ser a responsável pela organização do ritual da festa de Yemanjá a
mais de duas décadas e ao mesmo tempo se declarar religiosa da igreja católica, confere
abertura para possíveis investiduras acadêmicas. Os processos de hibridização fomentaram
construções sociais que convergem e divergem, segundo os tempos e os espaços, sem perder
o contato. Contato que tece as relações cotidianas entrecruzando ambientes, os mais
inusitados, embora demarcados por alguma forma de tensão. Por essa razão a existência das
caminhadas pela tolerância religiosa, que ocorre há muitos anos e Salvador e em outras
capitais.
Nossa intencionalidade em ouvir diferentes vozes do universo da pesquisa ensejou, tão
somente, ampliar nosso olhar de observador/participante em atitude de sincero respeito aos
limites entre a ciência e os lugares da cultura.
O trabalho de campo incluiu um encontro, gentilmente agendado com o antropólogo e
professor da Universidade Federal da Bahia, Ordep Serra. Diante do questionamento da
representação de Yemanjá por uma sereia “branqueada”, o professor expressou seu
pensamento na perspectiva da hibridização cultural, ressaltando que, após a diáspora, os
elementos dos distintos grupos culturais em relação fundiram-se, transformando-se em outras
possiblidades. Desse modo, o “mito” de Yemanjá “transbordou” os oceanos, e agora pertence a
todas as culturas.
87
REFLEXÕES FINAIS
difusão, com vistas ao reconhecimento do valor histórico e cultural das matrizes civilizatórias
africana e indígena.
Associamos às práticas sociais preconceituosas e discriminatórias em relação ao negro
brasileiro um comprometimento da escola, em relação às matrizes civilizatórias africanas. A
implementação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 por si, só, não dão conta da premente
necessidade de alteração dos currículos oficiais, desde a articulação entre os saberes de todas
as áreas de conhecimento da educação básica, quer seja: a Linguagem, as Ciências Humanas
e as Ciências Exatas.
O imaginário emerge em nossa perspectiva transformadora como uma potencialidade
que precisa ser abraçada pelas ciências sociais, sobretudo quando pensamos a cosmogonia
dos povos yoruba. Essa cosmogonia, ainda que alterada em alguns aspectos no Brasil, provê
os imaginários simbolizados em inúmeras marcas imagéticas espalhadas na cidade de
Salvador.
As contribuições de intelectuais pós-colonialistas possibilitaram comparações entre
práticas discursivas, objetivando racionalizações mais coerentes com a realidade investigada,
sem, contudo, assumir uma pretensão de esgotamento da temática. Ao considerar as nuances
de que se compõem essas práticas discursivas, a motivação intuitiva incidiu na tentativa de
desvelamento de símbolos da cultura africana em solo brasileiro, através da mitologia e sua
representação na imagem de Yemanjá, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador.
Compreendemos, portanto, que o imaginário exerce grande força no seio de uma cultura, bem
como, na formação de identidades. O breve estudo do imaginário nos conduziu a concepções
que ultrapassaram noções, meramente, convencionais.
A aproximação junto à categoria dos pescadores, por meio da descrição densa,
realizada em diferentes horários e turnos, oportunizou uma experiência intelectual interessante,
e possibilitou modestas inferências sobre os processos de hibridização repercussivos em todos
os sujeitos entrevistados. Enfatizamos a narrativa de Mãe Aíce quanto às suas definições de
religiosidades, declarando-se yalorixá e católica, frequentando missas e cuidando do seu
“terreiro”, sem abrigar sentimentos de disputas religiosas. Tal referência nos fez refletir acerca
de sincretismo, colocando-o sob revisão, uma vez que aventamos a possibilidade de outra
construção, qual seja a de “diversidade compartilhada”, expressão utilizada pelo antropólogo
Júlio Santana no III Encontro de Nações de Candomblé e I Simpósio de Estudos da Religião
Afro-brasileira, uma iniciativa do Centro de Estudos Afro-orientais da Universidade Federal da
Bahia, evento realizado em Salvador no período de 24 a 26 de setembro de 2013.
