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2013 REVOLTA DOS

GOVERNADOS

(ou para quem esteve


presente)

REVOLTA DO VINAGRE
WALLACE DE MORAES

2013 REVOLTA DOS


GOVERNADOS

(ou para quem esteve


presente)

REVOLTA DO VINAGRE

2a edição
Rio de Janeiro – RJ
WSM Edições / Via Verita - 2018
Para todos os insurgentes que foram
às ruas nos protestos em 2013/14 e que se
deram ao luxo de sonhar em construir um
mundo melhor.

“Poder! poder! poder para o povo! e o


poder do povo vai fazer um mundo novo!”
(letra da música cantada pelos Black Blocs
nas passeatas)
Copyright 2018 by Wallace de Moraes
2013 - Revolta dos Governados: ou para quem esteve presente, revolta do vinagre
Wallace de Moraes

2a Edição
Revisão ortográfica e gramatical: Luciana Simas
Projeto Gráfico e Diagramação: Katharina Borges
Capa: Antonia Pires
Charges: Antonia Luciana Pires da Silva e Cristiano de Oliveira Gomes
Editor: Wallace dos Santos de Moraes
Foto do autor: André Albuquerque
Fotos da capa e folha de rosto: Ruy Barros
Ficha catalográfica: Vanda Lucia

Este livro foi financiado pelo programa de auxílio à editoração da Faperj.

Ficha Catalográfica UFRJ/Biblioteca IFCS-IH

De Moraes, Wallace
2013 - Revolta dos Governados: ou para quem esteve presente, revolta
do vinagre / Wallace De Moraes.--- Rio de Janeiro: WSM Edições / Via Verita, 2018.
504 p.; 16 x 23 cm.

ISBN 978-85-921-408-1

1 Jornada de Junho – Brasil (2013) 2. Manifestação – Brasil (2013) 3.


Revolta Popular I. Título

320.981
D386
AGRADECIMENTOS E BASTIDORES 8
ADVERTÊNCIA 11
APRESENTAÇÃO 14

INTRODUÇÃO 23
1. NOSSO APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO 62
2. A REVOLTA E SUAS INTERPRETAÇÕES 100
3. ANTECEDENTES DA REVOLTA E SUA CONEXÃO 166
MUNDIAL
4. DIA-A-DIA DE UMA PRIMAVERA DE LUTA 184
5. DITADURA E DEMOCRACIA NO BRASIL - MAIS 358
DO MESMO
6. DIREITO PARA QUEM? GOVERNADOS 374
REBELADOS CRIMINALIZADOS
7. ATIVISMO CONSERVADOR AGRESSIVO E O FIM 398
DO MOVIMENTO
CONCLUSÃO 430

APÊNDICES 454
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 486
AGRADECIMENTOS E
BASTIDORES

O livro que o leitor tem em mãos é um verdadeiro filho, um


filho rebelde. A começar pelo seu tempo de gestação: 5 anos. Desde
os primeiros protestos, percebi que estava vivendo um momento
histórico. Então, todas as noites, quando chegava em casa, escre-
via sobre os acontecimentos que havia presenciado. Acompanhei
cada passo das manifestações, cada notícia, cada comentário, cada
detalhe. Tudo me interessava. Tal como nossos filhos, que nos dão
muito trabalho e nos imputam uma mudança de rotina extraordi-
nária, mas, independente disso, os amamos incondicionalmente, o
mesmo aconteceu com 2013, e, talvez, este seja o melhor significa-
do para mim. Várias horas de lazer perdidas, inclusive, com horas
de sono interrompidas para escrevê-lo. Mas nunca perdi o amor por
esse objeto de pesquisa. Ao contrário, cada parágrafo me dava um
regozijo. Ele saiu do fundo do coração com o cuidado de quem cuida
de um bebê. Não obstante, tal como um filho, ele nunca é gestado
sozinho, pois foi fruto de muitas conversas, debates, na maioria das
vezes acalorados, e de contato com companheiros e até desconhe-
cidos. Cada passo foi discutido em diversas ocasiões desde de julho
de 2013 em diferentes palestras, seminários, alguns artigos e capí-
tulos de livro. Assim, ele foi crescendo e ganhando corpo. Os meus
alunos, durante esses cinco anos, ouviram-me dizer que o estava
preparando. Não foi uma preparação ininterrupta, pois muitas ou-
tras atividades o atravessaram. Fiz outras pesquisas. Publiquei outro
livro nesse caminho com mais de 450 páginas. Nesse ínterim, saí do

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Brasil para realizar meu pós-doutorado com outra investigação. Mas
nunca esquecia dessa pesquisa, cuja importância e singularidade re-
servava um lugar especial em meu íntimo, pois faz parte de um acer-
to e um compromisso com a História desse país. Quando sabia de
análises que absurdamente desmereciam os protestos, os manifes-
tantes, todos que lutaram e sonharam naqueles dias, distorcendo
fatos, ficava indignado e urgia em mim a necessidade de terminá-lo,
publicá-lo, divulgá-lo. Eu pensava em cada um que, entre junho de
2013 e junho de 2014, lutou contra tudo e contra todas as governan-
ças institucionais e sociais, tentando reacender a centelha da chama
popular em uma aurora inesquecivelmente revolucionária, mas que
ficava cada vez mais perigosa, pois a repressão só aumentava.
Por tudo isso, esse livro é uma homenagem aos 23 condenados
políticos no Rio de Janeiro, é para Rafael Braga, é para as centenas
de processados, detidos, machucados de todo o Brasil que sonha-
ram em verdadeiras mudanças, alterações profundas, nesse sistema
de exploração e discriminação.
Mas como disse, uma obra dessa magnitude não seria possí-
vel escrevê-la sozinho, nem teria graça. Assim, agradeço aos meus
orientandos e pesquisadores do OTAL/UFRJ que discutiram e colabo-
raram direta ou indiretamente para as teses que apresento aqui, em
especial a Juan Magalhães, que leu o trabalho com bastante afinco
e ao Flávio Moraes que me acompanha há mais tempo nessa discus-
são. Luciana Simas corrigiu, sugeriu, leu todo o livro e ainda escre-
veu um dos capítulos sobre a criminalização dos movimentos sociais
que o compõem. Não poderia ter feito mais. Esse é o nosso terceiro
filho. Muitíssimo obrigado! Antonia Pires e Cris Oliveira tiveram um
papel fundamental na finalização da obra. Eles são os chargistas que
contribuíram para a melhor exposição das ideias do livro. Na maior
parte das vezes, uma imagem tem um significado mais claro do que
mil palavras. Eles foram maravilhosos nesse quesito. Além do mais,
pensar nessas charges materializou-se em belo trabalho coletivo.
Quando um de nós tínhamos uma ideia, algumas vezes a partir da

2013 - revolta dos governados 9


leitura do próprio livro, sugeríamos uma charge que logo recebia a
contribuição dos demais e, depois do fraterno debate, chegávamos
na conclusão da figura, realizada inteiramente por eles, é claro, pois
não sei nem desenhar as letras de meu nome. Foi um prazer traba-
lhar com vocês e tenham aqui meus sinceros agradecimentos. Anto-
nia, como bolsista do OTAL, me ajudou no acerto de outros detalhes
do livro e muitas ideias. Agradeço também a Katharina Borges pela
excelente diagramação do livro. Valeu! Por fim, agradeço aos fotó-
grafos Rafael Daguerre, Ruy Barros, Cristina Froment, Aylan Correia,
Ellan Lustosa e ao Jornal A Nova Democracia pelas fotos fundamen-
tais sobre 2013. A minha foto pessoal da capa foi uma obra de arte
de André Albuquerque que profissionalmente encontrou um ângulo
meu que eu sequer conhecia. Obrigado a todos. Agradeço à FAPERJ
que financiou essa investigação.
Ademais, o propósito desse livro é deixar para as futuras gera-
ções uma interpretação sobre a maior Revolta Popular da História
brasileira, mantendo viva sua memória, para que sirva de exemplo
no futuro para outras rebeldias que virão e poderão se transformar
em Revolução Social que traga, amor, felicidade, igualdade e liber-
dade para todxs, acabando com as explorações e os preconceitos.
Por fim, como todo filho, ele chegará à adolescência e seguirá
um rumo próprio. Esse será o momento da sua publicação e o seu
significado será interpretado pelos leitores que o classificarão como
“comportadinho” ou “rebelde”, lindo ou feio, de acordo com seus
gostos. Todavia, diferente de pais convencionais, espero ter criado
um filho revolucionário, que não se enquadra em camisas de força
que busque justificar o Estado, o capitalismo e todas suas opres-
sões. Espero que ele seja bem assustador para os opressores e es-
perançoso para os governados. Boa leitura!

Rio, 12 de agosto de 2018 (dia dos pais)


Wallace de Moraes

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ADVERTÊNCIA

Carolina Maria de Jesus (2014: 102) no seu livro: Quarto de des-


pejo – diário de uma favelada, escreveu o seguinte:

“Encontrei com a Dona Lelê (...). Disse-lhe que ando muito nervosa
e tem hora que penso em suicidar. Ela disse-me para eu acalmar. Eu
disse-lhe que tem dia que eu não tenho nada para os meus comer.”

No Brasil, em 2016, 52,7 milhões de pessoas, correspondente a


25% da população nacional, viviam em situação de pobreza.1 Destes,
14,8 milhões viviam em plena miséria.2 Em 2018, aproximadamente
27,7 milhões de brasileiros estavam desempregados,3 sem contar os
subempregados, com trabalho precário e sofrendo todo tipo de as-
sédio. Muitos destes, além do preconceito de classe social, sofriam
nas mãos de racistas, machistas, homofóbicos e opressores em
geral, tal como Maria de Jesus. Simultaneamente, os governantes

1 De acordo com o critério adotado pelo Banco Mundial, que considera pobre quem ganha
menos do que US$ 5,5 por dia nos países em desenvolvimento. Esse valor equivale a
uma renda domiciliar per capita de mais ou menos R$ 350,00 por mês, ao considerar a
conversão pela paridade de poder de compra em agosto de 2018. Fonte: https://agencia-
denoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18825-um-quar-
to-da-populacao-vive-com-menos-de-r-387-por-mes.html acessado em 29 de agosto de
2018.
2 Dados de 2017. Fonte: https://www.valor.com.br/brasil/5446455/pobreza-extrema-au-
menta-11-e-atinge-148-milhoes-de-pessoas acessado em 29 de agosto de 2018.
3 Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/falta-trabalho-para-277-milhoes-
-de-pessoas-diz-ibge.shtml acessado em 29 de agosto de 2018.

2013 - revolta dos governados 11


políticos e econômicos, principalmente banqueiros, enriqueciam às
custas da miséria supracitada.
Se você acha isso tudo normal e não se indigna com todo esse
cenário, tampouco se sensibiliza, esse livro não lhe diz respeito. Se
você acredita que a desigualdade é fruto inevitável do desenvolvi-
mento da sociedade e a defende como benéfica ao progresso, essa
leitura não lhe fará bem. Se você prefere gastar energias vitais com
campanhas eleitorais, acreditando em soluções pelo alto, ao invés
da luta popular, essa pesquisa não contribuirá para as suas con-
vicções. Se você acha absurdo que as pessoas protestem nas ruas
contra todos as hierarquias e os autoritarismos do capitalismo e do
Estado, e contra o sistema que possibilita o suicídio de uma mãe po-
bre, negra e favelada, que não tem o que dar ao seu filho, esse livro
lhe fará mal; não continue a leitura.
Portanto, essa obra deve interessar primeiramente a quem é
guiado pelo amor ao próximo, aquele que está preocupado com a
miséria alheia e de toda uma sociedade cega. Esse livro diz respeito
a quem defende a luta popular, a ação direta e não colabora para
a manutenção desse regime absolutamente falido. Pode ser útil se
você sonha com a construção de uma sociedade livre de explora-
ções, opressões, desigualdades e defende a mais ampla liberdade.
Por isso, deve lhe interessar o resgate da história da maior revolta
popular brasileira a partir de uma perspectiva revolucionária, des-
crevendo suas contribuições. Sabemos que livros assim incomodam
e por consequência sofrem algum tipo de censura – ainda que moral
ou acadêmica, por parte dos intelectuais estadolátricos que acredi-
tam e defendem a dicotomia entre governantes e governados, des-
denhando da capacidade do povo de se autogovernar.
Definitivamente, saiba que esta obra não seguirá qualquer li-
nha de imparcialidade, simplesmente, porque, enquanto houver de-
sigualdades, a suposta neutralidade acadêmica só colaborará para
a manutenção delas. Se você se enquadra nesse escopo, seja bem-
-vindo ao cenário de insurgência, que muitos “doutos”, a serviço de

12 wallace de moraes
todos os governantes, tentam apagar ou desvirtuar, ignorando e
combatendo seus signos.
Noam Chomsky (2017), de forma astuta, descreve os dois pa-
péis que intelectuais4 podem cumprir na sociedade: 1) bajulador
do sistema, dos governos e dos donos do poder, justificando suas
ações e seus crimes; 2) crítico independente das posturas governa-
mentais e defensor da justiça. Os primeiros, nos diz Chomsky, são
respeitados e idolatrados na sociedade pelos mesmos governos e
seus seguidores, enquanto os críticos e independentes são desvalo-
rizados e taxados como orientados por valores e/ou por ideologia.
Estes são os dissidentes.

“O padrão remonta aos mais antigos registros existentes. Foi o ho-


mem acusado de corromper os jovens de Atenas com sua filosofia
quem bebeu a cicuta, assim como os dreyfusianos foram acusados
de ‘corromper almas e, no devido tempo, a sociedade como um
todo’, e sobre os intelectuais orientados por valores da década de
1960 recaiu a pecha de interferência e ‘doutrinação dos jovens’. Nas
escrituras hebraicas há inúmeras figuras que nos padrões modernos
são intelectuais dissidentes, chamados ‘prophetas’ (profetas). Eles
enfureceram violentamente o establishment com suas críticas análi-
ses geopolíticas, suas condenações dos crimes dos poderosos, suas
reivindicações de justiça e sua preocupação com os pobres e sofri-
dos. (...) Os profetas eram tratados com severidade, ao contrário
dos bajuladores da corte, que mais tarde seriam condenados como
falsos profetas. O padrão é compreensível. Seria surpreendente se
fosse de outra forma.”

Assumimos com orgulho o predicado de compor um campo de


intelectuais dissidentes e sabemos que seremos atacados por todos

4 Chomsky (2017) mostra que o termo foi criado com o “Manifesto dos Intelectuais”,em 1898,
para criticar uma ação arbitrária e injusta do governo francês. Portanto, o conceito de
intelectual tem uma origem crítica às posturas oficiais.

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os seguidores de governantes e discriminadores em geral, mas te-
remos que ter coragem para seguir em defesa das mães pretas que
não têm o que dar aos seus filhos. Esse é o nosso combustível, mes-
mo que nos obriguem a beber a cicuta.

14 wallace de moraes
APRESENTAÇÃO

Ao ver no Largo de São Francisco uma vendedora de tapioca


com um carrinho velho, muito diferente do que usara nas semanas
anteriores, todo enfeitado e arrumadinho, fiquei intrigado e puxei
uma conversa para saber o que aconteceu. Ela me contou que a
guarda municipal havia levado o seu carrinho e que agora só conse-
guia manter seu sustento em função da solidariedade de um amigo
que lhe emprestou outra “carroça”. Ela disse ainda que detestava
todos os governos e que preferiria não ser governada por ninguém.
Parecia estar com razão, mas não tinha voz na sociedade. Podería-
mos aqui tratar de diversos outros casos. Como dos caixas de super-
mercados, dos motoristas de ônibus, dos faxineiros dos shoppings,
das camareiras, terceirizados em geral etc. Normalmente, traba-
lham seis dias na semana e recebem salários aviltantes. Pessoas que
moram na cidade maravilhosa, mas não têm nem tempo nem dinhei-
ro para curtir uma praia. A partir de 2013, nem mais ir ao estádio de
futebol torcer pelo seu time podiam, pois os preços ficaram proibi-
tivos, para garantir lucros de empreiteiras que enriqueceram com
falcatruas com o dinheiro público como a Odebrecht e cia. Dinheiro
público que é formado com a colaboração de milhares de vendedo-
res de tapioca.
Nunca vi uma reportagem em um meio de comunicação de
massa que tratasse de episódios como estes, que não são fortuitos.
Antes de 2013, também assisti a diversas famílias serem removidas
de suas casas por tropas militares. Vi crianças chorando, soube que
outras foram assassinadas por “balas perdidas”, quando a polícia

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fez incursões em favelas e periferias, colocando evidentemente a
vida dessas pessoas em risco. Soube ainda que outras sofreram a
amargura do desemprego, desestruturando famílias inteiras. Tudo
isso aconteceu em meio à inflação crescente, diretamente ligada à
especulação imobiliária gritante que dificultava o pagamento de alu-
guel ou a compra da casa própria. Os alvos principais dessas opres-
sões foram pobres, negros, indígenas e mulheres. Em suma, o Brasil
continuava como um dos campeões de desigualdades do mundo,
com forte preconceito social, de raça, gênero, renda.
Esses assuntos foram recorrentes no Rio de Janeiro e produ-
ziram em muitas pessoas o sentimento de repulsa às autoridades.
Todavia, segundo os dados oficiais, parecia que o país vivia em um
paraíso. Simultaneamente, os governantes foram vistos em festas
desperdiçando rios de dinheiro. Todos tinham a sensação de que a
corrupção era extremamente forte no interior do Estado. O então
governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, junto com o prefeito
da capital, Eduardo Paes, apareceram em meio a bebedeiras, humi-
lhando governados e esbanjando soberba com o dinheiro público
e/ou da corrupção.5 O filho do então homem mais rico do país, Eike
Batista, atropelou e matou, mas foi absolvido pelos governantes ju-
rídicos (Justiça).6 Essa era a lógica, sem qualquer constrangimento
público. Talvez, por isso, um dos símbolos mais populares dos pro-

5 Um dos exemplos foi uma comemoração em Paris, que ficou conhecida como a “farra dos
guardanapos”, na qual Cabral e alguns de seus secretários junto com representantes de
empreiteiras aparentemente comemoravam a escolha do Rio de Janeiro para sede das
Olimpíadas e as obras que seriam feitas com dinheiro público. Hoje, praticamente todos
estão presos ou sendo investigados por prática de corrupção. Em maio de 2013, o prefei-
to Eduardo Paes se envolveu em briga em um restaurante, quando foi xingado por um
cantor e reagiu socando-o com a ajuda de seus seguranças. Fonte: https://odia.ig.com.
br/_conteudo/noticia/rio-de-janeiro/2013-05-27/xingado-em-restaurante-eduardo-paes-
-parte-para-a-briga.html
6 Ver: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/02/thor-batista-e-absolvido-em-caso-
-de-morte-de-ciclista-por-atropelamento.html

16 wallace de moraes
testos foi a máscara do V de Vingança7, simbolizando a luta anarquis-
ta contra o Estado e as opressões.8
O aumento do valor das passagens dos transportes públicos,
considerada uma das mais caras do mundo, foi só o estopim em
meio a outros problemas igualmente sérios. Todos percebiam que
esses preços exorbitantes eram fruto de uma articulação entre go-
vernantes políticos (governadores, prefeitos, deputados e vereado-
res) e governantes econômicos (empresários), com base em trocas
de favores no famoso “toma-lá-dá-cá”. Esses acordos garantiram
monopólios privados de reis dos transportes, os quais, em contra-
partida, eram os principais financiadores das campanhas eleitorais
dos candidatos vencedores. A sensação entre os governados era de
indignação e impotência.
O petismo - que, na década de 1980, ajudou a impulsionar a luta
popular -, detinha a governança política federal e era aliado de Ca-
bral, Paes, Eike, Paulo Maluf, Collor de Mello, Jader Barbalho, Re-
nan Calheiros, Michel Temer... a lista é imensa. Em conversas com os
governados, percebíamos que sua ampla maioria tinha nojo/repul-
sa do Congresso Nacional, dos governadores, prefeitos e políticos
em geral. De maneira alguma, se sentiam representados. Era o sinal
mais evidente da plutocracia vigente, chamada erroneamente por
democracia.9 Diante desse quadro, a pergunta que deve ser feita
não é: por que aconteceu 2013? Mas, por que demorou tanto para
acontecer 2013?
Todos os governantes (políticos, econômicos, jurídicos, penais
e socioculturais) e seus partidos políticos em conjunto, inclusive,
com a maioria dos militantes da esquerda oficial, criticam 2013. Não

7 Ver http://noticias.terra.com.br/educacao/historia/manifestantes-adotam-mascara-de-v-
de-vinganca-como-simbolo-de-protestos,3e9ab3cd1336f310VgnVCM5000009ccceb0aR-
CRD.html
8 A história em quadrinhos do V de Vingança foi relançada no Brasil em edição especial em
2012.
9 Sobre o conceito de plutocracia, ver De Moraes (2018).

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gostaram dos protestos. Apresentaremos uma interpretação ab-
solutamente diferente da convencional, amparada em conceitos
como o de Ação Direta, Ajuda Mútua e Propaganda pelo fato. Assim,
o livro que o leitor tem em mãos tratará da maior revolta popular
da história brasileira a partir da perspectiva daquela vendedora de
tapioca, dos camelôs, dos combatentes, enfim, dos que lutaram.
Nossa análise focará nos acontecimentos no Rio de Janeiro,
pois a maior parte da literatura aborda somente São Paulo e fazem
generalizações que não possuem sentido para os protestos na ca-
pital fluminense. Estas análises incorrem em um erro ao dizer que
tudo começou em SP, quando os primeiros atos com a demanda
dos transportes aconteceram em Salvador, em 2003; e em Floria-
nópolis e Vitória, 2004, com triunfo significativo. Mesmo em 2013,
eles começaram em Porto Alegre. Indubitavelmente, São Paulo
teve um papel fundamental na divulgação das manifestações para
todo Brasil, especialmente porque lá vários jornalistas que cobriam
a passeata foram atacados brutalmente pela Polícia Militar (PM),
fazendo com que os oligopólios de comunicação de massa veiculas-
sem a violência policial com indignação (baseada meramente num
corporativismo de classe). Não obstante, o lugar onde os protestos
foram proporcionalmente maiores e mais duradouros foi o Rio Ja-
neiro. Só no dia 20 de junho, mais de 1,5 milhão de pessoas esta-
vam concentradas no Centro da cidade exigindo direitos, em meio a
uma população total do município de 6,4 milhões, sendo 13 milhões,
aproximadamente, para a região metropolitana. Não é pouco signi-
ficativo. É impressionante como diversos teóricos, ao abordarem as
manifestações, esqueceram solenemente da antiga capital do país.
Pretendemos preencher essa lacuna.
O livro está organizado da seguinte maneira. Primeiro, a intro-
dução quando apresentamos dados que mostram a pauta do movi-
mento a partir da ação direta, da ajuda mútua e da propaganda pelo
fato, dentre eles os gráficos que comprovam como 2013 se tornou

18 wallace de moraes
o ano de maior quantidade de greves, desde quando elas são men-
suradas. Também discutimos porque adotamos o título Revolta do
Vinagre nesse livro.
No capítulo 1, apresentamos a metodologia adotada, bem
como os conceitos criados e/ou utilizados para análise da revolta. A
importância desse capítulo reside na exigência teórico-metodológi-
ca de utilização de categorias apropriadas e que permitam decifrar
os signos de 2013, pois se for descuidado, não será possível colabo-
rar para uma interpretação autêntica.
No capítulo 2, fazemos uma discussão bibliográfica sobre o
assunto. Identificamos diferentes autores que escreveram sobre
2013 e, a partir das suas semelhanças metodológicas e teóricas, os
agrupamos em cinco escolas interpretativas, quando três delas as
denominamos por Plutocráticas Neoliberais, sendo uma, Dissimula-
da, outra Desavergonhada, e, por último, a Conservadora Agressiva.
Também identificamos as interpretações da Esquerda Oficial e a dos
setores Revolucionários.
No capítulo 3 apresentamos alguns indícios que desmontam a
tese da espontaneidade pura e simples das manifestações de 2013.
Mostramos que a revolta vinha sendo gestada e almejada há muito
por setores revolucionários, não obstante muitos acontecimentos
tinham sido casuais. Aqui também perscrutamos como 2013 estava
conectado a um novo ciclo de lutas mundiais, mais horizontal e con-
testador da ordem.
Depois de apresentarmos nossos métodos, conceitos, um de-
bate bibliográfico sobre o assunto e antecedentes da revolta bem
como sua relação com outras lutas internacionais, partimos no ca-
pítulo 4 para a descrição do dia-a-dia dos protestos. Esse é o nos-
so capítulo histórico e empírico, baseado fundamentalmente nas
seguintes fontes: nossa observação participante, midiativismo, co-
mentários de participantes dos protestos, assembleias, fóruns de
discussão, debates e notícias dos oligopólios de comunicação de

2013 - revolta dos governados 19


massa.10 Assim, procuramos descrever as principais manifestações
ocorridas entre junho de 2013 e julho de 2014, focando na cidade do
Rio de Janeiro.
No capítulo 5, tratamos das semelhanças entre a Ditadura Mili-
tar-Plutocrática Desavergonhada (1964-1985) e a Ditadura Plutocrá-
tica-Militar Dissimulada (1986-2018). A principal constatação desse
capítulo é que as referidas ditaduras não são para todos, mas tão
somente para as ovelhas desgarradas do sistema, isto é, os setores
revolucionários e contestadores, além dos jovens negros pobres, fa-
velados e periféricos.
No capítulo 6, escrito junto com Luciana Simas, focalizamos nas
formas jurídicas de criminalização dos movimentos sociais no Brasil,
em especial os mais combativos em 2013/14. Debatemos a proibição
do uso de máscaras, bem como o processo de criminalização e apri-
sionamento de diversos militantes da Revolta dos Governados.
No capítulo 7, apresentamos algumas teses sobre os motivos
que fizeram com que o movimento acabasse. Destacamos assim
a ampla violência física e psicológica realizadas pelos governantes
penais, jurídicos e socioculturais, bem como o papel exercido por
think tanks que conseguiram hegemonia nas redes sociais através
de robôs e líderes de segmentos conservadores, divulgando menti-
ras (fake News e fake History). Assim, estupraram a história recente
brasileira e disseminaram ódio, raiva, meias verdades e pânico para
que as pessoas seguissem suas pautas retrógradas, conservadores
e preconceituosas, negando peremptoriamente os signos de 2013.
Em seguida, apresentamos nossa conclusão, retomando al-
guns resultados apresentados na pesquisa, principalmente alguns
legados dos protestos.

10 É importante alertar para o perigo de se utilizar apenas as fontes dos oligopólios de comu-
nicaçãode massa para referendar uma pesquisa, pois elas tendem a passar uma informa-
ção conservadora e em contrário aos interesses dos manifestantes. Portanto, é neces-
sário tomar muito cuidado com esse tipo de fonte e sempre que possível cotejá-la com
outras.

20 wallace de moraes
Por fim, seguem dois apêndices. O primeiro com um poema
para tratar da relação do governo Dilma com os protestos; o segun-
do com uma entrevista que concebemos ainda em 2014 para a Revis-
ta Habitus da UFRJ sobre 2013. Achamos importante divulgá-la, pois
foi realizada ainda no calor dos acontecimentos e muitas das teses
apresentadas naquela oportunidade foram ampliadas e concretiza-
das nesse livro.
Esperamos que o livro colabore para a perspectiva crítica e o
resgate da história do maior movimento popular e insurgente bra-
sileiro, sob uma perspectiva teórica-metodológica revolucionária.
Bom proveito!
INTRODUÇÃO
foto: ruy barros
O período entre junho de 2013 e julho de 2014 foi um dos
mais importantes da biografia política e social do Brasil, trazendo
muitas novidades no cenário das ações coletivas dos governados.
Nesse intervalo de tempo, presenciamos vários acontecimentos
que ratificam essa premissa: 1) os maiores protestos da história
do país (junho de 2013), caracterizados por enfrentamentos entre
manifestantes e policiais em praticamente todas as capitais, em
especial no Rio de Janeiro, de onde fizemos nossa observação
participante; 2) algumas categorias impulsionaram lutas e greves,
a despeito da orientação das direções sindicais em contrário, como
garis, rodoviários, caminhoneiros e professores; 3) também tivemos
os “rolezinhos” de negros, pobres, moradores de favelas e periferias
em templos do consumo como shopping centers para escancarar
o, por vezes, dissimulado apartheid social que os discriminam; 4)
tivemos ainda a luta pela liberdade sexual com as “marchas das
vadias” e a luta LGBTQIA+ no meio desse cenário; 5) em função
do péssimo serviço dos transportes e da forte repressão policial
discriminatória, populares fizeram barricadas, mesmo depois de
junho, em seus bairros, favelas, e quebraram trens, ônibus, barcas e
metrôs; 6) foram criados vários coletivos de segmentos profissionais
importantes para dar apoio nas manifestações como: enfermeiros,
advogados, músicos, projetistas e até hackers, cada um com seu
papel específico; 7) até os jogadores da elite do futebol brasileiro
cruzaram os braços e protestaram antes, durante e depois das
partidas;11 8) podemos incluir as ocupações de espaços que deveriam
ser públicos como câmaras de vereadores, assembleias legislativas,
secretarias de governos e, inclusive, escolas e universidades que
aconteceram depois de 2013, mas com seu espírito; 9) vimos um
novo modelo de manifestações ser gestado, mais horizontal,

11 Em diversas partidas, os jogadores da elite do futebol brasileiro fizeram protestos simbóli-


cos antes, durante e depois das partidas de futebol, cruzando os braços, sentando em
campo, ou mesmo jogando sem propósitos durante um determinado tempo no início da
partida. Suas reivindicações foram principalmente por um calendário com menos jogos.

2013 - revolta dos governados 25


negando as autoridades, seus partidos políticos, sindicatos, seus
palanques, suas campanhas eleitorais ad infinitum e seus carros de
som; 10) testemunhamos o surgimento de indivíduos e coletivos com
máscaras, escudos e roupas pretas com os símbolos do anarquismo
enfrentarem as forças policiais na defesa dos demais manifestantes
e no ataque aos símbolos do capitalismo e do Estado.
Vimos, enfim, os oligopólios de comunicação de massa, a polí-
cia, o Estado, todos os governantes, partidos políticos, sindicatos,
os bancos, os preços dos transportes públicos e os gastos com a
Copa do Mundo, enfim, as autoridades, as hierarquias e a ordem,
serem amplamente contestados/rechaçados. Um ano sui generis.
Deve entrar para a história, mas sobretudo deve ter preservada a
sua memória com uma análise problematizadora. Esse é o nosso ob-
jetivo.
As revoltas insurgentes do inverno-primavera de 2013, cujo
paroxismo aconteceu nas manifestações da semana de 17 a 23 de
junho, já podem ser computadas como as maiores da história do
Brasil. Nada se iguala em número de pessoas nas ruas, ainda que se
considerem os levantes populares e suas diversas revoltas isoladas.
Pari passu, em nenhum momento houve tantos enfrentamentos si-
multâneos com a polícia, praticamente em todas as capitais no país
e em grandes cidades na mesma semana, evidenciando o teor da
Revolta do Vinagre, na qual entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de
2013 ocorreram: 691 protestos; 15 manifestações com mais de 50 mil
pessoas; 16 delas com mais de 10 feridos; 10 usos de armas de fogo;
8 mortes; 837 feridos; 2608 pessoas detidas; 117 jornalistas agredi-
dos ou feridos; 10 jornalistas detidos.12
O estopim dessa Revolta aconteceu em função da luta contra
o aumento das passagens de ônibus e foi impulsionada pelo Movi-
mento Passe Livre.
Naquela semana, em Brasília, capital federal, aproximadamen-
te, 60 mil pessoas indignadas, ocuparam o Congresso Nacional. Em
12 Dados in “Artigo 19” (2013).

26 wallace de moraes
São Paulo, maior polo econômico da República, 100 mil pessoas
ocuparam praças e tentaram quebrar a prefeitura. O mesmo movi-
mento aconteceu em todas as capitais com destaque para as maio-
res: Salvador, Goiânia, Fortaleza, Recife, Curitiba, Belo Horizonte13
e Porto Alegre, onde tudo começou em fevereiro de 2013. A luta
contra os preços dos transportes públicos no país é histórica, acon-
tece desde a primeira república. Na década de 1980, tivemos alguns
quebra-quebras e saques no Rio de Janeiro, tal como em outras ci-
dades por esses motivos. No século XXI, a primeira revolta dessa na-
tureza aconteceu em Salvador, denominada de “revolta do buzu”,
em 2003. Também em 2011, os estudantes, em Florianópolis, prota-
gonizaram grandes lutas pelo passe livre. A Revolta dos Governados
de 2013 assumiu magnitude nacional em junho, em São Paulo, com
a covarde repressão policial sobre os manifestantes, amplamente
divulgada pelas redes sociais, o que obrigou os oligopólios de co-
municação de massa no país a também divulgar, inclusive porque
alguns jornalistas foram gravemente feridos.
Não obstante, foi na cidade do Rio de Janeiro que o movimento
teve a maior proporção e continuidade. Nos atos dos dias, 17, mais
de 400 mil pessoas, e 20 de junho, mais de 1,5 milhão de governa-
dos, cantaram, festejaram, protestaram, lutaram, respectivamente,
em direção à ALERJ (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Ja-
neiro) e à sede da prefeitura da cidade. O dia 17 ficou marcado como
aquele em que o povo “tomou” a ALERJ, quando a multidão enfu-
recida expulsou a polícia e tentou atear fogo na simbólica casa dos
deputados fluminenses. Outrossim, nessa cidade as manifestações
não se limitaram a junho, estenderam-se até julho do ano seguinte
com atos praticamente diários, não mais de massa, é verdade, mas
de categorias, populares e coletivos políticos combativos.

13 Em Belo Horizonte, no dia 22, ocorreu a maior manifestação da história de Minas Gerais,
contando com a presença de mais de duzentas mil pessoas. A polícia reprimiu fortemente
o ato e os manifestantes responderam quebrando os radares, as concessionárias de auto-
móveis, bancos e grandes empresas que estavam no caminho.

2013 - revolta dos governados 27


fonte: jornal a nova democracia

28 wallace de moraes
No estado do Rio de Janeiro, além da capital, todos os municí-
pios de médio, muitos de pequeno porte, e até mesmo em bairros
da periferia da capital fluminense como Bangu, Campo Grande, Bon-
sucesso, e favelas, como Rocinha, Vidigal, Maré, Cidade de Deus e
Santa Marta, tiveram pessoas indo para as ruas protestar.

fonte: rafael daguerre

Como o Brasil é um país continental e as manifestações acon-


teceram simultaneamente em todos os estados da federação, foi
impossível a qualquer observador participante acompanhá-las em
tempo real. Portanto, o que segue são reflexões sobre a Revolta
dos Governados na cidade do Rio de Janeiro, embora os motivos,
o modus operandi, e as características tenham sido muito similares
em todo o país pelo que podemos constatar a partir do midiativis-
mo. Aliás, este foi outro fenômeno produzido pelo Levante, numa
espécie de retroalimentação, quando diversos coletivos passaram a
transmitir ao vivo as manifestações, sempre denunciando as ações
truculentas das forças de repressão. Muitos apoiadores dos protes-
tos, às vezes, por não poderem ir em função de diversos motivos,
ficavam assistindo as manifestações onde estivessem.

2013 - revolta dos governados 29


Antes de continuarmos, cabe uma explicação acerca da esco-
lha do título do livro.14 A primeira questão a se destacar é que não
utilizaremos o conceito de “Jornadas de Junho”, como hegemoni-
camente é tratada a revolta de 2013, por dois motivos. O primeiro
é que o Levante popular no Rio de Janeiro não se resumiu a junho.
Segundo, dada a importância de se classificar um fenômeno social
por um nome adequado, sabendo que a escolha da denominação
será fundamental para a percepção que se terá dela, não podemos
designar protestos com enfrentamento semanais com a polícia sim-
plesmente por jornadas. Nos dicionários15, esse termo possui vários
significados, menos insurgência; ou, quando indica algo similar, tra-
ta-se de fenômeno originalmente ligado à empresa militar. Em resu-
mo, jornadas não significam prontamente uma revolta, insurgência,
Levante, enfrentamento. Assim, não aponta com clareza para o in-
terlocutor do que se trata.
Por isso, usamos o conceito de Revolta, como mais apropria-
do. Vez ou outra também chamamos por Levante ou insurgência
16

que, embora com algumas diferenças etimológicas, apontam para o


mesmo fenômeno de enfrentamento popular.
Como subtítulo também elegemos o nome “Revolta do Vina-
gre”, em alusão ao produto da culinária brasileira que ajudou aos
ativistas em geral, sobretudo aqueles da linha de frente das mani-
festações, na autodefesa com relação ao ataque das forças policiais

14 A importância do nome que se dá à Revolta é de suma importância no cenário da disputa


ideológica que se trava em torno da interpretação da mesma. Graeber (2015), por exem-
plo, descreve como Alexander Hamilton denominou uma das revoltas populares em favor
da expropriação de grandes especuladores logo após a Guerra pela independência dos
EUA como a Rebelião do Uísque, para que os rebeldes parecessem caipiras bêbados “em
vez de, como Terry Bouton demonstrou, cidadãos pedindo maior controle democrático”
(Graeber, 2015: 168.).
15 Ver: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/jornada
16 Ver: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/revolta

30 wallace de moraes
com enorme quantidade de gás lacrimogênio.17 Logo nos primeiros
atos com intensa repressão e uso indiscriminado do gás, divulgaram
pelas redes sociais que a utilização do vinagre aliviava a respira-
ção no momento da infestação pelas armas químicas lançadas pe-
los agentes do Estado.18 Inclusive, algumas pessoas foram detidas
simplesmente por portá-lo em suas mochilas.19 Simultaneamente,
existiu uma grande solidariedade na sua distribuição. O vinagre,
portanto, foi o primeiro item daquilo que depois se chamou de ma-
terial de primeira necessidade do manifestante, o “kit manifesta-
ção”. Para cada arma das forças de repressão, os populares criaram
uma maneira própria para autodefesa, nos termos de Kropotkin,
segundo o qual era necessário nos momentos revolucionários que
a própria população usasse sua excelente criatividade para a ges-
tação do mundo novo. Assim, para não sucumbir diante do gás, os
manifestantes da linha de frente perceberam que o vinagre se cons-
tituía como item fundamental, junto com um pedaço de pano, ou
um lenço, ou a própria camisa. Mais tarde, esse processo evoluiu
para o uso de máscara contra gás, para aqueles com maior poder
financeiro. Com relação ao gás de pimenta, lançado, por vezes, in-
discriminadamente pelos agentes da governança penal, as pessoas
souberam que o leite de magnésio ajudava. Era comum vê-las com
o rosto todo branco em função do uso do leite após as agressões
policiais. Esse item também depois evoluiu para óculos de proteção.

17 A luta contra o uso indiscriminado do gás lacrimogênio contra manifestantes tem sido
uma luta mundial marcada pela troca de informações sobre como resistir ao uso dessa
arma química. Uma boa referencia sobre o assunto é o livro de Anna Feigenbaum (2017)
disponível em https://www.versobooks.com/books/2109-tear-gas. O site Outras Palavras
traz uma boa prévia sobre o assunto. Ver: https://outraspalavras.net/uncategorized/a-ba-
talha-mundial-contra-o-gas-lacrimogenio/
18 Tem uma sátira com o comercial da Fiat realizada por manifestantes de Campinas que
usaram o vinagre como símbolo. Vale ver: https://www.youtube.com/embed/iGai-
5q27pUg Fonte Ferreira (2015).
19 O caso mais conhecido foi o de um jornalista da revista Carta Capital em junho de 2013,
em São Paulo.

2013 - revolta dos governados 31


Para resistir aos ataques das balas de borracha, os manifestantes
começaram a utilizar escudos improvisados, normalmente, como
cartazes com mensagens combativas. Na hora da ofensiva policial,
os cartazes eram transformados em material de defesa. Como a po-
lícia e os oligopólios de comunicação de massa estavam ávidos por
identificar e criminalizar os insurgentes, estes logo perceberam que
era importantíssimo usar máscara ou camisa sobressaliente para ta-
par o rosto, assim evitando ser enquadrado em algum crime de for-
mação de quadrilha e outros do direito penal de 1941 e/ou pelas leis
criadas em 2013/14 exatamente
para conter a Revolta dos Go-
vernados.20 Por tudo isso, os re-
volucionários da linha de frente
tinham que carregar mochilas
nas costas, contendo esses
itens de sobrevivência em ma-
nifestações. Além disso, alguns
também carregavam objetos
de contra-ataque, como: fogos
de artifício, pedras e até coque-
téis molotov caseiros.
Tratou-se, portanto, de
uma rebelião popular auto-or-
ganizada sem uma direção cen-
tralizada que comandasse o
processo. Assim, se formaram
os Black Blocs e outros grupos de ação. A horizontalidade, a descen-
tralização de inúmeros coletivos e indivíduos participantes, as rou-
pas e bandeiras negras, o revival dos símbolos do anarquismo, junto

20 Decreto nº 44.305, de 24 de julho de 2013. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro de


25/07/2013. Governador do Estado. Rio de Janeiro.

32 wallace de moraes
com a ação direta deram a tônica do movimento.21 A descentraliza-
ção da luta não só a possibilitou como foi seu principal combustível.
É mister destacar que faremos um exercício de filosofia, o mais
básico de todos, que nenhum jornalista da grande mídia, nem inte-
lectuais da esquerda oficial ou da direita conservadora fizeram. Tra-
ta-se de perguntar o porquê de parte dos manifestantes quebrarem
vidraças de agências bancárias. Por que não colocaram essa dúvida?
Tariq Ali (2012) define o Occupy Wall Street e a sua relação com o
sistema financeiro da seguinte maneira:

“Os manifestantes do movimento Occupy Wall Street (...) estão


protestando contra um sistema de capital financeiro despótico: um
vampiro infectado pela ganância que sobrevive chupando o sangue
de quem não é rico. Eles estão demonstrando seu desprezo com
relação aos banqueiros, aos especuladores financeiros e seus mer-
cenários da mídia, que continuam insistindo que não há alternativa.
Já que o sistema de Wall Street domina a Europa, lá também há ver-
sões locais desse modelo.”

Essa definição abre vários precedentes para entendermos me-


lhor as manifestações no Brasil. Focaremos nossa pesquisa na inter-
pretação da ação direta e na propaganda pelo fato, realizada por
diversos coletivos conscientes de suas ações e que reivindicavam a
possibilidade da auto-instituição social através do socialismo/anar-
quismo. É absolutamente necessário em nome dos diversos grupos
autonomistas, anarquistas, marxistas não institucionais e populares
insurgentes o resgate da memória do maior movimento popular da
história do Brasil. Destarte, temos que desmistificar as teses petis-
tas, fascistas, da esquerda oficial, dos neoliberais desavergonhados
e valorizar a rebelião dos governados e explorados brasileiros.

21 Algo muito semelhante aconteceu na Europa e na América do Norte. Ver dois excelentes
registros históricos: Ludd (2002) e Duppuis-Déri (2014).

2013 - revolta dos governados 33


Pretendemos apresentar as vozes dos setores populares mais
atuantes da Revolta dos Governados de 2013 no Brasil, por meio da
tradução de suas ações diretas e propagandas pelo fato que deixa-
ram perplexa e atônita, num primeiro momento, todos os governan-
tes, tanto da direita, quanto da esquerda, institucionais.
Normalmente, as sociedades que passam por processos insur-
recionais deixam um gérmen de um novo mundo e é claro que em
disputa com o velho e moribundo. Às vezes, sua ação é tão intensa
e profunda que cria sua antítese. Indubitavelmente, trata-se de um
movimento único, muito rico e que precisa ser teorizado, pormeno-
rizado e registrado nos anais da História.
Podemos adiantar que a Revolta do Vinagre fez com que todos
os governantes dos mais diferentes partidos políticos e colorações
ideológicas do país voltassem atrás no aumento do valor do trans-
porte público. Este fato constitui-se como a grande vitória material
do movimento e imediatamente deve entrar para a História brasi-
leira. Não obstante, o movimento foi muito mais rico do que isso e
deixou outros diversos legados. Vejamos.

A AÇÃO DIRETA E A PROPAGANDA PELO ATO


MOSTRARAM A EXTENSA PAUTA DO MOVIMENTO

De maneira geral, a Revolta dos Governados deverá ficar na


história como aquela que teve como alvos principais os símbolos
do Estado, do capitalismo, da plutocracia representativa, dos oli-
gopólios de comunicação de massa, das hierarquias e das posturas
conservadoras e preconceituosas tipicamente racistas, machistas,
homofóbicas e contra os pobres. Além do mais, perceberemos que
os protestos no Brasil seguiram uma tendência dos novos tempos
iniciada com as lutas da Ação Global dos Povos em 1998, também
conhecida como antiglobalização. Se em Seattle a descentralização
apresentou-se como a ideologia do movimento (Graeber, 2011; Du-

34 wallace de moraes
puis-Déri, 2014, Ludd, 2002; Gordon, 2015), podemos dizer que no
Brasil não foi diferente.
Indubitavelmente, a Revolta pôs em xeque muitos paradigmas
considerados estáveis do cotidiano brasileiro. Apresentamos a se-
guir as principais características da Revolta dos Governados durante
pouco mais de um ano, entre junho de 2013 e julho de 2014, marcada
por centenas de protestos de rua.

1) capacidade de luta popular

O primeiro deles foi a forte expressão de capacidade de luta


dos governados, desmentindo a tese, muito difundida por todos os
governantes e seus intelectuais orgânicos, segundo a qual o brasilei-
ro seria, por natureza, “cordial, pacato e conciliador”, significando,
na prática, um “cidadão” subordinado, explorado, consciente e fe-
liz. Muitos dos jovens que foram às manifestações estavam em fase
de batismo na política, como disse Gohn (2014).
Além disso, os protestos ocuparam praças e principais aveni-
das das grandes cidades. Diversas ocupações foram realizadas em
outros momentos históricos, todavia, no Brasil e, em particular, no
Rio de Janeiro existem os lugares considerados “próprios” e relati-
vamente seguros para os manifestantes. Esses espaços situam-se
na capital carioca entre o Centro e a zona sul, podendo ser alargada
excepcionalmente até a Tijuca, desde que não fique muito próxima
das comunidades pobres. Em qualquer outro espaço da periferia, do
subúrbio e das favelas, as forças repressivas não permitem qualquer
tipo de manifestação de seus habitantes e logo taxam como ações
do “crime organizado” ou a seu mando, fato que justifica a repres-
são, tortura e até extermínio físico desses insurgentes. Portanto,
protestar fora dos limites “permitidos” pelos governantes consti-
tui-se como grande risco de prisão, associação ao tráfico de drogas,
tortura, morte. Em junho de 2013, os governados quebraram essa
perspectiva e protestaram até nos lugares mais periféricos. Embo-

2013 - revolta dos governados 35


ra, em função de um dos protestos em Bonsucesso que resultou na
morte de um policial, a polícia tenha exterminado 5 pessoas na fave-
la da Maré no dia seguinte.

2) novas formas de protestar

Ganhou força uma nova forma de protestar no Brasil, uma


nova estética nas manifestações, caracterizada tanto pela ausên-
cia de palanque, quanto pela negação dos carros de som, tipo trio
elétrico, nos quais os “comandantes” procuravam ditar as palavras
de ordem para a “base”. A nova forma de protestos negou a exis-
tência dos “líderes”, as pessoas levavam seus cartazes e cantavam
coletivamente suas palavras de ordem, embaladas por baterias e
palmas dos presentes. Foram criadas várias oficinas de cartazes/fai-
xas que foram carregadas coletiva e individualmente. Além disso,
a participação foi amplamente diversificada, desde os trabalhado-
res comuns de todos os setores até skatistas. Foi muito comum ver
moradores de rua participando ativamente. Um deles, Rafael Braga,
encontrava-se preso até junho de 2018.22
Como parte das disputas entre a gestação do mundo novo,
mais horizontal, contra as formas hierárquicas e tradicionais de rei-

22 Em junho de 2018, Rafael Braga estava em prisão domiciliar para tratamento de tubercu-
lose que contraiu no sistema prisional.

36 WALLACE DE MORAES
vindicação, aquela entrou em conflito com as tendências de alguns
partidos políticos oficiais, que, com seus aparatos burocráticos, ten-
taram dirigir a revolta com seus carros de som, buscando colocar
a sua palavra de ordem, normalmente, com viés eleitoreiro, como
sendo supostamente a de todos.
Além do mais, as manifestações passaram a ser mais violentas
e contestadoras da ordem, diferente das anteriores controladas pe-
los partidos da esquerda oficial, que não almejavam a destruição do
sistema como um todo, mas substituir o governante da hora para,
ocupando os cargos, fazer mudanças pontuais na gestão do Estado
e do capitalismo.

3) formação de coletivos e ampla solidariedade nos


protestos

É importante destacar a ampla solidariedade do movimento


com a participação ativa de diversos segmentos profissionais. Os
governados, espontaneamente, através de coletivos já existentes e/
ou com outros criados especificamente para dar amparo aos mani-
festantes, estabeleceram uma grande rede de solidariedade/difusão
das manifestações e denúncia das arbitrariedades policiais. Assim,
criaram-se diversas associações coletivas como: a) os advogados
ativistas, que faziam plantão nas delegacias com vistas a garantir
o respeito aos detidos e, por consequência, a liberdade deles; b) os
enfermeiros, estudantes e profissionais da saúde que acompanha-
ram as manifestações vestidos de branco e com seu material de pri-
meiros socorros para ajudar aos feridos; c) o midiativismo23 e jornais
populares como o “A Nova Democracia”, que fizeram um enorme
contraponto à censura dos oligopólios de comunicação de massa,
divulgando a realidade das manifestações sem cortes; d) os hackers
que conseguiram postar mensagens dos insurgentes nas grandes

23 Foram formados diversos coletivos midiativistas: O Mídia Ninja, o Mariachi, O Badernista,


Coletivo Carranca, Mídia 1508 foram alguns deles.

2013 - revolta dos governados 37


mídias e ainda fizeram cair páginas contra o movimento, como a
da Rede Globo e outras24; e) grupos de músicos/bateristas levaram
seus instrumentos para animar as canções;25 f) projetistas fizeram
projeções de palavras de ordem e de imagem em favor do movimen-
to em prédios públicos26; g) foram criados comitês de solidariedade
internacional em Barcelona, Londres, Nova York, Berlim, Atenas,
Istambul e outros.27 Por fim, todos se transformaram em ativistas
das redes sociais. Uma grande luta ideológica foi travada e a grande
vitória foi estabelecer um momento no qual o Brasil inteiro discutiu
política por uma maneira ampla e contestadora.
A solidariedade também se expressou quando alguém era deti-
do pela polícia. Nesse momento, vári@s companheir@s, não existe
palavra melhor, se dirigiam às delegacias para demandar pela liber-
dade dos detidos e garantir que eles saíssem ilesos. Passeatas foram
organizadas para exigir a liberdade dos presos políticos. Nas audiên-
cias desses incriminados, vários coletivos puxaram atos em frente
ao Fórum. A solidariedade à Rafael Braga foi exemplar e extrapolou
o Rio de Janeiro. Por ele, muitas pessoas trocaram seu perfil do Fa-
cebook e começaram suas intervenções públicas com “primeira-
mente, liberdade para Rafael Braga”. O mesmo aconteceu com
relação aos 23 processados e perseguidos políticos pela “ilibada”
governança plutocrática de Sérgio Cabral.28 Uma das canções ento-
adas pelos manifestantes era: “pisa ligeiro, quem não pode com a
formiga, não atiça o formigueiro”.

24 Os hackers, por exemplo, em uma das atitudes mais ousadas divulgaram os endereços de
todos os policiais do estado do Rio de Janeiro.
25 Em São Paulo, Locatelli (2013) diz que o motor dos protestos foi a “Fanfarra do Mal”.
26 O coletivo Projetação foi um deles.
27 Ao menos quatro manifestações em apoio aos protestos realizados no Brasil, contra o
aumento da passagem de ônibus, foram organizadas por meio do Facebook em cida-
des europeias: Paris (França), Berlim (Alemanha), Coimbra (Portugal) e Dublin (Irlanda).
http://noticias.r7.com/…/manifestacoes-na-franca-e-na-alema…
28 Ficou comprovado no processo judicial que, toda vez que o valor da passagem de ônibus
no Rio de Janeiro sofria aumento, o governador Sérgio Cabral recebia propina.

38 wallace de moraes
foto de fernando frazão

4) contra os símbolos do capitalismo

Depois dos símbolos do Estado, os bancos - maiores beneficia-


dos no capitalismo financeiro contemporâneo29 e vistos como ver-
dadeiros usurpadores oficiais por parte dos governados - foram os
alvos privilegiados de todas as manifestações. Segundo reportagem
baseada em dados fornecidos pelo Banco Central,30 o Brasil tem os
juros bancários mais altos do mundo e quem paga a conta mais cara
são os mais pobres. Em 2018, 18,2 milhões de pessoas estavam com
saldo devedor no rotativo do cartão de crédito. Destes, quase 30%,
que não conseguem pagar o mínimo da fatura do cartão, estão no
programa Bolsa Família. “Eles recebem o benefício porque têm ren-
da familiar mensal menor que R$ 170 por pessoa. Apesar disso, têm
que arcar com os juros de 397% ao ano no chamado rotativo não
regular (quando o cliente não paga nem o mínimo). Uma taxa como
essa torna a dívida impagável. Uma família que não consiga quitar
uma fatura de R$ 500, por exemplo, tem em um ano uma dívida de
R$ 2.486. Pelo levantamento, 77,9% das pessoas que estão no pior
rotativo têm até o ensino médio.” Esse é o quadro do endividamen-

29 Ver Chesnais (2005).


30 Fonte: O Globo de 01 de julho de 2018, pag. 27 e newsletter do jornal do dia anterior.

2013 - revolta dos governados 39


to brasileiro com base em juros arbitrários absurdos, tendo como
alvos principais os mais pobres, mais necessitados. Simultaneamen-
te, em 2013, os seis maiores bancos apresentaram lucro líquido total
de R$ 56,7 bilhões.31 Talvez, como reflexo disso, no dia 20 de junho,
no Rio de Janeiro, por exemplo, todos os bancos da Avenida Pres.
Vargas e alguns outros de ruas adjacentes do Centro foram “desfi-
gurados” por paus e pedras, enquanto todas as escolas, bibliotecas
e hospitais foram preservados. O “camelódromo”, ou mercado po-
pular, situado no quarteirão da rua Uruguaiana com a Presidente
Vargas, ficou intacto, sem nenhum arranhão. Depois dos protestos
quase diários no Rio de Janeiro entre junho e outubro, praticamente
todas as agências bancárias do Centro da cidade, bairro com a maior
concentração de bancos do estado, e das Laranjeiras, onde residia
o governador, tiveram suas fachadas/vidraças destruídas, como um
ato simbólico bastante significativo.

5) contra os oligopólios de comunicação de massa e sua


postura antipopular

Além dos bancos e das instituições estatais, tudo que repre-


sentava os oligopólios de comunicação de massa no Brasil também
foi questionado, inclusive seus jornalistas. Foram vários carros das
emissoras queimados, como sedes de algumas delas, alvos prefe-
renciais de ataque por todo o país. Os repórteres identificados nos
protestos foram prontamente expulsos. Os governados indignados
cansaram de ser manipulados pelos governantes socioculturais e
seus oligopólios de comunicação de massa.32 Uma das principais pa-

31 Fonte: https://www.dieese.org.br/desempenhodosbancos/2013/desempenhoDosBancos-
2013.pdf
32 Vejam a horrorosa cobertura da Globo sobre a prisão de um professor, sempre justifi-
cando as atitudes policiais e tentando induzir ao expectador que ele poderia ser uma pes-
soa perigosa. Uma cobertura da pior qualidade. É esse o papel dos oligopólios de comu-
nicação de massa no Brasil.http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/videos/t/
todos-os-videos/v/policia-faz-detencoes-em-manifestacao-no-centro-do-rio/3412291/

40 wallace de moraes
lavras de ordem entoadas nos pro-
testos era: “A verdade é dura, a Rede
Globo apoiou a ditadura”.33

6) contra as multinacionais

As lojas McDonald’s também sim-


bolizaram alvos preferidos por repre-
sentarem o grande capital. Além delas,
concessionárias de carros de luxo, de
telefonia e, particularmente, no Rio de Janeiro, empresas do grupo
X34 do até então homem mais rico do país, Eike Batista, sofreram
ataques de paus e pedras dos manifestantes. Os populares se revol-
taram contra a exploração e as extremas desigualdades estimuladas
e mantidas pelos donos do capital (governantes econômicos).
É importante destacar que o país figura como um dos mais
desiguais do mundo, fruto de intensa exploração social garantida
por trabalho precário, baixos salários, poucos direitos e falcatruas
com dinheiro público, protagonizado por políticos, burocratas e em-
presários de diversos ramos. Operações como a Lava-jato e outras
mostraram essas agruras e como os revoltosos estavam com razão.

33 A Rede Globo é a maior empresa de comunicação de massa do país e tem marcado em


sua história o apoio incondicional ao regime militar, instalado no Brasil em 1964.
34 O império X de Eike Batista ruiu exatamente no ano de 2013. Ver: http://g1.globo.com/
economia/ascensao-e-queda-de-eike-batista/platb/

2013 - REVOLTA DOS GOVERNADOS 41


7) contra a arbitrariedade e a corrupção de policiais

Um dos principais alvos e motivos dos protestos foi a atuação


das forças de repressão no país. Houve enfrentamento com a polícia
em praticamente todas as capitais, mostrando a disposição daque-
les que ocupavam a linha de frente e a ausência de qualquer acordo
ou simpatia entre manifestantes e governantes penais. Como se diz
em algumas favelas do Rio de Janeiro: “não tem arrego”. Existe in-
dubitavelmente uma percepção popular de que a instituição policial
é corrupta e comete grandes abusos de autoridade, principalmente
nos lugares mais pobres.
As manifestações foram contra todos os assassinatos de “Ama-
rildos”35 das periferias e favelas do país. Foram contra todas as
chacinas: de Vigário Geral, Candelária, Vidigal, Rocinha, Alemão, Bai-
xada, Maré e outras várias. No Brasil, os índices de homicídios são
altíssimos, superando amiúde os de países em guerra declarada.36 A
polícia truculenta é a principal responsável. Além do mais, é comum
ver policiais com patrimônios absolutamente incompatíveis com os
seus ganhos oficiais. Ademais, nos próprios protestos, manifestan-
tes foram detidos simplesmente por portarem máscaras, vinagre e
instrumentos musicais. Outrossim, ao exigirem o fim da polícia, os
insurgentes faziam uma das principais políticas antirracista no Bra-
sil. Uma das palavras de ordem dos protestos pedia o fim da Polícia
Militar e consequentemente de sua governança penal: “Não aca-
bou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”. Também se
cantou: “Sem hipocrisia, essa polícia mata pobre todo dia”.

35 Amarildo de Souza era ajudante de pedreiro e morador da Rocinha, maior favela da


América Latina. Ele foi sequestrado, torturado e assassinado por policiais dentro de uma
Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na referida comunidade. A busca por saber “Onde
estava Amarildo?” ganhou contornos gigantescos nas manifestações.
36 Os dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP/SSP-RJ) revelam que, entre 2001
e 2011, mais de 10 mil pessoas foram mortas em confronto com a polícia no Estado do Rio
de Janeiro em casos registrados como ‘autos de resistência’.

42 wallace de moraes
fonte: ruy barros

Rocinha e Vidigal, que eram antigas rivais, protestaram juntas em 2013 contra a
violência policial. foto: chistophe simon afp

2013 - revolta dos governados 43


fonte: ruy barros

fonte: rafael daguerre

44 wallace de moraes
8) expressou a crise da representação política e conse-
quentemente da plutocracia vigente

A crítica aos partidos políticos eleitorais evidenciou a crise da


Ditadura Plutocrática-Militar Dissimulada, chamada por todos os
governantes de democracia representativa. Os manifestantes tam-
bém gritaram “sem partido”, e “não nos representa”. Este foi mais
um sinal do desgaste de todos os partidos políticos, mas para além
disso, os governados ficaram cansados de eleger um candidato e
ver que ele representa nada mais que seu interesse pessoal durante
o mandato. Práticas que autores da ciência política denominaram
de clientelismo, coronelismo, patrimonialismo e malversação de
dinheiro público, dito popularmente como “roubalheira generaliza-
da”, fez com que os eleitores perdessem quase que totalmente a
crença nos partidos e nas eleições. Indubitavelmente, existe uma
percepção popular, não sem motivos, de que o mundo político insti-
tucional está permeado por corrupção, nepotismo e acordos espú-
rios. Recentemente, a população elegeu um operário e depois uma
mulher para o maior cargo político do Brasil, pois além do simbolis-
mo, se apresentavam como oposição ao sistema. A despeito dessas
simbologias, o país continuou como paraíso dos banqueiros.
Como expressão do processo supracitado, o Congresso Nacio-
nal, a Assembleia Legislativa do Rio (ALERJ), diversas prefeituras e
prédios estatais em todo o país foram atacados pelos manifestan-
tes. A mensagem passada por esses ataques era muito óbvia; os
governados queriam dizer em alto e bom som: “essas instituições
não nos representam”. Duas das principais canções propaladas so-
bretudo, pelos setores revolucionários era: a) “Eleição é farsa, não
muda nada não, o povo organizado vai fazer revolução”; b) “Fora
Cabral, o Estado e o capital” ; c) “Rio de Janeiro, sensacional, tomou
a ALERJ com pedra e pau”.

2013 - revolta dos governados 45


9) crítica a má prestação dos serviços e a precarização do
público.

Vários postos de pedágio nas estradas pelo país, que repre-


sentam fielmente a privatização ditada pelo neoliberalismo, foram
totais ou parcialmente destruídos. O Brasil tem uma das maiores
cargas tributárias do mundo, no entanto, mesmo assim, as pesso-
as precisam pagar pedágios com preços absurdos para circular. As
câmeras que multam os veículos, conhecidas popularmente como
“pardais”, constituem uma grande “indústria da multa” e também
foram atacadas em diversas manifestações. No dia 20 de junho de
2013, todos os pardais do caminho dos ativistas foram destruídos
sob aplausos da multidão.

10) crítica aos absurdos preços cobrados pelos transpor-


tes públicos.

O estopim para todos esses protestos foi o aumento dos valo-


res cobrados pelas passagens de ônibus no país, inexplicavelmente,
de forma sincrônica. Só no Rio de Janeiro desde a criação do Plano
Real, em 1994, a passagem tinha aumentado 1000%, enquanto a in-
flação oficial do período não passou de 350%. Explicaremos.
Em 2013, o preço básico do transporte público no Rio de Janei-
ro antes dos protestos era de R$ 2,75. Com o aumento para R$ 2,95,
os governados foram para as praças protestar. Depois de mais de
1,5 milhão de pessoas nas ruas, o preço voltou para o valor anterior.
Todavia, no início do ano de 2014, o prefeito da cidade autorizou o
aumento para R$ 3,00. Assim, a cifra fechou exatos 1000% de aumen-
to desde a criação da URV (Unidade Real de Valor), que estabeleceu
os princípios para o Plano Real, pois o preço da passagem de ônibus
naquele momento era de R$ 0,30.
Em janeiro de 2015, o valor da passagem passou para R$ 3,40,
quando deveria passar para R$ 3,20. O prefeito argumentou que o

46 wallace de moraes
aumento para R$ 3,40 seria para que as empresas colocassem toda
a frota com ar condicionado. Em julho de 2017 já custava R$ 3,80
e apenas 42% da frota possuía refrigeração. Então, o Ministério Pú-
blico exigiu e ganhou a redução de R$ 0,20 em setembro de 2017
dos altos valores das passagens de ônibus no Rio de Janeiro. Ainda
assim, o preço do transporte público, de péssima qualidade, sobre-
tudo para os bairros habitados por pessoas com baixo poder aqui-
sitivo, é um dos mais caros do mundo.37 Uma das canções era: “Se
a passagem... não abaixar, o Rio, o Rio, o Rio vai parar, olê, olê, olê,
olá... olê, olê, olê, olá”. “Ô motorista, ô cobrador, me diz aí se seu
salário aumentou”.

37 “Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2010, 37 milhões


de brasileiros não têm dinheiro para pagar a passagem de ônibus regularmente” (Loca-
telli, 2013).

2013 - REVOLTA DOS GOVERNADOS 47


11) CONTRA OS GASTOS EXORBITANTES COM ESTÁDIOS
DE FUTEBOL PARA A COPA DO MUNDO E PELA SUA
DEMOCRATIZAÇÃO

Uma das palavras de ordem mais emblemática dos protestos


era: “Não vai ter Copa!”. Os governados ficaram absolutamente in-
dignados com os gastos exorbitantes com estádios de futebol, em
função da preparação para a Copa do Mundo, enquanto faltava o
básico: nos hospitais, nas escolas, saneamento básico, empregos,
ruas pavimentadas etc. Ademais, como forma de afronta à inte-
ligência dos governados, os estádios de futebol, reformados com
dinheiro público, foram concedidos à administração da iniciativa
privada38 (privatizados), que passaram a cobrar preços exorbitantes
com vistas ao lucro. Essa medida afastou o povo pobre de uma de
suas maiores paixões. Por consequência, foi criada a Frente Nacio-
nal dos Torcedores (FNT), cuja demanda principal era pela redução
dos preços dos ingressos, tendo atuação importante nos protestos,
principalmente nos embates com as forças policiais e com suas ba-
terias, dando ritmo às manifestações. Uma de suas canções era “Sai
do chão, sai do chão, o Maraca é do povão”.

38 No caso do Maracanã, a concessão foi para a Odebrecht, uma das empresas amplamente
denunciadas em casos de corrupção com governantes políticos.

48 wallace de moraes
Foi surpreendente ver o povo apaixonado por futebol não sair
às ruas para comemorar um título da seleção brasileira, como o da
Copa das Confederações, em 2013.39 Era muito comum ver cartazes
de manifestantes pedindo hospitais e escolas com o “padrão FIFA”,
em alusão às exigências dessa instituição para um determinado mo-
delo de construção nos campos de futebol. Outra canção era: “Da
copa, Da copa, Da copa eu abro mão, eu quero é dinheiro pra saúde
e educação”.

12) contra as remoções.

Com a proximidade dos grandes eventos, a privatização dos


complexos esportivos, a construção de estradas para os estrangei-
ros circularem em direção aos aeroportos e a especulação imobiliária
realizadas pelas governanças políticas em conluio com governantes
econômicos resultaram em várias famílias expropriadas de suas ca-
sas, através de remoções forçadas no Rio de Janeiro. Os casos da
Aldeia Maracanã e da Vila Autódromo foram os mais emblemáticos.
No caso da Aldeia, a desocupação forçada e truculenta realizada em
22/03/2013 serviu como um dos ensaios daquilo que seria a grande
revolta em junho do mesmo ano. Muitos militantes autônomos esti-

39 Somente os ricos, com condições financeiras para pagar o caríssimo ingresso, comemo-
raram no estádio do Maracanã.

2013 - revolta dos governados 49


veram presentes para fazer a defesa da Aldeia e enfrentar as forças
de repressão. Em junho, os indígenas voltaram a ocupar o prédio.
Ele foi novamente desocupado de forma violenta no dia 15/12/2013,
com 20 pessoas detidas pela polícia.
Este foi um processo de grande custo social, que mobilizou
muitas pessoas para os protestos.

13) contra as upps (unidades de polícia pacificadora).

No Rio de Janeiro, para manter a população pobre subordinada


e supostamente acabar com o tráfico de drogas e com os homens
armados nas favelas foram criadas UPPs, que muitas vezes oprimi-
ram essas comunidades. São notórios os casos de prisões arbitrárias
de seus moradores e de tortura até a morte, como os de Amarildo e
“DG”, só para citar os mais conhecidos de 2013/14.40 Em uma das
UPPs, policiais estupraram mulheres que tiveram a coragem de de-
nunciar. O assassinato de Claudia de Madureira, realizado por PMs,

40 Amarildo e Douglas Silva, DG, eram moradores de favela no Rio de Janeiro. O primeiro,
como mencionado acima, era ajudante de pedreiro; o segundo, era participante de um
programa de auditório na Rede Globo de televisão. Ambos foram assassinados por po-
liciais.

50 WALLACE DE MORAES
ainda não foi resolvido.41 É importante ressaltar que o tráfico de dro-
gas permaneceu, mesmo nas comunidades com UPPs. Por esses e
outros motivos, muitos dos moradores das favelas e periferias parti-
ciparam dos protestos intensamente. Uma das palavras de ordem
dos protestos pedia pela vida do Amarildo: “Cabral bandido, cadê o
Amarildo?”

Manifestação no Complexo da Maré em 2013 contra a violência policial.


Foto: Tomaz Silva.

41 Ver: http://anovademocracia.com.br/noticias/8441-rj-barbaro-assassinato-de-claudia-com-
pleta-quatro-anos-sem-punicao

2013 - REVOLTA DOS GOVERNADOS 51


14) defesa da horizontalidade

A juventude mostrou-se embebida por uma nova forma de vida


com pouca tolerância para hierarquias e autoritarismos. Por isso,
os carros de som nas passeatas não eram bem-vindos. Os políticos
oportunistas fazendo campanha eleitoral também foram rechaça-
dos. Os estudantes almejavam estruturas horizontais que mantives-
sem a igualdade do início ao fim. Foi sem dúvida um avanço e uma
vitória do anarquismo: o amor pelas formas de organizações hori-
zontais e descentralizadas.

15) contra o racismo, o machismo e a homofobia

Justamente em 2013, o deputado Marcus Feliciano tentou apro-


var no Congresso Nacional uma lei que discriminava homossexuais.
Diversos setores sociais se rebelaram contra tal medida que não foi
aprovada. A comunidade LGBTQIA+ participou ativamente das pas-
seatas e em uma específica contra a vinda do Papa Francisco. A luta
feminista esteve fortemente representada com a “Marcha das Va-
dias” e também no interior das passeatas.42 Os indígenas da Aldeia
Maracanã protagonizaram grande resistência contra as remoções. A
morte do Amarildo foi vista pelo movimento negro como mais uma
atitude racista e teve amplo rechaço por diferentes setores anti-ra-
cistas. A presença de negros nas linhas de frente foi facilmente per-

42 Foi em 2013 que o movimento #PrimeiroAssédio começou e ganhou força, antes mesmo
do #METOO dos EUA. Aqui a ONG Olga criou uma campanha contra os assédios às mulhe-
res logo após uma menina de 12 anos ter sido alvo de comentários de cunho sexual depois
de apresentar-se em um programa de culinária. Ver: https://thinkolga.com/2018/01/31/pri-
meiro-assedio/. Em 2015, as mulheres desencadearam uma enorme campanha vitoriosa
pela saída do deputado Eduardo Cunha que dificultava o aborto após um estupro. Em
2018, uma anarquista baiana criou o movimento #ELENÃO contra a campanha do Bol-
sonaro à presidência da República e foi um sucesso em todo o país. As mulheres têm
assumido o protagonismo na política e 2013 também foi um marco importante para tal
empreitada.

52 wallace de moraes
cebida, sobretudo nos Black Blocs. Uma das canções entoadas pelas
pautas identitárias foi: “se cuida seu machista, a América Latina vai
ser toda feminista”; “lugar de mulher é onde ela quiser”; “Sem hipo-
crisia, essa polícia mata preto todo dia”; “Cadê o Amarildo?”.

Segue abaixo uma nota de um dos coletivos de 2013 sobre o


papel da mulher na luta. Vale a leitura desse documento histórico.43

DA LINHA DE FRENTE NINGUÉM ME TIRA!

8 de Março – Dia Internacional


da Mulher Trabalhadora

O capitalismo apenas concedeu às mulheres traba-


lhadoras a dupla-exploração e a superexploração.
Ao passo que aumenta a participação das mulheres
no mercado, cresce a informalidade/precarização
entre elas. Essa tendência se intensifica em fun-
ção da Copa, com as remoções e a especulação imo-
biliária, o deslocamento dos postos de trabalho, a
instabilidade no emprego e o arrocho salarial, que
empurram ainda mais a mulher trabalhadora para
a informalidade. As mulheres constituem grande
parte do proletariado marginal e sendo parte da
classe trabalhadora e oprimida, se indigna e luta.

Desde o início das jornadas de junho em 2013 é ní-


tida a predominância da estudantada e proleta-
riado marginal nas manifestações; logo, também é
notória a participação das mulheres nos atos mais
combativos e na linha de frente destes, atuando de
forma intensa, contínua e crescente nas ruas, as-
sumindo tarefas cada vez mais ousadas e ofensivas.

43 Ele foi publicado no dia 7 de março de 2014. Fonte: http://oposicaopelabase.blogspot.com

2013 - revolta dos governados 53


Nas manifestações é evidente que os agentes de re-
pressão do Estado têm como alvo tático as mulhe-
res. Ademais da repressão violenta e generalizada
nos atos, as detenções das manifestantes, via-de-
-regra, são acompanhadas de assédio e abuso sexual,
além de depreciação misógina. O Estado, reconhe-
cendo nas mulheres uma ameaça ao sistema de ex-
ploração-opressão, tratou de recrutar um enorme
contingente de policiais femininas, neo-capitãs do
mato, para atuarem objetivamente contra as mu-
lheres do povo.

Os inimigos de classe e seu “feminismo” burguês,


apoiando-se e apoiados pela mídia (burguesa) de
massa, ansiosos por enquadrar as mulheres num
ideal de feminilidade, assustam-se ao ver cor-
pos femininos reincorporando a agressividade e
combatividade que a sistemática domesticação
burguesa (e patriarcal) tentou aplacar.

No campo, historicamente, as mulheres desempe-


nharam papéis decisivos na luta pela terra. São
incontáveis as lideranças camponesas mulheres
atuantes e alarmante é o número destas assassinadas
pelo Estado e pelo latifúndio/agronegócio. Também,
nota-se que na medida em que os diferentes povos
indígenas reconhecem a importância da mulher não
apenas na organização interna de suas comunida-
des, mas na formulação de estratégias de luta por
direitos e território, avançam mais consistente-
mente em direção aos seus objetivos. Ao longo dos
últimos anos, as mulheres indígenas vêm se des-
tacando como referência política inclusive para
os não-índios. A cultura da subserviência sexual

54 wallace de moraes
e de violência doméstica/familiar também servem
como dispositivos de amansamento da mulher pro-
letária, consequentemente são ferramentas de do-
minação de classe. Portanto, é preciso apontar que
o opressor machista age indiretamente em favor
dos exploradores. Neste sentido, é urgente comba-
ter o machismo que se manifesta também no seio da
classe trabalhadora. Ele age para nos dividir. Não
se pode reivindicar o classismo sem incorporar a
luta pela emancipação integral da mulher (econô-
mica, política, sexual, cultural e etc.). O povo só
se liberta quando todas suas frações e grupos se
libertam.

Nos primeiros grandes atos de 2013, parte dos ma-


nifestantes, tomados por sentimentos paternalis-
tas, clamavam às combatentes que recuassem. Mas,
com a progressão dos atos e com a intransigên-
cia destas mulheres, que não admitem serem me-
ras espectadoras de suas próprias batalhas, coube
aos homens dizer “Avante, lutadoras!” e marchar
ao lado delas, confiantes, ombro-a-ombro, rumo
à emancipação integral do proletariado e de suas
frações marginais.

“Da linha de frente ninguém me tira” é a respos-


ta das mulheres combativas ao Estado e ao ma-
chismo. Não basta apenas mobilizar as mulheres
para que tomem as ruas, mas exigir dos homens
que as reconheçam como companheiras de luta e
heroínas do povo, que as respeitem e que se so-
lidarizem a elas, em toda parte e sempre. Homens
e mulheres trabalhadoras: somos uma só classe!

2013 - revolta dos governados 55


Avante mulheres Black Blocs!

Pela construção de comitês de autodefesa das


mulheres!

Combater o machismo é tarefa revolucionária!

NÃO VAI TER COPA!!!

ASSINAM ESSE MANIFESTO:

Fórum de Oposições pela Base – FOB

Rede Estudantil Classista e Combativa – RECC

Aliança Classista Sindical – ACS

Oposição de Resistência Classista – ORC

Coletivo Aurora

Liga Sindical Operária e Camponesa – LSOC”

16) aumento das greves e dos enfrentamentos

Por fim, é importante ressaltar que 2013 significou um aumento


exuberante do número de movimentos paredistas dos trabalhado-
res. Os protestos serviram como estimulante para todo tipo de luta
e a greve como instrumento fundamental de reivindicação não fugiu
à regra. Vejamos no gráfico a seguir essa comprovação, indicando
que não se tratou apenas de um ascenso de lutas nas ruas, mas que
reverberaram também para as fábricas e os locais de trabalho, com
clara contestação das governanças econômicas. O ano de 2013 ex-
pressou significou a maior quantidade de greves desde quando pas-
saram a ser pesquisadas/contabilizadas pelo Dieese, em 1984.

56 wallace de moraes
2013 -
revolta dos governados
Fonte: Dieese, disponível em: https://www.dieese.org.br/balancodasgreves/2013/estPesq79balancogreves2013.pdf

57
Vejamos na tabela abaixo o crescimento de mais de 100% da
quantidade de greves de 2012 para 2013.

Além do aumento da quantidade de greves no país, muitas


delas assumiram um caráter diferenciado, por exemplo, os garis,
os rodoviários, os caminhoneiros e os trabalhadores do Complexo
Petroquímico (COMPERJ)44, no Rio de Janeiro, mas também em al-
gumas outras cidades do país, com suas mobilizações se sobrepu-
seram às direções sindicais pelegas, aos governos e aos oligopólios
de comunicação de massa que teimaram em tentar desqualificá-las.
Os garis entraram em greve em pleno carnaval. A direção do seu
sindicato fez um acordo com o governo para evitar a greve, todavia
os trabalhadores a desrespeitaram e mantiveram a paralisação. O
governo cortou o ponto dos trabalhadores e colocou a polícia e a
guarda municipal para vigiá-los em seus trabalhos. Os governantes
44 Sobre a greve do COMPERJ vale ver site do FOB com muitas informações a respeito:
http://oposicaopelabase.blogspot.com

58 wallace de moraes
socioculturais criticaram veementemente a greve, mas os trabalha-
dores mantiveram o movimento e ganharam a solidariedade de di-
versos setores mais combativos na sociedade. Por fim, a categoria
conseguiu arrancar um aumento substantivo dos salários perante
o governo, embora ainda muito abaixo diante da exploração que
sofrem. Não obstante, sem dúvida foi uma vitória dos trabalhadores
que tiveram que enfrentar o próprio sindicato, o governo e a grande
mídia.
Então, qual era a pauta do movimento? Só não viu quem não
quis.
O panfleto abaixo do FOB – Fórum de oposições pela Base – re-
sumiu bem a pauta radicalizada.45

45 http://oposicaopelabase.blogspot.com

2013 - revolta dos governados 59


Indubitavelmente, essas foram as maiores expressões das ma-
nifestações de 2013 no Rio de Janeiro. Apresentada a extensa pauta
do movimento e antes de debater os fatos propriamente, cumpre
explicarmos nossas opções teóricas e as respectivas ressalvas meto-
dológicas para estudo do nosso objeto: a Revolta do Vinagre. Passe-
mos, então, para o nosso capítulo teórico, no qual apresentaremos
os nossos conceitos e metodologias.

60 wallace de moraes
1. NOSSO APORTE TEÓRICO-
METODOLÓGICO
fonte: ruy barros
“Amar é querer a liberdade, a completa independência do outro, o
primeiro ato do verdadeiro amor; é a emancipação completa do ob-
jeto que se ama; não se pode verdadeiramente amar senão a um ser
perfeitamente livre, independente não apenas de todos os outros,
mas até mesmo, e sobretudo, daquele pelo qual é amado e que ele
próprio ama. Eis minha profissão de fé política, mas também, tanto
quanto eu possa, o de minha existência particular e individual, pois
o tempo em que estes dois tipos de ação podiam ser separados está
bem longe” (Bakunin, 1845).

Boaventura de Souza Santos (2011: 29) assevera que vivemos


nas ciências sociais, hoje, a monocultura do saber e do rigor que
preconiza como único dado rigoroso o científico; por consequência,
todo o conhecimento alternativo, popular, é destruído. Ele denomi-
na este fenômeno de “epistemicídio”.
Utilizaremos o conceito vislumbrado por Santos com propósi-
tos um pouco mais amplos, na busca por apreender outros aspectos
da ciência social, pois o epistemicídio não nega apenas o conheci-
mento produzido fora da Universidade, sem o rigor científico, como
refletiu Santos - fato que já é gravíssimo -, mas para além disso, cor-
roborando para o aumento do grau de gravidade, ele assassina no
nascedouro todas as opções teóricas-metodológicas produzidas na
academia que negam o Estado e o capitalismo enquanto instituições
legítimas e necessárias para o bem-viver da humanidade. Em outras
palavras, sobrevivem ao epistemicídio, hoje, somente as teorias,
produzidas na academia e/ou nos grandes oligopólios de comuni-
cação de massa, que concebem o capitalismo e suas instituições,
principalmente o Estado, como legítimos e no máximo passíveis de
reformas. Não se constitui, portanto, em mero preconceito em rela-
ção àquilo que é produzido fora da academia, mas a todo conheci-
mento crítico ao establishment.
Certamente, se a produção intelectual for de fora do mundo
acadêmico e ao mesmo tempo contestar o sistema como um todo

2013 - revolta dos governados 65


será mais facilmente rejeitada por esses doutos em defender o Es-
tado, a desigualdade, a exploração, as hierarquias, os preconceitos
e a limitação da liberdade para alguns como parte do curso natural
da História. Todas as teorias que se enquadram no princípio geral de
conceber as instituições estatais como resultado do progresso e/ou
da razão são aceitas. São elas: o liberalismo, a social-democracia, o
marxismo e o fascismo. Todas concordam em torno da existência
do Estado e consequentemente da dicotomia entre governantes e
governados. Pode-se pensar em diferentes formas de exercício do
poder estatal, mas jamais na sua negação. São os fantasmas hobbe-
siano-hegelianos impondo suas assombrações.1
Por consequência, o epistemicídio possui um efeito duplo: 1)
valoriza toda a produção científica produzida por “intelectuais” li-
gados aos governantes em geral. Normalmente, são oriundos da
Europa e dos EUA, mas não só, pois em todas as partes do mundo
existem os defensores do Estado, do capitalismo, da desigualdade,
das hierarquias sociais, em uma palavra, da ordem; 2) desvaloriza
tudo que é produzido pelos intelectuais que contestam essa ordem,
sejam eles oriundos da Europa, EUA, e com maior veemência se tiver
procedência de continentes onde suas populações são considera-
das inferiores, com agravante estupendo se contestar o Estado, o
capitalismo, as hierarquias, os valores ligados às religiões, em resu-
mo, a plutocracia vigente e sua ordem nefasta para os governados.
Ao longo da história da humanidade, a ampla maioria dos his-
toriadores/cientistas sociais produziu uma historiografia/ciência
social, que chamamos de oficial2, com um objetivo muito claro: legi-

1 Tanto Thomas Hobbes, quanto Georg Hegel, são expoentes do pensamento político que
concebem o Estado como uma instituição absolutamente essencial para a melhor orga-
nização da sociedade.

2 A historiografia oficial construiu a história jogando luz sobre o papel das Cortes, do Esta-
do, dos capitalistas, senhores de modo geral e das leis. As revoltas, os levantes, as revo-
luções, normalmente não aparecem, mas quando é inevitável, são apresentadas como
acidentes da história que obstaculizam “o bom percurso do progresso da humanidade”.

66 wallace de moraes
timar e justificar o poder estabelecido.3 Sob essa perspectiva, mui-
tos pseudo-teóricos, ou mesmo alguns renomados, sob o manto da
isenção (atualmente, conhecida como neutralidade axiológica), “te-
orizaram” sobre a realidade do ponto de vista mais ideológico ima-
ginável, abordando-a da maneira mais irreal possível e apontando
soluções pitorescas para seus problemas. Chomsky (2017) os deno-
mina por intelectuais conformistas, que apoiam os objetivos oficiais
e ignoram ou justificam os crimes governamentais.
As reflexões de Kropotkin (2000) quando relatou o papel dos
historiadores ao negligenciar a existência das comunas na Idade
Média, pode servir para exemplificar o ocorrido em 2013, no Brasil.
Naquele ano insurgente, também não houve nenhuma grande per-
sonalidade ligada a ele, tampouco alguma instituição romana. Veja-
mos.

“Compreende-se facilmente porque é que aos historiadores moder-


nos, educados no espírito das coisas romanas e empenhados em
fazer derivar todas as instituições de Roma, lhes seja muito difícil
abarcar o verdadeiro sentido do movimento comunalista do século
XII. Afirmação vital do indivíduo que consegue constituir a socieda-
de pela livre federação dos homens, das aldeias, das povoações e
das cidades, este movimento é uma negação absoluta do espírito
unitário e centralizador romano, mediante o qual se pretende ex-
plicar a história nas nossas universidades. É que este movimento
não anda ligado a nenhuma personalidade histórica, a nenhuma ins-
tituição centralizada. É um desenvolvimento natural, pertencendo,
como a tribo e como a comuna rural, a uma determinada fase da
evolução humana, e não a tal ou qual nação ou região.”

3 Certo é que legitimar o poder político e econômico nunca foi exclusivo dos historiadores,
mas indubitavelmente certificado por muitos deles. Na Idade Média, por exemplo, os
padres cumpriam um papel mais importante; na contemporaneidade, os oligopólios de
comunicação de massa. Para bela reflexão sobre o assunto, ver Fontana (2004).

2013 - revolta dos governados 67


Destarte, a ciência social oficial realiza o epistemicídio, cujas
principais características são a idolatria do Estado, que chamaremos
daqui em diante por estadolatria, bem como o impedimento de se
pensar em outras organizações societais para além dos limites do
capitalismo e da ideia de representação política, como se existisse
uma camisa de força que obstasse reflexões mais generosas para as
díades: autonomia-emancipação; autogestão-sem alienação.
A tradição da idolatria do Estado ganhou força durante o re-
nascimento italiano, sendo reforçada a posteriori pelos teóricos
modernos. Suas principais características foram: 1) legitimar retros-
pectivamente o Estado e toda sua estrutura de poder e coerção; 2)
considerar a vida do Estado como central para a história; 3) esta-
belecer o raciocínio histórico como se a sociedade fosse dependen-
te do Estado, isto é, como se não fosse possível vivermos sem ser
governados por outros. Esses raciocínios em seu conjunto formam
o que chamamos de Estadolatria. Os amantes do Estado, quando
não pregam veementemente a necessidade de coerção estatal para
melhor garantir a vida em sociedade, ou mesmo implantar a igualda-
de, preconizam, em última instância, seus dotes de razão, seja para
defesa, supostamente, de toda sociedade, seja para garantir os in-
teresses de uma classe social. Em todos esses casos, a liberdade é
sacrificada em nome da autoridade, da Estadolatria. O antagonista à
Estadolatria é, portanto, o autogoverno, ou a autogestão, em todos
os sentidos da vida. 4
Em resumo, o epistemicídio ataca todas as experiências popu-
lares e teóricas que não se enquadram nos padrões de exaltação do
Estado, do capitalismo e não se encontra dentro dos moldes “cientí-
ficos” acadêmicos, positivistas, amplamente parciais sob a farsa da
neutralidade axiológica.5

4 Para mais detalhes da argumentação sobre o fenômeno da Estadolatria na história polí-


tica, ver De Moraes (2018).

5 A melhor crítica da neutralidade axiológica é de Mészáros (2008). Ver também Lowy


(1985).

68 wallace de moraes
Associado a isso, Castoriadis (2007: 69) ressalta que grande
parte dos pensadores tentou ocultar o fato de que a sociedade se
auto-institui, buscando apresentar suas instituições como tendo
uma origem extra-social, divina, racional ou como sendo fundada
em leis da história. O principal objetivo dessa ocultação é retirar por
completo o papel dos humanos na criação do seu próprio mundo.
É a obliteração da crítica das instituições existentes, bem como da
possibilidade de criar/resgatar novas formas de convívio social. Par-
timos do princípio, por consequência, de que a sociedade deve ter a
liberdade de se auto-instituir. Com efeito, a história deve ser tratada
como auto-instituição societal.
Outrossim, entendemos que as interpretações sobre o maior
Levante Popular da história brasileira a partir de uma perspectiva
anarquista, que valoriza a ação direta dos governados, são margina-
lizados e enquadrados na perspectiva dos saberes sujeitados (Fou-
cault, 2002) ou sofrem perfeitamente do epistemicídio acadêmico
(Santos, 2003). Com vistas a superar essa discriminação epistemoló-
gica e preencher essa lacuna acadêmica, importantizamos desenvol-
ver a pesquisa que segue.
Nas duas últimas décadas, percebemos um revival do anarquis-
mo, potencializando produções que nunca deixaram de existir, mas
que foram marginalizadas durante muito tempo. Florescem grupos
com viés libertário no mundo inteiro. No Brasil, particularmente, o
surgimento e/ou desenvolvimento de diversos coletivos de estudo
e de ação, formando uma verdadeira escola interpretativa, resultou
em forte reflexo na Revolta dos Governados.6 Suas análises geral-
mente privilegiam o lócus da liberdade, que só pode se concretizar
na igualdade. Como a perspectiva do anarquismo não buscou cen-
tralizar, nem dirigir o processo, mas estimulá-lo de todas as formas,
no sentido de aprender com o povo e consciente de fazer parte

6 Surgiram organizações dessa natureza pelo país e grande parte delas com alguma influ-
ência nas ocupações urbanas e luta por moradia, expressada com força nos anos
2000/2010 como mostramos no prefácio e na introdução desse livro.

