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DE OURO

ESTRELA
1441

Cdi80-n CajuneÀno
EOICOES de
DE OURO CARYBÉ • KAHTOR

CayndcrnJléb
da Bahia

BRASII:EIRA DE OURO
CAPÍTULOVII

40 assumir a chefia do candomblé,a filha passa a


máe e, como os candomblés são igrejas independentes
entre si, em si mesma resume, inquestionàvelmente, tôda
a autoridadeespiritual e moral.
O título de mãe vem do fato de o chefe do candom-
blé aceitar iniciandas (filhas, no futuro) para criar na
devoção aos deuses. Depois de efetivamente admitidas
na comunidade, estas iniciandas se consideram filhas es-
pirituais do chefe do candomblé — e neste sentido é que
se emprega a palavra mãe. Desde que tôda gente, den-
tro ou fora do candomblé,tem um espírito protetor, que
deve habitar o seu corpo, e desde que o chefe do candom-
bléprecisa preparar a inicianda para receber, em si
ma, a visita mais ou menos freqüente da divindade, —mes-
processo que exige tempo, convivênciadiária, práticaum
de
um conjunto de cerimóniassecretas no interior do can-
domblé,com a orquestraespecialde tamborese de ins-
trumentosmusicaisafricanos,— fazer o santo vale por
uma segunda educação,que confere ao chefe da seita a
ascendência de mãe em relação à filha.
A exigênciaantiga de sete anos, pelo menos, de ini-
ciação, para poder tomar sóbre os ombros a tarefa de
rigir um candomblé,já hoje decaiu de importância di-
candomblésnão nagôs. Com efeito, nos
na, Idalice,outros pais e mães nuncaZépassaram
Pequeno,Germi-
pelo pro-
cessode fazer o santo: "Ninguém lhes pôs a mão
beça". Para estes casos se criou uma tapeação — na ca-
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os in-
teressados afirmam que os seus respectivos órixás foram Entre as mies na", figuram em primeiro plano
feitos em pé, ou seja, eram táo evidentes e táo poderosos Adétá (ou Iyá Détá), Iyá Kali e Iya Nassó,fundadorasdo
que dispensaram a intervençao de terceiros. Daí o vasto Engenho Velho; Pulquéria, que emprestou brilho extra-
numero de pais e mães improvisados, que tanto tém com- ordinário ao candomblé do Gantois; Maria Júlia Figuei-
prometido a pureza e a sinceridade dos candomblés. redo, chefe do Engenho Velho, e, em tempos mais recen-
Os chefes sáo chamados de diversas maneiras, na tes, Aninha, filha do Engenho Velho e chefe do Opó
Bahia. Nos candomblés nagós, usam-se POLvézes as ex- Afonjá. Os negros recordam, ainda, o esplendor dos can-
pressões yórubás iyalôrixá e babalôrixá, que significam, domblés dirigidos por Sussu, do Engenho Velho, Alaxés-
exatamente, mãe e pai-de-santo. Nos candomblés jéjes, su, Maria do Calabetáo, Flaviana e Maria Neném, que
os chefes se chamam vódunô, em ambos os casos. Nos fêz ou, pelo menos, dirigia espiritualmente vários chefes
candomblés de Angola e do Congo, tata de inkice (pai) e de candomblés de Angola e do Congo. Contra tantos no-
mameto de inkice (mãe) . Nos candomblés de caboclo, mes de mulheres, sabe-se apenas da existência de alguns
padrinho e madrinha, zelador e zeladora. Os termos ge- pais nagôs todo-poderososdo passado, como Bambuxê, Ti'
nericos, entretanto, sáo mesmo mãe-de-santo e pai-de- Joaquim e um ou outro mais. A importânciada mulher
-santo. foi decisiva na formação dos atuais candomblésde cabo-
Dentro do candomblé,as expressões mãe e pai náo CIO,pois foram mulheres, Naninha e Silvana, que os in-
sio muito queridas. "Santo não tem pai nem mãe... " troduziram.
Esta frase, que ouvi muitas vézes na Bahia, parece indi- Sómente nos candomblésdo Congo se verifica uma
car, como se vê, que os negros se inclinam a tomar a ex- exceçáo. Não só foi um homem, Gregório Maqüende,
pressáo mãe-de-santocomouma afronta à divindade. Para quem lhes emprestou todo o prestigio de que atualmente
isso deve ter concorrido,em grande parte, o espanto e a gozam, como, recentemente, outro homem, Bernardino,
incompreensáo dos elementos estranhos ao candomblé, continuava a fazê-losflorescer.
ante o aparente absurdo do titulo. Nos candomblés na- Ainda agora, os nomes de mulheres são mais impor-