Neste trabalho pudemos observar que, se o projeto hegemonizante tornou-se
revigorado pela imposição do capitalismo e da globalização na América Latina, por outro lado,
a herança cultural africana se faz presente, através de sua cosmogonia, à qual, se rendem
milhões de pessoas a cada ano, para homenagear um dos mais importantes “mitos” dos povos
89
yoruba no Brasil: uma divindade negra, Yemanjá. A abordagem interdisciplinar cria um leque
de opções para análise de um objeto de interesse comum, sem prejuízo de sua validade
epistemológica, por meio de distintos olhares: a história, a sociologia, a pedagogia, a
antropologia, a filosofia, a psicologia, as ciências ditas exatas, a economia, a política. E a quem
mais possa interessar a superação da questão racial nas relações sociais do Brasil.
Refletimos até aqui quanto à relevância deste estudo para o âmbito das relações étnico-
raciais, ressaltando a necessidade de persistirmos em busca de alternativas capazes de
superar obscurantismos no campo educacional. Ao percorrer caminhos dos imaginários sobre
Yemanjá, verificamos a abrangência do mito entre devotos e não devotos das religiões afro-
brasileiras, que acorrem ao mar em 2 de fevereiro para reverenciá-la.
A pesquisa de campo forneceu material elucidativo para a construção do discurso em
torno de identidade cultural e as nuances que lhes constituem. Desse modo, constatamos
aspectos singulares de uma cultura, cujos sujeitos vivenciam experiências compartilhadas. Em
seu imaginário, produzido e (re)produzido de geração a geração, relativa importância tem a
origem de Yemanjá, pois, o “mito” é (re)contado e internalizado como um poder ao qual
reverenciam: “senhora das águas”, “rainha das águas”, “mãe d’água”, “dona das águas”,
misteriosa e bela mulher a quem se deve agradar, com vistas à proteção no mar e à boa sorte
na pescaria. Neste sentido tratamos de um fato, que configura uma identidade cultural em um
contexto social caracterizado pelo imaginário, pela religiosidade, pela arte e pela festa. Uma
pedagogia da diversidade possibilitará que a escola se transforme em campo de interlocuções
de saberes relevantes para a leitura da sociedade e das culturas em contato. “O alargamento
do discurso antropológico” implicará um exercício problematizador em todos os espaços onde
estejam reunidos sujeitos em atividade dialógica sobre relações sociais e práticas culturais
estereotipadas.
Nosso entendimento de cultura se movimenta em tantos sentidos e significados quanto
a ela forem atribuídos. Enquanto prática social, podemos dizer que a cultura adquire uma
identidade. O imaginário assoma como inspiração humana que atribui sentidos à cultura,
oriundos de subjetividades e das experiências socializadas; a estrutura na qual se constroem
as concepções de homem, de mundo e de sociedade; a base arqueologizante da tecedura
indivíduo/sociedade, natureza/cultura (DURAND, 2001). Segundo DURAND (2001) “o princípio
constitutivo da imaginação é o de representar, figurar, simbolizar as faces do Tempo e da
Morte” (DURAND, 2001). A cultura seria a materialização do imaginário e uma experiência
compartilhada. Instaura-se no contato entre as gentes: nas rodas de conversa; na praia, nos
bares, nos mercados, nas igrejas, nos sindicatos, nas feiras, nas artes, nas relações amorosas,
nos esportes, na escola, na rua. O conceito de identidade cultural abarca o jogo, acolhe a
dança e se amplia na diversidade que os processos hibridizantes tornaram possíveis.
90
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93
APÊNDICE I
Lista de entrevistados
Mãe Aíce, 79 anos, yalorixá do Terreiro Odé Mirim de Oxóssi, no bairro do Engenho
Velho da Federação. Organizadora do ritual de candomblé da festa de Yemanjá, há 21
anos.
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ANEXO I
Declaração do Professor Roberto Borges