2013 - revolta dos governados 69


dele, a revolta popular foi saudada vangloriosamente por esse se-
tor. As propagandas pelo ato contra símbolos do capitalismo e do
Estado, demandas clássicas desse pensamento, foram postas em
prática em quase todas as manifestações, apesar de a quantidade
de seus militantes ser diminuta. Nesse caso, é conveniente lembrar
do exemplo da Comuna de Paris (1871), quando os libertários tinham
poucos militantes, todavia suas políticas foram amplamente apli-
cadas, mostrando a força de seus argumentos, que ganharam eco
quando governados teimaram em exercer a autogestão, superando
sua própria condição de subordinação.
Outro tema central da análise anarquista é o estudo do papel
exercido pelos revolucionários, pelos movimentos sociais autôno-
mos, pelas revoltas contra os opressores por igualdade, liberdade
e sobrevivência. Com efeito, faremos o resgate da memória dos
movimentos e/ou dos lutadores do povo que deve servir pedago-
gicamente como contraponto à história dos reis, das cortes, dos
governantes e dos ricos e poderosos realizada pela historiografia
oficial.
Ademais, o nosso método só pode se justificar se tiver como
foco a emancipação do trabalhador, perscrutando como andas a
sua liberdade, que só é compatível com o fim da alienação, isto é,
quando o desenvolvimento científico e tecnológico estiver a ser-
viço do bem-estar de todos (Kropotkin), quando não existir mais
governantes e governados. Enfim, cabem as últimas ressalvas. A
plena liberdade é incompatível com o capitalismo, o feudalismo,
o escravismo. Ela é incompatível com a plutocracia representati-
va, com efeito, com a dicotomia governantes X governados, com
a repressão e o controle exercido pelos governantes econômicos,
políticos, jurídicos, socioculturais e penais sobre os trabalhadores,
por consequência ela é incompatível com o Estado. A plena liberda-
de é incompatível com o racismo, a discriminação, o machismo e a
sociedade patriarcal. Por fim, a plena liberdade só será possível na
medida em que existir a autogestão em todos os sentidos da vida

70 wallace de moraes
realizada pela ação dos próprios interessados, coagidos a vender a
sua força de trabalho. Trata-se de uma perspectiva em clara oposi-
ção à estadolátrica.
Como forma de melhor entender a ação dos insurgentes de
2013 no Brasil é fundamental utilizarmos conceitos apropriados. Ali-
ás, seguiremos por um caminho que visa incorporar categorias das
ciências sociais com a problematização histórica, sendo, portanto,
uma forma que unifica o olhar de cientistas sociais e historiadores.7
Já alertamos que para o caso peculiar em tela, é mister comba-
ter a estadolatria, que não apenas evoca a hierarquia social e a de-
sigualdade como naturais, mas também como uma perspectiva que
tem um fascio condutor típico de análises autoritárias que refletem
um ponto de vista de organização societal que se admira. Com efei-
to, se contempla o Estado enquanto expressão máxima da razão,
para o qual colaboram teses nas ciências sociais desde Maquiavel,
passando necessariamente por Hobbes e alcançando o paroxismo
com as proposições de Hegel. Ao mesmo tempo, procuraram incutir
a ideologia segundo a qual a desigualdade econômica-social é bené-
fica para a sociedade, com clara defesa da legitimação da proprieda-
de privada dos meios de subsistências e de produção, tal como fez
John Locke, seguido pela escola que inaugurou conhecida como li-
beral. Por esse caminho, o capitalismo foi justificado. Coube a deter-
minados pensadores estadolátricos, impor ao restante do mundo
uma forma de reprodução socio-metabólica pautada no eurocen-
trismo que, dentre outras acepções, significa defesa do Estado,
do capitalismo, com todas suas desigualdades, com a subjugação
e preconceito com relação a negros, ameríndios, revolucionários e
não proprietários. Criou-se, portanto, um Estado e um sistema eco-
nômico capitalista racista, imposto pela força e pela violência sobre
os governados.
Os diversos paradigmas de análise sob essa égide são portado-
res de um preconceito inicial, implicando em não se estudar expe-
7 Ver Burke (2012).

2013 - revolta dos governados 71


riências de lutas populares no Brasil ou, quando o fazem, utilizam
conceitos e produzem narrativas que não se coadunam com a reali-
dade, a qual se quer reconstruir.
Propomo-nos a pensar a rica experiência da Revolta do Vinagre
de 2013 no Brasil a partir de uma simbiose entre História e Ciência
Social, tal como recomendado por Peter Burke (2012). Situaremos
o fenômeno a partir de três conceitos: 1) “auto-instituição social”
(Castoriadis, 2002); 2) “revolução social” (Bakunin, 2008; Kropotkin,
2007); 3) “ação direta” (Makhno, 2001; Gelderloos, 2011); 4) “propa-
ganda pelo ato” e “protesto permanente” (Walter, 2000). Objeti-
vamos assim contribuir para a construção de uma chave de leitura
libertária sobre o fenômeno.
Já podemos adiantar que os insurgentes não seguiram uma
tendência de organização nos moldes estadocêntricos, muito ao
contrário, não só se opuseram peremptoriamente, como tentaram
destruir cada aspecto daquele. Em resumo, tencionamos mostrar
que inúmeros governados alicerçaram uma forma de organização
societal que não marcava semelhança com a dos governantes, ca-
racterizada por aspectos anti-estatistas e anticapitalistas, portanto,
claramente auto-instituinte, podendo ser entendida por tentativa
de impulsão da revolução social, constituída a partir da ação direta e
da propaganda pelo fato de seus membros.
Pois bem, o capítulo está organizado da seguinte maneira: 1)
apresentaremos o significado dos conceitos supracitados; 2) fare-
mos o resgate das principais características da Revolta dos Governa-
dos de 2013. Vamos ao primeiro passo.

DA PLUTOCRACIA E DE SUAS DITADURAS

Um dos conceitos que usaremos com frequência é o de plu-


tocracia em substituição ao de democracia. Na realidade, o povo
não governa. Não existe em prática nenhum governo do povo. Se

72 wallace de moraes
o caro leitor concorda, preferirá o uso do conceito de plutocracia,
que significa governo em favor dos ricos. Suas principais funções
representam: garantir a reprodução do dinheiro e a segurança da
propriedade privada dos meios de produção, deixando a proteção
da vida e do bem-estar dos governados em segundo plano, sobretu-
do se forem alvos das governanças sociais.8 Segue apresentação do
conceito que realizamos em outra pesquisa.

“O conceito de plutocracia vem do grego (ploutos: riqueza; kratos:


poder); nesse sentido busca representar um sistema político gover-
nado por um grupo de pessoas que detém o poder econômico ou
está a seu serviço. Trata-se do governo do dinheiro, do capital, da ri-
queza, em favor dos ricos. Ele é materializado quando os interesses
dos proprietários dos meios de produção são priorizados com rela-
ção aos dos governados, sem dinheiro. Assim, vigora uma domina-
ção exercida pela classe mais abastada da sociedade, com influência
ou poder preponderante do capital. Essa se constitui na essência do
capitalismo. Portanto, todo e qualquer governo, que garanta o ple-
no funcionamento e as instituições do capitalismo, é plutocrático.

A utilização do conceito de plutocracia se deve ao fato de não acre-


ditarmos que o povo realmente governe em nenhum lugar. Partin-
do dessa premissa, a categoria democracia (governo do povo) não
representa fielmente a realidade da organização política no mundo
capitalista, apesar das tentativas de ilusão com o uso conceitual. Em
resumo, empregaremos aqui a definição para explicitar que o regi-
me oligárquico-representativo9 vigente se solidifica como espaço
perfeito para o domínio dos governantes da economia (empresá-
rios, banqueiros, especuladores financeiros), donos do capital, que
têm suas principais instituições garantidas, como a propriedade pri-

8 Identificamos nove tipos puros de governanças sociais: racial, patriarcal, sexual, acadê-
mica-científica, estética produtiva, religiosa, xenofóbica (ufanista, nacionalista), capitalis-
ta, oficialista. Para detalhes, ver De Moraes, 2018.
9 Ver Graeber (2015).

2013 - revolta dos governados 73


vada dos meios de produção, e a exploração de uns sobre outros,
que lhe é consequente.

Sob esse sistema, cabe aos governados obedecer e trabalhar para


o enriquecimento de seus patrões. O direito ao voto não muda essa
situação e apenas legitima o poder dos donos do vil metal, tendo
em vista que as campanhas eleitorais também são atravessadas pela
influência do dinheiro.

É importante fazermos mais um acréscimo. Entendemos que exis-


tem diferentes formas de regimes plutocráticos”10 (De Moraes:
2018).

Em resumo, a plutocracia sempre se expressa como uma di-


tadura peculiar para determinados grupos sociais, que fogem do
script que os governantes querem que exerçam, e de alguma ma-
neira represente uma ameaça à ordem. Nessa situação, vivemos sob
comando de um Estado, que impõe uma ditadura sobre as ovelhas
desgarradas.
Por isso, utilizaremos os conceitos de Ditadura Militar-Plutocrá-
tica-Desavergonhada e Ditadura Plutocrática-Militar-Dissimulada,
por entendermos que a existência de Estado levará necessariamen-
te à instalação de uma tirania que buscará por todos os meios ga-
rantir as instituições estatais e o modo de produção protegido por
ela. Por mais democrática que possa parecer, a governança política
– gerida diretamente por um político profissional ou por qualquer
representante direto das outras governanças –, impõe-se pelo seu
militarismo contra os setores ‘perigosos’, não obedientes, ou insu-
bordinados, dos governados. Assim, os mais pobres (situação agra-
vada quando se faz parte dos grupos alvos das opressões sociais)
junto com os revolucionários (rebeldes, guerrilheiros, insurgentes)
estão sempre sob a mira da governança penal, seja sob uma Dita-

10 As diferentes formas são apresentadas no capítulo 1 do livro “Governados por quem?” (De
Moraes, 2018).

74 wallace de moraes
dura Militar-Plutocrática-Desavergonhada, governada diretamente
por militares, seja sob uma Ditadura Plutocrática-Militar-Dissimula-
da, governada diretamente por civis. Contudo, ambas se amparam
fundamentalmente nas repressões militares, quando necessárias,
para a manutenção do capitalismo em favor de todos os governan-
tes.11 Para ratificar que vivemos em uma ditadura, é significativa a
descrição de um dos perseguidos políticos de 2013, em seu livro a
“Pequena Prisão”:

“Por que falo em pequena prisão? Exatamente porque, iludidos com


uma sociedade autoproclamada ‘livre’, vivemos na verdade em uma
imensa, cada vez maior, prisão. Não creio que possamos considerar
realmente livres os que têm de enfrentar a rotina de um trabalho
extenuante e embrutecedor, coagidos pela fome e pela ameaça de
desemprego. ‘Livres’ para ir ao supermercado e assistir televisão.
‘Livres’ para acordar ainda de madrugada, atravessar a cidade em
transportes caros e precários. ‘Livres’ nas nossas prisões domicilia-
res, cheias de pequenos luxos desnecessários, pelos quais pagamos
o equivalente a uma vida inteira de trabalho – isso quando temos o
‘privilégio’ de ter um teto sob o qual nos abrigar. (...) Desse ponto
de vista, o que chamamos de prisão, a cadeia, é apenas uma fração
da prisão maior em que vivemos – um pouco mais pobre de vida,
mais descaradamente odiosa, é verdade, mas ainda assim uma fra-
ção, se comparada ao grande presídio de povos em que se converte
nossa sociedade nesses princípios de século XXI. Não me julguem
pessimista: há um ditado penitenciário que diz: ‘a cadeia é longa,
mas não é perpétua’, e creio firmemente que isso é válido tanto para
a pequena quanto para a grande prisão” (Mendes, 2017: 34-35).

Fora do Brasil, citemos Ludd (2002), depois dos grandiosos


protestos de Seattle, em 1999, com uma das maiores formações do
Black Bloc.

11 Para mais detalhes sobre esses conceitos, ver De Moraes, 2018.

2013 - revolta dos governados 75


“O toque de recolher foi decretado (desde a Segunda Guerra que
isso não acontecia em Seattle). Pessoas foram presas em frente às
suas casas, simplesmente por estarem à noite na rua. Se não bastas-
se, a Guarda Nacional foi chamada e a corte marcial foi decretada,
isto é, os direitos constitucionais deixavam de vigorar. Isto nos EUA,
a terra da “democracia”. Vemos como a “democracia” é uma más-
cara usada pelos poderosos, que logo é tirada quando as coisas não
andam do jeito que eles desejam.”

Por fim, a maioria vive solta em uma prisão, na grande prisão,


como defende Mendes (2017), e essa prisão é garantida por uma
Ditadura, que é a favor dos ricos, e por isso é plutocrática; que em-
prega o militarismo para garantir a ordem, por isso, é militar; que é
sorrateiramente chamada de democracia, por isso, é Dissimulada;
portanto, defendemos o conceito de Ditadura Plutocrática-Militar
Dissimulada para melhor representar os nossos dias de prisões para
muitos e liberdade para poucos.
A seguir apresentaremos os conceitos de governanças insti-
tucionais utilizados nessa análise. Eles foram desenvolvidos primei-
ramente em De Moraes (2018), aqui segue apenas um resumo do
significado de cada um para que o leitor possa compreender a utili-
zação deles ao longo do livro, todavia, para maiores detalhes, é indi-
cativo que se recorra à obra original.

1.1 das cinco governanças institucionais

1.1.1 da governança política

A governança política é habitada pelos seguintes atores: a)


governantes políticos (presidentes, reis, imperadores, ditadores,
ministros, deputados, governadores, prefeitos, vereadores, buro-
cratas do alto escalão governamental).12 Esses podem ser divididos
em dois subgrupos: governantes do Executivo e do Legislativo. Na

12 Bezerra da Silva, a voz do morro, os chamava carinhosamente por “canalhocratas”.

76 wallace de moraes
parte hierárquica inferior dessa governança estão: b) governados
politicamente (todos que devem obedecer às leis e políticas empre-
gadas por aqueles). O lócus, por excelência, da governança política,
é o Estado. Os governantes políticos têm o poder da lei, do decreto,
das políticas públicas, de aumentar ou diminuir a verba para a saúde
e a educação, de aumentar ou diminuir as leis penais, as políticas de
encarceramento, de declarar perseguições racistas e/ou guerras, de
aumentar ou baixar as taxas de juros, câmbio, de mandar reprimir e
controlar os governados.
Todo o dinheiro público arrecadado com os impostos está sob
seu domínio. Diga-se de passagem, um dinheiro fácil, certo e líqui-
do. Por isso, esse é o lugar ordinário da corrupção, da falcatrua, da
troca de favores, do patrimonialismo. Ao mesmo tempo, é o espaço
da disputa, que interessa a todos os capitalistas, que almejam pri-
vilégios de contratos e de financiamento pelo dinheiro público. Os
representantes dos setores empresariais, banqueiros, latifundiários
(governantes da economia) possuem acesso direto aos governan-
tes da política, sobretudo, se foram financiadores da empreitada
eleitoral, ou se apresentam com potencial para bancar as futuras
campanhas e/ou a vida privada deles.
Sob o regime representativo, o papel destinado aos governa-
dos, pensado pelos governantes, fundamenta-se apenas no direito
ao voto: a escolha daqueles que vão lhes governar politicamente,
sob um sistema privilegiado, de tempos em tempos. A governança
política é praticamente vedada (insulada) aos governados, enquan-
to é absolutamente aberta aos demais governantes e seus lobbies,
principalmente dos setores economicamente mais fortes. A desi-
gualdade, portanto, de acesso aos governantes políticos é patente
e determinada pelo poder financeiro do agente. Em razão disso, a
denominamos como plutocracia. Ao mesmo tempo, ela busca apre-
sentar-se como resultado da escolha dos governados por meio do
voto. A essência dessa governança é a dissimulação, a mentira, as

2013 - revolta dos governados 77


promessas não cumpridas, enfim, a arte da enganação, da corrup-
ção das ideias e do dinheiro, da traficância.
Resta aos governados politicamente, por conseguinte, fazer
protestos nas ruas e praças para tentarem ser ouvidos pelos gover-
nantes políticos. Não obstante, na maioria das vezes, essas manifes-
tações são solenemente ignoradas, sendo levadas em conta apenas
quando ocorrem com grande contingente de pessoas e com caráter
de insurgência social. Do contrário, pequenas passeatas e sem ação
direta ou propaganda pelo fato são completamente desprezadas,
como se não tivessem existido. Simultaneamente, os donos do po-
der político buscam por todas as formas desencorajar os protestos
dos governados, tratando-os com grande violência, quando com
potencial de insurgência, ou, desprezando-os, quando pacíficos.
Como a ação coletiva possui um alto custo de organização, dispo-
sição, tempo e coragem, os governantes jogam com essa variável e
esperam o arrefecimento da luta por esses custos de manutenção.
Aprofundaremos essa questão com o estudo da Revolta do Vinagre
de 2013.

1.1.2 da governança econômica

A governança econômica é habitada pelos seguintes atores: a)


governantes econômicos (proprietários dos meios de produção e
subsistência: patrões, chefes, donos das fábricas, terras, empresas e
grandes conglomerados comerciais, banqueiros, acionistas etc.) e b)
governados economicamente (todxs que devem obedecer a um ou
mais governantes econômicos no local de trabalho, em sua casa ou
em qualquer ambiente produtivo, comercial ou financeiro). Essa é a
governança por essência da produção social que, sob o regime capi-
talista, tende a transformar tudo em mercadoria. A sua mola mestra
é o dinheiro. Ela se materializa em alguns princípios que se retroali-
mentam. O principal deles, é o da desigualdade social e econômica.
Por consequência, ela se nutre de uma sociedade hierarquizada e

78 wallace de moraes
autoritária, cujo domínio dos governantes econômicos apresenta-se
como inquestionável. Ao mesmo tempo, a sua situação é diferen-
ciada, pois existem distintos graus de comando e poder que estão
diretamente ligados à quantidade de capital que se possui e/ou que
se ganha ou pode ganhar. Assim, temos governantes econômicos
com diferentes condições de poder, sobretudo de influenciar outros
governantes e governados.
Sob essa governança, todo trabalhador, assalariado, vendedor
de força de trabalho caracteriza-se como um governado economi-
camente, pois recebe ordem direta dos governantes econômicos
ou de seus representantes. Por exemplo, quando um trabalhador
recebe ordens de seu patrão por 40 horas semanais, aquele está sob
a governança econômica deste.
A governança econômica materializa-se como o eixo central
da ‘opressão capitalista’ por meio da legitimação e da legalização
da exploração do proprietário sobre o não proprietário, através da
alienação, isto é, da apropriação pelo proprietário daquilo que é pro-
duzido pelo trabalhador. Em outras palavras, aquilo que o governa-
do economicamente produz não lhe pertence, mas é apropriado,
indebitamente, como um roubo pelo proprietário. Um roubo das
horas de trabalho coletivo dos governados, tal como colocado por
Proudhon (2007); ou extração de mais-valor, como, posteriormen-
te, sublinhou Marx (1984).
Em resumo, a essência dessa governança é formada pela obe-
diência, subordinação direta, subjugação, alienação, exploração e
controle.
A possibilidade de libertação dela manifesta-se no fim da pro-
priedade privada dos meios de produção e na autogestão coletiva
nos locais de trabalho, única maneira, de acabar com todas as for-
mas de opressão da governança econômica, e com ela mesma. É
importante destacar que a supressão dessa governança não está
sujeita ao voto.13
13 Para a descrição completa dessa governança, ver De Moraes, 2018.

2013 - revolta dos governados 79


1.1.3 da governança sociocultural

Na governança sociocultural, existem cinco grandes institui-


ções que atuam em conjunto para a manutenção/justificativa do
status quo. São elas: 1) grandes meios de comunicação de massa; 2)
escola (academia); 3) igreja; 4) família; 5) redes da internet.
Por consequência, a governança sociocultural é habitada pelos
seguintes atores: a) governantes socioculturais da grande mídia re-
presentados pelos:
• oligopólios de comunicação de massa (TVs, rádios, jornais) que
veiculam notícias que legitimam o sistema de desigualdade ca-
pitalista, deslegitimando todas as formas de ações diretas dos
governados;

• pela indústria cultural de Hollywood e as reprodutoras de seus


modelos pelo resto do mundo, que financiados por governan-
tes econômicos e políticos, buscam justificar e legitimar suas
ações por todas as formas, inclusive, suas guerras;

• pela ditadura das gravadoras, que selecionam ideologicamen-


te as músicas que podem alcançar ao grande público.

A governança sociocultural da grande mídia se materializa


como uma governança ideológica de massa. Ela está diretamente
atrelada a todas as opressões sociais, e, em particular, à governan-
ça econômica, compondo-a, até mesmo, pois vende a ‘propaganda’
como mercadoria, justamente, aos governantes econômicos e polí-
ticos. Ao mesmo tempo, possui uma relação estreita e ambígua com
a governança política, pois esta tem o poder de “regulamentar” o
seu uso, ou mesmo o poder de conceder a sua permissão para o
pleno funcionamento. Por outro lado, depende do apoio daquele
como forma de legitimar o seu poder político. Em razão disso, é co-
mum que esteja unida a eles e, normalmente, os apoiem, em suas
demandas.

80 wallace de moraes
b) governantes socioculturais das igrejas: padres, pastores e si-
milares, que vendem esperança no ‘além’ para miseráveis a partir de
insinuações metafísicas. Esta é uma governança estritamente con-
servadora, sendo a que mais resiste a reconhecer formas diferentes
de sociabilidade e principalmente liberdade comportamental. Ela
concretiza-se como a governança sociocultural baseada na fé e está
diretamente atrelada a três opressões/governanças sociais: religio-
sa, por discriminar as crenças diferentes das judaico-cristãs; sexual,
por só admitir heterossexuais; patriarcal, por buscar justificar a su-
bordinação da mulher. Essa governança, ao ligar diretamente a fé
ao dinheiro, está também atrelada à governança econômica, sobre-
tudo, quando ‘industrias da crença’ são montadas com a contribui-
ção financeira dos fiéis.
c) governantes socioculturais do saber escolar: o seu lugar
privilegiado é a escola (a universidade) com seus professores/in-
telectuais que retroalimentam um discurso/ensino justificador do
nacionalismo, das instituições estatais e capitalistas de um modo
geral, da ‘participação cidadã’ e do regime supostamente democrá-
tico, que eles tanto idolatram. Essa se constitui como a governança
sociocultural pela ‘educação reprodutora de conteúdos em prol do
establishment’. Estes governantes alimentam as opressões/gover-
nanças sociais oficialista e acadêmica-científica, pois simultaneamen-
te cometem o epistemicídio contra as produções revolucionárias e
populares, colocando-as como saberes sujeitados, inferiores, ‘erra-
dos’.
d) governantes socioculturais da família: representada pelo
chefe de família, autoritário, intolerante, que não admite visões, em
casa, diferente das suas. Utiliza-se da violência, física e simbólica,
como forma de fazer seus filhos e sua mulher obedecerem. Não es-
cuta, não debate e não admite pensamentos fora de seu comando.
Dessa maneira, prepara os filhos para não contestarem a autoridade
e, para saber, se assim o fizerem, serão castigados pela violência,
serão penalizados, receberão “chineladas”. Essa é a governança por

2013 - revolta dos governados 81


excelência do patriarcado. A principal reprodução dessa opressão
é realizada com a odiosa expressão: “manda quem pode, obedece
quem tem juízo”.
e) governantes socioculturais da internet (Facebook, Twitter,
Google, Youtube, WhatsApp, grupos epistêmicos nas redes sociais
e nas demais mídias). Esses governantes se constituem como a
grande novidade da governança sociocultural, pois há pouco tempo
atrás não existiam, mas hoje possuem um poder até maior do que
os meios de comunicação de massa do século XX, sobretudo para os
jovens.14 As mídias sociais criadas livremente e ainda sem interven-
ção de máquinas e robôs permitiram a muitas pessoas romperem a
censura dos governantes socioculturais, sendo possível a organiza-
ção de protestos pelo mundo todo (ver Castells, 2013). Entretanto,
depois de cumprir esse papel que furava o bloqueio ideológico dos
oligopólios de comunicação de massa, elas foram refeitas e com
novos algoritmos passaram a limitar sobremaneira a liberdade de
circulação de informação, principalmente se for em favor de pro-
testos/manifestações/contestações públicas. Simultaneamente, os
grupos epistêmicos conservadores e autoritários, com amplo apoio
financeiro, puderam ampliar a divulgação de suas ideias, através de
robôs e/ou por meio de compras de apoio virtual (likes), dando uma
interpretação equivocada sobre a realidade, estimulando pessoas
que compartilhavam uma visão de mundo extremamente precon-
ceituosa e repressora, favorecendo esse tipo de leitura da política
mundial, simultaneamente, excluindo os grupos/pessoas que pro-
duziam uma interpretação da realidade contestadora. Vivemos
sob uma nova censura nas mídias sociais, cujas falsas notícias (fake
News) - que sempre existiram e ditaram as reportagens dos oligopó-
lios de comunicação de massa -, agora, constituem-se como a regra,
a ordem.15

14 Agradeço ao orientando Flávio Moraes pelo alerta sobre o papel das mídias sociais como
parte dessa governança sociocultural.
15 Para descrição dos demais tipos de governanças socioculturais, ver De Moraes (2018).

82 wallace de moraes
Quem são os governados socioculturais? São aqueles que as-
sumem como suas as ideias propaladas por seus governantes, nas
escolas, nas igrejas, nas TVs, nas famílias, nos grupos epistêmicos
(think tanks) reproduzindo-as, em conversas informais e/ou nas re-
des sociais (nas mais diferentes formas assumidas, como reporta-
gens, músicas, filmes, textos, fotos, dogmas religiosos, fake News
(notícias falsas) e chineladas). Normalmente, não questionam a sua
situação econômica, política e social; às vezes, até justificam essa
triste condição, mesmo sem ter nenhum ganho pessoal ou coletivo.
Os governados socioculturais são aqueles que não produzem crítica
autônoma à sua própria situação de governado e se contentam em
receber ordens e conhecimentos alheios sem avaliá-los. Assim, atu-
am como se ovelhas fossem, obedecendo aos seus governantes e
seguindo o rebanho.
Os alvos principais da referida governança são pessoas sem fir-
meza de ideias e/ou sem acesso a conhecimento alternativo, que
abrem mão de produzir seu próprio saber, para ficar a mercê daqui-
lo que outros produzem, para lhes fazer crer... num mundo surre-
al. Algumas, sem qualquer resistência, são guiadas como ovelhas,
transformando-se em verdadeiros escravos ideológicos do sistema.
É óbvio que existem dentre os governantes socioculturais
pessoas ou pequenos grupos (professores/intelectuais, religiosos,
jornalistas, ‘midiativistas’, pais democráticos) que atuam na defesa
dos interesses dos governados, mas esses compõem uma ínfima mi-
noria, que trabalha em contrário ao papel que lhe requer os demais
governantes.

1.1.4 da governança jurídica

A governança jurídica é composta pelos seguintes atores:


a) governantes jurídicos: Ministros dos tribunais superiores ou
equivalentes, magistrados em geral, Procuradores da República e
membros superiores do Ministério Público.

2013 - revolta dos governados 83


Essa governança é a responsável por aplicar e interpretar a lei.
A artimanha da interpretação do Direito de maneira vertical, com
criação de jurisprudências que devem ser obedecidas por todos, a
justifica.
De mais a mais, ela tem o papel de dar um tom de legitimidade
aos demais governantes, que supostamente deveriam seguir uma
norma igual para todos. Sua principal bandeira consiste em apresen-
tar-se como defensora da isenção, da neutralidade e da justiça. Tam-
bém se apresenta como a governança dos sábios, dos intelectuais,
dos melhores. Para reforçar esse estereótipo, a governança jurídi-
ca possui um vocabulário próprio, praticamente ininteligível para a
maioria da população. Essa prática é proposital, para estabelecer a
distância e a dependência dos governados.16 Essa linguagem pecu-
liar é denominada popularmente como ‘juridiquês’.
Essa governança não precisa do consentimento popular, por-
que sequer passa pelo voto e, portanto, nem teoricamente neces-
sita simular compromisso com os governados. A escolha desses
governantes, no caso do STF no Brasil, ocorre também por mera
indicação da governança política, portanto, está abarrotada de in-
teresses, embora, em alguns casos, como do Procuradoria Geral da
República, por exemplo, os pares possam recomendar os seus con-
correntes aos cargos. Em função dessa relação de designação polí-
tica e da vida abastada que levam, com salários exorbitantemente
superiores à média da população, essa governança tende a retroali-
mentar a legitimidade do capitalismo e de suas desigualdades, bem
como justificar os governos, o Estado e seus políticos ‘padrinhos’.
Fato que evidencia a separação dos poderes como um embuste, já
que estão todos muito imbricados e interdependentes. Outro fe-
nômeno que se tem acentuado bastante nas últimas décadas, é a
chamada judicialização da política quando conflitos que seriam re-
solvidos em fóruns e instâncias políticas são resolvidos por juízes.
16 Bourdieu (2000) fez uma excelente relação sobre o assunto, especialmente no capítulo 8 da
obra.

84 wallace de moraes
b) governados jurídicos: todos aqueles que devem obedecer
às interpretações da lei, exercidas por esses homens de toga. Essa
governança transpassa por todas as demais, retroalimentando-as e
a si mesma, resultando em diferentes graus de sujeição dos gover-
nados.
A superação dessa governança passa necessariamente pelo
fim do Estado e da crença segundo a qual alguém possa decidir o
futuro de outros por meio da neutralidade.
Por fim, ao reconhecermos que somos governados por diferen-
tes governanças e não apenas pela política, abrimos caminho para
almejarmos a libertação das outras e para deixarmos de acreditar
que uma vitória eleitoral possa nos levar à liberdade.

1.1.5. da governança penal

A governança penal é povoada pelos seguintes atores: a) go-


vernantes penais: oficiais superiores das forças armadas ou equi-
valentes, das policiais estaduais, federais, tribunais penais civis e
militares, e todas as forças de repressão militares ou civis e milicia-
nos apoiados ou negligenciados por essas mesmas forças.
Esses governantes, por controlarem as armas, a espionagem, a
coerção legal, as sentenças, possuem um importante papel político
para a manutenção do capitalismo, do Estado, de suas instituições e
todas as governanças sociais existentes. Além de garantir a integri-
dade física e proprietária de todos os governantes, servem também
para assegurar a repressão cotidiana sobre os governados que não
respeitam a ordem, principalmente nas periferias e favelas. Ao defi-
nirem quem (e como) será punido, referendam códigos de controle
social, estabelecidos, autoritariamente.
Ao longo da História da América Latina, tivemos vários exem-
plos de assalto à governança política por governantes penais, que
quiseram, eles mesmos, ditar as regras para todos os governados.

2013 - revolta dos governados 85


Os tribunais penais também colaboram para a manutenção do siste-
ma e para encurralar determinados setores dos governados.
Essa é a governança por excelência da força, da coerção, da
violência, da guerra, da prisão, da perseguição, da tortura, do assas-
sinato, da covardia, e é a mais objetiva de todas, pois não precisa
simular um tom democrático, nem como expressão do saber, como
outras. O poder de prender constitui-se como a manifestação de po-
der em seu estado puro, sem cinismo, sem dissimulação.17 Ela pos-
sui quatro alvos principais: 1) as etnias não brancas, como negros,
indígenas e mestiços, portanto, incrementa a governança racial; 2)
grupos revolucionários com potencial para atentar contra a ordem,
a desigualdade, o capitalismo, e/ou “bandidos” que buscam obter
riquezas por meio de “ganhos fáceis”, roubando, vendendo drogas
etc, ligada à governança oficialista; 3) populações miseráveis e po-
bres que se encontram nas favelas e periferias, ligadas à opressão
capitalista; 4) comunidade LGBTQIA+, ligada à opressão sexual. Es-
ses são os atores mais cobiçados/ameaçados pelos governantes pe-
nais. Ademais, se um grupo de indivíduos fizer parte dessas quatro
especificações supracitadas, sua vida estará extremamente ameaça-
da pelo assassinato ou encarceramento.18 Em suma, as governanças
institucionais podem ser resumidas em Casa Grande, enquanto os
governados habitam a senzala.

1.2 dos conceitos de revolução social, auto-instituição


social, ação direta, propaganda pelo fato e de protesto
permanente

Um conceito chave que utilizaremos na análise é o de revolução


social, defendido por Bakunin, Kropotkin e Makhno. Porém, antes
de apresentá-lo, é mister discutirmos como a literatura, estatista,
e, em grande medida, institucional, trata a definição de revolução.

17 Sobre esse assunto, ver Foucault (2001), especialmente seu capítulo 8.


18 Para descrição completa do conceito de governança penal, ver De Moraes (2018).

86 wallace de moraes
Esse conceito é relativamente novo na longa história do pensamen-
to político. Platão, Aristóteles e os romanos, Políbio e Tácito, não
trataram dele, embora discutissem sobre as diversas formas de
substituições de elites políticas por outras no poder. Até o advento
da Época Moderna, portanto, o pensamento político clássico carac-
terizou-se pela ausência da possibilidade do poder popular.
Para o pensamento liberal, o conceito de revolução foi pratica-
mente abandonado depois da consolidação do capitalismo. Sob o
regime do capital, os proprietários passaram a ter total poder sobre
suas propriedades, atendendo seus interesses, por isso o conceito
de revolução passou a ser tratado como sinônimo de golpe de es-
tado, ou rebeliões, sempre vistos como algo depreciativo. Enfim, a
ideia de revolução serviu muito bem aos adeptos do capitalismo na
luta contra o absolutismo feudal, mas depois da consolidação das
plutocracias foi praticamente tratada de forma preconceituosa. As-
sim, a revolta dos grandes proprietários na Inglaterra em 1688-89 foi
classificada como Revolução Gloriosa. Outra revolução, tipicamente
burguesa, foi a Francesa de 1789. Em ambas, governos autoritários
foram substituídos por outras elites que passaram a governar os de-
mais, tratando os dissidentes, igualmente, de maneira autoritária.19
19 O pensamento liberal defendeu fortemente a liberdade para a propriedade privada, para
seu proprietário, para o comércio, para obtenção de lucro, enfim, para o pleno funciona-
mento do mercado. Quando as primeiras formulações liberais foram concretizadas, com
o pensamento de John Locke, na segunda metade do século XVII, elas visavam exclusiva-
mente atacar a centralização do poder da coroa e a sua possível e costumeira intervenção
na propriedade alheia. Por isso, a liberdade estava restrita aos interesses dos grandes
proprietários de terra, como Locke, que inclusive também era senhor de escravos. Em
nenhum momento se pensou em liberdade para além dos senhores. A liberdade quase se
restringia ao uso e abuso da propriedade privada e suas subsequentes consequências. A
igualdade para o pensamento liberal deve ser entendida por dois momentos: 1) quando
nasceu, com Locke, era restrita a defesa de que os proprietários deveriam ter os mesmos
direitos que os membros da realeza; 2) já no século XX, a igualdade se resumia a dois pila-
res: a) igualdade jurídica (resumida na afirmação clássica de que “todos são iguais peran-
te a lei”; b) igualdade política (voto universal para escolher os governantes). A igualdade
econômica e social é vista por esse pensamento como malfazejo.

2013 - revolta dos governados 87


Já no século XX, os liberais, que até então se opunham vee-
mentemente aos democratas, passaram a defender um modelo de
governo que Chomsky (2013) classifica da seguinte maneira:

“É aquela que considera que o povo deve ser impedido de conduzir


seus assuntos pessoais e os canais de informação devem ser estreita
e rigidamente controlados. Esta pode parecer uma concepção es-
tranha de democracia, mas é importante entender que ela é a con-
cepção predominante” (Chomsky, 2013).

Em resumo, a maioria da população deve obedecer aos dita-


mes de uma classe política sem contestação. Na Ciência Política,
essa concepção é chamada de democracia minimalista, que exata-
mente vigora nos países ocidentais. Os governados participam so-
mente, de tempos em tempos, do apontamento daqueles que vão
lhes governar, sem ter acesso à escolha das políticas adotadas por
aqueles. Por consequência, os liberais se opõem decisivamente às
perspectivas revolucionárias, porque segundo eles a democracia é
o governo do povo. Nada mais absurdo. Por isso chamamos de plu-
tocracia.
Os clássicos da teoria das elites, como Pareto e Mosca, desmis-
tificam as teses da democracia e da revolução ao mesmo tempo,
quando afirmam que sempre existirá uma minoria dirigente e uma
maioria controlada. Assim, não adianta fazer a revolução, pois quem
assumir o Estado controlará os demais.
O conceito de revolução aparece no dicionário de política orga-
nizado por Norberto Bobbio (2000), através do texto de Pasquino
(2000) da seguinte maneira:

“A revolução é a tentativa, acompanhada do uso da violência, de


derrubar as autoridades políticas existentes e de as substituir, a fim
de efetuar profundas mudanças nas relações políticas, no ordena-
mento jurídico-constitucional e na esfera sócio-econômica. A Re-

88 wallace de moraes
volução se distingue de rebelião ou revolta, porque esta se limita
geralmente a uma área geográfica circunscrita, é, o mais das vezes,
isenta de motivações ideológicas, não propugna a subversão total
da ordem constituída, mas o retorno aos princípios originários que
regulavam as relações entre as autoridades políticas e os cidadãos, e
visa à satisfação imediata das reivindicações políticas e econômicas.
A rebelião pode, portanto, ser acalmada tanto com a substituição
de algumas das personalidades políticas, como por meio de conces-
sões econômicas” (Pasquino, 2000: 1121).

Estas são as descrições clássicas de revolução, revolta e rebe-


lião. Vejamos que elas estão embebidas de uma perspectiva euro-
cêntrica, buscando encontrar parâmetros sobretudo na Revolução
Francesa e em outras diversas revoltas ou rebeliões igualmente eu-
ropeias. Percebam que ali está a miragem de que essas atividades
subversivas são tratadas como ações de cidadãos descontentes que
visam substituir o poder político instaurando outro poder político,
isto é, trata-se de uma revolução absolutamente institucional que
embora retire e substitua os ocupantes dos cargos políticos, outros
homens devem ocupar esse mesmo cargo para exercer um outro
governo. Para o caso de rebeliões ou revoltas, o autor trabalha com
a ideia de que elas podem ser acalmadas pela substituição de deter-
minados governantes. Fato que não poderia se aplicar para os casos
dos insurgentes de 2013 no Brasil.
Percebamos, igualmente, que nessa perspectiva de Pasquino,
referendada por Norberto Bobbio, e bastante utilizada pelo pensa-
mento liberal-social20, não encontramos a revolução como realizada
por uma classe social.

20 O conceito “liberal-social” do ponto de vista da História das ideias é uma verdadeira aberra-
ção, pois os liberais historicamente se opuseram a qualquer perspectiva que privilegiasse
o social. Não obstante, Norberto Bobbio passou a utilizá-lo como tentativa de associar as-
pectos que ele atribui como positivos da economia de mercado, com preocupação social
em único projeto denominado por esse termo.

2013 - revolta dos governados 89


Coube a Karl Marx e F. Engels (1848) associarem o conceito de
revolução ao de luta de classes.21 A proposta de revolução, realizada
pelos autores atribuiu às classes operárias o poder revolucionário
como fruto de uma lei da história, com veio bastante determinista.
Por razões objetivas, a classe proletária, somente ela, pois os cam-
poneses estariam mais próximos da reação do que da revolução, de
acordo com os autores, faria a revolução associada ao desenvolvi-
mento das forças produtivas. Assim, o movimento revolucionário
consistiria na tomada do poder político e, como resultado desse
processo, na implementação do socialismo - a ditadura do proleta-
riado -, ocasionando na concentração de todo o poder nas mãos do
Estado que agora seria proletário. Assim, a partir do alto, esse novo
governo controlaria toda a vida social, política e econômica, garan-
tindo a distribuição de renda e o fim das desigualdades sociais para
que num segundo momento fosse possível alcançarmos o fim da
distinção de classes. Percebemos que o marxismo parte do princí-
pio de que todo Estado pertence a uma determinada classe social,
a dominante. Do ponto de vista prático, a Revolução Russa de 1917
significou em grande medida a aplicação do marxismo na realidade,
fato que não garantiu a liberdade, emancipação e autonomia dos
trabalhadores, que continuaram sob governo de ex-trabalhadores
que viraram novos burocratas.22
Seguindo a linha interpretativa marxista, Michel Löwy (2009)
concebe o conceito de revolução da seguinte maneira:

“A revolução é etimologicamente uma reviravolta: inverte as hierar-


quias sociais ou, antes, recoloca no lugar um mundo que se encon-
tra do avesso (...) de inspiração igualitária que visavam distribuir a

21 K. Marx e F. Engels são expoentes de uma das interpretações mais clássicas acerca do socialis-
mo e autores do “Manifesto Comunista”, reverenciado em todo o mundo pelos seus se-
guidores, como a publicação mais importante sobre o assunto desta corrente.
22 Sobre esse assunto, ver Castoriadis (2010), principalmente capítulo 1.

90 wallace de moraes
terra e as riquezas, abolir as classes e entregar o poder aos traba-
lhadores”

Terminantemente, os modelos de revolução supracitados, tan-


to do liberalismo, quanto do marxismo, ou mesmo do social-libera-
lismo, não se aplicam aos anseios dos insurgentes que enfrentaram
o Estado, a polícia e atacou o grande capital, representado pelos
bancos no Brasil. Eles não são apropriadas para entender a luta por
uma vida livre, que só pode ser pensada sem estar sob o julgo de
quaisquer governos.
Em resumo, essas definições são insuficientes para explicar as
ações diretas da revolta dos governados de 2013 no Brasil. A sim-
ples transferência conceitual de um contexto europeu do século XIX
para os acontecimentos no Brasil incorre em erros epistemológicos
graves. Pari passu, o entendimento de revolta ou rebelião, realizado
na perspectiva estadolátrica tanto liberal, quanto marxista, estava
deveras longe da realidade construída pelos insurgentes.
As perspectivas de revolução supracitadas foram denominadas
por anarquistas clássicos, como Bakunin e Kropotkin, de revolução
política, significando na prática a substituição de um grupo por ou-
tro no poder estatal. Em contraposição a elas, eles criaram o concei-
to de revolução social.
Um dos desenvolvimentos clássicos sobre essa categoria pode
ser apreendido em texto de Bakunin [1871] (2008), que contem suas
reflexões sobre a Comuna de Paris. Diz ele:

“Contrariamente a esse pensamento dos comunistas autoritários,


(...) de que uma revolução social pode ser decretada e organizada,
seja por uma ditadura, seja por uma assembleia constituinte, ema-
nada de uma revolução política, nossos amigos, os socialistas de Pa-
ris, pensaram que ela não podia ser feita, nem alcançar seu pleno
desenvolvimento, senão pela ação espontânea e contínua das mas-
sas, dos grupos e das associações populares” (Bakunin, 2008: 125).

2013 - revolta dos governados 91


É importante frisar que o conceito de revolução social vem
agregado, no pensamento anarquista, a duas outras categorias fun-
damentais, sem as quais não seria factível. Trata-se da ampla liberda-
de e da igualdade. Aquela só é efetiva quando todos a possuem, isto
é, a liberdade de um é a perfeita extensão da liberdade do outro,
portanto é complementar e necessária e só é possível sob a igualda-
de econômica e social.
A partir dessas primeiras impressões, já temos dados suficien-
tes para entender o conceito de Revolução Social defendido pelos
anarquistas. Ele vem associado à perspectiva do autogoverno.
Nada melhor do que começar a discutir o supracitado conceito
de Revolução Social, através dos escritos de Piotr Kropotkin, com
um aperitivo bastante insinuante. Uma monografia de sua autoria,
apresentando sua justificativa para a palavra anarquia. O texto de-
nomina-se “A Ordem” e foi publicado no livro “Palavras de um re-
voltado” [1882] (2005), descrevendo o seu entendimento de ordem
e de anarquismo. Ele começa justificando a atribuição denominada
aos revolucionários socialistas, respondendo a um amigo que teria
dito que concordava com as posições dos anarquistas, todavia acha-
va que o nome teria sido mal escolhido por expressar desordem.
Vejamos sua resposta:

“(...) o nome não foi mal escolhido, visto que encerra uma ideia: ex-
prime a negação de todo o conjunto dos fatos da civilização atual,
com base na opressão de uma classe por outra; na negação do regi-
me econômico atual, a negação do governamentalismo e do poder,
da política burguesa, da ciência rotineira, do moralismo burguês (...)
resumindo a negação de tudo o que a civilização burguesa cerca
hoje de veneração.”

Kropotkin, defendendo seus companheiros que adotaram o


polêmico nome como autodenominação e usando de toda sua in-
teligência, inverte a relação maniqueísta entre ordem e desordem,

92 wallace de moraes
valorizando esta, associando-a ainda com o anarquismo e por conse-
quência desmascarando o real significado do tão venerado sistema
liberal e conservador. Vejamos:

“(...) a ordem é a miséria, a fome, tornadas estado normal da so-


ciedade (...) A ordem é a mulher que se vende para alimentar seus
filhos (...) é o operário reduzido ao estado de máquina. (...) A ordem
é uma minoria ínfima, educada nas cátedras governamentais, que se
impõe por esta razão à maioria, e que prepara seus filhos mais tarde
para ocupar as mesmas funções, a fim de manter os mesmos privi-
légios, pela astúcia, pela corrupção, pela força, pelo massacre. (...)
A desordem é a insurreição dos camponeses contra os sacerdotes
e os senhores, incendiando os castelos para dar lugar às choupa-
nas, saindo de seus esconderijos para ocupar seu lugar ao sol. (...)
A desordem, – o que eles denominam de desordem – são as épocas
durante as quais gerações inteiras mantêm uma luta incessante e se
sacrificam para preparar uma existência melhor para a humanidade,
livrando-a das servidões do passado. São épocas durante as quais o
gênio popular toma seu livre impulso e dá, em alguns anos, passos
gigantescos, sem os quais o homem teria permanecido no estado
de escravidão antiga, de ser rastejante, aviltado na miséria. (...) A
palavra anarquia, implicando a negação desta ordem e invocando
a lembrança dos mais belos momentos da vida dos povos, não foi
bem escolhida para um partido que caminha para a conquista de um
futuro melhor?” (Kropotkin, 2005: 87-89).

A partir dessa citação, já temos muitos elementos para discus-


são. A ordem, sob o manto normalmente de segurança e da paz,
busca verdadeiramente garantir o usufruto de enormes riquezas
por alguns em meio a grandes necessidades e de escravidão de mui-
tos. Simultaneamente, no mesmo diapasão, tudo que vai de encon-
tro a esta ordem é repelido e encaixado no conceito de desordem.

2013 - revolta dos governados 93


Ademais, a ordem apresenta hierarquias sociais e a exploração
de uns sobre outros como naturais. A ordem é a criminalização da
luta e da ação direta, tanto dos quilombos, por exemplo, como dos
insurgentes de 2013, enfim, em todo lugar e em qualquer tempo.
A desordem, bem como o anarquismo, significam o extremo
oposto: o incentivo de toda luta, toda ação direta, toda revolta, con-
tra a ordem ignóbil. Em resumo, tanto a desordem quanto o anar-
quismo podem ser corretamente confundidos com uma categoria:
Revolução Social, que deve ser entendida como busca pelo autogo-
verno, quando os produtores não terão que respeitar leis criadas
por quaisquer governantes, que sequer existirão, muito menos, hie-
rarquias e explorações.
Encontramos, destarte, um dos principais postulados de diver-
sos setores populares e rebeldes que a teoria anarquista conseguiu
concatenar. Referenda-se, portanto, um verdadeiro guia metodoló-
gico, seja do ponto de vista político, sociológico ou histórico. Trata-
-se da extrema valorização da insurgência, da luta direta contra as
hierarquias, autoridades, desigualdades, explorações, escravidões,
sexismos e racismos. Assim, toda forma de luta por uma vida digna
é valorizada por diferentes insurgentes. O mérito de Kropotkin foi
simplesmente materializar isso em redação.
O segundo conceito para ajudar a entender o papel exercido
pelos insurgentes de 2013 no Brasil é o de auto-instituição, vislum-
brado por Castoriadis (2002). Com vistas a justificar a categoria, Cas-
toriadis ressalta que grande parte dos pensadores tentou ocultar o
fato de que a sociedade se auto-institui, buscando apresentar suas
instituições como tendo uma origem extra-social, divina, racional ou
como sendo fundada em leis da história. O principal objetivo dessa
ocultação foi retirar por completo o papel dos homens na criação do
seu próprio mundo. Foi a negação da crítica radical das instituições
existentes, bem como da possibilidade de instituir novas formas de
convívio social. O conceito de auto-instituição, portanto, deve ser
compreendido a partir do fato de que os homens não necessaria-

94 wallace de moraes
mente precisam ter compromissos com as instituições existentes,
com o Estado, com o capitalismo, com a escravidão, com o racismo.
Por consequência, partimos do princípio de que a sociedade deve
ter a liberdade de se auto-instituir; a história deve ser tratada como
auto-instituição da comunidade que pode definir suas regras, sem
que exista camisa de força que a prenda a determinadas leis/insti-
tuições criadas por outros, de maneira autoritária. Por este ângulo é
possível legitimar as ações de insurgentes na busca pela construção
de um novo mundo através das lutas sociais.
Outro conceito é o de Ação Direta. Ele deve ser entendido
quando os homens, através de suas próprias mãos, sem represen-
tantes, realizam as ações que resultarão na sua liberdade. Assim,
Makhno (2001) descrevia a ação de camponeses durante a Revolu-
ção Russa na Ucrânia, em 1917:

“Os camponeses puseram-se a expropriar diretamente os proprie-


tários dos pomestchikis, kulaks, dos monastérios e das terras do
Estado, assim como do gado, instituindo, sempre diretamente, co-
mitês locais de gestão desses bens, para sua repartição entre os di-
ferentes vilarejos e comunas” (Makhno, 2001:21).

Na continuidade das palavras do anarquista insurreto ucraniano:

“Um anarquismo instintivo transparecia em todas as intenções dos


camponeses da Ucrânia naquele momento exprimindo um ódio
não-dissimulado por toda autoridade estatal, acompanhada de uma
aspiração a libertar-se dela” (Makhno, 2001:21).

Peter Gelderloos (2007), um ardoroso defensor da ação direta


como forma de luta pela liberdade e autonomia, corroborando para
as teses de Makhno, afirma que a não violência é racista, estatis-
ta, machista e, especialmente, ineficaz para atingir os objetivos da

2013 - revolta dos governados 95


emancipação. Apresentamos duas passagens de suas reflexões para
ajudar-nos a compreender o nosso objeto de estudo. Vejamos:

“Partindo do fato de que o típico pacifista é, evidentemente, bran-


co e de classe média, está claro que o pacifismo, como ideologia,
vem de um contexto de privilegiados. Este ignora que a violência já
existe, que a violência é uma parte inevitável e estruturalmente inte-
gral das hierarquias sociais existentes; que as pessoas não brancas
são as mais afetadas por esta violência. O pacifismo assume que as
pessoas brancas que se criam nos bairros abastados, com todas as
suas necessidades básicas saciadas, podem aconselhar os oprimidos
– muitos deles não brancos – para que sofram esta violência com pa-
ciência, esperando que consigam convencer ao Grande Pai Branco23
sobre as demandas de seu movimento, ou que este movimento con-
siga se conectar com a lendária massa crítica da qual sempre falam.”

“A não violência afirma que os índios americanos poderiam ter


lutado contra Colombo, George Washington, e todos os demais
carniceiros genocidas através de bloqueios sentados (...) que os
africanos e africanas poderiam ter detido o comércio escravocrata
com greves de fome e petições, e que os que se amotinaram foram
tão maus quanto seus raptores; que o motim é uma forma de vio-
lência que leva a mais violência, e, deste jeito, a resistência conduz
a mais escravidão. A não violência se recusa a reconhecer que estes
esquemas só funcionam para as pessoas brancas privilegiadas, que
tem um status assegurado pela violência, como perpetuadores e be-
neficiários desta violência hierárquica.”

Fato é que inúmeros insurgentes através da ação direta de-


fenderam-se e tentaram construir um mundo que não marcaria
semelhança com o do dominador com aspectos anti-estatais e an-

23 Denominação utilizada por certos grupos indígenas da América do Norte para designar o
governo dos brancos.

96 wallace de moraes
ticapitalistas, portanto, claramente auto-instituinte, podendo ser
chamado por revolução social, constituída a partir da ação pela pro-
paganda de seus membros.
Nicolas Walter (2000) descreve sobre diferentes tipos de ação
anarquista. O principal deles é o de ação direta e reivindicado por
praticamente todos os anarquistas. Segundo ele, a categoria foi uti-
lizada pela primeira vez em 1890 e significava apenas o antônimo de
ação parlamentar, enquadravam-se nesse conceito as greves, boico-
tes e sabotagens. Hoje, o conceito engloba também ocupações de
fábricas, escolas, universidades e bases militares. O objetivo dessas
ações era conseguir algum resultado concreto e não apenas publici-
dade para o movimento. Enquanto a “Propaganda pelo Fato” este-
ve muito mais ligada à publicidade para o movimento sem obtenção
de um ganho palpável. Não obstante, a ação direta foi muitas vezes
confundida com outros conceitos como o de “propaganda pelo ato”
(ou pelo fato ou através da ação) e de desobediência civil. Segundo
o autor, um dos responsáveis foi Gandhi, que chamou de Ação Dire-
ta a forma não violenta de desobediência civil que realizava. Por fim,
Walter trata de mais uma forma de ação anarquista: “Protesto Per-
manente”. Embora o autor tenha uma visão um tanto quanto pessi-
mista dessa ação, nós a trataremos como uma categoria importante
para entendermos a continuidade das ações e atos rebeldes, sem as
massas, que foram perpetrados depois de junho de 2013 por muitos
anarquistas e revolucionários em geral. Fato que os fragilizou, tor-
nando-os presas fáceis para os governantes penais e jurídicos, mas
que tentou manter acessa a chama insurgente de junho.
Henry Thoreau (1997) fez uma reflexão fundamental para en-
tendermos a hipocrisia vigente sobre o suposto direito de revolu-
ção. Vejamos:

“Todos os homens reconhecem o direito de revolução, isto é, o di-


reito de recusar lealdade ao governo, e opor-lhe resistência, quando
sua tirania ou sua ineficiência tornam-se insuportáveis. Mas quase

2013 - revolta dos governados 97


todos dizem que não é este o caso no momento atual.” (Thoreau
(1997) in “A Desobediência Civil”).

Na realidade, na teoria política, os direitos à revolução e à re-


sistência são permitidos desde que favoreçam à maior parte dos go-
vernantes econômicos, socioculturais, penais, jurídicos e políticos.
Em outras palavras, o que Thoureau quer nos dizer é que esses di-
reitos são normalmente usados de maneira conveniente às elites e
contra a liberdade dos governados.
Em resumo, julgamos que os conceitos de Revolução Social,
Auto-Instituição Social, Ação Direta, Propaganda pelo Ato e de Pro-
testo Permanente, muito utilizados pelo pensamento anarquista
revolucionário, podem perfeitamente ajudar na compreensão e ca-
racterização da luta insurgente no Brasil, principalmente, no Rio de
Janeiro.
Antes de passarmos para a análise dos fatos propriamente,
cabe deixar claro a nossa diferença com a neutralidade axiológica
weberiana24, pois entendemos que o historiador/cientista social é
um agente político extremamente reflexivo sobre o passado, a par-
tir da perspectiva do presente e com claras pretensões de proposi-
ções para o futuro. Definitivamente, sempre se escreve a partir de
uma visão subjetiva política de mundo. Nesse sentido, não só, não
hesitamos em assumir que escrevemos em favor da liberdade e da
igualdade, como ademais, nos orgulhamos. E, por fim, não podemos
ser neutros se vivemos em sociedades absolutamente injustas, pois
seria assumir uma postura a favor da manutenção do status quo.
Em síntese, o método anarquista baseia-se na ideia de que a
ação direta dos governados constitui-se enquanto motor da histó-
ria, isto é, é o movimento popular autônomo tomando as ruas, fa-

24 A melhor crítica da definição da neutralidade axiológica de Weber é realizada por Més-


záros (2008:25): “Weber se dispõe a construir um instrumento neutro de análise e acaba
por produzir uma arma ideológica que – longe de ser “neutra” – torna-o capaz de descar-
tar-se do adversário ideológico sem mesmo lhe dar ouvidos”.

98 wallace de moraes
zendo greves, organizando-se coletivamente, autogerindo-se, que
pode fazer as mudanças substantivas para melhoria da qualidade
de vida, como um verdadeiro processo de auto-instituição. Nesse
sentido, o nosso diferencial é estabelecer uma teoria das ruas e não
uma teoria para as ruas. Assim estaremos seguindo os exemplos de
Bakunin (2008) e Kropotkin (2005)25, quando teorizaram sobre a Co-
muna de Paris.
Uma teoria das ruas deve estar comprometida com os sinais
emitidos por elas, problematizando-os, tentando decifrá-los. Dife-
rente de outras perspectivas que almejam tutelar os governados,
dizendo-lhes o que deveriam ter feito ou devem fazer; nós quere-
mos entender os seus sinais, que também são os nossos, pois somos
parte desse povo. A primeira perspectiva parte de um plano pré-es-
tabelecido; a nossa, ao contrário, deve aprender junto e construir
coletivamente o novo mundo. Para nós, os maiores exemplos de Re-
volução Social, Ação Direta e Auto-Instituição Social no país foram
realizados pelos diversos quilombos, que ao construírem seu mun-
do, o realizaram em completa dissonância dos valores estatistas e
capitalistas europeus. Deixemos os governados se auto-instituirem.
Antes de continuar, cabe mais uma ressalva metodológica, que
está centralmente guiando essa pesquisa: uma pessoa livre não obe-
dece a ordens! Se ela é obrigada a obedecer (sem possibilidade de
debate, participação ou deliberação, em uma palavra, isegoria) du-
rante todo o tempo ou parte de seu tempo de vida, ela não passa
de uma escrava. Um ser livre não deve ser obrigado a obedecer à
exploração ou opressão por qualquer forma de violência, mas aten-
de a pedidos e/ou desempenhará suas responsabilidades sociais que
considerar justas. Esse talvez seja o núcleo central do pensamento
libertário.

25 Ver Kropotkin (2005), especialmente o capítulo destinado à análise de “A Comuna de


Paris”.

2013 - revolta dos governados 99


2. A REVOLTA E SUAS
INTERPRETAÇÕES1
fonte: ruy barros
“Quanto à ciência morta, a ciência falsificada, cujo único objetivo é
introduzir no povo todo um sistema de falsas noções e concepções,
ela seria para este último verdadeiramente funesta; ela lhe inocu-
laria o vírus social oficial e, de todo modo, o desviaria, ao menos
por um tempo, do que é hoje a única coisa útil e salutar: a revolta”
(Bakunin, 2009: 23).

Comentando sobre os protestos na Turquia, Slavoj Zizek (2013)


disse o seguinte:

“A luta pela interpretação dos protestos não é apenas ‘epistemo-


lógica’; a luta dos jornalistas e teóricos sobre o verdadeiro teor dos
protestos é também uma luta ‘ontológica’, que diz respeito à coisa
em si, que ocorre no centro dos próprios protestos. Há uma batalha
acontecendo dentro dos protestos sobre o que eles próprios repre-
sentam”(...).

Igualmente, no Brasil, há uma grande disputa sobre a narrati-


va da Insurgência dos Governados de 2013. Por razões teóricas/po-
lítico-eleitorais/ideológicas, muitos intelectuais participam de uma
querela sobre os seus motivos, características e resultados. Portan-
to, apontaremos elementos para identificar o que está por trás de
cada uma dessas correntes interpretativas. Faremos também um
debate sobre as formas metodológicas de construção da história.
No bojo dessa discussão, apresentaremos algumas teses a partir da
nossa observação participante, da narrativa de colegas e de diversas
fontes secundárias como jornais, revistas, blogs e mídias sociais em
geral.
Do ponto de vista metodológico, existem duas maneiras de se
produzir teorias sobre a Revolta dos Governados de 2013 no Brasil.

1 Uma primeira versão desse capítulo foi publicada em Ferreira (2016).

2013 - revolta dos governados 103


Uma dessas é pela lente da televisão. Em outras palavras, caso o
analista tenha ficado em casa assistindo parte dos acontecimentos
que foram transmitidos, alguns deles ao vivo, produzirá uma aná-
lise enviesada pela censura das câmeras e pelos comentários dos
jornalistas muito bem pagos para criminalizar toda e qualquer re-
volta popular contra o establishment. É necessário lembrar que to-
dos os repórteres identificados nas passeatas foram imediatamente
expulsos pelos manifestantes, pois estes sabiam como as notícias
eram tendenciosamente preparadas contra o movimento. As ima-
gens, com efeito, foram produzidas por jornalistas disfarçados e/
ou por helicópteros das emissoras. Quase a totalidade das resenhas
publicadas nos diversos jornais e revistas ou mesmo divulgadas por
entrevistas e comentários nas televisões, rádios e internet sobre o
processo foram elaboradas a partir das lentes televisivas e com a
sua já sabida censura. 2 As análises sob estas condições, salvo ra-
ríssimas exceções, incorreram em erros absurdos e colaboraram
diretamente para a reprodução dos preconceitos difundidos pelos
oligopólios midiáticos.
O analista também poderia produzir uma interpretação a par-
tir da sua participação nas passeatas. Por consequência, devemos
levar em conta um outro determinante para essa opção: o local
pelo qual se produziu a leitura é importantíssimo. Por exemplo, nas
passeatas, no Rio de Janeiro, dos dias 17 e 20 de junho, respectiva-
mente, com aproximadamente 400 mil e 1,5 milhão de pessoas, o
analista pode dizer que a mesma tinha uma característica naciona-
lista, carnavalesca, reformista ou revolucionária. Se o cientista social
não tiver a sensatez de tentar olhar a passeata como um todo, ele
tenderá a produzir uma interpretação absolutamente equivocada,

2 Os oligopólios de comunicação de massa no Brasil historicamente assumiram uma postu-


ra antipoder popular, criticando suas reivindicações, greves, passeatas etc. Para mais de-
talhes ver: De Moraes (2013) em: http://www.otal.ifcs.ufrj.br/a-cobertura-antipopular-da-
-midia-no-brasil-contemporaneo

104 wallace de moraes


para a totalidade, mas real, para um aspecto focal. Ele não pode,
portanto, estabelecer seu olhar micro e colocá-lo como regra. 3
Feitas as ressalvas metodológicas, e antes de escrevermos so-
bre o processo propriamente, vejamos as principais argumentações
desenvolvidas por diferentes intelectuais sobre a Revolta dos Go-
vernados de 2013. Passemos às análises em disputa.
Ao examinarmos a insurreição popular de 2013 no Brasil, identi-
ficamos a existência de pelo menos cinco interpretações puras e al-
gumas outras que se constituíram como amálgama de duas delas ou
mais. Das cinco, podemos considerar três como plutocráticas, pois
consistem na defesa de administrações públicas voltadas para aten-
der os interesses prioritariamente dos governantes da economia e,
nesse sentido, se apresentam veementemente contra toda forma
de poder popular.
Podemos resumir as cinco interpretações para o caso específi-
co da Revolta dos governados, da seguinte maneira:
1) Plutocrática Neoliberal Dissimulada4 - Foi divulgada pelos
jornalistas e intelectuais simpatizantes do petismo, cujo principal
objetivo foi isentar o governo federal de responsabilidade pelo des-
contentamento dos governados. Buscou levar a crer que o povo
estava nas ruas não contra os pseudos representantes políticos e
suas instituições, mas por questões absolutamente laterais que essa
mesma intelectualidade focou como essencial. Ainda apresentou a

3 Assim, por exemplo, se ele não esteve na linha de frente da resistência aos ataques da
polícia, poderá facilmente classificar os resistentes como “vândalos”, um equívoco abso-
lutamente deplorável e criminalizador dos lutadores populares.
4 Dirigida oficialmente pelo petismo, governou abertamente em prol dos ricos, mas procu-
rou aparentar a defesa dos interesses dos trabalhadores. Da nossa parte, não lemos o
governo do Partido dos Trabalhadores como parte da esquerda oficial, pois através de
suas políticas públicas implementou um programa muito similar ao partido neoliberal
que o antecedeu no poder, o PSDB, de Fernando Henrique Cardoso. Ambos os partidos,
embora se apresentem como oposições um ao outro, implementam uma política muito
semelhante em vários sentidos, diferenciada, sobretudo, pelo ciclo de crescimento eco-
nômico mundial. Para mais detalhes, Ver De Moraes (2018).

2013 - revolta dos governados 105


tese, segundo a qual o movimento insurgente era manipulado por
setores de direita que queriam a diminuição de impostos e/ou tomar
a governança política por meio de golpe militar. Tentou induzir for-
temente também que se tratava de manifestantes de classe média.
2) Plutocrática Neoliberal Desavergonhada5 - Propalada por
aqueles que aproveitaram a revolta para criticar a governança pluto-
crática petista a partir de conjecturas características da teoria liberal
de Nozick, Hayek, Friedman e outros. Procurou encontrar na Revol-
ta atributos que atendessem aos seus anseios políticos-eleitorais,
buscando canalizar toda a raiva dos governados contra todos os
políticos para ficar apenas contra o petismo. As ações diretas foram
narradas como desprovidas de qualquer cunho político, somente
como ato de “vandalismo”.
3) Plutocrática Neoliberal Conservadora Agressiva6 - Realiza-
da por grupos que não estavam muito colegiados politicamente
em 2013. Todavia, a partir de 2014 esse setor ganhou corpo com a
organização e adesão de diversos segmentos das governanças pe-
nais (polícias militares, civis, forças armadas etc) e de determinadas
Igrejas evangélicas e católicas, dotadas de receio das mudanças
sociais, principalmente comportamentais, propostas e potenciali-
zadas pelos insurgentes em 2013. Advogaram por um golpe militar
para instaurar a ordem, ou o integralismo7, e manter as tradições
conservadoras de respeito às hierarquias, às autoridades dos gover-
nantes penais e ao modus vivendi religioso comportamental. Com

5 Dirigida pelos tucanos e peemedebistas - governou para os ricos e com pouca preocupa-
ção em simular defender interesses populares.
6 Dirigida por setores que em 2013 eram minúsculos e desorganizados. Como reação a
2013, segmentos de militares, latifundiários, evangélicos, populares penalizantes se aglu-
tinaram na campanha de Bolsonaro para a presidência da República. Esses setores defen-
dem um governo em favor dos ricos através da centralização do poder, verticalização,
nacionalismo, conservadorismo comportamental, extermínio físico de pessoas que aten-
tem contra a ordem e a propriedade, com forte repressão sobre os divergentes.
7 Integralismo foi um movimento liderado por Plínio Salgado, nos anos 1930 no Brasil, e
advogava muitos dos princípios do fascismo europeu.

106 wallace de moraes


efeito, igualmente às demais interpretações plutocráticas, criticou
os ataques às instituições estatais, ao capital e, principalmente, aos
costumes e tradições comportamentais conservadoras.
As principais características das análises plutocráticas acima
descritas, em seu conjunto, foram clamar pela integridade: do ca-
pitalismo, do Estado e das suas instituições, enfim, do status quo,
apresentando-as como produto do último estágio e mais avançado
da história da humanidade, como impassíveis de alterações profun-
das. Elas foram amplamente divulgadas pelos oligopólios de comu-
nicação de massa no Brasil. As análises plutocráticas Conservadoras
Agressivas, além de legitimar o Estado e o capitalismo, também aba-
lizam uma grande ênfase na defesa da família tradicional, criticando
toda forma de liberdade, de orientação sexual, de gênero, negando
ainda a existência do racismo ou mesmo justificando-o.
Outras duas análises vieram:
4) da esquerda oficial institucional, ou simplesmente, refor-
mista, que se constitui como oposição governamental à plutocra-
cia vigente. Defende o Estado e suas instituições, a dicotomia entre
governantes e governados, mas diferencialmente advoga que o go-
verno implemente políticas sociais para os trabalhadores. Do ponto
de vista comportamental, possui uma postura mais libertária, defen-
dendo a liberdade de orientação sexual, a liberalização das drogas,
a defesa dos direitos humanos e, ainda, critica o racismo na socie-
dade. Esta interpretação percebeu o processo de duas formas an-
tagônicas: a) positiva, pois colocou em xeque o governo (situação),
aumentando suas possibilidades de êxito eleitoral; b) negativa, pois
o processo não foi dirigido por ela e não atendeu aos seus anseios
eleitorais. A penetração social da esquerda oficial era bastante pe-
quena, a verificar pelos seus votos nas últimas eleições nacionais em
2014 para presidência da República, quando não alcançou nem 2%
com as somas dos votos de PSOL, PSTU e PCB. Não obstante, possui
razoável penetração no meio sindical e estudantil universitário. As

2013 - revolta dos governados 107


interpretações desse campo não viam com bons olhos a tática Black
Bloc, nem a propaganda pelo ato, utilizada pelos revolucionários.
5) dos setores revolucionários - que podem ser subdivididas em
duas. A primeira cunhamos de revolucionária libertária ou anarquis-
ta, pois defende a autogestão - acabando com a dicotomia entre
governantes e governados - o fim do Estado e a ação direta como
forma de atuação para superar o capitalismo. A segunda possibilida-
de revolucionária é a vanguardista, que coincide em grande medida
com os princípios anarquistas e/ou da esquerda oficial, sendo con-
trária à participação institucional. Defende o processo revolucioná-
rio e, portanto, apoia a insurgência popular contra as instituições.
Propalada por diversos coletivos combativos e não institucionais –
muitos deles adotaram a tática Black Bloc.
A interpretação revolucionária foi a grande novidade entre os
atores políticos. Negou todos os governos e defendeu a Revolta
como ela foi, com algumas críticas pontuais, mas exaltando a ação
direta, a propaganda pelo fato, a horizontalidade, a combatividade
dos manifestantes e o empoderamento dos governados sem inter-
mediários. Do ponto de vista comportamental, essa interpretação
defende a mais ampla liberdade de orientação sexual e uma postura
antirracista, apontando inclusive para a autodeterminação dos po-
vos, através da criação de comunas federadas.

108 wallace de moraes


Quadro 1: Descritivo das interpretações sobre o Levante e das forças
políticas que as compuseram.

Interpretações Forças políticas que a compuseram

Jornalistas dos oligopólios de comunicação de massa; governan-


tes, intelectuais e políticos do: PT, PCdoB, MDB e PDT. Sindica-
Plutocrática
listas ligados às centrais sindicais dirigidas por esses partidos.
Neoliberal
Empreiteiros, banqueiros, empresários e capitalistas em geral,
Dissimulada
alinhados e apoiadores das políticas plutocráticas implementa-
das pela governança política petista.

Jornalistas dos oligopólios de comunicação de massa; gover-


Plutocrática nantes, intelectuais políticos dos partidos da então oposição
Neoliberal neoliberal “oficial”: PSDB, DEM, PTB, PPS, PSB. Empreiteiros,
Desavergonhada banqueiros, empresários e capitalistas em geral alinhados às
ideias plutocráticas neoliberais desavergonhadas.

Integralistas (grupos minúsculos que reivindicaram uma espécie


de fascismo tupiniquim), diversos integrantes das mais variadas
governanças penais no Brasil como militares, policiais, guardas
Plutocrática municipais, seus familiares e amigos, setores ligados às igrejas
Neoliberal conservadoras católicas e protestantes. Em 2013, esse grupo ain-
Conservadora da não estava altamente organizado politicamente com divul-
Agressiva gação de suas ideias, mas desde início de 2014 passou a ganhar
corpo e coesão política. A família Bolsonaro, o MBL e outros
think tanks figuraram como quadros catalisadores e propagan-
distas dessas ideias.

Esquerda Oficial Intelectuais e políticos do PSOL, PSTU, PCB, movimentos sociais,


Estatista estudantis e sindicatos ligados a esses partidos.
Intelectuais e coletivos autônomos, anarquistas, libertários e
Revolucionária marxistas não institucionalizados /movimentos sociais ligados à
luta pela moradia e outros.
Fonte: elaboração própria.

2013 - revolta dos governados 109


Passemos em revista agora os aspectos metodológicos, te-
óricos e as interpretações da Revolta dos governados por essas
diferentes perspectivas. Comecemos pelas análises plutocráticas
oficiais.

2.1 CARACTERÍSTICAS DAS ANÁLISES


PLUTOCRÁTICAS OFICIAIS

As disputas entre as correntes plutocráticas desavergonhada


e dissimulada reduzem-se ao modelo de gestão adotada por cada
uma: ambas disputam o amparo dos governantes da economia, isto
é, grandes banqueiros, industriais, empreiteiros e representantes
de peso dos capitalistas, donos do “mercado”. Até o crescimento
do Ativismo Conservador Agressivo, os governantes socioculturais
com seus oligopólios de comunicação de massa apresentavam as te-
ses daquelas oposições quase que exclusivamente para a sociedade
como se fossem as únicas. No que concerne à interpretação sobre o
Levante, elas convergiram em larga escala, porque foram igualmen-
te contestadas/rechaçadas pelas ruas.
Trataremos inicialmente dos seus postulados comuns e depois
abordaremos suas características idiossincráticas. Quando falarmos
sobre o que possuem em comum, a denominaremos por interpreta-
ção oficial. Comecemos.
Do ponto de vista teórico, a interpretação oficial é guiada pela
perspectiva liberal e, particularmente, pela teoria da democracia
minimalista, segundo a qual as manifestações de rua atrapalham o
bom andamento da democracia, pois colocam demandas para o go-
verno que ele não pode atender em função dos seus compromissos
com as contas e as leis do mercado (accountability). Isto é, os inte-
resses do mercado, dos capitalistas, são tratados como prioritários
com relação às reivindicações dos governados. Na teoria política,
são muito comuns essas análises. Autores como Schumpeter (1984),

110 wallace de moraes


Lipset (1963) e diversos outros são expoentes daquilo que alguns
chamam de teóricos da democracia minimalista, nós preferimos
chamá-los por pensadores plutocráticos.
Da perspectiva metodológica, é mister ressaltar que detecta-
mos uma relação direta entre a filiação ideológica do autor e suas es-
colhas. Em sendo liberal, conservador, simpatizante do governo, ou
crítico deste a partir das teses ultraliberais, tendeu a buscar meios
de criticar o mais fortemente as manifestações, sobretudo por as-
pectos moralistas. Mesmo que por vezes, cinicamente, alegasse que
eram legítimas. Apresentou suposições para dizer que os protestos
não foram populares, mas da classe média que não teria o que rei-
vindicar, pois possuía condições de obter seus direitos através do
mercado. Aliás, quando os intelectuais plutocráticos afirmaram com
todas as letras que o movimento foi de classe média, buscando des-
merecê-lo, surgiu uma dúvida: onde eles se posicionam dentre as
classes sociais? Será que os professores da USP e os jornalistas que
apoiam os governos plutocráticos se incluíam no interior do opera-
riado ou mesmo do campesinato? A saber...
Outro aspecto desse campo intelectual foi a defesa autoritá-
ria das instituições estatais e de mercado existentes, como se elas
expressassem o último estágio da evolução humana e, portanto,
portadora da razão, no termo de Georg Hegel. Essa opção analítica
está embebida tanto pela ideia do fim da História, completamente
guiada por uma miragem evolucionista, como, ademais, busca ne-
gar, por completo, o conceito de auto-instituição social. Ou seja, não
é permitido à sociedade negar as instituições existentes, pois estas
significam o que há de mais avançado, racional, evoluído e democrá-
tico, asseveraram. Um absurdo incomensurável e conservador que
obsta o papel da humanidade de recusar o establishment. Nega sim-
plesmente o papel aos homens de construírem sua própria história.
Essas análises partem de um postulado pré-estabelecido: de-
fender os governantes políticos ou a sua oposição oficial, bem como,
as instituições do Estado e do capital. Assim, buscaram as fontes

2013 - revolta dos governados 111


com interrogações que possibilitassem apenas legitimar seus obje-
tivos iniciais em favor dos governantes. Os historiadores até o início
do século XX eram guiados por essas perspectivas, chamados por
Fontana (2004) de “legitimadores dos donos do poder”. Chomsky
(2017) os chamou de intelectuais conformistas.
Os oligopólios de comunicação de massa, os plutocráticos,
seus jornalistas e intelectuais orgânicos, nunca quiseram os gover-
nados nas ruas, por questões óbvias. Porém, como não podiam pas-
sar por autoritários, usaram um discurso ambíguo defendendo que
a população podia se manifestar, contudo sem direcionar toda sua
raiva acumulada por anos de subordinação, exploração e racismo
contra quem lhes ataca. Eles usaram os termos: “depredação” e
“vandalismo” para depreciar os governados que revidaram os ata-
ques policiais e por consequência quebraram vidraças de bancos e
de prédios estatais. Um discurso moralista e criminalizante contra
a revolta popular, centrado na perspectiva do “homem cordial” de
Sérgio Buarque de Holanda (2001) e seus seguidores, ou mesmo do
Brasil ordeiro, cujas elites dominantes são generosas com seus su-
bordinados no veio de Gilberto Freyre (1998) e outros. O fio con-
dutor dessas análises partiu do ponto de vista da manutenção do
status quo, sem mudanças substantivas.
No início do movimento, esses setores simplesmente ignora-
ram que existia a manifestação. Depois que ela cresceu em função
da então relativamente nova comunicação pelas redes sociais, pas-
saram a divulgá-la, entretanto buscando controlar sua orientação.
Esta visão tentou, também, deturpar suas demandas sociais e co-
locar como prioritário algo que não esteve presente, ou exacerbar
aquilo que figurou apenas lateralmente, como dizer que a popula-
ção necessitava de uma reforma política. Algo absolutamente den-
tro do sistema e que efetivamente não apontava para mudanças
concretas para o bem-estar dos trabalhadores. Assim, tratava-se de
uma reivindicação fluida que fugia do foco principal. Essa corrente
interpretativa “esqueceu” que a luta começou pelo passe livre – ta-

112 wallace de moraes


rifa zero –, por um transporte sem roletas e depois se ampliou com
uma pauta abrangente que incluía, dentre outras coisas, uma crítica
contundente a todos os partidos políticos e governantes em geral, e
contra muitos dos pilares do mercado capitalista existente no Brasil,
como mostraremos mais à frente.
Ademais, os conservadores criticaram a ausência de líderes nas
manifestações que conseguissem supostamente representar a to-
dos, ignorando que essa ausência era a maior expressão do movi-
mento, apresentando-se como horizontal e múltiplo, constituindo
sua maior riqueza.
No afã de atacar a Revolta dos Governados, desmerecendo-a,
várias leituras desse campo chegaram ao desatino de asseverar que
“elas não tinham nada demais” (Oliveira, 2013) ou possuíam um ca-
ráter fascista (Santos, 2013). Um erro grosseiro que demonstra si-
multaneamente o descuido ou o total desconhecimento tanto das
ideias e ações fascistas8, quanto da história popular brasileira e dos
seus signos produzidos nos últimos anos. Esta perspectiva foi guia-
da indubitavelmente por um veio eurocentrista, buscando encon-
trar no Brasil as mesmas glosas europeias.
Esse tipo de julgamento abriu margem para a construção de
um pseudo consenso com vistas a criminalizar os setores mais radi-
calizados anticapitalistas, dos estudantes e governados que partici-
param das manifestações na linha de frente. Em resumo, tratou-se
da tentativa dos ocupantes dos altos postos políticos do país e de
alguns intelectuais orgânicos de dividir os manifestantes em dois
grupos: os “bonzinhos” que exerceram seu papel de cidadania or-
deiramente, foram para as passeatas de verde e amarelo, pintaram
o rosto, portaram bandeiras brasileiras e cantaram entusiasticamen-
8 As perspectivas fascistas caracterizam-se pelos seguintes aspectos: hierarquização social
com claro comando centralizado, representado por um líder (führer, Alemanha; Dulce,
Itália), através de partido político único, com forte disciplina e nacionalismo extremado.
Aspectos que sem dúvida a horizontalidade, e negação dos partidos políticos e a clara
negação de qualquer comando centralizado do processo durante os protestos no Brasil
refutam por si só.

2013 - revolta dos governados 113


te o hino nacional.9 Do outro lado, segundo essa visão, “estavam os
maus, os bandidos, os vândalos, os anarquistas, os black blockers
que queriam ‘depredar’ o patrimônio público e estabelecer a desor-
dem no país, desrespeitando suas instituições”. Sorrateiramente,
tiraram todo o conteúdo reivindicativo e qualquer possibilidade de
auto-instituição social, buscando deslegitimar a ação direta popular
nas ruas contra anos de opressão estatal e capitalista.
Essa tese, formando quase um consenso, foi amplamente di-
vulgada pelos grandes oligopólios de comunicação de massa no
Brasil; por diversos políticos tanto dos poderes Executivos, quan-
to dos Legislativos e seus respectivos partidos (PT, PMDB, PCdoB,
PSDB, DEM, PTB, PDT, PPS e outros menores); por grande parte dos
empresários, empreiteiros e banqueiros que se locupletam das po-
líticas públicas e de contratos vantajosos com o Estado. Simultane-
amente, de forma cínica, pronunciaram que todos tinham o direito
de se manifestar.
Outra polêmica girou em torno da classe social dos manifes-
tantes. Tanto para as interpretações dos intelectuais simpatizantes
ou diretamente ligados ao petismo, quanto para os ligados à pluto-
cracia neoliberal desavergonhada, interessava explicar que não se
tratava do povo indo às ruas, mas de uma “classe média que possuía
tudo do bom e do melhor”. Ela foi às ruas sem motivos, apenas por
hobby (Chaui, 2013), ou por interesses políticos de um campo obscu-
ro, como se fossem de direita e fascistas para desestabilizar o gover-
no (Singer, 2014). Assim, essas interpretações tentaram emplacar a
ideia de que as manifestações eram de classe média, seja por uma
perspectiva positiva (Maricato, 2014), seja negativa (Chaui, 2013; Sin-
ger, 2014), ou mesmo mostrando-se perplexo com o fato de ela rei-
vindicar direitos que lhes são amplamente disponíveis pelo mercado
(Cardoso, 2013). 10 Entendemos que se trata de uma discussão abso-

9 Em suma, mais uma vez a ideologia do nacionalismo foi usada para subordinar o povo.
10 Todas essas análises amparam-se em números divulgados pelos oligopólios de comunica-
ção de massa com a sua já sabida tentativa de desmerecer os protestos.

114 wallace de moraes


lutamente estéril, que tem como resultado principalmente retirar o
foco do essencial. Só interessa entrar nesse debate quem não quer
discutir exatamente os sinais emitidos pelos manifestantes. Até por-
que, de acordo com os dados oficiais, o conceito de classe média
deixou de ter uma vinculação com a percepção popular, segundo a
qual seria formada por pessoas com confortável modo de vida com
casa própria, carro novo etc. Esse conceito foi ressignificado pela
própria governança política petista, de modo a incluir o maior núme-
ro de pessoas pobres como parte da classe média, criando uma far-
sa a partir da estatística. Com efeito, somente podia-se considerar
pobre aquele que recebia uma renda per capita inferior a R$ 140,00
por mês, equivalente a R$ 4,00 por dia11. Decerto que, com esse va-
lor, não era possível fazer nem duas refeições diárias. A classe média
receberia entre R$ 291,00 e R$ 1019 per capita. Nesse contexto, uma
empregada doméstica que recebia um salário mínimo no Rio de Ja-
neiro, R$ 874,75, e tinha dois filhos para sustentar, era considerada
como classe média pela governança plutocrática dissimulada petis-
ta, quando na verdade mal conseguia alimento para si e para seus
filhos, muito menos pagar um aluguel, comprar roupas, lazer etc.
Feito esse breve introito, passemos às análises específicas de
cada campo. Comecemos pelas plutocracias neoliberais desavergo-
nhadas.

11 Segue explicação retirada do próprio site do governo federal: “De modo a desenvolver
uma definição para a nova classe média, a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Pre-
sidência da República (SAE/PR) instituiu, por meio da Portaria Ministerial nº 61, de 27 de
setembro de 2011, um Grupo de Trabalho segundo o qual “uma pessoa é estruturalmente
pobre quando, dadas as características dos membros economicamente ativos da famí-
lia, a renda do trabalho predita, somada às transferências e rendimentos de ativos efe-
tivamente recebidos, leva a uma renda per capita inferior a R$140 por mês.” Sob essa
perspectiva, uma pessoa não pobre vive em uma família com renda per capita superior a
R$140 por mês.Fonte disponível em: http://www.sae.gov.br/wp-content/uploads/Relat%-
C3%B3rio-Defini%C3%A7%C3%A3o-da-Classe-M%C3%A9dia-no-Brasil1.pdf

2013 - revolta dos governados 115


2.1.2 ANÁLISES PLUTOCRÁTICAS NEOLIBERAIS
DESAVERGONHADAS

Podemos dividir a postura do pensamento plutocrático desa-


vergonhado sobre a Revolta dos Governados em três diferentes
momentos: 1º) tentou ignorar que havia protestos; 2º) disputou a di-
reção do movimento; 3º) defendeu a criminalização dos que chama-
ram de “vândalos”. Chegamos a essas conclusões a partir da análise
dos discursos de Arnaldo Jabor, representante do quadro jornalísti-
co da Rede Globo e um dos símbolos do pensamento plutocrático
desavergonhado no Brasil. Vejamos.
Arnaldo Jabor transformou-se, num primeiro momento, em
símbolo às avessas da Revolta dos governados. Na sua fala de 12 de
junho de 2013, Jabor (2013a) arrazoou vários argumentos que fica-
ram marcados e que foram retomados por diferentes intelectuais
ao longo do processo. Percebamos como todos estes tinham por
objetivo deslegitimar os protestos: 1) defendeu que o movimento
não tinha motivos legítimos para ir às ruas, que R$0,20 era muito
pouco; 12 2) disse que a composição era de meninos de classe média
e que não havia pobres que necessitassem dos R$ 0,20; 3) associou
o quebra-quebra das manifestações a ataques de organização crimi-
nosa; 4) colocou os policiais que ganham muito mal, segundo ele,
como vítimas dos meninos de classe média, ameaçados com coque-
téis molotov; 5) atrelou os descontentamentos a uma imensa igno-
rância política; 6) afirmou que os manifestantes não tinham causas,
nem pauta; 7) sugeriu que lutassem pelo fim da PEC 37 13; 8) esbra-

12 R$ 0,20 foi o valor do aumento do transporte público que serviu de estopim para o início
dos protestos.
13 A PEC 37 sugeria incluir um novo parágrafo ao artigo 144 da Constituição Federal, com a
seguinte redação: “A apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1º e 4º deste
artigo, incumbem privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Fe-
deral, respectivamente”. A “grande” sugestão de Arnaldo Jabor resumia-se ao fato de o
Ministério Público ficar de fora das investigações.

116 wallace de moraes


vejou: “os que lutam defendem o socialismo da década de 1950”; 9)
aproveitou e fez críticas ao governo federal em função da inflação
alta; 10) terminou dizendo: “realmente esses revoltosos de classe
média não valem nem R$ 0,20.”
Esse compêndio de discursos gerou uma grande indignação
na sociedade que foi para a rua dizer que “não era por apenas R$
0,20, mas por direitos”. Vários cartazes continham essa frase. As su-
pracitadas intervenções de Jabor, conhecido ícone do pensamento
plutocrático neoliberal desavergonhado no Brasil, pautaram muitos
dos pronunciamentos subsequentes tanto no seu campo ideológi-
co, como de intelectuais plutocráticos dissimulados e da esquerda
oficial. Com o enorme crescimento do movimento, Jabor teve que
fazer a mea-culpa, mas continuou a propor um pleito da plutocracia
minimalista, idólatra do Estado mínimo, e, evidentemente, da crimi-
nalização dos rebeldes.14

14 Ver Jabor, 2013b.

2013 - revolta dos governados 117


Inaugurava-se o segundo momento da postura do pensamento
plutocrático desavergonhado sobre os protestos. Em suma, a gran-
de mídia sentiu a perda de espaço e se apresentou, como se estives-
se ao lado dos manifestantes.
A tergiversação de Jabor representou a de toda a grande mí-
dia. Ela aconteceu por vários motivos: 1) o número de pessoas nas
ruas aumentava exorbitantemente; 2) os protestos eram os princi-
pais assuntos das redes sociais; 3) em função da postura dos gran-
des oligopólios de comunicação de massa, os manifestantes os viam
como verdadeiros inimigos. A título de exemplo, carros das emis-
soras foram queimados e jornalistas foram prontamente expulsos
dos protestos; 4) a credibilidade da grande mídia nunca esteve tão
abalada nacionalmente. Por tudo isso, os governantes sociocultu-
rais tiveram que alterar sua estratégia.
As análises de Jabor (2013c) representaram bem esse transfor-
mismo. Ele passou, como toda a mídia, a endossar as reclamações,
mas impondo as suas postulações como a do movimento, signifi-
cando a apologia da institucionalização da luta. Nesse sentido, acas-
telou que houvesse líderes e ideias institucionais, escolheu alvos de
ação, como a luta contra a PEC 37, e propôs ainda a vigilância per-
manente do Congresso (Jabor, 2013d). Recomendou a ligação com
a imprensa que, segundo ele, é séria (Jabor, 2013f) e criticou com
veemência a violência dos protestos, opondo-se exatamente àquilo
que poderia transformar tudo e possibilitar a auto-instituição social
(Dupuis-Déri, 2014; Ludd, 2002; Gelderloos, 2011).
Enfim, os governantes socioculturais disputaram a direção do
movimento e apresentaram suas solicitações como se fossem a de
todos. Foram os oligopólios de comunicação de massa os responsá-
veis pela organização de um grande setor nacionalista e institucio-
nal nas passeatas. Esses indivíduos portavam bandeiras nacionais,
pintavam o rosto de verde e amarelo e bradavam contra a violência
e os partidos políticos. Sua pauta foi bastante difusa e apresentou a
corrupção como o principal problema do país. Só para dar uma ideia

118 wallace de moraes


de como aconteceu, no programa RJ-TV da Rede Globo, os jorna-
listas ensinaram como o manifestante tinha que se comportar, evi-
dentemente condenando qualquer tipo de uso da violência contra
as instituições do Estado e do capital, e ainda diziam sobre a suposta
pauta do movimento.
No dia 20 de junho, Jabor15 chegou ao desatino de dizer que a
PEC 37 era a causa das reivindicações nacionais, se colocando, pas-
mem, como representante dos manifestantes e contra os políticos.
Assim, sorrateiramente, tirava o foco da crítica ao preço absurdo
das passagens de ônibus e às péssimas condições de vida.
No terceiro momento, depois dos maiores protestos da histó-
ria brasileira, os oligopólios de comunicação de massa, começaram a
criticar os “vândalos”, segundo eles, naquele momento, “formados
por punks, marginais e radicais bolcheviques que queriam acabar
com o movimento”. Essa foi a estratégia dos governantes sociocul-
turais: separar os manifestantes em legítimos, que portavam verde
e amarelo, e os ilegítimos, que ela denominou de “vândalos” 16, os
quais atacavam os prédios símbolos do governo, do grande capital
e resistiram aos ataques policiais.
Em novembro de 2013, Jabor (2013e) já defendia que “as ma-
nifestações se esvaíram por causa dos fascistas mascarados black
blockers”. Essa afirmação precisa ser problematizada. Primeiro, cha-
mar os Black Blocs de fascistas representa uma enorme demonstra-
ção de ignorância ou em pura má-fé do orador. Segundo, esse foi
o discurso hegemônico utilizado pelos governantes socioculturais
justamente para culpar os mais combativos como responsáveis pelo

15 Ver: http://cbn.globoradio.globo.com/comentaristas/arnaldo-jabor/2013/06/20/REDUCAO-
-DAS-PASSAGENS-DE-ONIBUS-E-TIMIDA-TENTATIVA-DE-AQUIETAR-OS-MANIFESTANTES.
htm, acessado em 27/07/2014.
16 Termo pouco preciso, mas amplamente utilizado pelos oligopólios de comunicação de
massa no Brasil para depreciar os manifestantes que se defendiam dos ataques policiais
e quebraram vidraças de bancos por consequência. Depois de exaustiva campanha de
grande mídia, o termo vândalo virou quase um insulto público.