gós, porém, o tratamento familiar continua: tantes do que os dos homens, na chefia dos candomblés.
— Eu falei com minha mãe... A quase centenária Maria Bada merecia o respeito uni-
versal dos negros da Bahia. Tia Massi, do Engenho Ve-
lho, Menininha, do Gantois, a velha Dionísia, do Alakêto,
2 e Emiliana, do Bógún, são nomes conhecidose acatados.
Dos 67 candomblésmatriculados na União, 37 eram Bate-Fólha, Procópio, do Ogunjá, falecidos, e um ou
dirigidos por pais e 30 por mães. outro mais, que talvez se possam igualar em prestígio so-
Parece, porém, que nem sempre houve pais e mães ciai como chefes de seita.
e que, antigamente, o candomblé foi, nitidamente, um
oficio de mulher. Indicam-no.entre outras coisas, a ne-
cessidade de cozinhar as comidas sagradas, de velar pelos
altares, de enfeitar a casa por ocasião das festas, de su- 3
perintender a educaçãoreligiosa de mulheres e de crian- Esta concorrência— quase sempredesleal — dos
ças — serviços essencialmente domésticos, dentro de qua- pais muito tem prejudicado o candombléem geral.
tro paredes. Outro indicio está na marcada preponde- As mies dos candomblésnagôs e jêjes sio, em geral,
rância da mulher na história dos candomblés. mulhere velhas, respeitáveis, que eumviram tôdas as
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suas obrigações como filhas durante várias dezenas de nessas atividades, pois que náo têm — como no caso das
anos. A velha Flaviana, ao morrer, estava perto dos 90; mies nagôs e jéjes — a desculpa da sinceridade da
Aninha, aos 70 anos, tinha apenas cérca de 20 anos como crença na sua eficácia. Daí que se encontrem, vez por
mãe. Menininha. mãe do Gantots. quando na casa dos outra, nesta ou naquela encruzilhada, nesta ou naquela
50, e embora respeitada universalmente na Bahia, era estrada pouco transitada, caveiras de bode ou cabeças de
considerada pelos velhos dos candomblés "muito móça" galinha em azeite de dendê, bonecaspicadas de alfinetes,
para o cargo. Nascidase criadas no ambiente do can- moedas de cobre e tiras de pano vermelho com o fim de
domblé, conhecendo profundamente todos os seus segre- fazer mal a determinada pessoa; dai que se encontrem,
dos, as mães nagós e jéjes possuem uma consciência de nos ambulatóriose clinicas, pessoas doentes das garrafa-
si mesmas que já se tornou um dado primário da obser- das de algum pai ou derreadas das surras colossaisque
vaçáo. foram forçadas a tomar, com cansançáo brabo, para esta
A grande maioria dos pais não pertence aos candom- ou aquela moléstia. Sáo a obra dos clandestinos.
blés nagós e jéjes, com exceçóes como Eduardo Manga. A crítica popularse refere mais venenosamente aos
beira, do Ijêxá. Procópio, do Ogunjá, Manuel Falefá, do pais do que às mães, considerando-osinsinceros, malfa-
Poço Bétá. e Manuel Menez. Os pais são em geral de zejos, desonestos:
Angola e do Congo e mais comumente caboclos.
Em contraste com esta fórça interior que emana na- Foi à casa de um pai-de-santo,
turalmente das mães nagós e jêjes, os pais de Angola, pra tratar de um quebranto
do Congo ou caboclos são quase todos improvisados, fei- e de uma separação,
tos por si mesmos,"aprendendo uma cantiga aqui e outra com três filhinhos, abandonada,
ali". como dizem os chefes nagõs e jéjes. Vários dêsses do marido desprezada
pais jamais sofreram o processode feitura do santo. São sem razão.
pais sem treino, espontâneos,distantes da orgânica tra-
dição africana. — os clandestinos do desprêzo nagô. Mandou abrir uma mesa
Embora numericamente superiores às mães, os pais pra saber porque seria
não podem escapar ao fascínio que sôbre êles exerce o que o marido foi-se embora
tipo ideal da máe e procuram assimilar-se esse tipo, to- e se ainda voltaria.
mando atitudes femininas, caindo no bate-bôcatípico das O pai-de-santo aproveitou-se
chamadasmulheres de saia. desta bela ocasião:
São esses pais que mais têm concorridopara a des- pediuoitentamil réis
moralização dos candomblés, entregando-se à prática do para o trabalhodo chão.
curandeirismo e da feitiçaria — por dinheiro. Os casos
de curandeirismoe de feitiçaria nos candomblésnagôs e Pediu para o trabalho
jéjes são raros, mas, quando ocorrem, se limitam a prá- vinhobrancoe mel de abelhas
ticas mágicas inócuas, no máximo um chá de plantas me- e um galo arrepiado,
dicinais ou um despacho (ébó) para Êxu, na encruzilhada dêsses das penas vermelhas,
mais próxima. Esta oferenda a Êxu, outrora muito co• três garrafas de azeite,
murn, não se faz mais nos candomblés nagôs e jêjes, que um cabrito e um peru
homenageam
o órixá em cerimóniaintra-muros. Entre e uma roupa do marido
tanto, conhecem-secasos de pais que se enriqueceram para o despacho de Êxu.
Pediu mais um alguidar,
três moedasde dez réis. recai sóbre as mulheres, invadindo mesmo o terreno par.
— Pra seu marido voltar, ticular, privado, mas, com os homens, — ógás, alabê,
decá cinco contos de réis... outros funcionáriosdo candomblé,— não fala de cima
— E a pobremulherzinha para baixo, mas com amabilidade,e éstes o tratam res-
caiu neste rio séco. peitosamente. Apesar de não ser um conjunto de regras
No outro dia, o pai-de-santo morais, mas sómente poder espiritual, o candomblé con-
tratou de quebrar-no-beco. fere ao seu chefe o direito de proibir a filha, em determi-
nadas ocasiões, de sair, de amar, de conseguir um em.
( "Quebrar-no-beco" significa desaparecer, fugir). prégo, de morar em certos lugares, de se submeter a esta
Esta cantiga se vendeu, há tempos, a tostão, nas fei• ou àquela operação, dando-lhe concomitantemente o di.
ras-livres da Bahia, e tem a sua justificativa na irres- reito do compeli-la, se necessário, a obedecer, por meio
ponsabilidade de certos elementos bem conhecidos do de multas, obrigações suplementares ou castigos cor•
púbrico. porais.
Pósto que a função essencial do candomblé se limita
4 ao culto dos órixas, todos os atos se medem pelo bem ou
pelo mal que possam fazer à sua existência ou à autori-
spara saudar a mãe, a filha deve rojar-se no chão dade e ao prestígio do chefe. Nenhum dos preconceitos
até beijar-lhe a mão negligentemente estendida, fazendo correntes na sociedade brasileira encontra eco neste mun-
o iká ou o dôbalê, se o seu ôrixá fór masculino ou femi- do à parte. O candomblé protege indistintamente tóda
nino. Só depois desta reverência a filha poderá beijar a gente que acredita nos seus mistérios e tem ligações com
mão da mãe, talvez abraçá-la. a casa. Tóda a questão reside, pura e exclusivamente, na
Os ógâs e os homens em geral — exceto os raros tolerância pessoal do chefe.
filhos-de-santo— usam entre si um apêrto de mão con- Entretanto, nos candomblés não nagós ou jéjes, a
vencional, cujos primeiro e terceiro tempos são o apêrto autoridade do chefe quase sempre reveste uma forma ti-
de mão comum, com um segundo tempo em que se aper- rúnica, que corresponde à maior frouxidão da hierarquia
ta, entre os cinco dedos, o polegar do interlocutor. Diante e da disciplina: a autoridadedeve ser mantida a todo
da mãe, os homens do candomblé podem usar éste apêrto custo. Isto impõe modificações essenciais na psicologia
de mão, acompanhado de um abraço, ou simplesmente dos chefes. Por exemplo, Bernardino, pai de um candom-
beijar-lhe a mão. blé do Congo, precisava manter a cara enfarruscada todo
o tempo, enquanto Joãozinho da Goméa, pai de um can-
domblé de Angola, precisava recorrer à ameaça de cas-
5 tigos corporais. Em geral, nestes candomblés todos man-
dam — o pai é apenas a última instância. Há menor
Em geral, a autoridade do chefe se exerce automàti- nitidez nas linhas de hierarquia. E, dessa confusão de
camente, sem necessidadede recurso a medidas extremas, autoridade, decorre a confusão dos sexos, nas festas e
salvo casos especiais, de franca indisciplina, em outras ocasiões.
Nada se faz, no candomblé, sem a licença expressa
do chefe. A sua vontade é lei, que só êle mesmo poderá
revogarou modificar.Todoo da sua autoridade
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CAPITULOVIII