2013 - revolta dos governados 119


fim das manifestações. Terceiro, esta postura isentava as governan-
ças políticas e penais pela forte repressão sobre os manifestantes,
como culpados pela saída dos jovens das ruas, preocupados com
razão, com sua integridade física.
Na mesma linha da de Jabour, existiram diversos jornalistas e
intelectuais que justificam o sistema e a criminalização dos que lu-
taram. Magalhães (2017) critica as teses de outro jornalista sobre o
assunto: trata-se de Demétrio Magnoli que assinou um artigo publi-
cado no jornal O Globo, no dia 05/06/2014, cujo principal objetivo era
se opor ao que chamou de manifestação política dirigida por grupos
dedicados à violência.

“O jornalista relaciona o PCC aos Black Blocs e responsabiliza os últi-


mos pela militarização das cidades-sede da Copa do mundo de 2014.
Embora o autor possua uma admirável erudição nas escolhas das
palavras e no encadeamento das ideias ao longo do texto, a sua ar-
gumentação é significativamente pobre. Dois argumentos são mais
que suficientes para contestar o texto. Primeiro, ao estabelecer uma
relação entre os adeptos da tática Black Bloc e o PCC, o autor na
verdade reproduz o que, desde o século XIX, os liberais fazem com
os movimentos de contestação política e social: a criminalização
desses, (...) buscando deslegitimar o Black Bloc, tirando seu aspecto
político (...). Em segundo lugar, argumentar que os Black Blocs são
os responsáveis pela militarização das cidades-sede da Copa, é olhar
apenas o sintoma e não a causa da doença social na qual as demo-
cracias chamadas de liberais estão inseridas. O Estado é repressivo
desde sempre” (Magalhães, 2017).

As teses de Jabor consubstanciaram-se como a melhor repre-


sentação do pensamento plutocrático neoliberal desavergonhado
no Brasil, que, inclusive, conseguiram a proeza de criticar os gover-
nos petistas pela direita, como os partidos políticos PSDB, DEM, PPS
e outros.

120 wallace de moraes


foto: ruy barros

2.1.2 ANÁLISES PLUTOCRÁTICAS NEOLIBERAIS


DISSIMULADAS LIGADAS À GOVERNANÇA
POLÍTICA PETISTA

Dentro desse veio analítico, estão vários intérpretes. Comece-


mos com o discurso oficial da então Presidente da República, profe-
rido no dia 21 de junho de 2013, logo após os maiores protestos da
história do país. Ela buscou condenar, com toda força, a violência de
vários manifestantes contra as instituições e curiosamente estabe-
leceu uma orientação para o movimento:

“(...) A mensagem direta das ruas é pacífica e democrática. Ela rei-


vindica um combate sistemático à corrupção e ao desvio de recur-
sos públicos. (...) Esta mensagem exige serviços públicos de mais
qualidade. Ela quer escolas de qualidade; ela quer atendimento de

2013 - revolta dos governados 121


saúde de qualidade; ela quer um transporte público melhor e a pre-
ço justo; ela quer mais segurança. Ela quer mais. E para dar mais, as
instituições e os governos devem mudar” (Rousseff, 2013).

Depois de, curiosamente, estipular a pauta do movimento, am-


plamente reduzida, como mostraremos a frente, ela fez promessas
de político, como não poderia deixar de ser: “O foco será: primeiro,
a elaboração do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que privile-
gie o transporte coletivo. Segundo, a destinação de cem por cento
dos recursos do petróleo para a educação. Terceiro, trazer de ime-
diato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento
do Sistema Único de Saúde, o SUS”. Também incluiu a reforma polí-
tica como grande desejo popular.
Tratava-se apenas de um discurso para acalmar os ânimos dos
governados, bastante exaltados, mas de concreto pouco foi realiza-
do. O petismo perdeu uma grande oportunidade de atender as rei-
vindicações dos governados nas ruas e fazer uma revolução no país.
O principal fator para as transformações já estava posto: a rebelião
popular. Ao não levar em conta a pauta das ruas, o petismo teve o
início do seu fim na governança política.17
Parte dos intelectuais reproduziram acriticamente o estabele-
cido pela maior representante da governança petista no país, ne-
gando a tão cara e necessária independência de pensamento, que
Chomsky (1999) fala com tanta propriedade.
No mesmo veio interpretativo, Francisco de Oliveira, tradicio-
nal pensador da esquerda oficial, ex-militante do PT e, na época, in-
telectual orgânico do PSOL, asseverou que a população não tinha
motivos para ir às ruas. Perguntado em entrevista18 sobre o que
aconteceu nas últimas semanas (em junho de 2013), ele respondeu:

17 Para mais detalhes dessa tese, ver De Moraes (2018).


18 Conferir entrevista do pensador ao site do IG: http://ultimosegundo.ig.com.br/politi-
ca/2013-07-07/as-manifestacoes-nao-foram-nada-demais-diz-o-sociologo-francisco-de-oli-
veira.html, acessado em 27/07/2014.

122 wallace de moraes


“Nada demais. É um pouco inédito devido ao fato de que se deu em
várias partes do País, coisa que não era comum ocorrer. As mani-
festações mais fortes sempre se deram no Rio e São Paulo e desta
vez se apresentaram em várias partes do País de forma bastante
intensa. Mas não há uma explicação. Primeiro levantaram os preços
das passagens, os governos recuaram e aquilo se transformou em
uma manifestação sem sentido. De fato, vivemos numa conjuntura
política em que não há motivo para crise”.

Mais ou menos na mesma linha, esteve a reflexão de Marilena


Chaui (2013) que conseguiu retirar a responsabilidade dos governan-
tes pelos problemas brasileiros. O trecho que segue foi publicado
em artigo na revista eletrônica Teoria & Debate19, mantida pelo Par-
tido dos Trabalhadores (PT). Vejamos:

“Não foram poucos os que, pelos meios de comunicação, exprimi-


ram sua perplexidade diante das manifestações de junho de 2013: de
onde vieram e por que vieram se os grandes problemas que sempre
atormentaram o país (desemprego, inflação, violência urbana e no
campo) estão com soluções bem encaminhadas e reina a estabilida-
de política? As perguntas são justas (...)”.

Para esse setor, estava tudo bem com a economia e a política


brasileira. A autora ainda ressaltou que a democracia brasileira tinha
aspectos positivos e que precisaria de no máximo uma reforma polí-
tica para melhorar, disse: “o que já é bom”.
Ricardo Musse (2013), apresentando-se como defensor da cria-
ção de uma frente da esquerda partidária, incluindo o petismo e a
sua oposição oficial, afirmou que o descrédito dos partidos políti-
cos, dos parlamentares e governantes em geral era uma criação da
grande mídia. Tratou o assunto como se fosse uma conspiração para

19 http://www.teoriaedebate.org.br/materias/nacional/manifestacoes-de-junho-de-2013-na-
-cidade-de-sao-paulo

2013 - revolta dos governados 123


desqualificar o sistema representativo e abrir espaço para regimes
autoritários. O autor ignorou que a crise da representação política
se constitui enquanto fenômeno mundial. Musse (2013) chegou ao
desatino de classificar os governos de Rousseff e de Lula da Silva
como “nacional-desenvolvimentista” e de embrião do “Estado de
bem-estar social” respectivamente. Trata-se de uma interpretação
típica pró-petista sem nenhum amparo no teórico, muito menos no
real.
Fabiano dos Santos (2013), mais ou menos na mesma linha,
interpretou as manifestações como expressão do crescimento do
fascismo no Brasil que se materializaria através da crítica às institui-
ções representativas estatais. Essas precisariam no máximo de uma
reforma, mas de maneira alguma serem atacadas como um todo,
pois “são a melhor representação da democracia”. Esta perspec-
tiva, como falamos anteriormente, apresenta: 1) clara negação da
auto-instituição social e 2) as instituições estatais como parte funda-
mental do último estágio da evolução humana.
Wanderley Guilherme dos Santos, cientista político, admirador
das governanças políticas petistas, é um dos expoentes dessa escola
interpretativa. Observemos duas passagens de um dos seus artigos
(Santos, 2014). Esse é um tipo de análise exemplar da ala plutocrá-
tica dissimulada petista radical, que a nosso ver, é extremamente
autoritária, embora busque apresentar-se como democrática:

“Professores universitários do Rio de Janeiro, de São Paulo e outras


universidades falam do governo dos trabalhadores como se fosse
o governo do ditador Médici, embora durante aquele período não
abrissem o bico. Vetustos blogueiros, (...) teóricos sem obra conhe-
cida e de gogó mafioso, estes são os mentores da violência pela
violência, anárquica, mas não acéfala. Quem abençoa um suposto
legítimo ódio visceral contra as instituições, expresso em lamentá-
vel, mas compreensível linguagem da violência, segundo estimam,

124 wallace de moraes


busca seduzir literariamente os desavisados: a violência é a negação
radical da linguagem. Mentores whiteblocks, igualmente infames”

“Para que não haja dúvida: sou a favor da criminalização e da repres-


são às manifestações criminosas, a saber, as que agridam pessoas,
depredem propriedade, especialmente públicas, e convoquem a
violência para a desmoralização das instituições democráticas re-
presentativas”.

Percebamos como em dois parágrafos ele consegue simulta-


neamente: 1) defender a governança plutocrática petista e as ins-
tituições estatais representativas que ele julga democráticas; 2)
desqualificar enfaticamente, até com ódio, os intelectuais que de-
fendem os protestos como legítimos; 3) aclamar pela criminalização
dos manifestantes que atentam contra as instituições do Estado
opressor e do capitalismo explorador.
No interior desse campo, esteve, ainda, a interpretação do por-
ta-voz da presidência da República sob o governo Lula (2003-2007),
André Singer (2014), e atualmente professor em uma universidade
em São Paulo. Segundo ele, estavam nas ruas a classe média e o
novo proletariado “favorecido pelo governo petista”. Como esse
autor escreveu um texto maior sobre o assunto, vamos debatê-lo
com mais rigor e densidade, todavia, ele consegue expressar muito
bem a leitura de todo esse campo de intelectuais alinhados ao pe-
tismo.20 Vejamos.
Buscaremos contrapor a análise de André Singer por omitir
fatos fundamentais ocorridos entre 2013 e 2014 e, por consequên-
cia, induzir o leitor a uma interpretação equivocada dos aconteci-
mentos. Podemos adiantar que a abordagem de Singer, bem como
dos intelectuais alinhados à plutocracia petista, buscou por todas
as maneiras isentar a administração do Partido dos Trabalhadores
(PT) de todas as responsabilidades pela enorme insatisfação popu-

20 O texto de Andre Singer foi publicado na New Left Review, em 2014.

2013 - revolta dos governados 125


lar que explodiu no Levante. O autor colabora para uma visão idílica
do governo petista para fora do país, amparado em números que
não encontram fundamento material, quando lidamos com os movi-
mentos sociais e populares em geral.
Na azáfama desesperada de defender o governo, mas procu-
rando se apresentar o mais isento possível, o autor traz diversos
dados, na sua maioria absolutamente irrelevantes e eivados da ideo-
logia petista. Um de seus problemas encontra-se na escolha de suas
fontes, a saber: 1) notícias dos oligopólios de comunicação de massa
e 2) números divulgados pelos governantes penais (polícias). Tanto
uns quanto outros foram os maiores criticados pelos manifestantes.
Assim, em seu conjunto, buscaram sempre diminuir exageradamen-
te o total de manifestantes nas passeatas, induzindo o leitor a crer
em números infinitamente menores do que os reais nas ruas, além
de criticar com ênfase as manifestações, em especial os praticantes
das ações diretas, black blockers ou não, que se formaram ao lon-
go de 2013, criminalizando-os. Cabe ressaltar que os jornais conser-
vadores “O Globo” e “Folha de São Paulo” apoiaram e articularam
a Ditadura Militar-Plutocrática Desavergonhada no Brasil de 1964.
Ademais, a polícia brasileira é uma das que mais mata no mundo, so-
bretudo negros e pobres, sob a tácita imobilidade dos governantes.
Outras fontes que embasam as conclusões de Singer são as pesqui-
sas de opinião pública, inclusive uma delas muito ligada aos podero-
sos, “erra” constantemente em projeções eleitorais normalmente a
favor de candidatos conservadores e/ou ocupantes do poder.21
O principal objetivo de André Singer foi apresentar o gover-
no do PT como alinhado à esquerda do espectro político brasileiro,
elencando elementos palpáveis para o leitor europeu politizado.
Destarte, sua interpretação está embebida por um eurocentrismo

21 Portanto, os equívocos do autor começam com a escolha de suas fontes, tratando-as sem
uma problematização necessária, tomando em conta seus dados como verdades abso-
lutas. Não obstante, como todas elas são conservadoras e alinhavam-se com o governo
federal e/ou com a sua oposição à direita, elas servem muito bem aos interesses do autor.

126 wallace de moraes


patente, facilitando ao leitor daquele continente visualizar os go-
vernos petistas como vítimas das articulações de direita, tal como
acontece em alguns países do velho continente. Para atingir tais ob-
jetivos, os erros do autor são muitos e explícitos.
Singer nos dirige ainda a três discussões estéreis, muito pro-
paladas pelos petistas, a saber: a) a classe social; b) a idade; c) o
grau de instrução dos manifestantes. Ao privilegiar essas variáveis
de análise, o autor simplesmente se abstém de discutir o essencial,
negligenciando absurdamente os sinais emitidos pelos protestos,
bem como suas demandas. Ele, pasmem, simplesmente, não des-
creve as exigências dos governados nas ruas! Muito menos procura
entender suas ações; quando as descreve, segue por um caminho
absolutamente equivocado, pois está amarrado a uma camisa de
força que busca através da análise da Revolta popular defender a
governança petista.
Com efeito, todos seus dados e números servem para discutir
a classe social dos manifestantes e defender a tese segundo a qual
eles pertenceriam à classe média. Portanto, não seriam populares,
mas pessoas que naturalmente estão inseridas no sistema consu-
mista capitalista e que se opunham ao petismo, pela direita. Ao dizer
que o manifestante é de classe média, o autor fica com a consciência
tranquila para dizer que a suposta base social petista, os trabalhado-
res, continua apoiando a sua administração.22
A base do PT era formada pela CUT, que se transformou, junto
com o partido, em uma central altamente burocratizada, sem mobi-
lizar mais os trabalhadores para a conquista de direitos ou mesmo
para a manutenção de direitos sociais. Entretanto, servia como cor-
reia de transmissão das políticas da governança petista, freando as

22 Como consequência dessa primeira e central inferência, Singer pode dizer que a orienta-
-ção ideológica dos manifestantes era de direita. A lógica é simples: se os manifestantes
não são populares e pertencem à classe média, podem ser considerados de direita, nas
palavras de Singer: “cujo objetivo consistia em fazer retroceder as forças populares que
haviam constituído a base de apoio do governo do PT desde 2003”.

2013 - revolta dos governados 127


lutas populares, em acordos espúrios com o Estado e com os capi-
talistas. Transformou-se, em resumo, naquilo que a literatura chama
de sindicato de conciliação. O PT usou da chantagem eleitoral com
os miseráveis, quando afiançou o bolsa família para pessoas muito
pobres, assegurando assim a fidelidade dos seus votos que mantive-
ram o partido no poder por 13 anos. Todavia, é importante dizer: não
se tratou de um voto politizado, mas pragmático, utilitarista, que
estimulou a dependência estatal de uma gama enorme de pessoas,
sem a emancipação social deveras almejada.23
Singer admite que propriedades foram destruídas nos protes-
tos. Todavia, estranhamente se exime de explicar quais foram essas
propriedades, esvaziando assim todo o conteúdo político das ações.
As propriedades atacadas referidas pelo autor foram principalmen-
te: bancos, empresas multinacionais, concessionárias de carros de
luxo, postos de pedágio, carros das emissoras de televisão e prédios
estatais que representassem a plutocracia representativa, principal-
mente, sedes de prefeituras, das casas legislativas dos estados e do
Congresso Nacional.
Não podemos entender que essas manifestações fossem de di-
reita por razões simples:
1) Não é uma tradição da direita no Brasil enfrentar as polícias e
o exército. Muito ao contrário, a direita normalmente está associa-
da às forças de repressão. Em todos os atos houve enfrentamento
com a polícia. No ato do dia 20 de junho, os manifestantes do Rio
atiraram pedras em soldados e oficiais da Polícia do Exército que es-

23 Em um dado momento, Singer admitiu que os protestos eram contra todos os partidos
políticos, mas em outro, entra em contradição ao dizer que a direita partidária atacou a
prefeitura de São Paulo, dirigida pelo PT, bem como o governo federal, também dirigido
pelo partido. Ao admitir que os manifestantes estavam contra todos os políticos, como
concluiu que eram conduzidos pela direita partidária? O próprio governador de São Paulo
que pertencia ao PSDB, oposição oficial ao PT, foi criticado pelas ruas e teve que por de-
creto abaixar os preços das passagens de ônibus no estado. Enfim, o autor chegou à con-
clusão excêntrica de que a direita partidária articulou uma luta contra o PT e a ela própria.

128 wallace de moraes


tavam na frente do prédio do Comando Militar do Leste na Avenida
Presidente Vargas.
2) A direita historicamente não defende a destruição de ban-
cos, tampouco critica o capitalismo.
3) Não é tradição da direita defender a destruição do parlamen-
to e das prefeituras, mas, exatamente como a esquerda oficial dese-
ja, tomar esses espaços para governar com suas políticas.
4) Os manifestantes se colocaram veementemente contra
a Copa no Brasil, inclusive com palavras de ordem, dizendo que
“abrem mão da Copa em favor de investimento em saúde e educa-
ção.” Na manifestação de 20 de junho, uma das palavras de ordem
que mais ecoou depois do bombardeio de gás lacrimogênio da po-
lícia sobre os manifestantes foi a seguinte: “Não... vai ter Copaaaa-
aaa”. A direita no Brasil sempre foi ufanista e alienada pelo futebol
e, em momento algum, questionou a realização dos megaeventos
no Brasil.
5) Os ônibus foram outros alvos preferenciais dos manifestan-
tes. Alguns deles foram destruídos em várias cidades. Destruir pro-
priedades privadas nunca foi uma política da direita no Brasil.
6) Nos enfrentamentos com a polícia, normalmente a palavra
de ordem era: “RE-VO-LU-ÇÃOOOOOO”.
7) A direita fascista precisa de líderes, defende uma sociedade
hierárquica e autoritária baseada na ordem. As manifestações fo-
ram marcadas pela clara negação da existência de líderes. O rechaço
aos partidos políticos constitui-se como a maior evidência disso. A
negação dos palanques que, no passado serviam para os políticos
fazerem campanha eleitoral, bem como a igual repulsa aos carros
de som, demonstraram a negação das hierarquias dos protestos. A
horizontalidade, igualdade e a descentralização não só predomina-
ram como se constituíram como suas principais marcas.
8) Tradicionalmente, a direita é conservadora e contrária a
movimentos de liberdade sexual e de gênero. Em muitas manifes-
tações, os movimentos LGBTs realizaram “beijaços”, como forma

2013 - revolta dos governados 129


de apoio à luta contra a homofobia e lesbofobia; bem como foi mar-
cante a presença da “Marcha das Vadias”, representações incompa-
tíveis com os discursos e práticas da direita.
Ademais, Singer assevera que o Movimento Passe Livre, que
impulsionou as Revolta dos Governados em São Paulo, foi criado
por setores do PT. Nada mais absurdo. O movimento se apresenta
como independente de todos os partidos políticos e em oposição
clara às políticas adotadas pelo petismo. Vejamos a auto definição
do movimento:

“Um movimento social de transportes autônomo, horizontal e apar-


tidário, cujos coletivos locais, federados, não se submetem a qual-
quer organização central. Sua política é deliberada de baixo, por
todos, em espaços que não possuem dirigentes, nem respondem a
qualquer instância externa superior” 24

Para coroar o saco de iniquidades, Singer sugere uma hipóte-


se bastante surreal que apresenta a governança petista “como de
esquerda e vítima da direita nas ruas que queria menos impostos.”
Esta tese não encontra nenhum amparo no real por vários motivos:
1) a começar pela premissa segundo a qual o governo petista é de
esquerda; 2) com mais de 1,5 milhão de pessoas nas ruas somente
do Rio de Janeiro, é claro que todos os setores políticos e classes
sociais estavam representados. Não obstante, cabe uma ressalva:
não existia um número significativo de pessoas que reivindicasse ser

24 O movimento inclusive se negou a conversar com a presidente da República, por en-


tender que somente a ação direta faz a mudança da política. Para saber mais detalhes do
movimento é melhor ler seus próprios documentos: Movimento passe livre – São Paulo.
Não começou em Salvador, não vai terminar em São Paulo in MARICATO, Ermínia [et al.].
Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Pau-
lo: Boitempo; Carta Maior, 2013. Ver também: Löwy, Michel (2014). O movimento passe
livre. Disponível em: http://blogdaboitempo.com.br/2014/01/23/o-movimento-passe-livre/
Acessado em 20 de julho de 2014.

130 wallace de moraes


de direita, muito menos fascistas no Brasil25, que pudesse ocupar as
ruas dessa maneira; 3) ao defender que o movimento era manipula-
do pela direita, o autor busca desqualificar a pauta dos manifestan-
tes sem sequer lhe dar voz, uma velha tática dos embates políticos.
Segundo Mészáros (2004), Weber ao defender a neutralidade axio-
lógica, buscou desqualificar seus adversários ideológicos sem se-
quer lhe dar ouvidos. É por esse motivo que Singer se abstém de
discutir a pauta do movimento, optando por desqualificá-la a priori,
amparando-se em dados duvidosos que apresentam os manifestan-
tes como jovens de direita e de classe média.
Além disso, ao escolher discussões efêmeras, Singer comete
seu maior erro: não utilizar nenhuma linha para denunciar a inten-
sa repressão das forças policiais sobre os manifestantes: atirando
a queima roupa, ferindo centenas de pessoas, “plantando” provas,
infiltrando agentes para criar situações de ataque policial, enfim,
agredindo e emboscando pessoas sem terem cometido algo ilegal.
Uma truculência absurda, apoiada por todos os governantes, tanto
pelo petismo e seus aliados, como por suas oposições oficiais.
Outro dado trazido pelo autor diz respeito à idade dos manifes-
tantes. Ele conclui que “apenas 2% deles tinham mais de 60 anos”.
É importante informar que em todos os protestos a principal marca
era o confronto com a polícia. Caro leitor, é possível imaginar que
pessoas com mais de 60 anos seriam maioria em protestos com a
frequência de pelo menos dois por semana, marcados por intensos
confrontos com as forças policiais? Mas o autor não levou isso em
conta. Portanto, é óbvio que o número de manifestantes com mais
de 60 anos de idade seria infinitamente menor do que aqueles que
tinham entre 18 e 30 anos! Com 1,5 milhão de pessoas nas ruas é claro
que todas as classes sociais estavam representadas e com números
mais expressivos para os mais pobres, extrema maioria. Desneces-

25 Com exceção evidentemente para os poucos e pequenos bairros da alta elite. Somente
depois de 2013 e como reação a ele, e em função da atuação de muitos think tanks que
pessoas que se dizem de direita começaram a assumir tal pecha.

2013 - revolta dos governados 131


sário perdermos tempo refutando algumas dessas “evidências” do
autor para defender a governança Plutocrática Neoliberal Dissimu-
lada petista. É indignante ver esse tipo de postura intelectual.
Por que tantas discussões enviesadas compostas por insignifi-
câncias? Por que não tratar do relevante? É pertinente esclarecer ao
leitor alguns dados descuidados por Singer.
Os protestos começaram por uma grande indignação popular
contra os custos dos transportes. As empresas concessionárias de
transportes públicos do país possuíam altíssimos lucros em função
de acordos espúrios com governantes, inclusive do PT, em troca do
financiamento de campanhas eleitorais e outras benesses obscuras.
Assim, os governos como forma de compensação pelo financiamen-
to das campanhas, autorizaram aumentos sucessivos e acima da in-
flação das passagens de ônibus, trens, metrôs e barcas. Associado a
isso, os gastos exorbitantes na preparação para a Copa do Mundo
de 2014 com estádios de futebol, num país onde não existia sanea-
mento básico para grande parcela da população, onde faltava serin-
ga, maca, médicos e vagas em leitos nos hospitais públicos. Um país
marcado pela ausência de uma política séria para a educação, habi-
tação e outros direitos sociais básicos26.
Os governados se indignaram, construíram barricadas e en-
frentaram os soldados dos governantes penais nos maiores protes-
tos da história do país, justamente sob o governo do PT, que fez de
tudo para acabar com o movimento, seja através da legitimação da
forte repressão sobre os manifestantes, seja buscando ideologica-
mente isentar a sua administração de qualquer responsabilidade so-
bre o descontentamento popular com amparo de intelectuais
alinhados às suas ideias. Tudo isso porque o petismo não pôde admi-
tir que aqui existe movimento popular e autônomo que rechaça
enormemente suas políticas plutocráticas e liberalizantes.

26 As causas do Levante foram comentadas em profundidade na introdução desse livro.

132 wallace de moraes


fonte: ruy barros

Nas duas primeiras décadas do século XXI, os governados ele-


geram um operário e depois uma mulher, ex-guerrilheira, para a go-
vernança política do Brasil, ambos do PT, pois além do simbolismo,
se apresentavam como oposição ao sistema plutocrático desaver-
gonhado implementado pelo tucanismo. A despeito dessas simbo-
logias, o país continuou o paraíso dos banqueiros.27

27 É necessário ampliar o nosso foco de análise. Conforme discutido no capítulo 3 desta


obra, a crítica à plutocracia representativa vem ganhando força no mundo pelo setor re-
volucionário, desde pelo menos o levante de Chiapas (1994), passando pela rebelião de
Seattle em 1999, composta, sobretudo, por muitos novos movimentos sociais, todos às
margens dos partidos, inclusive de esquerda, e em grande maioria autonomistas. Passou
por Gênova (2001), Argentina (2001) Bolívia (2003) Equador (2003) Paris (2011), Grécia
(2011-2012), Espanha e Turquia (2013) e os movimentos de occupy, da Turquia a Wall Street
(2011). Isso nada mais é do que o resultado da chegada de partidos de esquerda ao poder
sem produzir mudanças significativas, mas, para além disso, na maioria das vezes foram
justamente esses partidos que implementaram e/ou aprofundaram as políticas liberais.
Além do mais, os partidos de esquerda possuem uma organização extremamente hierár-
quica e consequentemente autoritária. Portanto, o movimento anti-partido, que significa
antirepresentação não é novo, nem genuinamente brasileiro.

2013 - revolta dos governados 133


Uma das grandes novidades desse movimento insurgente vi-
vido pelo país em 2013 foi não ter sido dirigido por partidos, nem
sindicatos. Por isso cabe a eles desacreditá-los. Um absurdo erro de
diagnóstico que só demonstra o quanto esses setores não soube-
ram ler a história do Brasil e auxilia a explicar porque possuem cada
vez mais menos legitimidade no seio da sociedade.
O movimento teve um forte cunho insurgente e foi muito difícil
a sua construção realizada pelos diversos movimentos sociais autô-
nomos no Brasil, que não fazem mais parte, há muito, do horizonte
do PT, que se encastelou no poder e usufrui de suas benesses. Por
consequência, sofreu os problemas de corrupção endêmica ligados
a ele. 28
Ademais, os petistas estiveram em todas as partes tentando
impedir a revolta. Isso demonstra como o PT virou um partido que
oblitera a luta em favor de seus interesses políticos egoístas em car-
gos no Estado, quando no passado ajudou a construir. A lógica de
que o poder corrompe serve perfeitamente para o partido. Aliás,
a história de um partido de origem socialista que abandona suas
ideias e vira administrador do capital não é nova no mundo, muito
menos de intelectuais ligados a eles que ocupando cargos no Estado
abandonam sua independência intelectual e viram propagandistas
das políticas do partido. Fato é que o PT abandonou suas origens
e se transformou apenas em mais um dentre outros diversos pelo
mundo afora. Em 2015, no seu segundo mandato, o governo Dilma

28 As administrações do PT foram acusadas no Brasil pelos oligopólios de comunicação de


massa e por sua oposição oficial por corrupção ativa de vários de seus quadros. Dois dos
principais deles foram presos por corrupção ativa. Trata-se de José Dirceu, ex presidente
do partido e ministro do governo Lula; José Genoíno, ex líder do PT na Câmara; e Antônio
Palocci, ex ministro da Fazenda do governo Lula (em sua carta de desfiliação do PT, diz
que Lula sucumbiu “ao pior da política no melhor dos momentos de seu governo”). Em
2015, a polícia federal investigou a corrupção na Petrobrás, dirigida pelo governo federal.
Em depoimento em juízo, após delação premiada, o ex-gerente executivo da Petrobrás,
Pedro Barusco, detalhou a corrupção na companhia e afirmou que o PT recebeu entre
2003 e 2013 de US$ 150 a US$ 200 milhões de propina.

134 wallace de moraes


montou um ministério dos sonhos do seu partido opositor oficial,
tipicamente adepto das políticas neoclássicas, o PSDB.
A única diferença da tese de Singer para a de Arnaldo Jabor
é que aquela isentou o governo de qualquer responsabilidade, en-
quanto Jabor primou por criticá-lo sempre que pôde. Façamos ago-
ra a análise das interpretações da esquerda oficial.

2.2 ANÁLISES DA ESQUERDA OFICIAL

A interpretação da esquerda oficial apresenta-se como segui-


dora da tradição de Marx e Engels29, todavia, embora dificilmente
assuma, é devota da ressignificação materializada por Kautsky,
Berstein e inúmeros outros teóricos que propuseram a chegada ao
socialismo por meio da participação institucional. Normalmente, re-
sumem tudo a um problema de gestão. Estão em grande medida
juntas as análises do PSTU, de setores majoritários do PSOL, PCB,
e dos sindicatos e intelectuais alinhados às suas ideias. Por isso, a
principal demanda dos partidos e sindicatos da esquerda oficial foi
“fora esse e aquele governante”, apresentando-se como solução
eleitoral para ocupar o lugar mal gerido pelo político da situação.
Enfim, tudo foi resumido a uma contenda eleitoral. Uma boa parte
dos aparelhos sindicais, dos centros acadêmicos estudantis e todos
os partidos reformistas trabalharam para difundir essa tese. Em fun-
ção dessa lógica, eles precisaram estar em certa medida conectados
com aquilo que foi amplamente propalado pelos oligopólios de co-
municação de massa. Como não podiam se opor totalmente aos di-
tames midiáticos, suas posturas tenderam a ser centristas, fato que
ajudou lateralmente a criminalizar os movimentos mais combativos
da Revolta dos Governados.

29 Principalmente sobre o que propuseram no Manifesto Comunista de 1848.

2013 - revolta dos governados 135


Decerto, reiteramos o pressuposto metodológico, segundo o
qual é importante verificar o lugar que ocupa o analista.30 Pois bem,
percebemos que as análises reformistas, geralmente ligadas a parti-
dos políticos eleitoreiros, mesmo da oposição, portanto, oficialistas,
tiveram uma interpretação ambígua do Levante. Por um lado, vis-
lumbraram a manifestação como positiva, pois colocou em xeque
os erros do governo (situação), ampliando suas possibilidades de se
colocar como alternativa eleitoral (oposição). Por outro lado, como
a insurreição popular nunca esteve sob seu controle, se mostrando
arrediamente indomável, e, ainda, desaprovando todos os partidos
políticos, esse viés interpretativo a criticou como sem direção, sem
demandas claras, sem líderes, enfim, sem pauta e sem rumo.
Essa maneira de ler a conjuntura está diretamente embasada na
presunção de quem se julga como portador das únicas e boas con-
ceituações e, consequentemente, das soluções ideais para todos.
Esse campo se apresenta como herdeiro do marxismo-leninismo
com todos seus projetos centralizadores, hierárquicos, estatistas,
arrogantes e embebido do juízo segundo o qual a vanguarda do
proletariado deve dirigir todo e qualquer processo de insurgência.
Não a respeitar, nem se subordinar a ela, constitui-se como uma
aberração imperdoável. Na verdade, o que está posto é que esse
setor não consegue criticar profundamente a hierarquização social,
por consequência, legitima a dicotomia entre direção e base, em re-
sumo, entre governantes e governados. É claro que o comando do
processo deve lhes pertencer, pois do contrário, segundo pensam,
ele será inconsequente. Essa esquerda autoritária se coloca como
portadora da verdade revolucionária (mesmo estando estritamente
ligada ao dogma institucional-conservador da plutocracia vigente)
e, como verificamos ao longo da Revolta do Vinagre, não esteve
aberta a fazer uma crítica de suas ações.
Num primeiro momento, esses partidos apoiaram o movimen-
to. Inclusive, é importante dizer, muitos de seus militantes, sobre-
30 Ver Hobsbawm (1998), especialmente o capítulo 9.

136 wallace de moraes


tudo da sua juventude, foram valiosos para que ele ocorresse. Sem
embargo, no ápice dos protestos, trabalhadores e estudantes não
pertencentes a partidos políticos compunham a extrema maioria
e isso assustou a esquerda tradicional, principalmente, porque o
“povão”, com razão, não entende os seus signos reformistas. Por
consequência, a esquerda oficial e os plutocráticos neoliberais dissi-
mulados, que tentaram dirigir o processo, foram amplamente recha-
çados nas passeatas em todo o Brasil, não conseguindo controlar de
forma alguma a revolta popular, muito menos a sua pauta. Como
resultado, mudaram o discurso. Passaram a interpretar as passeatas
com ressalvas.
É crucial entender que existe uma forte crítica dos governados
ao papel exercido pelos militantes de partidos políticos nos sindi-
catos, nos centros acadêmicos e, principalmente, nos parlamentos,
prefeituras, enfim, nos governos, não sem motivos. Normalmente,
eles se apresentam para dirigir os demais, segundo as teses de seus
mentores intelectuais, Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Stalin, buscan-
do aparelhar toda associação para seus anseios políticos-eleitorais,
mas se apresentando, curiosamente, como revolucionários. Nas
próprias manifestações tentaram dirigi-las, colocando-se inclusive,
nas primeiras passeatas, a frente de todos os demais, como que
efetivamente liderassem seus “seguidores”. Um oportunismo sem
tamanho que deixou outros setores indignados. Discutiremos isso
quando expressarmos nossa análise do processo mais adiante.
No interior das análises da esquerda oficial está a pesquisa de
Osvaldo Coggiola (2013), que faz uma leitura bastante crítica e per-
suasiva com relação aos governos expressando suas responsabili-
dades. Também faz um ótimo histórico do movimento sobretudo
da cidade de São Paulo. Sua interpretação passou em revista todas
as forças políticas, todavia chamou bastante a atenção como esse
historiador esqueceu de algumas das mais emblemáticas de todo
o movimento: os anarquistas, os autonomistas e aqueles que se
juntavam e compunham a tática Black Bloc. Por que desconsiderar

2013 - revolta dos governados 137


os setores mais combativos? Infelizmente, é muito comum historia-
dores marxistas olvidarem do papel exercido por anarquistas e por
outros revolucionários ao longo da História (sobre esse assunto ver:
Rocker, 2007; Lehning, 2004; Fontana, 2004).
Ao mesmo tempo, Coggiola tem uma interpretação do papel
da CSP-CONLUTAS que não encontra eco na realidade histórica do
movimento, colocando-a como muito diferente das outras centrais
sindicais:

“Nos poucos lugares onde houve atividades combativas (Fortale-


za, Porto Alegre, São José dos Campos, Belém, Natal) foi notório o
trabalho da CSP-Conlutas, apesar desta representar somente 2% do
movimento sindical” (Coggiola, 2013).

Podemos dizer sem medo de errar que a CSP-CONLUTAS não


participou na linha de frente de nenhum ato combativo no Rio de Ja-
neiro durante a Revolta do Vinagre, e ainda criticou veementemente
os setores populares participantes dela.
A interpretação de Mauro Iasi (2013), candidato a Presidente da
República pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro) nas eleições de
2014, expressou perfeitamente a preocupação da esquerda oficial e
institucional marxista, em associação com leituras plutocráticas. A
questão da ausência de direção na Revolta dos Governados apare-
ceu em seu texto como um grande problema:

“Por isso, não nos espanta que a explosão social se dê da forma


como se deu e traga os elementos contraditórios que expressa: des-
politizada e sem direção, ainda que com alvos precisamente defi-
nidos: os governos e aquilo que representa a ordem estabelecida”
(Iasi, 2013).

Chama a atenção como Iasi compreendeu bem que os alvos


dos manifestantes foram os governos e tudo que representava a

138 wallace de moraes


ordem estabelecida. Mas, paradoxalmente, asseverou que a mani-
festação era despolitizada! Como ele pode dizer que a manifestação
era contra o governo e a ordem estabelecida, porém despolitizada
ao mesmo tempo? Uma pista para entendermos essa incongruência
é que a utilização do termo despolitizado só pode ser entendida jun-
to com a ausência de direção. Assim, a politização só pode vir asso-
ciada com o comando estabelecido, uma espécie de comitê central.
É o velho preconceito marxista-leninista contra as organiza-
ções horizontais e sem vanguardas estabelecidas. A politização só
pode existir, de acordo com esse setor, se tiver sob o comando de
um partido político marxista, supostamente revolucionário.
Não obstante, é necessário ressaltar que Iasi, apesar de algu-
mas incongruências, fez uma análise bastante radicalizada e justifi-
cou a violência dos manifestantes contra as instituições do “Estado
burguês”. Assim, se assemelhou às interpretações, nesse aspecto,
do campo revolucionário, pois, afinal de contas, deveria ser óbvio
para todos, inclusive para os marxistas, pensamos, que aquilo que
caracteriza uma revolução é a liquidação das velhas instituições
existentes e isso não será feito somente na base do amor.
A postura do intelectual do PCB foi em certa medida diferente
da de outro partido marxista, o PSTU, que foi incapaz de assumir
uma posição combativa. Entretanto, em comum leram que existia
um forte crescimento de um movimento fascista.

“Há uma terceira violência e esta não é espontânea e emocional


como as duas primeiras: a extrema direita. Ela, lá dos esgotos para
onde foi jogada pela história recente, se sentia também ofendida e
agredida – evidente que não pela ordem burguesa e capitalista que
sempre defendeu, mas pelo irrespirável ar democrático que acerta-
va as contas com nosso passado tenebroso, como a denúncia con-
tra o golpe de 1964 e seus sujeitos, com as comissões da verdade,
mas sobretudo o mal estar desta extrema direta com um regime po-
lítico que permite a organização dos trabalhadores e sua expressão,

2013 - revolta dos governados 139


mesmo nos precários limites de uma democracia representativa de
cooptação. (...)Por isso nos atacam, usam das manifestações para
acertar suas contas com a esquerda, de forma organizada, intencio-
nal e, certamente, com apoio formal ou informal dos aparatos de
repressão” (Iasi, 2013).

Fora a crítica à ausência de direção do movimento, a análise de


Iasi foi exemplar e conseguiu compreender a rejeição de todos os
partidos políticos pelos governados como algo justificável, sobre-
tudo pela experiência que os populares têm com relação à repre-
sentação política e à tentativa oportunista dos partidos que buscam
apresentar-se como dirigentes do processo com vistas a capitalizar
para efeitos eleitorais. Vejamos.

“O comportamento contra os partidos é compreensível, ainda que


não justificado. Compreensível por dois motivos: as massas, graças
à triste experiência petista, estão cansadas de partidos que usam as
demandas populares para eleger seus vereadores, deputados e pre-
sidentes que depois voltam as costas para estas demandas para fa-
zer seus jogos e alianças para manter seus cargos; também,
acertadamente, não podem aceitar que certos partidos pulem na
frente de manifestações e movimentos para tentar dirigi-los sem a
legitimidade de ter construído organicamente as lutas” (Iasi, 2013).

Em diapasão diverso, mas dentro do veio reformista/estatista,


estão as análises dos intelectuais ligados ao PSTU, partido trotskista
que se apresenta como revolucionário, embora sua prática mostre
uma profunda contradição nos seus termos.
É impressionante como um texto de Valério Arcary (2013) 31, um
intelectual ligado, à época, ao PSTU, criticou veementemente o gri-
to do “sem partido”, mas defendeu a palavra de ordem do “sem vio-

31 Texto publicado em Correio da Cidadania, 21-6-2013 em: http://www.correiocidadania.-


com.br/

140 wallace de moraes


fonte: ruy barros

lência”, ambas propaladas pelos nacionalistas nas passeatas. Essa


postura ajudou a legitimar a repressão sobre os coletivos e indivídu-
os mais radicalizados da linha de frente. Vejamos.

“Gritar “sem violência” não é o mesmo que gritar “sem partidos”.


Quando gritamos juntos “sem violência” estamos denunciando a
presença de provocadores infiltrados da polícia que querem ofere-
cer um pretexto para a repressão” (Arcary, 2013).

Essa, aliás, foi a linha adotada pelo PSTU em todo o processo.


Como um partido vertical, centralizado e hierarquizado, as opini-
ões públicas de seus militantes não podem destoar daquilo que é
estabelecido pela direção do partido. Pelo que pudemos ver pelas
atitudes de seus filiados e textos divulgados, os anarquistas, auto-
nomistas e mesmo grupos marxistas revolucionários foram conside-

2013 - revolta dos governados 141


rados quase como inimigos de classe, combatidos com toda a força
pela aglomeração política. 32 Foi similar à reedição daquilo que Trot-
sky fez na Ucrânia, em Kronstadt e com os anarquistas em geral na
Rússia, que defendiam o aprofundamento da revolução de 1917 com
todo poder aos sovietes.33
No afã de desqualificar o anarquismo, Henrique Canary (2013a),
também dirigente do PSTU, em 2013, tentou, da maneira mais gro-
tesca possível, associar o anarquismo com o liberalismo de Marga-
reth Thatcher.
Outro texto de Canary (2013b) argumentou que o anarquismo
é contra o Estado. Não obstante, omitiu, sorrateiramente, que é
também contra o capitalismo e a propriedade privada.34 Esses sérios
problemas teóricos mostram como algumas pessoas, sem sequer
terem lido os autores principais do anarquismo, buscam desqualifi-
car a ideia por argumentos sem fundamentos no real, quase que por
delírios intelectuais. 35
Marcelo Badaró (2013), dirigente e um dos principais intelec-
tuais do PSOL, no dia 22 de junho de 2013, dois dias após a maior
manifestação da história brasileira, vaticinou que os protestos não
poderiam prosseguir enquanto a esquerda (oficial) não detivesse a
direção, pois o risco da reação conservadora dirigir o movimento era
grande demais. Vejamos sua defesa.

“Frente à contra-ofensiva da reação conservadora burguesa, porém,


o terreno das ruas está agora bastante minado para essas mesmas
esquerdas e seus movimentos. Para manter-se nele será preciso um
salto: é necessário construir unidade em torno de um programa mí-
32 Para mais detalhes, ver capítulo 6 deste livro. É possível encontrar o texto original em
Moraes, W.S.: http://www.otal.ifcs.ufrj.br/as-reais-diferencas-entre-o-black-bloc-e-o-pstu/
33 Sobre esses assuntos vale ver a excelente análise de Rocker (2007).
34 Ver: http://www.pstu.org.br/node/20138
35 Por exemplo, Proudhon (2001), considerado por muitos como o pai do anarquismo, escre-
veu um livro inteiro, antes de Marx, para mostrar que a propriedade privada é um roubo.
E o texto do partido diz que somente Marx foi contra a propriedade!

142 wallace de moraes


nimo de intervenção e só se pode convocar novas manifestações
com um grau de organização muito maior. Fóruns, plenárias e espa-
ços de articulação precisam ser criados imediatamente. Novas ma-
nifestações não poderão ter apenas o (belo) perfil de festa popular,
sem liderança coletiva ou objetivos claramente delimitados (onde
começar, onde e quando parar e para quê), pois a reação conserva-
dora aprendeu a lidar com os atos, disputou sua direção e pode to-
má-los para seus objetivos políticos (Badaró, 2013, grifos nossos).”

Essa análise foi a primeira de um intelectual dirigente do maior


partido da esquerda oficial após o 20 de junho. Suas articulações
políticas colaboraram para levar ao desbarate do Levante Popular
no Brasil. Todos os partidos dessa oposição institucional se reuniram
em uma plenária no SEPE-RJ36, no dia 24 de junho, e definiram aquilo
que achavam correto acontecer: “acabar com o movimento até que
a esquerda detivesse a sua direção”. Passaram por cima da plená-
ria que vinha construindo os atos até então, sem o menor pudor, e
disseram para elas aquilo que deveria ser feito: “as manifestações
tinham que ficar sob a direção dos sindicatos”, que, todos sabemos,
são conservadores, extremamente institucionalizados e com consi-
derável parte ligada ao governo federal de então. Vejamos tal indi-
cação na exata continuidade do trecho de seu texto supracitado:

“A entrada em cena dos sindicatos, ainda muito tímida, a presença


do MST nos atos de ontem e as ações de outros movimentos sociais
urbanos, como MTST, apontam para a possibilidade concreta de que
tal salto se materialize numa frente da nova geração de manifestan-
tes com as parcelas ainda combativas dos movimentos organizados
da classe trabalhadora. Quando isso acontecer, deixaremos de ser
uma multidão para ganharmos um perfil de classe. Por enquanto,
isso é só uma possibilidade (Badaró, 2013, grifos nossos).”

36 Sindicato estadual dos profissionais da educação do Rio de Janeiro, dirigido em comum


acordo por sindicalistas ligados aos partidos políticos da esquerda-estatista.

2013 - revolta dos governados 143


Como em mais um trecho desse texto histórico e contra-insur-
gente, ele finaliza com maior clareza impossível:

“as ruas precisam voltar a ser nossas” (Badaró, 2013).

A partir dessa profecia autorrealizável,37 as ruas voltaram a ser


da esquerda oficial quase que exclusivamente, pois os governados
ficaram amedrontados com o fantasma do fascismo tão propalado
pelos intelectuais desse campo. O ato do dia 24 de julho foi boicota-
do pela esquerda oficial e até pelos revolucionários em solidarieda-
de, quebrando o calendário de protestos, pois até então ocorriam
manifestações às segundas-feiras e às quintas-feiras. Isso foi im-
portante para acabar com a ascensão do movimento e desafogar
os governos que estavam completamente acuados. É fundamental
resgatar que, naquela semana do dia 20 de junho, na qual Badaró
alertou que o movimento não pertenceu à esquerda, foi justamente
o da maior vitória, quando ocorreu a revogação dos aumentos dos
preços dos transportes públicos em grande parte do país, em fun-
ção da pressão dos governados nas ruas.
No dia marcado para a manifestação, 27 de junho de 2013, esta-
vam todas as centrais sindicais, algumas delas com diversos “mili-
tantes” pagos e muitos seguranças, enquanto a grande massa
popular esteve ausente.
Após esse dia, ampliava-se o fosso que dividia a esquerda ofi-
cial burocratizada dos setores combativos. Depois da traição da es-
querda oficial, foi difícil trazer os populares novamente para as ruas
e os coletivos revolucionários perceberam que não podiam confiar
nos estatistas. 38
37 A profecia autorrealizável é, no início, uma definição falsa da situação, que suscita um
novo comportamento e assim faz com que a concepção originalmente falsa se torne ver-
dadeira. Merton, Robert (1968).
38 Somente em outubro, por conta da greve dos professores, tivemos novas manifestações
de massa no Rio. Entretanto, outras menores pipocaram por todo o segundo semestre,
em aproximadamente duas manifestações por dia.

144 wallace de moraes


Nesse interim, os
grandes oligopólios de co-
municação de massa no
país aproveitaram para
usar o discurso petista,
referendado pelos repre-
sentantes da esquerda
institucional, dizendo que
o movimento continha ele-
mentos de fascismo, pois
atacava as instituições su-
postamente democráticas.
Incubava-se o discurso cri-
minalizador dos insurgen-
tes, forjando um suposto
consenso na sociedade.
Por fim, essas análises, ao criticarem a insurreição dos gover-
nados por não possuírem uma direção definida com um comando
centralizado, bem como o apreço por alguns signos nacionalistas,
cometeram duplamente o epistemicídio e a negação da auto-institui-
ção social. Também foram portadores da “miopia política” (Bringel,
2013) que restringe a vida pública a sua dimensão institucional-elei-
toral. O fato de trazerem receitas prontas de formas de lutas cons-
titui igualmente uma imposição aos insurgentes, não tolerada pelos
governados e seus diversos coletivos autônomos, horizontais. Tal-
vez isso explique parte do rechaço dos manifestantes aos partidos
políticos oficiais.

2013 - REVOLTA DOS GOVERNADOS 145


2.3 ANÁLISES PLUTOCRÁTICAS CONSERVADORAS
AGRESSIVAS

O Brasil, diferente de outras partes do mundo, não tinha uma


tradição de grupos numerosos ou de um pensamento pujante de
orientação fascista. Fizemos uma pesquisa ainda em 2013 para en-
contrá-los, mas infrutífera. O que existiam eram grupos minúsculos
e com pouquíssima penetração social. Nas principais universidades
do país, desconhecíamos intelectuais que assumissem, com clareza,
essa postura e menos ainda coletivos ou movimentos sociais. Não
obstante, a partir de 2014, o medo de novos protestos massivos que
pudessem, inclusive, desembocar em processos revolucionários/
contestatórios/insubmissos fez com que as elites financiassem think
tanks (grupos formadores de opinião e difusores de ideias compos-
tos geralmente por pessoas muito bem pagas para exercer exclusi-
vamente essa função) para propagação das ideias conservadoras,
no plano comportamental, e de cunho bastante liberal, na econo-
mia. Esse pensamento ganhou espaço, desembocando na candida-
tura de Bolsonaro. Tudo isso aconteceu, por incrível que pareça, em
função do êxito das manifestações, quando as autoridades foram
fortemente questionadas pelas ruas.

146 WALLACE DE MORAES


Em resumo, essa reação foi impulsionada por muito dinheiro e
o consequente domínio das redes sociais por think tanks plutocráti-
cos neoliberais/conservadores/protofascistas, como o MBL (Movi-
mento Brasil Livre), criado em final de 2014, e por setores ligados
aos militares e ao pensamento conservador protestante (chamado
no Brasil por evangélicos), que apoiaram as candidaturas de Jair
Bolsonaro no Rio de Janeiro e outras semelhantes pelo Brasil afora.
Mas antes de discutir sobre o papel desses grupos, vejamos rapida-
mente um pouco do histórico do pensamento autoritário no Brasil.
Na história política brasileira, o grupo de orientação fascista
que mais se destacou foi a Ação Integralista Brasileira (AIB) na dé-
cada de 1930, sob a liderança de Plínio Salgado. Esse grupo surgiu
na esteira do fascismo europeu e mesclava tons fortemente nacio-
nalistas, hierárquicos, disciplinadores e autoritários, com alguns to-
ques típicos da nossa origem tupiniquim. Atualmente, os herdeiros
de Plínio Salgado estão organizados na Frente Integralista Brasileira
e será sobre seus textos públicos que faremos a análise da postura
fascista sobre o Levante em 2013. Depois abordaremos a postura
do MBL e do grupo de Bolsonaro que só se pronunciaram posterior-
mente.
Eduardo Ferraz (2013) (Membro do Conselho Diretivo Nacional
e Secretário de Expansão da Frente Integralista Brasileira) acusou a
esquerda oficial de ter realizado atos de vandalismo nos protestos,
mostrando uma foto de integrantes do PSTU com algumas pessoas,
queimando objetos na rua. Vejamos:

“Conforme pode ser observado na imagem acima, atos generaliza-


dos de vandalismo foram registrados enquanto organizações de es-
querda monopolizavam os primeiros protestos” (Ferraz, 2013).

A passagem acima está totalmente fora da realidade, demos-


trando que realmente os integralistas não estavam nos protestos
pelo simples motivo: o PSTU e seus militantes não participaram de

2013 - revolta dos governados 147


nenhum ato de ataque às instituições, nem compuseram a resistên-
cia popular diante da violência das forças policiais, muito ao contrá-
rio. O texto ainda condena o confronto com a polícia, bem como os
ataques às instituições realizados por populares, pelo MPL e outros
coletivos libertários e combativos.
Depois de serem acusados pela esquerda oficial de terem-na
massacrado nas ruas, o presidente dos integralistas, Barbuy (2013b)
respondeu afirmando que estavam nas ruas de cara limpa, uma refe-
rência as camisas nos rostos utilizadas por black blockers.

“Em verdade, os integralistas têm, sim, participado, e ativamente,


das referidas manifestações, mas, diversamente do que afirma a
sempre mentirosa escória vermelha, de peito aberto e rosto desco-
berto e lutando não para dissolver as manifestações, mas sim para
orientá-las num sentido verdadeiramente orgânico de luta por um
Brasil Maior e Melhor, livre dos males do liberalismo, do comunis-
mo e de outras ideologias apátridas e materialistas modernas, e de
edificação, no Brasil, de uma autêntica Democracia Integral. E não
atacamos os “esquerdistas” senão com ideias e palavras (...).”

Os integralistas fizeram uma manifestação no início de julho de


2013 para testar a sua popularidade, já que a esquerda oficial e os
petistas atribuíram-lhe um enorme poder. Em alguns estados apa-
receram algumas pouquíssimas pessoas, não chegando nem a duas
dezenas. A maior concentração aconteceu em São Paulo que não
contou com mais de cem participantes.
A verdade é que os integralistas não tinham a força que a es-
querda lhes atribuiu, nem estavam pregando a destruição das ins-
tituições como alardearam; todavia, defendiam uma intervenção
militar, típico de suas características, senão, vejamos:

Aqueles (nos nossos protestos) que pediam uma intervenção mili-


tar não desejavam a implantação de uma ditadura, mas sim que as

148 wallace de moraes


Forças Armadas, visando preservar a lei, a ordem e as instituições,
fizessem cair por terra um (des)governo que viola a lei e é incapaz
de assegurar a ordem e de defender as instituições, devolvendo o
poder aos civis assim que possível (Barbuy, 2013).

Além de reivindicar um golpe militar para garantir a ordem e


as instituições, os integralistas, através de seu presidente, também
reivindicaram uma nova Constituição. 39
Dada a falta de força e de penetração social dos integralistas,
especialmente no Rio de Janeiro, suas demandas sequer tiveram
eco nas manifestações insurgentes.
Não obstante, depois de um ano de intensa propaganda nas
redes sociais e com o apoio de parte dos oligopólios de comunica-
ção de massa (governantes socioculturais), surgiu o MBL (com suas
candidaturas de jovens que buscaram se apresentar como portado-
res do legado de 2013) e se concretizou a candidatura de Bolsonaro
como deputado federal, representando a “ordem”, que na sua visão
seria exatamente o oposto ao significado de 2013. Eles aproveitam
para criticar suas oposições oficiais.
A família Bolsonaro (Jair, pai, deputado federal e candidato à
presidência em 2018; e filhos: Eduardo, deputado federal; Flávio,
deputado estadual; e Carlos, vereador) junto com outro ícone do
pensamento conservador no Brasil desde 2014, Marco Feliciano,
tentaram associar os Black Blocs ao PSOL e, pasmem, em algumas
entrevistas até ao PT, suas oposições oficiais nas eleições. Ao mes-
mo tempo, exigiram a prisão dos black blockers e evidentemente
condenaram a quebradeira de vidraças dos bancos e o uso de bom-

39 “Proclamamos a imperiosa necessidade de criação de um novo Movimento Constitucio-


nalista, que lute por uma Constituição realista, clara e enxuta, que seja o espelho do Brasil
Profundo e de suas mais lídimas tradições, assim como pela instauração, em nosso País,
de um Estado de Direito que não seja apenas um Estado de Legalidade, mas também um
Estado de Justiça” (Barbuy, 2013).

2013 - revolta dos governados 149


bas e fogos de artifício pelos de preto, chamando-os categorica-
mente de bandidos.40
Uma fala de Jair Bolsonaro logo no início das manifestações foi
bem emblemática, representando bem o seu sentimento com rela-
ção aos Black Blocs:

“Bandidos disfarçados de estudantes, orientados por partidos polí-


ticos (PSOL e PT) promovem destruição” 41

Em pesquisa que realizamos sobre a posição do MBL acerca de


2013, só identificamos uma passagem que criticou as manifestações
em sua página no Facebook42, justificada, como já falamos, em fun-
ção de o grupo ter sido criado em dezembro de 2014. Nessa passa-
gem o grupo atribui a existência do Black Bloc como coletivo sem
propósito e violento, criado pela extrema esquerda e a seu serviço.
Eles, estupidamente, apresentaram a extrema esquerda como com-

40 Fontes: Página oficial do deputado Jair Bolsonaro no Facebook e no twitter em 14 e 21 de


junho de 2013; 02, 08, 10 de outubro de 2013. Carlos Bolsonaro em 18/02/2014: https://
www.youtube.com/watch?v=4-08ZW8uUaQ
Flávio Bolsonaro em 18/06/2013: https://www.youtube.com/watch?v=RV1JtP4dyRA&fea-
ture=youtu.be
Fonte: Conta oficial do twitter do deputado Marcos Feliciano em 14 e 17 de junho de 2013
e 07 e 15 de fevereiro de 2014.
41 Fala de Jair Bolsonaro em 14 de junho de 2013. http://familiabolsonaro.blogspot.com.-
br/2013/06/bandidos-destroem-e-ameacam-em-falso.html (blog oficial da família Bolsona-
ro)
42 A referida menção a 2013 foi encontrada na página oficial do MBL, no dia 04 de novem-
bro de 2016, com mais de 3 mil e 500 curtidas. A página original da publicação da matéria
foi: https://ceticismopolitico.com/2016/11/04/black-blocs-marcam-comeco-do-fim-do-sur-
to-de-invasoes-nas-escolas/ . A página “ceticismo político” também foi criada em 2014 e
cumpriu a mesma função que o MBL em clara aliança na conformação conservadora. As
três citações que seguem são desta mesma fonte.
Agradeço à bolsista Beatris Lima por ter realizado a pesquisa sobre a posição do MBL
acerca de 2013.

150 wallace de moraes


posta por militantes de partidos políticos oficiais e institucionaliza-
dos que participam das eleições. Vejamos.

“Quando a extrema-esquerda perdeu totalmente o controle da si-


tuação, chegando até mesmo a ser expulsa das manifestações por
levarem suas bandeiras partidárias, ela passou a usar a tática Black
Bloc, gerando caos e violência sem fim que durou por meses ininter-
ruptos.”

Simultaneamente, eles aproveitaram para destilar todo seu


ódio contra os estudantes que ocuparam escolas em 2016, lutando
por melhorias na educação, também os ligando ao Black Bloc.

“Tudo isso é muito parecido com o que acontece agora” (2016), “no
caso das invasões nas escolas. No começo, o movimento surgiu dire-
tamente da extrema-esquerda. Por puro desconhecimento, muitos
acabaram aderindo a ideia acreditando que eles estavam mesmo
‘lutando por educação’. Aí o tempo passou e, como de praxe, per-
ceberam que a luta era ilegítima, e que tudo não passava de engodo
partidário. Quando começou um movimento contrário, para a deso-
cupação dos locais invadidos pela extrema-esquerda, os Black Blocs
começaram a surgir, e junto veio a violência organizada.”

No fim do texto, o autor apresentou seu veneno final, exigindo


a criminalização pura e simples dos black blockers:

“No atual momento, a moral desse movimento de invasões já está


completamente deteriorada. Os Black Blocs apareceram para fazer
o que fizeram em 2013; deslegitimar ainda mais o que já era ilegíti-
mo. Além disso, agora existem razões suficientes para a polícia agir
de maneira enérgica. O jogo acabou para eles, só é preciso dar os
golpes finais.”

2013 - revolta dos governados 151


O mais curioso foi perceber que os Black Blocs causaram uma
celeuma entre esquerda e direita oficiais, materializada quando uma
acusava a outra de estimular e compor os Black Blocs. Ambas preci-
savam acusar aqueles de preto que destruíam os símbolos do capi-
tal e do Estado, tão defendidos por eles.
Em muitas dessas acusações estava o componente da violência,
supostamente perpetrada pelos Black Blocs. Sobre esse assunto, a
passagem de Ludd (2002: 12) é bastante significativa para elucidar a
questão:

“Certamente categorias tão carregadas de peso moral como vio-


lência e não-violência têm tudo para se tornarem artifício retórico
reacionário no contexto de levantes populares. Todas as ‘greves
selvagens’ e insurreições populares, dos communards aos zapatis-
tas, sempre foram pelo menos em algum momento – até quando
os defensores da ordem estabelecida puderam sustentar seus dis-
cursos – descritas como irrupções de violência, na tentativa de iso-
lá-las, criminalizá-las e desqualificá-las moralmente. Se levarmos em
conta que as ações dos Black Blocs nessas manifestações–bloqueio
feriram sem gravidade no máximo apenas alguns poucos policiais,
enquanto milhares de manifestantes saíram feridos pelas investidas
policiais, taxá-los de “violentos” deveria ser algo risível, e só de-
monstra quanto aqueles que assim os rotulam ainda se encontram
imersos e devedores da moral e da ordem burguesa. (...) Com cer-
teza não se deve deixar de criticar ou discordar das ações dos Black
Blocs com base em aspectos táticos ou de efetividade, caso a caso,
mais o simples apelo à categoria moral violência, quando se estar
a enfrentar a força repressiva do Estado, faz tanto sentido quanto
atirar balas de borrachas ou prendê-los. Ou seja, só faz sentido, só
é racional, para aqueles que consciente ou inconscientemente de-
fendem a ordem instituída e a vida miserável naturalizada no capi-
talismo.”

152 wallace de moraes


2.4 CARACTERÍSTICAS DAS ANÁLISES
REVOLUCIONÁRIAS

A quinta possibilidade de interpretação da revolta dos governa-


dos é a revolucionária e almejamos contribuir para a sua sistemati-
zação. Estão nesse campo as análises anarquistas, de alguns grupos
marxistas revolucionários, portanto, não eleitoreiros, e de muitos
pequenos coletivos autonomistas e populares sem uma clara defi-
nição ideológica. Defendem o socialismo, uns com total liberdade e
outros com um poder popular ainda gerido por alguns representan-
tes. Eles tentaram transformar esse processo em Revolução Social
(Bakunin, 2008; Kropotkin, 2007), ou auto-instituição social (Cas-
toriadis, 1982), ou poder constituinte da multidão (Hardt e Negri,
2001), por meio da ação direta (Makhno, 2001; Gelderloos, 2011).
Esse campo não tinha penetração nos aparelhos sindicais, não
tinha verbas dos partidos políticos, espaço nos oligopólios de co-
municação de massa, políticos nas casas legislativas e muito menos
empresários para financiar suas ações. Os intelectuais alinhados a
eles eram em número muito pequeno, se comparado com os outros
campos. Essa leitura foi a única que defendeu o Levante Popular em
sua totalidade. Suas críticas foram pontuais, mas não desmerece-
ram o todo. Rejeitaram veementemente os principais pilares do sta-
tus quo: o Estado e todas as suas instituições de controle, como a
polícia; a plutocracia representativa, com todos seus políticos e par-
tidos, e sua corrupção endêmica; os oligopólios de comunicação de
massa e suas mentiras; e o capital, em geral, seja representado nos
bancos, seja nos donos das empresas de transportes. Essas análises,
amparadas fortemente no histórico de exploração e na subjugação
das classes trabalhadoras, não condenaram a sua resistência aos
ataques policiais e entenderam perfeitamente a Revolta contra as
instituições estatais e do capital, que historicamente foram as res-
ponsáveis pela sua subordinação. Para esse viés, o Levante foi algo

2013 - revolta dos governados 153


muito saudável para os anseios de democratização política, econô-
mica e social no Brasil.
Exaltaram, destarte, as reivindicações e a resistência popu-
lar, consequentemente entenderam o enfrentamento com a po-
lícia como forma de autodefesa, não criminalizando a quebra das
vidraças dos bancos e outras instituições do Estado opressor. A
redescoberta da ação direta popular de massa foi absolutamente
vangloriada.
Estão nesse campo, as análises de MPL (2013), Bringel (2013),
Vainer (2013), Ferreira (2015), Locatelli (2013), da coletânea de es-
tudos da Universidade Nômade43 e de Igor Mendes (2017), um dos
principais ativistas da Revolta, preso exatamente por isso. Ainda ti-
vemos outras perspectivas que se enquadram em parte nesse cam-
po, como a de Gohn (2014).44 Comecemos pela análise do próprio
movimento impulsionador da Revolta – Movimento Passe Livre de
São Paulo (MPL).
O Movimento Passe Livre, um dos que impulsionaram a Revolta
dos Governados, se reivindicaram independente de todos os parti-
dos políticos e em oposição clara às políticas adotadas pelo petismo
(Movimento Passe Livre, 2013; Löwy, 2014).
No interior dessa perspectiva de negação da institucionalidade
e de valorização da ação direta nas ruas, entendendo que somente

43 Coleção organizada por Cava e Cocco (2014), com escritos de trinta intelectuais/militantes
na mesma linha, abordando diferentes aspectos da Revolta.
44 Encontramos dificuldade para enquadrar as teses de Gohn (2014) em uma das escolas
puras sobre 2013. Com alguma tinta de uma perspectiva revolucionária, a tese da autora
situa os protestos brasileiros na onda mundial de contestação, não cai no absurdo de
entender a revolta brasileira como de direita, mas se deixa levar pela ideia de que seria
composto pela classe média. Para ela, 2013 no Brasil foi uma manifestação dos indigna-
dos, pois tinha uma pauta nacional, diferente dos movimentos da AGP (1998-2001) e do
Ocuppy (2011). Não obstante, o texto da autora traz boas reflexões sobre o movimento
como um todo. Talvez por focar em São Paulo, ela chegue a algumas conclusões distintas
das nossas.

154 wallace de moraes


essa faz a mudança da política, o movimento, inclusive, se negou a
conversar com a presidente da República.
Para construção de suas teses, o movimento resgatou todas
as lutas contra o aumento das tarifas no Brasil. Ao fazê-lo, perce-
beu que todas as vitórias aconteceram em função da ação direta. Ao
mesmo tempo, denunciou:

Entidades estudantis aparelhadas por grupos partidários se coloca-


ram como lideranças e passaram a negociar com o poder público em
nome dos manifestantes. Após barganhar meias concessões com os
governantes, sem atingir a revogação do aumento, utilizaram-se
de todos os meios possíveis para desmobilizar a população (MPL,
2013:14).

Diferente das análises oficiais, o MPL exaltou aquilo que ocor-


reu de concreto: a reversão do aumento das passagens em mais de
cem cidades do país, fruto simplesmente da ação direta e do pro-
testo permanente. Governadores e prefeitos de todos os partidos,
independente da coloração ideológica, tiveram que atender as rei-
vindicações das ruas.
O texto do movimento terminou com o seguinte trecho que
nos dá uma completa dimensão do debate:

A organização descentralizada da luta é um ensaio para uma outra


organização do transporte, da cidade e de toda a sociedade. Vi-
venciou-se, nos mais variados cantos do país, a prática concreta da
gestão popular. Em São Paulo, as manifestações que explodiram de
norte a sul, leste a oeste, superaram qualquer possibilidade de con-
trole, ao mesmo tempo que transformaram a cidade como um todo
em um caldeirão de experiências sociais autônomas. A ação direta
dos trabalhadores sobre o espaço urbano, o transporte, o cotidia-
no da cidade e de sua própria vida não pode ser apenas uma meta
distante a ser atingida, mas uma construção diária nas atividades

2013 - revolta dos governados 155


e mobilizações, nos debates e discussões. O caminho se confunde
com esse próprio caminhar... (MPL, 2013: 17-18).

Carlos Vainer (2013a) foi outro que leu as manifestações como


algo muito positivo para o país. Sua análise discutiu os diversos mo-
delos de cidade que estavam em jogo, sobretudo o neoliberal “de
exceção como democracia direta do capital”. Depois de elencar uma
série de fatores impostos pelo neoliberalismo, como a “favelização,
informalidade, serviços precários ou inexistentes, desigualdades
profundas, degradação ambiental, violência urbana, congestiona-
mentos e custos crescentes de um transporte público precário e
espaços urbanos segregados”, conclui da seguinte maneira: “nesse
contexto, o surpreendente não é a explosão, mas que ela tenha tar-
dado tanto” (Vainer, 2013a: 39).
A construção das teses de Vainer levou em conta os diversos
movimentos populares existentes no país, que na maioria das vezes
foram simplesmente ignorados pelas outras matrizes teóricas. Por
fim, sua leitura indicou as limitações que os partidos políticos en-
contraram no contexto atual de representação social em função da
falta de legitimidade junto à sociedade, por isso pediu que eles não
se apresentassem como dirigentes do movimento justamente para
não frear a luta (Vainer, 2013b).
Bringel (2013) ampliou o debate para questões metodológicas.
Assim, apontou, com bastante propriedade, algumas miopias pre-
sentes nos debates sobre o Levante e destacamos duas delas como
forma de ajudar a entender o processo:
a) miopia temporal presente/passado: segundo a qual as ge-
rações de militantes buscam valorizar mais os movimentos insur-
recionais nos quais participaram com maior veemência. Assim, as
gerações que participaram de lutas sociais no passado no Brasil, em
destaque para aquelas em contrário à ditadura civil-militar, tendem
a valorizá-las mais em detrimento da Revolta atualmente. As novas
gerações ativas no processo de 2013 tendem a fazer exatamente o

156 wallace de moraes


oposto. Em ambos os casos, afirma Bringel, há um problema sério
de memória histórica e de transvase intergeracional na militância.
b) miopia da política: “restringe a vida política à sua dimensão
político-institucional, limitando as possibilidades de compreensão
da reinvenção da política e do político a partir das práxis sociais
emergentes” (Bringel, 2013). Associada a essa, destacamos aquilo
que o autor chamou de miopia dos resultados, que podemos incluí-
-los aqui, pois tende a restringir a interpretação das revoltas popula-
res a impactos políticos no cenário eleitoral.
Bringel relatou muito bem como os manifestantes dirigiram
suas críticas mais contundentes aos banqueiros e especuladores,
ao sistema representativo, aos partidos tradicionais, às formas con-
vencionais e hierárquicas de organização política, como sindicatos e
movimentos sociais ligados ao aparelho estatal. Nesse sentido, ele
faz um pertinente paralelo com o Occupy nos EUA.
A partir dos resultados de suas entrevistas, Bringel descreveu
que as pessoas demonstraram seu descontentamento principal-
mente contra o funcionamento dos serviços públicos como: trans-
portes, saúde, educação e outros:

(...) apelam aos altíssimos custos (não somente econômicos, mas


também sociais, ambientais, culturais e políticos) da Copa e dos Me-
gaeventos a serem realizados no país, com destaque para o Rio de
Janeiro; jovens da classe média baixa e das periferias indignam-se
pela persistência profunda das desigualdades e revelam uma indig-
nação de classe e de opressão permeada pelas fraturas, as segmen-
tações e o classismo e racismo da sociedade brasileira(...) (Bringel,
2013).

Além disso, esse autor alertou para o fato de que “mobiliza-


ções de massa nem sempre são controladas pelas organizações so-
ciais e políticas, menos ainda em nossos tempos, onde emerge um
novo tipo de ação política viral, rizomática e difusa” (Bringel, 2013).

2013 - revolta dos governados 157


Ele constatou ainda que os jovens querem participar da vida
política do país, mas não encontram espaços para isso: “para muitos
deles, conselhos, fóruns e espaços institucionalizados não são sufi-
cientes e mostraram seus limites nos últimos anos” (Bringel, 2013).
Indubitavelmente, Bringel percebeu que o espírito de 1968
ecoou nas mobilizações sociais do Brasil, sobretudo, concepções de
política, formas de organização e de ação coletiva, pois “os partici-
pantes criticaram a centralização, a hierarquização e as perspectivas
de mudança social da velha esquerda, defendendo a autonomia, a
organização horizontal e reticular, a pluralidade de identidades as-
sociadas à política do cotidiano e a importância de uma mudança
social que contemple a transformação do próprio indivíduo” (Brin-
gel, 2013).
Outra interpretação nesse mesmo veio está organizada no li-
vro de Cava e Cocco (2014). Com base na metodologia e nos concei-
tos defendidos por Hardt e Negri (2001) e Negri (2002), três dezenas
de autores (militantes e intelectuais) versaram sobre diferentes te-
mas diretamente ligados ou que perpassam sobre a Revolta. Desde
o papel das redes sociais até os Black Blocs constituídos. Todos valo-
rizaram a revolta como ela foi, apenas com críticas pontuais, quan-
do as tinham. Muitos fizeram questão de relacionar a luta no Brasil
com o novo ciclo de luta planetária e suas perspectivas por fora da
institucionalidade. A luta e a horizontalidade do movimento foram
vangloriadas.
Hardt (2014), no prefácio do livro, apresentou duas teses sobre
a organização do movimento em um mesmo parágrafo. Dividiremos
em duas partes para podermos discuti-las separadamente, embora
tenham profunda conexão. A saber:

Dizer que as revoltas surgidas nas ruas de Rio e São Paulo, em 2013,
foram organizadas na forma da multidão significa dizer que, - em vez
de dirigidas pelo partido ou uma direção centralizada ou mesmo um

158 wallace de moraes


comitê de lideranças acima das massas, - os movimentos foram auto
organizados, conectados horizontalmente pelo território social.

Essa interpretação está corretíssima, resumindo muito bem a


perspectiva adotada pelos demais autores do livro, e em consonân-
cia com as outras leituras do campo que denominamos de autono-
mistas/revolucionárias.
Todavia, a continuidade do parágrafo encontra equívocos de
análise, vejamos:

Os movimentos não foram (e não se esforçam por ser) unificados e


homogêneos, mas sim encontraram meios adequados para exprimir
suas diferenças e antagonismos internos – e apesar de (ou por causa
de) suas diferenças, descobriram maneiras de compartilhamento e
cooperação, gerando uma série de demandas e perspectivas agru-
padas na luta. Tal multidão não é desorganizada e não se forma es-
pontaneamente, ao invés disso, ela requer uma atividade constante
e intensa de organização.

A argumentação de Hardt é real apenas em parte, pois de uma


maneira ou de outra a maioria dos movimentos tentou impor a sua
pauta como a de todos. Por incrível que possa parecer, foi exata-
mente essa tentativa que impediu que um movimento se impuses-
se a outro, pois nenhum tinha força suficiente para hegemonizar a
revolta. Aqueles que mais trabalharam para impor a sua pauta aos
outros foram os militantes dos partidos políticos eleitorais. Todavia,
justamente por isso, foram os mais rechaçados pelos governados –
que gritaram “sem partido”.
Ao mesmo tempo, a Revolta dos Governados mostrou o quan-
to os partidos eleitorais carecem de legitimidade social ou mesmo
de força popular. No meio da multidão seu número foi absoluta-
mente irrelevante e por isso alguns deles apanharam nas ruas em

2013 - revolta dos governados 159


contendas com grupos obscuros e autoritários que não queriam a
presença de bandeiras de partidos políticos nos protestos.
Os militantes dos partidos políticos da esquerda oficial não
ganharam solidariedade popular nem nesse momento. No fundo,
como tradicionalmente dirigiram o movimento institucional de rei-
vindicação e protestos, estes não se contentaram em participar do
Levante como mais uma força atuante. Por defenderem a centrali-
zação, a hierarquia e, por terem contato direto com o poder institu-
cional, relacionando-se com ele sempre que necessário, buscaram
se apresentar como representantes da massa. Assim, a perspectiva
de Hardt para esse caso exclusivo não se confirmou. Ela foi certeira
no que diz respeito aos movimentos mais libertários que têm ojeriza
a todo tipo de direção, mas para os demais, a tentativa de impor
a sua pauta foi constante. Mesmo os Black Blocs impuseram a sua
pauta por meio da propaganda pelo ato e pelo protesto permanen-
te. Todos puderam ver aquilo que eles almejavam, ou que eram con-
trários, por meio de suas ações, as quais também se impuseram ao
movimento. Pari passu, os anarquistas, autonomistas e marxistas
revolucionários tinham sim uma pauta e a contrapuseram o tempo
todo a dos partidos políticos eleitorais em todos os fóruns e nas pró-
prias ruas. Os chamados nacionalistas foram os que mais rechaça-
ram os partidos políticos através de gritos de “sem partido”. Estes
também tinham uma pauta, mas bem recuada e no interior da insti-
tucionalidade, tal como os partidos, embora fossem distintas.
As análises de Cocco (2014) chamaram a atenção para a legis-
lação criada ad hoc para enquadrar os manifestantes criminalmen-
te. No mesmo sentido Toledo (2014) tocou na forma de existência e
de atuação da polícia nos protestos, refutando-a e relacionando-as
com a guerra instaurada para garantir o poder. Uma guerra contra
os pobres e os insurgentes.
Por uma perspectiva revolucionária, amparada nas teses da an-
tropologia política, Andrey Ferreira (2015) chamou a atenção para o
fato de “o movimento multitudinário semi-insurrecional de Junho

160 wallace de moraes


de 2013” ter explodido durante uma festa popular (Copa das Confe-
derações). Para tanto, o autor fez um resgate de alguns aspectos da
cultura brasileira, utilizando-se de conceitos de Bakunin e Roberto
da Mata, concluiu que junho

“expressou em todos os domínios (política, cultura, economia) as


contradições entre uma estrutura social hierárquica e centralizado-
ra e uma antiestrutura que se pretendeu horizontal, democrática e
igualitária (nas formas dos Black Bloc, Mídias Alternativas, Oposi-
ções Sindicais)”.

Assim, Ferreira produziu uma forma específica de análise do Le-


vante de 2013, associando a “festa popular” com as manifestações,
segundo a qual “os protestos de junho devem ser interpretados
como parte de um processo de transformação cultural e simbólico,
como uma revolta associada à ruptura com um aspecto central da
cultura hegemônica, o mito da pátria de chuteiras” (Ferreira, 2015).
Em resumo, Ferreira (2015) interpretou o ataque dos manifes-
tantes contra os bancos como resultado da luta do trabalhador con-
tra o poder da financeirização, iniciando uma espécie de revolução
cultural, justamente durante aquilo que tinha tudo para ser a maior
festa popular brasileira (Copa do Mundo da “pátria de chuteiras”),
constituiu-se no maior Levante da História do país. Por consequên-
cia, o autor se enquadra e colabora para aquilo que chamamos de
interpretação revolucionária da Revolta dos Governados.
Outrossim, Locatelli (2013) acompanhou os protestos junto
com o MPL de São Paulo, descrevendo suas ações, seus interesses
e as justificativas do movimento, por uma perspectiva histórica. A
partir do seu relato, podemos perceber a pauta anticapitalista do
movimento, bem como a valorização dos princípios clássicos do
anarquismo como “ação direta”, “protesto permanente”, “horizon-
talidade” e profunda desconfiança nas instituições estatais e seus
governos, embora o autor não tenha feito essa conexão com o anar-

2013 - revolta dos governados 161


quismo. Portanto, é salutar destacar que Locatelli (2013) produziu
uma análise também como observador participante do movimento
na cidade de São Paulo. Sua perspectiva destoou amplamente da
de outras realizadas por intelectuais paulistas da esquerda oficial e
da plutocracia dissimulada, que, provavelmente, produziram seus
pontos de vistas a partir das lentes televisivas. Por consequência,
inferimos diretamente que os protestos em São Paulo possam ter
tido muito mais semelhanças com os do Rio de Janeiro do que imagi-
namos. As diferentes perspectivas metodológicas de análise podem
tê-las aparentado muito maiores do que realmente são.
Por fim, temos a excelente leitura de Mendes (2017), que des-
creve seus dias na prisão justamente por ser considerado uma das
lideranças da Revolta dos Governados de 2013. Seu livro não é exa-
tamente sobre a Revolta, pois privilegia o relato de um ativista po-
lítico revolucionário no complexo penitenciário de Bangu no Rio de
Janeiro. Não obstante, podemos ver sua descrição da insurreição
popular:

“Em junho de 2013, vivemos as maiores manifestações populares de


nossa história. No Rio de Janeiro, essas manifestações prossegui-
ram, estimuladas pela repressão brutal da polícia de Sérgio Cabral
– até então, todo-poderoso governador do estado – e pelo desapa-
recimento do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, torturado e
morto por policiais da UPP da Rocinha. Em outubro, durante a his-
tórica greve dos profissionais da educação, novo auge, outras ma-
nifestações reuniram multidões nas ruas. Militando no MEPR desde
muito jovem, participei, com muito orgulho, ao lado de minhas com-
panheiras e companheiros, daqueles grandes acontecimentos; dias
e noites memoráveis, que até há pouco muitos julgariam impossível
serem protagonizados pelo povo brasileiro”.

Apresentadas as diferentes leituras de 2013, passemos às nos-


sas considerações finais.

162 wallace de moraes


CONVERGÊNCIAS DAS TESES PLUTOCRÁTICAS
(DISSIMULADAS, DESAVERGONHADAS E
CONSERVADORAS AGRESSIVAS) E DA ESQUERDA
OFICIAL

Percebemos ao longo da pesquisa, diferentes modelos de aná-


lises do mesmo fenômeno, sendo determinante o reconhecimento
da posição político-ideológica do autor para identificarmos o seu
foco, críticas e elogios sobre a Revolta. Também observamos que
é possível justificar diferentes e até antagônicas leituras do mesmo
processo.
Vimos que as interpretações oficiais (plutocráticas dissimula-
das e desavergonhadas) e da esquerda oficial, apesar de pequenas
nuanças idiossincráticas, tiveram uma lamentável convergência,
ajudando a destruir o movimento. Apresentamos algumas delas: 1)
desqualificaram o Levante como sem pauta e sem direção; 2) defen-
deram a ideia de que o movimento estava sendo influenciado/dirigi-
do por fascistas e/ou por grupos de direita; 3) negaram que a classe
trabalhadora esteve massivamente presente no processo, afirman-
do que se tratava de uma classe média; 4) advogaram pela preser-
vação dos símbolos do Estado burguês e das instituições chamadas
por antífrase de democráticas. As três primeiras teses supracitadas
buscaram desqualificar o movimento por uma pseudo composição
social/política: classe média, direita e/ou fascistas, precariado - que
sob o preconceito clássico marxista não pode ser revolucionário e
tende mais a reação -;45 e por sua forma de organização: horizontal
e descentralizada. A quarta tese convergente diz respeito à cren-
ça desses setores na institucionalidade burguesa e na plutocracia
representativa por participarem como concorrentes eleitorais, legi-
timando, evidentemente, todo o processo com suas instituições e
aberrações.

45 Ver Manifesto Comunista de Marx e Engels.

2013 - revolta dos governados 163


A esquerda oficial, por exemplo, completamente adaptada ao
sistema, ficou com a mesma palavra de ordem da década de 1990,
quando dirigiu o processo e bradou o “Fora Collor”. 46 Em 2013, pe-
diram o Fora Cabral, Fora Alkmin pelo país afora, mas não tiveram
nem a coragem de bradar o Fora Dilma dado o recuo de suas postu-
ras. Qual a diferença lógica para as análises da plutocracia desaver-
gonhada? Apenas uma. Os intelectuais, representados nas análises
de Jabor tentaram usar o Levante para desgastar a governança
política petista. Com total apoio dos governantes socioculturais e
seus oligopólios de comunicação de massa, depois de cinco meses
de intensa campanha, sagraram-se vitoriosos, ao mobilizar muitas
pessoas principalmente na cidade de São Paulo pelo “Fora Dilma”,
iniciado em março de 2015 até 2016 com a vitória do impeachment.
Já os petistas buscaram resguardar o governo federal de qualquer
responsabilidade, mas sem apoio popular organizado e com a gran-
de mídia como adversária, foi uma tentativa infrutífera.
As análises plutocráticas Conservadoras Agressivas, por sua
vez, condenaram as ações dos Black Blocs, criticando a quebradeira
das vidraças dos bancos, da ALERJ e a resistência aos ataques po-
liciais. Elas tentaram associar os Black Blocs aos partidos eleitorei-
ros da esquerda e buscaram também capitalizar o movimento para
ficar em contrário somente à governança petista. Sem embargo,
procuraram obstaculizar e criminalizar o movimento de caráter in-
surgente, portanto, aquele que poderia trazer mudanças efetivas e
duradouras.
Por fim, tanto a esquerda oficial quanto a direita, isto é, os plu-
tocratas desavergonhados, dissimulados e Conservadores Agres-
sivos, concordavam com a necessidade do fim do movimento ou,
em última instância, o uso das manifestações para seus anseios elei-
torais. Todos foram veementemente contra os ataques às vidraças

46 Em 1992, ocorreu o forte movimento popular dirigido principalmente pelo PT e apoiado


pela Rede Globo, que levou ao impeachment do então Presidente da República, Fernan-
do Collor de Mello.

164 wallace de moraes


dos bancos e da ALERJ. Estiveram unidos apesar das suas diferentes
propostas de organização do Estado.
Há muito tempo que as supostas direita e esquerda defendem
a mesma bandeira, reduzindo tudo a uma disputa eleitoral, a uma
questão de gestão. O brado: “Vote em mim, porque eu sei fazer
melhor do que fulano, eu sou honesto, ético, o outro não é” não
seduzia mais os governados. A população cansou desse discurso
hipócrita e demagogo. Por não entender os signos dos novos tem-
pos, todos os partidos políticos foram amplamente rechaçados nas
manifestações populares, porque em última instância, apoiavam a
estrutura que justificava os governos, mas sobretudo a dicotomia
entre governantes e governados.
A reflexão de Kropotkin expressa muito bem a unidade entre
esquerda e direita apesar de se apresentarem como opositoras uma
da outra.

“Uma adoração comum, um culto comum une todos os burgueses,


todos os exploradores. O líder do poder e o líder da oposição le-
gal, o papa e o ateu burguês adoram igualmente um mesmo deus,
e esse deus de autoridade reside até nos recantos mais ocultos de
seus cérebros. Eis porque eles permanecem unidos apesar de suas
divisões. (...) Também se compreende quão insensato é querer co-
locar a revolução sob essa bandeira, buscar conduzir o povo contra
todas as suas tradições, aceitar esse mesmo princípio, que é aquele
da dominação e da exploração. A autoridade é a bandeira deles, e
enquanto o povo não tiver uma outra, que será a expressão de suas
tendências de comunismo, antilegaritárias e antiestatistas – anti-ro-
manas, em resumo – ele será forçado a se deixar conduzir e dominar
pelos outros“ (Kropotkin, 2007: 104-05).

Feita a discussão bibliográfica sobre o Levante, passemos à


nossa análise, que será absolutamente diferente das plutocráticas
e da esquerda oficial.

2013 - revolta dos governados 165


3. ANTECEDENTES DA
REVOLTA E SUA CONEXÃO
MUNDIAL
fonte: ruy barros
A Revolta dos Governados, indubitavelmente, pegou todos de
surpresa. A reflexão de Bookchin (1974) sobre o Maio de 1968, em
Paris, cabe perfeitamente para delinear o significado de 2013 no Rio
de Janeiro, senão vejamos:

“A rebelião foi iniciada pelos jovens (...) Mas a revolta afetou os mais
velhos também. (...) Embora tivesse sido catalisada pelos revolucio-
nários conscientes, especialmente por grupos de afinidade anarquis-
ta, de cuja existência ninguém suspeitava nem mesmo vagamente,
o fluxo, o movimento de rebelião foi espontâneo. Ninguém incitou
à revolta, ninguém chegou a organizá-la e também ninguém conse-
guiu controlá-la (...). Durante a maior parte daqueles dias de maio e
junho, houve uma atmosfera de festa, um despertar da solidarieda-
de, um desejo de ajudar-se mutuamente, de expressar a própria in-
dividualidade. (...) As pessoas estavam literalmente redescobrindo
– ou talvez reconstruindo – a si próprias e aos outros. (...) Milhares
de pessoas foram atacadas por uma febre de viver, um renascer de
sentimentos que nem sonhavam possuir, de uma alegria e um entu-
siasmo que nunca pensaram poder sentir. As línguas ficaram mais
soltas, os ouvidos e os olhos adquiriram mais acuidade.”

Não obstante, em que pese a espontaneidade de 2013, é mister


destacar que, nos porões dos movimentos sociais mais combativos,
ele estava sendo germinado e esperado por muitos, há tempos.
Tal como em Paris, o movimento foi produzido por uma juventude
aguerrida e depois ganhou adesão dos mais velhos. A solidarieda-
de foi uma das suas principais marcas. Nenhum movimento político
conseguiu controlar/dirigir o processo. Por isso, os partidos políticos
da direita e da esquerda possuem ojeriza a 2013. Por outro lado, os
anarquistas e revolucionários o veem como uma grande demons-
tração de força dos governados. Decerto, 2013 foi a expressão da
liberdade popular e a tentativa de auto instituição social.