Os candombléssão comunidadesfechadas, no sen-


tido de que não obedecema qualquer govêrno comum,
nem a regras comuns.
A autoridade espiritual e moral emana direta e ex-
clusivamente do pai ou da máe, que só reconhece,acima
da sua própria autoridade,a dos órixás. Esta autoridade
— absolutaem tóda a fórça do têrmo — o chefe a divide
com as demais pessoas do candomblé,em linhas muito
nítidas de hierarquia, que beneficiam especialmente os
velhos e as mulheres.
A mãe escolhe, entre as filhas, as suas auxiliares
na administração do candomblé — uma série de iyás
(mães), que se encarregam de certos serviços parciais,
mas de importância. Uma dessas auxiliares é a iyá môró,
adjunta da mãe, que a acompanhaem todos os serviços
religiosos; duas outras são a dagá e a sidagd, a primeira
mais velha do que a segunda. encarregadas do padê de
Êxu; outra ainda é a iyá bassê, que cozinha para os bri-
xás; e, finalmente, a iyá têbêxê, que tem a iniciativa dos
cânticosnas festas. Ê claro que, se essas auxiliares falha-
rem nas suas obrigações, o candomblé perderá com isto.
Se a iyá môrô não auxiliar convenientementea mãe no
desempenho das cerimónias sagradas, se a dagá e a sidagá
nio realizarem a contento o despacho de Êxu, se a iyá
bassê náo cozinhar os alimentoscomo deve e se a iyá tê-
béxé não escolher bem as cantigas para os órixás, então
todo o esfórço será em vão.
Quanto ao poder espiritual, tomemos por paradigma
um candomblé nagó, que nos oferece o seguinte quadro: 2
Substituta imediata da mãe, sua sucessoraeventual,
mãe-de-santo
a mãe-pequena (iyá kékérê, em nagô exatamente mãe-
-pequena)lhe está imediatamenteabaixo na escala da
hierarquia, comoadministradoracivil e religiosa do can-
domblé. Salvo casos especiais (e muito raros), de pro-
homens funda amizade ou de parentesco próximo, a mãe-pequena
é sempre a filha mais velha em relação à feitura do san-
to, por isso mesmo mais autorizadaa substituí•la.
{yalaxé
gar-tenenteda mãe, a mãe-pequenaestá em contato mais
péjí-gá direto com as filhas, especialmentenas cerimóniasreli-
mãe-pequena glosas,e com as iniciandas,pois a mãe apenasfiscaliza,
(iyá kékérê) axógún aconselhae dirige nestas ocasiões,enquantoa mãe-pe-
ôgãs quena, executante, acompanha atentamente a marcha das
ala bê cerimónias. Também a mãe-pequenaé chamadade mãe
pelas filhas, que lhe tomam a bênção e lhe fazem a mes-
tocadores de atabaque ma reverência devida à mãe.
filha-de-santo filho-de-santo Apesar de tôda a sua autoridade, a mãe-pequenanão
I ) ébômin se atreve a desobedecer à mãe ou às suas ordens e é claro
2) iaô que a sua posição decorre, entre outras coisas, da sua ha
ékéde bilidade no interpretar, acertadamente, as ordens do
abiãs chefe.