2013 - revolta dos governados 169


O objetivo deste capítulo é descrever como o movimento foi
gestado, nos anos anteriores, tanto por aspectos acidentais, quan-
to por variáveis bem organizadas e conscientes. Como aperitivo
para essa discussão, devemos começar com uma questão central: 1)
por que em 2013 ocorreu a maior revolta popular da história brasilei-
ra e em praticamente todo o país?
É salutar destacar a insensatez em procurar uma única fonte
causal para os protestos de 2013 no Brasil. A rebeldia desse ano só
foi possível em função da junção de diversas condições, algumas
das quais aconteceram antes deste período. Para tanto, podemos
exemplificar:
1) Nos anos anteriores a 2013, a guarda municipal da cidade do
Rio de Janeiro agia de forma truculenta contra os camelôs, tomando
suas mercadorias e até exigindo suborno para fazer vista grossa em
relação às suas vendas.1 Foram vários os confrontos entre guardas e
vendedores ambulantes com verdadeiras caçadas humanas em dife-
rentes bairros. Em 2013, motivos não faltaram para os excluídos do
mercado formal de trabalho aderirem aos protestos e ocuparem a
linha de frente dos combates. No dia 20 de junho, o Centro Opera-
cional da Guarda Municipal na Central do Brasil foi completamente
destruído.2

1 Com base nos relatos dos camelôs que indignados enfrentaram os guardas por diversas
vezes na cidade do Rio de Janeiro
2 Castells (2013) identifica o início da Primavera Árabe na Tunísia justamente pela repressão
aos camelôs: “Tudo começou num lugar totalmente inesperado, em Sidi Bouzid, uma ci-
dadezinha de 40 mil habitantes na empobrecida região central da Tunísia, ao sul de Túnis.
O nome de Mohamed Bouazizi, vendedor ambulante de 26 anos, agora está gravado na
história como o daquele que mudou o destino do mundo árabe. Sua autoimolação por
fogo às 11h30 da manhã de 17 de dezembro de 2010, diante de um prédio do governo, foi
seu último grito de protesto contra a humilhação que era para ele o repetido confisco de
sua banca de frutas e verduras pela polícia local, depois de ele recusar-se a pagar propina.
A última apreensão havia ocorrido uma hora antes. Ele faleceu em 3 de janeiro de 2011,
em um hospital de Túnis, para onde fora levado pelo ditador com o objetivo de aplacar a
fúria da população. De fato, poucas horas depois de ele ter colocado fogo em seu próprio

170 wallace de moraes


2) A crescente penetração/proliferação da cultura do Hip-Hop
nas favelas e periferias com suas letras altamente contestadoras,
estimulando a reflexão de maneira direta e, em sua grande maioria,
a partir da própria vivência nas comunidades exploradas.3
3) Pelo menos quinze anos antes, diversos movimentos sociais
organizaram ocupações de prédios/terras abandonados e/ou com
uso sem função social para fim de moradia, como a FLP (Frente de
Luta Popular) a FIST (Frente internacionalista dos Sem-Teto), e o
MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto). Podemos desta-
car, somente no Rio de Janeiro, as ocupações: Chiquinha Gonzaga4,
Quilombo das Guerreiras5, Zumbi dos Palmares e Flor do Asfalto. O
movimento sem-teto ganhava força no seio do movimento social e
se impunha pela ação direta no Rio de Janeiro. Também foi criada a

corpo, centenas de jovens, com experiências semelhantes de humilhação por parte das
autoridades, fizeram um protesto no mesmo local.
3 Ver, especialmente, coletivo de Hip Hop Lutarmada. Ver também Mano Zeu “Brasil Ilegal”,
disponível em: http://som13.com.br/mano-zeu-rap; Ver Ktarse “Gueto subversivo”, dispo-
nível em: https://www.youtube.com/watch?v=KDJGDaon7h0. Ver também https://www.
letras.mus.br/gustavo-gn/patria-armada/. Ver “Racionais MCs”, “Gabriel O Pensador” e
“MV Bill”, talvez os mais famosos deles e diversos outros raps pelo Brasil afora. Como voz
do morro e também no diapasão de contestação do sistema, podemos incluir as músicas
escritas por diversos populares e gravadas por Bezerra da Silva.
4 Essa ocupação foi realizada por militantes políticos junto com moradores de rua que ocu-
param o prédio da rua Barão de São Félix no Centro em outubro de 2004.
5 Essa ocupação aconteceu em outubro de 2006. Oito anos depois a Organização Anarquis-
ta Terra e Liberdade (OATL) soltou a seguinte nota: Gostaríamos de parabenizar a Ocu-
pação sem-teto Quilombo das Guerreiras pelos seus 8 anos de vida, completados hoje.
Foram dias, anos, tempos de muita luta e aprendizagem. Vocês ensinaram à nossa época
a possibilidade concreta, real, de viver em coletivo, de se organizar em autogestão, viver
em liberdade com respeito e união. Nos deram força, coragem, sonhos. Hoje, devido à
crueldade do Estado, não estão mais no mesmo prédio, na Avenida Francisco Bicalho,
mas a vida e história de vocês não se fecha nos muros de uma parede. O coletivo conti-
nua, a história continua, e esperamos poder participar eternamente dela, vendo-a crescer
e brilhar como merece. “Povo de luta não é de brincadeira, aqui quem fala é a quilombo
das guerreiras!”

2013 - revolta dos governados 171


CUFA (Central Única de Favelas) e algumas associações de morado-
res de favelas foram rearticuladas com um viés mais autonomista.
4) Há alguns anos, diversos pré-vestibulares para negros e
carentes foram organizados por movimentos sociais. Esses cursos
consistiam na troca de sabedoria entre populares e professores mi-
litantes, exercendo, na maioria das vezes, uma perspectiva bastan-
te crítica da realidade, produzindo valores igualitários. Esses jovens
entraram nas universidades com um grau de politização bastante
apurado e ajudaram a contestar o poder, escancarando uma realida-
de pouco conhecida nesses meios, trazendo uma nova interpreta-
ção de mundo, vinda das classes populares e contestadora do status
quo.
5) A proliferação de coletivos autonomistas, anarquistas, re-
beldes e revolucionários, contradizendo os partidos políticos tradi-
cionais e suas alianças “pragmáticas” com os coronéis.
6) A força dos movimentos LGBTQIA+6; a marcha das vadias;
os “beijaços” públicos, ampliando a liberdade de opção sexual. A
Parada do Orgulho Gay já vinha se realizando em anos anteriores
com a participação de milhares de pessoas. É importante lembrar
que antes de junho de 2013 tramitava no Congresso Nacional lei so-
bre a “cura gay”.
7) As remoções de comunidades inteiras em função dos gran-
des eventos. Assim, em nome do lucro para a FIFA, empreiteiros e
governantes, famílias inteiras foram retiradas a força de suas casas,
que foram destruídas com total truculência. Essas pessoas se orga-
nizaram e resistiram bravamente. 2013 foi o grande caldeirão dessa
luta.
8) Existia ainda uma exacerbada brutalidade das forças de re-
pressão nas comunidades pobres do país, principalmente com ex-
termínio de negros e favelados, gerando uma crescente onda de
indignação contra a polícia. Os dados oficiais do Instituto de Segu-
6 Significado de Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersex, apoiadores. Para
mais detalhes ver excelente estudo de SOARES (2017).

172 wallace de moraes


rança Pública (ISP/SSP-RJ) revelam que, entre 2001 e 2011, mais de
10 mil pessoas foram mortas em confronto com a polícia no Estado
do Rio de Janeiro em casos registrados como ‘autos de resistência’.7
9) O aumento da população carcerária no Brasil e, em particular
no Rio de Janeiro, demonstra uma política clara de encarceramento
em massa, cujos alvos que mais cresceram foram as mulheres e ne-
gros (Simas, 2018).

Ano Total da população prisional Taxa de aprisionamento


2000 232,755 133
2002 239,345 133
2004 336,358 182
2006 401,236 212
2008 451,429 234
2010 496,251 253
2012 548,003 275
2014 622,202 307
2016 644,575 313
2018 672.722 (fev./2018, seg. CNJ) 324
Quadro 1: População Prisional do Brasil, 2000 a 2018. fonte: icps - international
center for prison studies, wpb, 2018 in simas (2018).

Essa política de extermínio e de encarceramento em massa de


pobres e principalmente negros no Brasil colaborou para a indigna-
ção desses setores e contribuiu para o clima de 2013. Por isso, os
protestos não podiam ser pacíficos depois dos ataques policiais.
Como disse Gelderloos (2011): “a não violência é branca e de clas-
se média”. O negro e pobre acostumado a apanhar, sofrer tortura,
discriminação e ser estatística de “autos de resistência” não tem
paciência para fazer protestos de sentar no chão, nem apanhar da
polícia ordeiramente.

7 “Ver pesquisa de Misse (2011). Diz ainda o estudo que “embora sejam homicídios, essas
mortes são classificadas separadamente, pela polícia, por se tratarem de mortes com
‘exclusão de ilicitude’, porque supostamente cometidos em legítima defesa ou com o
objetivo de “vencer a resistência” de suspeitos de crime.”

2013 - revolta dos governados 173


10) Os filmes Tropa de Elite 1 e 2, campeões de bilheteria8,
mostraram a ligação direta entre polícia, vendedores do varejo de
drogas, milícias e governantes políticos, que todos sabiam, mas não
tinham coragem de dizer. Esses filmes ajudaram na criação da at-
mosfera de 2013.
11) Em 2011, ocorreu a heroica greve dos bombeiros no Rio de
Janeiro, que ganhou visibilidade nacional e aplausos dos governa-
dos. Na época, muitas pessoas apoiaram essa luta colocando fitas
vermelhas nos carros e braços. Já se apontava para o retorno da
solidariedade de classe que extrapolava os sindicatos.
12) A Greve das universidades públicas em 2012 contou com
amplo apoio de professores e alunos. Foi o maior movimento da
história da categoria.9 Novos professores que acabavam de entrar
nas universidades sustentaram a greve por um período bem longo
até ela ser traída por direções partidárias.10 Ainda existiu a greve de
funcionários públicos federais. Como mostraremos, o ano de 2012
representou um importante aumento do número de greves no país.
13) Em 2012, ocorreu a RIO+20 e os movimentos sociais do
mundo inteiro se decepcionaram com os resultados acertados pelos
chefes de Estado. Exatamente, um ano antes do maior protesto da
história brasileira em 2013, no dia 20 de junho de 2012, ocorreu uma
enorme manifestação no Centro do Rio contando com aproximada-
mente 100 mil pessoas. Já era a prévia para o ano seguinte.

8 Estima-se que os filmes tenham sido assistidos por mais de 20 milhões de pessoas. “Tro-
pa de elite 2”, de José Padilha, tornou-se o filme mais visto da história do cinema brasilei-
ro, quando atingiu a marca de 10.736.995 espectadores após nove semanas de exibição.
Estima-se que 11 milhões de pessoas tenham assistido a um DVD pirata do filme “Tropa de
elite 1” antes de sua estreia, em 2007, quando foi copiado e se tornou um fenômeno nos
camelôs. Fonte: http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2010/12/tropa-de-elite-2-e-maior-bi-
lheteria-da-historia-no-brasil.html
9 http://www.andes.org.br:8080/andes/print-ultimas-noticias.andes?id=5576
10 Para mais detalhes, ver De Moraes (2012) http://www.otal.ifcs.ufrj.br/a-greve-traida-
-de-2012/

174 wallace de moraes


14) Os gastos exorbitantes com estádios de futebol para a Copa
do Mundo e para os ralos da corrupção enriqueceram empreiteiros,
políticos em geral, e exortaram os pobres dos jogos, impedindo-os
de, na prática, irem à diversão. O fim da Geral no Maracanã – parte
do estádio anteriormente com ingressos populares - impossibilitou
definitivamente que o torcedor com pouco recurso financeiro assis-
tisse aos jogos, limitando a festa popular. Tudo isso significou uma
política de elitização do futebol, que consequentemente estimulava
as governanças/opressões sociais econômica e racial. Como resulta-
do, membros das torcidas dos times de futebol também participa-
ram e organizaram atos de protestos.
15) Exatamente em 2012/13, os oligopólios de comunicação de
massa divulgavam, por um viés muito positivo (atendendo aos in-
teresses dos governantes dos EUA), as lutas populares no Egito, na
Turquia e Síria, naquilo que se chamou de Primavera Árabe. Essa foi
uma das senhas para a possibilidade de os governados brasileiros
também se rebelarem.
16) 2013 foi o ano da realização da Copa das Confederações no
Brasil que trouxe a presença da imprensa mundial, quase que obri-
gando os oligopólios de comunicação de massa no país a tratar dos
protestos, pois a grande mídia internacional já estava fazendo.
17) Junho de 2013 foi o mês da revelação de Edward Snowden
a respeito da espionagem em massa pela internet, realizada pelo
governo dos EUA. Ele cunhou a expressão “tirania instantânea” e
colaborou para o clima de desconfiança generalizada em relação
aos meios de controle governamentais.
18) A privatização das rodovias encareceu os preços das via-
gens; a indústria da multa com radares escamoteados em quase
todos os lugares; bem como o valor abusivo do fornecimento de
energia elétrica, gás, gasolina e telefone, implicaram na criação de

2013 - revolta dos governados 175


movimentos sociais que exigiram preços menores desses serviços
de primeira necessidade.11
19) Depois de mais de 40 anos banidas do currículo do ensi-
no médio, as disciplinas de Filosofia e Sociologia foram novamente
incorporadas a partir de 2009 nas escolas brasileiras. São duas dis-
ciplinas que normalmente discutem as mazelas da sociedade, suas
desigualdades e problemas sociais em geral, portanto, colaboram
para criar o senso crítico nos estudantes, fazendo-os refletir para
além dos ensinamentos recebidos acriticamente dos governantes
socioculturais da grande mídia de massa.12
20) Associado a tudo isso, existiam ainda os motivos históricos
que os brasileiros possuem há séculos para protestar contra os go-
vernantes, como: desvios de dinheiro público; pouco investimento
em saúde, educação, habitação e saneamento básico; valor exor-
bitante das passagens de transportes públicos, que refletia uma
demanda imediata de enorme parcela da população; os estratosféri-
cos lucros dos bancos com consequente endividamento de pobres;
a desigualdade social persistente e a desilusão com um governo que
se dizia de esquerda, mas que governou prioritariamente para ban-
queiros e empreiteiros. Os governantes foram longe demais na sua
busca incessante, e a todo custo, pelo lucro pessoal, individualista e
egoísta.
A Revolta dos Governados de 2013, portanto, foi resultado de
um longo processo marcado pelo acúmulo de experiências de lutas
e por um amálgama de questões contingentes e/ou conjunturais da-
quele ano que a proporcionaram.
Em suma, antes de junho, o cenário de contestação estava arma-
do, era necessário apenas o estopim. Quando estudantes corajosos
foram para as ruas denunciar os valores exorbitantes das passagens
dos transportes públicos – dominados por oligopólios mafiosos en-

11 Ver: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/07/03/manifestantes-de-
predam-pedagio-e-queimam-onibus-em-sp.htm
12 Ver: http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/32546

176 wallace de moraes


trelaçados com políticos inescrupulosos – e foram covardemente
atacados pelas forças policiais, os governados, que sentem na pele
todos os dias o valor desses custos e o serviço de péssima qualidade
prestados, prontamente se solidarizaram e apoiaram o movimento.
Foi a fagulha necessária para a explosão social.
Além das lutas, da organização social e de questões contingen-
tes supracitadas, que se desenrolaram antes de 2013 e colaboraram
para a sua atmosfera, defendemos que a revolução tecnológica que
incidiu sobre a comunicação, nos primeiros anos do século XXI, cum-
priu um papel muito importante para a existência da Revolta do Vi-
nagre. A criação e popularização dos smartphones, das redes sociais
(Facebook, WhatsApp, Twitter, Youtube), abalando por completo
a censura dos oligopólios de comunicação de massa em assuntos
políticos e outros, foi fundamental para que as manifestações ga-
nhassem a dimensão que tiveram com a possibilidade de autono-
mia associativa e ampla veiculação de ideias, permitindo um efeito
extraordinário na convocação e divulgação dos atos. Antes da exis-
tência das redes sociais eram necessários alguns dias para organizar
e mobilizar pessoas para os protestos, depois eles passaram a ser
organizados de um dia para o outro. Assim, foi possível movimentar
os governados em atos públicos massivos duas vezes por semana.
Algo pouco provável nas décadas anteriores. Com um smartphone
na mão, cada um se transformava em um repórter em potencial,
podendo tirar fotos e compartilhar com os amigos que também po-
diam ampliar os compartilhamentos. De tal modo, a indignação foi
vista e distribuída, rapidamente, por um grande número de pessoas,
quebrando a censura escancarada dos oligopólios de comunicação
de massa existentes no país. Depois que inúmeras pessoas tiveram
acesso e criticaram o fato da omissão das informações, bem como
a mídia internacional, presente no Brasil para cobrir a Copa das Con-
federações, também já divulgara; a grande mídia nacional foi obri-
gada a noticiar, até porque ela mesma foi alvo dos protestos que
parecia ganhar dimensões inimagináveis. Destarte, a informação foi

2013 - revolta dos governados 177


sensivelmente potencializada. Foi assim que se conseguiu chegar a
milhões de pessoas nas ruas no Brasil.
Hoje, isso não é mais possível. As redes sociais foram contro-
ladas. Os setores mais críticos foram criminalizados e todos que
colaboravam para a divulgação das perspectivas revolucionárias, re-
beldes e contestadoras, por uma questão de sobrevivência, foram
obrigados a parar com as críticas e milhares de seus perfis foram
retirados das redes sociais. Simultaneamente, o algoritimo do Face-
book foi alterado para impedir a organização de protestos em mas-
sa. Foram criados vários think tanks, que passaram a divulgar uma
pauta mentirosa, deturpadora e conservadora da história brasileira,
reunindo grande parte dos governantes socioculturais, através de
questões que valorizaram as hierarquias, as desigualdades, os valo-
res evangélicos/católicos conservadores e as forças de repressão,
como polícia e forças armadas, isto é, tudo aquilo que fora contes-
tado por 2013. Assim, ocorreu a reação conservadora, através de um
ativismo agressivo reacionário e altamente financiado por chefes de
igrejas e componentes das forças penais.
Por fim, é importante situar 2013 em um contexto mais amplo
de lutas sociais mundiais, em sua maioria por fora das instituições
estatais e de seus partidos políticos oficias e legalizados.

2010-2013 NO MUNDO – UMA REVOLTA MUNDIAL?

Desde pelo menos os últimos anos do século XX, percebemos


em todo o mundo uma espécie de revival do movimento social nas
ruas e praças, bem como da ação direta. A Ação Global dos Povos
(AGP) foi composta por diferentes lutas desde 1998, em Birmin-
gham, Genebra e Londres, passando pela já lendária batalha de Se-
attle em 1999, tendo continuidade em Washington e Praga, 2000, e
terminou seu ciclo em Gênova, 2001. Suas principais características
foram: movimentos descentralizados e auto-gestionários, tornando

178 wallace de moraes


áreas públicas em espaços de discussão e ação política (Graeber,
2002; Gordon, 2015). A novidade foi a consolidação dos Black Blocs
com a prática da propaganda pelo ato contra os símbolos do capita-
lismo e do Estado (Dupuis-Déri, 2014). A agenda do movimento se-
guiu as reuniões de instituições reguladoras do capitalismo global,
tentando impedi-las de funcionar (Ludd, 2002). Nos anos seguintes,
novos movimentos sociais foram impulsionados pelo uso das redes
sociais, assim aconteceu em Madri, em 2004, e no Irã e na Islândia
em 200913.
A revolta na Tunísia em 2010 deu início a chamada Primavera
Árabe que continuou, entre 2011 e 2013, na Síria, Turquia e Egito.
Depois da destituição do governante político daquele país, os go-
vernados continuaram gritando: “Degage! Degage!” (“Fora!”) para
todos os poderes constituídos: políticos corruptos, especuladores
financeiros, policiais violentos e mídia subserviente (Castells, 2013).
Entretanto, a Revolta Árabe não se restringiu a esses países e teve
sua continuidade, em janeiro de 2011, na Argélia; no Líbano; na Jor-
dânia; na Mauritânia; no Sudão; em Omã; no Iêmen; no Bahrein; em
fevereiro, na Líbia; no Kuwait; no Marrocos; em março na Arábia
Saudita e na Síria. 14
A descrição de Castells (2013) acerca dos protestos na Tunísia,
em 2011, nos faz lembrar do Brasil em 2013:

“A difusão em vídeo dos protestos e da violência policial pela inter-


net foi acompanhada de convocação à ação nas ruas e praças das ci-
dades de todo o país, começando nas províncias centro-ocidentais e
depois atingindo a própria Túnis. A conexão entre comunicação livre
pelo Facebook, YouTube e Twitter e a ocupação do espaço urbano
criou um híbrido espaço público de liberdade que se tornou uma
das principais características da rebelião tunisiana, prenunciando

13 Sobre esses três casos de revolta popular e a sua relação com as redes sociais, é impor-
tante ver excelente livro de Castells (2013).
14 Sobre essas revoltas, ver Castells, 2013.

2013 - revolta dos governados 179


os movimentos que surgiriam em outros países. Formaram-se com-
boios de solidariedade, com centenas de carros convergindo para a
capital.”

O movimento “Occupy”, em 2011, se espalhou pelo mundo e


baseou-se, tal como a AGP, na denúncia das instituições do capita-
lismo e do Estado, fazendo de praças e ruas, locais para discussão
política, descentralizada e popular (Chomsky, 2012; Graeber, 2015).15
Tivemos ainda fortes movimentos de contestação na Grécia, 2012-
13, a Revolta dos Indignados na Espanha16, em 2013, e Levantes na
Ucrânia, em 2013/14. Até em Israel, um movimento não instituciona-
lizado com múltiplas demandas tornou-se a maior mobilização de
base da história do país, obtendo a satisfação de muitas de suas rei-
vindicações (Castells, 2013).
Em todas essas revoltas homens e mulheres protagonizaram
importantes ações pela construção de um mundo novo.
Manuel Castells (2013) descreve com maestria os aspectos co-
muns das diferentes manifestações, cujo empoderamento popular
foi sua principal marca:

15 “Nos Estados Unidos, o movimento Occupy Wall Street, tão espontâneo quanto os outros
e igualmente conectado em redes no ciberespaço e no espaço urbano, tornou-se o even-
to do ano e afetou a maior parte do país, a ponto de a revista Time atribuir ao “Manifes-
tante” o título de personalidade do ano. E o lema dos 99%, cujo bem-estar fora sacrificado
em benefício do 1% que controla 23% das riquezas do país, tornou-se tema regular na vida
política americana. Em 15 de outubro de 2011, uma rede global de movimentos Occupy,
sob a bandeira “Unidos pela Mudança Global”, mobilizou centenas de milhares de pesso-
as em 951 cidades de 82 países, reivindicando justiça social e democracia real. Em todos
os casos, os movimentos ignoraram partidos políticos, desconfiaram da mídia, não re-
conheceram nenhuma liderança e rejeitaram toda organização formal, sustentando-se
na internet e em assembleias locais para o debate coletivo e as tomadas de decisão.”
(Castells, 2013).
16 Em maio de 2011, teve início a Revolta dos Indignados na Espanha. Uma revolta que não
contou com o apoio dos partidos políticos, dos sindicatos, da grande mídia, ou de quais-
quer organizações institucionalizadas. Ela foi preparada pela internet, sem nenhuma lide-
rança explícita. Ver Castells (2013).

180 wallace de moraes


“Ela nasceu do desprezo por seus governos e pela classe política,
fossem eles ditatoriais ou, em sua visão, pseudodemocráticos. Foi
estimulada pela indignação provocada pela cumplicidade percebida
entre as elites financeira e política. Foi desencadeada pela subleva-
ção emocional resultante de algum evento insuportável. E tornou-se
possível pela superação do medo, mediante a proximidade constru-
ída nas redes do ciberespaço e nas comunidades do espaço urbano.
(...) Ninguém esperava. Num mundo turvado por aflição econômica,
cinismo político, vazio cultural e desesperança pessoal, aquilo ape-
nas aconteceu. Subitamente, ditaduras podiam ser derrubadas pe-
las mãos desarmadas do povo, mesmo que essas mãos estivessem
ensanguentadas pelo sacrifício dos que tombaram. Os mágicos das
finanças passaram de objetos de inveja pública a alvos de desprezo
universal. Políticos viram-se expostos como corruptos e mentirosos.
Governos foram denunciados. A mídia se tornou suspeita. A confian-
ça desvaneceu-se. (...) Entretanto, nas margens de um mundo que
havia chegado ao limite de sua capacidade de propiciar aos seres
humanos a faculdade de viver juntos e compartilhar sua vida com
a natureza, mais uma vez os indivíduos realmente se uniram para
encontrar novas formas de sermos nós, o povo.”

Na América Latina não foi diferente. O Caracazo em 1989 inau-


gurou as lutas anti-institucionais e contra os partidos políticos.17 O
Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), em Chiapas, no
México, em 1994, serviu como inspiração para grande parte dos
movimentos subsequentes de contestação18, seja na Europa, seja na
América. Entre os anos de 1996 e 2006, cinco presidentes (gover-
nantes políticos) tiveram os seus mandatos interrompidos por conta
das mobilizações populares no Equador. Na Argentina, na passagem
de 2001 para 2002, o país experimentou, em doze dias, cinco dife-
rentes governantes políticos. Os governados, nas ruas, rechaçavam

17 Para mais detalhes, ver De Moraes (2018).


18 Para mais detalhes, ver excelente pesquisa de Brancaleone (2015).

2013 - revolta dos governados 181


a classe política como um todo, sob o lema; “que se vayan todos”
(que todos saiam). Ao mesmo tempo, foram criadas centenas de
assembleias nos bairros com intensa atuação popular. Na Bolívia,
existiram dois momentos de grande intensidade revolucionária, o
primeiro foi a guerra do gás, em 2003; e, o segundo, em 2005, quan-
do o então presidente da República foi forçado a renunciar. Em am-
bos, multidões de governados, em sua maioria indígenas, foram às
ruas protestar contra as governanças políticas plutocráticas neolibe-
rais desavergonhadas e suas ações. Assim, o Caracazo na Venezuela
em 1989; o EZLN no México, em 1994; o movimento dos piqueteros
na Argentina, em 2001; bem como as revoltas indígenas na Bolívia
e no Equador (2003-2006) e as lutas dos estudantes no Chile, entre
2011-14, foram exemplos importantes de ação direta ou com fortes
componentes dessa. Ademais, em breve pesquisa percebemos pra-
ticamente que em todos os países ocorreram protestos massivos,
alguns com conflitos e com Black Blocs no início da década de 2010.
Em sua maioria, as manifestações aconteceram dissociadas das es-
truturas partidárias e foram mais confrontacionais com as forças es-
tatais. Tudo indica que a década de 2010 inaugurou um ciclo de lutas
diferente marcado pela horizontalidade, pela propaganda pelo ato,
pela ação direta, bem diferente da prática representativa e por den-
tro da institucionalidade guiada por partidos políticos e sindicatos
das décadas anteriores, dominada pelas “lideranças” ou represen-
tações partidárias e sindicais. O caráter dos atos supracitados de-
monstra uma descrença na representação política, sobretudo após
representantes de partidos de esquerda ganharem eleições e não
avançarem para a emancipação social, não atendendo às principais
demandas dos movimentos sociais mais independentes e combati-
vos. Os governos petistas, indubitavelmente, se enquadraram nessa
perspectiva, como os casos de Kirchnner na Argentina, de Morales
na Bolívia, de Correa no Equador, de Lugo no Paraguai, Mujica no
Uruguai. Podemos ainda citar o caso da Nicarágua, governada por
um ex-sandinista, Daniel Ortega, que tentou aprovar em 2018 uma

182 wallace de moraes


reforma da previdência social para retirar direitos dos trabalhado-
res, fazendo explodir uma enorme luta popular contra seu governo.
O caso que mais avançou para uma emancipação social, mas tam-
bém não foi concretizado, foi o de Chávez na Venezuela.19 Todavia,
é necessário, ainda, mais pesquisas para comprovar algumas dessas
conjecturas.20
Particularmente, o Brasil não esteve no calendário das lutas
anticapitalistas nem nas décadas de 1990, nem em 2000, pois aqui
ainda havia fortes esperanças de que as mudanças pudessem ser
realizadas pelo alto, ou seja, através da chegada de um “messias”
à governança política. As esperanças eleitorais sobressaíam à luta.
Somente depois de 10 anos de governos petistas, com poucas mu-
danças substantivas em prol dos trabalhadores, que os governados
se rebelaram. Destarte, aconteceram as maiores manifestações da
história brasileira no inverno-primavera de 2013. Curiosamente, a tá-
tica Black Bloc, junto com outras organizações libertárias, assumiu
o protagonismo da luta contra a corrupção endêmica do Estado e
contra o capitalismo, tal como na AGP, no Occupy e nas revoltas po-
pulares árabes e latino-americanas. Vamos estudá-la com mais deta-
lhes a partir de agora.

19 Ver De Moraes (2018).


20 Agradeço aos alunos do OTAL pela realização das pesquisas que nos possibilitam apontar
para essas hipóteses.

2013 - revolta dos governados 183


4:

4. DIA-A-DIA DE UMA
PRIMAVERA DE LUTA
fonte: ruy barros
“É barricada, greve geral, ação direta que derruba o capital”
(canção cantada pelos radicalizados nos protestos)

fonte: rafael daguerre

Antes de verificarmos suas principais características, requer


que façamos uma breve genealogia do movimento.
As manifestações, no Rio de Janeiro, começaram pelas ações
do “Fórum de Lutas contra o aumento das passagens” ainda no final
de 2012, mas que ganhou corpo em 2013. O Fórum defendeu o trans-
porte público e gratuito para todos. Trata-se da ideia do direito de ir
e vir como social e fundamental. Portanto, não poderia ficar sob a
égide mercadológica. O Fórum de lutas do RJ era composto por mi-
litantes independentes, autônomos, anarquistas, marxistas revolu-
cionários e de alguns partidos políticos da esquerda oficial. Então,
tinha uma composição um pouco diferente da do MPL de São Paulo,
por exemplo, que se declarava um movimento horizontal, autôno-
mo, independente, não partidário. Não obstante, os coletivos opta-
ram pela ação direta nas ruas ao invés da negociação ou do diálogo

2013 - revolta dos governados 187


com as autoridades.1 Como reflexo dessas perspectivas, produziram
uma estética própria, conectada com outros movimentos interna-
cionais, como mostramos. O coletivo no Rio de Janeiro tinha algu-
mas idiossincrasias em função da sua composição. Assim, formaram
uma espécie de federação unida pela luta contra o aumento das pas-
sagens dos transportes públicos. Os protestos, portanto, foram re-
sultado da junção de diferentes perspectivas desde o seu início. Uns
gostavam de carros de som, outros não; uns tinham “lideranças”
claras e definidas; outros tinham ojeriza aos chefes, mas todos ba-
tiam nas palmas da mão e, com ajuda de instrumentos de percus-
são, entoavam palavras de ordem umas mais radicalizadas e outras
mais institucionais. Portanto, era comum ocorrer uma tensão no in-
terior do Fórum pela liderança do movimento e por seus signos. As-
sim, alguns coletivos defendiam que as bandeiras de partidos
políticos não eram bem-vindas como abre-alas das manifestações.
Mas essa questão sempre foi debatida com muita tensão. Nesse ca-
pítulo abordaremos muito mais as questões propostas e expostas
pelo campo revolucionário.

1 Para mais detalhes, ver Movimento Passe Livre – São Paulo (2013); ver também, Löwy
(2014).

188 wallace de moraes


fonte: ruy barros

Depois de iniciada essa luta, centenas de outros coletivos


(anarquistas, autonomistas, marxistas revolucionários, militantes
de partidos políticos, mas principalmente populares, em sua maioria
sem participar de grupos políticos) se juntaram ao Fórum de lutas
para as manifestações.2
É importante destacar que a luta por um transporte livre, com
baixo custo, público e de qualidade não foi inaugurada pelo MPL no
Brasil. No Rio de Janeiro em particular, ela aconteceu por diversas
vezes a começar pela Revolta do Vintém em 1880, Revolta das bar-
cas em 1959, pelos quebra-quebras da década de 1980 e por diversas
outras manifestações em determinadas comunidades, em função
de ônibus que não circulavam ou outras demandas nesse campo.

2 Militantes do MPL muitas vezes também pertenciam a partidos políticos da esquerda ofi-
cial ou a diversos grupos políticos de diferentes orientações, dentre eles, anarquistas.

2013 - revolta dos governados 189


Como um dos primeiros passos desse movimento em 2013, de-
vemos citar que em março, a tropa de choque da PM, atendendo
aos interesses da Odebrecht e da governança política de Cabral,
desocupou à força a Aldeia Maracanã3, ocupada por indígenas, em
sua maioria. A resistência dos manifestantes significou na prática
um dos primeiros protestos contra a Copa do Mundo no Brasil. Os
apoiadores combateram bravamente. Todos ficaram indignados
com a truculência da ação da PM (governantes penais). Ali já se deli-
neava que o caldo estava esquentando.
É um dever ressaltar que no Rio de Janeiro, nos anos anteriores,
vários movimentos sociais combativos estiveram na organização
de ocupações de moradias urbanas, como a Zumbi dos Palmares,
Chiquinha Gonzaga, Quilombo das Guerreiras e Flor do Asfalto, que
aglutinavam populações marginalizadas e sem moradia com militan-
tes revolucionários descrentes da política institucional.
A Revolta do Vinagre dos Governados no Rio de Janeiro pode
ser dividida em sete momentos. O primeiro foi caracterizado pelos
preparativos e com as primeiras passeatas. Isso aconteceu durante
o fim de 2012 e início de 2013, com culminância em final de maio/
início de junho.
Nessa ocasião, somente os militantes do Fórum de Lutas e mais
alguns coletivos muito próximos participaram da organização. No
dia 6 de junho, em São Paulo, o MPL conseguiu levar aproximada-
mente 5 mil pessoas para o ato.4 No Rio, o Fórum de Lutas levou al-
gumas centenas. Em ambos, houve confrontos entre policiais e
manifestantes e barricadas nas ruas.5 Por consequência, desde os
3 Antiga sede do Museu do Índio no Rio de Janeiro e parte do Complexo do Estádio do
Maracanã.
4 Segundo Locatelli (2013), em São Paulo, o preto e branco como cores do movimento foi
escolhido para se diferenciar do resto da esquerda, historicamente identificada com o
vermelho.
5 O Relato de Locatelli (2013), embora para São Paulo, também representa bem a situação
no Rio: “Nunca tinha presenciado grupos tão pequenos de cidadãos confrontando-os
(com a polícia) com tanto afinco.”

190 wallace de moraes


primeiros protestos, teve forte repressão, quebradeira e enfrenta-
mento com a polícia; mesmo assim a população aderiu. Portanto,
não foram as ações diretas, nem as ações pela propaganda, que es-
pantaram a população, mas o aumento da repressão policial, o can-
saço e o medo da criminalização crescente das pessoas. As canções
que embalaram as primeiras manifestações e seguiram até 2014 fo-
ram: “Olê, Olê... Olê, Olê... Olê, Olê... se a passagem não abaixar, o
Rio, o Rio, o Rio vai parar”; “Acabou o amor... isso aqui vai virar Tur-
quia”; “A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura!”; “É bar-
ricada, greve geral, ação direta que derruba o capital”.
No segundo instante, início de junho, praticamente todos os
coletivos revolucionários e reformistas, juntamente com militantes
de partidos políticos da esquerda institucional, aderiram, ampliando
significativamente as manifestações, que cresceram para além dos
limites possíveis do setor impulsionador original. Até então, os oli-
gopólios de comunicação de massa pouco trataram dos protestos.
Somente depois de vários jornalistas apanharem seriamente da po-
lícia, deixando alguns com ferimentos graves - como a jornalista da

2013 - revolta dos governados 191


Folha de São Paulo que tomou um tiro de bala de borracha no olho
-, a grande mídia passou a dar mais ênfase aos atos. As imagens da
violência, carregada de covardia, falavam por si. O corporativismo
midiático foi fundamental para mostrar a truculência policial, que
já era denunciada nas redes sociais. Foi a centelha necessária para
fazer explodir o barril de pólvora. Outras canções passaram a ser en-
toadas, sempre com a bateria de membros de torcidas organizadas
dos clubes cariocas, como: “Não acabou, tem que acabar... eu quero
o fim da Polícia Militar”; “Da copa, da copa, da copa eu abro mão, eu
quero investimento em saúde e educação”.
Com efeito, no terceiro momento, em meados de junho, as
manifestações ganharam a adesão da massa dos governados, in-
cluindo um setor nacionalista.6 As redes sociais cumpriram um papel
fundamental nessa conformação. Desde as primeiras passeatas, as
bandeiras dos partidos foram rejeitadas, mas com o crescimento do
setor nacionalista, essa rejeição ganhou dimensões maiores com os
gritos de “sem partido, sem partido”.
Fato é que a adesão da massa foi estimulada por dois fatores:
1) propaganda dos diferentes coletivos/indivíduos das mais variadas
cores ideológicas, principalmente pelas redes sociais; 2) divulgação
dos oligopólios de comunicação de massa que, buscando competir
com os grupos/indivíduos mais combativos nas redes sociais, criou
suas demandas, inclusive, indicando como as pessoas tinham que se
comportar nas ruas, diferenciando-se sobremaneira dos revolucio-
nários. Com efeito, defendemos a tese de que não foi nenhum par-

6 É mister lembrar que o estímulo ao nacionalismo no Brasil é grande e realizado desde os


primeiros anos escolares, valorizando a exaltação da bandeira, do hino nacional e de uma
história oficial que majora demasiadamente esses símbolos. Além do mais, os oligopólios
de comunicação de massa também estimulam esse nacionalismo, sobretudo em época
de Copa do Mundo de futebol, como foi exatamente o caso. Portanto, o nacionalismo no
Brasil não pode ser confundido com fascismo. Embora saibamos que uma de suas carac-
terísticas seja o nacionalismo exacerbado. Assim, associar o amor pela bandeira brasileira
ou o canto do hino nacional ao fascismo é um erro grosseiro, de quem não entende os
signos culturais do país ou está mal-intencionado.

192 wallace de moraes


tido de direita, como defender Singer (2014), ou os fascistas, como
defendem a esquerda oficial e os petistas, mas os oligopólios de co-
municação de massa, que até mesmo assumem o papel de maiores
e mais eficazes partidos de direita, conservadores, no Brasil, os or-
ganizadores dos setores nacionalistas nas passeatas.
Depois desse terceiro momento, marcado pela ampla partici-
pação social nos protestos - desde os setores mais populares das
favelas e periferias até a classe média politizada - ainda existiu um
quarto momento, ocorrido após o dia 20 de junho, no qual a mas-
sa popular, os nacionalistas e grande parte da esquerda oficial se
retiram do processo. Não obstante, os setores mais combativos se
mantiveram nas ruas, como os Anonymous, os Black Blocs e a Fren-
te Independente Popular (FIP), combatendo e sofrendo persegui-
ção da polícia em praticamente todos os atos, colocando a saúde
em risco diante de tanta truculência, arbitrariedade e desproporcio-
nalidade de força.7 Somente com muita convicção, ideologia, amor,
ódio e, por vezes, até irresponsabilidade para fazê-lo. As manifesta-
ções passaram a ser pequenas, porém com uma pauta radicalizada
e anticapitalista. Esse período durou entre julho e agosto de 2013.
Nesse momento as canções que predominaram eram: “eleição é
farsa, não muda nada não, o povo organizado, vai fazer revolução”;
“Deixa passar... a revolta popular”; “Rio de Janeiro sensacional... to-
mou a Alerj de pedra e paaaau”.
O quinto momento aconteceu entre setembro e outubro,
quando ocorreu o grande ato do já tradicional 7 de setembro, “Grito
dos Excluídos”,8 e ganharam força as manifestações dos professo-
res do Estado e do município do Rio de Janeiro. Nesse instante, as
7 A FIP, o Black Bloc e os Anonymous foram frentes compostas por vários coletivos, que
em comum negavam a institucionalidade burguesa e tiveram uma atuação mais radicali-
zada ao longo da Revolta.
8 Data comemorativa da independência do Brasil de Portugal, na qual os movimentos so-
ciais organizam passeatas por todo o Brasil desde a década de 1990, clamando por di-
reitos dos mais diversos. Os movimentos sociais denominaram esse dia de “Grito dos
Excluídos”.

2013 - revolta dos governados 193


lutas voltaram a ser de massa com ampla participação de alunos,
professores e apoiadores. Esse período também foi marcado pelas
prisões dos primeiros integrantes dos Black Blocs. Novas canções
vieram à tona, como o grito tradicional dos manifestantes de preto:
“uh, uh, uh, uh, uh!”; “Poder, poder, poder... poder para o povo, e
o poder do povo.... vai fazer um mundo novo... poder, poder para o
povo”; “Olha nós aqui de novo”9.
O sexto momento aconteceu com a proximidade do verão, as
festas de fim de ano e o intenso calor carioca de 40 graus célsius, re-
sultando em um declínio das manifestações de rua. Entre novembro
e fevereiro, as reivindicações foram vistas nos diversos blocos de
carnaval organizados por coletivos combativos, com predominân-
cia da irreverência.10 Juntando autogestão, horizontalidade, ajuda
mútua e bom-humor ocorreu ainda o movimento chamado “isopor-
zinho”, quando os manifestantes levavam sua própria bebida para
beber com os amigos em praças públicas, fugindo assim dos altos
preços dos bares.
No início de 2014, ainda no sexto momento, diversas categorias
fizeram greves, como a dos garis, dos rodoviários e dos professo-
res. A característica distintiva delas foi que foram realizadas por fora
das estruturas burocratizadas sindicais e contra elas, o Estado e o
capital. Para tanto, os trabalhadores dessas categorias tiveram que
passar por cima das direções dos seus sindicatos, que trabalharam
para a não realização das greves.
Ao mesmo tempo, populares fizeram barricadas, quebraram
vidraças de bancos e enfrentaram a polícia nas favelas e periferias.
Além disso, jovens das favelas realizaram diversos atos de protestos
nos shoppings centers, os chamados “rolezinhos”, quando mora-
dores das comunidades pobres resolveram passear coletivamente
nos templos de consumo. Como grande demonstração do apartheid
brasileiro, as lojas fecharam suas portas e os seguranças persegui-
9 Essa canção dizia respeito aos Black Blocs que fizeram protestos quase que diários.
10 Ver bloco pula roleta no Rio: https://www.youtube.com/watch?v=25sonGMcZqQ

194 wallace de moraes


ram os manifestantes. Esse movimento se manteve até a Justiça
emitir mandados os proibindo, cuja principal característica foi lega-
lizar aquilo que já existe na prática: a discriminação por cor da pele,
renda e ação coletiva de pobres no Brasil. O principal articulador dos
“passeios nos shoppings centers, um adolescente, foi encontrado
assassinado semanas depois do início do movimento.11
Às vésperas do início da Copa do Mundo de futebol, já em maio/
junho de 2014, aconteceu o último estágio da Revolta dos Governa-
dos no Rio de Janeiro, fechando um ciclo de lutas iniciado um ano
antes. Era o sétimo momento, quando os setores revolucionários
tentaram reacender a luta anti-Copa, mas não conseguiram a ade-
são popular necessária. O Estado, com todo seu aparelho repres-
sivo, em associação com os oligopólios de comunicação de massa,
aproveitou a ausência das massas nas ruas e partiu para a ofensi-
va final ideológica e coercitiva. O ato derradeiro aconteceu com a
prisão de diversos manifestantes, preventivamente, antes da final
da Copa. Nesse momento, os governantes penais e suas forças de
repressão já tinham mapeado as pessoas de praticamente todas os
coletivos combativos através de meios que violam os direitos civis,
como quebra de sigilo de correspondência (email, redes sociais),
telefônico, infiltração de agentes etc. Ao mesmo tempo, os gover-
nantes socioculturais e seus oligopólios de comunicação de massa,
em clara unidade ideológica, já haviam massificado a necessidade
de prender os “vândalos”, criminalizando o movimento combativo.
Em suma, a política do medo foi posta em prática a todo vapor e
efetivamente surtiu efeito, pois milhares de pessoas recuaram das
atividades insurgentes.
Em epítome, no ápice das manifestações, o maior setor era
composto por populares, sem pertencer a grupos políticos. O se-
gundo maior era composto por aqueles que chamaremos de nacio-

11 Os oligopólios de comunicação de massa divulgaram a informação da polícia, segundo


a qual o jovem foi assassinado em um baile funk. Ver: https://noticias.uol.com.br/cotidia-
no/ultimas-noticias/2014/04/07/organizador-de-rolezinhos-morre-em-sao-paulo.htm

2013 - revolta dos governados 195


nalistas, portavam a bandeira nacional, cantavam o hino brasileiro
entusiasticamente e seguiram a pauta dos maiores partidos políti-
cos no Brasil: os oligopólios de comunicação de massa. O terceiro
setor era composto por diversos coletivos autônomos espalhados
por toda a passeata com os mais radicalizados, compondo a linha
de frente dos protestos sob a tática Black Bloc. O quarto setor era
composto por militantes de partidos políticos da esquerda oficial.
Mais um ponto é digno de nota. As bandeiras brasileiras seduziam
vários populares para aderir aos nacionalistas, enquanto as bandei-
ras vermelhas dos partidos os repeliam. Isso talvez explique porque
os militantes partidários se sentiram tão excluídos pelo movimento
e fizeram de tudo para dirigi-lo, como não conseguiram, o deslegi-
timaram.
É importante destacar que no mês de junho de 2013 o cam-
peonato brasileiro foi interrompido em função da Copa das Confede-
rações. Esse fato colaborou para que muitos membros das torcidas
organizadas, que inclusive formaram a Frente Nacional dos Torce-
dores (FNT), pudessem participar ativamente. Foi nessa conjuntura
que ocorreu a privatização do Maracanã e o aumento exorbitante
dos preços dos ingressos, levando os simpatizantes por futebol a
reivindicarem preços populares e a aderirem massivamente aos pro-
testos. Foi muito bonito ver torcedores de times rivais lutando jun-
tos pela mesma bandeira. Foi um ano realmente para entrar para a
história.
Feito esse breve introito, vamos agora descrever o dia-a-dia
dos protestos no Rio de Janeiro. Como avisamos, nossas análises
estão pautadas em nossa observação participante, enquanto pes-
quisador daquele momento histórico, em conversas com militantes
que participaram ativamente, bem como em notícias divulgadas pe-
las redes sociais, midiativistas, blogs, e também pelos oligopólios de
comunicação de massa. Evidentemente, não foi possível estar em
todas as manifestações, nem conseguir informações sobre elas, en-
tão, o que segue, foi fruto de pesquisa da junção de alguns princí-

196 wallace de moraes


pios, ter presenciado/visto, ter obtido relato, ter lido em algum meio
de comunicação. Quando não presenciamos, tivemos que cruzar as
informações de mais de uma fonte para confirmá-las. Por fim, nem
todas as manifestações de 2013/14 estão descritas aqui, mas, certa-
mente, as com um número maior de participantes estão.

13 DE JUNHO DE 2013: “GANHANDO FORÇA”

A passeata do dia 13 de junho seguiria o trajeto da Candelária


até a ALERJ. A passeata continha entre dez e quinze mil pessoas.
Nesse dia, os manifestantes ocuparam as escadarias da ALERJ e um
grupo menor, composto pelos mais radicalizados, continuou até a
Central do Brasil. Os integrantes dos partidos políticos, em sua gran-
de maioria, não acompanharam a continuidade do trajeto. Os mi-
litantes do PSTU, por exemplo, encontravam-se com um pequeno
carro de som - uma Kombi -, cantando palavras de ordem. Nenhum
carro de som seguiu até a Central do Brasil. Os nacionalistas também
não foram, pois sabiam do limite institucional estabelecido pelas
forças de repressão para o trajeto, que deveria acabar na ALERJ. Os
precursores do Black Bloc não tinham nada a ver com esses acordos
entre os grupos institucionais e resolveram seguir a passeata até a
Central do Brasil. Até esse dia não tinha havido grandes problemas
entre os nacionalistas e a esquerda institucional.
Todavia, após uma pequena distância, na Avenida Presidente
Vargas com Avenida Rio Branco, a polícia tentou dispersar a passe-
ata, fechando o cruzamento, com bombas de efeito moral, de gás
lacrimogênio e sua corriqueira truculência. Nesse momento, a ma-
nifestação devia ter aproximadamente mil pessoas. Houve corre-
ria. Os revoltosos entraram em confronto com a polícia. As forças
fiéis aos governantes penais batiam e caçavam manifestantes como
bichos. Ademais, os policiais lhes chamavam de vagabundos e por
outras provocações. Em contrapartida, alguns dos que correram

2013 - revolta dos governados 197


das bombas e das balas de borracha saíram quebrando tudo que
viram pela frente. Os alvos principais foram os bancos e coberturas
dos pontos de ônibus, além de alguns poucos ônibus. O grupo que
conseguiu continuar até a Central do Brasil foi muito diminuto em
função da coação policial. Nesse momento, já estavam muito claras
as diferenças entre os grupos políticos que compunham a manifes-
tação. Nacionalistas pacifistas, militantes da esquerda oficial paci-
fistas e revolucionários combativos. Pela energia que sentimos nos
manifestantes, sabíamos que estamos presenciando um momento
único, bastante diferente das passeatas de décadas anteriores diri-
gidas pela esquerda oficial.

17 DE JUNHO DE 2013: “TOMADA DA ALERJ”

Na passeata do dia 17 de junho, já houve algumas mudanças


substantivas: primeiro, no número de participantes. Até então as
passeatas não tinham alcançado um número tão expressivo de pes-
soas. Estimamos entre quatrocentas e seiscentas mil. Algo realmen-
te gigantesco.
Para chegar a esse tamanho vários grupos políticos, em es-
pecial os mais radicalizados, colaboraram para tal. Os Anonymous
Rio lançaram um chamado que chegou a 1.096.614 visualizações12.
Segue a transcrição do vídeo apresentado por uma pessoa com a
máscara do V de Vingança, que aliás virou símbolo dos protestos de
2013. A transcrição que segue foi realizada no próprio site.

“Senhor Jabor e toda a massa manipulada pela turma


que ele faz parte, venho por esta esclarecer um pouco
as falsas dúvidas criadas pelos comentários tenden-
ciosos desta figura de grande genialidade a serviço
da corrupta mídia brasileira. Pra começar, o senhor

12 Ver: https://www.youtube.com/watch?v=KSYR9RN7LyI

198 wallace de moraes


perguntou o que provoca o ódio pela cidade, compara
os manifestantes aos bandidos que atormentaram SP
e ridicularizou os 20 centavos de aumento das pas-
sagens. Vamos pela matemática, 0,20 de ida, + 0,20 de
volta somam 0,40/dia, o que dá no final de 1 semana de
6 dias R$2,40 (pois na vida real as pessoas trabalham
de segunda a sábado para cumprir as 44 horas semanais
da CLT), que em 1 mês faz aproximadamente R$10,00 a
mais no bolso de quem ganha 1 salário de menos de
R$700,00 para sustentar a família. Mas este não é o seu
caso e nem sua preocupação, a Globo até motorista lhe
disponibiliza. Se isto não justifica as manifestações,
posso listar aqui mais 1 dezena de razões (...) Em al-
guns lugares, até mesmo os pobres policiais mal pa-
gos estão se juntando ao povo e cobrando do governo
melhores condições de vida. Nossos motivos são tão
válidos como os da Turquia, se não mais. Não temos
escolas, nem educação, não temos hospitais, muito
menos saúde, não temos boas estradas nem transpor-
te, não temos justiça para todos apenas Leis para os
pobres. Enquanto o povo morre de fome ou sendo as-
saltado pela miséria nos sinais, o governo gasta mi-
lhões como estádios de futebol e olimpíadas e engana
o povo com bolsas esmolas ao invés de capacitar os
jovens para trabalhar dignamente. Importar médicos
de outros países é fácil, quero ver formar os seus e
valorizar para que eles não saiam do País. Estes sim
são nossos perigos no horizonte, e não sua fuga de ca-
pital e inflação de juros e dólar. A inflação está nos
corroendo há anos, mas com o pão e circo em dia o
povo mal nota, afinal de contas a novela está quente
e o mengão está ganhando... Como o senhor pode ver,
nós temos motivos sim para lutar, e é por muito mais

2013 - revolta dos governados 199


do que 20 centavos. A PEC 37 é um outro absurdo sim
e terá sua vez nas manifestações, e não venha dizer
que somos revoltosos de classe média, somos um povo
cansado de ver a miséria em nossas portas, pois sair
de casa de barriga cheia e ver a fome do outro lado da
rua não nos deixa felizes, mas sim com vontade de mu-
dar isso. Pagamos mais impostos que QUALQUER outro
país do mundo, e temos em retorno a pior educação
e saúde. Vocês realmente achavam que esta apatia do
povo seria eterna? Nós merecemos mais que isso, va-
mos fazer direito o que nossos pais não conseguiram
na década de 80, vamos recriar nossa democracia com
os interesses do povo em primeiro lugar, vamos fa-
zer as autoridades entenderem que estão aqui para nos
servir e não para nos explorar. E boa sorte pra vocês
velhos reacionários, sua hora vai chegar... Video ori-
ginal: http://www.youtube.com/watch?v=IyiQH4...”

A passeata do dia 17 de junho aconteceu logo depois das atro-


cidades cometidas pelas polícias de São Paulo e Rio de Janeiro con-
tra os manifestantes e jornalistas. As imagens foram amplamente
veiculadas pelas redes sociais. Muitos deles foram atingidos por ba-
las de borracha, bombas etc. Esses fatos obrigaram aos oligopólios
de comunicação de massa, por uma questão de solidariedade cor-
porativa, a também veicular e criticar a ação truculenta da polícia,
potencializando a indignação dos governados. Por conseguinte, as
passeatas seguintes foram gigantescas em todo o Brasil. Ocorreu
um sentimento de solidariedade pouco visto na história recente.
Como se todos fôssemos manifestantes atingidos por balas de bor-
racha. Até os setores de classe média, cujos preços dos transportes
públicos não os afetam, estiveram presentes. Desde então, os go-
vernados foram contagiados pela coragem e disposição daqueles

200 wallace de moraes


jovens combativos, nutridos de um sonho revolucionário. Tudo aqui-
lo que estava engasgado na garganta da população, que outrora se
sentia sozinha e incapaz para estabelecer as mudanças necessárias,
aflorou, explodiu, compartilhou com milhares de outras pessoas os
mesmos sentimentos. As praças e ruas passaram a ser dos governa-
dos, dos que trabalham e produzem. Foi épico.
Nesse momento, as manifestações produziram uma grande
insatisfação latente da população contra o Estado, a plutocracia
representativa, a polícia, a corrupção, a grande mídia, as desigual-
dades, injustiças e todo tipo de covardia. Um dos grandes lemas di-
zia: “não é por R$ 0,20, é por direitos”. Clamar por direitos sociais,
indubitavelmente, nunca foi uma demanda dos plutocratas. Para se
ter ideia do tamanho do movimento, a Rede Globo não transmitiu
as suas novelas para comentar ao vivo os protestos, sempre com
cuidado para criminalizar os mais rebeldes. Por isso, foi alvo dos ma-
nifestantes mais radicalizados.
Nesse dia, os partidos políticos saíram da passeata arranhadís-
simos, praticamente desmoralizados. Eles foram quase que impe-
lidos a abaixarem suas bandeiras e os confrontos se alinhavavam.
Estivemos em um desses momentos e percebemos que tinham ma-
nifestantes ali infiltrados para desmoralizar os partidos. Como que
se alguém, ou grupo, desejasse impedir que esses partidos capita-
lizassem os créditos das manifestações. Eles ficavam incitando os
estudantes a execrar os partidos. Não obstante, essa estratégia só
deu certo, pois já existia um sentimento latente antipartido na ju-
ventude e na sociedade em geral.
Quando a passeata que partiu da Candelária chegou à Cinelân-
dia, a maioria dos militantes dos partidos da esquerda oficial ficou
por ali mesmo. Os nacionalistas também. Então, seguiram para a
Assembleia Legislativa os setores revolucionários junto com estu-
dantes e populares sem uma ideologia definida, mas com um senti-
mento de revolta grande. Devia ter entre dez mil e vinte mil pessoas
que fizeram a ocupação das escadarias da ALERJ, tentando inva-

2013 - revolta dos governados 201


di-la para destruí-la. Era a expressão mais pura do ódio à Câmara
dos deputados que não representa os interesses dos governados.
Nessa ocasião, os manifestantes expulsaram a polícia, bateram em
um policial que caiu, tacaram fogo em três carros, dois deles de po-
liciais, quebraram todos os bancos das proximidades e saquearam
algumas poucas lojas do entorno. Alguns manifestantes levaram
tiro de munição de ferro lançados pelos policiais. Tudo isso foi filma-
do ao vivo por midiativistas e também pela grande mídia com todo
o cuidado para criminalizar a rebelião. Esse trabalho foi realizado
por jornalistas disfarçados, pois se eles aparecessem devidamente
identificados seriam prontamente expulsos pelos manifestantes. O
comando da PM enviou o Batalhão de Choque muitas horas depois
do início da rebelião. Aí já era possível perceber as estratégias da re-
ação. A demora da polícia não foi à toa. Era necessário deixar a mul-
tidão quebrar a ALERJ, se possível matar algum policial, para depois
justificar o despotismo desproporcional. Até para legitimar para os
próprios policiais que era necessário não ter pena de bater naquelas
pessoas que estavam fazendo reivindicações justas, que poderiam
ser as deles também. Isso é fundamental entender.13 Esse foi um dia
histórico também porque a polícia foi domesticada. Mas isso fazia
parte da reação dos governantes penais.
Uma questão é digna de nota. Enquanto os manifestantes ten-
tavam tacar fogo na ALERJ e em alguns bancos, os bombeiros foram
acionados. Quando eles chegaram a multidão abriu imediatamente
caminho e os saldavam com grandes palmas e com uma canção: “Eu
sou bombeiro, com muito orgulho com muito amoooorrrr”. Os go-
vernados reconheciam a luta deles contra o Estado no ano de 2012
13 Nem todo policial é sanguinário por si. Como fazem parte da sociedade, também são le-
vados a refletir sobre a sua própria atuação nesses momentos. A estratégia do PCB nos
anos 1920 e 1930, principalmente, foi recrutar membros do exército para seus quadros.
Não seria nenhum absurdo para quem pensa em revolução tentar convencer policiais das
demandas revolucionárias. Embora, certamente seja uma tarefa extremamente difícil e
arriscada, diante do forte controle ideológico no processo de formação das forças de
repressão.

202 wallace de moraes


e os parabenizavam. Alguns subiram no carro como forma de apoi-
á-los. Ninguém ousou atacar aquele carro, muito ao contrário. Foi
bonito. Por outro lado, quando dois manifestantes apareceram com
uma bandeira do PSTU perto da ALERJ, logo surgiu o estrondoso
coro: “sem partido, sem partido”. Os manifestantes permaneceram
com a bandeira em pé e logo depois alguns populares foram lá e
arrancaram e rasgaram suas bandeiras.
Nesse dia aconteceram muitas coisas. Primeiro, as palavras
de ordem mais cantadas eram as nacionalistas, como o hino na-
cional, e outros bordões normalmente entoados em apoio à sele-
ção brasileira como: “Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com
muito amoooorrrr”. Mas palavras de ordem da direita ou fascis-
tas não ouvimos, nem soubemos. Muitos cartazes contra a cor-
rupção, a PEC 37, os gastos da Copa, pedindo dinheiro para saúde
e educação etc. Demandas de manifestantes que almejam mu-
danças. Essas, aliás, são também bandeiras da esquerda oficial.
Mas por que os partidos de esquerda disseram que se tratou
de manifestações de direita? Porque um dos coros mais fortes can-
tados nas ruas foram justamente contra eles. A maioria dizia: “Sem
partido, sem partido”. Isso não foi uma novidade. Já vinha aconte-
cendo há algum tempo, inclusive nas passeatas anteriores. Trata-se
da crise de representação, não só da esquerda oficial, mas de todos
os partidos. Ao gritar sem partidos, eles não almejavam um novo
partido de direita. Seria até incongruente. Na verdade, tratou-se de
uma rejeição a todos os partidos e consequentemente a todas as
instituições da plutocracia.
No capítulo anterior, comentamos que esse fenômeno foi
resultado da chegada de partidos que se autoproclamavam de es-
querda na governança política sem produzir mudanças significati-
vas, mas, para além disso, na maioria das vezes, foram justamente
esses partidos que implementaram e/ou aprofundaram as políticas
liberais. Simultaneamente, os partidos de esquerda possuíam uma
organização extremamente hierárquica e consequentemente auto-

2013 - revolta dos governados 203


ritária, baseada ora no pensamento leninista, ora no trotskista. Esse
tipo de organização não tinha apoio da nova esquerda gestada em
1968 na França e em outros lugares. Portanto, o movimento anti-
-partido, que significou antirepresentação, não foi novo, nem genui-
namente brasileiro.
Voltemos às manifestações. Uma das críticas desses manifes-
tantes foi que, ao invés de levar a bandeira dos partidos e querer
capitalizar o movimento para si -, principalmente, com ênfase nas
eleições, como os partidos de todas as cores sempre procuraram
fazer, por questão de sobrevivência -, deveriam colocar em primeiro
plano a bandeira do movimento, sem partidarismo. Não nos parece
uma crítica muito infundada. Todavia, por outro lado, desde que não
abra a manifestação, pensamos que é muito autoritário impedir que
os partidos empunhem suas bandeiras nas manifestações. Portan-
to, achamos mais que legítimo que os militantes dos partidos levem
suas bandeiras para os atos tomando apenas o cuidado para não se
apresentar como dirigente do processo, que não foi impulsionado
por eles. Os militantes do PSOL decidiram por não levar suas bandei-
ras e assim não acirrar uma hostilidade dos governados. Foram inte-
ligentes, pois naquela conjuntura as bandeiras serviram mais como
contrapropaganda. E essa constituiu uma das novidades desse mo-
vimento pré-revolucionário vivido pelo país em 2013. Os partidos e
seus sindicatos não dirigiram as manifestações. Por isso, coube-lhes
desacreditá-las e classificá-las como de direita, e até fascistas, como
vimos no capítulo 2 deste livro. Um absurdo erro de diagnóstico que
só demonstra o quanto esses setores não souberam ler a história do
Brasil, justificando-se que percam cada vez mais espaço no seio da
sociedade.
Destarte, esses partidos políticos ratificam seu caráter refor-
mista e antirrevolucionário, porque no momento da Revolta dos Go-
vernados deveriam se engajar na luta com toda sua força. Mas não.
Os milhares de burocratas sindicais não estiveram presentes nas
passeatas, nem mesmo a ampla maioria de seus estudantes. Isso

204 wallace de moraes


justifica porque os blocos dos partidos eram tão diminutos nas ma-
nifestações. Um exemplo importante. A passeata do dia 13 de junho
coincidiu com as eleições para o DCE da UFRJ. Enquanto os manifes-
tantes estavam colocando sua pauta na rua e levando bomba da po-
lícia, as chapas compostas majoritariamente pelos militantes dos
partidos oficiais da esquerda e seus simpatizantes estavam em ple-
na campanha eleitoral. Qual era a prioridade? Ganhar o aparato bu-
rocrático do Diretório Central dos Estudantes ou participar do
movimento popular insurgente? Desnecessário responder. Além do
mais, era um momento estratégico para chamar uma greve geral
contra o sistema, diante da forte mobilização social. Todavia, todos
os sindicatos dos partidos oficiais não convocaram suas categorias
nem para assembleias. Nesses termos, foi possível constatar a la-
mentável e triste aliança da luta partidária da esquerda oficial no
Brasil com a ordem.

2013 - revolta dos governados 205


Depois da “tomada da ALERJ”, os manifestantes fizeram um
grande congraçamento em frente à mesma.14 Os indígenas da Aldeia
Maracanã junto com os demais manifestantes fizeram uma grande
fogueira e dançaram por muito tempo a sua volta. Simultaneamen-
te, abriu-se uma grande roda de capoeira, quando muitas pessoas
jogaram com tanto amor que parecia estar presente os espíritos
quilombolas dos negros escravizados. Era a nossa redenção. Tratou-
-se de uma grande festa popular, extremamente politizada, insur-
gente, genuinamente brasileira contra tudo e todos do poder, das
governanças. A tomada da ALERJ, transmitida ao vivo pela TV e por
midiativistas, equivaleu a “queda da Bastilha” para a Primavera de
luta brasileira. As pessoas se entusiasmaram tanto com esse dia que
no protesto seguinte compareceram mais de um milhão e meio de
pessoas só no Rio de Janeiro. Foi a partir desse protesto que surgiu
uma das canções mais famosas e entoadas pelos Black Blocs desde
então: “Rio de Janeiro sensacional, tomou a ALERJ com pedra e pa-
aaaau”.
Em resumo, os manifestantes indignados quebraram algumas
janelas e portas da ALERJ, quando na verdade queriam destruí-la
por completo, mas não conseguiram. O presidente da Assembleia
Legislativa na manhã seguinte ao ato correu para a imprensa e dis-
se: “Para repor esses vidros e portas quebradas teremos que gastar
aproximadamente R$ 2 milhões”. Eles não entenderam porque a po-
pulação se revoltou contra todos os políticos.
Por fim, depois do êxito desse dia e com a mais ampla adesão
popular, surgiu no Facebook um chamado à greve geral, nada mais
revolucionário e apropriado, coadunando perfeitamente com a pro-
posta anarquista de juntar revolta popular com greve geral para se
fazer a revolução social. Em nota específica, a CUT tratou de des-
qualificar a chamada à greve geral e afirmou que se tratava “de gru-
pos oportunistas sem compromisso com a classe trabalhadora que
14 Veja vídeos da Tomada da ALERJ: https://www.youtube.com/watch?v=oHyfFeUT1-s ; ht-
tps://www.youtube.com/watch?v=8dwPtcCJpe4

206 wallace de moraes


queriam confundir e gerar insegurança na população”. Nesse mo-
mento, a burocracia sindical se superou e atuou fazendo inveja aos
capitalistas que talvez não fossem tão criativos em rechaçar uma
greve.
Veja a nota na íntegra abaixo. Ela foi assinada por Vagner Frei-
tas (então, Presidente Nacional da CUT) e por Sérgio Nobre (Secre-
tário-geral):15

“Nem a CUT nem as demais centrais sindicais, legí-


timas representantes da classe trabalhadora, con-
vocaram greve geral para o dia 1º de julho.

A Executiva Nacional da CUT está reunida nesta se-


gunda-feira (24), em São Paulo, para debater a con-
juntura, reafirmar sua pauta de reivindicações e
decidir um calendário de mobilizações em defesa da
pauta da Classe Trabalhadora, de forma responsá-
vel e organizada, como sempre fizemos.

A convocação para a ‘suposta’ greve geral do dia


1º, que surgiu em uma página anônima do Facebook,
é mais uma iniciativa de grupos oportunistas, sem
compromisso com os/as trabalhadores/as, que que-
rem confundir e gerar insegurança na população.
Mais que isso: colocar em risco conquistas que lu-
tamos muito para conseguir, como o direito de li-
vre manifestação.

É preciso tomar muito cuidado com falsas notícias


que circulam por meio das redes sociais.”

15 Pode ser encontrada no seguinte link: https://www.cut.org.br/noticias/nota-da-cut-sobre-


-convocacao-anonima-de-greve-geral-be59 acessado em 27 de agosto de 2018.

2013 - revolta dos governados 207


DIA 20 DE JUNHO - A MAIOR MANIFESTAÇÃO
POLÍTICA DE RUA DA HISTÓRIA DO PAÍS

fonte: jornal a nova democracia

fonte: jornal a nova democracia

208 wallace de moraes


Depois da passeata do dia 17 de junho, o principal assunto pas-
sou a ser política. Até o futebol, paixão do brasileiro, ficou em se-
gundo plano. A passeata unificada, do dia 20 de junho, foi a maior
manifestação política de rua da história do Brasil. No Rio de Janeiro,
havia aproximadamente um milhão e meio de manifestantes nas 16
pistas da Avenida Pres. Vargas e ruas adjacentes.16 Ademais, outras
centenas de milhares de governados pelo país afora mostraram sua
indignação contra todos os abusos dos governantes. Indubitavel-
mente, foram protestos contra todos os políticos e seus partidos. É
mister destacar que as passeatas eram organizadas em plenárias no
IFCS/UFRJ e depois amplamente divulgadas pelo Facebook, onde as
pessoas aceitavam os convites para participar. Depois da vitoriosa
manifestação do dia 17 de junho com mais de 400 mil participan-
tes, e quando os insurgentes quase conseguiram destruir a ALERJ
e ainda acuaram as forças policiais que vinham aparecendo como
vilãs, a meta estabelecida pelo chamado na página do evento, no
Facebook, era chegar a um milhão de pessoas nas ruas; ela foi atin-
gida e ultrapassada. Preparava-se algo realmente magnânimo. Ao
mesmo tempo, era o dia para celebrar a vitória dos protestos, pois,
com medo dos governados e principalmente do que os revolucio-
nários poderiam fazer, a maior parte dos governantes reduziu por
decreto o preço das passagens de ônibus. Alteraram pelo menos
para o patamar anterior ao do início dos protestos. Alguns políticos
instituíram transportes gratuitos, como em Maricá/RJ. Era a forma
de tentar esvaziar as manifestações, todavia aconteceu justamente
o contrário. As pessoas se sentiram empoderadas e ratificaram que
os protestos de massa e confrontacionais era o caminho para a con-
quista de direitos e respeito dos governantes.

16 Os oligopólios de comunicação de massa, mais uma vez cumprindo seu papel histórico,
tentaram minimizar o poder das manifestações, reduzindo o número de governados nas
ruas exorbitantemente, estimando apenas 300.000 pessoas na Avenida Pres. Vargas. Nú-
mero este que já seria absurdamente grande, mas dada a realidade, ficou muito aquém
dos 1,5 milhão. Só no Facebook mais de 1 milhão confirmou presença.

2013 - revolta dos governados 209


Segue texto que escrevemos no dia 20 de junho de 2013 para
termos ideia do clima do momento.

“21 MOTIVOS PARA IR ÀS RUAS E LUTAR –


Ordem e desordem na luta pelo passe livre
Vejamos o que é considerado ordem e desordem na luta
pelo passe livre no Brasil:

1) O preço das passagens de ônibus na cidade do Rio de


Janeiro em 1994, quando da criação do Plano Real, era
de R$ 0,30. Hoje, o preço é de R$ 2,95. Um aumento de
quase 900%. O salário de quem aumentou nesse nível?
Isto é ordem!

2) A inflação acumulada do período, dependendo do ín-


dice, gira em média em 320%, enquanto o aumento das
passagens gira em torno de 900%. Isto é ordem!

3) O Transporte público é uma concessão estatal e


pouquíssimas empresas possuem o seu monopólio. Isto
é ordem!

4) Se um cidadão comum quiser comprar uma van e ten-


tar fazer o transporte de pessoas por um preço mui-
to menor que o praticado pelos ônibus, ou a qualquer
preço, será impedido pelo Estado, sob pena de ter o
seu automóvel apreendido e pagar pesada multa. Isto
é ordem!

5) Os mesmos que defenderam o fim dos monopólios das


empresas públicas (estatais) sob a alegação de que
constituíam monopólio não falam uma única palavra
contra o cartel das empresas de ônibus. O liberalis-
mo deles só serve para as estatais? Monopólio privado
pode existir sem problemas? Não constitui obstáculo
para o livre mercado? Isto é ordem!

210 wallace de moraes


6) A polícia reprime os manifestantes, prendendo-os e
tacando bombas, impedindo-os de mostrar sua indig-
nação contra o aumento do valor das passagens. Isto
é ordem.

7) O transporte público é de má qualidade. As empre-


sas colocam poucos ônibus para circular com vistas a
aumentar seus lucros. Por consequência os passagei-
ros andam em pé e amassados. Isto é ordem!

8) Os salários dos motoristas e cobradores não au-


mentaram nos mesmos patamares que o preço das pas-
sagens. Isto é ordem!

9) A maior parte das empresas demitiu os conhecidos


cobradores. Assim, além de colaborar para o desem-
prego dessa categoria, impôs ao motorista uma dupla
jornada, pois tem que dirigir e cobrar o dinheiro dos
passageiros. Resultado: mais cansaço e mais perigo
para os usuários. Isto é ordem!

10) Como resultado da quase extinção dos cobradores,


as empresas diminuíram seus gastos com pessoal, mas
essa diminuição de custos não foi repassada para os
passageiros em forma da diminuição do valor das pas-
sagens. Isto é ordem!

11) O governo do estado ajuda as empresas de ônibus,


repassando diretamente dinheiro público. A criação
do riocard faz com que o estado pague parte da parcela
dos preços das passagens para as empresas. Por exem-
plo, o preço da passagem de Maricá ao Castelo (Centro
do Rio) custa R$ 13,00!!! Este monopólio é garantido a
apenas uma única empresa!!! O oprimido morador que
aderiu ao riocard é obrigado a desembolsar mais de R$
5,00, o restante é pago pelo governo. A empresa não
perde nada. Só ganha. Levando-se em conta que o di-

2013 - revolta dos governados 211


nheiro público é do povo, ele continua pagando indire-
tamente. Por consequência desta aberração, enquanto
as empresas ficam milionárias, o povo de Maricá não
tem saneamento básico, água encanada, rua asfaltada,
escolas e atendimento médico de boa qualidade e nem
transporte público decente. Isto é ordem!

12) A solução apontada pelos políticos e pela gran-


de mídia, pasmem, consiste na ideia de subsidiar as
empresas de ônibus, diminuindo os impostos sobre as
mesmas – com o nosso dinheiro, é claro. Isto é ordem.

13) Em função da luta direta do povo nas ruas, os go-


vernos decidiram abaixar as passagens, mas as em-
presas serão subsidiadas com o dinheiro público. O
empresário não perde nada. Isto é ordem.

14) A desordem é reivindicar contra tudo isso.

15) Se os motoristas fazem greve, vira desordem.

16) Se os passageiros pagam caro e reclamam, não


acontece nada. Se eles não aguentam, radicalizam,
vira desordem.

17) Defender o passe livre, para que o povo tenha mais


dinheiro para comprar comida e outras necessidades,
logo é... desordem.

18) Protestar e reivindicar é... desordem.

19) Ganha um doce aquele que adivinhar quais são os


maiores financiadores das campanhas eleitorais dos
políticos em geral, tanto dos governantes, quanto da
oposição.

20) A ordem é o capitalismo. A desordem é lutar (por


liberdade, igualdade social, pelo fim da opressão de
poucos sobre muitos) pelo socialismo.

21) Estamos contra a ordem.”

212 wallace de moraes


No início da passeata parecia mais um desfile cívico, dada a
quantidade de pessoas, que inclusive participavam pela primeira
vez de uma manifestação, e a multiplicidade de origens, classe so-
cial etc, mas evidentemente os números de pobres era infinitamen-
te superior. Há relatos de que os trens vieram lotados para o Centro,
saindo dos lugares mais desassistidos da cidade e do Estado.
As palavras de ordem eram das mais diversas. As nacionalistas
predominavam como devia ser para um povo que só aprendeu a tor-
cer pela seleção brasileira. Todavia, isso não pode ser colocado
como um empecilho pelo movimento revolucionário. Essa passeata
devia ter aproximadamente 75% que participava pela primeira vez
de qualquer movimento reivindicativo. Os outros 25% era composto
por militantes nacionalistas, dos partidos políticos, de anarquistas e
autonomistas, movimentos sociais com pautas difusas, pequenos
grupos políticos revolucionários que não participam de eleições. As-
sim, dependendo do lugar que você estivesse na manifestação, es-
cutava as palavras de ordem do setor organizado ali postado. Na
linha de frente, as palavras de ordem eram as mais revolucionárias
possíveis. Mas nos demais setores da passeata predominou as de
ordem nacionalistas, juntamente com exigências por direitos dos
mais diversos. Naquele dia, antes da brutal repressão policial, os go-
vernados experimentaram uma liberdade inimaginável. Pareciam
ter a História em suas mãos. Assim, produziram um grande congra-
çamento.

fonte: jornal a nova democracia

2013 - revolta dos governados 213


A ida para a prefeitura foi bastante tranquila, como um desfile;
a volta, não. Os governantes penais tiraram como estratégia evitar
que os governados chegassem à prefeitura, ponto de chegada pré-
-determinado. Os setores revolucionários haviam decidido ocupar a
prefeitura, se possível destruí-la. Tal como havia ocorrido no protes-
to anterior, quando milhares de pessoas tentaram destruir a ALERJ
e tudo isso fora transmitido ao vivo pelas principais TVs. Como as
pessoas já sabiam dos confrontos em todos os protestos, elas foram
preparadas para a guerra e cientes de fazer parte de um dos lados.
Pois bem, quando a passeata se aproximava, o Batalhão de Choque
começou a jogar bombas de gás lacrimogênio contra a população.
Daí surgiram heróis revolucionários que tentaram enfrentar a polícia
com paus, pedras e escudos. Na linha de frente, os governados re-
beldes, depois de receber as primeiras bombas, tentaram partir para
cima da tropa de choque num ato de muita bravura, mas sob ataque
sistemático, que vinham de todos os lados, inclusive, do helicóptero
da polícia, não foi possível manter a posição. Isso mesmo: choveu
bombas. Dessa maneira, a linha de frente foi obrigada a recuar, em
função da extrema desigualdade bélica. Muitos ainda conseguiram
retardar o recuo, mas não por muito tempo, enfrentando com fogos
de artifício e pedras as tropas leais e submissas ao incorruptível go-
vernador Sérgio Cabral. Depois das balas de borracha e de bombas
aos milhares, não foi possível proteger os demais manifestantes,
nem avançar. Foi necessário recuar. O tanque blindado da Polícia
Militar, conhecido como “Caveirão”, também foi utilizado contra os
governados que reivindicaram direitos e se rebelaram contra mais
de 500 anos de exploração e atrocidades. A resistência foi enorme,
os manifestantes fizeram o Caveirão recuar17, mas não foi possível
por muito tempo. A diferença de armas e treinamento determinou

17 Existiam muitos vídeos no YouTube sobre 2013, mas muitos deles foram retirados. No dia
11 de junho de 2018, ainda dava para ver esse vídeo, em meio a vários outros indisponíveis:
https://www.bing.com/videos/h?q=black+bloc+caveirao&&view=detail&mid=ACBD61A-
49D0D3C0C0C24ACBD61A49D0D3C0C0C24&&FORM=VRDGAR

214 wallace de moraes


a vitória dos empregados dos governantes penais. A polícia avan-
çou e obrigou a população a correr, voltando para a Candelária, de
onde saíram. Nesse retorno, as palavras de ordem eram: “re-vo-lu-
-çãoooo”, “não vai ter copaaaa”, “o povo unido jamais será venci-
do” e uma clássica antiga, mas bastante bonita e representativa do
momento:
“Avante companheiro essa luta é minha é sua, unidos venceremos
e a luta continua. O povo unido, é povo forte, não teme a luta, não
teme a morte”.

Teve uma palavra de ordem que chamou atenção por não ter
o caráter político dos estudantes, mas das favelas e periferias do
país. Em ritmo de funk os insurgentes cantavam: “PM cuzão, larga
a arma e vem na mão”. Essa palavra de ordem mostrava que as co-
munidades das favelas e periferias estavam representadas e na linha
de frente do confronto. Os intelectuais de plantão da esquerda ofi-
cial puristas e da direita podem fazer a crítica, mas entendemos que
esta palavra de ordem também é revolucionária. É importante rela-
tar um fato: quando as pessoas voltavam na contramão do sentido
do protesto, sob as bombas e o gás lacrimogênio, muitas tentaram
entrar nas estações do metrô e do trem da Central do Brasil, mas
foram impedidas pelos seguranças que fecharam as portas. Não se
sabe de onde partiu a ordem, mas sem dúvida foi uma atitude covar-
de contra o direito de ir e vir dos governados, que buscavam deses-
peradamente respirar melhor depois de tanto gás. O vinagre nesse
dia foi fundamental para aliviar a horrível sensação de falta de ar.
O retorno foi doloroso para aqueles que ainda pensavam em
continuar no ato. Logo de improviso, mas muito bem pensado pelos
manifestantes, surgiu a ideia “vamos ocupar novamente a ALERJ”.
Então a multidão gritava: “ALERJ, ALERJ, ALERJ”. Não obstante, as
bombas não paravam de cair nas nossas costas. Mais uma vez, a soli-
dariedade do vinagre foi fantástica. Recebemos por várias vezes um
pouquinho desse produto de várias pessoas que nunca havíamos

2013 - revolta dos governados 215


visto. Mais uma demonstração de que na luta o coletivo sobressai
ao individualismo. Muito bonito.
Nesse retorno, sob bombas, a população indignadíssima come-
çou a quebrar. Quais foram os alvos preferidos? Os bancos. Todos
os bancos da Avenida Presidente Vargas e adjacências foram que-
brados.18 Não sobrou nenhum que não tivesse suas vidraças e caixas
eletrônicos destruídos. É importante dizer que a referida Avenida
é a maior do Centro da cidade do Rio de Janeiro e, portanto, a que
tem mais bancos. Aproximadamente uns 20 bancos foram quebra-
dos. Além deles, as lojas do Mc´Donalds, empresas multinacionais,
prédios estatais e símbolos da Rede Globo, que estavam no terrei-
rão do samba, receberam pauladas e pedradas como presentes.
Todos os pardais, câmeras que multam os veículos, também fo-
ram jogadas literalmente ao chão. Todos esses atos foram ovaciona-
dos pelos manifestantes, que pediam apenas para não quebrarem
escolas, museus e pequenas lojas.

18 Alguns manifestantes, imbuídos da perspectiva pacifista, tentaram impedir que os revolu-


cionários quebrassem os bancos ou mesmo revidasse os ataques policiais, mas na medida
em que a polícia atacava com truculência essa resistência perdia força.

216 wallace de moraes


É importante dizer que as centenas de pequenas lojas do ca-
melódromo, bem como a escola, o museu, o hospital, a biblioteca
pública, permaneceram intactas na referida Avenida. Fato que de-
monstra muito claramente o sentimento de classe dos “vândalos”.
Simultaneamente, grande efetivo da polícia continuava per-
seguindo os manifestantes por todo o Centro do Rio, instituindo a
noite do terror carioca da Revolta do Vinagre. Para colocar medo, a
prefeitura chegou a apagar as luzes da Avenida Presidente Vargas,
enquanto passavam vários carros da polícia, apontando os fuzis para
todos e distribuindo bombas de gás lacrimogênio, como se fossem
doces de São Cosme e Damião. Sob essas condições, aqueles mais
de um milhão de pessoas foram dispersados. Alguns manifestantes
se refugiaram no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ
(IFCS), outros em um hotel do Centro, como eu e alguns amigos,
outros ainda pegaram o primeiro ônibus que viram e terminaram
chegando em lugar absolutamente distante de sua casa. Outros ain-
da se refugiaram em casas de pessoas que nunca tinham conheci-
do. Há relatos de que a polícia jogou bombas de gás lacrimogênio
dentro de alguns ônibus com passageiros e também dentro do IFCS.
Foi realmente a noite do terror. A ideia era amedrontar e expulsar
os governados das ruas de uma vez por todas. Muitos feridos pelas
bombas, balas de borracha e intoxicados pelas armas químicas fo-
ram parar no Hospital Souza Aguiar.19
Entretanto, à parte de tudo isso, um fato muito importante
aconteceu e foi decisivo para a derrocada das manifestações de mi-
lhões nas ruas. Vamos caracterizá-lo como o fantasma do fascismo.
Enquanto os diversos grupos revolucionários estavam na linha de
frente, tentando invadir a prefeitura e, por conta disso, enfrentando
as tropas leais ao governo, os militantes dos partidos políticos esta-
vam todos juntos com suas bandeiras partidárias e preparados com
porretes na retaguarda da passeata. Depois das rejeições aos parti-
19 http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/06/ato-no-rio-reune-300-mil-pessoas-e-ter-
mina-em-confronto-com-pm.html

2013 - revolta dos governados 217


dos políticos em todas as passeatas e da destruição da bandeira do
PSTU na manifestação anterior, os partidários da esquerda oficial fo-
ram todos juntos e preparados para o confronto, mas não contra a
polícia na linha de frente. Uma massa de manifestantes muito maior
que o contingente partidário, como havia acontecido já nas passe-
atas anteriores, gritavam fortemente: “sem partido, sem partido.”
Como militantes dos partidos, principalmente os do PSTU, não qui-
seram abaixar as bandeiras, o confronto foi se apresentando com
hostilidades até que ocorreu o enfrentamento físico. Muitos mili-
tantes dos partidos machucados, alguns gravemente feridos, foram
hospitalizados. Essa agressão foi deplorável. Confusos e irrespon-
savelmente, o PSTU e setores da esquerda oficial atribuíram-na a
setores anarquistas, fascistas e liberais, enfim a todos que não eram
do seu campo. Depois de as organizações anarquistas responderem
ao ataque do partido e de se solidarizarem com seus militantes, eles
atribuíram a culpa a setores fascistas e nacionalistas, enfim, à direita.
Não obstante, devemos extrair desse episódio algumas lições:
1) militantes de partidos da esquerda oficial compunham um núme-
ro absurdamente pequeno, chegando a irrelevância no maior pro-
testo da história do país; 2) além de não contar com apoio popular
eles foram rechaçados pelos manifestantes que pediam que baixas-
sem suas bandeiras; 3) esses partidos se colocaram do meio para o
final da passeata e não foram para a linha de frente, onde acontecia
o enfrentamento com as forças policiais; 4) eles estavam prepara-
dos com mastros das bandeiras em forma de porrete para encarar
outros setores de manifestantes que repulsavam suas bandeiras,
mas não estavam prontos para enfrentar as forças do Estado; 5) por
fim, apanhar de outros manifestantes diante de mais de um milhão
de pessoas é um sinal gravíssimo que denota a efêmera penetração
social da esquerda oficial estatista, mas também mostra para todos
os lados a ampla rejeição a todos os partidos políticos no Brasil.
Desde então começou um movimento de caça às bruxas enor-
me. Quem agrediu os militantes dos partidos? Surgiram hipóteses

218 wallace de moraes


fonte: ruy barros

das mais diversas para embasar essa tese. Até agora ninguém con-
seguiu comprovar os verdadeiros autores da covardia. Nossa hipó-
tese é que foram grupos infiltrados das próprias forças de repressão
que atuaram para dividir o movimento. Fato é que eles foram muito
bem-sucedidos. A esquerda institucional eleitoreira começou, en-
tão, a desqualificar por completo a Revolta dos Governados. Diziam
eles: “a passeata tomou rumos muito nacionalistas”; “Existe um
movimento fascista muito forte no Brasil que obriga aos partidos
abaixarem as bandeiras”; “Os manifestantes ficaram cantando o
hino nacional e outras canções nacionalistas, portanto, está predo-
minando o fascismo”. Ouvimos esses e outros argumentos dos mais
absurdos.
A supracitada tese já era proferida pelo petismo e pelo PCdoB.
A grande mídia também embarcou nessa. Inclusive, a governança
plutocrática neoliberal dissimulada petista começou a alardear que
se estavam preparando um golpe no Brasil contra a Dilma e que os
militares iriam estabelecer uma nova ditadura. Portanto, “as ma-
nifestações estavam atendendo aos interesses da direita”. Nesta

2013 - revolta dos governados 219


perspectiva simplista, confluíram as análises petistas e da esquer-
da oficial. Por que ambas confluíam? A melhor explicação susten-
ta-se na realidade de que a Revolta do Vinagre não foi dirigida por
nenhum desses setores e, portanto, não atendia a seus interesses
corporativos e eleitoreiros; pior, ainda lhes colocavam em situações
vexatórias perante os governados.
Vimos amigos desesperados dizerem que estavam com medo
do crescimento do fascismo no Brasil e que as passeatas não os re-
presentavam. Depois de toda essa campanha difamatória da revolta
popular, até algumas pessoas que se diziam anarquistas tomaram
essa perspectiva como verdade absoluta e não demonstraram ter
entendido a jogada política que os partidos da esquerda oficial e do
petismo faziam.
No dia seguinte da maior manifestação popular do Brasil, 21
de junho, os representantes da esquerda oficial e dos governantes
plutocráticos neoliberais dissimulados se uniram, primeiramente
em São Paulo, para combater e controlar as manifestações. Parti-
ciparam da organização do controle das passeatas a “Central Única
dos Trabalhadores (CUT), a Via Campesina, União Nacional dos Es-
tudantes (UNE), Intersindical, Partido Socialista dos Trabalhadores
Unificado (PSTU), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido
dos Trabalhadores (PT), dentre outros. Reuniões como esta foram
realizadas em outros estados, como Rio de Janeiro, Brasília e Minas
Gerais”.20
Lamentavelmente, eles conseguiram controlar as manifesta-
ções e sobretudo diminuir consideravelmente seu ímpeto. O pe-
tismo (que ocupava a governança política), a esquerda oficial, os
plutocratas neoliberais desavergonhados, os governantes sociocul-
turais, penais, jurídicos e econômicos atuaram juntos para terminar
com a insurreição popular. Em outras palavras, os diferentes parti-
dos políticos, com seus sindicatos oficiais, e a violência explícita da

20 Fonte: Brasil de Fato de 22/06/2013. Ver http://www.brasildefato.com.br/node/13320

220 wallace de moraes


polícia, muito bem unidos e com a anuência de todos os governan-
tes atuaram para acabar com os protestos.
Por consequência, já no dia 20 de junho, se desenhava o avanço
da repressão sobre os movimentos sociais mais combativos, repre-
sentando o início da criminalização e da fascistização no Brasil. O
primeiro alvo não poderia ser mais significativo: a FAG (Federação
Anarquista Gaúcha). A Polícia Federal invadiu sua sede e tomou pos-
se de seus pertences. Vejamos a nota que a FAG divulgou após o
ocorrido.

Nota da FAG sobre a invasão de sua sede

Polícia Federal invade a sede da Federação Anar-


quista Gaúcha – FAG

Na tarde desta quarta feira, 20/06/2013, entre 12 a 15


agentes a paisana, em blazers e utilizando coletes
pretos, dizendo ser da Polícia Federal arrombaram e
invadiram o Ateneu Batalha da Várzea, espaço político
social da Federação Anarquista Gaúcha localizado na
Travessa dos Venezianos, e levaram diversos de nos-
sos materiais. Os agentes não apresentaram mandato
de busca e apreensão aos vizinhos que buscaram se in-
formar do que se passava. Além disso, agentes, também
a paisana, buscaram prender uma companheira em sua
casa nessa manhã.

A FAG é uma organização política com 18 anos de exis-


tência pública. Ao longo destes anos nunca nos escon-
demos, sempre mantivemos nossos espaços públicos
onde realizamos inúmeras atividades de ordem polí-
tica e cultural assim como nossa atuação no campo
popular e da esquerda gaúcha e nacional. O Ateneu é
um espaço onde ao longo de 03 anos temos dado se-

2013 - revolta dos governados 221


quência a essas atividades, mantendo uma biblioteca
pública e realizando periódicas atividades.

Recordamos também que em outubro de 2009 tivemos


nossa antiga sede, à época localizada na Lopo Gonçal-
ves, invadida pela Polícia Civil por ordens da então
governadora Yeda Crusius em função de um cartaz onde
a responsabilizávamos, e seguimos responsabilizando,
pelo assassinato do militante do MST Elthon Brum em
São Gabriel. Na ocasião tivemos todos os materiais da
sede apreendidos, levaram inclusive nossas lixeiras.

Desta vez, após inúmeros factóides publicados na RBS,


acusando-nos de sociopatas e fantasiando que estarí-
amos tramando em conjunto com militantes de outros
países o emprego de táticas de guerrilha na cidade,
com o nítido motivo de semear pânico e instigar a re-
pressão a nossa militância.

Assim como as provocações e factóides plantados pela


imprensa reacionária, a repressão empregada pelos
aparelhos de repressão do Estado burguês não é ne-
nhuma novidade à nós. Desde nossa origem enquanto
corrente política temos sido alvo da sanha repressiva
dos patrões em conluio com o Estado. Há mais de um
século temos resistido a todas essas investidas co-
vardes, com o punho e a cabeça erguida e não será este
episódio que irá afrouxar nossa combativa militância.

Responsabilizamos, por fim, os governos municipal,


estadual e federal por mais este ataque covarde a
nossa organização. Não nos intimidaremos e seguire-
mos empregando todos nossos esforços na constru-
ção de um povo forte, de um campo popular combativo

222 wallace de moraes


que organize os oprimidos deste país e suas legítimas
demandas.

Não passarão!

Abaixo a repressão aos que lutam!

Federação Anarquista Gaúcha – FAG - 20 de Junho de


2013.

Em resumo, o dia 20 de junho de 2013 foi o maior ato político


da história brasileira, mas, ao mesmo tempo, o início do ativismo
conservador agressivo que dura fortemente pelo menos até a publi-
cação desse livro.

DAY AFTER (DIA SEGUINTE) DO MAIOR PROTESTO


DA HISTÓRIA BRASILEIRA

A sustentação à Revolta era tamanha que até jornalistas se vi-


ram obrigados a apoiar os protestos. Ricardo Boechat, por exem-
plo, veio a público defender o quebra-quebra, escrachos de políticos
etc.21 No dia 17 de junho, uma pesquisa na TV, que ficou muito famo-
sa no movimento, realizada no “Programa do Datena” na Bandei-
rantes, também se surpreendeu, pois a maioria dos telespectadores
votou que era a favor de protestos “com baderna”, no dizer dele.
Embora, em todo o momento ele defendesse que achava um absur-
do protestos com baderna. O curioso é que até os jornalistas passa-
ram a apoiar os protestos, ou pelo menos se diziam a favor. Pegava
mal colocar-se contra.
No dia 21 de junho, a presidenta Dilma Rousseff fez um pronun-
ciamento em rede nacional de rádio e televisão sobre os protestos,
dizendo-se também a favor dos mesmos, mas, ressalvou, “sem van-

21 Sua entrevista representa bastante bem o espírito daquele mês histórico. https://www.-
youtube.com/watch?v=C2GEln6N-dY

2013 - revolta dos governados 223


dalismo”.22 A governança política estava acuada.23 Era a oportunida-
de que tinha para atender a voz das ruas, mas ela resolveu criticar
os manifestantes, usando várias vezes o termo vandalismo para des-
qualificar os mais combativos e defendendo a ordem. Ela não apon-
tou para atender aos anseios dos movimentos organizados à época.
Propôs uma pauta que não colocou em prática. Depois, convocou o
Movimento Passe Livre para uma reunião.
Vejamos a nota do MPL sobre esse chamado. Ela é bastante
representativa do significado do movimento, pois o MPL foi o grupo
mais representativo do início dos protestos.

Carta aberta do Movimento Passe Livre de


São Paulo à presidente Dilma Rousseff:

“À Presidenta Dilma Rousseff,

Ficamos surpresos com o convite para esta reunião.


Imaginamos que também esteja surpresa com o que vem
acontecendo no país nas últimas semanas. Esse ges-
to de diálogo que parte do governo federal destoa do
tratamento aos movimentos sociais que tem marcado a
política desta gestão. Parece que as revoltas que se es-
palham pelas cidades do Brasil desde o dia seis de junho
têm quebrado velhas catracas e aberto novos caminhos.
O Movimento Passe Livre, desde o começo, foi parte
desse processo. Somos um movimento social autôno-
mo, horizontal e apartidário, que jamais pretendeu
representar o conjunto de manifestantes que tomou as
ruas do país. Nossa palavra é mais uma dentre aquelas
gritadas nas ruas, erguidas em cartazes, pixadas nos
muros. Em São Paulo, convocamos as manifestações

22 Ver: https://www.youtube.com/watch?v=O5xdsIrDHAA
23 Depois de muito tempo, a governança política petista voltou a receber movimentos so-
ciais em ano não eleitoral. Segundo Locatelli (2013), em duas semanas recebeu mais movi-
mentos sociais em seu gabinete do que em dois anos e meio, mas todos “chapa branca”.

224 wallace de moraes


com uma reivindicação clara e concreta: revogar o au-
mento. Se antes isso parecia impossível, provamos que
não era e avançamos na luta por aquela que é e sempre
foi a nossa bandeira, um transporte verdadeiramen-
te público. É nesse sentido que viemos até Brasília.
O transporte só pode ser público de verdade se for
acessível a todas e todos, ou seja, entendido como um
direito universal. A injustiça da tarifa fica mais evi-
dente a cada aumento, a cada vez que mais gente dei-
xa de ter dinheiro para pagar a passagem. Questionar
os aumentos é questionar a própria lógica da política
tarifária, que submete o transporte ao lucro dos em-
presários, e não às necessidades da população. Pagar
pela circulação na cidade significa tratar a mobilida-
de não como direito, mas como mercadoria. Isso colo-
ca todos os outros direitos em xeque: ir até a escola,
até o hospital, até o parque passa a ter um preço que
nem todos podem pagar. O transporte fica limitado ao
ir e vir do trabalho, fechando as portas da cidade para
seus moradores. É para abri-las que defendemos a ta-
rifa zero.

Nesse sentido gostaríamos de conhecer o posiciona-


mento da presidenta sobre a tarifa zero no transporte
público e sobre a PEC 90/11, que inclui o transporte no
rol dos direitos sociais do artigo 6º da Constituição
Federal. É por entender que o transporte deveria ser
tratado como um direito social, amplo e irrestrito,
que acreditamos ser necessário ir além de qualquer
política limitada a um determinado segmento da so-
ciedade, como os estudantes, no caso do passe livre
estudantil. Defendemos o passe livre para todas e
todos!

2013 - revolta dos governados 225


Embora priorizar o transporte coletivo esteja no dis-
curso de todos os governos, na prática o Brasil inves-
te onze vezes mais no transporte individual, por meio
de obras viárias e políticas de crédito para o con-
sumo de carros (IPEA, 2011). O dinheiro público deve
ser investido em transporte público! Gostaríamos de
saber por que a presidenta vetou o inciso V do 16º ar-
tigo da Política Nacional de Mobilidade Urbana (lei nº
12.587/12) que responsabilizava a União por dar apoio
financeiro aos municípios que adotassem políticas de
priorização do transporte público. Como deixa claro
seu artigo 9º, esta lei prioriza um modelo de gestão
privada baseado na tarifa, adotando o ponto de vista
das empresas e não o dos usuários. O governo fede-
ral precisa tomar a frente no processo de construção
de um transporte público de verdade. A municipali-
zação da CIDE, e sua destinação integral e exclusiva
ao transporte público, representaria um passo nesse
caminho em direção à tarifa zero.

A desoneração de impostos, medida historicamente


defendida pelas empresas de transporte, vai no sen-
tido oposto. Abrir mão de tributos significa perder o
poder sobre o dinheiro público, liberando verbas às
cegas para as máfias dos transportes, sem qualquer
transparência e controle. Para atender as demandas
populares pelo transporte, é necessário construir
instrumentos que coloquem no centro da decisão quem
realmente deve ter suas necessidades atendidas: os
usuários e trabalhadores do sistema.

Essa reunião com a presidenta foi arrancada pela


força das ruas, que avançou sobre bombas, balas e
prisões. Os movimentos sociais no Brasil sempre so-
freram com a repressão e a criminalização. Até ago-

226 wallace de moraes


ra, 2013 não foi diferente: no Mato Grosso do Sul, vem
ocorrendo um massacre de indígenas e a Força Nacio-
nal assassinou, no mês passado, uma liderança Terena
durante uma reintegração de posse; no Distrito Fede-
ral, cinco militantes do Movimento dos Trabalhadores
Sem Teto (MTST) foram presos há poucas semanas em
meio às mobilizações contra os impactos da Copa do
Mundo da FIFA. A resposta da polícia aos protestos
iniciados em junho não destoa do conjunto: bombas de
gás foram jogadas dentro de hospitais e faculdades;
manifestantes foram perseguidos e espancados pela
Polícia Militar; outros foram baleados; centenas de
pessoas foram presas arbitrariamente; algumas es-
tão sendo acusadas de formação de quadrilha e inci-
tação ao crime; um homem perdeu a visão; uma garota
foi violentada sexualmente por policiais; uma mulher
morreu asfixiada pelo gás lacrimogêneo. A verdadeira
violência que assistimos neste junho veio do Estado –
em todas as suas esferas.

A desmilitarização da polícia, defendida até pela


ONU, e uma política nacional de regulamentação do
armamento menos letal, proibido em diversos paí-
ses e condenado por organismos internacionais, são
urgentes. Ao oferecer a Força Nacional de Segu-
rança para conter as manifestações, o Ministro da
Justiça mostrou que o governo federal insiste em
tratar os movimentos sociais como assunto de po-
lícia. As notícias sobre o monitoramento de mili-
tantes feito pela Polícia Federal e pela ABIN vão
na mesma direção: criminalização da luta popular.
Esperamos que essa reunião marque uma mudança de
postura do governo federal que se estenda às outras
lutas sociais: aos povos indígenas, que, a exemplo dos

2013 - revolta dos governados 227


Kaiowá-Guarani e dos Munduruku, têm sofrido diversos
ataques por parte de latifundiários e do poder públi-
co; às comunidades atingidas por remoções; aos sem-
-teto; aos sem-terra e às mães que tiveram os filhos
assassinados pela polícia nas periferias. Que a mesma
postura se estenda também a todas as cidades que lu-
tam contra o aumento de tarifas e por outro modelo de
transporte: São José dos Campos, Florianópolis, Recife,
Rio de Janeiro, Salvador, Goiânia, entre muitas outras.
Mais do que sentar à mesa e conversar, o que importa
é atender às demandas claras que já estão colocadas
pelos movimentos sociais de todo o país. Contra todos
os aumentos do transporte público, contra a tarifa,
continuaremos nas ruas! Tarifa zero já!

Toda força aos que lutam por uma vida sem catracas!”

228 wallace de moraes


A ESQUERDA OFICAL E A PLUTOCRACIA
NEOLIBERAL DISSIMULADA PASSARAM A
DISPUTAR ENORMEMENTE A DIREÇÃO DO
MOVIMENTO

No Rio de Janeiro podíamos perceber diferentes táticas. Pri-


meiro, a esquerda institucional fez uma plenária de cúpula/vanguar-
da/dirigentes no SEPE (Sindicato dos profissionais da Educação)
com representantes dos seus partidos e sindicatos, para definir uma
estratégia para o movimento a partir de então. Essa reunião aconte-
ceu no dia 24 de junho.24
No dia seguinte, ocorreu a plenária da preparação do próximo
ato no IFCS. Aqui cabe uma nota. Nas vésperas dos atos ocorria a ple-
nária organizativa no Salão Nobre do IFCS que cada vez mais ficava
cheio. No dia 25, a plenária tinha tanta gente que teve que ser levada
para o Largo de São Francisco contando com aproximadamente 7
mil pessoas. As definições do dia, da pauta, do trajeto, dentre outros
pontos, seriam realizadas por essa reunião. Tanto o petismo, quanto
a esquerda oficial, acostumados com a direção de aparelhos sindi-
cais e estudantis, tomaram de assalto a mesa da plenária e passaram
a dirigi-la, mas, com muita tensão, com os movimentos autônomos.
Todas as propostas dos setores revolucionários e autonomis-
tas foram rechaçadas, algumas nem sequer foram votadas. Isso
demonstra uma debilidade organizativa desse setor, que preferiu
o enfrentamento ao capital e ao Estado e deixou solto o enfrenta-
mento com a esquerda eleitoreira na direção do processo. Por outro
lado, também expressou como a esquerda oficial foi “profissional”
em dominar e dirigir debates, dificultando a ação dos libertários.

24 Nesse dia, aconteceu um ato chamado pelo Facebook que contou com poucos partici-
pantes, pois a esquerda oficial boicotou propositalmente e a massa popular estava assus-
tada com a enorme repressão sofrida no dia 20 de junho e com medo do fantasma do fas-
cismo, amplamente difundido pelos oligopólios de comunicação de massa, que comprou
a pauta da esquerda oficial para desbaratar o movimento.

2013 - revolta dos governados 229


Foto da Assembleia do Fórum de Lutas no Largo de São Francisco
no dia 25 de junho de 2013.

fonte: http://www.lfc.ifcs.ufrj.br

Nesse mesmo dia tinha ocorrido uma chacina na favela da Maré


perpetrada pelo BOPE (Batalhão de Operações Especiais), na qual
treze moradores foram assassinados meramente por vingança em
função da morte de um de seus sargentos no dia anterior em uma
manifestação em Bonsucesso. Essa chacina ocorreu com a anuência
dos governantes e dos oligopólios de comunicação de massa. En-
tão, os representantes da Maré solicitaram que o ato ocorresse lá
na favela, os setores revolucionários apoiaram imediatamente, mas
não passou; a esquerda oficial tinha outra estratégia. Aliás, além de
a favela não ser seu lugar privilegiado de atuação, esse grupo políti-
co estava obstinado a tomar as rédeas do processo. Dirigi-lo com o
povo da favela, desacostumado com suas palavras de ordem legalis-
tas, tornaria sua empreitada mais difícil.

230 wallace de moraes


Portanto, a plenária organizativa do ato, que começou com
três mil pessoas, tendo passado por lá umas sete mil, terminou com
aproximadamente trezentas pessoas cansadas. Mais uma vez, tudo
que foi aprovado interessava aos petistas, seus aparatos repres-
sores e à esquerda oficial com seu aparato sindicalista e estudantil
reformista e institucional. Para os governantes penais, o pior lugar
para definir a manifestação seria em uma favela, pois a população
que não tem nada a perder poderia se juntar com os revolucionários
e tornar a questão incontrolável. Imagino que quando surgiu a pos-
sibilidade, todos os agentes infiltrados devem ter ligado para seus
comandantes e pedido reforço de outros para votar pela manifes-
tação na Avenida Rio Branco. Os partidos oficiais devem ter feito o
mesmo. O trajeto decidido foi o tradicional: Candelária – Cinelândia,
depois para a porta da FETRANSPOR. Nesse momento, o movimen-
to perdeu a chance de congregar forças com outros setores popula-
res, alvo de violência constante.

DIA 27 DE JUNHO: AUTORITARISMO DA CÚPULA


SINDICAL-PARTIDÁRIA

Assim, no ato do dia 27 de junho, tudo voltou ao normal. A es-


querda oficial veio em peso com seus sindicalistas e seguranças pa-
gos. Até então, não tínhamos encontrado nenhum deles nos atos
anteriores. Eles chegaram com seus carros de som, tipo trio elétrico,
e deram uma nova-velha cara à passeata, que até então se caracte-
rizava por gritos e canções livremente criadas pelos manifestantes
em pé de igualdade com os demais. A manifestação perdeu comple-
tamente o caráter libertário, igualitário das anteriores. Agora tínha-
mos um chefe que ditava aquilo que seria cantado. O pretenso líder,
de cima do carro de som, acabava com a pluralidade do movimento.
Todos éramos obrigados a cantar o que era imposto pela potência
dos autofalantes ou nos calávamos. Foi triste.

2013 - revolta dos governados 231


Depois de todo o terror da noite do dia 20 de junho perpetra-
do pela polícia, do renascimento do fantasma do fascismo, criado
e amplamente divulgado pela esquerda oficial, do estabelecimento
do medo por parte dos grandes meios de comunicação com rela-
ção aos vândalos, além, é claro, do cansaço dos manifestantes em
diversas jornadas de luta, a passeata foi bastante diminuta, sobre-
tudo com relação às anteriores. Havia aproximadamente umas 15
mil pessoas. Enquanto nas passeatas anteriores as diversas palavras
de ordem cantadas e batidas na palma da mão entusiasmavam os
trabalhadores do Centro do Rio a aderir a manifestação, o mode-
lo hierárquico tradicional não entusiasmava ninguém e as adesões,
portanto, foram diminutas.
O trajeto combinado era sair da Avenida Rio Branco e entrar
na Rua Araújo Porto Alegre, mas os partidos que estavam à frente
da passeata passaram da entrada combinada e seguiram em fren-
te. Isso poderia apenas ser um erro, um esquecimento, embora em
todas as passeatas do movimento até então tínhamos entrado nes-
sa rua. Aqueles que sabiam do trajeto chamaram os que estavam à
frente para voltar e seguir conosco. Tentamos, ainda, fazer entrar
o segundo carro de som na rua, mas ele também se negou. Os ma-
nifestantes da base, que saiam no chão e não ocupavam as “tor-
res hierárquicas dos castelos”, começaram a gritar FETRANSPOR,
FETRANSPOR, buscando, pressionar a autoproclamada direção para
seguir pelo trajeto combinado anteriormente. Nesse momento, uma
professora de cima do carro de som chegou ao ponto de se intitular
como parte do comando da manifestação e tratou de trair o que foi
decidido na plenária de terça-feira com mais de 7 mil pessoas. As-
sim, ela disse: “não sabemos se vamos para a FETRANSPOR, temos
que esperar o comando decidir. Aqui tem comando!!!”, esbravejou a
sindicalista do SEPE. Depois ela e seu comando decidiram: os profes-
sores do SEPE e do ANDES não iriam até a FETRANSPOR, ficariam na
Cinelândia. Resultado: os manifestantes apartidários ficamos sem
carro de som e sem “nossos” “comandantes”, também conhecidos

232 wallace de moraes


como burocratas sindicais. Eles simplesmente decidiram, por conta
própria, não ir para o lugar combinado. Belo exemplo de respeito às
decisões coletivas. A primeira palavra de ordem cantada, sem o car-
ro de som, foi: “Nãoooooo tem comandooooo!” A passeata ficou
muito melhor, sobretudo porque as pessoas cantaram livremente
suas canções revolucionárias. Muito diferente das canções eleitorei-
ras dos carros de som que se limitavam a pedir a saída de Cabral e
Paes para que outros burocratas assumissem o poder. Hilário. Eles
não entenderam nada dos novos tempos de luta. É por essa e outras
que Bezerra da Silva, a voz do morro, os chamava por “canalhocra-
tas”.

Um aspecto necessário para se estudar nessa passeata foi a


atuação da PM. Logo no início, percebemos que o seu efetivo era
extremamente grande. Um cordão de polícias abriu a passeata. Algo
bem inusitado, mas que demonstra o acordo entre a esquerda ofi-
cial e os governantes penais. Por toda a Avenida Rio Branco tinham
dois cordões de policiais com escudos. Mas eles não estavam em po-
sição de enfrentamento. Estavam relaxados, conversando uns com

2013 - revolta dos governados 233


os outros. Desta vez não intimidaram os manifestantes, como fize-
ram nas outras ocasiões. Estavam até com identificação, algo pouco
comum nas operações.
Quando passamos para o destino acordado, com palavras de
ordem radicalizadas que a esquerda oficial não canta, como: “É bar-
ricada, greve geral, ação direta que derruba o capital”, percebemos
que a ALERJ estava completamente resguardada por centenas de
policiais. Quando entramos na rua da FETRANSPOR, praticamente
em frente à ALERJ, vimos que a via estava também completamen-
te tomada por PMs dos dois lados. Nesse momento, o número de
manifestantes já era bem menor. O pessoal dos partidos e dos sindi-
catos com medo de associarem seus nomes a qualquer ação de pro-
paganda pelo ato dos insurgentes, deixando-os passíveis de perder
votos nas eleições, se retiraram do protesto antes do fim, por con-
sequência, o número dos que estavam nas ruas diminuiu considera-
velmente. Ademais, a rua da Assembleia, onde fica a FETRANSPOR,
é muito estreita. Os diversos grupos radicalizados fizeram a sensata
análise de que estava armada uma grande arapuca e que não tinha
qualquer correlação de forças para enfrentamento. Além disso, a
PM não fez qualquer provocação, muito menos jogou bombas ou
atirou nas pessoas. O pessoal se retirou cantando assim: “o FE-
TRANSPOR pode esperar a sua hora vai chegar”. O protesto seguiu
até a Cinelândia e terminou pela primeira vez sem confronto entre
manifestantes e polícia e sem quebra-quebra. No final da passeata,
os insurgentes cantaram as seguintes canções: “Que coincidência!,
sem polícia, não tem violência”. “Sem hipocrisia, essa polícia mata
pobre todo dia!”
A grande marca desse dia foi que a esquerda oficial assumiu
aquilo que eles tanto queriam: a direção do processo. Eles conse-
guiram colocar na ordem do dia que quem faz críticas a eles e suas
posturas é fascista. Assim, os grupos que gritavam para eles: “Sem
partido, sem partido” não foram à passeata. Eles também não admi-
tiram que poderiam existir algumas organizações à sua esquerda e,

234 wallace de moraes


portanto, taxavam os anarquistas e os demais grupos revolucioná-
rios de vândalos, inconsequentes, desordeiros etc., curiosamente as
mesmas palavras usadas pelos governantes socioculturais. Fizeram
até papel de polícia ao entregar black blockers para as forças de re-
pressão.

30 DE JUNHO – VITÓRIA DA SELEÇÃO E PORRADA


NOS MANIFESTANTES

No dia 30 de junho, estava marcada para o Maracanã a final


da Copa das Confederações que ocorria no Brasil. Nesse dia já se
delimitava com clareza as diferentes perspectivas dos manifestan-
tes. A esquerda oficial não abria mão do seu amor pela direção do
processo; os nacionalistas praticamente se retiraram dos atos; e os
revolucionários não se contentavam em ser dirigidos por ninguém,
muito menos por reformistas, tampouco se limitavam a protestos
pré-acordados com os governantes penais e os demais governan-

2013 - REVOLTA DOS GOVERNADOS 235


tes. Ademais, a pauta da reinvindicação era bastante diferente entre
os três grupos.
Com efeito, foram marcados dois atos para esse dia: um pela
manhã, e outro pela tarde. No ato da manhã estavam os partidos
políticos e sindicatos com suas bandeiras e parte dos nacionalistas.
O ato da tarde/noite reuniu o movimento popular e os grupos políti-
cos mais radicalizados. É importante problematizarmos essas esco-
lhas. O jogo da final da Copa estava marcado para o final da tarde.
A ideia dos grupos revolucionários era chegar até o Maracanã e fa-
zer o protesto lá, para ratificar a insatisfação dos brasileiros para o
mundo inteiro, já que estariam presentes jornalistas internacionais.
Os mais otimistas sonhavam em impedir a realização do jogo, caso
tivesse correlação de forças. Por outro lado, os chefes da esquerda
oficial decidiram fazer uma manifestação pela manhã. Não conse-
guimos identificar outra justificativa que não seja para poder assistir
ao jogo do Brasil de casa, sem importunação e sem causar danos à
imagem dos governantes perante à opinião pública internacional.
Por consequência, dividiram o movimento e fizeram um ato absolu-
tamente ordeiro e inofensivo para os governantes. Era tudo que os
reis das hierarquias e suas policiais queriam.
A mídia saudou o ato da manhã como dentro da ordem e pací-
fico, simultaneamente apontou o ato da noite como da desordem e
dos vândalos. Estava rachada publicamente a manifestação popu-
lar, facilitando os estereótipos punitivos. Durante a manhã, as ve-
lhas palavras de ordem contra os nomes dos governantes. Na tarde/
noite, palavras de ordem contra o capitalismo, o Estado, a plutocra-
cia representativa, exaltando as lutas populares e a ação direta. Foi
muito propalado na manhã que os protestos da tarde seriam muito
violentos. Isso demostra a convergência entre os governantes so-
cioculturais, com a Rede Globo à frente, e os partidos da esquerda
oficial, no sentido de criminalizar os grupos mais combativos.
Esse dia marcou a presença de um grande grupo vestido de
preto, com máscaras e bandeiras anarquistas. Era o início do Black

236 wallace de moraes


Bloc do Rio. Grupos anarquistas, marxistas revolucionários, autono-
mistas e mascarados já estavam presentes nas manifestações desde
o seu início e eram os seus principais animadores, mas caracteriza-
dos com roupas pretas e escudos em número bastante significativo
era a primeira vez.

O aparato policial foi enorme. Quando os manifestantes esta-


vam reunidos e não tinham mais por onde passar para o Maracanã,
pararam e não enfrentaram de imediato a polícia. O clima era de
tensão. Depois, os policiais começaram a passar com motos entre
os governados insurgentes, como uma clara provocação. Mais tar-

2013 - revolta dos governados 237


de, quando um grupo de revolucionários se agrupou para ver o que
fariam, os policiais começaram a jogar bombas para dispersar, e o
tumulto começou. A desproporção de forças era algo gritante, che-
gando ao ponto de virar covardia. A grande mídia, pasmem, conse-
guiu editar as imagens e colocar os policiais como vítimas de todo o
processo. Em reação às bombas da polícia, alguns coquetéis molo-
tov, pedras e paus foram lançados por alguns manifestantes.
A partir desse momento, os governantes socioculturais e seus
oligopólios de comunicação de massa não permitiram mais notícias
da truculência da polícia. Incubava-se a perspectiva de análise que
por um lado criou o termo vândalo para caracterizar o manifestan-
te insurgente e, por outro, colocava a polícia como grande vítima
das manifestações. Essa campanha de vitimização do policial, asso-
ciada com a ideia de transformá-lo em herói com a ajuda de think
tanks, instituídos exatamente para isso, resultou no crescimento do
Ativismo Conservador Agressivo no Brasil. O controle das redes so-
ciais, principalmente do Facebook com novos algoritmos, obstando
a propagação das ideias revolucionárias foi fundamental. Esse pro-
cesso foi ganhando força até que explodiu com o impeachment de
Rousseff da presidência e uma acentuação da guinada conservadora
dos governantes.

11 DE JULHO: ALIANÇA ENTRE SINDICATOS E


POLICIAIS CONTRA OS BLACK BLOCS

Depois do ato do dia 30 de junho na final da Copa das Con-


federações, se concretizou a descentralização/pulverização do
movimento. Os partidos políticos da esquerda oficial fizeram suas
reuniões internas, bem como os grupos políticos menores, e a busca
por alianças e afirmações políticas foi a tônica desse momento. Par-
te dos revolucionários tentou se aglutinar e montar um grande blo-
co. Os partidos políticos e suas centrais sindicais da esquerda oficial

238 wallace de moraes


e da governança política petista fizeram a mesma coisa. Como era
de se esperar, a esquerda oficial juntou-se aos partidos da base do
governo e até com as centrais que nunca sequer se declararam de
esquerda, como a Força Sindical e outras menores. Assim, os blocos
se formaram. O maior de todos foi composto por todas as centrais
sindicais e consequentemente pelos partidos que as dirigiam: PT,
PMDB, PC do B, PDT, PSOL, PSTU. Chamemos esse bloco de “chapa
branca”. Um outro bloco foi formado pelos setores mais à esquer-
da do PSOL, sobretudo da sua base estudantil mais crítica ao oficia-
lismo, porém igualmente presa à estrutura eleitoreira. Um terceiro
setor foi composto por diversos pequenos grupos revolucionários
de orientações anarquistas, conselhistas, maoístas e autonomistas
em geral.
Com essa formação, o ato não poderia ser pior. A nova-velha
aliança entre setores petistas e da esquerda oficial estatista não iria
fazer atos de protestos contra o governo federal, estadual ou seus
capitalistas apoiadores. O bloco chapa branca tratou apenas de in-
formar a data, a hora e o trajeto da manifestação para a plenária do
passe livre, mostrando sua face mais autoritária, com base na sua
perspectiva de dirigir o processo, custe o que custar. Disseram ainda
que iriam levar carros de som e que eles estariam conectados com
a palavra de ordem unificada. Além do mais, levaram seus seguran-
ças pagos com dinheiro do trabalhador para defender a burocracia
sindical, que nessa hora estava mais do que aliada às forças de re-
pressão.
A plenária do Fórum de Lutas foi bem menor do que a última.
Aproximadamente umas trezentas pessoas passaram pelo Salão
Nobre do IFCS. Todavia, algumas propostas dos revolucionários
para a dinâmica da própria plenária foram vitoriosas, a saber: sor-
teio dos inscritos para fazer uso da fala. Com isso, os sorteados não
poderiam transferir sua vez para outros. Isso porque na plenária
anterior foi muito comum as pessoas da base dos partidos políti-
cos da esquerda oficial se inscreverem e depois passarem sua fala

2013 - revolta dos governados 239


para às suas direções. Pior é que ainda houve resistência de alguns
representantes dos partidos políticos sobre essa proposta. Os re-
volucionários, embora em número muito minoritário, tiveram suas
demandas horizontais, extremamente críticas das hierarquias, cada
vez mais vitoriosas, demonstrando uma enorme força argumentati-
va, que contemplava interesses dos governados em geral.
Esse foi exatamente o momento no qual os oligopólios de co-
municação de massa buscavam massificar o “conceito” de “Vânda-
lo”, para caracterizar os manifestantes que resistiam aos ataques
policiais, quebravam vidraças de bancos, enfim, utilizavam da tática
da propaganda pelo fato. Com efeito, ocorreu uma cotização nessa
plenária para fazer adesivos em favor do movimento, que afirmava
a defesa das ações. Um dos adesivos foi o que segue abaixo.

A passeata propriamente teve a presença de umas 20 mil pes-


soas. Todos os grupos acima citados estavam lá representados. Ti-
nham poucos estudantes e mais sindicalistas. Como em um desfile
de carnaval, os “blocos” seguiam uns atrás dos outros pela Avenida
Rio Branco no Centro do Rio de Janeiro. Com uma estrutura total-
mente diferenciada das manifestações de junho, os carros de som
ditavam as linhas políticas. Então, praticamente não existiram can-
ções, mas muitos discursos. Esses procuravam defender o governo
Dilma e colocar algumas demandas para ela solucionar. A principal
demanda era a redução da jornada de trabalho de 44h para 40 ho-
ras semanais. Uma demanda importante, mas tímida, pois muitos

240 wallace de moraes


dos trabalhadores já trabalham 40 horas por semana. Seria muito
razoável solicitar a redução para 36h ou até mesmo 30, mas essas
demandas legítimas poderiam deixar o governo em maus lençóis e
isso não foi feito.
Na passeata, cada militante estava com a camisa da sua central
sindical. Muitas pessoas receberam dinheiro e/ou lanches para ir ao
ato e engrossar o número de “sindicalistas”.
O diferencial foi a formação do Black Bloc. Quase todos masca-
rados e vestindo preto. Eles já estavam nas outras manifestações,
mas agora em um número bem maior. Um cartaz conduzido pelo
bloco negro chamou bastante a atenção: “A miséria existe porque
dá lucro”. O Black Bloc era composto principalmente por jovens e
da periferia. Alguns falaram que eles eram da baixada fluminense;
portavam escudos e até uma lata de lixo para abafar as bombas de
gás lacrimogênio. Eles estavam juntos no meio da passeata, depois
cortaram os blocos partidários e ficaram na frente do protesto. Nes-
sa passagem eles chamaram muito atenção de todos e parte dos
militantes das centrais e dos partidos oficiais vaiaram; enquanto
outros populares os aplaudiram. Os fotógrafos, a quase todo mo-
mento, tiravam fotos do grupo. Quando chegaram à frente da pas-
seata se juntaram com outros grupos anarquistas e revolucionários,
ampliando ainda mais seu número. Esse bloco chegou a ter umas
duzentas pessoas. A tática das centrais sindicais foi de isolar os in-
surgentes e isso chegou até a acontecer. O Black Bloc andou e as
centrais não. Logo os policiais cercaram o grupo, separando-os dos
manifestantes. Algumas pessoas foram até o bloco e os alertaram
para não se descolarem dos demais manifestantes. Os indígenas da
Aldeia Maracanã, vestidos a caráter, e outros governados se solida-
rizaram com o bloco e se juntaram a eles, livrando-os do isolamento.
Umas pessoas conseguiram pegar a frequência de rádio da
polícia e ficaram escutando para avisar aos manifestantes. Assim,
quando deu 18:00, segundo eles, veio a ordem do comando da PM:
“a manifestação tem que dispersar daqui a 20 minutos”. Não deu

2013 - revolta dos governados 241


outra. Exatamente às 18:20h, um infiltrado começou a quebrar gar-
rafas ao lado do Black Bloc. O grupo não caiu na provocação e come-
çou a gritar “P2, P2”, pois todos já estavam esperando esse tipo de
ação. Ele não se conteve e começou a atirar os restos das garrafas
em cima do grupo, aí começou a confusão generalizada. A polícia
que estava ali do lado, começou a proteger o P2 e a atirar bombas
sobre o Black Bloc, que revidou atirando tudo que tinha na mão.
Correria para todos os lados. Começava a batalha campal absolu-
tamente desproporcional na Avenida Rio Branco. Depois disso, os
manifestantes conseguiram repelir aquele grupo da polícia. Por con-
sequência, veio o batalhão de choque. Bombas e pedras para todos
os lados. Do alto do carro de som, um sindicalista colocou o hino
nacional para tocar, mostrando a sintonia entre governantes penais,
plutocrático dissimulados e esquerda oficial contra os Black Blocs.
Decerto, essa aliança era muito mais expressiva, pois continha todos
os governantes e sindicalistas contra os governados insurgentes. Os
manifestantes da linha de frente ficaram indignados e começaram a
questionar os membros do carro de som que jogaram suas garrafas
d´água em cima do bloco negro. Resultado: indignação generalizada
contra o carro de som, que foi apedrejado. Os sindicalistas saíram
correndo do povo com o carro em disparada.
Lamentável ver o movimento sindical frear a luta insurgente
dos governados, não se solidarizar com eles e ainda atuar em con-
luio com as forças de repressão. Entretanto, um aspecto não pode
passar despercebido e devemos problematizá-lo melhor. Tocar o
hino nacional nos potentes alto-falantes dos carros de som, abafan-
do as bombas e os tiros de balas de borracha lançados pela polícia
sobre o Black Bloc e governados indignados, evidencia algo bastan-
te emblemático: a aliança entre esquerda oficial, plutocráticos dissi-
mulados e os governantes penais para atacar os insurgentes. Fato
a destacar foi a semelhança com os grupos nacionalistas que nas
passeatas anteriores também cantavam o hino nacional para abafar

242 wallace de moraes


os conflitos. Curioso, foi que essa mesma esquerda oficial chamava
os nacionalistas de fascistas por esses atos.
Voltando aos protestos.
A noite estava só começando. As perseguições policiais foram
enormes. Várias detenções. Por outro lado, foram criadas barrica-
das e quebradeira de vidraças de alguns bancos e postos policiais.
Enquanto isso, no Palácio Guanabara, sede do governo estadual, já
se agrupavam vários governados para protestar. Parte dos setores
autônomos e revolucionários que anteviram o que aconteceria na
Avenida Rio Branco resolveram puxar um ato para a sede do go-
verno estadual praticamente no mesmo horário. Então, nesse dia
tivemos dois protestos diferentes. Tanto em um, quanto em outro,
houve confrontos. Depois de mais de uma hora de perseguição po-
licial no Centro do Rio, alguns grupos conseguiram se reagrupar e
tentaram migrar para o Palácio do Governo no bairro Laranjeiras.
Saíram da Cinelândia e foram em direção ao Aterro do Flamengo. Já
era noite. A polícia foi atrás e começou a atirar bombas sem qualquer
motivo aparente. Houve correria e mais detenções. O mais intrigan-
te foi a cena digna de filme de Hollywood: aconteceu quando parte
dos manifestantes que estava no Aterro, se dirigindo para o Catete,
foram surpreendidos por um ônibus de uma empresa privada todo
apagado, com vários policiais no seu interior, que desceram jogando
bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha. Ali, muitos foram
detidos, sem nenhuma acusação. Pouquíssimos conseguiram se li-
vrar da perseguição policial e seguiram para o Palácio de Governo.
Somente aqueles que se descaracterizaram, tirando as máscaras e
roupas que simbolizavam o Black Bloc, conseguiram seguir em dire-
ção ao outro protesto. Haja vinagre e leite de magnésio para aliviar
a respiração e a ardência nos olhos.

2013 - revolta dos governados 243


No Palácio, novo reagrupamento e novo confronto.25 A PM uti-
lizou um caminhão de jato d’água para dispersar a multidão. Nesse
momento, os manifestantes gritaram: “Pega a água e leva pra Bai-
xada”. Todos sabiam o quanto faltava água nas torneiras e bicas na
Baixada Fluminense.
Segue abaixo, análise de alguns coletivos sobre o significado do
ato do dia 11 de julho. Vale ver esse documento histórico da época.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Carta Sobre o Dia 11/07

Por uma Tendência Classista e Internacionalista.


Construir o Sindicalismo Revolucionário!!!

O ato do dia 11 de julho, puxado pelo conjunto das


Centrais (CUT, CTB, Força Sindical, UGT, CGTB. NCST e
CSP-CONLUTAS), mostrou todo seu caráter legalista,
cívico e policial. Um mês depois do início do Levante
de Junho de 2013, a Revolta do Vinagre, as centrais e
partidos da esquerda legal eleitoral (PT, PCdoB, PSTU,
PSOL, PCB) puxaram uma paralisação nacional, e não
uma Greve Geral. Algumas poucas categorias efetiva-
mente pararam a produção, os serviços e a circula-
ção. Essas centrais e movimentos sociais governistas
e para-governistas continuam na defesa da agenda do
governo e do Estado policial-militar.

A paralisação burocrática do dia 11 de julho mostrou


toda a distância entre o levante do proletariado mar-
ginal em junho e a movimentação vagarosa e assusta-
da da burocracia sindical, preocupada em defender a
ordem que os favorece. Não bastasse isso, na passe-

25 Ver vídeo sobre ato em 11 de julho em frente ao Palácio Guanabara, residência do go-
vernador: https://www.bing.com/videos/search?q=black+bloc+caveirao&&view=detail&-
mid=65EDE768A40B60D3FDE765EDE768A40B60D3FDE7&&FORM=VRDGAR

244 wallace de moraes


ata – desfile cívico - do Rio de Janeiro, as centrais
retardaram a chegada a Cinelândia, como tentativa
de impedir que ativistas chegassem depois ao Palácio
Guanabara como havia deliberado a Plenária do Fórum
de Luta. Ainda no ato, os sindicalistas perseguiam os
manifestantes combativos, como os chamados Black
Block, anarquistas, ativistas independentes e grupos
marxistas revolucionários, tentando expulsá-lo das
manifestações

Seguranças (bate-paus), contratados pelas centrais


com dinheiro de contribuição dos trabalhadores, vo-
luntárias e compulsórias, e militantes do PCdoB e CTB
agrediram manifestantes enquanto estes se defendiam
do ataque policial e das bombas de gás. As centrais
(CUT, CTB, UGT, Força Sindical, NCST e CGTB) por ação
auxiliaram na repressão, ajudando os espiões da polí-
cia a perseguir manifestantes e dispersar o ato. Tan-
to exaltavam a repressão quanto ajudaram a agredir
manifestantes que se defendiam da polícia no início
do ato, na Candelária, e ao final, nas imediações da
Cinelândia. Por outro lado, a CSP-CONLUTAS se omitiu
diante da repressão aos manifestantes, e dessa ma-
neira quem se omite, colabora. O fato se agrava, na
medida que a CSP-Conlutas não fez nenhuma nota so-
bre o caso e sem mantém refém da política de organi-
zar atos com toda a burocracia sindical que se recusa
a organizar uma greve geral, sendo a próxima passeata
marcada para o dia 30 de agosto.

Neste sentido, as centrais se somam à mídia corpo-


rativa e ao governo ao criminalizar a ação direta que
ressurgiu como método de luta do proletariado mar-
ginal na Revolta do Vinagre em contraposição ao le-
galismo e colaboracionismo das burocracias sindicais.

2013 - revolta dos governados 245


Sindicalistas (CUT, CTB, UGT e Força Sindical) e segu-
ranças (contratados com dinheiro dos trabalhadores)
das centrais sindicais atacaram os manifestantes que
resistiam à ação do PM e defendiam a passeata.

Neste sentido é necessário boicotar as centrais, com


a suspensão do financiamento e que as entidades de
base não participem dos próximos atos nos blocos das
centrais. É fundamental combater o sindicalismo de
estado e retomar a luta pelo Fim do Imposto, da Uni-
cidade e da Carta Sindical.

Ou seja, que cada trabalhador em seu local de traba-


lho se organize, questione o repasse de dinheiro dos
sindicatos às centrais, pois este dinheiro está sendo
usado contra os próprios trabalhadores, e defenda a
desfiliação de qualquer central puxando a oposições
por local de trabalho, autônoma das burocracias sin-
dicais, que se some na construção do Fórum de Oposi-
ção pela Base rumo a constituição de um Sindicalismo
Revolucionário.

Colaborar com a polícia e com os demais órgãos de


repressão é trair a classe trabalhadora. Condenar a
autodefesa e a ação direta é criminalizar aqueles que
lutam, é colaborar com a ordem instituída.

Abaixo o colaboracionismo das centrais sindicais!


Em defesa da autodefesa e da ação direta!

Construir o Fórum de Oposição pela Base


Por uma Tendência Classista Internacionalista.

246 wallace de moraes


ASSINAM:

Rede Estudantil Classista e Combativa (RECC)


Oposição de Resistência Classista – Educação RJ
Grupo de Discussão de Oposição para Educação Fede-
ral
Grupo de Luta Petroleiro (GLP)

16 DE JULHO - PLENÁRIA SEM OS PARTIDÁRIOS


DO PETISMO

Essa plenária foi bem mais tranquila, pois os representantes pe-


tistas e “comunistas-plutocráticos” não compareceram, depois de
serem amplamente rechaçados nas últimas. Como as anteriores, de-
morou-se muito para definir a composição da mesa, da pauta e das
falas, mas garantiu-se ampla defesa das ideias e democracia direta
horizontal pela base. Os militantes dos partidos políticos que não
funcionam com toda essa democracia tiveram que se render aos
amplos princípios da horizontalidade defendida pelos anarquistas e
setores em geral da base.
É importante ressaltar que em todas as plenárias havia dispu-
tas entre as forças políticas. Discussão sobre trajeto, estratégias,
data, mas também formas de organização da própria plenária que
englobava temas como horizontalidade, verticalidade, direção (co-
mando) ou autonomia. Sempre esteve em disputa pelo menos duas
propostas: uma mais libertária, e outra mais centralizadora e auto-
ritária.
O Fórum decidiu pelo ato na casa do Governador, no Leblon,
em 17 de julho.

2013 - revolta dos governados 247


17 DE JULHO – ATO NO LEBLON, CADÊ O AMARILDO
E CHACINA NA MARÉ

Antes de descrever a manifestação em frente à casa do então


governador, incorruptível, do Rio de Janeiro, é importante discutir
como andava a credibilidade da polícia até então. Nas favelas e pe-
riferias, ela era vista com ódio por essa população há muito tempo,
melhor, desde sempre, pois a sua própria criação teve como objetivo
controlar os pobres, miseráveis, escravizados e seus descendentes.
Em junho de 2013, quando ocorreu a popularização dos smar-
tphones e das redes sociais, todos passaram a ter potencial para o
jornalismo, produzindo “reportagens” e pontos de vistas. Assim,
aquilo que todos já sabiam ou desconfiavam foi sendo mostrado no
Facebook. A truculência e o abuso de autoridade, característicos
das forças de repressão no trato com pobres e miseráveis, foi sendo
divulgado para cada vez mais um número maior de governados. Es-
tudantes que não moravam em favelas e periferias passaram a ter a
comprovação das arbitrariedades policiais por diversos vídeos com-
partilhados. Estava sendo furado o bloqueio dos oligopólios de co-
municação de massa. Por consequência, as covardias realizadas nos
primeiros protestos foram amplamente divulgadas pelos midiativis-
tas, obrigando os governantes socioculturais a também divulgarem.
Esse foi o momento de maior descrédito das forças repressivas na
sociedade, pois, além dos pobres que normalmente nutrem uma rai-
va natural à repressão, as classes médias perceberam na prática, e in
loco, aquilo que acontecia com constância nas favelas. Feita essa
breve ressalva, podemos descrever o ato do Leblon.
Na noite do dia 17 de julho de 2013, mais de cinco mil pessoas
participaram de um protesto por vários motivos nas proximidades
da casa do governador do Rio de Janeiro no Leblon, bairro nobre
da cidade. É bom lembrar que em 2016 esse governador foi preso
acusado de vários atos de corrupção, desvios de verbas públicas,
favorecimentos a governantes da economia etc., muitos referentes

248 wallace de moraes


fonte: ruy barros

aos gastos com a Copa do Mundo. Como em praticamente todas as


outras manifestações, houve confronto entre polícia e insurgentes.
A cobertura dos oligopólios de comunicação de massa foi uníssona:
a polícia, que atirou balas de borracha e bombas de gás lacrimogê-
nio, era apresentada como a vítima!!! Uma das sedes da Rede Globo
no Leblon também foi alvo do ataque dos manifestantes. 26
Como historicamente aconteceu, os governantes sociocultu-
rais saíram em defesa dos governantes penais. Para manutenção da
ordem e da desigualdade era necessário “resgatar” a confiança na
polícia. Como no ato anterior no Leblon, a polícia jogou dezenas de
bombas de gás lacrimogênio e isso afetou a vida dos moradores do
bairro da alta elite carioca. Portanto, nesse dia a polícia adotou a
política de evitar a repressão. O cheiro do gás lacrimogênio poderia
entrar nos apartamentos e embaraçar a respiração dos donos do ca-
pital. Todos sabiam disso: manifestantes e policiais. O ato perdurou

26 Segue um dos vídeos coletados na internet sobre a manifestação com destruição da


fachada da Rede Globo no Leblon: https://www.bing.com/videos/search?q=2013+leblon+-
toulon&&view=detail&mid=7779C302324A6DA1C6357779C302324A6DA1C635&&FOR-
M=VRDGAR

2013 - revolta dos governados 249


até depois das dez da noite quando iniciaram os primeiros conflitos.
Não se sabe ao certo quem os iniciou, se a polícia, os manifestantes
ou os infiltrados. Nesse dia não pude estar presente, então analisa-
rei a partir do que foi escrito e divulgado por manifestantes, midiati-
vistas e pela grande mídia.
Os oligopólios de televisão unidos fizeram grandes produções
cinematográficas27, dignas de Hollywood, com os seguintes objeti-
vos:
1) criminalizar o movimento popular combativo;
2) defender a governança política de Sérgio Cabral;
3) legitimar previamente a repressão destinada aos que lutam,
ratificando aquilo que já acontece nas favelas e nas periferias do
Brasil há séculos;
4) valorizar as forças policiais que se encontravam bastante im-
populares.
Com efeito, a Rede Globo, por exemplo, cumpriu seu papel his-
tórico de se posicionar contra todo tipo de luta do trabalhador, so-
bretudo se acompanhado por uma crítica contundente ao sistema
como um todo por meio de ações diretas.
Esse império midiático chegou a colocar imagens dos manifes-
tantes quebrando bancos e lojas de luxo, repetidamente, inclusive
sem som, sem comentários, apenas as imagens. Foi chocante. Fo-
mos induzidos fortemente a rechaçar os manifestantes. Fomos in-
duzidos a ter ódio da juventude que luta. Fomos induzidos a querer
a prisão imediata dos estudantes e trabalhadores pobres que esta-
vam no ato. Fomos induzidos até a defender a pena de morte de
todos aqueles. As imagens como foram postas pareciam crimes he-
diondos, equiparavam-se a homicídios dolosos, a atrocidades con-
tra a humanidade. As vidraças quase que se equivaleram a crianças
indefesas sendo destroçadas, decapitadas, a sangue frio por carras-
cos vestidos de preto. Argumentavam que eram “vândalos, fascis-
27 Ver cobertura do Jornal Nacional da Rede Globo no dia 18 de julho de 2013. https://globo-
play.globo.com/v/2701629/programa/

250 wallace de moraes


tas, autoritários, violentos, covardes,” por terem atacado nada mais
que vidros e manequins. É importante lembrar que os insurgentes
jamais fizeram uso de arma de fogo ou algo equivalente.
Com efeito, temos discernimento suficiente para separar homi-
cídio doloso de quebra de vidraças de bancos (multimilionários as
custas da exploração dos governados) e o saque de lojas de roupa
de luxo da Toulon. Todos sabemos que os bancos atacados se cons-
tituem nas instituições mais beneficiadas no capitalismo contempo-
râneo, às custas do desemprego, da exploração do trabalho, e das
altíssimas taxas que todos somos obrigados, por lei, a pagar.28 Os
bancos com suas taxas exorbitantes já destruíram vidas e famílias
inteiras, colocando-nos na bancarrota. Mas os governantes socio-
culturais não fizeram uma reportagem sobre esse assunto. Por quê?
O circo armado foi tamanho que a grande mídia colocou o dono
da rede nacional de lojas Toulon chorando na televisão, tomando o
cuidado para não mostrar qual era a loja.29 Os governantes sociocul-
turais não mostraram que as roupas saqueadas foram distribuídas
aos moradores de rua, que “pela primeira vez, vestiram Toulon, com
100% de desconto”, como diziam os manifestantes. Depois de os oli-
gopólios de comunicação fazerem um cinema com o quebra-quebra
no Leblon e o dono da loja chorar na TV, surgiu no Facebook um
depoimento de uma ex-vendedora da loja.

“DEPOIMENTO DE UMA EX VENDEDORA DA TOULON (Por Aluana


Guilarducci)

Eu tô vendo um monte de gente incomodado com o quebra-quebra


na Toulon. Sei que é polêmico o que eu vou dizer, mas eu, como
28 Lucros dos maiores bancos do Brasil no segundo trimestre de 2018 quebrou recorde. Ver:
https://www.valor.com.br/financas/5672473/lucro-de-grandes-bancos-deve-somar-r-
-18-bi-no-trimestre
29 Em outra reportagem do Jornal Nacional da Rede Globo o drama foi aumentado, buscan-
do dar emoção profunda àqueles que perderam, mostrando o dono da rede Toulon, uma
rede de luxo, chorando na TV. https://globoplay.globo.com/v/2701628/programa/

2013 - revolta dos governados 251


ex-vendedora de loja, que trabalhava de 12/14h por dia em dias de
grande movimento, sem ganhar hora extra, sem salário fixo, sem
descanso no fds, tendo que chegar cedo pra limpar loja, tendo a
bolsa e o corpo revistado ao sair, obrigada a bater meta, sob amea-
ça de ser mandada embora constantemente se não fosse rentável,
tradada como produto da loja, obrigada a estar impecável, com as
unhas e cabelos feitos no padrão da empresa (nada mais violenta-
dor pra mim do que ouvir que eu era um produto tb), vou ser bem
franca, se eu trabalhasse ali EU ADORARIA VER A LOJA ARDER.
Acho que eu acordava às 6h da manhã sonhando com
isso todos os dias enquanto eu trabalhava em loja.
Imagino que muitos vendedores de loja de Ipanema hj acordaram
pensando “Droga! Pq não foi a minha loja!?”

Fato é: não assistimos reportagem da Rede Globo sobre ex-


ploração, humilhação, subordinação, que muitos trabalhadores
passam no local de trabalho. Mas não podemos esperar nada nesse
sentido, dos oligopólios de comunicação que se constituem como
uma nobreza midiática30 e que tem lado claro na luta de classes para
defender.
Depois de toda encenação, a senha estava dada e o governa-
dor Sérgio Cabral, com toda sua autoridade de homem honesto com
índole inabalada, chamou uma reunião emergencial entre as forças
de segurança do Rio (governantes penais) para verificar formas de
criminalizar o movimento.
Cumpre destacar que na semana anterior, quando a polícia ma-
tou 13 pessoas na favela da Maré, nenhuma força tarefa foi mon-
tada, nem a nobreza mídiática fez o alarde contra a arbitrariedade
policial, que fizera em defesa dos VIDROS, dos MANEQUINS e das
ROUPAS.

30 Conceito criado por Flávio Moraes (2018) para explicitar uma relação entre o conceito de
nobreza, restrito a poucos, e a posse de meios de comunicação no Brasil.

252 wallace de moraes


Na mesma semana, um morador da favela da Rocinha de 46
anos e pai de 6 filhos, o Amarildo, foi preso, torturado e assassinado
por um comandante da Polícia Militar dentro da UPP (Unidade de
Polícia Pacificadora). Depois, sumiram com o corpo. Mais uma vez,
apenas uma citação do “sumiço” do cidadão nos oligopólios de co-
municação de massa, com muito cuidado para não deixar os gover-
nados indignados. Ficou apenas ratificado de que lado estavam os
governantes socioculturais, ajudando a explicar porque seus jorna-
listas foram expulsos das passeatas pelos manifestantes. Por mais
incongruente que possa parecer, para a Rede Globo vale mais o pa-
trimônio: vidros de bancos e roupas de lojas de luxo do que vidas
de favelados! Essa é a mais dura verdade que precisa ser dita. Eliane
Brum em excelente artigo31 foi muito feliz ao descrever o seguinte:

Os black blocs, que apanham tanto de tantos lados, (...) ao quebra-


rem patrimônio material como forma de protesto e serem trans-
formados numa espécie de inimigos públicos, aponta-se onde está
o valor e também a disputa. Enquanto a destruição dos corpos de
manifestantes pela Polícia Militar é naturalizada, a dos bens é cri-
minalizada. Reafirma-se, mais uma vez, que os corpos podem ser
arruinados, já que o importante é manter o patrimônio, em especial
o dos bancos e grandes empresas, intacto.

31 Ver https://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/12/opinion/1473693538_681813.html

2013 - revolta dos governados 253


Foi criada uma força tarefa para lidar com as manifestações
e controlá-las. Assim, a governança política do estado através de
Sérgio Cabral, juntamente com os governantes penais, por meio do
chefe da Polícia Militar, do secretário de segurança, da chefe da Poli-
cia Civil, promotores, e até o presidente da OAB/RJ vieram a público
legitimar a repressão futura.
O chefe da Polícia Militar deu entrevista coletiva, dizendo que
os policiais “sofrem muito com os abusos dos vândalos”. Todos os
comentaristas defenderam altas penas para eles. Aliás, vândalo vi-
rou a palavra da moda. O governador veio a público afirmar que não
toleraria “vandalismo”. Destarte, criaram uma nova lei para lidar
com atos dos manifestantes. Lei muito parecida com a decretada
pela ditadura militar-plutocrática-desavergonhada instaurada no
Brasil entre 1964 e 1985. Discutiremos essa norma e a sua repressão
no capítulo 5 desse livro. Antes, porém, é fundamental destacarmos
que vivemos sob uma Ditadura Plutocrática-Militar Dissimulada des-
tinada exclusivamente para insurgentes, negros, pobres e favela-
dos, que de alguma maneira ameaçam a propriedade privada e os
“bons costumes”, enfim, a ordem.32
O clima na cidade para os insurgentes e seus apoiadores pas-
sou a ser o pior possível. Depois de os governantes socioculturais
divulgarem exaustivamente as imagens da quebradeira das vidraças
dos bancos e dos manequins da loja de luxo, com comentários ape-
lativos criminalizantes, forjou-se um “consenso” forçado na socie-
dade de ódio aos black blockers, que cometiam o crime “hediondo”
de quebrar vidraças de bancos. Essa perspectiva dita da maneira
como foi e sem qualquer direito ao contraditório teve por objetivo
ampliar a voz dos que defendiam a criminalização dos movimentos
sociais e deixar absolutamente constrangido aquele que sustentava
a defesa e a ação direta dos manifestantes. Essa é uma técnica an-

32 Desenvolvemos na sua inteireza o argumento em outra pesquisa, ver De Moraes (2018).

254 wallace de moraes


tiga nos estudos de comunicação que atende pelo nome de espiral
do silêncio.33
Amparar os “vândalos” passou a ser digno de insensatez, dian-
te da ofensiva agressiva das ideias fascistizantes. O poder dos oligo-
pólios de comunicação de massa, com seus jornalistas e
comentaristas muito bem pagos para criminalizar os rebeldes e ga-
rantir a ordem, foi restaurado e teve papel crucial na retomada da-
quilo que assistimos a respeito da onda conservadora que passou a
vigorar no país. Assim, como em uma espiral do silêncio, buscou-se
calar os governados que concordavam com as ações dos Black Blo-
cs. Ao mesmo tempo, conseguiram a proeza de fazer com que parte
dos oprimidos defendesse seus opressores.
Portanto, o início da
onda ativista conservadora
agressiva brasileira come-
çou com a criminalização
dos black blockers. Aque-
les que não contestaram as
mentiras/difamações/mani-
pulações dos governantes
socioculturais com relação
aos insurgentes, de maneira
velada, colaboraram para o
crescimento do conserva-
dorismo entre final de 2013
até os dias atuais. A crítica
aos setores revolucionários
foi o início desse processo.
Simultaneamente, os oligo-
pólios de comunicação de
massa, em conluio com os
demais governantes, busca-
33 Ver Noelle-Newmann (2017).

2013 - revolta dos governados 255


ram fazer acreditar que as forças de repressão eram vítimas, e os
manifestantes, “bandidos”. A polícia passou de vilã à mártir. Essa foi
a gênese da proliferação do ativismo conservador agressivo. Com-
preender bem 2013 é condição sine qua non para entender a nossa
sociedade atual.
Prosseguia o encadeamento de extrema valorização das forças
de repressão e consequentemente da fascistização da sociedade.
Nesse processo, a governança plutocrática neoliberal dissimulada
petista também auxiliou o nascimento do mal que mais tarde se
voltaria contra ela mesma, significando o início do seu fim. Isto é,
ao legitimar, reivindicar e ajudar a pôr em prática o processo de cri-
minalização dos black blockers e das forças insurgentes, o petismo
colaborou para valorização da ordem, da legitimação das forças poli-
ciais e consequentemente para o avanço das ideias fascistas/conser-
vadoras que não toleravam o próprio petismo. Foi o início do fim da
hegemonia do PT. Um verdadeiro tiro no pé. Com o distanciamento
das bases populares, os petistas ficaram cada vez mais isolados e
sem apoio social. É sempre bom lembrar que a Lei Antiterrorismo
- Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016 - feita para enquadrar mani-
festantes contra a Copa do Mundo da FIFA, foi posta em prática sob
o governo socialista e revolucionário do PT.
A esquerda oficial estatista junto com os plutocratas neoliberais
dissimulados petistas, como partes da ordem institucional, também
colaboraram para a criminalização dos revolucionários34, sobretudo
ao negar-lhes apoio. Portanto, cooperaram para o processo de fas-
cistizaçao da sociedade brasileira, pois alguns setores não toleram
o governo neoliberal petista, simplesmente por sua fachada de es-
querda - mesmo que enganosa -, tampouco grupos políticos que de-
fendam direitos humanos, mesmo que essa defesa seja nos marcos
do capitalismo e, deste modo, contraditória. A esquerda oficial e o
petismo, então, vaticinaram o seu profundo declínio e colaboraram
para a anátema de tudo que leva o seu nome.
34 Basta ver os textos apresentados no capítulo 2 deste livro.

256 wallace de moraes


22 DE JULHO - CHEGADA DO PAPA

Depois de os oligopólios de comunicação criticarem insistente-


mente as manifestações e o que eles chamam de vandalismo (que-
bra de vidros dos bancos, saques das lojas de luxo e resistência aos
ataques policiais), ocorreram outros dois atos no Largo do Macha-
do, região metropolitana do Rio de Janeiro. Muito em função do ter-
ror que se estabeleceu, as manifestações foram bastante diminutas.
Foram feitas duas chamadas. Uma para concentração às 15h e saída
às 17 horas, por um dos grupos de LGBTQIA+ e pelo PSTU. O outro
ato, chamado pelos revolucionários, foi marcado para o mesmo lu-
gar com concentração às 17:00h e saída às 18h. Assim ocorreu. O
PSTU e grupos de LGBTQIA+ saíram às 17h, mas apenas atravessa-
ram a praça, ficando em frente à Igreja do Largo, cantando palavras
de ordem contra um grupo de jovens católicos que vieram para a
Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e se encontravam no alto das
escadarias da Igreja.
Os setores radicalizados se agruparam e depois seguiram em
marcha para o Palácio Guanabara, sede do governo do Estado do
Rio, onde ocorreria o encontro entre o Papa Francisco, a presidente
Dilma e o governador Cabral. Enquanto os insurgentes caminhavam
para o destino com algumas bandeiras pretas, cercados por um nú-
mero absurdo de poli-
ciais, o PSTU e o
LGBTQIA+ que chega-
ram a marchar com a
esquerda radical uns 20
metros, depois desisti-
ram. Voltaram para a
praça. Os militantes do
PSTU, com suas bandei-
ras vermelhas, tiveram
que ouvir algumas pro-

2013 - revolta dos governados 257


vocações dos setores revolucionários, como: “está com medinho,
pelegada”, “vão fazer campanha eleitoral em lugar mais seguro”
etc., e, logo depois, o partido se dispersou. Entretanto, mais tarde,
o grupo de LGBTQIA+ também seguiu para o Palácio. O MEPR35 che-
gou atrasado, seguiu direto para o local permitido para os manifes-
tantes e se juntou com o Black Bloc, os diversos grupos anarquistas
e os independentes. No auge do movimento, chegou a ter aproxi-
madamente duas mil pessoas.
A noite estava só começando. A quantidade de policiais era
enorme. Com a visita do Papa estava todo o efetivo de pronto em-
prego disponível. Exército, Força Nacional, PM, polícia civil e todos
os seus agentes infiltrados. Suspeitávamos que o número dos radi-
cais estava ampliado em função deles. Alguns foram identificados
na manifestação e postos para fora dela, sob gritos dos presentes. O
mais engraçado é que eles corriam para serem protegidos pela tro-
pa, que os acolhia carinhosamente, confirmando as suspeitas dos
manifestantes. Estava presente também todo o aparato de repres-
são: carro blindado da PM (caveirão), cavalaria, carro que joga jatos
d´água, escudos, capacetes e muitas armas. O confronto começou
às 20:00h em ponto. Parecia, como em outras ocasiões, que já esta-
va tudo marcado. Inclusive, vários vídeos da internet mostram que
aqueles que lançaram coquetel molotov sobre os policiais foram
os próprios policiais infiltrados. Depois de lançar os artefatos, pra-
ticamente inofensivos, eles correram em direção à própria polícia
e foram acolhidos como já havia acontecido em outras ocasiões.
Bombas de efeito moral, balas de borracha, perseguição e prisão
de manifestantes. Naquele dia, não lançaram bombas de gás lacri-
mogênio. Por outro lado, ouvimos barulho de alguns tiros de ver-
dade e depois foi confirmado que três manifestantes foram feridos
por arma de fogo e seguiram para o hospital Souza Aguiar, um em
estado grave. A grande mídia escandalosamente não noticiou os ti-
35 Movimento Estudantil Popular Revolucionário, de orientação maoísta, teve uma forte
atuação nos protestos.

258 wallace de moraes


ros por arma de fogo dados pela polícia contra os manifestantes.
Um dos que tomou os tiros fez o registro da ocorrência na 9ª DP.
Cada vez mais, a estratégia dos governantes penais era amedrontar
os manifestantes, retirando-os da rua pela força, pelo medo, pelo
cansaço. Os governantes socioculturais, por sua vez, praticamente
proibiram a exibição de cenas que confirmassem a violência policial.
Assim, a atuação truculenta continuou a todo vapor.
Um outro vídeo mostra que um dos presos, chamado Bru-
no, perseguido como cachorro pelas ruas das Laranjeiras, depois
de imobilizado, levou choque elétrico no coração, desmaiou e foi
arrastado como animal até o carro da polícia. Uma cena chocante
que a TV teve acesso, mas não mostrou. Só pudemos assistir pe-
las redes sociais. Os midiativistas cumpriram um papel fundamental
na divulgação de outras imagens e vídeos, consequentemente no
contraponto ao que era veiculado pelos governantes socioculturais.
Uma delas foi bastante emblemática ao mostrar como P2 (policiais
infiltrados da Polícia) jogaram coquetéis molotovs contra a própria
polícia para incriminar manifestantes. Vale a pena ver o vídeo.36
Como de costume nessa Revolta do Vinagre, a luta passou para
a delegacia, sob o lema: “ninguém fica pra trás”. Nesse dia foram
nove presos que seguiram para a 9ª DP, dentre eles estavam 3 in-
tegrantes do Mídia Ninja. Este grupo de midiativistas virou ícone
das manifestações e grande referência para a luta, pois transmitiam

36 https://www.youtube.com/watch?v=OC_rns9bSG0

2013 - REVOLTA DOS GOVERNADOS 259


todas as manifestações ao vivo pela internet, sempre de maneira
crítica. Eles foram presos, segundo a polícia, por incitar a violência.
Como muitos acompanhavam o Mídia Ninja, logo após a sua prisão,
mas de mil manifestantes chegaram na delegacia para exigir a liber-
tação deles e de todos os demais presos políticos. Havia inicialmen-
te umas cinquenta pessoas em frente à delegacia, depois chegou
um grande grupo com aproximadamente 800 pessoas e outros
diversos pequenos grupos. Começou então um novo ato no local,
que passou a ser protegido pelo batalhão de choque. Os ânimos
se acirraram, mas logo ficaram mais calmos. Logo após a tropa sair
da frente da delegacia, chegou um pequeno grupo de mascarados
com uma bandeira do Brasil que quebrou uma vidraça da mesma. Os
manifestantes logo rechaçaram aquela ação e muitos deles identifi-
caram-nos como infiltrados e os expulsaram do ato. Alguns dos me-
ninos que realmente participavam da tática Black Bloc reconheceu
dois dos supostos manifestantes como guardas municipais. Aconte-
ceu um bate-boca, mas não chegou a conflito generalizado.
Apenas um dos presos não foi solto na mesma noite, sendo li-
bertado apenas no dia seguinte pela ação dos advogados do IDDH
(Instituto de Defesa dos Direitos Humanos). A atuação das redes de
advogados foi exemplar. Voluntariamente, advogados do IDDH; da
rede Habeas Corpus, criada no Facebook para ajudar nas manifes-
tações, da OAB; do Centro de Assessoria Popular Mariana Criola e
outros profissionais autônomos tiveram um papel importantíssimo
na defesa e na garantia da integridade física dos presos em lugares
tão perigosos, para insurgentes, como em delegacias.
Um dos presos foi acusado de desacato à autoridade. Em en-
trevista, o detido que estava com uma camisa da Nossa Senhora
Aparecida, em plena JMJ (Jornada Mundial da Juventude Católica) ,
afirmou que disse ao policial: “Essa santa não apoia a violência poli-
cial!”. Foi preso. Aparentemente, o soldado não deveria ser católico.
É necessário relatar outro fato digno de nota. Enquanto os ma-
nifestantes faziam um grande ato em frente à delegacia, no interior

260 wallace de moraes


e do alto dela duas pessoas filmaram todos os manifestantes. Assim,
foi praticamente a noite toda, sempre a espera de algum furo para
divulgação. Na era da informática as pessoas possuem seus apare-
lhos de celular com TV e viram que as imagens eram da Rede Globo.
Quando a jornalista desceu, foi logo identificada e denunciada pelos
manifestantes que começaram a cantar palavras de ordem contra
a emissora. A jornalista teve que voltar para dentro da delegacia
correndo. Naquele clima de contestação, uma das advogadas pre-
senciou uma fotógrafa perguntar à jornalista da Globo: “por que a
emissora não divulgava o “sumiço” do Amarildo; ela virou às costas,
entrou em uma sala e bateu a porta.”
Durante toda a Revolta do Vinagre, grupos de hackers atenta-
ram diversas vezes contra os sites da Polícia Militar, do governo, da
prefeitura e principalmente da Rede Globo.37 O site G1, dessa emisso-
ra, foi atacado diversas vezes. Em algumas delas, os hackers coloca-
ram notícias sob o seu ponto de vista em defesa das manifestações.
Outros grupos produziram adesivos com os seguintes dizeres:
“Somos todos vândalos – contra o império do capital”. Era a forma
de contra-atacar as ações da grande mídia e dos governos, que bus-
cavam criminalizar os movimentos sociais mais combativos.

37 Em um dos ataques, os hackers colocaram a foto de Bakunin como comandante da Polí-


cia Militar. Ver: https://oglobo.globo.com/rio/hackers-invadem-site-da-policia-militar-do-
-rio-usam-imagem-de-filosofo-russo-13609473

2013 - REVOLTA DOS GOVERNADOS 261


Curioso é que essas ações não foram coordenadas, mas de
maneira descentralizada cada grupo de afinidade autonomamente
exerceu um papel importante contra o status quo.
Na passeata o dia 22 de julho, sem a presença da esquerda ofi-
cial, como já havia se evidenciado em outras ocasiões, as palavras de
ordem foram todas revolucionárias. Uma nova fez alusão ao último
ato no Leblon e ao assassinato de 13 pessoas na favela da Maré na
semana anterior: “Leblon chorou por vidraça, mas na Maré ninguém
chorou”; outra lembrava o sumiço do Amarildo: “Ei Cabral, cadê o
Amarildo?”; bem como as já tradicionais: “Eleição é farsa, não muda
nada não, o povo organizado vai fazer revolução”; “Rio de Janeiro
sensacional, tomou a ALAERJ com pedra e pau”. Outras músicas
muito entoadas depois dos ataques da polícia era: “Cabral é ditador,
Cabral é ditador, Cabral é ditadoooooor ôôôôô... ôôôô” e “Não
adianta me reprimir, esse governo vai cair! O grupo LGBTQIA+ can-
tou palavras de ordem com um viés de liberdade comportamental,
como: “Eu beijo homem, beijo mulher, tenho direito de beijar quem
eu quiser”. Além do mais, todos cantaram músicas específicas para
o Papa, como: “A verdade é dura, esse Papa apoiou a ditadura” e
outras.

fonte: aduff.org.br - contra cura gay - 2013

262 wallace de moraes


JULHO: PROTAGONISMO DO BLACK BLOC E
ALGUMAS CONQUISTAS

Depois do ápice, no final de junho, houve uma pulverização das


manifestações. Médicos, enfermeiros, caminhoneiros, professores,
petroleiros e algumas outras categorias foram às ruas. Não obstan-
te, o protagonismo esteve com as organizações políticas populares.
Além disso, o Rio de Janeiro foi o lugar privilegiado dessas manifes-
tações, chegando a ter dias com vários atos em lugares diferentes
do Estado. Algo inimaginável antes de junho.
Em julho, dois temas foram centrais da pauta comum do movi-
mento: 1) a morte de Amarildo; 2) o surgimento do Black Bloc cario-
ca. O primeiro virou quase que slogan geral do movimento. Trata-se
do “sumiço” do auxiliar de pedreiro, pai de seis filhos, morador da
favela da Rocinha, Amarildo de Souza. Ele foi detido por policiais
na favela, levado para a UPP da mesma e nunca mais apareceu. As
câmeras da polícia na comunidade, coincidentemente, nesse dia es-
tavam desligadas. A morte de Amarildo significou para esta etapa
da revolta o equivalente ao assassinato do estudante Edson Luís,
em 1968, que desencadeou na passeata dos 100 mil contra a ditadu-

fonte: ellan lustosa, jornal a nova democracia

2013 - revolta dos governados 263


ra. Assassinar pobre, principalmente, negro e homem nas favelas e
periferias do Brasil é algo recorrente. São milhares todos os anos.
Só que durante as manifestações e com protagonismo do povo na
rua, esse acontecimento que seria naturalizado pelos governantes
socioculturais e pelos governantes políticos, não passou impune. Os
governados cobraram. Um lema dizia o seguinte: “Amarildo não foi
o primeiro, mas esperamos que seja o último a ser assassinado im-
punemente pela polícia nas favelas e comunidades pobres do Bra-
sil”. Uma das perguntas mais comum no Facebook foi: “Cabral, cadê
o Amarildo?”
Os atos públicos continuaram e, dentre os diversos grupos e
indivíduos que dele participaram, chamou atenção o Black Bloc.
Composto majoritariamente por jovens, todos vestidos de negro e
mascarados, assumiram a linha de frente das manifestações. No dia
20 de junho, formou-se pela primeira vez um grande Black Bloc, mas
em meio a 1,5 milhão de pessoas, ele passou imperceptível, embo-
ra tenham sustentado a resistência à polícia com muita disposição.
Nesse dia, milhares de populares também ampararam a luta contra
os soldados dos governantes penais e até com mais volúpia que os
black blockers. No dia 30 de junho (ato da final da Copa das Confe-
derações no Maracanã), o bloco negro se consolidaria, mas ainda
em número não tão expressivo quanto chegaria a ter em setembro/
outubro. No dia 11 de julho, desde o ato das centrais, eles já estavam
com um número crescente e preparados com escudos e lixeiras para
abafar as bombas de gás lacrimogênio e fazer a proteção dos mani-
festantes. Com isso, se transformaram num símbolo de 2013.
Dupuis-Déri (2014), um estudioso da tática Black Bloc no mun-
do, assevera o seguinte:

“Uma tática como a dos Black Blocs é uma forma de se comportar


nos protestos de rua. Ela pode ajudar a dar voz às pessoas que pro-
testam na rua, oferecendo-lhes a oportunidade de expressar uma
crítica radical ao sistema, ou fortalecendo sua capacidade de resis-

264 wallace de moraes


tir aos ataques da polícia contra a população. (...) De modo geral,
os homens e mulheres que participam de Black Blocs atribuem um
sentido político claro a suas ações diretas. Sua tática, quando en-
volve o uso de força, lhes possibilita mostrar ao público que nem
a propriedade nem o Estado, representado pela polícia, é sagrado,
assim como indicar que alguns estão preparados para se colocar no
caminho do perigo a fim de expressar sua fúria contra o capitalismo
ou o Estado, ou sua solidariedade para com os menos favorecidos
pelo sistema.”

Assim, organizaram e assumiram o protagonismo no ato na


casa do governador no dia 17 de julho (dia da queima dos manequins
da Toulon); no dia 22, com a chegada do Papa, e no ato do dia 26.
Depois disso, partiram para as ocupações: acamparam no Le-
blon, perto da residência de Sérgio Cabral, o que ficou conhecido
como “Ocupa Cabral”. Saíram de lá no dia 31 de julho para um ato
bastante emblemático: ocuparam a Câmara dos Vereadores do Rio,
na Cinelândia, Centro da cidade.38 Foram expulsos pela PM de forma
bastante truculenta. Nesse dia, ainda, entregaram uma petição ao
Ministério Público do Rio, solicitando o impeachment do governa-
dor, dentre outras reivindicações. É isso mesmo: o Black Bloc foi o
primeiro grupo político a exigir a saída de Sérgio Cabral da gover-
nança política, preso desde 2016 por corrupção. Com essa ocupa-
ção, o Black Bloc dava a linha do que seria o mês de agosto. Nesse
momento, a esquerda oficial não estava coesa. A ampla maioria da
sua direção não apoiava atos em conjunto com os anarquistas e re-
volucionários em geral, mas uma pequena minoria de seus militan-
tes colaborou com as ocupações, a despeito da orientação de seus
“capas” ou “comandos”.
No dia seguinte, 01 de agosto, mais um protesto. Organizado
pelos moradores da Rocinha. Eles seguiram em direção à casa do
governador no Leblon. Lá se juntaram ao Black Bloc, que já estava

38 Depois, parte dos manifestantes voltou a organizar o “Ocupa Cabral” até outubro de 2013.

2013 - revolta dos governados 265


acampado nas intermediações e com outros militantes de diversos
coletivos do Rio.
Muito antes de a Odebrecht ser denunciada e ter tido a com-
provação de vários atos ilícitos com burocracias estatais e seus go-
vernantes, o FOB já havia feito as denúncias. Vejamos no panfleto
abaixo escrito em 5 de março de 2014.39

39 Fonte: http://oposicaopelabase.blogspot.com/search?updated-max=2014-03-07T05:56:0-
0-08:00&max-results=15 acessado em 22 de agosto de 2018.

266 wallace de moraes


A solidariedade também se mostrou presente. Grupos Black
Bloc de outros estados brasileiros, principalmente, de São Paulo,
Belo Horizonte e Porto Alegre, organizaram atos contra o governa-
dor Sérgio Cabral e o sumiço de Amarildo.
No Brasil, os governantes socioculturais e seus oligopólios de
comunicação de massa insistiram em taxar os black blockers de vân-
dalos. Nesse sentido, é muito esclarecedor ler o relato de Depuis-
-Déri (2014:20) sobre a cobertura da mídia no âmbito internacional
sobre os Black Blocs:

“Quando um Black Bloc entra em ação, a resposta da mídia costuma


seguir um padrão típico. Na mesma tarde ou na manhã seguinte,
os editores, colunistas e repórteres falam mal dos arruaceiros dos
Black Blocs, chamando-os de ‘vândalos’. No dia seguinte, porém, o
tom costuma ser mais neutro. Os leitores são informados de que os
anarquistas estão por trás de táticas envolvendo armas como co-
quetéis molotov, assim como o uso de escudos e capacetes para
se defender. Esses artigos às vezes fazem referência a um grande
Black Bloc do passado. Em seguida, citam alguns acadêmicos, assim
como representantes da polícia e porta-vozes de movimentos so-
ciais institucionalizados, que se desassociam dos ‘vândalos’.”

É importante ressaltar também a luta do grupo LGBTQIA+ aju-


dando a organizar, com apoio de outros coletivos, a marcha das
vadias, “beijaços” e “peladaços” durante todo o mês de julho, em
plena visita do Papa. Uma verdadeira insurgência cultural e sexual.
Como resultados dessas lutas, o governador desistiu de demo-
lir o Parque aquático Julio de Lamare e o estádio Célio de Barros,
todos no entorno do Maracanã. Até o estádio do Maracanã correu
o risco de voltar para a administração do Estado. Embora isso não
tenha acontecido, o consórcio privado que controlava o estádio em
acordo com os clubes diminuiu os preços dos ingressos nos piores
setores, atrás do gol, e o torcedor voltou a torcer pelo seu time por

2013 - revolta dos governados 267


preços minimamente acessíveis, embora ainda caros para grande
parte dos governados. Esta, aliás, a principal demanda da Frente Na-
cional dos Torcedores (FNT), que animaram as passeatas com suas
baterias e palavras de ordem advindas e adaptadas das partidas de
futebol.
Outra notícia importante diz respeito à criação de um proto-
colo para uso de helicópteros pelo governo. Depois das denúncias
de que o governador e sua família, inclusive o cachorro, usavam ae-
ronaves para passeios nos finais de semana e até durante a sema-
na, totalizando gastos exorbitantes para o erário público, o Estado
criou um protocolo para seu uso. Os governados aprenderam que
é com luta que se conquista demandas e se enquadra governantes.

AGOSTO E AS OCUPAÇÕES DOS SÍMBOLOS DO


ESTADO

Em agosto, as manifestações deixaram de ter o caráter de gran-


de movimento de massa, mas as forças políticas que a construíram
estavam a todo vapor. Desde o final de julho, vinha se costurando
formalmente aquilo que já se via na prática: uma aliança entre os
diversos setores revolucionários. A primeira tentativa foi o Fórum
de Mobilização pela Base, que agregou muitas pessoas no seu início,
mas depois perdeu força. A segunda foi a criação da Frente Inde-
pendente Popular (FIP), que englobava todos os setores radicaliza-
dos da linha de frente das manifestações. Decerto que os partidos
políticos eleitorais estavam excluídos. A ridicularização dos partidos
era tamanha que o chamado feito por um militante organizador da
Frente na plenária no IFCS foi mais ou menos assim: “estamos aqui
convocando a todos os setores de luta, que têm estado na linha de
frente dos protestos para criar uma frente... Todos estão convida-
dos, menos os partidos políticos eleitoreiros, mais preocupados em
eleger seus candidatos do que com a luta do povo”. Ele foi bastante

268 wallace de moraes


aplaudido. Nesse mesmo dia foi criada a Assembleia do Largo (de
São Francisco) também em resposta a burocratização do movimen-
to e a tentativa de aparelhamento realizada pelas direções dos parti-
dos políticos da esquerda oficial. Essa também praticamente sem os
partidos políticos e com uma perspectiva horizontal. A tendência de
muitos grupos foi de se separar dos partidos e se distanciar de sua
lógica aparelhista, hierárquica e eleitoreira.40
A primeira reunião dessa FIP na UERJ contou com mais de 200
pessoas e decidiu participar do ato no dia 08 de agosto junto com o
restante do Fórum de Lutas, mas com um bloco unido e coeso e com
a bateria própria. Decidiram por fazer uma faixa com os seguintes
dizeres: “Fora Cabral e a farsa eleitoral”.
Também decidiram não participar do ato das centrais sindicais,
chamado para o dia 30 de agosto. Tudo isso em função da postura
que o sindicalismo oficial vinha assumindo nas últimas décadas e,
principalmente, a postura que seus sindicalistas sustentaram duran-
te a sua única manifestação durante todo a Revolta dos Governa-
dos, entregando manifestantes para a polícia.
A FIP era composta por diversos coletivos: MEPR (Movimento
Estudantil Popular e Revolucionário), OATL (Organização Anarquis-
ta Terra e Liberdade), FIST (Frente Internacionalista Revolucionária
dos Sem-teto), RECC (Rede Estudantil Classista e Combativa), ORC
(Oposição de Resistência Classista), Frente Nacional dos Torcedo-
res, Black Bloc, Anonymous e outros indivíduos independentes.

08 DE AGOSTO – VISITA AO PRÉDIO DE EIKE


BATISTA

Na primeira semana de agosto, o comandante da Polícia Militar


foi exonerado do cargo. Essa foi uma resposta à forte pressão dos

40 Outras assembleias foram criadas em diferentes bairros. Era o momento da efervescência


ativista.

2013 - revolta dos governados 269


militantes contra as ações policiais, amplamente divulgadas pelas
redes sociais, que mostraram, depois de várias filmagens, policiais
infiltrados jogando coquetéis molotovs sobre os próprios PMs, para
incriminar manifestantes41; associado a isso, ainda figurou a gritante
falta de solução para o desaparecimento do ajudante de pedreiro,
Amarildo de Souza, sem qualquer punição para os responsáveis. En-
fim, a pressão só aumentou sobre o governador e ele encontrou um
bode expiatório. Em resumo, um novo coronel assumiu o comando
da PM e uma nova postura foi designada para atuação nos atos. Sen-
satamente, perceberam que quanto mais violência era empregada
pela PM, mais os manifestantes se revoltavam, reagiam e quebra-
vam vidraças dos bancos.
No ato do dia 08 de agosto estavam presentes a FIP, o Black
Bloc, independentes, o PSTU e militantes do PSOL, sem caracteriza-
ção explícita. A concentração foi na Candelária e a marcha seria até
a ALERJ. Assim, seguimos todos. O número de manifestantes foi no
seu início bastante reduzido. Na concentração, na Candelária, devia
ter umas 500 pessoas, mas o número foi crescendo com o passar
do tempo. Assim, a nova estratégia da PM foi passear no meio dos
manifestantes e abordar os “suspeitos”. Aqueles que estavam com
mochilas e/ou mascarados eram os alvos principais. Praticamente
todos os de preto e mascarados foram revistados e nada que os in-
criminassem foi encontrado com nenhum. Os policiais estavam com
a política de boa vizinhança, apesar da revista. Eles estavam solíci-
tos, queriam até conversar. Chegaram a argumentar que os black
blockers viraram heróis nacionais. Muito diferente do início das ma-
nifestações quando faziam provocações baratas. Mas décadas de
autoritarismos dos homens de farda não eram esquecidas de uma
hora para outra e os manifestantes viam aquela postura com muitas
reservas, de modo algum conseguindo estabelecer uma boa relação
com a PM.

41 Esse foi um dos mais emblemáticos: https://www.youtube.com/watch?v=OC_rns9bSG0

270 wallace de moraes


A passeata seguiu até o seu destino (ALERJ). O PSTU estava
com um carro de som e entoava suas palavras de ordem. A FIP es-
tava com uma bateria própria da frente nacional dos torcedores e
entoavam palavras de ordem mais radicalizadas. Assim foi. Quan-
do chegou na ALERJ, os militantes logo ocuparam as escadarias e
o PSTU com seus militantes começaram a fazer seus discursos elei-
torais. Segundo o PSTU e o PSOL, alguns professores estavam no
interior da ALERJ para pressionar pela greve dos professores. A FIP
tinha alguns militantes que haviam conseguido ocupar a Câmara dos
Vereadores. Assim, fizeram uma rápida assembleia e decidiram ru-
mar para a Cinelândia para dar apoio aos companheiros. Foi feito um
chamado ao PSTU para ir para a Cinelândia, mas o mesmo se negou.
Então a FIP e o Black Bloc resolveram seguir sozinhos. Quando saí-
ram para a Câmara, rapidamente esvaziaram as escadarias da ALERJ
e o PSTU foi obrigado a ir de carona.
No caminho, a bateria marcava e o pessoal gritava: “Deixa
passar... a revolta popular...”. Na Avenida Rio Branco todos cor-
reram para a Câmara a fim de chegar antes do que a polícia. Foi
como numa bela cena de filme, muito bonita, e sob os gritos de
UhUhUhUhUhUhUh... (característicos do Black Bloc). O bloco negro
já era maior que o PSTU e Cia.
Na Câmara, não conseguiram fazer muita coisa. Então os ma-
nifestantes da FIP e do Black Bloc decidiram “visitar” um prédio do
Eike Batista na Rua do Passeio e presenteá-lo com algumas pedras,
enquanto isso o PSTU com seu carro de som ficou fazendo campa-
nha eleitoral. A polícia foi atrás e apenas um banco teve seu vidro
alvejado, enquanto as vidraças do prédio do Eike Batista, apesar das
pedras, permaneceram intactas. O material era de muito boa quali-
dade e resistente. Depois de a polícia tentar prender alguns mani-
festantes e sofrer pressão para soltá-los, os grupos revolucionários
voltaram para a Cinelândia. Lá estava o PSTU com seu carrinho de
som. Parecia até programa de auditório. A direção cantava palavras
de ordem nos microfones e a base repetia. Hilário! Os setores insur-

2013 - revolta dos governados 271


gentes não estavam gostando nada daquilo. Mas quando o “anima-
dor cultural” anunciou com bastante fervor o nome de Ciro Garcia
para falar, foram mais de dois minutos de vaias ininterruptas! O eter-
no candidato do partido não conseguiu falar e teve que esperar as
vaias pararem. Então começou seu discurso. A FIP e o Black Bloc
cantavam: “Sem hipocrisia, o pelego trai a classe todo dia!”; “Não
me leve a mal, estou cansado de campanha eleitoral”.
Enquanto o PSTU tentava angariar votos, os insurgentes bus-
caram entrar na Câmara e tencionaram com a PM, que enviou o Ba-
talhão de Choque. O ato terminou com um pequeno confronto nas
intermediações da Cinelândia.

AGOSTO – O MÊS DAS OCUPAÇÕES:


OCUPAÇÃO DAS CÂMARAS DOS VEREADORES DO
RIO E DE NITERÓI E DO PALÁCIO GUANABARA

Vejamos o comentário de Castells (2013) sobre as ocupações:

“Frequentemente, prédios são ocupados, seja por seu simbolismo,


seja para afirmar o direito de uso público de propriedades ociosas,
especulativas. Ao assumir e ocupar o espaço urbano, os cidadãos
reivindicam sua própria cidade, uma cidade da qual foram expulsos
pela especulação imobiliária e pela burocracia municipal. Alguns mo-
vimentos sociais historicamente importantes, como a Comuna de
Paris de 1871 ou as greves de Glasgow em 1915 (na origem da política
de habitação pública na Grã-Bretanha), começaram como boicotes
aos aluguéis contra a especulação na área da moradia. O controle do
espaço simboliza o controle da vida das pessoas.”

A Câmara dos vereadores do Rio de Janeiro ficou ocupada en-


tre os dias 09 e 21 de agosto de 2013, quando a Justiça determinou
a reintegração de posse. Os manifestantes protestaram contra os

272 wallace de moraes


membros da CPI dos transportes, pois três, dos quatro participan-
tes, além de pertencer à base do governo, não votaram pela abertu-
ra da CPI. Um absurdo.

fonte: ellan lustosa, jornal a nova democracia

No município de Niterói/RJ. manifestantes ocuparam a Câmara


de Vereadores da cidade entre os dias 08 e 24 de agosto. Eles rei-
vindicavam o fim das concessões das barcas e da ponte Rio-Niterói
para a iniciativa privada. Também desejavam reverter a proibição do
trabalho de vendedores ambulantes nas ruas da cidade, dentre ou-
tras demandas.
No mesmo momento em que as Câmaras de Rio e Niterói es-
tavam ocupadas, no dia 12 de agosto, à noite, o Palácio Guanabara,
sede do governo estadual, também foi ocupado por professores
em greve. Um grupo de docentes radicalizados, a despeito da pos-
tura da direção do SEPE, declarou que não sairia mais do Palácio,
enquanto as reivindicações não fossem aceitas. Alguns docentes
contaram que:

“logo após a ocupação, o Black Bloc foi chamado para apoiar os


manifestantes e chegaram ao Palácio no fim da noite. A tropa de

2013 - revolta dos governados 273


choque dispersou a multidão com truculência: bombas de gás lacri-
mogênio, balas de borracha e spray de pimenta. Resultado: feridos,
presos e... bancos quebrados. Enquanto os ocupantes (professores)
eram expulsos com extrema violência, a direção do sindicato perma-
neceu atrás dos policiais, apoiando o episódio.”