O péjí-gã (donodo altar) e a iyalaxé (zeladorado 3


axé) são personagens importantíssimos, mas sem funções
reais, pessoais,dentro do candomblé. Os seus títulos são axôgún, o sacrificador de animais, só eventualmen-
uma distinção especial, mas os deveres resultantes dos te exerce as suas funções, na matança preliminar às gran-
seus cargos são delegadosa filhas da sua imediata con- des cerimónias religiosas, diante do péjí e em companhia
fiança. Teóricamente responsáveis, perante a mãe, pelo da mie, da mãe-pequenae de uma ou outra filha mais
altar e pelosaxés, o pejí-gã e a iyalaxé dão idéias e su- velha. Se o axôgún não sacrificar os animais como deve,
gerem modificaçõespara mantê-los à altura das tradições o sangue coalha— e os ôrixás nio agradecemo sacrifí-
da casa. Só ocasionalrnente,se mora no candomblé,os cio. Em teoria, portanto, só o axôgún tem o direito de
axés são cuidados pessoalmentepela iyalaxé. Uma ou sacrificar os animais — galo, bode, carneiro, pombo, etc.,
duas filhas se incumbem do cuidado com o altar e os axés, — cujo sangue deve regar a pedra-fetiche dos ôrixás; mas,
seja por delegação direta do péjí-gá e da iyalaxé, seja a no seu impedimento, a mie pode fazê-lo, pois realmente
mandado da mie, em nome déstes. Entretanto, a impor- inclui,na sua autoridade,a autoridadede todosos mem-
tància déstes cargos é hem par. bros da comunidade.
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O axógún e o pêji-gi sio escolhidos entre os ógás da órixá que protege. Para isso, deve comprar uma cadeira
casa e sio, em geral, os mais constantes no auxiliar o nova, de braços, de onde assistirá à festa, que realmente
candombléou os mais dedicadosaos ôrixás. redunda em homenagemà sua pessoa. A mie, paramen-
tada em grande gala, o toma pelo braço, depois de beV
jar-lhe a mão e abraçá-lo, e com êle passeia pelo barracão,
4 sob o ruido ensurdecedor das palmas e dos gritos espe-
ciais para o seu órixá. As filhas cobremde flóres o novo
s àgás são protetores do candomblé, com a função ôgá e, uma por uma, lhe vêm pedir a bênção, depois de a
especial. e exterior à religião, de lhe emprestar prestígio mãe o haver deixado no seu trono, onde o ógá recebe,
e lhe fornecer dinheiro para as cerimónias sagradas. sorridente,todo de branco,a homenagemdos assistentes.
Certo dia. a mãe decide levantar ógá do seu candom- Com pequenas variantes, especialmente quanto ao tempo
blé um cavalheiro que conquistou as simpatias gerais da de reclusão e aos animais a sacrificar, este é o processode
gente da casa. seja pela sua liberalidade, seja pela sua confirmação dos ógás na Bahia.
atração pessoal, seja pela posicio que desfruta. Em meio a Os ógás são tratados de meu pai pelas filhas, que
uma cerimónia pública, a filha A, possuída por Xangô, lhes tomam a bênção quando os encontram. São uma
por exemplo. toma pela mão o indicado e o leva até dian- espécie de ConselhoConsultivodo candomblé.Em qual-
te do altar de Xangô, onde interroga o ôrixá, em língua quer dificuldade,a mãe recorre às suas luzes, à sua ca-
africana, sôbre a conveniênciade tomáslocomo seu ógá. pacidadede trabalho ou ao seu dinheiro, seja para auxi-
Volta depois com éle para o barracãoe, enquantoos liar na manutenção da ordem nas festas públicas, seja
atabaques se fazem ouvir. festivamente, outros ógãs da para resolver pequenoscasos de rebeldia e de indiscipli-
casa o carregam e o passeiam carregado em volta da sala, na, seja para tratar com a polícia, seja para financiar
sob os aplausosda assistência. Outras vêzes o ôrixá es- éste ou aquéle consérto na casa. Sáo o braço direito da
colhe 0 ógá entregando-lhe as suas insígnias — no nosso mãe, em tódas as questões não diretamente ligadas à
caso. o machado de Xangô. religião.
Também entre os ógás — embora não haja distinções
Está levantado o ógã, que desde então será chamado especiais— se leva em conta a antiguidadeda confirma-
por esse titulo e tratado como tal. Precisa. porém confir- Cão,de nada valendo qualquer decisão dos ógás, se estes
mar a sua indicação. Se tiver sido levantado ógñ de Xan- não conseguirem a aprovação ou a condescendênciado
gô, como no nosso exemplo,deverá passar 17 dias dentro mais velho de todos.
dos muros do candomblé, abstendo-se totalmente de rela- Entre os ógák a mãe escolhe o alabê, encarregado da
çóes sexuais. sem licença de sair. O futuro ôgá deve. orquestra de tambores e instrumentos musicais africanos.
nesse intervalo. submeter-se a um processoaue varia mui-
to de candomblépara candomblé.mas inclui vastos sa-
crificios de animais. banhosde fôlhas, invocações. Depois 5
désses 17 dias de retiro, terá de passar algum tempo ain-
da dormindo obrigatóriamente no candomblé, embora Somente depois de todos estes personagens vêm, teó-
possa passar o dia a tratar dos seus afazeres no exterior. ricamente, na escala da hierarquia, a filha e — nos can-
Naturalmente, desde então já não precisa obedecer a cer- dornblésonde existe o filho.
tos tabús, como. por exemplo, o das relações sexuais. Ter- O candombléé a casa das filhas — são elas que o
manada a sua iniciação como ógã, resta-lhe, entretanto, sustentam, económicae religiosamente. Cada filha deve,
dar uma festa — paga do seu próprio bôlso — para o com o seu dinheiro, pagar as ricas vestimentas do seu
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respectivoórixá e as comidassagradas que se lhe devem digamos, Oxún, — seja o seu espírito protetor, falta-lhe
depositar aos pés, nos dias que lhe sáo consagrados. A capacidadepara lhe servir de instrumento, comoacontece
belezaexterior do candombléestá nas mios das filhas, com as filhas. Não podendo receber em si mesma a sua
que devem apresentar-se bem vestidas, ornamentar a Oxún, a ékéde se submete a uma série de funções subal-
sala, limpar a casa, atender aos convidados,dançar e ternas, seja em relaçãoà Oxún de uma determinadafilha,
cantar a contento. manter o respeito nas cerimónias pú- seja em relação a tódas as Oxúns do candomblé. O seu
blicas, ás vézes cozinhar os restos das comidassagradas trabalho consiste no cuidado das vestimentas e dos ador-
para distribuição entre os assistentes. São o presente e nos com que se apresentam,nas festas, quando possuidas
o futuro do candomblé:no presente,servem comoele- pelos órixás, as filhas. É um voluntariado,uma árdua
mento de ligação entre o candomblé, considerado como um tarefa. Cabe-lheacompanhartodos os passos da sua
todo,e o mundoexterior; no futuro, seráo chamadasà Oxún, durante as festas, tendo ao braço uma toalha bran-
sua direção — uma delas certamente será chamada à ca com que enxuga o suor do seu cavalo, tóda a atençáo
sua direçáosuprema — para continuar,no tempo e no concentrada em não a deixar cair, nem se cansar demais,
espaço.a tradição em que foram criadas. nem destruir a harmonia da sua paramenta. Deve mudar
Pelo menos em teoria. o filho tem as mesmas rega- a água das quartinhas do órixá, enfeitar o seu assento ao
lias da filha, mas, na realidade,a sua posiçãoé muito ar livre com brinquedosde criança, velas e flóres, con-
inferior. Os candomblés mais antigos da Bahia não fa- correr com dinheiro (ou trabalho) para as festas em sua
zem santo de homem e, se porventura algum homem cai honra.
no santo, não tem licençapara dançar. Esses filhos apre- No Engenho Velho, a ékéde também se submete a
sentam, em maioria esmagadora, inequívocas tendências uma cerimónia de confirmação, semelhante à cerimónia
para a feminização. Ê difícil que não sejam cavalos de correspondente para os ógüs.
Yansá, órixá que geralmente se manifesta em mulheres
inquietas, de grande vida sexual, que se entregam a todos 7
os homens que encontram, que se fazem notadas onde
quer que surjam; mas ainda é mais difícil que, se não fôr Em último lugar, ficam as abiás. Estas não perten-
Yansá, o órixá que néles desce não seja outra iyabá cem ainda, realmente,ao candomblé.Estãonum estágio