O governo, mais uma vez, mostrou todo seu autoritarismo e a


direção do sindicato dos professores do estado mostrou todo seu
“peleguismo”. Um absurdo sem tamanho. Lamentável ver direções
sindicais dos partidos eleitoreiros assistirem a polícia bater nos mani-
festantes sem reclamar. Lamentável ver no ato das centrais sindicais
acontecer a mesma situação. Enfim, esse episódio teria consequên-
cias sérias para o movimento dos professores.
A burocracia sindical do SEPE, composta pela união de vários
militantes de partidos da esquerda oficial e da governança plutocrá-
tica petista, perdeu o controle sobre o sindicato e ficou desmoraliza-
da com suas ações. O prefeito Eduardo Paes propôs um acordo com
os professores, a direção sindical assinou o acordo, que não atendia
aos anseios da categoria. Ao levar para a assembleia a proposta de
aceitar o acordo, a base rejeitou com larga maioria. Esse mesmo fe-
nômeno aconteceu mais duas vezes, isto é, acordo do sindicato com
o prefeito e rejeição da base do acordo assinado. Não só a defla-
gração da greve, como também a rejeição dos acordos rebaixados,
foram resultados de papéis importantíssimo dos grupos anarquis-
tas, autonomistas, marxistas revolucionários e independentes dos
professores. Enfim, os docentes raciocinam e não se deixaram levar
como massa de manobra da direção sindical. Assim, os burocratas
ficaram bastante arranhados e com raiva profunda dos setores re-
volucionários.
Nesse momento faz-se necessário recordar alguns fatos histó-
ricos. A luta sindical do passado era baseada na total solidariedade
de classe. É importante lembrar que durante a década de 1910 no
Brasil, por exemplo, enquanto os padeiros faziam greve, os sapa-

274 wallace de moraes


teiros anarquistas ficavam responsáveis por alimentar e cuidar de
um filho daqueles. Tudo isso sem imposto sindical. Hoje, as direções
estão mais preocupadas em eleger seus candidatos e se apropriar
dos impostos para bancar campanhas eleitorais do que impulsionar
o enfrentamento. A luta, ah... não importa. Triste decadência do sin-
dicalismo eleitoreiro.
Naquele mesmo dia, o site do diretório nacional do PMDB foi
invadido pelos “Anonymous Brasil” que protestaram contra o desa-
parecimento de Amarildo de Souza, cobrando explicações ao gover-
nador Sérgio Cabral. A luta seguiu em todas as frentes.
Ainda na segunda semana de agosto, ocorreram manifestações
dos professores do município do Rio de Janeiro com milhares de-
les marchando por Botafogo até a sede da prefeitura. Havia muito
tempo em que esses profissionais não faziam qualquer manifesta-
ção. Foi um ato de peso. Alguns manifestantes, mais radicalizados,
queriam acampar em frente à prefeitura até serem atendidos pelo
prefeito. A direção sindical trabalhou para contê-los e tratou de dis-
persar a multidão.
No dia 16 de agosto, ocorreu outro ato dos professores do esta-
do em solidariedade aos expulsos do Palácio do Governo. Em todos
os dias dessa semana, o Black Bloc esteve nas ruas e os oligopólios
de comunicação de massa trataram de criticar as manifestações,
apontando hipóteses para criminalizá-los, tendo os grupos radicais
como principais alvos. A estratégia foi amiúde a mesma: colocar a
PM como vítima de todo o processo.
A grande característica dessa revolta, desde o seu início, foi:
depois de os manifestantes apanharem da polícia, reagiam que-
brando vidros e portas das agências bancárias. Aliás, é apropriado
informar que nessa semana tinha sido divulgado o balanço do Ban-
co do Brasil, evidenciando o maior lucro de sua história. As institui-
ções financeiras simplesmente trabalham com o dinheiro alheio e
são protegidos pelas governanças políticas que lhes garantem taxas
de juros altíssimas e uma legislação que lhe é amplamente favorá-

2013 - revolta dos governados 275


vel. Por conseguinte, o número de inadimplentes era enorme, cada
vez maior, e o endividamento das pessoas com relação aos bancos
era crescente em função dos juros absolutamente exorbitantes co-
brados dos governados. Ao mesmo tempo, o país estava em crise e
com salários achatados pela crescente inflação. Talvez esses dados
ajudem a entender a fúria contra as instituições bancárias proferidas
pelos Black Blocs.42
No dia 19 de agosto, mais um ato dos setores radicais. Estavam
presentes o Black Bloc e a FIP (Frente Independente Popular). Não
tinha nenhuma bandeira de partido político e aparentava que seus
militantes não estavam presentes. O ato foi pequeno. Havia umas
300 pessoas, quase o mesmo número de policiais.
Esse ato teve uma característica nova. Na semana anterior a
polícia fez intensas revistas em praticamente todos os manifestan-
tes de preto e mascarados, todavia nessa manifestação as pesso-
as formaram um bloco coeso circundado por um cordão humano
e com escudos improvisados. Isto é, pelos quatro lados do bloco,
estavam manifestantes com braços entrelaçados, impedindo assim
a incursão da polícia. O ato saiu da Cinelândia e seguiria até o Palácio
Guanabara, mas o Black Bloc resolveu mudar o trajeto e rumou para
a ALERJ. O grande bloco negro foi acompanhado por grande contin-
gente policial, por paramédicos, advogados voluntários e dezenas
de fotógrafos e cinegrafistas amadores e muito provavelmente dos
setores de inteligência das forças de repressão. Quando o ato esta-
va na Avenida Pres. Antônio Carlos, os manifestantes começaram
a correr rumo às escadarias da ALERJ e lá fizeram uma festa relâm-
pago, tremulando as bandeiras pretas dos anarquistas e algumas
vermelhas (do MEPR). As escadarias da ALERJ têm uma grande re-
presentação simbólica para os revolucionários desde a sua tomada
em junho.

42 Para ver o lucro dos bancos: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/sobra-de-caixa-dos-


-bancos-tera-remuneracao-extra/

276 wallace de moraes


Durou apenas aproximadamente cinco minutos o congraça-
mento. A polícia resolveu retirá-los à força, aplicando a arma de
choque. Num primeiro momento tentou-se resistir, mas a despro-
porcionalidade de força e armamento era muito grande. Então, to-
dos fugiram correndo em direção à Avenida Rio Branco. A polícia
foi atrás e no trajeto vidraças de três bancos foram quebradas. Um
jovem manifestante foi preso e levado para a delegacia. O grupo se
reagrupou na Cinelândia e depois rumou para a 5ª DP, para pedir a
soltura do detido. Essa solidariedade entre os manifestantes, quan-
do um era preso, foi algo digno de exemplo.
Nas escadarias da Câmara Municipal ocupada, ocorreu outro
ato-festa com uma boa roda de samba. Depois de tanta tensão, os
manifestantes cantaram sambas clássicos e algumas letras feitas
para as manifestações. Foi um bonito sarau que durou até o fim da
noite.
Essa Revolta dos Governados encorajou diversas categorias
trabalhistas a reivindicar direitos. O país saiu da apatia em que vivia
desde a vitória de Lula em 2003, quando as esperanças eleitorais
sucumbiram à disposição para a ação direta. Em outras palavras, a
vitória eleitoral do petismo levou à inércia dos trabalhadores e seus
sindicatos que ficaram esperando as transformações prometidas
pelo alto; a revolta popular, por outro lado, mostrou a desesperan-
ça de mudanças profundas vindas de cima, levando os governados à
luta por meio da ação direta, destacando-se as greves. Não obstan-
te, no seio do movimento social ocorreu a luta intensa entre letargia
que esperava pelas ações dos messias e a luta direta.
No dia 20 de agosto em Brasília, diversas categorias ocuparam
o salão verde do Congresso Nacional para reivindicar direitos: enfer-
meiros, médicos, policiais, bombeiros, psicólogos e outras catego-
rias. As pautas se casavam ou até mesmo eram conflitantes, como
no caso de médicos e outros profissionais da saúde, quando esses
queriam também poder prescrever medicamentos e diagnosticar
doenças.

2013 - revolta dos governados 277


O SEPE, dirigido por militantes do PSOL, PSTU e PT, negociou
com o prefeito Eduardo Paes o fim da greve, justamente no dia em
que mais de 10 mil professores estavam nas ruas e com enorme
adesão à greve. Depois de um ato com milhares de manifestantes
no Centro do Rio, os sindicalistas tiveram a coragem de assinar um
acordo com o prefeito. Eles defenderam tal acordo na assembleia e
foram atropelados pela base que o rejeitou e manteve a greve.

30 DE AGOSTO – DIFERENTES MANIFESTAÇÕES E


PERSPECTIVAS

O ato do dia 30 de agosto foi construído por mais de um mês


pelas centrais sindicais e seus partidos políticos. No Rio de Janeiro,
aconteceram nesse dia três manifestações. Uma na Central do Bra-
sil, com as centrais sindicais plutocráticas dissimuladas (CUT, CTB,
FORÇA SINDICAL, CGT e outras menores) e seus partidos (PT, PC do
B, PDT, PMDB). Este ato foi muito pequeno, contando com apenas
aproximadamente 300 pessoas. Outra manifestação foi organiza-
da pela CSP-CONLUTAS e seus partidos políticos PSTU e PSOL. Eles
marcharam da Candelária até a ALERJ, contando com aproximada-
mente 900 pessoas. O terceiro ato foi organizado pelo Black Bloc,
que marchou da Cinelândia e seguiu pelo Largo da Carioca, pegou
a contra-mão da Avenida Rio Branco, fechou a Avenida Presidente
Vargas, foi até a Prefeitura no final da Avenida; depois voltou e se-
guiu para a Lapa. O Black Bloc arrastou um enorme contingente de
policiais, jornalistas e curiosos. Todos esperavam a ação dos vestidos
de negro que carregavam uma grande bandeira negra com o símbo-
lo do anarquismo. Aproximadamente devia ter umas 300 pessoas.
Cabe lembrar que a FIP decidiu no mesmo dia não fazer nenhum
ato. As organizações acharam melhor não enfrentar a PM novamen-
te, em função das grandes baixas que tiveram no ato do dia 27 de

278 wallace de moraes


agosto, quando muitos de seus integrantes foram machucados pela
truculência da PM em frente ao Palácio Guanabara.
O mês de agosto terminou com a consolidação de um setor re-
volucionário que deixou perplexas a esquerda e a direita institucio-
nais com as suas diversas ocupações e ações de enfrentamento com
as forças policiais.

SETEMBRO: A REAÇÃO DO ESTADO E DO CAPITAL

Os primeiros dias de setembro começaram com reivindicações


de populares, aparentemente sem organização prévia. Nos dias 2
e 3 do mês, diversas pessoas reclamaram dos atrasos dos trens da
supervia. Nos dias 03, 12 e 24 alguns vagões foram queimados pelos
usuários revoltados com os constantes descasos.43 Nesse mesmo
dia, em outro ponto da cidade, os usuários do BRT na zona oeste
quebraram alguns ônibus e protestaram contra os constantes atra-
sos e das más condições de transporte público.44 Os ônibus andavam
constantemente lotados e atrasados. Essas ações populares podem
ser encaradas como reflexo das manifestações deste inverno quen-
te de 2013 nas ruas do Brasil. A população aprendeu que devia recla-
mar e reivindicar por mais e melhores direitos e condições de vida.
No mês de setembro, a ideia de ocupações se espalhou territo-
rialmente para o interior do estado, como em Rio das Ostras, onde
aproximadamente 30 manifestantes ocuparam a Câmara municipal
da cidade, no dia 03. No dia 04 de setembro, os professores do esta-
do ocuparam a Secretaria de Educação. Componentes do Black Bloc
chegaram para ajudar, mas foram expulsos pela direção do sindica-

43 Seguem reportagens sobre: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/09/passagei-


ros-quebram-trem-com-falha-mecanica-e-depredam-estacao-no-rio.html;http://g1.globo.
com/rio-de-janeiro/noticia/2013/09/passageiros-colocam-fogo-em-trem-da-supervia-diz-
-policia.html
44 Ver: http://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=20102013-
0904

2013 - revolta dos governados 279


to. Isso evidencia o ódio da esquerda oficial aos homens de preto,
negando inclusive apoio.
Na noite do dia 03 de setembro, o governo conseguiu uma li-
minar para poder prender todos os manifestantes que estivessem
mascarados. Então, já procederam, no mesmo dia, 4 detenções.
No dia 04 de setembro, vários militantes do Black Bloc foram
detidos. Alguns foram pegos na ocupação da Câmara. Outros, em
suas casas. Todos os administradores da página do movimento no
Facebook foram presos sob a acusação de formação de quadrilha.
Ao mesmo tempo, o governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo
Paes continuaram circulando na cidade livremente.
Naquele momento, o governo Cabral não só passava a ter uma
enorme rejeição junto à população, mas também tinha presos polí-
ticos, que foram levados para o complexo presidiário de Bangu. A
grande mídia já vinha preparando a opinião pública para aceitar essa
atitude há muito tempo. Nos jornais, nas rádios e nas televisões, de-
fendia-se abertamente uma ação drástica contra os componentes
do Black Bloc, normalmente chamados de vândalos.
A história se repetiu sem nenhuma criatividade. Na década de
1960, mais precisamente, em 1963, os principais donos de jornais (O
Globo, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e outros), juntos
com empresários, intelectuais e militares, com apoio da CIA (Agên-
cia de Inteligência Americana) criaram o IPES (Instituto de Pesquisa
e Estudos Sociais). Seu principal objetivo, segundo Rene Dreiffus
(1981), era preparar a opinião pública para aceitar e até reivindicar o
golpe militar e o governo subsequente. De acordo com essa pesqui-
sa, as notícias foram preparadas para se criar um consenso.
Em 2013, exatamente 50 anos depois, os governantes sociocul-
turais, trabalharam para criar um novo consenso contra ações políti-
cas rebeldes. Os alvos não foram mais os comunistas, pois, inclusive,
muitos estavam no governo, mas contra o Black Bloc, os anarquis-
tas, os vândalos, os mascarados, os rebeldes e insurgentes. Todos
sabiam que isso aconteceria, pois vivemos em um estado policial,

280 wallace de moraes


por isso o chamamos de Ditadura Plutocrática-Militar Dissimulada.
Era exatamente para evitar a prisão que os manifestantes andavam
mascarados e procuravam não se identificar. Todavia, a tecnologia
atual, junto com os infiltrados das forças de repressão no movimen-
to, além da denúncia de sindicalistas petistas e da esquerda oficial,
ajudou a identificar seus componentes. Resultado: presos políticos
em 2013. Um ano antes da Copa do Mundo e três anos antes das
Olimpíadas no Brasil. Enfim, os grandes eventos que impulsionaram
as remoções de pessoas das favelas e periferias, juntamente com os
gastos exorbitantes com estádios de futebol, em meio à ausência de
investimento em saúde e educação, foram as justificativas esdrúxu-
las para as prisões políticas no Brasil.
Todos esses aspectos visavam a manutenção do capitalismo
com plutocracias representativas sob o comando das respectivas
governanças institucionais (políticas, econômicas, jurídica, penal
e sociocultural). Quando existe uma revolta popular que ameace
o poder estabelecido, impondo prejuízos ao grande capital e con-
testando as governanças, ela é abafada pelo autoritarismo e pela
manipulação das notícias. Foi exatamente sob essa díade que tra-
balharam para acabar com os protestos, criminalizando seus atores
mais influentes, buscando convencer os demais governados sobre a
necessidade dessas ações. Os governantes socioculturais, com seus
intelectuais orgânicos, buscaram forjar o consenso contra os ma-
nifestantes mais impenitentes, e os governantes jurídicos e penais
(Justiça e polícia) efetuaram as prisões dando um golpe por trás em
todo o movimento. O sinal foi dado: “não vá para a rua reivindicar,
se não poderá ser preso”, sob a alegação de “formação de quadri-
lha.” A justificativa utilizada foi a mesma da Ditadura Militar-Pluto-
crática Desavergonhada, entre 1964 e 1985. Como mostramos em
outra pesquisa: “a ditadura é seletiva para os que ameaçam o poder
e fogem do script que os governantes querem que exerçam, repre-
sentando alguma ameaça à ordem. Nessa situação, vivemos sob
comando de um Estado, que impõe uma ditadura sobre as ovelhas

2013 - revolta dos governados 281


desgarradas”.45 Para os que obedecem, não parece que existe dita-
dura. Ela é posta em prática sempre que o poder está sob ameaça,
e em 2013/14 destinou-se aos manifestantes mais radicalizados das
ruas.
A criminalização do movimento não foi realizada exatamen-
te em junho, pois, primeiro, era difícil identificar os insurgentes no
meio de mais de um milhão de pessoas nas ruas: depois, as manifes-
tações contavam com amplo apoio dos governados. Foi necessário,
portanto, um trabalho diário de convencimento da necessidade de
se prender os “vândalos”, aqueles que quebraram vidraças de ban-
cos, manequins de lojas de luxo, fecharam ruas, exigiram o impeach-
ment e a prisão do governador, do prefeito, e defenderam direitos
para os governados. Nunca é demais lembrar: se hoje Sérgio Cabral
está preso, isso se deve à luta desses vândalos nas ruas, que tiveram
que fechar avenidas para chamar a atenção para as atrocidades e
corrupção enlouquecidamente desenfreada no interior do estado.
Em resumo, esses fatos ajudam a corroborar que vivemos sob
uma ditadura, exclusiva para negros, pobres, favelados e jovens que
contestem os poderes estabelecidos, sob o manto de democracia.
A maioria das prisões realizadas nas décadas de 1960/70 foram
justificadas pelo porte de arma, pois muitos brasileiros foram para
a luta armada. Em 2013/14, as prisões foram muito mais arbitrárias,
pois esses garotos nunca portaram armas, mas alegaram que eles se
constituíam como “quadrilhas armadas”, por portarem arma branca
em casa, como facas, especialmente, na cozinha. Livros anarquistas
foram apreendidos. Inclusive, estavam nos arquivos da polícia a pro-
cura do líder: Bakunin. Hilário.

45 Para mais detalhes, ver De Moraes (2018).

282 wallace de moraes


SETE DE SETEMBRO E A OUSADIA DE
INTERROMPER O DESFILE MILITAR

O setembro de terror brasileiro começou logo no dia 3, com um


projeto de lei estadual que proibia o uso de máscaras nos protes-
tos – iniciativa que se multiplicou em outros estados brasileiros. Os
autores da Lei fluminense foram os deputados Domingos Brazão46
e Paulo Melo47, que depois viriam a ser presos por corrupção, mos-
trando o quanto os protestos os faziam mal.
No mesmo dia em que 5 componentes do Black Bloc foram pre-
sos pela polícia, no dia 04 de setembro, a página do grupo no Face-
book foi curtida por mais de 10 mil pessoas. O apoio não recuou, só
aumentou, e isso seria demonstrado no tamanho do Black Bloc no
ato do dia sete de setembro. No dia 06, ocorreu um ato em fren-
te ao Fórum do Rio de Janeiro, com aproximadamente mil pessoas
em defesa da liberdade dos blacks blockers presos. Não obstante,
o grande evento da semana estava marcado para o já tradicional
“Grito dos Excluídos” (passeata que ocorre desde a década de 1990,
após o desfile militar em várias capitais). Os Anonymous fizeram
uma grande chamada para a manifestação.48
Depois de junho, esperava-se muita gente para protestar. As-
sim, ocorreu em Brasília, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e
nas principais capitais do país. No Rio de Janeiro, aconteceram vá-
rias manifestações com enfrentamentos com as forças dos gover-
nantes penais, desde às sete da manhã até ao final da noite. Foram
marcados, portanto, vários atos contra o sistema e pela liberdade
dos administradores da página do Block Bloc RJ. Pela manhã, a FIP e
o Black Bloc marcaram a concentração do ato para às sete horas, na
esquina da Avenida Presidente Vargas com Avenida Passos. Outra
46 Ver: https://extra.globo.com/noticias/brasil/com-prerrogativa-de-funcao-domingos-bra-
zao-vai-para-unidade-destinada-presos-com-ensino-superior-21136510.html
47 Ver https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/preso-em-benfica-deputado-paulo-mel-
lo-e-o-que-tem-mais-pms-a-disposicao.ghtml
48 Ver vídeo: https://youtu.be/tg6ntL9FieY

2013 - revolta dos governados 283


concentração foi marcada pelos partidos políticos da esquerda ofi-
cial para a esquina da Av. Presidente Vargas com a Rua Uruguaiana
para as nove horas.
O ato da FIP foi radicalizado. Apesar do horário, em torno de
mil pessoas saíram em passeata pelo entorno da Praça Tiradentes
e seguiram paralelamente ao desfile militar que ocorria na Avenida
Presidente Vargas. Quando chegou na altura da delegacia da Pra-
ça Tiradentes, alguém jogou um coquetel para dentro dela, houve
correria e um ativista preso. Era apenas o primeiro preso daquele
dia. A passeata da FIP contava com as já tradicionais faixas contra o
governador e a farsa eleitoral, e outras pedindo a liberdade para os
presos políticos do Black Bloc.
O Batalhão de Choque veio para reprimir a passeata que rumou
em direção ao desfile e conseguiu sair em frente ao palanque das
autoridades. Uma informação é digna de nota: foi a primeira vez em
que o governador e o prefeito não compareceram ao desfile. Aliás,
desde junho, eles deixaram de aparecer em locais públicos.
Voltemos à narrativa dos acontecimentos. Com faixas e carta-
zes, os manifestantes foram reprimidos com bombas, balas de bor-
racha e muito gás lacrimogênio. As pessoas que assistiam ao desfile
com crianças e idosos passaram mal, se machucaram e correram da
saga do Batalhão de Choque. Os insurgentes conseguiram interrom-
per o desfile militar. Algo impensável antes de 2013. Vários militan-
tes foram presos nesse momento. Um jornalista, devidamente
identificado, do jornal independente e crítico “A Nova Democracia”,
também foi preso. Depois de literalmente bagunçar o coreto militar,
grande parte do Black Bloc voltou para o segundo ato do dia.
Por volta das onze e meia da manhã, começou a segunda mani-
festação. Devidamente separados por “alas”, desfilaram os partidos
políticos e movimentos sociais. Assim, estavam lá representados o
PSOL, PSTU, PCB, PCdoB, PT e grupos do movimento estudantil li-
gados a esses partidos. Esses setores eram muito diminutos, mas
estavam presentes com suas palavras de ordem sem sentido radical,

284 wallace de moraes


fonte: ruy barros

preferindo cantar músicas com pouco ou sem cunho político. Os par-


tidos da esquerda oficial levavam suas palavras de ordem contra as
governanças políticas estadual e municipal, tomando cuidado para
não arranhar a Plutocracia Neoliberal Dissimulada Petista. Os movi-
mentos sociais como a FIST, o MTST e o MST (Movimento dos Traba-
lhadores Rurais Sem Teto) estavam misturados com alguns desses
blocos. Aliás, um aspecto é digno de nota. O MST, que figurou como
principal força política-social antes do PT chegar ao governo fede-
ral, em 2013, no Rio de Janeiro, não levava mais que uma dezena de
pessoas para os atos e não assumiu uma posição combativa na Re-
volta dos Governados de 2013. Ainda estavam presentes alguns pe-
quenos grupos anarquistas, que buscaram se diferenciar e não fazer
parte do Black Bloc, com suas bandeiras pretas e rubro-negras. Tudo
transcorria muito bem. Um desfile cívico da esquerda oficial que
nunca estabeleceu confronto com os policiais nos atos de 7 de se-
tembro. Até que chegou de repente o Black Bloc. Todos mascarados

2013 - revolta dos governados 285


com escudos e suas bandeiras pretas com símbolo do anarquismo.
Era, sem a menor sombra de dúvida, a maior força política presen-
te. Os grupos anarquistas e vários militantes simpatizantes do Black
Bloc que estavam na passeata correram para juntar-se ao grande
bloco negro, aumentando seu número. O Black Bloc sozinho equi-
valia a mais da metade da passeata. Suas palavras de ordem eram
as mais radicalizadas, contra o capital e o Estado. Ainda lembravam
com muito orgulho a tomada da ALERJ em junho. Não foi possível
ver ao certo o que aconteceu: uns disseram que o Black Bloc correu
em direção do palanque das autoridades militares e a polícia tratou
de dar tiros com balas de borracha e jogar muito gás lacrimogênio,
que pareceram muito mais fortes do que aqueles de junho. Outros
disseram que foram os policiais que começaram a atacar indiscrimi-
nadamente. Nesse momento, várias prisões e feridos. Certo mesmo,
foi que os partidos políticos perderam totalmente o protagonismo
diante da fúria do Black Bloc com suas bandeiras pretas com símbo-
lo do anarquismo e sua propaganda pelo ato desconcertante.
Depois de toda a repressão, a passeata foi dividida ao meio. Os
partidos, que tomaram cuidado para não se juntar com os de preto,
voltaram a fazer o seu desfile, seguindo até a estátua do Zumbi dos
Palmares no meio da Avenida Presidente Vargas. Lá os anarquistas
retiraram as bandeiras do Brasil, do estado do Rio de Janeiro e colo-
caram em seu lugar bandeiras pretas. As bandeiras retiradas foram
queimadas sob aplausos da ampla maioria presente. As pessoas fica-
ram ali com um bonito congraçamento e depois rumaram para suas
casas e outros lugares, menos o Black Bloc.
Ele se reagrupou na Cinelândia, nas escadarias da Câmara, onde
entoavam palavras de ordem radicalizadas contra a polícia, o Estado
e o capital e já virando tradição lembravam da tomada da ALERJ.
Tudo isso foi acompanhado por enorme contingente da PM. O Bla-
ck Bloc atuou até à noite quando muitos de seus membros foram
presos no entorno do Palácio Guanabara. Esse dia ficou conhecido
como da “Rave do Black Bloc”, dado que protestaram o dia inteiro

286 wallace de moraes


contra o Estado, o capital, a polícia e as prisões arbitrárias dos admi-
nistradores da sua página no Facebook.
Mais uma questão digna de nota para entender os protestos.
Nesse dia, um cinegrafista, que estava filmando para a Globo News
ao vivo, foi expulso da manifestação e teve que sair escoltado por
advogados. Esse foi mais um indício de como a emissora é extre-
mamente malvista pelos manifestantes, por tudo que ela faz com
relação aos protestos e por sua atuação contra os interesses dos
governados.
Durante todo o mês, a luta continuou nas ruas. O número de
manifestantes caiu muito. Algumas categorias aproveitaram e en-
traram em greve. Os professores do estado e do município do Rio de
Janeiro pararam suas atividades. Os bancários também.
Os black blockers presos, foram soltos por falta de provas, mas
tiveram que continuar a responder processos criminais. De todo
modo, as prisões serviram como ameaças aos próprios e aos demais
manifestantes.

OUTUBRO: OS PROFESSORES ASSUMIRAM O


PROTAGONISMO

Nos dias 01 e 02 de outubro, novos grandes protestos saldaram


o início do mês. Os professores entraram em cena de forma pro-
tagônica. Os governantes socioculturais trabalharam intensamente
para que os professores odiassem o Black Bloc. Todavia, na prática,
muitos perceberam que eram estes que ajudavam no aumento do
número de manifestantes. Para além disso, protegeram docentes,
com seus escudos, criando o fato político necessário para chamar a
atenção da sociedade. No dia 02, aproximadamente, 12 mil pessoas
marcharam pelo Centro da cidade, tendo como ponto de destino
a Câmara dos Vereadores do Rio, que estava sitiada pela polícia.
De maneira bastante inusitada, do alto do telhado da Câmara, um

2013 - revolta dos governados 287


homem foi flagrado jogando objetos sobre os manifestantes. Um
oficial da PM forjou um flagrante com um adolescente, vestido de
preto, acusando-o de portar morteiros. Esses fatos foram vistos e
compartilhados por milhares de pessoas nas redes sociais, a grande
vedete daquele momento, que permitiu furar a censura dos oligopó-
lios de comunicação de massa.
O presidente da Câmara, do mesmo partido do governador, im-
pediu que os governados acompanhassem as votações relativas ao
plano de carreira dos professores. É, não vivemos em uma democra-
cia. Do lado de fora, ficaram dois grupos. Um deles, era composto
por anarquistas e insurgentes em geral, que tentaram forçar a entra-
da na Câmara e cantaram palavras de ordem radicalizadas, marca-
das por alguns instrumentos de percussão. O outro grupo estava
nas proximidades do enorme carro de som, no qual se revezavam
candidatos ou futuros candidatos dos partidos políticos e do sindi-
cato, tentando cativar os professores para as próximas eleições. De-
pois, os governados do lado de fora também foram impedidos de
ficar em frente à Câmara pela polícia.

fonte: ruy barros

288 wallace de moraes


Os soldados dos governantes penais jogaram dezenas de
bombas de gás lacrimogênio contra os docentes que tentaram bra-
vamente resistir, mas não foi possível. Durante a dispersão da multi-
dão, como de praxe, várias vidraças e caixas eletrônicos de agências
bancárias se encontraram com paus e pedras, e grande parte dos
professores apoiava plenamente a ação. O Centro da cidade foi para-
lisado. As duas principais Avenidas do Centro do Rio de Janeiro, Rio
Branco e Presidente Vargas, foram fechadas. A multidão foi separa-
da em diferentes grupos. Uns se concentraram na encruzilhada da
Avenida presidente Vargas com Avenida Rio Branco, outros grupos
se concentraram na ALERJ, no IFCS e na esquina da rua Uruguaiana
com Presidente Vargas, onde ficou um setor que se dizia dirigente
do SEPE. Curiosamente, ali começaram a leitura dos nomes dos ve-
readores que votaram contra o projeto, numa espécie de campanha
eleitoral às avessas antecipada. Ao mesmo tempo, chovia bombas
sobre os Black Blocs que estavam enfrentando a polícia no entorno
da Cinelândia. Muitos professores queriam voltar para lá para con-
tinuar a pressão. A direção sindical tentou retardar ao máximo, mas
a base pressionou e saiu relativamente vitoriosa. No retorno para a
Câmara dos vereadores, cantaram muitas palavras de ordem contra
os governos e a polícia. A direção queria muito aparecer e no pe-
queno trajeto parou algumas vezes para fazer discursos, até que no
último deles, depois de ouvirem os sons das bombas, decidiram não
seguir para a Cinelândia e voltar para o IFCS, junto com o pessoal do
PSTU que havia acabado de se somar ao grupo. Eles voltaram e se
dispersaram no final da noite. Não obstante, o grupo dos insurgen-
tes, descolado dos partidos, seguiu na luta. Foi nesse mês que foi
criado o BLACK PROF, no dia 05 de outubro. Em 10 horas, mil pesso-
as curtiram a página do movimento. Seu lema principal era: “O Black
Bloc é meu aluno, mexeu com ele, mexeu comigo”. Outra de suas
canções era: “Magistério é assim mesmo, bota o Choque pra correr,

2013 - revolta dos governados 289


mas que beleza. Que beleza, o Black Prof não tem medo de morrer...
olê-lê, olá-lá, educação vem aí e o bicho vai pegar”.49
A noite estava apenas começando. Vimos vários confrontos na
Avenida Rio Branco e diversas vidraças de agências bancárias que-
bradas. Muitos curiosos ficaram na supracitada Avenida vendo a re-
volta popular. O Batalhão de Choque não sabia como agir. Atacava
um grupo e dava às costas para outro, negligenciando sua retaguar-
da. Depois de mais de 5 horas de batalha ininterrupta, por volta das
21 horas ainda se concentravam aproximadamente umas mil pesso-
as na Cinelândia. Nesse momento, só estavam os mais radicalizados
e ninguém estava contabilizando os vereadores que votavam contra
ou a favor, mas ao contrário, viam o tamanho da luta popular au-
tônoma e sua força para a próxima manifestação. Criticavam e en-
frentavam a polícia com máscaras ou com a cara limpa. Sangue nos
olhos e solidariedade na luta. A sociedade burguesa não entendia
como isso veio acontecer, porque ela não sabia o que era ser humi-
lhado nas favelas pelas forças de repressão do Estado. Pierre Clas-
tres (2012) chamaria esse fenômeno de sociedade contra o Estado.
No dia seguinte, um policial postou na sua página no Facebook
uma foto, fardado, portando um cassetete quebrado na mão, com
o seguinte dizer: “foi mal, fessor”. O nome do policial na rede social
era: “Tiago tiroteio”. Essa foto foi amplamente divulgada nas redes
sociais e só ajudou a aumentar a indignação social contra o sistema
e aqueles que resguardam o seu funcionamento com violência. Tra-
ta-se, sem dúvida, de um abuso de autoridade, que policiais estão
acostumados a realizar em praticamente todo o país.
Sobre essa semana, um educador desconhecido escreveu uma
bonita carta, amplamente compartilhada pelo Facebook e bastante
representativa do momento político-social e das lutas. Vale ler.

49 Página do Black Prof no Facebook: https://touch.facebook.com/BLACK-PROF-5149741119-


22448/?__tn__=%7E-R

290 wallace de moraes


Carta de um(a) educador(a)

Hoje o centro do Rio de Janeiro amanheceu chorando.


As ruas, os prédios históricos, o esparso verde, tudo
molhado por milhões de gotas de chuva que precipita-
vam do céu e dos corações de milhares de educadores
da maior rede municipal de educação da América La-
tina. Choram também pais, responsáveis, a sociedade
civil que reconhece a escola pública como patrimônio
pelo qual devemos lutar.

Nas 1.075 escolas onde nós, educadores, atuamos,


sabemos que as condições estruturais e de traba-
lho apresentam muitos problemas, que são detalha-
dos anualmente nos Relatórios de Visita às Escolas
do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro
(TCM – RJ). De 2011 a 2012, o percentual de escolas em
condições estruturais precárias passou de 20% para
25,64%. Há torneiras, vasos sanitários, janelas, por-
tas e ventiladores quebrados, pinturas desgastadas,
fiações expostas, diversas infiltrações. Na cidade que
sediará os jogos olímpicos internacionais de 2016,
12,8% das escolas municipais não tem quadra espor-
tiva. E, dentre as quadras existentes, 37,2% estão em
condições precárias para uso. Laboratórios de infor-
mática não existem em mais de 10% das escolas da rede
e os existentes não são utilizados por mais de 60% dos
estudantes entrevistados pelo TCM-RJ.

No fim da tarde de ontem, o Plano de Cargos, Carreiras


e Salários (PCCS) foi aprovado na Câmara de Vereado-
res do Rio legalizando a polivalência que vem sendo
amplamente disseminada na gestão da Secretária de
Educação Claudia Costin. Agora, não só professores de
Matemática darão aulas de Ciências e os de História

2013 - revolta dos governados 291


darão aulas de Língua Portuguesa e de qualquer outra
matéria, mas também poderão lecionar para turmas de
Ensino Fundamental I, mesmo sem serem pedagogos ou
terem Curso Normal.

Ontem à tarde, quem estava na Av. Rio Branco ou em


qualquer outra transversal ou paralela do centro,
inalou gases invisíveis que estavam espalhados por
toda parte e sentiu, pela secura da garganta e ardên-
cia dos olhos, que as armas químicas não estão sendo
jogadas apenas na Síria. Foram bem audíveis os sons
das bombas de efeito moral e bem visível a violência
aberta da polícia militar contra os educadores que
protestavam. Este movimento reivindicatório requer
o cumprimento da própria legislação brasileira, que
determina a destinação de no mínimo 25% da receita
de estados e municípios para a manutenção e desen-
volvimento do ensino público (Artigo 69 da LDB – EN).
Como a receita do município do Rio este ano passa de
11 bilhões de reais, quanto deveria ser destinado à
educação pública? O FUNDEB – Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização
dos Profissionais da Educação – recebido pelo muni-
cípio do Rio chega a 1 bilhão e 800 milhões de reais. É
possível localizar esta verba nos contracheques dos
educadores e na estrutura das escolas?

Não é apenas por corrupção dos políticos que este gi-


gantesco volume de recursos não vai para as unidades
escolares, mas porque muitos deles estão compro-
metidos com grandes empresários donos de estabe-
lecimentos privados de ensino, que financiaram suas
campanhas na época da eleição. A eles interessa o des-
monte da escola pública porque lucram muito com isso.

292 wallace de moraes


Foram estes chamados “tubarões do ensino” que também
financiaram a tortura contra o movimento estudantil
e dos professores durante a ditadura militar (de 1964
a 1985) e nesta época ocuparam postos deliberativos
importantes no Conselho Federal de Educação, crian-
do leis para destinarem recursos públicos e isenções
tributárias para suas instituições particulares. (...)
No Ensino Fundamental, a Fundação Roberto Marinho,
ligada às Organizações Globo, é muito beneficiada
pela política educacional do município do Rio. Tele-
aulas do “Novo Telecurso” são compradas e exibidas
para milhares de crianças e adolescentes das escolas
municipais. Este material didático foi produzido na
década de 1990 para adultos trabalhadores e, além do
conteúdo obsoleto, contém cenas de consumo de bebi-
das alcoólicas e trabalho fabril, inadequadas ao co-
tidiano e a boa formação educacional de crianças e
adolescentes. Os educadores reivindicam também o fim
do “Projeto Autonomia Carioca”, da Fundação Rober-
to Marinho. Será que é por isso que os telejornais da
Globo não apoiam a luta dos educadores?

Corações esta manhã choraram de alegria pela luta


popular que campeia nas ruas do Rio de Janeiro. Es-
tudantes, professores, bancários, funcionários dos
correios, trabalhadores em geral, se levantam para
expressar sua indignação. Oficialmente vivemos em
uma democracia, mas a criminalização dos movimentos
sociais nos faz sentir a ditadura por toda parte. Sen-
timos que a representatividade indireta do sistema
eleitoral não é democrática. Nossas vozes incontidas
são respondidas com cassetetes, choques e tiros. Mas
não nos calamos porque agora é impossível silenciar

2013 - revolta dos governados 293


os gritos de milhões de brasileiros que se dão conta
da exploração que vivem. Com nosso trabalho susten-
tamos este mundo e queremos ter o direito de usufruir
dos frutos deste trabalho que por décadas vem sen-
do espoliados pela burguesia financeira, industrial,
do agronegócio. Queremos ver os muitos impostos que
pagamos revertidos em saúde e educação públicas de
qualidade, dentre outros serviços básicos.

A consciência de que estamos vivos vem acompanhada


da coragem de sermos agentes da História. Então luta-
mos. Como nossos ancestrais lutaram e lograram vi-
tórias. Lutamos porque o capitalismo, que tem menos
de 400 anos, não é o fim da História. Acreditamos que
é possível construir uma sociedade mais justa, mais
fraterna. E em nome dela permaneceremos na luta.

Rio de Janeiro, 02/10/2013.

07 DE OUTUBRO – RETORNO DAS MANIFESTAÇÕES


DE MASSA

O ato do dia 07 de outubro foi construído depois da forte re-


pressão da semana anterior sobre os professores. O evento tomou
ares de grande manifestação. Só no Facebook a chamada para o ato
contou com mais de 80 mil confirmações de presença. Todavia apa-
rentemente tinha entre 90 a 100 mil pessoas presentes, sob tempo
chuvoso. Foi o maior ato depois de junho. Sem embargo, uma per-
gunta é fundamental de ser respondida: porque ele foi tão grande?
Tentamos responder com algumas questões importantes. Primeiro,
a repressão aos professores causou uma grande indignação neles
e em grande parte da sociedade. Ao mesmo tempo, a conivência

294 wallace de moraes


dos grandes oligopólios de comunicação de massa foi amplamente
contestada pelos profissionais da educação e demais solidários nas
redes sociais. Essa indignação com as notícias deturpadas, obrigou,
como em junho, os governantes socioculturais a permitir a divulga-
ção de determinadas arbitrariedades da polícia durante a passeata,
como mostramos, potencializando ainda mais a chamada para o pro-
testo. Durante todo o dia no Centro da cidade era comum ver gru-
pos de professores andando juntos com adesivos pró-greve, além
do mais e de forma curiosa, procuravam também máscaras contra
gás lacrimogênio. Em uma loja no Centro, um vendedor me revelou
que somente naquele dia havia vendido mais de 300 máscaras con-
tra gás lacrimogênio, que se esgotaram por volta das 15 horas.
Esse ato aconteceu como os demais. Cada grupo com sua ala.
Diferente de junho, tinha um grande carro de som que ditava as pa-
lavras de ordem a ser seguida pela massa. Era a direção do sindicato
representada. Durante a passeata, um grande bloco negro e mas-
carado se formou. Devia ter aproximadamente entre 1500 e 2000,
compondo o Black Bloc, ou melhor, os diversos grupos de afinidade
dos Black Blocs. Junto desses e absolutamente integrados, estavam
moradores de rua que pediam máscaras e camisas para tapar o ros-
to. Isso nos faz lembrar das histórias da Revolução Francesa, carac-
terizada pelo grande medo dos sans culotes.
Todos estavam preparadíssimos para o confronto. Era comum
ver professores, já com longa idade, criticando o governo, a polícia
e a repressão em geral. Os grupos radicalizados estavam com seus
escudos, pedras e morteiros, além, é claro, com a máscara de gás,
o vinagre e o leite de magnésio. Para levar todo esse aparato de
segurança e de insurgência eram necessárias mochilas. Por isso, os
black blockers levavam mochilas nas costas. Durante todo o percur-
so na Avenida Rio Branco não se viu nenhum policial militar fardado,
enquanto disfarçados haviam vários. Quando chegamos na Cinelân-
dia, a praça estava livre para ser ocupada pelos manifestantes. Situ-
ação muito diferente da semana anterior. Os governados fizeram

2013 - revolta dos governados 295


uma grande confraternização na praça e ocuparam as escadarias da
Câmara municipal. A preparação para o enfrentamento se desfez.
Alguns grupos pensaram então em rumar para a ALERJ, lugar que
ocupava importante posição no imaginário dos manifestantes, des-
de a sua ocupação em junho.
Todavia, o carro de som que pertencia aos aparatos burocráti-
cos dos sindicatos - os quais, por sua vez, figuram como máquinas
eleitorais nas mãos dos partidos políticos - foi embora, junto com a
sua militância e bandeiras. Não obstante, precisamos problematizar
um pouco melhor essa informação.
Em manifestações antes de junho de 2013, o carro de som dos
partidos era o último a sair, os políticos e sindicalistas ficavam se
revezando, fazendo discursos para os presentes até o último possí-
vel eleitor. Normalmente, a fala era dividida entre as diversas dire-
ções sindicais, estudantis, parlamentares e dos movimentos sociais.
Nesse dia, o carro de som, junto com os militantes dos partidos polí-
ticos, foi embora enquanto
havia pelo menos 3 mil pesso-
as, em grande parte de preto
e mascarada, na praça. Por
quê? Estranho. Uma questão
é necessária relatar e corro-
bora para ampliarmos nossa
reflexão. Depois de tantas
manifestações, percebemos
que em praticamente todas, o
confronto entre PM e mani-
festantes começava pontual-
mente após às 20:00h, salvo
raríssimas exceções. Não sa-
bemos se era o prazo final
dado pela PM para troca de
fonte: ruy barros seus quadros, se era para sair

296 wallace de moraes


o confronto no Jornal Nacional ao vivo da Rede Globo ou por qual-
quer outro motivo. O sindicato e os militantes dos partidos políticos
sabiam disso? Saíram propositalmente? Fizeram acordo com a PM e
a Globo? Depois de 2013, não duvidamos mais de nada.

fonte: ruy barros

Portanto, depois das 20:00h somente tremulavam as bandeiras


negras e algumas vermelhas do MEPR. Permaneceu, destarte, um
grande mar negro em frente à Câmara. Daí as canções já tradicionais
desse setor radicalizado foram entoadas. Tudo corria com tranquili-
dade até que alguns grupos tentaram atear fogo e invadir a Câmara.
Foram lançados fogos contra a instituição estatal e para o alto numa
grande celebração. Muito próximo dali, a uns 200 metros, existe um
Batalhão da Polícia Militar que estava cercado por grades e contava
com aproximadamente 30 policiais resguardando o local. Os mani-
festantes, por sua vez, fizeram uma barricada em frente ao cerco da
PM com escudos e lixo. Por volta das 20:00h, como de praxe, grupos
de mascarados correram na direção dos polícias e começou todo o
tumulto e correria.

2013 - revolta dos governados 297


Depois das 20:00h, portanto, começaram as bombas de gás la-
crimogênio, as perseguições pelo centro da cidade, as detenções,
as quebradeiras das vidraças das agências bancárias. Nesse dia, ate-
aram fogo em um ônibus e o utilizaram como barricada. Os mani-
festantes prontos para o enfrentamento revidaram, dispersavam e
reagrupavam quase que num toque de mágica e assim entrava a noi-
te até o cansaço físico total. Nesses momentos, entraram em cena
os bravos advogados, socorristas e midiativistas independentes.
Tudo terminava nas delegacias, nos hospitais das redondezas e no
Facebook. Era o fim de mais um dia de batalha contra os governos,
a polícia e o capital.
Outro fato comum que fez parte da política de terror das mani-
festações consistiu em a prefeitura apagar as luzes das Avenidas nas
quais aconteciam os conflitos, além de desligar as câmeras da CET-
-Rio. Por que faziam isso? Por que os governados não podiam ver as
manifestações e as ditas arbitrariedades? Por que eles mesmos não
podiam tirar suas conclusões sobre quem é o verdadeiro vândalo?
Os bancários, os professores, do estado e do município deci-
diram manter as greves. Nesse momento da Revolta do Vinagre de
2013, até os jogadores de futebol se organizaram e decidiram con-
testar o calendário dos jogos. Eles almejavam um número menor de
partidas de futebol. A grande mídia ignorou essas reivindicações, tal
como diz o “manual”: não é permitido apoiar reivindicação de traba-
lhadores, independente do ramo que possam pertencer.
A análise da Revolta dos Governados trouxe algumas evidên-
cias ratificadas em diferentes momentos: 1) quando não tinha a pre-
sença da Polícia Militar, tudo fica mais tranquilo; 2) a manifestação
crescia em número quando ocorria uma grande repressão anterior
da PM sobre os manifestantes; 3) as redes sociais funcionaram
como um termômetro das manifestações, quando a Rede Globo era
muito criticada, era obrigada a mostrar alguma coisa em prol dos
manifestantes. Essa necessidade de mostrar os protestos da Globo
aumentava substantivamente o potencial latente da revolta que

298 wallace de moraes


estava diretamente ligada à grande insatisfação popular com o sta-
tus quo. 4) por fim, não parecia ter solução: se reprimisse mais, só
aumentava o número de manifestantes indignados e prontos para
o confronto; se não reprimisse, também. Se a Globo maculava a in-
formação, ela era amplamente contestada nas redes sociais, então
era obrigada a recuar e dizer a verdade, que só favorecia às novas
manifestações. Ao continuar manipulando, ela era alvo da ira dos
insurgentes que iam ganhando espaço dia a dia na crítica aos oligo-
pólios midiáticos convencendo outras pessoas. A solução, portanto,
era o controle das redes sociais através da mudança do algoritmo e
da consequente censura e retirada de páginas críticas.
Como em outras ocasiões, ocorreu a solidariedade de classe.
Em São Paulo, alguns grupos Black Blocs marcaram protestos em
defesa dos companheiros do Rio de Janeiro. Lá, como no Rio, taca-
ram fogo em um carro da polícia civil, quebraram bancos e enfren-
taram as forças de repressão como podiam. Alguns manifestantes
foram presos e dois deles foram enquadrados na Lei de Segurança
Nacional, criada no fim da Ditadura Militar-Plutocrática Desavergo-
nhada e resgatada pela Ditadura Plutocrática-Militar Dissimulada.
Fato amplamente apoiado pelos governantes socioculturais, como
era de se esperar.

15 DE OUTUBRO - DIA DOS PROFESSORES


COMEMORADO NAS RUAS

O ato do dia 15 de outubro – dia do professor – foi menor que


o anterior. Estimamos em aproximadamente 50 mil pessoas. Cabe,
antes de continuarmos, relatar uma questão importante. A PM su-
pôs em 7 mil pessoas presentes na manifestação, enquanto o SEPE,
100 mil. Uma loucura. Essas proporções mostram os interesses da

2013 - revolta dos governados 299


cada instituição.50 A PM fez o papel dos governantes em geral e dos
oligopólios da comunicação de massa, que, propositadamente, não
colocam fotos da passeata inteira para poder mentir sobre o seu
número.
A demanda pela criminalização dos lutadores dos governados
era contínua e crescente nos jornais, TVs e rádios. Os comentários
foram todos em prol da aplicação de penas aos insurgentes e assim
trabalhava-se para a espiral do silêncio. Pedir melhoria para a saú-
de, educação, habitação, aumento dos salários, fim dos empregos
terceirizados e das explorações, os governantes socioculturais não
fizeram.
As pessoas se concentraram em alguns polos diferentes para
rumar à Candelária. Assim sendo, serviram como pontos de encon-
tro a ALERJ, a Cinelândia, o IFCS, além do próprio cruzamento das
Avenidas Presidente Vargas e Rio Branco.
Como nas outras passeatas, elas estavam divididas em blocos.
Os vários grupos de afinidade que compunham o Black Bloc forma-
vam o maior grupo da passeata. Isso virou tradição, desde o ato de
sete de setembro. Tudo transcorreu normalmente como nas ante-
riores. As diversas mídias independentes, os inúmeros agentes infil-
trados e os advogados dos direitos humanos estavam presentes. Os
grupos dos partidos políticos estavam com seus carros de som. Um
grupo do PSOL estava com uma bateria festeira – que fazia o ato pa-
recer um bloco carnavalesco. Por consequência, embora todos es-
tivessem com a mesma bandeira: da educação, havia disputas pela
palavra de ordem. Os grupos mais radicalizados não dispunham de
carro de som, nem de bateria, mas tinham nas roupas pretas, más-
caras e escudos sua maior propaganda. Chamou a atenção, a bo-
nita congregação entre torcedores dos times do Rio, todos juntos,
formando um único grupo, entoando palavras de ordem e canções
pela democratização do futebol e contra os governos. Eles usavam
50 No ato anterior, que devia ter tido o dobro de manifestantes, o SEPE conseguiu subesti-
mar, afirmando ter 50 mil e, dessa vez, superestimou.

300 wallace de moraes


sinalizadores para sua festa/protesto, como nos estádios. Alguns
sindicalistas da esquerda oficial, que ainda não haviam entendido os
signos populares, pediram para que eles se retirassem da passeata.
É claro que os torcedores não saíram.
É importante relatar, que antes da manifestação, a direção do
SEPE fez uma reunião com os governantes penais (direção da Polícia
Militar e secretário de segurança do Rio de Janeiro), acertando uma
aliança pela ordem. Parece que estava tudo acordado. Os sindicalis-
tas juntos com os militantes dos partidos da esquerda oficial eleito-
ral se retirariam do ato novamente até às 20:00h.
Depois de ocupar as escadarias da Câmara, a FIP decidiu dispu-
tar a base com outras organizações. Com esse objetivo, voltou para
a Avenida Rio Branco e tentou marchar, mas foi impedida pelo carro
de som do PSTU e seus militantes. Os ânimos se acirraram. Foram
entoadas palavras de ordem contra a participação eleitoral e os sin-
dicalistas foram chamados de pelegos.
O PSTU tratou de encerrar o ato às 20:00h em ponto. Recolheu
seu carrinho de som e seus militantes. Os outros partidos também
começaram a se recolher. Ainda deviam ter entre cinco a dez mil
pessoas na Cinelândia, quando o Black Bloc decidiu rumar para a
ALERJ. A PM não deixou e lançou gás lacrimogênio e balas de bor-
racha contra a multidão, que revidou com morteiros e pedras. Na
Avenida Rio Branco, tinha outra barreira policial. A única rota de
fuga deixada pela polícia era no caminho do Aterro do Flamengo.
Durante a fuga, os insurgentes enfrentaram dois grupos de PMs
com paus e pedras. Os policiais, surpreendidos com a ousadia e des-
preparados para lidar com manifestantes insubmissos, deram tiros
com munição letal para cima da multidão: dois manifestantes foram
feridos. Um carro da PM e um ônibus foram incendiados. Algumas
pessoas se machucaram e foram levadas para hospitais. O Centro da
cidade virou novamente uma praça de guerra.
Quando os insurgentes, que estavam ocupando a Câmara dos
Vereadores, reagruparam na Cinelândia foram cercados por cente-

2013 - revolta dos governados 301


nas de policiais já com o micro-ônibus para prendê-los. Resultado:
mais de 200 detidos, 65 enviados para presídios comuns no comple-
xo penitenciário de Bangu sem direito à defesa prévia.
Mendes (2017: 51) um dos 23 ativistas processados argumentou
o seguinte:

“Pessoas detidas nessas circunstâncias eram normalmente libe-


radas na delegacia, na pior das hipóteses, respondendo processo
em liberdade. Foi como reação às Jornadas de Junho de 2013 que o
fantasma de Bangu (complexo penitenciário de Gericinó) passou a
pairar crescentemente sobre nós.”

Esse tipo de postura vinha sendo reivindicada pelos governan-


tes socioculturais durante meses. Os oligopólios de comunicação de
massa trabalharam intensamente para preparar a opinião pública
para essas prisões. Em suma, legitimavam a posição que as gover-
nanças política, jurídica e penal já queriam tomar há muito tempo,
mas esbarravam na pouca popularidade delas. No jornal O Globo,
por exemplo, não foi publicado nenhuma foto dos 50 mil governa-
dos (em maioria professores) nas ruas. Também foram completa e
sorrateiramente ignorados os pontos da pauta de suas reivindica-
ções. O jornal apenas exigia a repressão sobre os Black Blocs. Com
efeito, desfocaram o objeto central e jogaram luz apenas para a le-
gitimidade da prisão de insurgentes. Os governantes Sérgio Cabral
e Eduardo Paes foram favorecidos pelo “esquecimento” da pauta
dos docentes. O pior de tudo foram militantes da esquerda oficial,
principalmente do PSTU,51 terem se somado aos plutocráticos neo-
liberais desavergonhados e dissimuladas e terem posto a culpa de
tudo isso nos rebelados. 52 Escrevi, dia 17 de outubro de 2013, no meu
Facebook:

51 Ver http://www.otal.ifcs.ufrj.br/as-reais-diferencas-entre-o-black-bloc-e-o-pstu/
52 Vídeo sobre a prisão dos manifestantes em outubro de 2013 - os presos políticos de Ca-
bral. Emocionante. https://www.youtube.com/watch?v=CkR4xzK9Mno

302 wallace de moraes


“Estou de luto! 70 manifestantes presos! 190 detidos! Algumas pes-
soas baleadas com arma letal! Jovens adolescentes politizados no
Padre Severino! O crime que essas pessoas cometeram: querer um
país igual e com liberdade. Estavam apoiando a manifestação dos
professores por melhores condições para a educação!! Enquanto
isso, o PSTU solta nota criminalizando os que lutam, nenhuma dife-
rença para a direção dos sindicatos, dos governos, da polícia e dos
oligopólios da mídia!! Lamentável, deplorável, nojento!! Covardes e
oportunistas!! Democracia?????”

Foram divulgadas no Facebook fotos da repressão durante a


Ditadura Militar-Plutocrática Desavergonhada comparadas com as
de 2013. As posturas do jornal nos dois períodos históricos são muito
parecidas e bastante significativas, vejamos.

fonte: anonymous rio

2013 - revolta dos governados 303


Depois dessas arbitrariedades, a FIP e outros grupos radicali-
zados organizaram alguns atos pela liberdade dos presos políticos.
Enquanto isso, a direção do SEPE foi para Brasília negociar o fim
da greve com o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Luiz
Fux, e os representantes dos governos do estado do Rio de Janeiro
e capital. A direção sindical foi de avião para Brasília, os professores
da base foram em cinco ônibus disponibilizados pelo sindicato. Lá
os professores foram impedidos de se manifestar. O acordo se resu-
miu ao estabelecimento do fim da greve. Em troca, os grevistas não
teriam dias cortados, nem processos administrativos contra profes-
sores, mas, sobretudo, a multa contra o sindicato seria cancelada.
Ganho para a categoria? Nenhum! Nem um por cento de aumento,
nem a revisão de um plano de carreira. Nada! A direção sindical as-
sinou e propôs para a base o fim da greve. Em outros tempos, essa
direção seria chamada de pelega. O fim da greve foi aprovado por
margem mínima, tanto no estado, quanto no município. Todas as
máquinas dos partidos ligados à plutocracia petista, à esquerda
oficial e aos governos de Cabral e Paes, unidas, trabalharam para o
fim dessa greve. Em outras palavras, as máquinas das governanças
políticas e socioculturais, pressionando diretores e apoiadores, e a
máquina sindical, com todos os seus militantes de partidos políti-
cos, mais preocupados com os recursos dos sindicatos do que com
ganhos para a categoria, atuaram juntas. Por outro lado, a direção
sindical saiu arranhadíssima desse processo.
Comemoraram o fim da greve: os governantes socioculturais,
as governanças políticas estadual e municipal do Rio de Janeiro, a
governança penal (polícias) e as direções sindicais, que não ficaram
sem recursos para diversas demandas, mais importantes, que não
estavam atreladas à conquista de direitos para seus filiados. Saíram
derrotados com o fim da greve: os professores sérios que lutaram
pela valorização da educação no país; os movimentos autônomos
e combativos, que sustentaram a greve do início ao fim, por mais
de três meses, a despeito das posturas dos partidos políticos que

304 wallace de moraes


dirigem o sindicato. Perderam todos os professores e apoiadores
presos machucados por defender a educação. Perderam todos os
alunos e moradores do estado do Rio de Janeiro, que não obtiveram
melhora nas políticas públicas de educação e estímulo para seus
professores. Toda a luta se esvaiu pela traição dos partidos políticos
da esquerda oficial em nome do dinheiro do sindicato. Penso que
chamá-los de reformistas constitui-se como um elogio exagerado,
pois nem isso são.
Depois dessas detenções em massa e da crescente criminaliza-
ção dos que lutavam, apoiadas por todos os governantes e por sua
oposição oficial, o movimento refluiu. Os acordos entre esquerda
e direita, que verdadeiramente pertencem à mesma institucionali-
dade foi aplicado para acabar com o movimento. Ação direta, en-
frentamentos, barricadas, greves etc não servem para explicar as
diferenças entre esses supostos polos.
Depois da intensa campanha dos governantes socioculturais
que buscavam produzir o medo e igualar os insurgentes a covardes,
insanos, sem propósitos; depois da traição das direções sindicais;
depois da forte violência policial e das prisões arbitrárias; depois do
cansaço físico pela participação em jornadas combativas por cinco
meses ininterruptos, com quase protestos diários, o movimento no
Centro da cidade refluiu. Mas continuou nas periferias, nas favelas e
nos locais de trabalho, elevando o ano de 2013 para o de maior nú-
mero de greves na série histórica, como mostramos na introdução
desse livro.
A novidade de dezembro de 2013 ficou por conta da fundação
do MPL no Rio de Janeiro. Vejamos sua carta de princípios.

2013 - revolta dos governados 305


Carta de Princípios do Movimento
Passe Livre – Rio de Janeiro

O Movimento Passe Livre (MPL) é um movimento so-


cial anticapitalista, autônomo, apartidário, horizontal
e independente, que luta por um transporte público fora
da iniciativa privada.

PRINCÍPIOS

1. Horizontalidade: O MPL-Rio rejeita qualquer tipo de


hierarquia que surja dentro do movimento. Dessa forma,
não existem “lideranças”, “representantes” ou “porta-vo-
zes”, apenas participantes em igualdade de condições que
realizam determinadas atividades em determinados mo-
mentos. A organização deve tomar medidas práticas para
garantir essa igualdade a todo momento.

2. Rotatividade de funções: Não é permitido o mono-


pólio de uma função no movimento, ou seja, a con-
centração de funções em uma única pessoa (como a
comunicação, a articulação de outros grupos, a produção
de documentos e a organização de eventos entre outros)
afim de evitar a burocratização e a criação de hierarquias.

3. Forma de decisão: As decisões serão tomadas prefe-


rencialmente por consenso, para as questões mais impor-
tantes. Para questões práticas imediatas, procede-se ou
por votação ou por delegação da decisão pelo coletivo a
um indivíduo determinado para uma atividade específica.

4. Transparência: O MPL-Rio deve garantir que todas as


informações estejam acessíveis a todos os participan-
tes igualmente, para que seja garantida uma participação
efetiva a todos os integrantes do movimento e para que
não haja concentração de informações.

306 wallace de moraes


5. O MPL-Rio age independentemente de partidos, organizações
políticas, ONGs, governos e igrejas. Não participa de dispu-
tas eleitorais, nem tolera a imposição de qualquer decisão
partidária ou bandeira sobre o coletivo. Dependemos apenas
das pessoas que o constituem e por isso adotamos a auto-
gestão como modelo para nossa organização. Entretanto, não
excluímos a participação de pessoas vinculadas a tais insti-
tuições, desde que aceitem os princípios e objetivos do movi-
mento, sem utilizá-lo como fator de projeção política.

6. Pautamos a nossa luta pela via da ação di-


reta. Nossa força vem das ruas e da
organização popular, não do parlamento ou de disputas
eleitorais.

TARIFA ZERO

7. O objetivo prioritário do MPL-Rio é a implementação ime-


diata da Tarifa Zero. O custo de operação do sistema de trans-
porte público deve ser desvinculado do pagamento da tarifa
feita pelo usuário. Isso significa que os custos não podem
recair sobre a classe trabalhadora, como ocorre hoje com o
modelo de tarifa e de concessão à iniciativa privada. Tal mo-
delo promove criminosas isenções fiscais, que penalizam a po-
pulação com os cortes nos serviços públicos e os sucessivos
aumentos no preço das passagens, que agravam o problema da
segregação espacial.

8. Da mesma forma que a educação, saúde e moradia são con-


siderados direitos sociais, reivindicamos a locomoção den-
tro da cidade como um direito fundamental e inegociável. Com
a recente expansão das cidades o problema da circulação se
tornou um problema central, e por isso a Tarifa Zero é uma
atualização indispensável ao funcionamento das cidades mo-
dernas, hoje imersas no caos que encurtam vidas tanto pelas

2013 - revolta dos governados 307


horas perdidas durante o deslocamento quanto pelos nú-
meros alarmantes de acidentes no trânsito.

POR UMA VIDA SEM ROLETAS!

9. Defendemos como forma de atuação a mobilização do


povo e dos trabalhadores para a expropriação do trans-
porte coletivo, retirando-o da iniciativa privada, co-
locando-o sob o controle popular (dos trabalhadores e
usuários).

10. A lógica capitalista que impede o uso do transporte


público é a mesma que remove comunidades, encarece o
custo de vida e faz o cerco militar (UPPs, polícia militar,
etc.), vetando o direito de ir e vir. Em diversos lugares do
mundo a falta de acesso ao transporte público se relacio-
na à medidas de exclusão social, desde a segregação ra-
cial, como foi nos EUA e na África do Sul, até a cobrança de
tarifas. Enquanto houver roletas que impedem a livre cir-
culação da vida haverá uma sociedade desigual e submetida
ao Estado, que protege os interesses da classe dominante.
Assim, lutamos junto com outros movimentos sociais que
contestem, pela luta de classes, a ordem vigente. Pois a
luta pela tarifa zero se articula com o direito à cidade,
que só existe para quem pode se movimentar por ela.

11. Todo preso é um preso político, pois a criminaliza-


ção é uma escolha política, não existe crime natural. No
contexto dos movimentos sociais, o redimensionamento
das categorias de “crime”, “perigo” e “subversivo” serve
para punir aqueles que são vítimas das contradições do
sistema e lutam por direitos. Somos contra a criminali-
zação dos movimentos através da polícia e do judiciário,
que muitas vezes serve para manter a hegemonia da ordem
social.

308 wallace de moraes


JANEIRO DE 2014 E O AVANÇO PROTOFASCISTA
ATRAVÉS DAS REMOÇÕES PARA VIABILIZAR A
COPA DA ILIBADA FIFA

O início de
2014, apesar das
prisões e da divul-
gação do terror
pelos governantes
em geral, buscan-
do amedrontar os
manifestantes,
prometia uma re-
fonte: ellan lustosa, jornal a nova democracia tomada da luta
nas ruas.
Não obstante, a reação conservadora buscava avançar seu pro-
jeto de destruição do público e, principalmente, das comunidades
que estavam em lugares que interessavam à governança econômica.
A página dos Anonymous, em 10 de janeiro de 2014, exibia a
seguinte foto que foi amplamente compartilhada:

fonte: anonymous rio

2013 - revolta dos governados 309


A foto vinha acompanhada do seguinte texto:

“Bem-vindos à Copa de todo mundo! A segunda imagem é da de-


socupação do Museu do Índio (Aldeia Maracanã RJ) em 22/03/2013,
onde o governo do Rio de Janeiro na figura do “governador” Sér-
gio Cabral tendo como executores os “soldados do rei” e braço
armado do estado a polícia política do Rio de Janeiro, em especí-
fico o Batalhão de Choque, realizou prisões de índios e ativistas
apoiadores que eram contrários à demolição do espaço para a
construção via consórcio que administra o complexo do Maracanã
de um estacionamento para dar mais “comodidade” e lucro, pe-
rante os torcedores que viriam assistir a Copa do Mundo de 2014.
Não esquecemos! #FIFAgoHome!”

fonte: ellan lustosa, jornal a nova democracia

310 wallace de moraes


A lógica das desocupações funcionava da seguinte forma. Os
governantes políticos mandavam os governantes penais destruírem
as casas de moradores de áreas que interessavam aos governantes
econômicos. Os governantes socioculturais, por sua vez, legitima-
vam e/ou não contestavam, nem problematizavam essas exclusões.
Por outro lado, restava aos pobres, tidos como inferiores, párias da
sociedade, por essa visão elitista, resistir. O vídeo da desocupação
da favela metrô-mangueira (RJ) é emblemático dessa perspectiva.
Há de se destacar a brava resistência de seus moradores.53 O mesmo
aconteceu em outras comunidades.
Simultaneamente, ocorria o processo de criminalização da pró-
pria manifestação. As máscaras estavam proibidas e até as passea-
tas foram taxadas como abusos contra a liberdade de locomoção
das pessoas. Mas a resistência também seguiu.54
Segundo o dossiê “Megaeventos e Violações dos Direitos Hu-
manos no Rio de Janeiro” (2014), produzido pelo Comitê Popular
da Copa e das Olimpíadas, até junho de 2014 foram 4.772 famílias
removidas na cidade do Rio de Janeiro, totalizando cerca de 16.700
pessoas de 29 comunidades, mapeadas pelo dossiê.55 Destas, 3.507
famílias, 12.275 pessoas de 24 comunidades, foram removidas por
obras e projetos ligados diretamente aos megaeventos esportivos.
Outras 4.916 famílias de 16 comunidades estavam sob ameaça de
remoção.56 Não existem dados oficiais de remoções divulgados por

53 Cenas da desocupação e destruição das casas dos moradores da favela metrô-mangueira:


https://www.youtube.com/watch?v=R3DkSuRogF4;
https://www.youtube.com/watch?v=_zzZCm-SZis
54 Participamos de um debate na rádio CBN defendendo o direito à manifestação, enquanto
outra pessoa buscou liquidá-lo : http://www.otal.ifcs.ufrj.br/entrevista/
55 Estes dados são resultado de pesquisa realizada pelo Comitê e sua rede de contatos com
movimentos, entidades e apoiadores das comunidades removidas e ameaçadas. Agrade-
ço essa pesquisa à bolsista do OTAL, Beatris Lima.
56 Tubiacanga (700 famílias), Parque Royal (2100 famílias), Portuguesa (2300 famílias) e Bar
bante (120 famílias) (Ilha do Governador) sofreram ameaça de remoções para obra de ex-
pansão do Aeroporto Tom Jobim. Durante a Revolta dos governados de 2013, a presença

2013 - revolta dos governados 311


obra e por comunidade, nem das alternativas habitacionais dispo-
nibilizadas pelo Estado para essas famílias, o que inviabiliza o mo-
nitoramento das políticas públicas realizadas. Tal postura reflete a
ausência de planejamento das ações, sem participação da comu-
nidade e com gritante desrespeito à dignidade dessas pessoas (in-
clusive, muitas crianças), arrancadas de seus vínculos históricos e
sociais com extrema violência, sem nenhum amparo. Imaginem o
psicológico dessas crianças ao sofrer essas violações. Algumas pala-
vras resumem as remoções: violência, arbitrariedade, desumanida-
de, covardia! Segue tabela abaixo.

dos habitantes das comunidades foi frequente, exigindo o cumprimento de seu direito
à moradia. Fonte: https://comitepopulario.files.wordpress.com/2014/06/dossiecomite-
rio2014_web.pdf (pág 22 a 38)

312 wallace de moraes


Famílias Famílias Total de Justifica-
Comunidade Data
removidas ameaçadas famílias tiva
Largo do BRT Transca- Junho
65 Removida 65
Campinho rioca 2011

Rua Domin-
BRT Transca-
gos Lopes 100 Removida 100
rioca
(Madureira)

Rua Quáxima BRT Transca-


27 Removida 27
(Madureira) rioca

Penha Cir- BRT Transca-


40 Removida 40
cular rioca

Largo do Tan- BRT Transca- Fevereiro


66 Removida 66
que rioca 2013

Acesso à
Condomínio
de luxo;
Arroio Pavu-
Viaduto para Iniciada
na (Jacarepa- 73 23 96
o BRT Trans- em 2006
guá)
carioca;
Preservação
Ambiental

Construção
do Parque Iniciada
Vila das Tor- Municipal de em ju-
res (Madu- 1017 Removida 1017 Madureira; nho/2010,
reira) “Legado”as- concluída
sociado à em 2013
Transcarioca

Restinga (Re- BRT Transo- Dezembro


80 Removida 80
creio) este 2010

2013 - revolta dos governados 313


Vila Harmonia BRT Transo- Fevereiro
120 Removida 120
(Recreio) este 2011

Vila Recreio II BRT Transo-


235 Removida 235
(Recreio) este
Notredame BRT Transo- Junho
52 Removida 52
(Recreio) este 2010

Vila da Amoe- BRT Transo- Meados


50 Removida 50
do (Recreio) este de 2012

Vila Taboinha
Reintegra-
(Vargem - 400 400
ção de posse
Grande)

Asa Branca BRT Transo-


- - 4500
(Curicica) límpica

Vila Azaleia BRT Transo-


- 100 100
(Curicica) límpica

Vila União BRT Transo- Inicio de


- 700 700
(Curicica) límpica 2013

Colônia Julia-
BRT Transo-
no Moreira - 400 400
límpica
(Colônia)
Inicio
Área de agosto de
Metrô Man- influência 2010, con-
518 46 612
gueira das obras do cluída em
Maracanã janeiro de
2014
Parque
Olímpico;
Vila autódro- Inicio
BRT Tran-
mo57 (Jaca- 200 350 550 agosto
solímpica;
répagua) 2014
Preservação
Ambiental

314 wallace de moraes


Construção
de novo
acesso para
Belém-Belém
- 300 300 o Estádio
(Pilares)
João Have-
lange (Enge-
nhão)

Favela do Alargamen-
sambódromo 60 Removida 60 to do sam-
(Centro) bódromo

(1) Implan-
tação de
Morro da
teleférico
providência 140 60 832
e plano in-
(Porto)
clinado; (2)
área de risco

Ocupação
Projeto por-
Machado de 150 Removida 150 2012
to maravilha
Assis

Ocupação
Projeto por-
Flor do As- 30 Removida 30
to maravilha
falto

Ocupações
Projeto por-
na rua do Li- - 400 400
to maravilha
vramento

Ocupação Projeto por-


35 Removida 35
Boa Vista to maravilha

Quilombo das Projeto por- Fevereiro


70 - 70
Guerreiras to maravilha 2014

Zumbi dos Projeto por-


133 Removida 133 2011
Palmares to maravilha

2013 - revolta dos governados 315


Ocupação
Projeto por-
Carlos Mari- 47 Removida 47 2011
to maravilha
ghela
Ocupação Projeto por-
70 Removida 70 2009
Casarão azul to maravilha
A Prefeitura
Tabajaras /
alega que
Estradinha 252 100 352
a área é de
(Botafogo)
risco
Faixa Margi-
Meados
Virgolândia 600 Removida 600 nal de Prote-
de 2012
ção
A Prefeitura
Pavão-Pavão- alega que
300 - 300
zinho a área é de
risco
Área de ris-
Pico do Santa co no Pico
- 150 150
Marta do Santa
Marta
Área de Fim de
Vidigal 40 40
risco 2012

Interesse Inicio em
ambiental e 2005, até
Horto 3 520 523
patrimônio maio de
histórico 2014

Área de
Indiana 110 517 627 2012
risco

Área de
Manguinhos s/i 900 s/i
risco

316 wallace de moraes


57

A foto a seguir é bastante representativa do significado dos go-


vernados pobres para as elites políticas e econômicas desse país. Tra-
ta-se de uma casa demolida pelos governantes. A imagem diz por si.

fonte: anonymous rio

57 [nota referente � tabela] Vila Autódromo sofreu mais remoções após a publicação do
documento anterior para a construção do Parque Olímpico. Das 500 famílias que viviam
na comunidade, apenas 20 permaneceram no local após a urbanização feita pela prefei-
tura. De acordo com a prefeitura, a única comunidade removida por causa dos jogos foi
a Vila Autódromo, onde moravam 824 famílias, segundo o poder público. Fonte: http://
agenciabrasil.ebc.com.br/rio-2016/noticia/2016-08/rio-2016-moradores-de-comunidades-
-removidas-dizem-que-nao-ha-clima-de-festa (Vila Autódromo 2016)

2013 - REVOLTA DOS GOVERNADOS 317


“ROLEZINHO” – EXPRESSÃO DA AÇÃO COLETIVA DO
POVO POBRE

Os “rolezinhos” - expressão referente à gíria “rolé”, muito


utilizada nos subúrbios das grandes cidades - , consistiram em en-
contros de jovens pobres em shopping centers, normalmente or-
ganizados pelas redes sociais. Inicialmente, foram convocados por
cantores de funk, em resposta a um projeto de lei que proibia seus
bailes nas ruas da capital paulista. Nos EUA, o mesmo evento é cha-
mado de flash mob. Os rolezinhos aconteceram em Belo Horizonte,
São Paulo e Rio de Janeiro entre final de 2013 e início de 2014. Do
nosso ponto de vista, eles fizeram parte do espírito contestador da
Revolta dos Governados com vistas a escancarar a exclusão social
por vezes mascarada por todos os governantes. Ao mesmo tempo,
significou um fortalecimento da ação coletiva realizada por pobres
e negros. Todavia, não foi a primeira vez que isso aconteceu. No Rio
de Janeiro, em 2000 a Frente de Luta Popular (FLP) havia realizado
um ato muito parecido no shopping Rio Sul, quando moradores de
favelas foram fazer um lanche coletivo no Shopping, “chocando” as
elites que através de seus seguranças impediram que muitos ônibus
chegassem ao local de destino. Os eventos em São Paulo chegaram
a contar com cerca de 6 mil pessoas. A Justiça proibiu atos/passeios
da juventude pobre.
Isso evidencia que vivemos em uma sociedade altamente pre-
conceituosa. Onde ser negro, pobre, jovem, de movimento social
combativo e organizador de ação coletiva significa grande motiva-
ção para ser rechaçado em todos os sentidos, principalmente nos
templos do consumo das elites brancas, causando-lhes medo. O
movimento colocou a farsa da democracia racial e econômica a nu.
Os governantes em seu conjunto odeiam esse tipo de manifestação
que 2013 evidenciou, dando voz a periferia e favelas. Por isso, an-
tes mesmo de acontecer, a Justiça do Rio de Janeiro e de Fortaleza
despacharam mandados, impedindo a realização de rolezinhos nos

318 wallace de moraes


Shoppings Leblon e Iguatemi, respectivamente. Segundo Oliveira
(2014), a juíza Daniella Carla Russo Greco de Lemos concedeu li-
minar impedindo-o no Shopping Itaquera, estipulando multa de
R$ 10 mil para os jovens que desrespeitassem a decisão. Essa foi a
postura majoritária da governança jurídica para os demais atos.58
Segundo relato de Piero Locatelli59:

“Rolezinho” dos sem-teto acontecendo nesta tarde de quinta-fei-


ra em São Paulo: O shopping Jardim Sul não permitiu a entrada de
manifestantes do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto).
O centro de lojas, no bairro nobre do Morumbi em São Paulo, fe-
chou as portas antes da chegada do movimento como “medida de
segurança”, segundo a assessoria de imprensa do estabelecimento.
Os jornalistas também foram retirados do local e impedidos de ti-
rar fotos. O MTST organizou o “rolezão popular” após a repressão
aos jovens em shoppings no último final de semana. O movimento
pretendia denunciar “o racismo e o preconceito”. Às 19h, os sem-
-tetos continuavam no local e protestavam cantando em frente ao
prédio.”

Depois dos rolezinhos de 2013/14, grupos de mulheres no Rio e


em São Paulo organizaram protestos contra o machismo nos trans-
portes públicos lotados, quando homens se aproveitavam da su-
perlotação para assediá-las. O ato foi denominado do “Rolezinho
contra as encoxadas”.60 Essas manifestações renderam às mulhe-
res uma vitória significativa no metrô do Rio de Janeiro, que passou
a destinar vagões exclusivos para elas na hora do rush, embora não
tenha aumentado o número de trens e melhorado as condições de
transporte, principalmente para as áreas mais pobres.

58 Ver: https://evanderoliveira.jusbrasil.com.br/artigos/152053538/o-movimento-rolezinho
59 Divulgada pelo Facebook em 16 de janeiro de 2014. Jornalista da revista Carta Capital:
wwww.cartacapital.com.br
60 Ver https://evanderoliveira.jusbrasil.com.br/artigos/152053538/o-movimento-rolezinho.

2013 - revolta dos governados 319


GREVE DOS GARIS

A greve dos garis no Rio de Janeiro, entre 01 e 08 de março de


2014, pode ser considerada como absolutamente dentro do espírito de
2013. A vitória da luta de seus trabalhadores constituiu-se na maior
representação do momento vivido em toda a América Latina e em
especial na Revolta do Vinagre. Naquele momento, ganhou força
uma nova forma de fazer política com predomínio da ação direta em
detrimento da participação institucional, dos interesses da “base”
em detrimento daqueles defendidos por sua burocracia sindical. A
luta dos garis que, talvez, represente o setor mais popular dentre os
vendedores de força de trabalho formais, foi enigmática, pois eles
simplesmente atropelaram o sindicato, os governos, os oligopólios
de comunicação de massa e conseguiram arrancar direitos do Esta-
do! Ao decidirem pela greve em momento de dissídio coletivo, a sua
direção sindical fez de tudo para impedi-la, resolvendo não aderir,
nem jogar força. Os governantes políticos argumentaram retorica-
mente que só negociavam com as direções sindicais, dominadas por
burocracias mais facilmente destinadas a aceitar acordos espúrios.
A base se rebelou e manteve a greve mesmo sob constante ameaça
dos sindicalistas e dos governantes políticos. Os governantes socio-
culturais apresentaram a greve como injusta e sem legitimidade. A
Rede Globo continuou sua saga contra qualquer luta popular, inclu-
sive, tentando por todos os meios tirar a virtude da luta dos garis
por melhores salários, que recebiam à época em média aproximada-
mente míseros R$ 800,00.
Ao mesmo tempo, se essa nobreza midiática (Moraes, 2017)
(com rede de televisão, jornal, rádio, internet) tivesse qualquer
compromisso com um jornalismo sério, ouviria as duas partes em
litígio. Isso é o que ensina todo manual nas escolas de comunicação.
Não obstante, ela só ouviu o prefeito, seus asseclas e os represen-
tantes do sindicato (sabendo que este era contra a greve dos tra-
balhadores por melhores salários). Os grevistas não foram ouvidos.

320 wallace de moraes


fonte: jornal a nova democracia

Mas, pior do que isso, o foco da grande mídia foi sobre o lixo não
recolhido na cidade, não importava se a reivindicação era justa e se
o salário era indecente. Além do mais, para deslegitimar a luta dos
garis, os governantes socioculturais tentaram associar a greve a in-
teresses políticos escusos, como se os garis não pudessem pensar
por si próprios, nem tivessem capacidade para se indignar com um
salário indecente. Entretanto, essa postura não representou nenhu-
ma novidade. Essa emissora historicamente cumpriu esse papel.61
Sem dúvida, o pior lixo é aquele divulgado pelos grandes oligopólios
de comunicação de massa nesse país.
Os governantes jurídicos, por sua vez, rapidamente, crimina-
lizaram a greve, dizendo que era ilegal, como era de se esperar.62

61 Veja com mais detalhes em: http://www.otal.ifcs.ufrj.br/a-cobertura-antipopular-da-mi…/


62 “A desembargadora Rosana Salim Villela Travesedo, do Tribunal Regional do Trabalho
do Estado do Rio de Janeiro (TRT-RJ), declarou a “abusividade e ilegalidade” de qualquer
movimento de paralisação dos garis vinculados à Companhia Municipal de Limpeza Ur-
bana (Comlurb).” Fonte: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-03/justica-do-
-trabalho-declara-ilegalidade-de-greve-de-garis-no-rio

2013 - revolta dos governados 321


Os governantes penais trataram de obrigar os garis a recolherem o
lixo da cidade. Enfim, todas as governanças atuaram em conjunto
para a criminalização da luta dos profissionais de limpeza. Porém,
por se organizarem sem lideres formais e por fora das estruturas
institucionais, conseguiram se esquivar (no sentido da capoeira) das
opressões governamentais, deram uma “meia-lua de compasso” e
chegaram a uma vitória, que não foi a ideal, mas bastante significati-
va diante do quadro anterior e de tudo que os cercaram.
No interior dessa disputa, os trabalhadores lançaram uma carta
à população no dia 06 março 2014 e foi bastante emblemática para en-
tender o significado do movimento. Vejamos.

Garis: Carta da Comissão de Greve para


a população do Rio de Janeiro

Sobre a greve dos garis e agentes de preparo de alimen-


tos, após 6 dias de paralisação, queremos esclarecer o
seguinte:

1- A culpa da greve é do prefeito Eduardo Paes, do pre-


sidente da COMLURB e do presidente do Sindicato que não
vem representando a nossa categoria.

2- Sofremos há muito tempo com péssimas condições de


trabalho, banheiros insalubres, não temos equipamentos
de segurança adequados, e baixos salários. A situação é
tão absurda que no café servido pela COMLURB já encon-
tramos baratas no pão e leite estragado. Há ainda assédio
moral contra os trabalhadores. Estamos sendo coagidos a
realizar um trabalho.

3- A direção do sindicato abandonou a pauta de reivin-


dicação da categoria quando aceitou as imposições do
Prefeito Eduardo Paes sem o consentimento dos traba-
lhadores, trazendo indignação dentro de toda a categoria
aonde se iniciou o processo da greve.

322 wallace de moraes


4- A direção do sindicato traiu a categoria também
quando recuou da greve de advertência de um dia no dia
1º de março, mostrando que não está ao lado da categoria.
O maior absurdo é que isso ocorreu em meio ao nosso dis-
sídio e sem que os advogados do sindicato e a estrutura
de nossa entidade fosse colocada a serviço de nossa luta.

5- As informações mostradas na imprensa, com base nas


informações da prefeitura e do sindicato, não são ver-
dadeiras. Não são apenas 300 garis que estão em greve. A
ampla maioria dos trabalhadores não está realizando as
suas funções, mesmo que alguns estejam se apresentando
em suas gerências em função da pressão e das ameaças
sofridas por parte dos gerentes. O acúmulo de lixo na ci-
dade revela a ampla adesão de nossa greve.

6- Os transtornos criados em função do acúmulo do lixo


na cidade são de única e exclusiva responsabilidade do
prefeito Eduardo Paes e do presidente da COMLURB que se
negam a negociar e atender nossas reivindicações. São
eles os que devem ser cobrados por toda essa situação.
Nos só queremos dignidade em nosso trabalho essa é nos-
sa única motivação.

7- Repudiamos a criminalização de nosso movimento e a


tentativa de nos intimidar por meio de demissões de de-
cisões da justiça.

8- Pedimos apoio e solidariedade de toda a população


do Rio de Janeiro, dos sindicatos comprometidos com os
trabalhadores, parlamentares que atuam nas mobiliza-
ções e todos os que desejem nos ajudar a que a greve con-
siga uma vitória.

Rio de Janeiro, 06/03/2014

Comissão de Greve
eleita na assembleia do dia 01 de março.

2013 - revolta dos governados 323


Essa greve simboliza um dos principais legados de junho. Mas,
tal como aconteceu com os insurgentes, ela foi seguida por crimina-
lização do movimento paredista. Depois da greve vitoriosa, mais de
70 garis foram demitidos sem justa causa, só porque os governantes
os identificaram como lideranças do movimento.63 Se tivéssemos
centrais sindicais comprometidas com a luta direta do trabalhador,
seriam preparadas greves gerais para reverter esse quadro. Toda-
via, infelizmente, a maioria dos sindicatos tinha mais compromissos
com os patrões e/ou com os governos do que com os governados.

GREVE DO COMPERJ

Mais ou menos no mesmo tom da greve dos garis, os trabalha-


dores do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (COMPERJ) or-
ganizaram uma greve massiva, também por fora da direção sindical,
que fez de tudo para impedi-la. Esses trabalhadores fizeram assem-
bleias de massas com aproximadamente 20 mil pessoas e diversas
passeatas em Itaboraí e até na Ponte Rio-Niterói. O panfleto do FOB
abaixo é bastante informativo de suas ações.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Trabalhadores do COMPERJ em GREVE!!!

Os trabalhadores do Complexo Petroquímico do Rio


de Janeiro (Comperj) completaram 33 dias de greve
nesta segunda-feira (10), quando a categoria rea-
lizou uma assembleia com cerca de 20 mil trabalha-
dores e, por unanimidade, manteve a paralisação. Os
trabalhadores, assim como na greve dos professo-
res do RJ de 2013 e dos Garis de 2014, enfrentam não

63 Ver: http://anovademocracia.com.br/no-150/5907-rj-lideres-da-greve-dos-garis-sao-demi-
tidos

324 wallace de moraes


só os patrões e o estado como a pelego Sindicato
dos Trabalhadores do Plano da Construção, Monta-
gem e Manutenção de São Gonçalo, Itaboraí e Região
(Sinticom), filiado a CUT, que representa os 29,2 mil
trabalhadores do Comperj. Os operários já queima-
ram uma caminhonete em 5 de fevereiro, ainda nos
primeiros protestos, e sofreram tentativas de as-
sassinato com dois feridos atingidos por capangas.

Os trabalhadores das obras do Comperj reivindicam:

reajuste salarial de 11,5%;

elevação do vale alimentação para R$ 450/Mês.

TODO APOIO A LUTA DOS TRABALHADORES DO COMPERJ!!

ABAIXO A BUROCRACIA SINDICAL!!!

MOBILIZAÇÃO PELA BASE e pela via da AÇÃO DIRETA!!!!

fonte: fob – assembleia dos trabalhadores do comperj em março de 2014


decidindo pela greve

2013 - revolta dos governados 325


PROTESTOS COM SAMBA NO CARNAVAL

No carnaval de 2014 o clima dos protestos ainda vigorava. A


Fundição Progresso fez um concurso nacional de melhor marchi-
nha para o carnaval daquele ano e a mais votada foi “Menina Black
Bloc”, de Oswaldo G Pereira. A Rede Globo transmitiu a votação ao
vivo no programa Fantástico, onde a escolha popular predominou.
Segue a letra da marchinha.

Menina Black Bloc


Oswaldo G Pereira

Menina Black Bloc


Black Bloc, Black Bloc
Eu vou botar na rua
Um batalhão de choque
Muita pimenta e bomba
De efeito imoral
Pra gente quebrar tudo
Nesse carnaval

Eu que vivia uma vida atrasada


Encalhada, sem transformação
Ela chegou revoltada
E deu uma pedrada na minha ilusão
Hoje eu não conto cascata
Nem fico querendo mamata jamais
E o nosso amor é feito uma cidade
De prosperidade e paz

326 wallace de moraes


No mesmo sentido mais permeado pela ação direta, surgiram
outros blocos de carnaval como o Pula Roleta64 e o Ocupa Carnaval
de 201465. No clima de politização e indignação, 50 mil torcedores
do Botafogo de Futebol e Regatas xingaram a Rede Globo no Ma-
racanã.66

OCUPAÇÕES DE ESCOLAS

Ainda na esteira e/ou com o espírito de 2013, estudantes secun-


daristas e universitários protagonizaram uma luta que deveria ser
de toda a sociedade, a luta pela educação. Eles ocuparam escolas,
exigindo direitos e melhores condições de estudo. Nessas experiên-
cias, vários princípios do pensamento anarquista foram postos em
prática como autogestão, ação direta, horizontalidade e federalis-
mo.67 Só em São Paulo, onde tudo começou, no ano de 2015, foram
cerca de 200 escolas da rede estadual ocupadas contra o chamado
plano de reorganização escolar do Governador Geraldo Alckmin. En-
tre 2015 e 16, foram 28 escolas ocupadas em Goiás e mais de 70 esco-
las ocupadas no Rio de Janeiro, no momento de greve dos docentes
(Santana, 2016).
O relato de Santana (2016) é bastante expressivo do significado
das ocupações, em especial no Rio de Janeiro, com suas atividades
pedagógicas autogestionárias, vejamos:
“Atividades culturais, debates políticos e rodas de discussão
sobre machismo, feminismo e opressões em geral, aulas dinâmicas
com foco no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) ou aulas para
debater assuntos cotidianos ligados à saúde, saneamento e outras
questões pertinentes para refletir a realidade que nos cerca. Tive-
64 Vídeo do bloco pula roleta no carnaval de 2014: https://www.youtube.com/watch?v=uH-
pkvWzENy0
65 https://soundcloud.com/ocupa-carnaval
66 https://www.youtube.com/watch?v=6u_5c7B-PW0&feature=youtu.be
67 Santana (2016) tem um belo estudo sobre o assunto.

2013 - revolta dos governados 327


ram apoio alimentício ou em ajudas estruturais para que as ocupa-
ções pudessem continuar a permanecer fortes e reivindicar uma
escola e educação públicas de qualidade para os filhos e filhas da
classe trabalhadora.”
Em resumo, podemos elencar as ocupações de escolas e uni-
versidades em 2015 e 2016 como parte de um movimento de con-
testação das estruturas existentes na sociedade, que teve muita
influência de 2013. No IFCS, por exemplo, os estudantes consegui-
ram um feito histórico ao ocuparem o prédio e exigirem o restau-
rante universitário. Depois de muita ação direta e negociação, a luta
foi vitoriosa e, até a publicação desse livro, o “bandejão” estava em
pleno funcionamento, possibilitando a centenas de estudantes um
alimento que lhes permitiria cumprir mais horas de estudo e convi-
vência na Universidade.
Mais um fato é importante relatar. Em grande parte dessas ocu-
pações ocorreram tensões entre estudantes ligados a partidos polí-
ticos e estudantes independentes, que rechaçavam a influência dos
partidos nas direções das atividades. Essa característica deve nos
fazer pensar que a repulsa aos partidos políticos, com sua soberba
e ânsia por dirigir os governados, não foi um fenômeno exclusivo de
2013 e tampouco conduzido pela “direita”, que aliás tem seus parti-
dos e candidatos que igualmente querem dirigir os demais.