mais comumente Yémanjá, especialmente para os filhos anterior à iniciação,tendo concorridosomente a ritos
mais gordos, mais tardos de movimentos,menos agressi- parciais. São um grupo à parte, ora sob a direçâo imedia-
vos. Engomam o cabelo, pintam as unhas, empoam o ta da mãe, ora — e mais comumente— sob o contróle
rosto, estão sempre cercadosde mulheres,a conversar da mãe-pequena ou de uma filha mais velha especialmen-
com volubilidade tipicamente feminina. Todos éstes ca- te designada pela mãe. São uma reserva de efetivos, de
racterísticos os tornam alvo da hostilidade dos homens e potencial humano para os candomblés de amanhã.
do desprézo das mulheres da comunidade. E, se tentam
exercer a sua pretensa autoridade, começamum bate-
•bócainfindável.
8
6 Este esquema de hierarquia revela, sem sombra de
as mulheres detêm tôdas as funções perma-
baixo das filhas, há ainda a ékéde. Esta féz voto nentes do candomblé, enquanto os homens se reservam
de servidãoa éste ou àquele órixá. Emboraéste órixá apenas as temporárias e as honorárias.
Com efeito. a chefia espiritual e temporal da casa a inicianda passa a
de cultoestá entreguea uma mulher (a mie), que esco- Como se vé por esta exposiçüo,
alcançao título de ébómin,
lhe para sua assistente imediata. seu braço direito, outra iaó e, sete anos mais tarde, atingir, eventualmente, qual-
mulher (a mãe-pequena), para dirigir a massa de mulhe- que lhe confere o direito deEntretanto, a filha deve ainda
q res (as filhas) que deve contribuir para o melhor enten- quer pósto no candomblé. candomblés mais antigos
dimento entre os homens e os ôrixás. O cuidado désses galgar — pelo menos nos
postos para enfim chegar a mãe-pe-
órixás está a cargo de mulheres (as filhas), que por sua tóda uma escala de quando pode agir quase independen•
b vez recrutam, para auxiliá-las, outras mulheres (as éké- quena (iyá kékérê),
des) . Nestas atividades se cifra todo o objetivo do can- temente, devendo obediênciaum apenas à mãe. Entre máe•
domblé — o de homenagear os órixás, preparar cavalos -pequena e máe, pode haver inferior, abismo. Não é impossí-
mas que desfru-
para recebê-los, conseguir que desçam entre os humanos vel que outra filha, de posiçáoda mie, a preceda no direito
t para lhes tornarem a vida mais suave e mais rica em pra- te da afeição e da confiança náo
náo seja a regra, éste casofácil,
zeres materiais e espirituais. Outras mulheres, ainda. se de sucessáo. Embora esta a se registrar. E mais
encarregam de funções administrativas dentro da comu- seria o primeiro nem o único — mais qualificada do que as
nidade. porém, que a mãe-pequena suprema do candomblé — substi-
Ocasionalmente, são requisitados os serviços masculi- demais para a dtreçáo a máe, embora não seja difícil
nos, ora para o sacrificio de animais (axôgún), ora para tua, quando da sua morte, que o passamento da máe
a invocação dos ôrixás nas grandes festas (alabé e toca. que se diga, à bóca pequena,
dores de atabaque),ora para conseguirdinheiroe pres- sua substituta imediata, de ólho gros-
foi apressado pela compreendidas
tígio social (ógis), ora, afinal, para garantir a manuten- na posição.
so nas vantagens comovimos, a antiguidade
çio do altar (péji-gá) . Os homens detêm, assim, as fun- Também entre os homens, significação, pelo menos na
çóes simplesmente honorárias (péji-gá e ógás) e tempc» da iniciaçáo (seniority) tem
sem falar na importância
rúrias (axógun, alabé e tocadoresde atabaque). escolha do axógún e do pêjí-gá,velho dos ógás.
Fica fora de discussãoo pósto de filho-de-santo,que excepcional atribuida ao mais
é realmente consideradouma excrescência — há mesmo
quem diga imoralidade — dentro do sistema por si mes-
mo tão coerente do candomblé.
Esta divisão da hierarquia parece confirmar a opi-
niáo de que o candombléé um ofício de mulher — essen-
cialmente doméstico, familiar, intramuros, distante das
lutas em que se debatem os homens, à caça do pão de
cada dia.
9

eve-se ressaltar a importância dos velhos — não


exatamente das pessoas de idade, mas das que fizeram
o seu santo há mais tempo ou há mais tempo aderiram
ao candomblé.
CAPITULO IX
1

'Antigamente, fora do candomblé,havia o babalaô,


o adivinho,— um sacerdotededicadoao culto do deus
da adivinhação, Ifá (nagó) ou Fá (jéje), representado
pelo fruto do dendêzeiro.
As mães sempre buscavamo conselhodos babalaôs,
para confirmar o órixá protetor desta ou daquela inician-
da, às vésperas de festas públicas ou em seguida a cala-
midades que porventura desabassem sóbre a casa. Aos
babalaóscabia olhar o futuro. marcar uma regra de con-
duta para as comunidadesreligiosas, — a única que
deria, sem atrair a cólera dos deuses,contornaras difi-
culdadesque se apresentassem. Os babalaóseram, assim,
um elementode importânciaexcepcional.Eram guias
espirituais,uma última instância,a derradeira palavra
em qualquer assunto difícil, que exigisse, náo só conhe-
cimentosespeciais,como um contato mais íntimo com as
potênciasocultasda natureza.
O trabalho mais importante e mais difícil do can-
dornbléé o da vista, pois, entre outras coisas,pode trazer
enormes inquietações e desgraças indiziveis. Se o olhador
se engana sóbre o ôrixá de uma pessoae, fiada na sua
palavra, a máe se dá à tarefa de preparar essa pessoa
para recebê-lo, é quase certo que isso redunde numa série
de complicações, tanto para a inicianda como para a mãe,
o candombléem questão e, por extensão, tóda a comuni-
dade dos candomblés.Muitosoutroscastigosda mesma
espéciepodem se abater, impiedosamente,sôbre os res-
ponsáveisdiretos e indiretos pelo sacrilégio,
Os babalaôs eram considerados irmdos das mães e. quanto nagô. Mais moço, menos respeitado e menos co-
portanto, tios das filhas, que lhes deviam as mesmasre- nhecidodo que o seu rival, gozava entretanto de vida
veréncias tributadas à mãe. mais folgada.tendo conseguidoficar a cavaleirodas ne-
Eram uma poderosa fórça de reserva, mobilizável cessidades da existência com o seu trabalho como babalaô.
em caso de necessidade. Menos tratável, tocando mesmo à agressividade no seu
ardor religioso, chegava a ser temido pela massa dos
negros. Benzinho constituia um concorrente temivel para
2 o velho Martiniano, por ser mais móço, menos escrupulo-
30s últimos anos, havia apenas dois babalaôsna so, e, principalmente,mais ousado.
Bahia, Martiniano do Bonfim e Felisberto Sowzer Estes foram os últimos babalaós.
(Benzinho), — ambos filhos de africanos de Lagos (Ni- Os novos sacerdotes de Ifá se situam numa catego-
géria) e concorrentesentre si. ria inferior — os etuós — e em geral são elementos de
Martiniano do Bonfim foi a figura masculina mais dentro dos candomblés.
impressionantedas religiões do negro brasileiro. Filho
de escravos, estudou em Lagos, estêve na Inglaterra, co-
nheciaalgumascidadesdo país e falava inglêsfluente- 3
mente. Podia passar horas inteiras a conversarem nagô,
que conhecianão de ouvido,mas por tê-lo aprendidonas Ufá, não tendo culto organizadona Bahia. se identi-
escolasdos missionáriosna Nigéria. Conheceua maioria ficou com o instrumentode que se serviam os babai"
dos grandes nomesdas seitas africanas,podia cantar e e se servem os êluôs para as suas consultas ao ôrixá
dançarcomoninguéme mereciao respeitoe a confiança o ôpélé Ifá, o rosário de Ifá, feito de búzios da Costa, de
universais dos negros da Bahia. Pedreiro e pintor de prc.» forma evecial, uns diferentes dos outros, que agora se
fissão, abandonoua colher e a brocha para ensinar chamasimplesmenteo Ifá.
inglês aos negros remediadosda Cidade. Morreu com Atirado ao acaso sôbre o chão, depois de uma série
mais de 80 anos (1943) e fêz mais de vinte filhos de rezas mágicas, o ledor do futui•o decifrava, pela posi—
em diversas mulheres. Era um negro inteligente, instrui. çñoem que porventura caíssem os búzios do rosário, o des-
do, educado. Não fazia das suas habilidadescomobaba- tino que esperava o consulente. O rosário pode ser subs-
lao um comércio,nem muito menos um meio de fazer tituído, sem desvantagem,pelos búziosque o compõem
mal ao próximo. Era fundamentalmente honesto em as- — e esta é mesmoa regra, atualmente. O sacerdotede
suntos religiosos, sendo fácil notar que acreditava real- Ifá se valia ainda de outros materiais, como o óbí, o
mente na fórça de tudo o que fazia e nos podêresmági- órôbô,a pimentada Costa (atarê).
cos do que recomendava que se fizesse. Não acumulava, Além dêste processo,o mais comum, o sacerdotepo-
à sua funçãode babalaô a de medicine-man,limitando-se de servir-se de uma pequenaesteira, de cêrca de IO em,
quandomuito, a aconselharo sacrifíciode um pomboou chamada esteira de Ifá, que, colocadano chão, responde,
outra prática mágica igualmente inofensiva. Era recebi- sem qualquer auxilio exterior, às suas perguntas. Mo-
do com homenagensespeciaisnos candomblés,que se vendo-se para um lado, diz que sim; movendo-separa o
sentiam honradoscom a sua presença. outro,diz que não...
Felisberto Sowzer (Benzinho) era inteligente e ins• O sacerdote se chama olhador, por olhar o futuro, e
truído e, como Martiniano, podia falar tão bem inglês daí vem a expressãoolhar como Ifá.
4 de Oxún satisfaz uma grande clientela,na sua roça de
existência désse sacerdócio está em sério perigo, Brotas. E a negra Cecilia, da Estrada da Liberdade, tem
uma sólida reputaçáo como ledora do futuro.
ameaçada pela concorrência cada vez maior dos pais e
das mães, que entretanto não possuemo treino especial
requerido para o trato com Ifá.
Os chefes dos candomblés acendem uma vela sóbre
a mesa (taramésso), ao lado de um copo com água, e ati-
ram os seus búzios para determinar o órixá que possuia
inicianda, para prevenir doenças, para resolver disputas
conjugais, etc. Há muitos pais e mães enriquecidos com
essas consultas. É do taramésso, manejado por mãos de-
sonestas,que sai o feitiço,a coisa feita, o bozó;que sacm
os envenenamentos por via de garrafadas fornecidas aos
consulentes;que surgem os casos de surras, de mortifi-
cações,de crimes contra a natureza. Antigamente,porém,
o pagamento recebido por êsses serviços não chegaria
para enriquecer ninguém. A acreditar na velha Izabel,
que costumava botar mesa na casa de Justina, na Quin-
ta das Beatas, era regra, há mais de meio século, pagar-se
apenas370 réis, sóbre os quais se dormia,na véspera.Os
tempos mudaram,a vida encareceu. E já é comumque
se fale em trabalhos de contos de réis. A máe,ou o pai,
cobra apenas 5 cruzeiros por consulta a [fá, mas o remé-
dio indicado para cada caso particular sempre se eleva a
algumas centenas de cruzeiros, que em geral chegam às Espada e ferramentasde Ogún
suas mãos, desta ou daquela maneira, para que a dificul-
dade seja removida.
Desta sorte, o mundo do candomblé se restringe ain-
da mais, dentrodas suas própriasfronteiras,pela supres-
são dos serviçosdo babalaóe do éluó, enquantoos pais
e as mães aumentam o seu poderio espiritual e económico,
pela soluçáo de problemas individuais e pelo pagamento
recebido em troca das consultas a Ifá.

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Os éluós mais conhecidose mais respeitados, atuai-
mente, são Cosme,AntónioBonfim e Otacílio. Emilia
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