COMEÇO DO FIM DO MOVIMENTO

Além das greves, ocupações, rolezinhos e ações diretas nas fa-


velas e periferias, os insurgentes tentaram retomar as atividades de
rua no Centro da cidade em 2014. Algumas passeatas foram organi-
zadas e muitas delas com ação direta, como a liberação das roletas
dos trens da Central do Brasil pelos manifestantes, que favorece-
ram os usuários. Não obstante, quando o movimento parecia se re-
erguer, um cinegrafista da Rede Bandeirantes foi atingido em uma

328 wallace de moraes


manifestação e depois veio a falecer. Nos vídeos divulgados ainda
no dia, parecia que tinha sido alvo da PM, fato que reacenderia a
luta popular com toda a força. Todavia, logo a seguir, a PM acusou
os manifestantes Caio Silva e Fabio Raposo, como autores do acen-
dimento dos fogos de artifício, que supostamente mataram o cine-
grafista. Era tudo que desejavam os governantes em geral para a
criminalização do movimento. Os dois jovens da periferia continu-
avam presos até a publicação desse livro. Um trabalhava como aju-
dante de serviços gerais e o outro era tatuador, ambos moravam na
periferia do Rio de Janeiro, mas bem distante daquele manifestante
de classe média pintado pelos intelectuais da esquerda oficial. Ou-
tras pessoas já haviam morrido em outros protestos, mas nenhuma
delas tinha sido alvo dos manifestantes, ao contrário. Toda morte é
horrenda, mas umas tem mais visibilidade e atende a interesses de
poderosos que outras. A morte do cinegrafista foi a pior coisa que
aconteceu em todos os sentidos tanto para a família que o perdeu,
quanto para o movimento, que começou a fenecer. Não obstante,
indubitavelmente, os acusados não tiveram a intenção de matar,
muito menos matar o cinegrafista. Foi um trágico infortúnio, que os
governantes jurídicos se recusaram a reconhecer.
No dia 20/02/2014, a Organização Anarquista Terra e Liberdade
(OATL) lançou uma nota sobre os acontecimentos daquele feverei-
ro de 2014.68 Vale a leitura.

68 Fonte: https://terraeliberdade.org/nota-da-oatl-sobre-a-criminalizacao-dos-movimentos-
-sociais-anarquismo-e-o-terror-de-estado/, acessado em 13 de agosto de 2018.

2013 - revolta dos governados 329


NOTA DA OATL SOBRE A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS
SOCIAIS, DO ANARQUISMO E O TERROR DE ESTADO

Esta nota tem a intenção de responder às recentes acu-


sações que a Organização Anarquista Terra e Liberdade,
juntamente com outros movimentos sociais organizados,
vem sofrendo por parte da grande imprensa e da mídia
oficial, pelas quais participaríamos da direção e do su-
posto financiamento da violência nos atos. Repudiamos
esta tentativa clara de criminalizar e desqualificar os
movimentos sociais, que, além disso, demonstra um com-
pleto desconhecimento do que se passa nas ruas. É o pró-
prio povo que se protege, que se rebela e, em diversos
cantos do país e da cidade, onde nem existem grupos po-
líticos organizados, avança e mantém sua luta.

Desde Junho de 2013 observamos o povo, em todo o Brasil,


ir às ruas exigir reais modificações sociais. De Norte a
Sul vimos se espalhar a rebeldia, a indignação, o ódio
ao Estado opressor, a luta por saúde, moradia e edu-
cação, o confronto direto com os capitalistas (como os
monopólios dos transportes públicos), o ataque a bancos
(símbolos do capitalismo que nos sugam todos os dias) e
órgãos da repressão, inclusive da ditadura (como o clube
militar e a marcha dos torturadores no dia 7 de Setembro,
a PM, etc). Hoje, mais uma vez tentam criminalizar a re-
beldia anarquista, com perseguições, fabricação de fatos
pela imprensa, tipificação e criminalização dos manifes-
tantes, da revolta.

Desde então, a mídia burguesa tenta silenciar, distor-


cer, controlar e criminalizar a revolta popular, misti-
ficando e fabricando farsas, mentiras que não condizem
com a realidade, distorcendo e criminalizando a luta e o

330 wallace de moraes


anarquismo. O que mais incomoda é que o crescimento do
anarquismo e sua difusão incontida, incontrolável, não
é obra, apenas, desta ou daquela organização anarquista,
mas, principalmente, do reconhecimento popular da crise
terminal do Estado, das instituições capitalistas, e da
hipocrisia de seus governantes.

Neste ano, não têm sido diferente. “Olha nós aqui de


novo!” A população retomou as ruas, indignada com a re-
pressão policial, contra os assassinatos cometidos pela
UPP e pela PM, contra o genocídio da população negra
e pobre, contra os aumentos abusivos das passagens de
ônibus e contra as remoções de casas, a elevação do cus-
to de vida, os gastos exorbitantes de dinheiro público em
megaeventos como a Copa e as Olimpíadas.

Após a morte do cinegrafista Santiago Andrade (e de de-


zenas de feridos entre crianças, idosos e outros abu-
sos de poder do Estado, ocultados pela mídia), que
morreu em uma manifestação após o ataque extre-
mamente violento da PM aos manifestantes que ocu-
pavam a Central do Brasil e em decorrência de um
acidente com fogos de artifício que o atingiu, a mídia
burguesa tem tentado, com seu sensacionalismo e in-
formações forjadas, criminalizar a revolta popular.
Sabemos que setores de inteligência de Estado, da Po-
lícia Federal, Exército e Guarda Nacional, e da própria
imprensa fascista estão sendo cada vez mais utilizados
como abuso de poder para perseguir, violar os direitos
de privacidade, de organização e manifestação política,
de forma orquestrada, tudo com o reconhecimento e or-
denação explícita do governo sob anuência do Congresso
e de todos os partidos políticos aí representáveis. Per-
demos três companheiros na última Jornada! A farsa cri-

2013 - revolta dos governados 331


minalizatória pesa e espezinha nosso sofrimento, nossa
dor... Sequer podemos chorar a violência que sofremos,
pois estão à nossa caça. Não é civilização, capitalismo
é violência!

A morte do trabalhador Santiago também nos dói, senti-


mos muito pelo ocorrido, porém, algumas coisas preci-
sam ser apontadas:

1) Nenhuma morte teria acontecido, se a Polícia não ti-


vesse reprimido brutalmente a manifestação. A repressão
brutal da PM e o cenário de medo, pânico e dor aí criados
foram determinantes de todas as situações de violência
e morte. Outros atos na mesma Central do Brasil já ha-
viam acontecido, com 2 catracaços (o povo pulou a role-
ta), sem qualquer agressão ou ato de violência. Portanto,
a responsabilidade pela morte de Santiago, como pelas
outras tantas mortes e agressões, é do Estado, ele que é
o assassino de Santiago, assim como ele que é o assassi-
no na Chacina da Candelária, Vigário Geral, Borel, Acari,
Carandiru, Pinheirinhos, etc. Foi a repressão policial nas
manifestações que tirou a visão de tantos cinegrafistas
e manifestantes, que foi responsável diretamente pela
morte de pelo menos seis pessoas em manifestações des-
de o ano passado, que atirou com munição letal em outros
tantos manifestantes, deixando danos irreversíveis em
um rapaz na semana anterior em São Paulo, que prendeu
centenas de pessoas injustamente, que gerou ódio e a ne-
cessidade de se defender. Nada (ou quase nada) sobre es-
tes casos foi dito na mídia oficial.

2) Como podemos ver nos vídeos, o que aconteceu foi um


acidente, diferente do GENOCÍDIO planejado que o Estado
por intermédio da polícia faz, todos os dias, em favelas
e bairros pobres do Brasil. Acidente este que poderia ter

332 wallace de moraes


sido evitado se a emissora na qual o jornalista trabalha-
va tivesse lhe oferecido mínimas condições de seguran-
ça para trabalhar em uma zona de conflito. Não podemos
deixar de dizer que esta emissora deve ser responsabili-
zada por isso, algo sobre o que também se faz um profundo
silêncio nos meios de comunicação.

3) De modo algum a resistência e tentativa de se proteger


por parte da população diante da violência policial, que
naquele dia atirava bombas de gás a cada segundo den-
tro da central lotada de trabalhadores, idosos e crianças
pode ser classificada como homicídio, nem sequer culpo-
so, quanto mais doloso. Não existe qualquer indício que
permita classificar o fato como homicídio doloso (pro-
duzido com a intenção de matar). Ao contrário, todos os
elementos de prova do caso demonstram que não houve
intencionalidade (domínio do fato), no caso, dos réus
atualmente acusados pela polícia civil e pelo Estado.
Ocorre apenas que, algum dia, as pessoas cansam de apa-
nhar caladas, de receber tiros de bala de borracha e de
munição letal, de ver seus colegas apanharem, e por isso
começam, sem direção de qualquer grupo, ainda que cada
vez mais organizadamente, a se proteger, se defender, a
usar escudos, a levar materiais para primeiros socorros,
a usar também rojões para afastar o avanço violento da
PM, em suma, a exercer o inalienável direito à rebelião
dos povos. Infelizmente, por conta do reformismo, por
muitos anos grande parte dos movimentos sociais e sin-
dicatos abandonaram a auto-defesa e a “desobediência”,
o que gerou efeitos negativos.

4) Pedir a prisão e defender a condenação dos dois ma-


nifestantes como assassinos, como tem sido feito inclu-
sive pela esquerda eleitoral, é um ABSURDO. Fazer isso

2013 - revolta dos governados 333


é legitimar a repressão, o sistema carcerário, condenar
o levante popular. Tal atitude mostra bem de que lado
da luta de classes se encontra a esquerda oportunista.
Diante deste precedente, centenas, talvez milhares de
companheiras de lutas poderão ser presas, por acusações
falsas, forjadas, por ‘usarem máscaras’ e/ou escudos de
auto-defesa, taxadas como ‘terroristas’ em potencial.
Qualquer um poderá ser preso preventivamente, por ‘or-
ganização criminosa’, pela sanha fascista do Estado nos
próximos dias e meses, como forma de garantia e pre-
servação da ordem capitalista! CONTINUAREMOS LUTAN-
DO PELA LIBERDADE de todas as/os presa/os políticos, por
sua anistia irrestrita, pelos direitos, em defesa da vida,
da liberdade, em defesa da rebeldia de todas as pessoas
que ousam lutar contra a opressão e que participam da
luta popular. E, ainda, dizemos abertamente que não são
assassinos. Assassina é a lógica da razão de segurança
de Estado de Cabral e Dilma, de infiltração de agentes
(P2), de invasão de privacidade, de perseguição política,
de criminalização, coação, ameaça e imposição do medo
(terror) contra os manifestantes! Que invade contas de
internet, que planta provas surreais, que manipula ima-
gens, ranços dos idos de 64, 68 …

Vale a pena dizer que o transporte público é uma con-


cessão pública, do povo ao qual emana o direito, ten-
do este o dever e direito de se rebelar contra qualquer
arbítrio como o aumento abusivo das passagens, a pés-
sima qualidade dos transportes, as remoções, contra
as opressões. A resposta do Estado em defesa de in-
teresses privados, a farsa da CPI dos Transportes, a
concessão privilegiada das ferrovias à Supervia-O-
debrechet, a concessão privada para a Fifa-Consórcio

334 wallace de moraes


Maracanã-Odebrechet de mais da metade do Território
Indígena Teko Haw Maraká’nà, promovendo a sua muti-
lação fascista, demonstram de que lado está o Estado!
Por fim, chamamos a mídia burguesa de fascista por-
que, além de enganar a população com falsas informa-
ções, pedir mais leis de repressão, simplesmente não
fala da morte das milhares de pessoas que não assassi-
nadas pela PM todos os dias, só interessando a essa mídia
tentar criminalizar a revolta popular. Dois dias antes
da morte de Santiago, dois rapazes, negros e pobres, fo-
ram assassinados brutalmente pela polícia no bairro da
Praça Seca. A mídia pouco ligou pro assassinato destes
dois jovens trabalhadores, não abordando na maioria de
seus jornais o fato, pois, para as grandes corporações
controladoras de uma boa parte da informação, a morte
de duas pessoas pobres e negras pouco importa, estando
mais satisfeita em fazer de um grande espetáculo contra
os movimentos sociais e a população pobre e periférica.
É preciso denunciar ainda a tentativa espúria de desqua-
lificar a luta popular mediante a acusação de pagamento
de cachê à população pobre para ir à manifestação. Tal
acusação ridícula só não é mais cômica porque cumpre o
papel ideológico de reduzir toda revolta aos princípios
do capitalismo, como se o povo não pudesse se revoltar
senão por dinheiro, como se o levante da população fosse
mais uma mercadoria, como se tudo fosse comprável. Para
estes é preciso ainda dizer: sim, é possível que o povo
esteja se rebelando realmente, é possível haver ainda
humanidade para além do comércio e das próximas elei-
ções. Nós somos a falha no seu sistema, o que não é lido
no seu código, o que você não entende e não pode deter.
A OATL, uma organização anarquista que atua em fave-
las, ocupações sem-teto, escolas e locais de trabalho,

2013 - revolta dos governados 335


sindicatos, em iniciativas autogestionadas de educa-
ção popular, nas lutas pelo direito à moradia e à cidade,
promovendo atividades culturais, de ensino e de produ-
ção coletiva de conhecimento, organização popular, de
luta pela terra, pelo direito às diferenças e à convivên-
cia comunitária, foi citada de forma leviana em maté-
rias na imprensa. Não somos nem queremos ser vanguarda
da luta popular. Mas somos e seremos sempre intransi-
gentes quanto à defesa e garantia do direito à rebel-
dia! Do direito à resistência a qualquer ordem abusiva!
Não estamos dispostos a ficar sentados no trono de um
apartamento como se nada estivesse acontecendo, como
se milhares de pessoas não estivessem sendo removi-
das e outras tantas assassinadas ou perseguidas pela PM.
O que as ruas não cessam de dizer desde junho passado
e alguns teimam em não escutar é: o povo não precisa
de chefes! Somos uma organização política que sempre
atuou e continuará atuando com o povo pelo fim do capi-
talismo e deste Estado que mata e extermina.

NINGUÉM DIRIGE OU CONTROLA A LUTA POPULAR!

Organização Anarquista Terra e Liberdade

Podemos perceber como os governantes socioculturais apro-


veitaram e intensificaram absurdamente a campanha contra os
Black Blocs, deixando praticamente insustentável permanecer nas
ruas. Manifestantes foram equiparados a terroristas dos mais peri-
gosos e cruéis. Para piorar, a governança política plutocrática liberal
dissimulada petista sancionou a Lei Antiterrorismo com vistas a en-
quadrar os insurgentes. O petismo dava o tiro no Black Bloc, mas ele
ricochetearia e atingiria em cheio também seu próprio peito, mate-
rializando-se no impeachment de Dilma Rousseff. Foi o caminho sem
volta do petismo para a direita criminalista.

336 wallace de moraes


De forma teimosa, a Revolta do Vinagre arrefeceu, mas ainda
não havia morrido, pois respirava com aparelhos e o seu último sus-
piro aconteceu antes da Copa do Mundo. Os protestos foram, na
prática, proibidos. A Lei Antiterrorismo da Dilma foi para a Revolta
dos Governados de 2013 o que foi o AI5 para os insurgentes de 1968.
Atos ditatoriais que caçavam opositores ao regime de exploração
capitalista.
A caça aos manifestantes foi aberta e os atos contra a Copa,
proibidos. Tudo pela Copa. Os tanques das Forças Armadas patru-
lhavam as ruas do Rio de Janeiro. A OATL divulgou outra nota re-
presentativa do momento.69 Dias depois alguns de seus militantes
seriam presos. Vejamos:

Nota da OATL em apoio à FIP e contra a


ação policial no ato do dia 28 de junho:

A ação policial contra o ato “Não vai ter copa/Fifa go


home” no dia 28 de junho foi um completo absurdo. Não foi
um absurdo somente em uma perspectiva de esquerda ou
revolucionária, mas foi um absurdo até mesmo do ponto
de vista constitucional. A ação da repressão no intuito
de simplesmente acabar com o ato foi uma clara cassa-
ção ao direito de livre manifestação. Acontece que é uma
mentira que a polícia serve para manter a lei, a polícia
existe para manter a ordem burguesa, mesmo que para isso
precise ir contra a própria lei criada pelas instituições
produzidas pela própria burguesia. O que aconteceu foi
um show de ilegalidades: pessoas presas por portarem
megafone; bandeiras e panfletos apreendidos; revistas
e coações arbitrárias; pessoas agredidas simplesmente

69 Essa nota foi publicada no dia 30 de junho de 2014 na página da organização no Facebook:
https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=577284159054910&id=398254483-
624546 acessado em 13 de agosto de 2018.

2013 - revolta dos governados 337


por estarem em uma manifestação; mulheres transporta-
das em viaturas lotadas de policias homens e sem acom-
panhamento; menores de idade rodando durante horas em
viaturas sem sabermos ao certo seu paradeiro; pessoas
agredidas dentro de viaturas. Cassetetes e spray de pi-
menta, simplesmente porque as pessoas estavam nas ruas.
A polícia tentou cercar o ato desde o seu início, tentando
impedir a sua saída e fazendo bloqueios em várias ruas
para impedir a passagem. Nenhuma pessoa presa teve di-
reito a ser acompanhada por um advogado e a razão da
prisão consistiu simplesmente em tentar seguir com o
ato. Esse tipo de ação caracteriza um verdadeiro estado
de exceção, onde a exceção de fato se torna a regra em
nome do lucro dos empresários e dos governos em vir-
tude dos megaeventos. Essa não foi a primeira vez, esse
tipo de ação da repressão tem ocorrido em todo Brasil,
como em recente manifestação em São Paulo e já ocorreu
também no Rio de Janeiro, onde observamos a tentati-
va sistemática de impedir a existência de manifestações
de rua. No momento em que metroviários são demitidos
em São Paulo e trabalhadores da educação são ameaça-
dos de demissão simplesmente por exercerem seu legí-
timo direito de greve, não podemos deixar de lembrar
da ditadura militar brasileira e o auge do recrudesci-
mento da repressão, que simplesmente proibiu manifes-
tações de rua e o direito de greve. Porém, o momento é
de cabeça erguida, lembremos que mesmo com toda re-
pressão, a juventude combatente é corajosa e aguerrida.
Que mesmo nesse dia os manifestantes ainda consegui-
ram retornar a Praça Saens Peña, onde encerraram o ato
diante de um aparato policial de guerra. Lembremos tam-
bém da força e coragem dos garis, que mesmo com toda
ameaça de demissão resistiram e garantiram na mar-

338 wallace de moraes


ra uma importante vitória para a classe trabalhadora!
Por fim, vamos saudar a coragem das mulheres, destas
guerreiras que estão nas ruas enfrentando a repressão e
não recuando diante do choque, mesmo com toda a socie-
dade patriarcal que procura invisibilizá-las e que, mes-
mo na esquerda, desqualifica as suas ações. Mais uma vez
a ação policial visou deter covardemente sobretudo as
mulheres, mais uma vez as mulheres mostraram sua força!
Companheirxs, o presente é de luta, o futuro é nosso!
Todo apoio à Frente Independente Popular – RJ!!!!”

Nas vésperas da final da Copa do Mundo, vários ativistas da


OATL e de outras organizações tiveram mandados de prisão decre-
tados e foram presos em suas casas por se expressarem e lutarem
nas manifestações de 2013/14. Foram eles que lutaram incansavel-
mente contra os absurdos expostos nesse livro, por exemplo, de
pessoas honestas como Sérgio Cabral. Foi o golpe final em um ano
de sonho, luta, amor, combatividade, ação direta, propaganda pelo
ato, barricadas e esperanças.

2013 - revolta dos governados 339


No dia seguinte à prisão de 23 manifestantes, escrevi no meu
Facebook o texto que reproduzo abaixo. Trata-se de pequeno desa-
bafo no sentido de explicar melhor o sentimento da época.

POR FAVOR, ENTENDA E NÃO VENHA


COMEMORAR A COPA COMIGO70

13 de junho de 2014

A nossa democracia vai muito bem, obrigado, di-


ria Mussolini. As greves estão proibidas, mas não
só, elas vêm acompanhadas de achincalhamento pú-
blico, pelos oligopólios de comunicação de massa,
dos que lutam. Os protestos estão proibidos, a não
ser que as pessoas queiram correr risco de morte.
Um repórter da Reuters fraturou o crânio, outro da
CNN sofreu graves ferimentos com os ataques poli-
cias. Imaginem o que aconteceu com os manifestan-
tes comuns, o que foi censurado pela grande mídia.
Somente os guerreiros vão para as ruas, mas mesmo
assim, são chamados de pequena minoria que quer
dificultar a festa da Copa, sobretudo, porque exi-
gem melhorias para saúde, educação, moradia etc
para todos. Devem apanhar para aprender a não mais
fazer exigências aos governos, diriam os stalinis-
tas. Devem apanhar calados e ordeiramente, pois
se reagirem são logo taxados de vândalos e denun-
ciados. Professores críticos e combativos são ar-
rastados como animais pelas ruas em plena luz do
dia. Os franquistas ficariam muito felizes com essas
cenas pedagógicas de tortura pública. Policiais das
UPPs já mataram várias pessoas das comunidades
que deveriam proteger. A ordem é: mais repressão

70 http://www.otal.ifcs.ufrj.br/por-favor-entenda-e-nao-venha-comemorar-a-copa-comigo/

340 wallace de moraes


às favelas, que não têm escolas, hospitais, sane-
amento básico, área de lazer etc, e isso é saudado
como melhoria para a população. Ao mesmo tempo,
os repressores estatais (governantes penais) são
apresentados como grandes vítimas.

O povo está tão feliz que os governantes não po-


dem aparecer em locais públicos e logo são presen-
teados com vaias, xingamentos etc. Cada vez mais,
os políticos têm que pagar claques para aplaudi-
-los, como num verdadeiro filme, tal qual “O Show
de Trumman”.71

Nessa semana, a polícia foi nas casas de algumas


pessoas para apreensão de seus computadores, sob
a alegação de que difamaram um dos candidatos à
presidência do Brasil. Vários estudantes também
tiveram suas casas invadidas e seus computadores
confiscados sob argumentação de formação de qua-
drilha. Isso porque foram considerados líderes dos
protestos que não têm lideranças. Tempos que dei-
xaria Hitler muito feliz. Falta muito para os campos
de concentração?72 Por lembrar do regime nazista,
os oligopólios de comunicação de massa mostraram
que aprenderam perfeitamente os ensinamentos de
Goebbels, ministro das comunicações da Alemanha
nazista. Sua máxima era: “uma mentira dita mil ve-
zes, torna-se verdade”. E assim, El pueblo, que es-

71 “Show de Trumman – o show da vida”, filme de 1998 sob direção de Peter Weir. Trata-se
de comédia com humor negro, cujo ator principal, Jim Carrey, vive em uma ilha onde to-
dos os outros habitantes são atores e tudo que ele faz é controlado, manipulado, filmado
e transmitido pela TV para o mundo todo como um fenômeno que fica no ar 24 horas
por dia.
72 Segundo Mendes (2017: 255), Caio e Fabio, acusados de acenderem o morteiro que matou
o cinegrafista Santiago, foram torturados na prisão, com Fábio sendo espancado.

2013 - revolta dos governados 341


tava revoltado com os gastos da Copa e com tanta
injustiça, viu-se quase que compulsoriamente in-
duzido a torcer.

Nesse sentido, o povo ordeiro, de Sérgio Buarque de


Holanda, que canta o hino nacional e porta bandeira
do Brasil, é amplamente exaltado. Um exemplo de
brasileiro!!, dizem os jornalistas. Pão e circo foi
a clássica forma de dominação romana. Não obs-
tante, os governantes no Brasil a readaptaram e
impuseram ao povo a dupla: futebol e cerveja (pre-
ferencialmente acompanhada por mulheres “mara-
vilhosas”, mostradas como mercadorias).

Por fim, você que está muito feliz com a Copa e


torceu demasiadamente por aqueles meninos po-
bres, que moram no exterior, vestindo uma camisa
amarelinha, desculpe-me, não quero jogar água no
seu chope, mas o que me move para atentar contra
a sua felicidade é que nesse momento existem pes-
soas que não estão sendo atendidas nos hospitais
por falta de investimento. Sei que crianças estão
sem aula, ou nas ruas, sem comida ou proteção, por
igual motivo. Em resumo, estou mais preocupado
com as pessoas que foram despejadas de suas casas
para esse torneio de padrão internacional em todos
os sentidos. Por obséquio, não reproduza para mim
aquilo que você ouviu nos telejornais justificando
a Copa. Não atente dessa forma simplória contra a
minha inteligência. Acho que estou ficando louco,
mas considero um absurdo um mundo no qual um jo-
gador de futebol é muito mais valorizado que um
professor. Por favor, entenda e não venha comemo-
rar a Copa comigo. Obrigado!

342 wallace de moraes


No sentido de dar voz aos criminalizados, apresentando seus
motivos por eles mesmos, segue documento histórico sobre a cri-
minalização das lutadoras e dos lutadores de 2013. Vejamos a nota
publicada em 28 de julho de 2014 pela OATL73:

“Nota da Organização Anarquista Terra e Liberdade sobre


as prisões dxs lutadorxs e as perseguições políticas

São tempos duros, companheirxs. É difícil encontrar as


palavras que transmitam a nossa indignação frente às
absurdas prisões políticas dxs lutadorxs, iniciadas no
último 11 de julho.

Onde um Estado cujas palavras de ordem são a arbitrarie-


dade e a violência, e onde a Lei é a inconstitucionalidade,

73 Nota postada na página da organização http://terraeliberdade.org/nota-da-organizacao-


-anarquista-terra-e-liberdade-sobre-as-prisoes-dxs-lutadorxs-e-as-persiguicoes-politicas/-
#more-940, acessado em 13 de outubro de 2018.

2013 - revolta dos governados 343


para nós, que nunca acreditamos na Justiça burguesa, o
que nos fortalece é o apoio mútuo e as redes de solida-
riedade axs presxs, foragidxs e aos seus familiares que se
formaram em vários setores da sociedade civil. É urgen-
te que façamos uma campanha anticarcerária nacional e
forte, contra a criminalização dos movimentos sociais,
dxs lutadorxs e das organizações da classe trabalhadora,
como também pelo fim imediato de todos os processos e
inquéritos.

Para muitos é uma surpresa assustadora que o momento


de maior repressão política desde a instauração do AI-5
se dê no governo do PT. Para nós isso não é uma surpre-
sa, é apenas a consequência lógica do jogo estatal, quem
aceita fazer parte da farsa eleitoral, automaticamente
se coloca ao lado dos torturadores. Um exemplo é o atual
secretário de segurança pública do Rio, que era agente
infiltrado da ditadura no movimento estudantil e, assim
como todos os torturadores e outros crápulas do regime,
continuou seu trabalho sem grandes mudanças sob o dito
regime democrático. A farsa da redemocratização está
escancarada, a mesma PM que matava na ditadura civil-
-militar é a que mata hoje, que é a mesma que matava na
ditadura varguista que é a mesma que matava com Arthur
Bernardes, que é a mesma que caçava escravos fugitivos
e índios rebeldes. A repressão não surgiu em 64 e não
acabou em 85.

Nos marcos desse exemplo histórico de caçada aos movi-


mentos reais de luta do povo, hoje as organizações anar-
quistas voltam a ser criminalizadas, como foram desde o
ascenso do movimento operário anarquista brasileiro, na
década de 1920. Xs anarquistas sempre estiveram organi-
zadxs atuando como fomentadorxs da luta do povo, desde

344 wallace de moraes


os lugares de trabalho e moradia, contra o extermínio do
Estado e contra exploração de classe. Nós anarquistas
éramos e somos um perigo para o poder constituído, pois
defendemos a negação deste – o poder popular -, que não
é obra de líderes, mas sim de um trabalho árduo e con-
tínuo de mobilização e de luta ao lado do povo, incenti-
vando sua ação direta e sua organização revolucionária
contra o Estado e por um mundo novo, justo e livre. É essa
a Justiça que queremos, a que o povo faz na sua luta, onde
o povo decide e onde ninguém fica para trás. O poder po-
pular nega o Estado e constrói toda a organização social
de forma federativa e de baixo pra cima, toda proprieda-
de é coletivizada e o povo reparte entre os trabalhadorxs
o fruto de seu próprio suor. Sem patrões, políticos en-
ganadores, corruptos ou corruptores, sem depender dos
mandos do capitalismo financeiro global. Carregamos um
mundo novo em nossos corações e com Terra e Liberdade
nós construiremos a Comuna Popular do Rio de Janeiro.

Nos termos do Estado burguês, isso é um absurdo e por


isso a perseguição ao anarquismo é necessária. É preciso
marcar a carne de toda uma geração com a passividade
que eles tanto prezam, amedrontar a juventude combativa
com prisões « exemplares ». Mas, nós atingimos a espinhal
dorsal da reação, na sua crença de que não há saída para
a política, para nossas condições materiais e sociais. O
levante popular de 2013 levou ao desespero todxs aquelxs
que buscam manter a ordem atual, trazendo consigo uma
nova materialidade política, novas lições estratégicas,
novas possibilidades de vitória.

Solidarizamo-nos a todas as organizações e lutadorxs


que estão sendo criminalizadas por meio desse sádico
espetáculo policial-midiático, pois sabemos que o ob-

2013 - revolta dos governados 345


jetivo de toda essa perseguição é reprimir a quem luta e
quem acredita que é preciso dar um BASTA à exploração
de classe e a todas as opressões. Perseguem-nos por-
que denunciamos o papel nefasto que cumpre as polícias,
porque estamos cansados de ser esculachados perdendo
casa, escola, hospital para que meia dúzia de capitalistas
lucrem durante os dias de Copa do Mundo!

Xs militantes da OATL têm participado, a cada dia, da or-


ganização do povo. E sabemos que não somos só uma or-
ganização! Somos o povo revoltado, somos o povo que não
vai se calar! A OATL estará na rua, porque o povo estará.
Não tem Estado ou Burguesia que possa conter a legíti-
ma revolta do povo, pois eles mesmos provocaram essa
revolta! A longa experiência amarga do povo fez com que
ele mesmo criasse suas armas de autodefesa e resistên-
cia. A ação direta, as ocupações, as comunas, as greves e
os atos de rua não foram invenção dos anarquistas, mas
do povo em luta contra as opressões. Não somos nem nun-
ca desejamos ser os responsáveis pela revolta popular,
somos mais um na multidão indignada.

É intolerável que deixemos passar o terrorismo de Es-


tado que mata todos os dias o povo negro e com a mesma
brutalidade se volta contra xs lutadorxs sociais. Esta-
mos ao lado do povo! Criminosas são as leis que defendem
os inimigos da classe trabalhadora. A criminalidade está
na cor que colore nossos corpos, negros na pele, negros
na bandeira, negros no coração. Quadrilha armada é o Es-
tado e o Capital que se utilizam de métodos fascistas de
controle de nossas vidas com escutas, agentes infiltrados
e quebra de privacidade das comunicações, perseguição,
coação e tortura aos familiares dxs presxs e foragidxs!
Os crimes quem os comete são as grandes corporações de

346 wallace de moraes


mídia, os governos federal, estadual e municipal! Não se
pode criminalizar um povo que se rebela e se organiza
contra a exploração e a opressão de todos os dias. Não se
pode criminalizar a justa revolta do povo!

E frente a toda essa ofensiva repressiva, concluímos que


o único crime é NÃO LUTAR! É preciso que nós tomemos
novamente as ruas! A pressão popular é fundamental para
desarticular a máquina repressiva do Estado, denunciar
o espetáculo forjado pelas grandes mídias para confun-
dir-nos, alienar-nos e convencermos de que a luta não
leva a mudanças. Convoquemos nossas organizações, co-
letivos, órgãos de base, grêmios, equipes esportivas,
grupos de advogadxs, associações de bairro e toda a so-
ciedade civil. Publicizemos nosso apoio, denunciemos o
terrorismo de Estado e, sobretudo, saiamos às ruas!

LIBERDADE PARA TODXS PRESXS E PERSEGUIDOS POLÍTICXS!

FIM DOS PROCESSOS POLÍTICOS!

NINGUÉM FICA PRA TRÁS!

O ANARQUISMO NÃO PODE SER CAPTURADO! TODO PODER AO


POVO!

OⒶTL

2013 - revolta dos governados 347


Vejamos a interpretação de uma das organizações fundadoras
da FIP e que teve alguns de seus militantes como presos políticos
em 2013/14, o MEPR.74

“Por que a GLOBO tem tanto medo do MEPR?

Mais uma vez, a bandeira vermelha do MEPR foi atacada


pelos setores mais reacionários da sociedade brasileira,
desta vez, exposta por diversos veículos do monopólio
das comunicações como suposta “prova de crime” durante
coletiva de imprensa da polícia civil do Rio de Janeiro,
acerca da malfadada “operação Firewall”, que resultou
no indiciamento de vinte seis e na prisão de doze ativis-
tas supostamente ligados à Frente Independente Popular
do Rio de Janeiro (FIP-RJ), tudo isso, às vésperas do jogo
final da Copa da Fifa.

Na ocasião, nossa bandeira e exemplares da décima sé-


tima edição de nosso jornal Estudantes do Povo foram
apresentados junto a outros materiais utilizados em
protestos como máscaras de gás e panfletos ao lado de um
revólver de posse do pai de uma das ativistas, numa clara
tentativa do podre poder judiciário, da polícia civil do
Rio de Janeiro e do monopólio da imprensa de imputar
às pessoas, injusta e arbitrariamente detidas, a absurda
acusação de “formação de quadrilha armada”.

Como repetidas vezes ocorreu na história política de


nosso país, a prisão dos ativistas foi a senha para que
se tramasse mais uma pantomina com a participação de
policiais, juízes e da imprensa venal, numa verdadeira

74 Essa nota foi publicada em 8 de agosto de 2014. Fonte: http://mepr.org.br/index.


php/2014/08/08/por-que-a-globo-tem-tanto-medo-do-mepr/ acessado em 13 de agosto de
2018.

348 wallace de moraes


campanha de “caça às bruxas” contra democratas e revo-
lucionários, tendo na cabeça a Rede Globo:

– Rostos de ativistas são exibidos pela televisão em


horário nobre, sendo-lhes imputados atos jamais
comprovados;

– Inquéritos policiais, gravações de escutas telefônicas


e outras alegadas provas que supostamente corriam em
“segredo de justiça” e as quais os advogados dos presos
políticos tiveram o acesso negado, foram divulgados com
“exclusividade” pelos jornais da Globo;

– Matérias pagas especulam, desde sobre os hábitos e


os relacionamentos afetivos à “inclinação ideológica”
dos jovens ativistas, chamados genericamente de “black
block`s”;

Qualquer semelhança com as práticas do regime militar


fascista dos gorilas que infelicitou o país durante lon-
gos vinte e um anos (1964-1985) não é mera coincidência,
estas são práticas recorrentes do velho Estado brasilei-
ro, tal como segue ocorrendo nos dias de hoje e ocorria
nos governos de Arthur Bernardes (1922-1926), o “tarado
de Viçosa”, e durante o gerenciamento de Getúlio Vargas
(1930-1945), para ficar em alguns exemplos.

Quanto ao papel da imprensa brasileira, mais do que nun-


ca monopolizada por um punhado de bilhardárias famí-
lias, também aí não há nenhuma novidade. A Rede Globo
é quem comanda mais este show de horrores. Cumpre a
risca o papel que sempre lhe coube desde o momento de
sua criação, quando foi fundada ilegalmente com capital
monopolista ianque, apoiando e ocultando a tortura, as-
sassinato e desaparecimento forçado de incontáveis dos
melhores filhos de nosso povo. A Globo sempre incenti-

2013 - revolta dos governados 349


vou e aplaudiu toda a repressão contra as lutas popula-
res. Invariavelmente, defendeu os interesses das classes
dominantes reacionárias (bancos, transnacionais, agro-
negócio, latifúndio, etc.) de onde provêm suas fabulosas
receitas.

Fazer campanha para confundir a opinião pública, asso-


ciando manifestantes ao “crime organizado” e manifes-
tações populares com “vandalismo” é o mínimo do que
a dinastia Marinho estará sempre disposta a fazer para
manter seus privilégios. Quando surgiram os pequenos,
mas radicalizados protestos em São Paulo, no início das
jornadas de junho/julho de 2013, a Globo clamou por re-
pressão. Mas as prisões de manifestantes que se seguiram
às primeiras manifestações geraram uma grande onda de
revolta que contribuiu para o crescimento exponencial
das manifestações populares. A partir de então, quando
colheu os frutos amargos de seu intento, a Globo jogou
para dirigir os protestos, tentando criar uma falsa pola-
rização entre os seus manifestantes “pacíficos” e os gru-
pos de “vândalos infiltrados”. Aí, novamente, a Globo se
deu mal! Seus “pacifistas” se aliaram com os “vândalos”,
os reconhecendo como linha de frente imprescindível aos
protestos que passavam a ser reprimidos de forma cada
vez mais violenta pela polícia, tal como ficou patente
na greve dos professores do Rio de Janeiro. E hoje, tudo
o que a Globo pode fazer a este respeito é criminalizar
as manifestações do alto de seus helicópteros, já que a
sua presença entre os manifestantes começa a ser aber-
tamente repudiada pelas massas, já cansadas de sua cri-
minosa deturpação dos fatos e manipulação de notícias.

Portanto, não é de se estranhar, mas, pelo contrário, é


de se esperar que esta gente nos ataque tão ferozmente.

350 wallace de moraes


Para nós do MEPR, é motivo de orgulho ser alvo de maté-
rias difamatórias vindas de gente tão podre e porca, tal
como a da autoria de Caio Barreto Briso, publicada no
jornal O GLOBO no dia 23/07/2014. Tais eventos nos fazem
pensar que tinha razão o Presidente Mao Tsetung quando
afirmava que: “se o inimigo nos ataca é bom, pois mostra
que demarcamos uma clara linha entre ele e nós e, se nos
pinta com cores negras, melhor, pois mostra que obtive-
mos êxito em nosso trabalho”. Nesse sentido, entendemos
que a perseguição e ataques contra o MEPR e à FIP em
geral, assim como a enorme histeria em torno do “van-
dalismo” de “black block`s” e “infiltrados” agigantada
após o acidente que resultou, tragicamente, na morte do
cinegrafista Santiago Andrade no início do ano, repre-
senta os esforços do velho Estado burguês-latifundiá-
rio gerenciado pelo PT/PMDB/Pecedobê de Dilma, Cabral/
Pezão e Paes em formar opinião pública para justificar a
criminalização do protesto popular de uma forma geral
e, particularmente, tentar reprimir o ímpeto de revolta
da juventude combatente que está na linha de frente das
rebeliões populares e do enfrentamento à violência do
Estado reacionário desde as jornadas de junho/julho do
ano passado.

Caros senhores, escribas da reação e papagaios do im-


perialismo, mais uma vez, o tiro saiu pela culatra! O
protesto no final da Copa da Fifa na capital fluminense
cresceu com as prisões, o povo não se intimidou e en-
frentou nas ruas a verdadeira operação de guerra mon-
tada pelo governo Dilma/Pezão/Paes! No último dia 30/07,
milhares de pessoas tomaram as ruas do Rio de Janeiro
contra as perseguições e as prisões políticas, exigindo
liberdade de manifestação!

2013 - revolta dos governados 351


A verdade é que os senhores estão se borrando de medo
porque percebem no clamor das ruas o sentimento po-
pular latente de indignação contra tanta injustiça e
desmandos. No final das contas, vocês sabem que estão
sentados num barril de pólvora. Tremem de ódio e de-
sespero quando escutam vozes juvenis se levantarem de-
cididas a rasgar o véu com que tentam esconder a dura e
miserável realidade da vida de nosso povo e em seu de-
sespero de fera acuada quer aos gritos nos impingir os
adjetivos de criminosos e delinqüentes. Mas, afinal de
contas, o que resta aos senhores quando fracassaram suas
mentiras, ilusões e enganos senão a repressão fascista
contra o povo?

Não senhores, não somos bandidos! Protestar não é cri-


me! O único crime que cometemos é o de ser parte da ju-
ventude combatente em um país em que cada vez mais o
fascismo é praticado como a forma que as classes do-
minantes reacionárias utilizam para se manter a ferro
e fogo no poder. Bandidos são os que governam o país a
serviço dos interesses dos monopólios estrangeiros, ex-
plorando e roubando todas as riquezas produzidas pelo
trabalho das massas populares da cidade e do campo.

Para este Estado podre e sua justiça hipócrita nosso cri-


me é defender o direito dos filhos dos trabalhadores de
estudar e aprender; pelo passe-livre; por salários dig-
nos para os professores; pelo sagrando direito à terra
dos camponeses pobres e dos povos indígenas. Cada qual
recebe o tratamento que lhe corresponde. A governista
UNE/PT/Pecedobê recebe milhões de reais dos cofres pú-
blicos como pagamento pelos seus sujos serviços pres-
tados no apoio à precarização e privatização do ensino,
enquanto aqueles que repudiam a venda dos interesses

352 wallace de moraes


estudantis em conchavos de gabinete com representantes
do governo e de sua burocracia nas escolas e universida-
des são tratados como caso de polícia.

Seria diferente se fossemos como certas organizações


e partidos oportunistas eleitoreiros que em seus sites
e editoriais exaltam demagogicamente a combatividade
da juventude na Europa e no Chile, mas quando ouvem as
primeiras bombas lançadas pela polícia são os primei-
ros a bater em retirada com suas bandeiras debaixo dos
braços ou a clamar por imorais acordos com a polícia que
só servem para legitimar o cerceamento do direito à li-
vre manifestação. Gente como a direção do PSTU/Conlu-
tas que se diz de esquerda, mas se presta ao policialesco
papel de delatarem ativistas para a polícia, os acusando
de ser adeptos da “tática black block”, como o fizeram
recentemente no Rio de Janeiro.

Na referida pseudo-matéria jornalística de O GLOBO,


assim como em inúmeras outras publicações do mesmo
calão, somos apresentados como uma organização “mao-
ísta”, destinada ao “confronto com a polícia” durante os
protestos, causando “tumulto” e “quebra-quebra”. Não
somos, nem jamais pretendemos ser um grupo ou organi-
zação maoísta, apesar de nutrirmos profunda identidade
e admiração por esta ideologia. Não nos propomos e nun-
ca nos propusemos a dirigir o processo revolucionário
em nosso país. Nosso movimento, o MEPR, tem programa
e princípios firmemente estabelecidos. Estamos unidos
pelo propósito de mobilizar, politizar e organizar as
massas estudantis e a juventude em geral pela transfor-
mação de nossa sociedade através do único caminho pos-
sível: a via democrática revolucionária.

2013 - revolta dos governados 353


Repudiamos todas as tentativas de isolar e criminalizar
nosso movimento e a outras organizações independentes
e combativas que compõem a FIP/RJ! Cada ataque de nos-
sos inimigos de classe nos torna ainda mais convictos
da justeza de nossa causa e de sua inevitável vitória! E
a mesma convicção que temos a respeito da vitória da
causa popular, a possuímos sobre o caminho tortuoso que
o povo terá de trilhar, cheio de voltas e reviravoltas,
até o seu triunfo final e definitivo. Saudamos a postura
combativa de todos os presos políticos que se mantêm
firmes na luta, mesmo trancafiados nas masmorras do ve-
lho Estado brasileiro! Estão muito enganados se pensam
que podem nos vencer com a repressão! Jamais poderão
aprisionar nossos ideais! O futuro nos pertence!

Seguiremos conclamando a toda a juventude combatente


e a todo o nosso povo a se organizar e lutar e a boicotar
a farsa dessas eleições podres e corruptas. Nossa fren-
te é outra, a construímos na luta diária junto às massas
mais pobres da cidade e do campo, apoiando e fortale-
cendo a aliança operário-camponesa, buscando também
nos unir aos interesses dos pequenos e médios produto-
res e da intelectualidade honesta e progressista, por uma
nova democracia e um Brasil Novo, do Poder Popular e do
Socialismo.

Globo fascista: você que é terrorista!

Liberdade imediata para todos os presos políticos!

Ir ao combate sem temer: ousar lutar, ousar vencer!

Rebelar-se é justo!”

354 wallace de moraes


Terminamos com a letra de Renato Russo que representa bem
a exaltação da Copa do Mundo no país de muitos miseráveis e pou-
cos ricos, expressando a maior desigualdade do mundo.

Vamos comemorar como idiotas


A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta
De hospitais...
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado
De absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo o que é normal
Vamos cantar juntos
O hino nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
Comemorar a nossa solidão...
....Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente
A vida inteira
E agora não tem mais
Direito a nada...
Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta
De bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isto
Com festa, velório e caixão
Tá tudo morto e enterrado agora

2013 - revolta dos governados 355


Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou
Essa canção...

(RENATO RUSSO)

A prisão dos 23 manifestantes significou um incêndio criminoso


contra uma “primavera” de lindas flores. Mas um dia as flores volta-
rão a florescer, e a primavera voltará mais bonita.

fonte: ruy barros

Vejamos agora a criminalização por dentro, nos dois próximos


capítulos e depois a problematização dos motivos pelos quais o mo-
vimento sucumbiu.

356 wallace de moraes


5. DITADURA E DEMOCRACIA
NO BRASIL - MAIS DO MESMO
fonte: ruy barros
1

Com base no conteúdo empírico analítico trabalhado nos capí-


tulos anteriores, propomos aprofundar teoricamente nossa aborda-
gem acerca da construção ideológica dos inimigos do Estado e seu
processo repressor.
Sun tzu, um vitorioso estrategista militar chinês, no século V
a.C. escreveu um tratado que se tornou clássico, a “Arte da Guerra”
(Sun-Tzu, 2009). Seu livro começa assim: “Guerra é um assunto de
importância vital para o Estado; uma questão de vida ou morte, a
estrada da sobrevivência ou da ruína”.
Na passagem do século XVIII para o XIX Carl von Clausewitz
(1996) afirmou: “a guerra não era mais que a continuação da polí-
tica”. Mais tarde, Michel Foucault (2002) repropôs e inverteu esse
aforismo asseverando: “a política é a guerra continuada por outros
meios”.
Nesse sentido, Foucault alerta: “o mecanismo do poder é, fun-
damental e essencialmente, a repressão”, ou como consequência
dessa perspectiva: “o poder político tem como função reinserir per-
petuamente a relação de força, mediante uma espécie de guerra
silenciosa, e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econô-
micas, na linguagem, até nos corpos de uns e de outros” (Foucault,
2002).
Como resultado da inversão do aforismo de Clausewitz, Fou-
cault muito oportunamente propõe que as lutas políticas, mesmo
no interior da ‘paz civil’, deveriam ser interpretadas apenas como
as continuações da guerra. Assim, “sempre se escreveria a história
dessa mesma guerra, mesmo quando se escrevesse a história da paz
e de suas instituições” (Foucault, 2002).

1 Uma primeira versão desse capítulo foi publicada na Revista Estudos Filosóficos da UERJ:
http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo17/00_Revista_Ensaios_Filosoficos_
Volume_XVII.pdf

2013 - revolta dos governados 361


Uma última reflexão importante para podermos consolidar
nossos postulados teórico-metodológicos para o debate, citemos
Bakunin (2008), abordando a moral estatal:

“é da natureza do Estado apresentar-se, tanto para si quanto para


todos os seus governados, como objeto absoluto. Servir sua prospe-
ridade, sua grandeza, sua força, é a suprema virtude do patriotismo.
O Estado não reconhece outra: tudo o que o serve é bom, tudo o
que é contrário a seus interesses é declarado criminoso, tal é a mo-
ral do Estado”.

Podemos extrair dessas considerações, realizadas em diferen-


tes momentos históricos, que guerra e política possuem uma extre-
ma ligação, confundindo-se ao longo do tempo, uma continuando
a outra. Decerto, a guerra é a verdadeira essência do Estado, pois
foi através dela que este foi criado em todos os lugares, bem como
é por meio dela que o poder político é mantido. É mister resgatar
um ensinamento histórico e empírico, segundo o qual a atividade de
guerra travada pelo Estado é episódica com relação a outro igual,
enquanto é cotidiana contra os descontentes subordinados às pró-
prias leis estatais.
Em outras palavras, o Estado impõe sua força muito mais sobre
seus governados do que em guerras declaradas contra outro Esta-
do. Essa constatação será posta à prova no exercício que faremos
a seguir, tendo a história brasileira como objeto central de análise.
Há mais de 50 anos, um grupo de militares de alto escalão
(governantes penais), em associação com grandes empresários
(governantes econômicos) e donos dos meios de comunicação
(governantes socioculturais) influentes no Brasil, tomaram a gover-
nança política por meio de um golpe militar-plutocrático. Quatro
anos depois, em 1968, os donos do poder foram amplamente con-
testados nas ruas. Apesar de os números oficiais da Ditadura Militar-
-Plutocrática Desavergonhada dizerem que o Brasil era o paraíso do

362 wallace de moraes


crescimento econômico, a passeata dos cem mil no Rio de Janeiro
e diversas outras congêneres pelo país afora mostravam a enorme
insatisfação popular com os políticos e com os rumos tomados pelo
governo em todas as matérias. Existia uma divisão da sociedade e a
Copa do Mundo de futebol de 1970 constituía-se como um grande
teste. Interessava aos governantes a vitória da seleção brasileira de
futebol. Para tanto, o governo e seus apoiadores massificavam slo-
gans pró-copa. Lemas como “Somos uma só nação na defesa dos
nossos representantes do futebol”; “ame-o ou deixe-o”. Tratava-se
de um nacionalismo exacerbado em prol de interesses políticos,
econômicos e bélicos. 2 Todos que se apresentavam como críticos
daquela manipulação eram tidos como não patriotas. Em resumo, a
Copa do Mundo de futebol de 1970 foi a grande oportunidade para
os governantes trabalharem com o emocional dos governados a seu
favor, com vistas a desvirtuar suas perspectivas políticas.
Quais são as semelhanças e diferenças para 2014?
Em 2014, vivíamos formalmente em uma democracia, mas as
similaridades com o regime de 1964 - que também não se declarava
autoritário - foram gritantes.
Muito semelhante à Ditadura Militar-Plutocrática Desavergo-
nhada, até maio de 2013, o Brasil vivia no melhor dos mundos, de
acordo com os números oficiais divulgados, é claro. O mercado es-
tava pujante, o Brasil passava a ser a 6ª economia mundial, o cresci-
mento era bastante satisfatório, e os pobres e miseráveis “estavam
muito bem com o programa bolsa-família.” Em função desses da-
dos, o Brasil tornava-se uma das referências mundiais de país em
desenvolvimento – lhe favorecendo para sediar grandes eventos,
como a Copa do Mundo de futebol e as Olimpíadas.
Aquilo que parecia um conto de fadas caiu por terra com os
maiores protestos da história nacional em 2013. No dia 20 de junho,
ápice do movimento, o Brasil inteiro foi às manifestações, só no Rio
2 Era necessário investir pesado em armamento para combater a guerrilha que se instalava
no país.

2013 - revolta dos governados 363


de Janeiro, aproximadamente 1,5 milhão de pessoas ocuparam as
ruas contra as governanças institucionais e sociais, por direitos. Se-
melhante a 1968, pessoas foram perseguidas pelas forças policiais
por toda a noite e massacradas fisicamente, muitas delas detidas e
presas por protestarem contra as injustiças. Os hospitais e delega-
cias ficaram cheios naquela noite.

fonte: anony�ous

Entre 2013 e 2014 foram muitos os protestos por todo o país,


não mais de massas, mas de categorias, de coletivos etc. Assim, a
Copa do Mundo de 2014 apresentava-se como o grande teste, tal
como em 1970.
Para construir o clima de apoiar a seleção nos dois momentos
históricos foi necessária muita propaganda. O apelo ao nacionalis-
mo foi o mesmo. A mensagem passada pelos oligopólios de comu-
nicação de massa para a população foi por uma unidade nacional
em torno dos meninos de verde e amarelo. Compare você mesmo

364 WALLACE DE MORAES


a música tocada em todas as rádios em 1970 com uma das diversas
propagandas de 2014 e veja as semelhanças:

“Noventa milhões em ação / Pra frente Brasil / Do meu coração/ To-


dos juntos vamos /Pra frente Brasil / Salve a seleção / De repente é
aquela corrente pra frente / Parece que todo Brasil deu a mão / To-
dos ligados na mesma emoção/ Tudo é um só coração / Todos juntos
vamos / Pra frente Brasil, Brasil / Salve a seleção...” 3

“Vamos soltar o grito do peito/Deixar o coração no jeito/Que aí vem


mais uma emoção/ Vamos torcer e jogar todos juntos/Mostrar nova-
mente pro mundo/Como se faz um campeão/Pois só a gente tem as
cinco estrelas na alma verde amarela/E só a gente sabe emocionar
cantando o hino a capela/ Mostra tua força Brasil/E amarra o amor
na chuteira/Que a garra da torcida inteira/ Vai junto com você Brasil/
Mostra tua força Brasil/E faz da nação sua bandeira/ Que a paixão
da massa inteira/Vai junto com você Brasil/Mostra tua força Brasil/
E amarra o amor na chuteira/Que a garra da torcida inteira/Vai junto
com você Brasil/ Todos os corações no mesmo lugar. Isso muda o
jogo.” 4

Ao mesmo tempo em que existia o apelo para a festa, os tan-


ques de guerra e soldados do Exército e da Marinha estavam nas
ruas do Rio de Janeiro e de outros estados, lembrando muito bem
o regime instaurado em 1964. Significava na prática uma mensagem
para os críticos: não proteste. Além do mais, havia mais policiais/
soldados nas ruas durante a Copa de 2014 do que durante o regime
reconhecidamente autoritário.

3 Letra de “Pra Frente Brasil”, de Miguel Gustavo, hino oficial da seleção na Copa do Mun-
do, 1970.
4 A canção “Mostra tua Força, Brasil”, propaganda de uma instituição bancária, foi produ-
zida por Simoninha, composta por Jairzinho e interpretada por Fernanda Takai e Paulo
Miklos.

2013 - revolta dos governados 365


fonte: ruy barros

Como era de se esperar, o Estado impôs uma verdadeira guer-


ra aos manifestantes com perseguições, escutas telefônicas, quebra
do sigilo das mensagens, agentes infiltrados nas organizações so-
ciais etc. Tudo que as governanças penal, jurídica e política fizeram
em 1964, também colocaram em prática em 2014, só que com muito
mais tecnologia. É importante ressaltar que manifestantes foram
feitos presos políticos da “democracia”, tal como existiu nos porões
da Ditadura Militar-Plutocrática Desavergonhada. Só com uma dife-
rença. Os presos da ditadura pegaram em armas, assaltaram bancos,
sequestraram, invadiram quartéis e trocaram tiros com as forças
de repressão. Os presos da “democracia”, ou melhor, da Ditadura
Plutocrática-Militar Dissimulada, segundo argumentaram os gover-
nantes penais e jurídicos, estavam planejando a compra de fogos de
artifícios e falavam que teriam que combater os policiais que tanto
os oprimiram. Em resumo, uma juventude politizada com uma advo-
gada, professores, cineasta e, inclusive, mestres e doutores, foram
encarcerados ou procurados pela polícia para aprender a não mais
contestar o poder do Estado. Em comum, os jovens de 1970 e de

366 wallace de moraes


2014 tinham o sonho de construir um mundo socialista e foram ta-
xados/aviltados/classificados pelos oligopólios de comunicação de
massa como terroristas. O curioso é que no exato momento ocorreu
um genocídio do povo palestino pelo Estado de Israel e os mesmos
oligopólios não condenaram essa ação, todavia defenderam com
toda a força as vidraças dos bancos quebrados nos protestos.
As muitas similitudes entre a ditadura e a “democracia” não
param por aí. Ambas foram legais, isto é, estiveram de acordo com
as leis, apoiadas por maiorias parlamentares e aplicadas igualmen-
te por pluralidades dos governantes jurídicos e políticos (de todos
os partidos). A governança política de Michel Temer, por exemplo,
apesar de provas contundentes de corrupção contra ele, e da extre-
ma rejeição dos governados, recebeu apoio da maioria parlamentar,
evitando o impeachment. Isso mostra, na prática, que lei não possui
nenhum compromisso com justiça, como já dizia Kropotkin, muito
menos que os governantes são consentidos pelos governados.
Todo regime estatal caracteriza-se pela ideia de que a lei penal
é aplicada para um grupo de pessoas específicas que conteste ou
ameace a ordem estabelecida. Esse número pode ser muito grande
ou pequeno. No caso dos regimes de 1964 e o atual, atacaram, pre-
ferencialmente, aqueles que mais contundentemente contestaram
o sistema: guerrilheiros e manifestantes. Muitos daqueles foram as-
sassinados. Em 2014, os manifestantes foram detidos e presos. Sa-
bemos apenas que um dos 23 presos políticos de 2014 foi torturado
sob o poder do Estado,5 mas violência física a céu aberto e aos olhos
de todos foi muito comum nos dois casos.
É importante frisar que pobres contestadores, indígenas, ne-
gros, LGBTQIA+ e outros alvos de governanças sociais sofrem histo-
ricamente com exclusão e extermínio sob todos os tipos de regimes
políticos. No mesmo diapasão, operários, comunistas e anarquistas,
durante a primeira república, viveram sob ditaduras específicas para

5 Ver Mendes (2017).

2013 - revolta dos governados 367


eles.6 Atualmente, várias periferias e favelas do Brasil afora estão
sob o controle militar cotidiano. O autoritarismo astuto, para usar
um termo de Maquiavel, é o que ataca um grupo específico da so-
ciedade, mostrando-se como regime legítimo para os demais, sem
incomodá-los. Portanto, os alvos principais do Estado, autoritário
por natureza, são seus opositores e aqueles que podem colocar em
risco a segurança, no sentido mais amplo possível, dos seus prote-
gidos – os que o reconhecem, se subordinam a ele, e o defendem.
Para usar uma frase de Bakunin: “o Estado só admite súditos sob
seu comando”.
Por outro lado, existem pessoas que não sentem nem um pou-
co o regime autoritário. Se a grande mídia referenda e justifica as
ações, ou mesmo as ignora, as práticas autoritárias simplesmente
parecem não existir, nem todos a percebem. A repressão é exerci-
da somente sobre os que protestam. As demais pessoas continuam
sem ser incomodadas e vivem uma vida normal. Esse fato aconte-
ceu tanto em 1964 quanto em 2014. Essa é a essência do Estado.
Isso significa dizer que existe sempre um Estado de classe, mas di-
ficilmente apresenta-se honestamente como em oposição a outra
classe. Ele busca apresentar-se como representante de todos (Pou-
lantzas, 1971). Ele só reprime quem o contesta ou atenta contra a
propriedade privada dos governantes econômicos. Se um operário,
um faxineiro, um desempregado e uma empregada doméstica não
atacarem o patrimônio de outrem, nem contestarem o poder do
próprio Estado e ficarem felizes com a sua condição de extrema-
mente explorados, eles viverão sem serem importunados, a não ser
que morem em áreas com concentração de pessoas que de alguma
forma exercem esses perigos para os donos do poder.7

6 Para mais detalhes ver: DE MORAES (2018) principalmente capítulos 1 e 4.


7 Vale ver vídeo sobre a absurda repressão policial em agosto de 2013: https://www.youtu-
be.com/watch?v=tsIAC99DM10

368 wallace de moraes


fonte: ruy barros

fonte: ruy barros

2013 - revolta dos governados 369


A censura também é realizada de maneira sutil e seletiva. Esse
livro, por exemplo, jamais seria divulgado por algum membro dos
oligopólios de comunicação de massa. Ou essa reflexão jamais se-
ria proferida em algum canal de televisão aberta. Não obstante, ele
pode ser publicado em jornais alternativos e com um público já crí-
tico e bem reduzido.
No ato do dia 13 de julho de 2014, no entorno do Maracanã,
por ocasião da final da Copa do Mundo, os comandados pela gover-
nança penal com um efetivo de alguns milhares cercaram os mani-
festantes na Praça Saens Peña e não os deixaram circular. Depois
de um determinado momento, resolveram reprimir os que protes-
taram e todos que ali estavam foram simplesmente impedidos de
sair da praça. Um verdadeiro cerco, limitando o direito de ir e vir.
As pessoas não podiam sair nem entrar na manifestação. Foram de-
zenas de detidos e feridos com os ataques desproporcionais. Algo
parecido aconteceu em outros estados e no próprio Rio de Janeiro
durante a Copa. A orientação em todo o território, aparentemente
coordenada por órgãos do governo federal do PT, sob a presidência
de uma ex-perseguida política, buscou acabar com as manifestações
já nas concentrações, como vimos no capítulo anterior e nos mostra
muito bem o artigo de Eduardo Tomazine (2014).
Os insurgentes ganharam força e visibilidade após junho de
2013; foram os únicos que apostaram forte e abertamente na ne-
gação da Copa. Sem embargo, perderam força a cada vitória da se-
leção com os apelos xenófobos da grande mídia. O setor que mais
sofreu com a conquista da Copa de 1970 foi o revolucionário, pois
a partir daí a repressão sobre a guerrilha se intensificou com tons
nacionalista e militarista, estimulados pelos oligopólios de comuni-
cação de massa, naquela época em formação.
Em 2014, vários manifestantes foram presos preventivamente
no Brasil. No Rio de Janeiro, antes da final da Copa, a polícia expe-
diu mandados de prisão para 21 militantes sociais, sob argumentos
espúrios. Fato que já havia sido realizado em outros estados. Livros,

370 wallace de moraes


bandeiras de coletivos, blusas e panfletos contra os gastos exorbi-
tantes com a Copa foram apresentados pelas forças de repressão
como provas do envolvimento dos militantes “em formação de qua-
drilhas” e justificativas para suas prisões.
A Copa no Brasil deixou dois grandes legados, um positivo e
outro negativo, sendo que foram contrapostos e a vitória do nega-
tivo significa a liquidação do positivo e vice-versa. Ambos estiveram
em disputa. O significado positivo foi a (re)articulação, bem como
a ampliação de diversos movimentos autônomos/antisistêmicos no
Brasil no ano de 2013. Sem dúvida, esse foi o setor que mais cresceu
e ganhou visibilidade desde a Revolta dos Governados de junho. O
legado negativo foi a (re)articulação das forças de repressão, inicial-
mente, comandadas pelo governo federal dos “trabalhadores”, e
posteriormente pelo seu sucessor, para combater os insurgentes.
Esse grupo tem se fortalecido com forças conservadoras agressivas,
retroalimentadas pelos meios de comunicação e materializada no
candidato das armas e em grupos espistêmicos altamente financia-
dos.
A Copa no Brasil, ao mesmo tempo que significou a criação de
um grande ator social revolucionário, também significou o embrião
da sua derrota com medidas ditatoriais de infiltração de agentes,
escuta telefônica, suspensão do sigilo de mensagens e, por fim, com
as suas respectivas prisões arbitrárias, típicas de regimes autoritá-
rios.
Essas medidas, estimuladas e apoiadas pelo governo federal e
pelo sistema de justiça, significou uma grande derrota para a luta
popular e autônoma no Brasil. Os insurgentes foram cassados pelos
porões da democracia.
Partindo do princípio de que nenhuma ditadura goza de lon-
gevidade se aplicada a toda a sociedade, podemos concluir que os
ditadores focam sua coação nos governados insurgentes e contes-
tadores das governanças econômica, política, jurídica, penal e socio-
cultural. Como resultado disso, é mister ressaltar que toda ditadura

2013 - revolta dos governados 371


requer o apoio dos meios de comunicação de massa, sem o qual é
difícil, no mundo contemporâneo, manter um regime de exceção,
mesmo que para grupos específicos. Assim, tivemos como caracte-
rísticas tanto do regime de 1964 quanto de 2013/14:
1) Repressão sobre grupos insurgentes/contestatórios/rebel-
des;
2) Supressão de direitos civis desses grupos: limitação do di-
reito de ir e vir, quebra de sigilo de mensagens, escutas telefônicas,
proibição de participação em manifestações etc.
3) Prisões arbitrárias de rebeldes, sem garantia de ampla de-
fesa;
4) Censura de suas ideias nos meios de comunicação de massa;
5) Demonstração de forte aparato policial repressivo nas ruas;
6) Classificação de seus opositores como terroristas/vândalos;
7) Criminalização de movimentos sociais de contestação;
8) Ocupação de áreas consideradas de risco pelo Exército;
9) Agressão física e psicológica de manifestantes em protes-
tos;
10) Extermínio por agentes do Estado de pobres/favelados/
negros que em alguma medida ameaçam o “bom andamento” do
sistema.
Se Foucault tinha razão e a política é a continuação da guerra
por outros meios, cabe-nos destacar duas ressalvas: 1) as diferenças
entre democracia e ditadura tendem a acabar quando o poder é con-
testado, prevalecendo a guerra; mas é bom lembrar, somente para
os que contestam veementemente as governanças institucionais e
sociais; 2) ao mesmo tempo, para os governantes, é sempre melhor
dominar sem a necessidade de guerra, mas demonstrando a força
quando necessário, já ensinava Maquiavel. Assim, é benfazejo para
o sistema que se constituam oposições oficiais, que concorram nas
eleições e, ao mesmo tempo, referendem o poder como um todo,
como no chamado modelo democrático, embora o povo realmente
nunca governe.

372 wallace de moraes


Para finalizar, resta dizer que torci contra os meninos “pobres”
que vestiam amarelo nos estádios padrão FIFA para que os meninos
“ricos” que vestem preto/vermelho nas ruas pudessem sobreviver
à falta de liberdade para contestar, típica da nossa, chamada por
antífrase, democracia.

fonte: victor r. caivano/associated press

2013 - revolta dos governados 373


6

6. DIREITO PARA QUEM?


GOVERNADOS REBELADOS
CRIMINALIZADOS1
fonte: ruy barros
1

Wallace de Moraes &


Luciana Simas2

“Eu... fui traído, foi a Dilma quem criou a Lei antiterrorismo” – can-
ção do Black Bloc nos protestos.

O objetivo deste capítulo é, através do diálogo entre a História


Política e a Ciência Jurídica - de maneira crítica e interdisciplinar -,
analisar as imputações criminais criadas ad hoc3 para combater as
manifestações populares de 2013/14 no Brasil, focando nos proces-
sos de criminalização de movi-
mentos sociais que contestaram
o capitalismo e o Estado no Rio de
Janeiro, foco principal dessa aná-
lise. Esta reflexão diz respeito aos
mandados de prisão para pessoas
que contestaram a ordem social
e os gastos com os megaeventos
no país (Copa das Confederações;
Copa do Mundo de Futebol; Olim-
píadas) em detrimento dos inves-
timentos em saúde, educação,
moradia, enfim, direitos sociais
básicos.
fonte: ruy barros

1 Uma primeira versão desse capítulo foi publicada na Revista Passagens – Revista Interna-
cional de História Política e Cultura Jurídica in vol. 8 – n. 1 (2016).
2 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva
(PPGBIOS/IESC/UFRJ). Mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Flumi-
nense. Advogada, graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Colaboradora
na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz).
3 Tribunais ou criminalizações ad hoc são aqueles criados especificamente para um determi-
nado ato, ou circunstância, podendo ser associados a um juízo de exceção.

2013 - revolta dos governados 377


A postura repressora das governanças políticas, jurídicas e pe-
nais nos impele a perscrutar as máscaras ideológicas atrás das quais
se ocultam as reais funções do Estado e de seu sistema criminal. Em
um momento político no qual até o uso de máscaras foi proibido
pelo Estado em manifestações populares, gerando detenções e acu-
sações criminais, almejamos pesquisar quais seriam as reais ações
“mascaradas” ou camufladas, com efeitos danosos para a coletivi-
dade.

fonte: ruy barros

Utilizaremos os pressupostos teórico-metodológicos da crimi-


nologia crítica, buscando problematizar as funções desempenhadas
pelo Direito e seus operadores. A posteriori, evidenciaremos o dis-
curso opressor atual, correlacionando-o com o processo de identifi-
cação de opositores ao sistema. Por fim, faremos um breve resgate
histórico de normas penais brasileiras utilizadas em períodos de ex-
ceção, no intuito de concluir como a ordem jurídica penal legitima as
ações estatais de controle social.
Portanto, questionaremos o discurso normativo, que não deve
ser entendido como perene, mas como fruto de seu contexto histó-

378 wallace de moraes


rico que, por sua vez, é resultado de lutas sociais.4 Antes de tudo, é
necessário qualificar e historicizar os fatos.

DOS FATOS E SUAS INTERPRETAÇÕES

As manifestações populares no Brasil de 2013/14, como vimos


nos capítulos anteriores, surgiram criticando governos que autori-
zaram o aumento das passagens de transporte público. Pari passu,
foram realizados gastos públicos exorbitantes com estádios de fute-
bol em detrimento de investimentos necessários em saúde, educa-
ção, moradia, saneamento básico etc. O grau de descontentamento
popular foi acentuado, em um movimento de faceta heterogênea,
evidenciando dinâmicas de mobilização coletiva, que marcaram pro-
fundamente o quotidiano das pessoas.
A partir dos dados empíricos apresentados nos capítulos ante-
riores, é possível perceber um claro sinal de contestação à ordem
econômica e política, seguindo uma tendência mundial. Outrossim,
diferenciaram-se estruturalmente das passeatas orquestradas por
grupos conservadores no Brasil no ano de 2015/16.
Para além de uma dicotomia maniqueísta, observa-se tendên-
cias ideológicas de conservação versus questionamentos ao esta-
blishment. Existem duas grandes interpretações sobre o fenômeno
social ocorrido em 2013/14, conforme visto anteriormente. Uma de-
las foi amplamente divulgada pelos grandes oligopólios de comuni-
cação de massa do país, resvalada no senso comum, cuja principal
tese sustenta-se na defesa da criminalização daquilo que conven-
cionaram chamar por vândalos. Os defensores dessa conjectura
propalaram maior repressão policial e penas mais severas, tal como
historicamente propuseram com relação aos moradores de favelas

4 Para tanto, adotaremos a proposta de Hespanha (1997), segundo o qual a missão da


História do Direito é a de problematizar o pressuposto implícito e acrítico da dogmática,
cujo ordenamento jurídico dos nossos dias é o racional, o necessário, o definitivo.

2013 - revolta dos governados 379


e periferias do Brasil, rotulando de forma depreciativa principalmen-
te jovens negros e pobres.
Diametralmente oposta, outra vertente, praticamente sem
espaço nos oligopólios de comunicação de massa, contudo refe-
rendada por diversas instituições e diferentes movimentos sociais,
criticaram as ações truculentas e desproporcionais da polícia nos
protestos. Esta corrente de pensamento não exigiu mais repressão
e penalização, mas sim a garantia efetiva da liberdade de expressão
e de manifestação.5
Neste contexto, torna-se imperioso analisarmos o braço esta-
tal normativo, que estipula regras de conduta, no intuito de iden-
tificarmos as respostas que foram construídas a estes fenômenos
sociais.

fonte: ruy barros

5 Para mais detalhes, ver cap. 2 deste livro.

380 wallace de moraes


O CONTROLE JURÍDICO-NORMATIVO

No campo das ciências sociais aplicadas, o Direito destaca-se


como importante instrumento de controle social formal. É exercido
por distintas instâncias da governança penal, como a polícia e o sis-
tema penitenciário, associadas a instâncias superiores da magistra-
tura e do Ministério Público, que estruturam a governança jurídica
propriamente.
O referencial teórico de Bourdieu sobre o tema aduz que o
Direito é legitimado por um processo ideológico de racionalização
próprio, que visa fazer com que o sistema de normas jurídicas apare-
ça aos que o impõem e mesmo, em maior ou menor medida, aos que
a ele estão sujeitos, como totalmente independente das relações
de força que ele sanciona e consagra. O ordenamento jurídico se
apresenta como o discurso legítimo e só pode exercer a sua eficácia
simbólica específica “na medida em que permanece desconhecida a
parte maior ou menor de arbitrário que está na origem do seu fun-
cionamento” Bourdieu (2000: 243).
É desenvolvido um caráter de universalização, tendo como
referencial o padrão de vida dos instituidores do campo, simboli-
camente dominantes, definido como ideal. Assim, a concepção do
modelo de periculosidade, conduta adequada, segurança, patrimô-
nio, propriedade produtiva, família, estado de necessidade, legítima
defesa etc., como valores e regras instituídos, são apontados não
apenas como obrigatórios, mas também como normais e aplicáveis
a todos; ainda que não se harmonize com a opção de alguns grupos
sociais, ou que não se coadune com a realidade fática da maioria da
população diante de obstáculos culturais, políticos e econômicos.
Bourdieu fala em “etnocentrismo dos dominantes”, de acordo com
o qual: as escolhas “entre interesses, valores e visões do mundo dife-
rentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer
os dominantes”. Os agentes jurídicos invocados tanto para justificar

2013 - revolta dos governados 381


como para inspirar as regras, “estão adequados aos interesses, aos
valores e à visão do mundo dos dominantes” (Bourdieu, 2000: 242).
Esta ressalva é importante para percebermos como os discur-
sos jurídicos e midiáticos referentes aos jovens que foram presos
em função de manifestações políticas, denominados pejorativa-
mente como vândalos, estavam inseridos em uma dinâmica mais
ampla de relações de poder e força, geralmente subsumidas sob a
ótica da generalidade e imparcialidade. Por isso, o aprofundamento
do senso crítico, nos termos defendidos por Santos (2011a) impli-
ca em um repensar radical das concepções dominantes, a partir do
questionamento do caráter despolitizado do direito.
O suposto perfil apolítico do jurista reflete-se no que Gramsci
(1995) denomina como um processo de isolamento intencional dos
cientistas, por meio de uma esterilização da produção do conheci-
mento, com o fim de emascarar a ideologia dominante. O mecanis-
mo de despolitização do discurso desse segmento da sociedade
implica na manutenção do status quo, sedimentando uma lógica de
reprodução da estrutura excludente. Conforme observa Neder
(2000: 15), não se pode olvidar que o caráter político das represen-
tações jurídicas, em especial no campo criminal, leva em conta “os
embates político-ideológicos, referidos à luta de classes, que estão
subjacentes no processo de criminalização”.
Por sua vez, a narrativa justificante de segurança como ideolo-
gia produz como consequência, dentre outros aspectos apontados
por Zaffaroni et al (2003), o aumento dos níveis de antagonismos nos
estratos sociais inferiores, impedindo ou dificultando sua coalizão; a
potencialização dos medos, das desconfianças e dos preconceitos;
e a apresentação dos críticos do abuso de poder como coniventes
ou aliados dos “infratores”, habilitando a esses críticos a aplicação
da mesma violência. Nesse aspecto, é fundamental a correlação da
repressão estatal às passeatas e aos defensores do direito de ma-
nifestação popular, seja em 2013 ou em 1968, no Brasil; em 2005 ou
1968, na França; e em diversos outros momentos históricos.

382 wallace de moraes


fonte: ruy barros

Prosseguem os supracitados autores, afirmando que o poder


punitivo provoca, inexoravelmente e sem limite algum, a debilitação
dos vínculos sociais horizontais (solidariedade, simpatia) e o reforço
dos verticais (autoridade, disciplina). A relação autoritária vertica-
lizada é construída, com base em um discurso penal autoritário e
irracional por seus objetivos e métodos.
Essas racionalizações (“falsas aparências de racionalidade”)
autoritárias legitimam o poder punitivo, a partir de uma criminaliza-
ção primária de maneira acrítica e “obteve-se um grau tão refinado
de racionalização que é possível explicar, nos termos dessa sistemá-
tica perversa, qualquer decisão criminalizante, por mais absurda e
arbitrária que seja” (Zaffaroni et al, 2003).
Paralelamente à atribuição de “captura”, o Estado desenvolve
uma função de “observação” das populações consideradas desvian-
tes e perigosas. Wacquant (2003) analisou este aspecto especifica-
mente no estado de Colorado/EUA e constatou a proliferação de
bancos de dados em milhões de “fichas cadastrais”, utilizadas como
“pretexto cômodo para colocar sob a vigilância policial e penal os

2013 - revolta dos governados 383


bairros segregados e seus habitantes”. A polícia da cidade de Den-
ver, em 1993, “fichou cerca de 6.500 jovens ‘suspeitos’ de perten-
cerem a gangues, embora, segundo suas próprias estimativas, não
existissem mais de 500 membros de gangues em toda a cidade”
(
Wacquant, 2003).
A iniciativa dos órgãos estatais de identificar opositores e cons-
truir bancos de dados criminais ou centros de controle não é uma
novidade na história das lutas sociais. Podemos apontar no âmbito
brasileiro, exemplificativamente, a criação da caderneta de traba-
lho, na década de 1910, gênese da carteira de trabalho (CTPS), que
serviu para fichar os líderes grevistas e anarquistas que lutavam por
melhores salários e condições de trabalho (De Moraes, 2018). Além
disso, Getúlio Vargas também utilizava o antigo instituto processual
penal da prisão para averiguação, no qual se adotava a lógica au-
toritária de primeiro se prender para depois investigar, ou melhor,
justificar a prisão.
Esse modelo de repressão, com fins explícitos de identificação
e aterrorização, foi claramente empregado como forma de conten-
ção da Revolta dos Governados de 2013/14 em todo o Brasil. Um
dado histórico que comprova, indubitavelmente, esta lógica foi a
detenção de mais de 80 manifestantes na capital do Rio de Janeiro
nas manifestações do dia 07 de setembro de 2013. Convém frisar
que, em uma mesma circunstância, a Polícia Militar encheu um ôni-
bus com 45 manifestantes, inclusive os denominados “socorristas”
- profissionais voluntários do campo da saúde, devidamente vesti-
dos com jalecos brancos -, que se dispuseram a acompanhar as ma-
nifestações para prestar socorro imediato às inúmeras vítimas de
balas de borracha6, choques elétricos, gás lacrimogêneo ou de pi-
menta, e outras violências praticadas pelos agentes estatais da go-
vernança penal.

6 Acrescente-se que na repressão a alguns protestos sociais em 2013 foram registradas


vítimas de balas de ferro.

384 wallace de moraes


fonte: ruy barros

Naquela ocasião, todos os detidos foram encaminhados para a


21ª Delegacia de Polícia da capital fluminense, onde foram identifica-
dos criminalmente e liberados, pois não havia nenhum fato criminal
típico a lhes ser supostamente imputado. Somente um dos detidos
foi conduzido para o complexo presidiário de Bangu/RJ, acusado de
portar arma de fogo, pois possuía um fogo de artifício e um sinaliza-
dor. Registre-se que os oligopólios de comunicação de massa, pro-
positalmente ou não, divulgaram esse dado apenas com a notícia de
porte de arma de fogo, sem esclarecer de que “arma” se tratava.
A estratégia de repressão incluiu a identificação e prisão em
casa dos supostos responsáveis pela página do grupo “Black Bloc –
RJ” no Facebook, sob a alegação principal de incitação à violência e
por porte de arma (diante de facas encontradas em suas residências
e instrumentos com pregos).

2013 - revolta dos governados 385


O fichamento criminal e a prisão nos protestos populares no
Rio de Janeiro culminaram com as manifestações do dia 15 de outu-
bro, dia dos professores, minuciosamente comentado no capítulo
4, deste livro. Naquela ocasião, foram detidos 190 manifestantes e
desses, 84 foram recolhidos ao cárcere. A polícia civil passou a apli-
car uma legislação nova – a Lei 12.850/2013 -, que entrara em vigor
um mês antes e tipificou a conduta de boa parte dos manifestantes
como participação em “organização criminosa”. É importante lem-
brar que a prisão deve representar a ultima ratio, ou seja, o último
instrumento de repressão estatal, porém, na prática, constituiu a
manifestação do poder autoritário do Estado em estado puro, sem
cinismo, sem dissimulação.
Nesse sentido, é possível refletir sobre o porquê da utilização
nos protestos de máscaras, lenços ou qualquer outro instrumento
que proteja o manifestante não apenas da emissão desenfreada
de gás lacrimogêneo, mas também da ânsia de cadastramento san-
cionador do Estado repressor. Configuraria um freio a um sistema
que cria um efeito de obediência consentida naqueles, cuja liberda-
de vai ser limitada pelas próprias normas. A enorme quantidade de
agentes policiais, muitos inclusive infiltrados, no intuito de realizar
identificação de possíveis contestadores à ordem, produziu meca-
nismos próprios de proteção da população, os quais não podem ser
interpretados a partir de uma leitura rasa sem embasamento fático
e epistemológico.
Por isso, ratifica-se a função crítica da abordagem científica,
observada por Hespanha (1997) como mecanismo de resistência,
impedindo uma perspectiva anacrônica e dissociada da realidade so-
cial. A desmistificação da neutralidade dos juristas, ideologicamen-
te associada ao rigor científico, possibilita-nos perceber, conforme
propõe Hespanha (1997), não apenas o papel das normas jurídicas
no disciplinamento de condutas, mas também nos consente consi-
derar a produção do Direito e seus valores (Hespanha, 1997: 25). Re-
futamos, portanto, a compreensão do ordenamento jurídico como

386 wallace de moraes


um arcabouço puramente técnico, distanciado dos conflitos sociais
inerentes; concepção que emascara relações de poder motivadoras
das práticas de controle social.

MARCOS NORMATIVOS

A análise de alguns marcos normativos nacionais permite-nos


compreender a dinâmica de aplicação de normas jurídicas, inclusi-
ve no processo de criminalização de movimentos sociais. A acusa-
ção processual é regulada pelo Código de Processo Penal brasileiro
de 1941 - adotado até os dias atuais com algumas alterações. Essa
norma teve sua exposição de motivos apresentada pelo Ministro
da Justiça da época do Estado Novo de Vargas, Francisco Campos,
segundo o qual se combatia “um tão extenso catálogo de garantias
e favores”, que tornava a repressão, a seu ver, “necessariamente,
defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à ex-
pansão da criminalidade”. Para combater este mal, defendia em seu
discurso:

“Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indi-


víduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contempo-
rizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum.
O indivíduo, principalmente quando vem se mostrar rebelde à dis-
ciplina jurídico-penal da vida em sociedade, não pode invocar, em
face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que
o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida
reclamada pelo interesse social”. 7

7 Decreto-Lei nº 3.689 de 3 de outubro de 1941 (Exposição de Motivos do Código de Pro-


cesso Penal). Diário Oficial da União de 13/10/1941. Ministério da Justiça e Negócios Inte-
riores. Brasília.

2013 - revolta dos governados 387


Essa ótica autoritária, de minimização de direitos e garantias in-
dividuais em prol do discurso repressor, foi reproduzida em diversas
outras ocasiões na história brasileira, entretanto um dos momentos
mais emblemáticos foi o Ato Institucional n° 5, decretado pela Dita-
dura Militar-Plutocrática Desavergonhada, em 1968, suspendendo
várias garantias constitucionais como direitos civis dos governados
contestadores. Esse marco normativo ditatorial foi justificado da se-
guinte forma:

“(...) não só não pode permitir que pessoas ou grupos anti-revolu-


cionários contra ela (a República) trabalhem, tramem ou ajam, sob
pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo
brasileiro, (...) atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais dis-
tintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos
jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua de-
fesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de
meios para combatê-la e destruí-la; (...) assim, se torna imperiosa a
adoção de medidas que impeçam e sejam frustrados os ideais supe-
riores da Revolução, preservando a ordem, a segurança (...) do País
comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucio-
nária. 8

A mesma lógica totalitária verticalizada encontra-se presente


em leis criadas a partir de 2013 para regular as manifestações du-
rante os grandes eventos, principalmente no Rio de Janeiro. Os de-
cretos do Estado do Rio de Janeiro, onde os protestos foram mais
intensos, foram: Decreto estadual/RJ nº 44.302 de 19/07/2013; e o
Projeto de Lei estadual nº 2.405 de 11/09/2013. A primeira norma foi
revogada pelo Decreto nº 44.305/2013 dois dias após sua publicação
no Diário Oficial, mas foi mantida sua estrutura inicial de instauração
de uma “Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo

8 Ato Institucional nº 5 de 13 de dezembro de 1968. Diário Oficial da União de 13/12/1968.


Presidência da República. Brasília.

388 wallace de moraes


em Manifestações Públicas – CEIV”, composta por representantes
do Ministério Público; da Secretaria de Segurança do Estado do RJ; e
das Polícias Civil e Militar.9 Repara-se, pela própria composição, seu
perfil acusatório e nada democrático paritário, com clara denotação
repressora e não garantidora de direitos.
A referida comissão teve como atribuição “tomar todas as pro-
vidências necessárias (...) podendo requisitar informações, realizar
diligências e praticar quaisquer atos necessários à instrução de pro-
cedimentos criminais com a finalidade de punição de atos ilícitos
praticados no âmbito de manifestações públicas”, com “prioridade
absoluta em relação a quaisquer outras atividades”, inclusive no to-
cante a quebras de sigilo por operadoras de telefonia e provedores
de internet, nos termos dos arts. 2º e 3º do Decreto nº 44.305/2013. A
mencionada norma deixou em aberto o conceito jurídico-normativo
de vandalismo, passando verdadeiro “cheque em branco” para me-
didas autoritárias de repressão.
Por sua vez, o Projeto de Lei estadual 2.405/2013, convertido
“em tramitação em regime de urgência” na Lei 6.528 de 11 de se-
tembro de 2013, proibiu “especialmente (...) o uso de máscara ou
qualquer outra forma de ocultar o rosto do cidadão com o propósito
de impedir-lhe a identificação”, de acordo com seus arts. 2º e 3º, con-
dicionando o direito constitucional à reunião pública ao prévio aviso
à autoridade policial, “sem o uso de máscaras nem de quaisquer pe-
ças que cubram o rosto do cidadão ou dificultem sua identificação”.
Ambas as medidas normativas estaduais denotam o viés de
“combate” a grupos específicos que estariam, supostamente, colo-
cando em risco a “segurança nacional”, tal como em tempos classi-
camente definidos pela literatura como ditatoriais.
Aliás, em São Paulo, foi aplicada a Lei de Segurança Nacional
(Lei 7.170/1983), editada no período de Ditadura Militar-Plutocrática
Desavergonhada, para a prisão de dois jovens manifestantes. Atitu-
9 Decreto nº 44.305, de 24 de julho de 2013. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro de
25/07/2013. Governador do Estado. Rio de Janeiro.

2013 - revolta dos governados 389


de abusiva e ilegal, diante do próprio texto normativo, que condicio-
na sua utilização a situações de: lesão ou exposição a perigo efetivo
à integridade territorial e à soberania nacional; ao regime represen-
tativo e democrático, à Federação e ao Estado de Direito; ou os che-
fes dos Poderes da União, nos exatos termos do art. 1°, Lei 7.170/83.
Acusar que os dois jovens, por mais equipados que estivessem,
estariam colocando em risco a atual soberania nacional, o regime
democrático, ou qualquer um dos outros bens jurídicos descritos
acima, sem sequer portar qualquer arma de fogo ou equivalente, é
realmente desproporcional e irrazoável. Portanto, houve, inclusive,
violação aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade que
deveriam ser respeitados pela administração pública no ato da im-
putação penal.
A realização de grandes eventos, como a Copa do Mundo e
as Olimpíadas, implicou na produção de legislações de Estados de
Exceção nos países sede. No Brasil, não foi diferente. Além das leis
supracitadas, destaca-se a portaria normativa n. 3461/ Ministério da
Defesa, de 19 de dezembro de 2013, que institui a “Garantia da Lei
e da Ordem”. Tratou-se de operação militar conduzida pelas Forças
Armadas, contra “forças oponentes”, compostas, dentre outros,
por “movimentos ou organizações; [...] pessoas, grupos de pesso-
as ou organizações atuando na forma de segmentos autônomos ou
infiltrados em movimentos, entidades, instituições, [...] provocan-
do ou instigando ações radicais e violentas”.10 Tal conceituação de
cunho subjetivo e vago, se alinha a um dos objetivos principais das
operações, nos termos normativos, “tipo polícia”, qual seja, “con-
trolar os governados”, prevendo, “controlar distúrbios; controlar o
movimento da população; [...] manter ou restabelecer a ordem pú-
blica em situações de vandalismo, desordem ou tumultos”.11
A própria Portaria 3.461/2013 previa que as ações desenvolvidas
“serão vulneráveis à contestação, sendo importante a previsão de
10 Portaria nº 3.461/2013, item 4.3.2.
11 Portaria nº 3.461/2013, Itens 4.5.2.2 e 4.5.3.

390 wallace de moraes


uma assessoria jurídica específica para a atividade capaz de assistir
os comandantes e orientar os procedimentos legais a serem adota-
dos”. Mais uma vez, o Direito surge como instrumento justificador
da garantia da ordem, só que, neste caso, essa função foi explicitada
na norma. A participação de representantes dos órgãos do Poder
Judiciário no apoio ao planejamento e à execução das operações foi
ressaltada como de suma importância, prevendo-se também “a for-
mação de um Núcleo Jurídico dedicado ao apoio à operação, para
expedir instrumentos jurídicos que respaldem as ações”.12
A preocupação com o “terrorista” e/ou “vândalo”, difundido
como um inimigo da humanidade, tem justificado a repressão e con-
tenção às insatisfações populares. Desde as cruzadas, a repressão
estatal necessita de inimigos para se legitimar. Afinal de contas,
“sem delinquência não há polícia”, como já dizia Foucault (2001:
137). E o cerco jurídico a possíveis práticas questionadoras da desti-
nação dos recursos públicos está em franca implantação.
No intuito não apenas de ilustrar o presente estudo, mas para
que se perceba o discurso criminalizante sobre os movimentos so-
ciais, convém destacarmos que aos manifestantes foi imputado o
novo crime de “promover, constituir, financiar ou integrar, pesso-
almente ou por interposta pessoa, organização criminosa”, com a
pena de 3 (três) a 8 (oito) anos de reclusão e multa, “sem prejuízo
das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas”
(art. 2º, Lei 12.850/2013), aumentando-se a pena nos casos de partici-
pação de adolescente.
A própria lei passou a definir o que considerou como organiza-
ção criminosa, vejamos:

“a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente or-


denada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informal-
mente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem
de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas

12 Portaria nº 3.461/2013, item 3.4.

2013 - revolta dos governados 391


penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de
caráter transnacional”.

Em outras palavras, o legislador e o aplicador desta norma


presumem o perigo de forma abstrata, ainda que inexista qualquer
dano ou efetiva ameaça de lesão a qualquer bem jurídico. Muitos
questionam a constitucionalidade dos chamados crimes de perigo
abstrato, como este. Para além desta inconstitucionalidade técni-
ca, é fundamental destacar, aqui, o caráter autoritário de aplicação
indiscriminada destes termos a cidadãos que se encontravam em
manifestações em praças públicas contra os absurdos gastos com
estádio de futebol e a corrupção inerente da governança política li-
derada por Sérgio Cabral, e, ademais, completamente desarmados.

O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO SOCIAL

Especificamente no tocante à aplicação penal, Zaffaroni et al


(2003) alertam que:

“quando se pretende construir o direito penal sem levar em consi-


deração o comportamento real das pessoas, suas motivações, sua
inserção social (...) o resultado não é um direito penal desprovido de
dados sociais, mas sim construído sobre dados sociais falsos. O pe-
nalismo termina por criar uma sociologia falsa, com uma realidade
social alheia inclusive à experiência cotidiana” (2003:65-66) (grifos
nossos).

O mecanismo seletivo do filtro criminal é ocultado e são distor-


cidas todas as suas consequências. A limitação a esse poder punitivo
busca não apenas retirar o véu ideológico de neutralidade tecnicista
da retórica jurídica, mas sobretudo resguardar uma real democra-
cia e liberdade. É tarefa não só do legislador e do Executivo, mas
também do Judiciário, obter a compatibilidade entre os valores

392 wallace de moraes


normativos e sociais, não podendo perder sua vinculação com os
interesses e anseios majoritários da população. Pois, do contrário,
violarão princípios básicos democráticos. Bergalli (1989) é enfático
nesse sentido: se assim não fizer, o jurista estará pondo o direito a
serviço de quem possui poder para gerir suas normas, com sentido
meramente patrimonial.
Regras simbólicas produzidas em resposta à pressão midiática,
infelizmente, têm sido frequentes no cenário brasileiro e desconsi-
deram a realidade social, bem como preceitos garantistas da dog-
mática jurídica. Fortalecem, deste modo, o nefasto Direito Penal do
Inimigo, segundo o qual o violador da norma é, por si só, um ente
nocivo, que representa um risco para o grupo social, em função do
seu modo de vida ou seu suposto caráter. Desloca-se o foco do hi-
potético fato criminoso para a pessoa, não importando as condutas
e lesões efetivamente realizadas, mas os indivíduos que compõem
aquele grupo social, que deve ser excluído para a preservação da
segurança e da ordem. A contenção ao “inimigo” divide de maneira
maniqueísta a coletividade, a partir de critérios de seletividade e ro-
tulação em um Estado policialesco.
Decerto, não pode o legislador, nem o aplicador da norma, de-
finir incriminações a seu bel prazer. Desde os dizeres de Montes-
quieu (2003), o mecanismo teoricamente democrático de checks
and balances pressupõe uma responsabilidade legislativa pautada,
na esfera penal, a partir de uma periculosidade real, e não por im-
pulsos midiáticos ou fatores psicológicos estereotipados, em uma
produção desenfreada de normas repressoras - a chamada legisla-
ção penal de emergência (Santos, Juarez Cirino, 2005).
A criminalização de diversos manifestantes, inclusive professo-
res da rede pública, no dia 15 de outubro de 2013, pela suposta parti-
cipação em “organizações criminosas”, a partir de um cerco policial
que prendeu todas as pessoas encontradas próximas à Câmara
Municipal do Rio de Janeiro, corresponde a uma responsabilização
independentemente da existência de indícios de autoria e da ma-

2013 - revolta dos governados 393


terialidade de qualquer crime. Sem considerar a conduta subjetiva
de cada indivíduo, adotou-se a chamada responsabilidade penal ob-
jetiva, totalmente inconstitucional e teoricamente não aceita pelo
direito nacional. Ainda em 2018, 23 ativistas políticos, em sua maioria
estudantes universitários e professores estão sob processos judicias
que primam por falta de provas e por fontes duvidosas, sob a acusa-
ção de terem participado dos protestos contra a Copa em 2014. Fato
é que participavam de movimentos sociais, mas foram enquadrados
como membros de organizações criminosas.
A definição do que é digno ou não de figurar na esfera públi-
ca foi delineada pela atuação policial, desconsiderando institutos
básicos e caros ao direito, como a garantia da dignidade da pessoa
humana. Ao analisar protestos sociais em Portugal, José Manuel
Mendes utilizou-se da dicotomia entre polícia e política para per-
ceber que a estratégia de transformação dos acontecimentos num
caso de polícia busca restabelecer a ordem e as hierarquias sociais,
bem como remeter ao silêncio as reivindicações e os protestos da
população. Por outro lado, tomou a iniciativa de definir o que é ou
não político, retirando qualquer legitimidade das pessoas que na rua
se manifestam (Mendes, 2005: 161-185).
No Brasil, princípios insculpidos na Constituição Federal de
1988, como da presunção de inocência, do devido processo legal
e da ampla defesa foram totalmente pisoteados com posturas de
imputações arbitrárias e levianas, deixando a sociedade sujeita a
todo tipo de arbítrio. Essas imputações implicaram em violação do
princípio de subsidiariedade ou fragmentariedade da intervenção
criminal, segundo o qual as normas penais só deveriam ser utilizadas
como ultima ratio da política social, excluída no caso de suficiência
de outros meios não-penais. Violou igualmente o princípio de idonei-
dade da pena, que exigia a aplicação desta somente em situações
nas quais haveria possibilidade de efeitos sociais úteis à coletivida-
de, contrariando políticas criminais humanistas.

394 wallace de moraes


Acusar indiscriminadamente sem a indicação específica de con-
dutas a partir de um mínimo probatório representa cerceamento ao
direito de liberdade dos indivíduos e um desrespeito ao princípio da
culpabilidade, de acordo com o qual é impossível se responsabilizar
criminalmente por uma ação ou omissão alguém que tenha atuado
sem dolo (intenção) ou culpa (Prado, 2013: 167). A exigência de in-
dividualização específica dos fatos alegados como criminosos, bem
como a necessidade de ponderação - racional e proporcional – das
circunstâncias e condutas efetivas dos manifestantes envolvidos,
foram totalmente desrespeitadas. Enfim, são inúmeros os princípios
fundamentais aviltados com a postura dos agentes repressores,
inclusive os da segurança jurídica e da legalidade, pois na medida
em que os representantes das governanças jurídicas e políticas não
respeitaram sequer os ditames básicos das regras formais estabe-
lecidas pela Lei, imperaram as arbitrariedades e abusos ilimitados,
colocando em risco a própria República e as normas instituídas pelas
revoluções liberais em contrário aos regimes absolutistas.
Mesmo na década de 1980, ainda na saída de um período de
Ditadura Militar-Plutocrática Desavergonhada no Brasil, não se che-
gou a caracterizar tamanha truculência jurídico-penal. Naquele pe-
ríodo, os movimentos sociais se reorganizavam e ganharam força.
Algumas greves gerais, com grandes piquetes e quebra-quebras fo-
ram constantes. Nas periferias das grandes cidades, principalmente
do Rio de Janeiro, por algumas semanas prevaleceram saques e in-
vasões a supermercados, que não se limitaram a quebra de vidros.
Conquanto ainda vigorasse o arbítrio dos militares e da repressão
institucional, os saqueadores não foram parar em presídios comuns,
como para onde foram encaminhados diversos manifestantes em
2013/14.
Contemporaneamente, não se pode olvidar o poder que os oli-
gopólios de comunicação de massa detêm na formação de opinião
e defesa de determinados interesses. Os estudos da criminologia
crítica abordam a influência ideológica dos governantes sociocul-

2013 - revolta dos governados 395


turais na construção de “imagens da criminalidade” para a criação
de efeitos reais de alarme social. Ressoam em campanhas de lei e
ordem com o fim de ampliar o poder político e legitimar a repres-
são penal em épocas de crise social. A representação ideológica de
luta contra o “vandalismo” – apresentado pelos grandes veículos
de comunicação como inimigo comum da sociedade – emascara a
diferenciação entre as funções aparentes (ideológicas) e as funções
reais (ocultas) do sistema penal, fundado no cárcere como aparelho
garantidor e reprodutor do poder social. Nesse diapasão, o Estado
e a grande mídia veicularam em cadeia nacional, pelo denominado
“disque denúncia”, fotos de duas ativistas políticas foragidas, como
procuradas urgentemente pela polícia, as quais nunca foram vistas
sequer com uma arma de fogo.
Por fim, caracterizado o processo de criminalização nas ma-
nifestações sociais, resta-nos confluir com as lúcidas palavras de
Juarez Cirino, aplicáveis perfeitamente ao momento histórico pes-
quisado, segundo o qual:

“a única resposta para o problema da criminalidade é a democracia


real, porque nenhuma política criminal substitui políticas públicas de
emprego, de salário digno, de moradia, de saúde e, especialmente,
de escolarização em massa – infelizmente, impossíveis no capitalis-
mo” (Santos, Juarez Cirino (2005:11).

Portanto, mais do que simplesmente reprimir, é necessário


compreender as reais demandas e necessidades dos governados.
Concluímos que qualquer estudo acerca do controle jurídico-nor-
mativo penal efetuado em relação aos grupos sociais presentes
nas manifestações contemporâneas no Brasil não pode prescindir
de uma ampla análise capaz de englobar os diversos vetores sociais
que influenciam no debate. A mera repetição do discurso criminali-
zante serve principalmente para obliterar a voz de uma porção de
jovens governados que reivindicaram melhores condições de vida

396 wallace de moraes


e atacaram de frente os princípios do capitalismo, pondo em xeque
os governantes, que fizeram de tudo para garantir o seu pleno fun-
cionamento com suas desigualdades e injustiças claramente susten-
tadas por um arcabouço jurídico criminalizador. As leis criadas ad
hoc para garantir megaeventos no Brasil e toda a corrupção que os
cercaram serviram para impossibilitar a auto-instituição social ho-
rizontal, democrática e contestadora que a juventude perseguida
pela Lei tanto queria.

2013 - revolta dos governados 397


7. ATIVISMO CONSERVADOR
AGRESSIVO E O FIM DO
MOVIMENTO
fonte: ruy barros
Mostraremos que vários fatores colaboraram para acabar com
a Revolta dos Governados, cuja lógica da reação conservadora e au-
toritária foi disputar as massas que haviam aderido aos protestos, a
saber:
1) coerção pura e simples, através da criminalização dos movi-
mentos sociais mais combativos, da imposição da violência policial
com intensa repressão nas ruas, com detenções/prisões em massa,
resultando na propagação do medo generalizado;1
2) deturpação e manipulação das informações pelos gover-
nantes socioculturais para deslegitimar os protestos, com intensa
atuação de reportagens divulgadas nos oligopólios de comunicação
de massa, buscando apresentar os mais combativos com o termo
“vândalos” 2, clamando para sua punição, tentado incutir o medo
nos governados. Por outro lado, os agentes repressivos passaram a
ser apresentados como vítimas do processo.3 Essas atitudes afasta-
ram os governados e omitiram todo o conteúdo reivindicativo das
manifestações, aparentando que não tinham demandas legítimas,
era só bagunça pela bagunça e quebradeira do patrimônio alheio.

1 Só em junho de 2013, segundo Gohn (2014) foram realizadas 1301 detenções em 15 capitais
do país. Somente em São Paulo, 218 pessoas foram presas e foram abertos 273 inqué-
ritos. O estabelecimento do medo ocorre por ações policiais, mas também pelo papel
exercido pelos oligopólios de comunicação de massa em associação com as polícias. Em
junho de 2014, a Rede Globo divulgou que a polícia de SP tinha uma lista de mais de 700
investigados como membros do Black Bloc que sofreriam as sanções legais. Ver http://
g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/06/apos-um-ano-policia-identifica-700-suspeitos-de-
-violencia-em-atos-em-sp.html
2 Conceito estereotipado, tal como os de comunista, de traficante, de pivete etc, criados
outrora, em verdadeiro processo de “etiquetamento social”. A respeito, ver Batista
(2003a) e (2003b).
3 Vejamos o relato de Lacatelli (2013) sobre os atos em São Paulo: “Confesso que fiquei
impressionado ao ver o protesto no canal Globo News, cujo o apresentador criticava a
manifestação”. Segundo o autor, a realidade que a televisão buscou reproduzir não tinha
nada a ver com aquilo que ele presenciou pessoalmente.

2013 - revolta dos governados 401


3) infiltração de agentes das forças de repressão nas manifes-
tações para praticarem atos impopulares com a devida articulação
com as reportagens;
4) rearticulação do setor conservador, buscando ampliá-lo com
segmentos sociais que estavam aderindo aos significados da Revol-
ta, marcada pela contestação de todo tipo de autoridade;
5) criação de think tanks com profissionais atuantes nas redes
sociais apoiados por exércitos de robôs para divulgação de suas
mensagens autoritárias conservadoras e agressivas4;
6) ampliação da propaganda e de publicações de livros de
cunho plutocrático neoliberal desavergonhado no país e de forte
apelo anticoletivista;
7) erro de leitura da esquerda oficial. A perspectiva teórica mar-
xista, e principalmente a marxiana, não dá conta de explicar movi-
mentos como o de 2013 em função da sua pluralidade de pautas:
antirracista, antimachista, antihomofóbica, antinstitucionais, em de-
fesa do meio ambiente, pelos trabalhadores precarizados (aqueles
que o marxismo chama pejorativamente de lupemproletariado). A
centralidade no operariado como único setor social revolucionário,
carregada de preconceitos para as demais reivindicações, quando
não as impossibilita, dificulta sobremaneira uma interpretação mar-
xista que não seja preconceituosa com relação a 2013. Aquela luta
sindical operária que fazia muito sentido nos séculos XIX/XX, uma
luta corporativista, hoje, padece de alguns sérios problemas.5 Com
efeito, os partidos da esquerda oficial entenderam que havia um

4 Foram várias as medidas reconhecidas pelo próprio Facebook como divulgadoras de no-
tícias falsas, apoiadas em perfis falsos e impulsionadas por robôs. Vejamos: https://
oglobo.globo.com/brasil/facebook-divulga-lista-de-paginas-excluidas-em-julho-por-de-
sinformacao-22954480?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaig-
n=newsdiaria Na lista das páginas retiradas com perfil falso e/ou difusora de notícias
falsas divulgadas pelo Facebook estão algumas do MBL e outros do Bolsonaro, como
“bolsonaro o mito”. https://d37iydjzbdkvr9.cloudfront.net/arquivos/2018/08/06/face-
book.pdf acessado em 20 de agosto de 2018.
5 Mostraremos as leituras marxistas de 2013 e de outras correntes no capítulo 2 desse livro.

402 wallace de moraes


forte movimento fascista que assaltava a direção da revolta. Esse
equívoco, ajudou enormemente a desmobilizar os governados re-
voltosos, que evidentemente também não se identificavam com
qualquer movimento fascista. Essa leitura foi amplamente divulga-
da pelos oligopólios de comunicação de massa e reproduzida pela
esquerda oficial com vistas a desbaratar o movimento.
8) O massacre da polícia sobre as forças populares no dia
20/06/2013, com um verdadeiro “toque de recolher”, instaurado pe-
los governantes, que editou perseguições a transeuntes, tiros tanto
de bala de ferro, quanto de bala de borracha, gás de pimenta e la-
crimogênio junto com a violência física foram preponderantes para
afastar milhares de pessoas dos protestos, que, com razão, temiam
pela sua integridade física, deveras ameaçada.
9) A “Artigo 19” (2013) elencou algumas violações ao direito de
manifestação conduzidas pelo Estado: a) falta de identificação dos
policiais; b) detenções arbitrárias, como para averiguação, prática
formalmente extinta desde o fim da Ditadura Militar-Plutocrática
Desavergonhada6; c) criminalização da liberdade de expressão por
meio do enquadramento de manifestante em tipificação penais ina-
dequadas às ações do infrator; d) censura prévia, por meio da proi-
bição, legal ou não, de manifestante usarem máscaras ou levarem
vinagre para o protesto; e) uso de armas letais e abuso das armas
não letais; f) esquema de vigilantismo nas redes socais montado pe-
las polícias locais, pela Abin e também pelo Exército; assim como as
gravações realizadas pelas polícias durante os protestos; g) policiais
infiltrados nas manifestações que, por vezes, causavam e incentiva-
vam tumulto e violência; h) maior preocupação policial com a defesa
do patrimônio do que com a segurança e integridade física dos ma-
nifestantes; i) ameaças e até sequestros foram relatados.

6 Resumidamente, o conceito busca ressaltar que os governos militares estiveram a favor


dos proprietários e ricos em geral, de maneira desavergonhada. Para mais detalhes, ver
De Moraes (2018).

2013 - revolta dos governados 403


10) as diversas detenções com abertura de processos criminais
contra os manifestantes.
11) a ausência de um sindicalismo revolucionário foi outro obs-
táculo para o desenvolvimento/ampliação das manifestações. Foi
um momento adequado para a chamada de uma greve geral. To-
davia, as centrais sindicais estavam comprometidas com o petismo
e/ou sob a direção da esquerda oficial, ou, ainda, sob direção dos
partidos plutocráticos neoliberais desavergonhados. Em todos os
casos, existiu uma burocracia “profissional” que impôs suas deman-
das recuadas e institucionais, impedindo a greve geral em junho.
12) os governados ainda não estavam organizados suficiente-
mente para transformar a Revolta popular em Revolução social. Os
coletivos anarquistas, autonomistas e marxistas revolucionários
eram diminutos e não possuíam um trabalho social grande o bastan-
te que pudesse estimular a luta e a ação direta para milhões de brasi-
leiros, ao invés de esperanças eleitorais e/ou individuais. Ademais, o
sentimento popular era revolucionário, mas o aparato bélico estatal
mostrou-se um impeditivo.
13) Se a Ação Global dos Povos, no plano internacional, refluiu
depois do ataque às torres gêmeas7 e do massacre da polícia ita-
liana em Gênova8; no Rio de Janeiro, os protestos refluíram depois
da morte do cinegrafista Santiago. Este fato aconteceu justamente
quando os movimentos estavam se reorganizando para recomeçar
as lutas contra a Copa do Mundo nos primeiros meses de 2014. Ao
mesmo tempo, a maior truculência da polícia com detenções cada
vez em maior número minou a possibilidade de as pessoas irem às
ruas protestar.
14) a dificuldade para uma geração manter protestos de ruas
praticamente diários por muitos meses. É importante lembrar: não
existe profissionais de protestos. As pessoas precisam trabalhar, es-
tudar e fazer outras coisas, mas sobretudo resguardar suas vidas,
7 Em 11 de setembro de 2001 nos EUA.
8 Depois do assassinato do anarquista Carlo Guiliani nos protestos por policiais.

404 wallace de moraes


saúde e liberdade que estavam cada vez mais ameaçadas com a cri-
minalização dos manifestantes e com a constante violência policial.
As repressões dos agentes da governança penal, as deten-
ções, as prisões, a colocação de nomes nos disque-denúncia, as ma-
nipulações nos oligopólios de comunicação de massa, as ameaças
policiais, fizeram com que aqueles que concordavam com as mani-
festações e se constituíram como motor das mesmas, estimulando-
-as, tivessem que ficar mais ou menos na clandestinidade. A grande
maioria das pessoas apagou seu perfil do Facebook e, portanto, não
só destruíram parte da memória da Revolta do Vinagre, como tam-
bém pararam de fazer a propaganda pela própria e por mudanças
drásticas na sociedade. A maioria parou de ir para as ruas. Manter a
postura revolucionária era correr sérios riscos de perder a liberdade.
Esses fatos deixaram ilhados alguns revolucionários convictos que
insistiram nos protestos, mas, por isso, ficaram mais vulneráveis e
se tornaram presas fáceis para os agentes penais, que atuaram com
a velha prática policial da infiltração e pelo fichamento das supostas
lideranças. Com a saída das massas da Revolta, aqueles que continu-
aram se transformaram em vanguardas e alvos identificáveis desta-
cados da multidão.
Ainda em 2013, os governantes penais colocaram fotos de mi-
litantes políticos, supostamente, participantes da tática Black Bloc,
no disque denúncia, que por sua vez ficou estampado em diversos
locais públicos, inclusive, nos transportes e jornais. Assim se forjou
a caçada aos opositores rebeldes e revolucionários que passaram a
ser a bola da vez, o mal a ser combatido.
A melhor forma para explicar porque as pessoas saíram das
ruas é citar um texto divulgado pelo Facebook dia 15 de março de
2015 pelos Anonymous Rio em sua página. Trata-se de análise abso-
lutamente consciente e que melhor representa o sentimento dos
revolucionários, logo após a Revolta dos Governados. Segue, texto
na íntegra. Vale ler.

2013 - revolta dos governados 405


“COMUNICADO DE ANONYMOUS RIO PARA O MUNDO

Anonymous Rio está sendo atacado pelo governo brasi-


leiro. Dois ex colaboradores da página já foram presos
e ainda estão sob investigação e monitoramento. Este
é um comunicado para todas as células Anonymous do
Brasil e do mundo e um alerta para que o mundo saiba o
que vem acontecendo nos últimos dois anos no Brasil.

Após o que ficou conhecido como as Jornadas de Junho,


o período que as massas foram às ruas no ano de 2013,
o governo brasileiro começou uma verdadeira caça-
da a todo ativista que não se intimidou com a bru-
tal repressão feita nas ruas. A polícia esteve nas ruas
fortemente armada atacando manifestantes com ba-
las de borracha, gás lacrimogêneo e, algumas vezes,
com munição letal de armas de fogo. Muitas foram as
pessoas mutiladas por estilhaços das bombas lançadas
pela polícia, diversas delas jornalistas, incontáveis
foram feridas e detidas. Alguns perderam a visão por
terem sido atingidos com bala de borracha no olho.
Ao menos duas pessoas foram baleadas com munição
letal no Rio de Janeiro, outras morreram pela ação
da polícia. Um grande banco de dados de todas essas
violações foi montado, embora esteja incompleto. Ele
pode ser acessado por esse link: http://mortoseferi-
dosnosprotestos.tk/

Mesmo com tantos flagrantes de abusos do Estado


brasileiro, nenhum agente policial foi sequer for-
malmente denunciado ou investigado. Pelo contrá-
rio, iniciou-se uma intensa repressão à toda forma
de ativismo. Somente no Rio de Janeiro, vários foram
detidos aleatoriamente nos protestos de rua. Em 15
de outubro de 2013 quase uma centena de pessoas que

406 wallace de moraes


estavam sentadas na escadaria da Câmara Municipal
do Rio de Janeiro foram presas e encaminhadas para o
complexo penitenciário de segurança máxima de Geri-
cinó, simplesmente por protestarem. Estava declara-
da as perseguições em série, inclusive contra o nosso
coletivo de mídia e informação, “Anonymous Rio”.

Anonymous Rio é um coletivo de mídia e informação


independente. Prezamos pela liberdade de informação,
cultura, pensamento, expressão; por toda forma de li-
berdade. Pautados pelo ideário Anonymous, não temos
estrutura central ou dependência de qualquer forma.
Somos um coletivo mutável, que aceita a colaboração
livre de todos, sem hierarquias ou cargos. Em resumo,
somos um veículo de comunicação livre e independen-
te, completamente horizontal e comprometidos com
as liberdades básicas de informação, manifestação e
expressão.

No último trimestre do mesmo ano, por um decreto


do então governador do Rio de Janeiro, as empresas
de telecomunicações foram obrigadas a entregar da-
dos de usuários de internet. Até mesmo instituições e
grupos conservadores se assustaram com a CEIV, como
ficou conhecido esse decreto. Mais informações sobre
o CEIV podem ser acessadas nesse link, que é de um
site conservador e neo-liberal: http://www.institu-
toliberal.org.br/…/cabral-e-seu-doi-codi…/

Em pouco tempo o decreto foi revogado, mas já havia


feito a devastação das nossas vidas. Com um comu-
nicado, o governo do Rio de Janeiro deixou claro que
os alvos eram “Anonymous” e “Black Bloc”, classifi-
cados como “grupos organizados”. O governo não con-
segue diferenciar Anonymous, um coletivo volátil e

2013 - revolta dos governados 407


um conjunto de ideários, de Black Bloc, uma tática de
intervenção. Essa foi a primeira investida do Esta-
do Brasileiro contra nós, nossa privacidade e nossa
liberdade de expressão. Os dados dos colaboradores
do nosso coletivo de mídia e informação, Anonymous
Rio, foram para as mãos do Estado. Daí em diante pas-
samos a ter nossas vidas privadas exploradas. Temos
conhecimento de escutas telefônicas, vigilância de
internet (redes sociais e e-mails), quebra de sigilo
bancário e monitoramento de deslocamento, graças
aos aparelhos celulares.

Com a chegada de 2014 a opressão do Estado Brasi-


leiro somente aumentou. Tamanha foi a repressão nas
ruas, com aparatos de guerra, uso da Força Nacio-
nal de Segurança (polícia subordinada diretamente à
presidência da república), que os protestos que antes
chegaram a mobilizar cerca de um milhão de pessoas
somente no Rio de Janeiro, agora mobilizavam algumas
centenas de destemidos e abnegados ativistas. Buscas
e apreensões começaram a ser realizadas pela Polí-
cia Civil do Rio de Janeiro nas residências de ativis-
tas, pessoas começaram a ser buscadas em suas casas
para prestarem depoimentos forçados nas delegacias,
equipamentos eletrônicos foram apreendidos sob fal-
sas alegações. Todos os equipamentos eletrônicos dos
dois ex colaboradores da página Anonymous Rio (e
equipamentos eletrônicos de parentes desses ex cola-
boradores) foram apreendidos e ainda estão em posse
da polícia do Rio de Janeiro até o presente momento. A
máscara do V, da história V de Vingança, virou objeto

408 wallace de moraes


de desejo da polícia. Onde houvesse uma dessas más-
caras, ela era apreendida como prova de crime

Um dia antes da final da Copa do Mundo da FIFA o go-


verno do Rio de Janeiro prendeu quase 30 ativistas em
suas casas, de madrugada. Dois deles eram ex cola-
boradores da nossa página “Anonymous Rio”, e foram
presos explicitamente por esse motivo. Assim que o
dia amanheceu em 12 de julho de 2014, toda a polícia
civil do Rio de Janeiro, juntamente com a polícia civil
do Rio Grande do Sul, estava mobilizada na caçada de
ativistas. Muitos deles sequer se conheciam, mas to-
dos foram acusados de formar uma quadrilha armada.
Desses quase 30 ativistas que foram presos no com-
plexo penitenciário de segurança máxima de Gerici-
nó, 23 estão sendo julgados por formação de quadrilha
armada. O processo de acusação virou piada por ter
Mikhail Bakunin como um dos suspeitos, mas também
foi muito alarmante, uma vez que demonstrou que o
Estado não está preocupado com veracidade ou lega-
lidade para silenciar e amedrontar. Os advogados de
defesa, todos ativistas perseguidos, foram impedidos
de ter acesso ao processo de acusação, tendo conse-
guido após extensa insistência. O inquérito mostrou-
-se uma monstruosidade sem igual.

O processo de acusação já conta com 30 volumes (um


total que passa de 7.500 páginas), 11 DVDs com escu-
tas telefônicas e 2 DVDs com filmagens realizadas pela
polícia que revelam todo tipo de monitoramento e
quebra de sigilo. Facebook, Google, Yahoo e Hotmail
forneceram informações de usuários com um simples
pedido judicial, sem qualquer embasamento. O Face-
book, que a princípio se negou a ceder os dados, foi

2013 - revolta dos governados 409


ameaçado de ser retirado do ar em todo o Brasil. Todas
as operadoras de telefonia celular do Rio de Janei-
ro também entregaram os dados e forneceram escu-
tas telefônicas e monitoramento de deslocamento por
meio dos aparelhos celulares; Vivo, Tim, Oi e Claro.
A criptografia de dados em computador, o uso de co-
municação segura e o uso do TOR são assinalados pela
polícia como um fator de suspeita e criminalização. A
utilização de Linux também é colocada como um fator
de criminalização. Foram vários meses de perseguição
que não revelaram nenhum crime, mas mesmo assim os
23, em sua maioria professores e profissionais de co-
municação, continuam sob acusação de formação de
quadrilha armada.

As acusações são baseadas unicamente em testemu-


nhos de indivíduos pessoalmente interessados em
prejudicar os acusados, e nenhuma evidência concreta
foi colhida com os meses de investigação. E o monito-
ramento continua. Esse inquérito, que apresenta real
perseguição política, lista o comunismo e o anarquis-
mo como indício de suspeita, arrolou mais de 70 pá-
ginas do Facebook, sindicatos e coletivos de ativistas
como ameaças em potencial a serem monitoradas e in-
vestigadas. Enquanto os quase 30 manifestantes esta-
vam presos houve um protesto no dia da final da Copa
do Mundo. A polícia agrediu diversos manifestantes e
repórteres, inclusive da mídia internacional. As ima-
gens podem ser vistas aqui: http://consciencia.net/
copa-mundo-termina-com-repressao-br…/

Sabemos que o próximo alvo somos nós do coletivo de


mídia e informação “Anonymous Rio”, junto com ou-
tros coletivos Anonymous. Duas investigações correm

410 wallace de moraes


em segredo dos advogados pela polícia civil do Rio de
Janeiro, mas as informações que temos é que já para o
início do ano de 2015 ocorrerão novas prisões e per-
seguições. Os dois ex colaboradores, que foram presos
no dia 12 de julho de 2014 ainda estão sob investigação
e estão com todos os seus equipamentos eletrônicos
detidos, estariam correndo risco de serem novamente
presos.

Hoje, 03 de janeiro de 2015, existem quatro pessoas


presas por motivação política pelo Estado Brasileiro:
Igor Mendes (que hoje completa 1 mês encarcerado),
Caio Silva, Fábio Raposo e Rafael Braga. Duas pesso-
as estão vivendo na clandestinidade por terem prisão
decretada, também há 1 mês: Karlayne Moraes e Elisa
Quadros.

Centenas são monitoradas e vivem a ameaça de serem


presos. A situação é tão grave que houve a necessidade
de ser criada uma Comissão dos Pais e Familiares dos
Presos e Perseguidos Políticos do Rio de Janeiro (ht-
tps://www.Facebook.com/CP4RJ). Em qualquer momento
os colaboradores desta página podem ser presos única
e exclusivamente por serem um veículo de comunica-
ção livre dentro de um país que se diz democrático,
mas teme as palavras da democracia real.

Pedimos que essas notícias e tragédias sejam tradu-


zidas e espalhadas entre todos os coletivos do mundo.
Que todos aqueles que lutam pela liberdade de todos
os povos saibam que no Brasil, no Rio de Janeiro, vá-
rios ativistas estão encarcerados e centenas de ou-
tros estão sendo perseguidos. Que o mundo saiba que
Anonymous está sob franco ataque do Estado Brasi-
leiro e que a qualquer momento poderemos ser en-

2013 - revolta dos governados 411


carcerados e silenciados. Pedimos o apoio do mundo.
Ferguson, EZLN, Ayotzinapa, Occupy Wall Street, Hong
Kong e a Umbrella Revolution, Palestina, Chile, Tur-
quia ?HYPERLINK “https://www.Facebook.com/hashtag/
gezi?source=feed_text&story_id=722259561228828”,
Kobane, Egito, Indignados da Espanha, ?HYPERLINK
“https://www.Facebook.com/hashtag/freeanons?sour-
ce=feed_text&story_id=722259561228828”; pedimos
ajuda à todo o mundo insurgente.

Mesmo com toda a adversidade não iremos, de forma


alguma, nos render ao terrorismo do Estado. Acredi-
tamos na liberdade e na justiça dos nossos atos, acre-
ditamos no mundo livre de toda tirania e fascismo.
Não iremos fugir e ainda que encarcerem nossos cor-
pos por lutarmos pela liberdade, serão incapazes de
prender nossas ideias, porque é isso que Anonymous é:
uma ideia. E ideias são à prova de balas e de grades.
Nós JÁ estamos em todas as partes.

Liberdade aos 23 perseguidos políticos do Rio de


Janeiro. ?HYPERLINK “https://www.Facebook.com/
hashtag/euapoioos23?source=feed_text&story_
id=722259561228828” Liberdade a todos os Anonymous
presos e perseguidos no mundo. #FreeAnons Liberdade
a todos os Anonymous presos e perseguidos no Brasil.
?HYPERLINK “https://www.Facebook.com/hashtag/free-
anonbr?source=feed_text&story_id=722259561228828”

O texto acima mostra o teor da perseguição política que se se-


guiu a 2013 do ponto de vista da caçada às liberdades de expressão,
com a propagação do medo naqueles que compartilharam de ideias
revolucionárias.

412 wallace de moraes


No mesmo diapasão, devemos citar a sentença9 contra 23 ati-
vistas, de julho de 2018, baseada em infiltração policial, escutas te-
lefônicas e quebra de sigilo de correspondência10 que criminalizou
movimentos sociais e seus militantes que lutavam contra a ilibada
governança política de Sérgio Cabral e os gastos com estádios de
futebol para a Copa do Mundo. Em um país com ampla e excelente
infraestrutura em saúde, educação, transporte, moradia e sanea-
mento básico para seus habitantes, fruto de ações maravilhosas de
seus políticos incorruptíveis, o Judiciário (com seus super-homens
de toga) realmente deveria investir pesadamente em prender ma-
nifestantes, que se constituíam em um grande mal para o país. Uma
verdadeira ameaça para a plena democracia brasileira.
Agora tratemos da repressão aos protestos de rua. Eduardo
Tomazine (2014) explicou as táticas adotadas pelos governantes pe-
nais para impedir as manifestações antes mesmo de começarem em
2014.11 As táticas foram as seguintes:

tática 1: o cerco via “policiamento desproporcional

Esta tática consiste no emprego de forças de segurança, em


especial tropas do Batalhão de Choque – equipados com máscaras,
armaduras (ao estilo “Robocop”), cães, armas elétricas e coisas do
tipo – em um número superior ou, se possível, muito superior ao
número de manifestantes em um protesto. O objetivo precípuo des-
se expediente é cercar por todos os lados os manifestantes em um
momento em que o ato ainda conta com poucas dezenas de pes-

9 Processo nº 0229018-26.2013.8.19.0001 -27ª Vara Criminal - Disponível em http://www1.-


tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?GEDID=0004D3CBDF616E9B64628784853EBA5DA-
872C5083D100930 acessado em 20 de agosto de 2018.
10 https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/07/19/O-que-há-na-sentença-que-conde-
nou---23-ativistas-de-protestos-de-rua
11 Quando as lutas foram retomadas nos anos de 2016/17, os governantes penais, de forma
extremamente truculenta, impediram que os governados se reunissem para os protestos
e os retiraram das ruas pela força. Isto é, as mesmas táticas seguiram até 2018.

2013 - revolta dos governados 413


soas, forçá-los a passar pelo cerco policial para chegar ao local de
concentração dos atos – ou mesmo negar o acesso aos que desejam
entrar –, controlar todos os movimentos das passeatas, podendo
deixá-las imobilizadas quando necessário, além de intimidar tanto
os que participam quanto os que observam o protesto. Esta quanti-
dade e disposição das forças de repressão preparam o terreno para
os próximos passos.”

tática 2 (offensive): o ataque policial preventivo

Outra tática utilizada pelas forças de repressão do Estado, des-


sa vez para encerrar as manifestações sob ordem do comando da
operação, é o ataque policial preventivo, que é o uso da violência da
polícia, mediante bombas de gás, spray de pimenta, balas de borra-
cha e prisões arbitrárias antes mesmo que os manifestantes tenham
provocado qualquer distúrbio à “ordem” (afora o fato de exporem
no espaço público seu inconformismo para com a ordem). Esta táti-
ca, por si só, não é nenhuma novidade, uma vez que a polícia, desde
sempre, é quem costuma provocar os distúrbios e causar a violência
que, em seguida, busca controlar, a um só tempo legitimando seus
abusos e deslegitimando os protestos. A novidade está na combi-
nação do ataque policial preventivo com o cerco via “policiamento
desproporcional”. Encurralados por um contingente policial muito
superior ao número de presentes nos atos, os manifestantes, ata-
cados preventivamente, contando feridos e detidos, perdem ra-
pidamente a disposição de permanecer no protesto e dispersam,
encerrando-se assim a manifestação no momento desejado pela
polícia, e não pelos manifestantes.12

12 Segundo relato de Tomazine (2014), “No Rio de Janeiro, no ato contra os abusos da or-
ganização da Copa do Mundo, convocado para o dia 12 de junho, cuja concentração foi
em frente à igreja da Candelária, no Centro, e seguiu pela Avenida Rio Branco e o passeio
até os Arcos da Lapa, o cerco via ‘policiamento desproporcional’ ocorreu ao fim, no desti-
no previsto pelo ato, e não na sua concentração, conforme eu mesmo pude presenciar. E
foi também na parte final do protesto, já contando com o cerco, que o ataque preventivo

414 wallace de moraes


tática 3 (jogada ensaiada): as detenções por falsos fla-
grantes coletivos

Além dos já abordados cerco via “policiamento desproporcio-


nal” e o ataque policial preventivo, a Blietzkrieg da nossa Seleção
de Chumbo (a “pátria de coturnos”) se complementa ainda com as
detenções de manifestantes mediante falsos flagrantes coletivos,
golpe que pode ser aplicado antes, durante ou depois dos protestos
de rua. (...)
Nos protestos de rua ocorridos desde o início da Copa, acumu-
lam-se os registros de manifestantes detidos por tal ardil. (...)
Se prender manifestantes por falsas acusações já fazia parte do
repertório da repressão, uma inovação tática, ao menos pelo que eu
saiba, é a modalidade dos falsos flagrantes coletivos, isto é, contra
vários manifestantes de uma só vez. Pois tal modalidade foi empre-
gada na repressão ao ato do dia 17 de junho, no centro do Rio de
Janeiro, dia do jogo Brasil x México. As arbitrariedades da polícia na
prisão de manifestantes foram tantas nesta ocasião, que nem mes-
mo a reportagem do jornal O Globo conseguiu dissimular os abusos.
Em meio a um texto que emprega o velho recurso dos sentidos, de-
poimentos de pessoas descontentes com os transtornos provoca-
dos pelo protesto – num exercício de deslegitimação que consta no
manual interno de redação do referido jornal –, a notícia indica que
“Mais cedo, ainda na Candelária, local da concentração, um grupo
de oito estudantes da Uerj, com roupas coloridas, rostos pintados
de tinta preta e usando latas para improvisar uma bateria, chegou

se deu. Aproximadamente meia hora após a concentração final do protesto, quando ain-
da algumas centenas de manifestantes se reuniam e confraternizavam pacificamente, um
professor foi detido arbitrariamente. Sua detenção despertou a solidariedade de outros
manifestantes, que tentaram resgatá-lo dos policiais, o que provocou novas detenções,
outras tentativas de resgate e, finalmente, o uso de bombas de gás pela polícia. No total,
cinco manifestantes foram detidos e, poucos minutos após o ataque, a manifestação já
estava completamente dispersa.”

2013 - revolta dos governados 415


fazendo uma performance. Quatro acabaram detidos, e as latas
apreendidas pela PM.”
Ignorando solenemente a prática do bom jornalismo, a repor-
tagem não nos deixa saber o motivo da detenção dos quatro es-
tudantes, mas dá testemunho da tática do cerco via “policiamento
desproporcional”, quando informa que “Um protesto contra a Copa
do Mundo, que reuniu no máximo 50 pessoas, terminou com 15 ma-
nifestantes detidos, segundo a Polícia Militar. Eles foram levados
para a 21ª DP (Bonsucesso) e para a 22ª DP (Penha). Além da baixa
adesão, também chamou a atenção o forte esquema de segurança:
pelo menos cem policiais militares, de diversos batalhões, atuavam
no entorno da Igreja da Candelária, onde os ativistas se reuniam.”
(Por que foram detidos? A reportagem não diz nada a respei-
to). Em seguida, a matéria relata um acontecimento inusitado, do
qual, para variar, não dá muitos esclarecimentos, salvo a certeza de
que, doravante, o direito constitucional de ir e vir só é válido desde
que não seja ir para ou vir de protestos. Lê-se que, “[n]o momento
mais tenso da manifestação, cerca de 30 pessoas que tentavam che-
gar a Copacabana, embarcaram em um ônibus da linha 455 (Méier/
Copacabana) na Cinelândia”. Após uma passageira ter se sentido
mal, por motivo ignorado pela matéria, “os PMs usaram spray de pi-
menta e detiveram quatro pessoas alegando desacato.” Parágrafos
depois, relata-se – com a notória naturalidade que um órgão de im-
prensa como O Globo noticia os descalabros da nossa “democracia”
e suas “revoluções” – que “o ato foi dispersado [a voz passiva aqui
não é por acaso] por volta de 20h, quando o coletivo da linha 455 foi
liberado.” Uma informação importante: Copacabana, destino do re-
ferido coletivo retido pela polícia até o ato “ser dispersado”, é onde
foi montado o circo da “Fifa Fan Fest.”
Em resumo, colaboraram para o fim do movimento todos os
aspectos supracitados em seu conjunto. Somados a eles ainda po-
demos reiterar que a primavera de luta brasileira sucumbiu em fun-
ção das diversas prisões/detenções de militantes combativos e seus

416 wallace de moraes


respectivos processos judiciais. Além disso, 2014 foi um ano eleitoral
e os militantes da esquerda oficial desperdiçaram volumosa energia
fazendo campanha para eleger seus correligionários ao invés de se
somarem às lutas nas ruas.
Discorrendo sobre as manifestações em Londres no âmbito da
Ação Global dos Povos (AGP), na década de 2000, Ludd (2002: 50-51)
explicou o seguinte:

“A polícia inglesa se defrontou com um adversário inesperado tanto


em tamanho, estrutura e tática, quanto em forma de organização.
O establishment foi pego de surpresa numa manifestação de rua de
tais proporções. A ‘caça às bruxas’ não conseguiu ‘queimar’ os lí-
deres, uma vez que eles não existiam. Como combater dezenas de
grupos de afinidades e coletivos horizontais que não possuem sede,
estrutura formal etc? Como lidar com uma manifestação multiface-
tada e descentralizada, com milhares de pessoas espalhadas por vá-
rios pontos da cidade?”

Situação muito parecida aconteceu em 2013 no Brasil e esse foi


um dos seus grandes méritos: horizontalidade e descentralização
do movimento que impossibilitava para a polícia encontrar líderes e
prendê-los. Todavia, depois de outubro, os protestos passaram a ser
de uma vanguarda lutadora persistente e teimosa, que pelo ímpeto
revolucionário queria reacender a luta popular a todo custo. Assim,
essa vanguarda perdeu o anonimato e se colocou mesmo como lide-
rança do movimento, ficando à mercê da repressão e criminalização
dos governantes penais. Ao ocupar as ruas sem as massas esses se-
tores ficaram vulneráveis e deram margem para os governantes pe-
nais, jurídicos, políticos e socioculturais identificá-los, investigá-los e
criminalizá-los. Ademais, sem as massas, os governantes fizeram de
tudo para desqualificar suas pautas e ações. Com efeito, os protes-
tos - absolutamente legítimos e com amplo apoio popular - foram

2013 - revolta dos governados 417


quase que colocados na ilegalidade pela forte perseguição a seus
maiores entusiastas.
Em consonância com essa perspectiva, podemos citar Ludd
(2002), descrevendo o que pôs fim à Ação Global dos Povos:

“Em última instância, o controle garante a ‘não radicalização’ e a dis-


ciplina das massas. Mas quem exerce o controle? Seria um engano
achar que são apenas os aparelhos jurídicos-repressivos do Estado,
quando historicamente esse controle tem sido exercido também
por sindicatos verticalizados e partidos políticos de esquerda, entre
outros. Controle este que é muitas vezes exercido de forma sutil e
invisível, através da tentativa de isolamento e condenação dos ‘ra-
dicais’ em nome de uma suposta imagem a ser preservada (quando
na realidade o que parece estar em jogo é a preservação da ordem
burguesa). Como se a ‘revolução’ fosse ter uma bonita imagem na
TV e nas publicações burguesas!”

Depois das exposições dos Anonymous e de Tomazine (2014)


sobre táticas conhecidas e “desconhecidas” para acabar com os
protestos, bem como o simples entendimento de que manifestante
não é um super-herói, esperamos ter auxiliado na compreensão dos
porquês do fim da Revolta dos Governados de 2013/14. Por outro
lado, manter a pergunta, sabendo desses fatos, denota a má-fé ou
completa ignorância do interlocutor, que busca desmerecer a insur-
gência popular. Em suma, a violência policial, a supressão dos direi-
tos civis dos manifestantes, a seletividade das informações sobre os
protestos com cuidado rigoroso para deslegitimar suas ações reali-
zada pelos governantes socioculturais consistiu na base de um mo-
vimento mais amplo que nós chamaremos de reação conservadora
a 2013 e seus signos. Vejamos.

418 wallace de moraes


A REAÇÃO CONSERVADORA A 2013 E O PAPEL DOS
THINK TANKS NA POLÍTICA BRASILEIRA

A valorização do policial representa um assunto de Estado dos


mais importantes e foi a mola mestra da reação conservadora. Por
isso, os Think tanks foram criados para “elevar a moral da tropa”,
como um aspecto fundamental da “guerra psicológica” contra os
signos de 2013. Estes termos militares balizam a autoconfiança dos
soldados, a confiança na instituição e consequentemente no coman-
do, governantes penais. Ponto fundamental para entender como a
ordem se sustenta.
Os Think Tanks são grupos formadores de opinião sobre polí-
tica, altamente organizados e financiados. Trabalham de maneira
profissional, descarregando centenas de mensagens via Whatsapp,
Facebook e Twitter, todos os dias com a ajuda de robôs e líderes
de segmentos conservadores.13 Essa prática, no Brasil, ganhou força
depois dos protestos de 2013 e com a popularização de dois aspec-
tos: 1) redes sociais, quando a maior parte da população brasileira
passou a ter acesso a smartphones para se comunicar instantane-
amente; 2) ampliação da discussão sobre política, que era bastante
restrita a épocas eleitorais e praticada por pequenos e determina-
dos grupos, se tornou recorrente a partir de 2013, como resultado
do aumento da escolaridade e da indignação social com a corrupção
escancarada dos políticos.
Os grupos Conservadores Agressivos aproveitaram a legíti-
ma indignação popular externada intensamente nos protestos
de 2013, por um lado, procurando fazer os governados voltarem

13 A divulgação massificada, por exemplo, de um senhor, um coronel, apanhando de black


blockers, em São Paulo, em outubro de 2013, colaborou para a virada da página e para a
articulação do bloco conservador. Assistir a um senhor em situação de vítima aguçou os
ânimos dos policiais na composição do bloco. Os black blockers alegam que tudo aquilo
foi plantado e articulado, justamente para atingir aquele objetivo, mas de fato comoveu
parte da sociedade.

2013 - revolta dos governados 419


a crer nas instituições políticas e nas suas autoridades e, por ou-
tro, exigiram e puseram em prática uma criminalização da luta e
dos rebeldes, em particular, aos adeptos da tática Black Bloc. Esse
movimento denominamos por “ativismo conservador agressivo”.
Ele foi formado da seguinte maneira: autoridades que se sentiam
ameaçadas por 2013 se rearticularam e criaram os think tanks a
princípio com mensagens com alto teor de indignação, mas ter-
giversando ou redirecionando a indignação contra todas as ins-
tituições - típica de 2013 - para somente focar contra o petismo e
tudo o que representava esquerda, socialismo, direitos humanos,
liberdade sexual, direitos para pobres, negros, mulheres etc.14
Os oligopólios de comunicação de massa foram fundamentais
nessa empreitada. As mensagens bem elaboradas, com fácil lingua-
gem, transmitindo a princípio seriedade, e pautadas em críticas ao
péssimo governo de Dilma, foram amplamente compartilhadas pe-
los governados, muitos o fizeram acriticamente, mas com grandes
doses de indignação. As principais mensagens foram subliminares e
tentaram se mostrar radicais contra o petismo e aproveitaram para
dizer, por exemplo, que na Ditadura Militar-Plutocrática Desavergo-
nhada os generais-presidentes não eram corruptos, que educação,
saúde pública, segurança eram melhores, que sob os governos pe-
tistas se distribuiu “Kit Gay” nas escolas, que os direitos humanos
só protegiam bandidos etc. Assim, através da fake History (História
falsa) tentaram capitalizar o imaginário social radicalizado criado em
2013 para posturas radicais plutocráticas neoliberais protofascistas
e desavergonhadas sustentadas em falsas informações e “verda-
des” amplamente descontextualizadas. Tratou-se, portanto, de um
ativismo que juntou, esdruxulamente, aspectos liberais na econo-
mia com conservadores e reacionários no comportamento, coerciti-
vos e intolerantes com relação àqueles que pensam diferente.

14 Com o êxito dessa campanha, em seguida, utilizou fortes críticas plutocráticas sobre o
governo Dilma, potencializando e canalizando a revolta contra os petistas.

420 wallace de moraes


Destarte, esses grupos conseguiram difundir a imagem segun-
do a qual os políticos petistas seriam os piores do mundo, quando
na verdade não estavam sozinhos. O problema estava encrustado
no sistema político brasileiro como um todo, que está podre e só
funciona com corrupção. Fazem parte dessa podridão todos os par-
tidos que ocupam espaço no Congresso Nacional e nas esferas polí-
ticas estaduais, com algumas raríssimas exceções individuais.15
O êxito dos Think Tanks Conservadores Agressivos está direta-
mente atrelado à perseguição política aos militantes e ao pensamen-
to insurgente revolucionário, com a desarticulação eficaz de muitas
de suas organizações. Essa perseguição foi realizada por todos os
partidos do poder. Além disso, o mais grave foi a própria censura
nas redes sociais. Enquanto as mensagens conservadoras e autoritá-
rias possuíam ampla divulgação, as revolucionárias foram quase que
bloqueadas, censuradas, perseguidas. Por conseguinte, buscou-se
garantir o legado de 2013 ao ativismo conservador agressivo e não
aos rebeldes/revolucionários.
Por fim, os principais objetivos desse ativismo conservador fo-
ram canalizar a indignação popular expressada em 2013 contra to-
das as instituições e reduzi-las simplesmente contra o petismo. Pois
bem, buscou-se renovar as crenças nos militares e nas instituições
representativas, como o Congresso Nacional e o Executivo, nos oli-
gopólios de comunicação de massa, enfim, no próprio sistema. Bus-
cou-se, portanto, esconder que o problema não era esse ou aquele
partido, mas o sistema político plutocrático-representativo e parti-
dário como um todo. O objetivo dos Thinks Tanks foi, por dentro do
imaginário social, deslegitimar a luta popular auto-instituinte e anti-

15 O governo do PT não perde em nada para os governos do PSDB. Ambos foram péssimos
para os governados e ótimos para os banqueiros e especuladores em geral. Aliás, po-
demos incluir nessa lista os governos do PMDB e dos militares. Em todos esses casos,
os governantes econômicos foram prioritariamente atendidos, com algumas migalhas
sobrando para o povo trabalhador depois de muitas lutas. Desenvolvemos melhor essas
teses em outra pesquisa publicada em 2018, para mais detalhes ver De Moraes (2018).

2013 - revolta dos governados 421


-sistêmica, para ficar contra, num primeiro momento, os rebeldes,
black blockers16, anarquistas, marxistas revolucionários e depois,
com o sucesso dessa campanha, se voltaram contra o petismo que
detinha a governança política. Mas não só, pois desqualificou toda
ideia de distribuição de renda, de diminuição das desigualdades, de
socialismo, comunismo, anarquismo, de igualdade racial, de garan-
tia dos direitos humanos, de respeito às diferenças e de liberdades
das mais diversas como a sexual, religiosa e outras. Por esse cami-
nho, se valorizou extremamente as hierarquias sociais, as autorida-
des, os militares, a polícia, as igrejas, os empresários, o capitalismo.
Em suma, se legitimou o sistema, desqualificando tudo que o criti-
que como teoria da conspiração.
Corroborando para essa questão, já em 2014, sob o argumento
de que procuravam bandidos, diversas blitz policiais entraram nos
ônibus para fazer autopropaganda com um militar responsável pelo
discurso. Nos oligopólios de comunicação de massa, a morte de um
policial era transformada em uma grande comoção pública, enquan-
to o mesmo não acontecia com as crianças, adolescentes e civis as-
sassinados nos tiroteios nas favelas, muitas vezes perpetrado pelas
incursões policiais. Desde o final de 2013, mas com muita força no
início de 2014, o jornal O Globo tomou uma cruzada pela valorização
da polícia e de toda a governança penal.
O Exército criou um canal de comunicação online para difusão
de suas ideias e de autopropaganda para seus militares e reservis-
tas através de sua Newsletter. Padres e pastores criaram suas redes
de WhatsApp, Facebook e Twitter para compartilhar mensagens
conservadoras e evidentemente de cunho religioso. Situação simi-
lar ocorreu com os membros das governanças penal, jurídica, eco-
nômica, sociocultural e política. Páginas com nomes sugestivos de
rebeldia foram criadas para capturar a onda de indignação popular

16 Ao longo desse livro utilizaremos a terminologia “black blockers”, utilizada por Dupuis-
-Déri (2014), para designar indivíduos que se utilizam da tática Black Bloc em manifesta-
ções.

422 wallace de moraes


de 2013 para posturas Conservadoras Agressivas, como “Revoltado-
sonline”17; “Vem pra rua”; “Movimento Brasil Livre” (MBL)18 e diver-
sas outras. Assim, se forjou o bloco conservador através de páginas
muito visitadas nas redes sociais, inclusive, por robôs, forjando um
ativismo indignado e reacionário. Corroborando para nossas teses,
o Facebook, em julho de 2018, fez cair 196 páginas e 87 perfis que
divulgaram textos políticos com material difamatório ou fake News,
entre outras formas de ação.19 Antes, o Facebook já havia retirado
do ar um aplicativo usado pelo MBL para promover distribuição em
massa de conteúdo.20 Esse grupo foi o principal alvo dessas ações de
combate a falsas notícias.21
A prefeitura do Rio de Janeiro, por sua vez, resolveu mudar
a arquitetura do principal palco de manifestações na cidade, a Av.
Rio Branco, criando o VLT e restringindo a circulação de veículos e
de grandes passeatas.22 Assim, os protestos passaram a só poder
utilizar meia pista para seu tradicional trajeto entre Candelária e a

17 Esse nome buscava expressar exatamente a revolta popular contra tudo e todos, mas
defendeu valores extremamente conservadores apesar do nome.
18 Esse nome aparentemente foi escolhido a dedo pois muito parecido com o Movimento
Passe Livre, que iniciou os protestos de Junho de 2013, ganhando notoriedade nacional.
19 De acordo com o Facebook, as páginas e os perfis faziam parte de uma rede “de uma
rede coordenada que se ocultava com o uso de contas falsas no Facebook, e escondia
das pessoas a natureza e a origem de seu conteúdo com o propósito de gerar divisão
e espalhar desinformação. Uma fonte que atuou no rastreamento revelou que todo o
conjunto de páginas e perfis era controlado por integrantes do MBL. Fonte: O Globo, 26
de julho de 2018, p. 3.
20 Em março de 2018, o jornal O “Globo apurou que o grupo usava o programa Voxer para
compartilhar suas postagens de forma automática na conta de outros usuários.” Fonte:
O Globo, 26 de julho de 2018, p. 3.
21 Não obstante, essas ações do Facebook foram muito tardias, pois os referidos grupos
já haviam trabalhado por mais ou menos quatro anos na construção ideológica do ativis-
mo conservador agressivo.
22 Ademais, os agentes da governança política municipal proibiram o estacionamento nas
ruas do Centro, dificultando a chegada de manifestantes de mais locais mais distantes
para os protestos.

2013 - revolta dos governados 423


Cinelândia. É importante dizer que a famosa Paris também recebeu
reformas urbanas para evitar revoluções e manifestações de massa.
Portanto, o acontecido por aqui não se constituiu como nenhuma
novidade histórica.
Como forma de aumentar o “entretenimento” inútil, a Rede
Globo e a CBF exigiram dos clubes jogos de futebol do campeonato
brasileiro também nas segundas-feiras. Era mais um dia de diversão
desviadora dos problemas políticos e sociais. É importante lembrar
que a Revolta dos Governados aconteceu e ganhou enorme adesão
popular exatamente no momento em que clubes de futebol esta-
vam sem jogar, em função da Copa das Confederações que ocorria
no Brasil. A Rede Globo também encaminhou campanhas de grande
publicidade de suas novelas para tentar reaver audiências exuberan-
tes que existiram nas décadas de 1980/90.
No âmbito internacional, há praticamente um consenso na lite-
ratura de que na década de 1960, em particular 1968, ocorreu uma
revolução em vários sentidos. Foi a época dos movimentos de con-
tracultura, que questionaram os valores tradicionais e as próprias
estruturas da sociedade. Foi nesse contexto que surgiram e/ou ga-
nharam força as minissaias, o rock de contestação, o movimento
hippie, a pílula anticoncepcional, o cinema de vanguarda; a IBM lan-
çou o primeiro computador e trocou o primeiro e-mail.
Naquele período, os negros, depois de muita luta, conseguiram
os direitos civis nos EUA; nesse mesmo país, os governados lutaram
contra a guerra do Vietnã estabelecida por seus governantes. Na Eu-
ropa, com mais destaque para Paris, os estudantes questionaram a
burocracia e o conservadorismo nos campi universitários e na pró-
pria sociedade. Foi ali que os trabalhadores fizeram a maior greve
geral da história do país até então. No México, estudantes fizeram
amplo protesto contra a governança política. No leste europeu,
mais particularmente em Praga, ocorreu grande revolta contra o
poderio da URSS.

424 wallace de moraes


Não obstante, depois de todos esses atos, vieram as reações
conservadoras. As Igrejas excomungaram as minissaias e a liber-
dade sexual; Martin Luter King, Malcolm X e outros lutadores por
direitos para os negros foram assassinados; os governantes políti-
cos e econômicos dos EUA continuaram patrocinando guerras pelo
mundo, mesmo depois do Vietnã; os estudantes foram amplamente
reprimidos em todas as ocupações universitárias; no México, na his-
tórica passeata de 1968 pelo menos 400 estudantes foram assassi-
nados; em Praga, as tropas soviéticas avançaram sobre a população
que queria reformas.
Se recuarmos um pouco mais na História, veremos que no de-
curso da Revolução Francesa em 1789, as camadas populares obtive-
ram muitos êxitos, mas no final houve o triunfo da reação23. Depois
das revoltas de 1848, da Comuna de Paris em 1871, da criação dos
sovietes e de diversas lutas na Rússia nas décadas de 1900/1910, da
Guerra revolucionária de 1936 na Espanha, do avanço do socialismo
e anarquismo na Alemanha e Itália nas primeiras décadas do século
XX, do maio de 1968 em Paris, da luta anti-rascista nos EUA, da Ação
Global dos Povos (AGP), dos movimentos de ocupação de praças
públicas, denominados por Occupy, e da Primavera Árabe, o conser-
vadorismo também reagiu ativamente nos respectivos lugares.24 Em
outras palavras, depois do avanço do anarquismo e da República na
Espanha, veio o franquismo; depois do avanço do socialismo e do
anarquismo na Alemanha e na Itália, vieram o fascismo e o nazismo;
depois de 1968 na França, veio o conservadorismo;25 depois da Re-
volução Russa, veio o bolchevismo. A AGP refluiu depois do massa-
23 Ver Kropotkin (2017). Esse autor também mostra como as classes abastardas ficaram com
medo dos revolucionários.
24 Foucault (2001:70) chama a atenção para o caso de perseguição de intelectuais realizado
por governantes exatamente após os momentos insurgentes. “Afinal, não se podia dizer
que o Rei estava nu.”
25 Depois do maio de 1968 na França, o então presidente da República De Gaulle, venceu as
eleições parlamentares ampliando seu apoio conservador. Fato curioso que tem similari-
dade com o Brasil foi que, um ano depois, De Gaulle renunciou ao governo.

2013 - revolta dos governados 425


cre policial em Gênova e do ataque às Torres Gêmeas nos EUA, que
serviram como desculpa para os governantes políticos, penais, so-
cioculturais e jurídicos não permitissem novos protestos. No Rio de
Janeiro, a morte do jornalista Santiago em 2014 cumpriu a mesma
função. Assim, depois de 2013 veio o conservadorismo Agressivo,
mas isso não pode desmerecer a luta popular daquele ano.
Como aconteceu com exemplos internacionais supracitados,
também tivemos lutas intensas populares seguidas de ditaduras no
Brasil. Podemos citar alguns casos: depois da ascensão da luta po-
pular na década de 1910 vieram deportações, prisões, perseguições,
fechamento de sindicatos e proibições da imprensa anarquista; foi
também o caso da ditadura de Vargas em 1937, instalada depois da
chamada Intentona Comunista, em 1935; a “Marcha com Deus pela
família e propriedade” veio exatamente após o crescimento das li-
gas camponesas e das greves nas décadas de 1950/60; o próprio gol-
pe militar-plutocrático de 1964 foi resultado desse processo, quando
o movimento a favor dos interesses populares estava com força e
se agigantando. Depois da passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro
e diversas outras similares pelo país26, veio o AI5 e o endurecimen-
to da Ditadura Militar-Plutocrática Desavergonhada. Nessa ocasião,
todos os protestos foram proibidos e governados rebeldes foram
perseguidos, torturados, assassinados. Após as greves da década de
1980 e a reorganização do movimento popular, veio o neoliberalis-
mo com sua “crise” de desemprego e o aumento dos assassinatos
de jovens negros nas favelas e periferias. No caso do Rio de Janei-
ro, o governo criou até promoção para policiais que “eliminassem”
“meliantes”. Depois de 2013, também veio o conservadorismo e o
autoritarismo, representados por diversas instituições militares, reli-

26 Ocorreu, ainda, a sexta-feira sangrenta com várias prisões e até mortes de estudantes,
em 21 de junho de 1968, depois de grande confronto entre manifestantes e forças de re-
pressão; cinco dias depois aconteceu a passeata dos 100 mil contra a Ditadura Militar-Plu-
tocrática Desavergonhada; mais de 700 estudantes foram presos no congresso da UNE
em Ibiúna/SP; o governador de São Paulo foi apedrejado em palanque.

426 wallace de moraes


giosas e supostamente liberais, junto com a candidatura do homem
das armas, que através das redes sociais divulgaram agressivamente
uma agenda Conservadora Agressiva e desavergonhadamente neo-
liberal, baseada no ódio ao diferente, em mentiras e meias verdades
sobre a história brasileira e a política em particular.27 Essas ações es-
timularam as governanças/opressões sociais: racial, patriarcal, sexu-
al, acadêmico-científica, religiosa, da estética produtiva, capitalista,
oficialista e xenofóbica (nacionalista, ufanista).28
Quem profere que 2013 foi ruim em função do movimento re-
acionário e conservador que o sucedeu não entendeu o fluxo da
história ou está muito mal-intencionado. Defender que 2013 foi con-
servador pelo que aconteceu depois dele, é assinar um atestado de
ignorante da história das lutas sociais no mundo, e para além dis-
so, é referendar uma perspectiva teleológica que busca imputar a
acontecimentos a reação articulada exatamente contra eles. Em re-
sumo, trata-se de uma estupidez cega ideológica que tem por obje-
tivo desmerecer 2013, desvirtuando seus signos e buscando ligá-los
exatamente àquilo que ele combateu. Muitas dessas análises foram
realizadas sectariamente com vistas a defender determinados go-
vernos/partidos.
Fato é que o movimento de maio de 1968 na França, por exem-
plo, guarda muitas semelhanças com a Revolta dos Governados no
Brasil de 2013. Além da repressão estatal convencional em casos de
insurgência, o Partido Comunista Francês, compondo aquilo que
chamamos de esquerda oficial, tratou de minar a luta popular, ten-

27 Um dos exemplos mais emblemáticos da manipulação realizada por think tanks foi a notí-
cia divulgada pelo WhatsApp de que o Bolsonaro seria o político mais honesto do mundo.
Veja reportagem abaixo. https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/noti-
cia-falsa-de-que-bolsonaro-e-o-politico-mais-honesto-do-mundo-nao-sera-mais-promovi-
da-pelo-google/
28 Sobre detalhes das formas de governanças/opressões sociais existentes na sociedade
brasileira e estimuladas pelo pensamento autoritário e conservador, ver De Moraes
(2018).

2013 - revolta dos governados 427


tando controlá-la a todo custo.29 A coligação governista da época
(PT, PCdoB e Cia) atuou da mesma maneira. Posturas similares acon-
teceram também nas revoltas autônomas das últimas décadas, des-
de pelo menos o Levante Zapatista de Chiapas (1994), passando pela
Ação Global dos Povos (AGP) 1999-2001, Primavera Árabe (2011-13) e
os movimentos de Occupy (2011). Em comum, os partidos da esquer-
da oficial30 tentaram controlar e capitalizar com o movimento; como
não conseguiram, se opuseram a ele (sobre esses assuntos, ver: Du-
puis-Déri, 2014; Ludd, 2002; Hernandez, 2008; Gelderloos, 2011; Gra-
eber, 2002; Chomsky, 2012; Gordon, 2015; Castoriadis, 2002).
Passemos agora à conclusão, onde resgataremos muitos dos
aspectos discutidos nesse livro.

29 Sobre esse assunto ver Castoriadis (2002) e coletânea organizada por Joyeux (2008).
30 Os conceitos de esquerda e direita nasceram na Revolução francesa no contexto da for-
mação do Parlamento francês. Portanto, o próprio termo esquerda já tem um significado
institucional, embora algumas pessoas tenham-no associado à ideia de revolução. Cha-
mamos de esquerda oficial para reforçar esse aspecto, diferenciando daquilo que poderia
ser revolucionário.

428 wallace de moraes


CONCLUSÃO
Perry Anderson (1995) contou que, em conversa com um repre-
sentante do alto escalão do FMI no Brasil na década de 1980, ouviu
dele que a crise brasileira não era grande o suficiente. Ela precisava
ser maior. Naquela década com a abertura política e o fim da Dita-
dura Militar-Plutocrática Desavergonhada, os movimentos sociais
estavam a todo vapor com a sua rearticulação. O sindicalismo imple-
mentou várias greves e lutava em grande medida por direitos. Vivía-
mos uma efervescência social.1 As palavras de Anderson nos levam
a crer que a crise da década de 1990 foi fabricada justamente para
quebrar a força crescente dos movimentos sociais combativos. Não
temos dúvida de que a crise pós-2013 também foi produzida para
destruir o ímpeto da Revolta dos Governados e de seus signos.2 Não
à toa, a crise foi mais forte justamente no Rio de Janeiro, onde os
protestos foram maiores, mais intensos e duradouros.
Corroborando para a tese supracitada, mostramos que 2013
anunciou a negação da política-eleitoral, confirmada nas eleições
subsequentes com explosões de votos nulos, brancos e abstenções
na história recente brasileira, tendo o Rio de Janeiro como maior
expressão desse processo, quando pela primeira vez na História,
após a ditadura militar-plutocrática desavergonhada, um governa-
dor, Pezão, e um prefeito, Crivela, foram eleitos com menos votos
que a soma de votos nulos, em branco e abstenções.3 Esse processo
expressou a contestação de todos os partidos políticos, do Estado,
das casas supostamente representativas, da institucionalidade, das
autoridades. Em 2013, aconteceu ainda o ápice de greves no Brasil,
superando o ano histórico de 1989. Em suma, comportou a maior
quantidade de pessoas nas ruas em protestos massivos da História.

1 Tratamos desse assunto com mais detalhes em De Moraes (2018).


2 Sobre o assunto, ver excelente documentário de Silvio Tendler denominado “Dedo na
Ferida”: https://www.youtube.com/channel/UCkoPZfCNAJNxwsRlMsrr-WQ
3 Estamos elaborando um livro sobre o assunto, cujo artigo a seguir é o cerne. Ver: http://-
www.otal.ifcs.ufrj.br/nossos-sonhos-nao-cabem-em-vossas-urnas-descrencanegacao-
-da-representacao-plutocratica-no-brasil-votos-nulos-em-branco-e-abstencoes-ressignifi-
cados/

432 wallace de moraes


Demonstramos que a Revolta dos Governados não saiu do
nada. Vários movimentos sociais vinham arando, molhando e fer-
tilizando essa terra para dar frutos rebeldes, amargos e indigesto
para as governanças institucionais e sociais. O Levante não irrom-
peu exatamente como os mais entusiastas revolucionários queriam,
mas, indubitavelmente, foi uma expressão de luta popular contra
um sistema que oprimia os mais pobres dia e noite.
2013 não foi resultado de uma única fonte causal, mas muitas
variáveis contribuíram para a sua existência. Movimentos de ocu-
pações urbanas, de terras, de LGBTQIA+, Hip Hop, de camelôs, de
mães de vítimas do Estado, de moradores que lutaram contra as
desocupações para os megaeventos, de negras e negros que en-
traram nas universidades, de mulheres, dos pré-vestibulares popu-
lares para afrodescendentes e carentes, da greve dos bombeiros,
dos movimentos de meio-ambiente,4 dos coletivos de torcedores
de futebol, de coletivos que lutam pela democratização dos meios
de comunicação. Em resumo, todos se juntaram em uma espécie de
federações autônomas, materializando 2013 e seus signos.5 Todavia,
não apenas os setores autônomos/combativos estiveram nas ruas.
Os nacionalistas guiados principalmente pelos oligopólios de
comunicação de massa tinham as suas reivindicações e pudemos
perceber através de suas canções e cartazes. Eles cantavam acritica-
mente o hino nacional, gritavam “sem violência, sem partido e sem
corrupção”, pedindo mudanças no interior da estrutura estatal-capi-
talista, mas respeitando-as.

4 Estes movimentos já demostraram força na Rio+20 em 2012, em protesto do dia 20 de


junho daquele ano.
5 Uma das características dos Anonymous, dos Black Blockers, dos que lutaram, era escon-
der a real identidade, por questões de segurança. Essa opção possui várias explicações e
se expressou como parte da construção de um novo momento de atuação política. A Era
das ruas, da ação direta, da negação da representação política e do Estado. Reconhecer
no Estado um inimigo que pode ser mortal, encarcerador, que atua de maneira repres-
siva, penalista e persecutória com seus opositores rebeldes, é quase um dever para o
revolucionário.

2013 - revolta dos governados 433


Os militantes dos partidos da esquerda oficial também estive-
ram presentes.6 A lógica que guiou esses partidários consubstan-
ciou-se principalmente na disputa por dirigir o processo insurgente,
tentando impor uma pauta que criticasse a gestão governamental
em vigor, por consequência, apresentando-se como melhor alter-
nativa eleitoral. Em sua maioria não tinham uma profunda crítica ao
capitalismo, muito menos ao aparelho estatal, ao contrário, exigiam
que ele controlasse a educação, a saúde, os transportes, como man-
dava o velho socialismo reformista de Estado.
Por sua vez, os setores insurgentes, embora em número pe-
queno, assumiram o protagonismo junto com governados radicali-
zados e tinham uma agenda de propostas, realizando-a pela ação
direta e propaganda pelo ato, explanando para todos os lados seus
pleitos, sendo desnecessária qualquer tradução.7
O déficit de respeito ao direito de uma vida digna dos governa-
dos era tão grande que a pauta da Revolta do Vinagre só poderia ser
enorme. Comecemos por aquilo que os insurgentes não queriam: 1)
os lucros exacerbados dos bancos através de juros abusivos para a
população; 2) os oligopólios de comunicação de massa que conde-
nam e ajudam a criminalizar todas as reivindicações populares; 3)
uma polícia que mata, tortura e abusa da autoridade nas favelas e
periferias; 4) os governados nas ruas apresentaram ojeriza às princi-
pais instituições da Ditadura Plutocrática-Militar Dissimulada: os par-

6 Pela primeira vez na história recente movimentos massivos de reivindicação de direitos


não estiveram sob sua liderança.
7 Dentre os grupos revolucionários, compostos por marxistas conselhistas, maoístas, leni-
nistas, guevaristas, bolivarianistas, autonomistas e outros, podemos destacar o retorno
da expressão massiva dos anarquistas, em especial o Black Bloc carioca. Depois de déca-
das longe dos holofotes, eles ganharam visibilidade muito grande, sobretudo, em função
da ação direta, de suas indumentárias, parafernálias, seus escudos e armas para auto-de-
fesa, além é claro de suas vestimentas próprias, roupas pretas, com máscaras, camisas
enroladas nas cabeças e o seu símbolo do A na bola espalhado por todos os lugares. Em
todo o país, os grupos de preto, carregando cartazes revolucionários, estiveram na linha
de frente das passeatas juntos com os demais governados rebeldes.

434 wallace de moraes


lamentos, as sedes das prefeituras, governos estaduais e federal, os
partidos políticos, os políticos em geral e toda corrupção, falcatruas,
abuso de autoridade que os cercam; 5) a indústria da multa e pe-
dágios nas estradas; 6) os gastos públicos exorbitantes com está-
dios de futebol; 7) o preço absurdo do transporte e um serviço de
péssima qualidade; 8) Os governados das favelas e periferias não
queriam remoções, nem UPPs; 9) Uma das demandas mais significa-
tivas exigia a saída do governador Sérgio Cabral. Por fim, os setores
mais radicais incluíram em suas demandas as lutas antirracista, anti-
-homofóbica e antimachista. É possível resumir esses protestos em
antiautoritários, anti-hierárquicos, antidiscriminatórios, antiestatais
e anticapitalistas.
Podemos ver também diretamente por aquilo que se desejava:
1) saúde, educação, habitação e saneamento básico nos “padrões
da FIFA”; 2) a democratização dos meios de comunicação; 3) o fim
das polícias; 4) pelo direito de ir e vir, por um transporte sem role-
tas e com tarifa zero; 5) pelo fim dos pedágios nas estradas; 6) nas
favelas e periferias, ao invés de policiais e repressão, que se levasse
hospitais, postos de saúde, escolas, creches, saneamento, ilumina-
ção pública e empregos com salários dignos, com plena liberdade
em todas os sentidos da vida.
Indubitavelmente, essas foram as maiores expressões das ma-
nifestações de 2013 no Rio de Janeiro. Depois delas, diversas outras
foram estimuladas pelo país à fora. Até os jogadores da elite do fu-
tebol brasileiro passaram a fazer reivindicações. Algo impensável
antes da Revolta dos Governados. A partir do exemplo da Revolta
do Vinagre, a população mais pobre aprofundou a incorporação da
ação direta como forma legítima e mais eficaz de protestar. No Rio
de Janeiro, por exemplo, nos momentos de abuso de autoridade
das forças policiais, matando pessoas inocentes, nas horas sem luz,
sem água ou mesmo quando metrô, trem e ônibus não cumpriam
a contento sua função, ou quando ocorriam as remoções forçadas
das pessoas, a população espontaneamente formou barricadas,

2013 - revolta dos governados 435


queimou pneus, quebrou vidraças de bancos e transportes públicos,
colocou camisa no rosto, defendendo-se das forças policiais com
paus e pedras. Imediatamente após junho, o Brasil aumentou subs-
tantivamente os enfrentamentos e protestos. Ninguém mais em sã
consciência poderia dizer que o brasileiro era pacato e cordial como
defendem os teóricos das ciências sociais. Indubitavelmente, o país
não era mais o mesmo.
A revolução tecnológica com a criação das redes sociais e dos
smartphones foram fundamentais para que o Levante dos Governa-
dos fosse possível, pois assim foi quebrado o monopólio da notícia
pelos oligopólios de comunicação de massa. Um ativista com um ce-
lular na mão virou um repórter em potencial.8
Em contrapartida, as governanças institucionais perceberam
que as redes sociais se constituíram como principais combustíveis
dos protestos pela via da perigosa liberdade de expressão. Por isso,
elas foram controladas por diferentes formas: novos algoritmos,
robôs e censura que não permitem mais que as pessoas se comuni-
quem livremente, alcançando grande público, assim evitando novas
revoltas, revoluções, lutas internacionais.9
Castoriadis (2002: 37) ao tratar do Maio de 1968 e da Comuna
de 1871, ambas em Paris, buscou refutar aqueles que defenderam o
fracasso desses movimentos por supostamente não terem instituí-
do nada de novo. Ele afirma:

“Devemos lembrar que esse fracasso só muito raramente é total. Na


maioria das vezes esses movimentos levaram à instituição formal de
certos direitos, liberdades e garantias sob os quais continuamos a vi-
ver. Em outros casos, sem nada instituir no sentido formal, deixaram
traços profundos na mentalidade e na vida efetiva das sociedades”.

8 Por consequência, surgiram diversos coletivos midiativistas que impulsionaram, anima-


ram e documentaram a Revolta popular por uma perspectiva crítica.
9 Ver Chris Taylor (2018) in: https://outraspalavras.net/comunicacao-2/facebook-e-seu-no-
vo-algoritmo-a-distopia-total/

436 wallace de moraes


Não resta dúvida que 2013 deixou marcas profundas na men-
talidade de quem participou, acreditou e sonhou com aquele movi-
mento. Parecia que tínhamos a História nas mãos. O principal legado
da Revolta não foi apenas a redução do valor da passagem de ônibus
simultaneamente por diversos governadores dos mais diferentes
partidos (que inclusive se diziam de oposição um ao outro). Pouco
mencionado, mas absolutamente emblemático e feito em 2013, foi
o reconhecimento público pela Rede Globo de que teria apoiado o
golpe militar de 1964. É importantíssimo lembrar que os repórteres
da emissora, quando identificados, foram prontamente expulsos
das manifestações, pois todos sabiam que a cobertura seria contrá-
ria aos protestos. O principal eco dos gritos de: “a verdade é dura,
a Rede Globo apoiou a ditadura” foi fundamental para o reconheci-
mento do império midiático (até então, absoluto e incontestável)
do seu apoio ao golpe de 1964 e ao próprio regime. A desculpa públi-
ca foi publicada no Jornal O Globo de 1 de setembro e apresentada
no Jornal Nacional, por William Bonner, no dia seguinte. Algo por si
só impensável antes de junho de 2013.10 Roberto Marinho deve ter
se revirado do caixão.
Observando 2013 a partir de setembro de 2018, podemos dizer
que a sociedade brasileira não é mais a mesma. Os “rolezinhos”11,
as greves históricas dos garis, dos rodoviários, dos professores em
contrário às orientações das burocracias sindicais; as paralisações
dos bancários, dos trabalhadores do COMPERJ, dos seguranças dos

10 Ver: https://www.youtube.com/watch?v=9OCvABy2pBg
11 Diversos grupos de jovens negros e pobres, geralmente estigmatizados, passaram a ocu-
par locais de concentração de riquezas, como shopping centers, para denunciar o pre-
conceito velado e a exclusão social). Os “rolezinhos” simbolizaram uma ocupação real do
espaço das cidades. As greves dos garis e dos professores, em contrário às orientações
das burocracias sindicais, evidenciam o aumento da quantidade de mobilizações dos tra-
balhadores, fazendo daquele ano o mais grevista desde 1982. As ocupações de escolas
em 2015 e 2016, bem como as barricadas nas favelas e periferias, mostraram a opção pela
ação direta dos governados.

2013 - revolta dos governados 437


bancos foram impactantes. Todos colaboraram para o aumento da
quantidade de greves, fazendo daquele ano o mais grevista desde
1982; 12 as ocupações de escolas em 2015 e 2016, as barricadas nas
favelas e periferias, mostraram a opção pela ação direta dos gover-
nados. Como reflexo desse contexto, aconteceu algo raro na políti-
ca brasileira: governadores, senadores, deputados e alguns de seus
asseclas juntos com empresários, donos de verdadeiros impérios
políticos e econômicos, foram presos e/ou denunciados. Nesta lis-
ta estão os principais governantes da época, especialmente, do Rio
de Janeiro, mas não só, a saber: Sérgio Cabral (Governador do RJ),
Eduardo Paes (prefeito do RJ), Jorge Picciani (presidente da ALERJ),
Dilma Rousseff, Lula da Silva, Michel Temer (presidentes, ex-presi-
dentes), Aécio Neves (candidato que quase chegou à presidência da
República), Eduardo Cunha (ex-presidente da Câmara dos Deputa-
dos), dentre outros.
As prisões de um governador; do homem mais rico do país (Eike
Batista) e de diversos donos de empreiteiras, frigoríficos e empresas
de ônibus13, bem como o impeachment da presidente da Repúbli-

12 Quando começaram as aferições das séries históricas de greves.


13 Jacob Barata um dos maiores empresários do ramo de ônibus no Rio foi preso em 02 de
julho de 2017. Em depoimento ao Juiz de Direito Marcos Bretas no inquérito sobre cor-
rupção da FETRANSPOR em 24 de agosto de 2018, Barata confessou que fazia pagamento
a políticos há pelo menos 20 anos. Fonte: O Globo de 25 de agosto de 2018. Em julho de
2013, o casamento de sua filha foi alvo de manifestação contra os absurdos preços das
passagens de ônibus, bem como pela ostentação de extrema riqueza realizada por sua
família. Como registrou na época o Jornal do Brasil: “a festa de Beatriz Barata utilizou
aparato da segurança pública para reforçar o evento privado. Cerca de 50 homens do 5º
Batalhão, em 12 viaturas, faziam a segurança da cerimônia. Esses homens depois se junta-
riam a oficiais do 19º Batalhão, de Copacabana, para reforçar a segurança do Copacabana
Palace. Na frente do Hotel onde a festa ocorria, manifestantes protestavam pacificamen-
te contra o empresário. Poucas horas depois, o Batalhão de Choque da Polícia Militar, que
atuava no evento, dispersou a manifestação com bombas de gás e spray de pimenta.”
Fonte: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2017/07/03/casamento-da-filha-de-jacob-barata-
-teve-protesto-e-seguranca-publica/

438 wallace de moraes


ca14, foram eventos emblemáticos para um país acostumado com
a corrupção de seus governantes e com a criminalização seletiva,
que prende majoritariamente pessoas pobres. O Grupo de combate
à corrupção do Ministério Público do RJ pediu, inclusive, o fim da
FETRANSPOR (Federação que reúne as empresas do ônibus do Rio).
Em julho de 2013, uma das passeatas foi exatamente contra a refe-
rida federação.
O projeto da cura gay foi rejeitado no Congresso Nacional.15 O
Senado aprovou projeto de Lei que definia corrupção como crime
hediondo.16 As eleições imediatamente posteriores, de 2014 e 2016,
foram completamente desacreditadas com escolha de governado-
res e prefeitos com menos votos do que a soma de nulos, brancos
e abstenções. A Justiça, pela primeira vez na história, ordenou a
diminuição do valor da passagem de ônibus no Rio de Janeiro em
2016/17. Tivemos o primeiro parlamentar preso no exercício do man-
dato desde 197417. No plano da cultura, houve uma maior diversifi-
cação no país do futebol. O desinteresse pelo esporte mais popular
do país foi gritante. Ao mesmo tempo, houve um feliz retorno dos
blocos populares e autônomos nas ruas durante os carnavais, signi-
ficando a descentralização da festa popular, que antes estava mais
restrita aos ricos na Sapucaí. Ocorreu uma contínua contestação de
todos os partidos e seus políticos e o avanço da luta popular com au-
mento de greves e manifestações. Mesmo o governo petista se viu
obrigado a dar uma resposta à população e aprovou a destinação

14 Embora defendamos que se tratou de um golpe institucional-midiático. Ver De Moraes


(2018).
15 O próprio deputado federal e pastor evangélico João Campos (PSDB-GO), autor do proje-
to que ficou conhecido como “cura gay”, desistiu da proposta no dia 2 de julho de 2013.
Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/07/02/camara-dos-depu-
tados-arquiva-cura-gay.htm
16 Ver: https://www.cartacapital.com.br/politica/senado-aprova-projeto-que-transforma-
-corrupcao-em-crime-hediondo-4822.html
17 Tratou-se do deputado Natan Donadon de Rondônia. Ver: https://www.conjur.com.br/-
2013-jun-26/supremo-determina-prisao-deputado-federal-natan-donadon

2013 - revolta dos governados 439


dos recursos do pré-sal para a saúde e a educação, criando o progra-
ma “mais médicos” ainda em julho de 2013.18 Até membros do alto
escalão da FIFA e da CBF foram denunciados e/ou presos por cor-
rupção. O sentimento popular brasileiro anti-Copa mostrou-se com
razão. Em resumo, os manifestantes tinham fundamentos ao criti-
carem as obras realizadas para a Copa. Além dos desvios de verbas
pública, a negligência e má utilização em alguns casos colocaram
em risco a própria população, como um viaduto construído em Belo
Horizonte que caiu; e a Ciclovia construída para ligar São Conrado à
Barra da Tijuca/RJ também desabou. A ampla maioria dos estádios
pelo Brasil afora viraram elefantes brancos, pois não são utilizados
durante o ano todo, como já projetavam os críticos da época.
É nossa obrigação colocar a falência do estado do Rio de Ja-
neiro nessa conta. Um governante doente por dinheiro desviou
tanta verba pública, que atualmente já foi condenado por mais de
dez processos por lavagem de dinheiro e corrupção ativa. Por essas
ações, milhares de funcionários públicos ficaram sem salários, a eco-
nomia do Estado beira a bancarrota, faltando seringas e remédios
em hospitais, reformas em escolas, salários decentes para seus pro-
fessores, verbas para pesquisas científicas, obras públicas etc. Sem
contar o aumento exorbitante de desempregados, destruindo fa-
mílias, sonhos e esperanças de muitos governados. Em suma, hoje,
podemos dizer, sem medo de errar, que o “Fora Cabral”, cantado
amplamente pelos manifestantes, evidencia que eles estavam mais
do que corretos.
Em diversas conversas ou debates normalmente nos pergun-
tam: por que o movimento acabou? Reiteramos que participar da
Revolta dos Governados passou a ser um ato de extrema coragem,
pois os riscos de apanhar da polícia, levar um tiro de bala de borra-
cha, ser intoxicado pelo gás lacrimogênio ou de pimenta, ser detido,
preso, identificado, processado e perseguido pelo Estado passou a
18 Esses programas depois foram revertidos pelo governo plutocrático neoliberal desaver-
gonhado de Temer.

440 wallace de moraes


ser muito grande.19 Portanto, os altos custos para sustentação da
ação coletiva de longo prazo somados a forte repressão foram uns
dos diversos fatores que colaboraram para o fim do movimento.
Em outras palavras, estabelecemos algumas teses explicativas
estimuladas por quatro fatores. As massas governadas se retiraram
dos protestos: 1) pelo amor a sua própria vida, pois não estavam
dispostas a enfrentar a forte repressão estatal, correndo sério ris-
co de levar um tiro de bala de borracha ou de projétil letal, respirar
muito gás lacrimogênio/de pimenta, ou ainda ser detida e apanhar
da polícia. 2) em função das notícias veiculadas pelos oligopólios de
comunicação de massa, que começaram a deturpar as postulações
do processo e criminalizar “exemplarmente” os mais combativos,
visando desmobilizar e dividir o movimento; 3) pela perseguição
política realizada pelas redes sociais, tanto pelos petistas e pela es-
querda oficial, que criticaram os portadores de bandeiras brasileiras,
a massa popular, chamando-os de fascistas, quanto pelos conser-
vadores e plutocráticos que criticaram os insurgentes por enfren-
tarem as forças da governança penal; 4) pelos altos custos da ação
coletiva ao bancar participar de passeatas duas vezes por semana.20
Ao mesmo tempo, tivemos aprofundamento do “ativismo con-
servador agressivo”, porque todas as instituições baseadas na hie-
rarquia, na disciplina, em dogmas metafísicos e na construção de
riquezas com fundamento na exploração alheia se sentiram amea-
çadas com 2013 e resolveram reagir. Destarte, contra 2013, eles se
rearticularam e ganharam força, atuando de forma mais agressiva,
formando uma unidade entre os diferentes governantes (políticos,

19 Segundo a Global Witness, o Brasil é o país mais perigoso do mundo para manifestar-se
contra a destruição ambiental, com 150 defensores/as do meio ambiente assassina-
dos/as entre os jogos olímpicos de 2012 e os de 2016. Em 2017, foram 57 assassinatos
de defensores do meio ambiente no Brasil. Fonte: https://www.globalwitness.org/en/
press-releases/brasil-anfitriao-das-olimpiadas-e-o-pais-mais-perigoso-do-mundo-para-o-a-
tivismo-ambiental/
20 A teoria de escolha racional explicaria bem esse ponto. Ver Downs (1998) e Olson (1999).

2013 - revolta dos governados 441


jurídicos, penais, socioculturais e econômicos) e suas instituições:
Parlamento, Judiciário, Forças Armadas, igrejas, oligopólios de co-
municação de massa e capital para não tolerar e redirecionar as for-
mas de contestação da ordem, postas pela Revolta dos Governados.
Com efeito, desde 2014, e como reação às razões de 2013, tem
predominado nas redes sociais a mentira, fake News (notícias falsas)
fake History (História falsa), e consigo veio o pensamento conserva-
dor, autoritário, preconceituoso, buscando destruir o sonho de toda
uma geração.
A reação conservadora começou com a vitimização e superva-
lorização dos policiais, sustentando a “fascistização” da sociedade.21
Simultaneamente, o militar/policial foi posto como vítima dos signos
de 2013 e alçado a super-herói capaz de resolver todos os proble-
mas. Como em um filme de Hollywood em que o mocinho é vítima,
mas a única solução para salvar a todos. A maior expressão disso foi
a materialização do candidato das armas, que antes de 2014 não era
nada, mas desde então é aquilo que representa melhor a reação a
2013, sendo cegamente seguido por iludidos.
A tentativa de se impor respeito às autoridades fardadas cami-
nhou junto com o conservadorismo e a intolerância ao diferente. Em
suma, o conservadorismo atual pede por ditaturas militares explíci-
tas com a respectiva criminalização da pobreza, dos negros, favela-
dos, LGBTs, das religiões de origem africana e evidentemente dos
que protestam como adeptos da tática Black Bloc e anticapitalistas
em geral. No fundo, esse antagonismo tem por objetivo manter as
tradições, a ordem e o respeito a todas as autoridades que 2013 co-
locou em xeque.
Em pesquisa realizada no dia 13 de agosto de 2018, percebe-
mos que a OATL parou de publicar em 09 de dezembro de 2015. O

21 Segundo levantamento do jornal O Globo, publicado no dia 24 de junho de 2018 (p. 5), 429
militares e policiais espalhados pelo país deviam concorrer nas eleições de 2018. Esse gru-
po comporia a bancada da “Lei e da Ordem”. Essa é uma das materializações da reação
a 2013.

442 wallace de moraes


último post da página da FIP aconteceu no dia 3 agosto de 2016.
Dois meses depois, no dia 20 de outubro de 2016, o coletivo políti-
co Anonymous Rio encerrou suas atividades no Facebook e lançou
a nota que segue abaixo. A página do Black Bloc Rio que foi uma
das mais visitadas em 2013 parou por um tempo e depois continuou
com poucas publicações. Todas as páginas supracitadas que alimen-
taram a revolta em 2013/14; a partir de 2015, sofreram ataques di-
ários de grupos conservadores e de direita, amplamente apoiados
por robôs e abastecidos com muito dinheiro para comprar “likes”.22
Caracterizou-se o fenômeno do “ativismo conservador agressivo”,
cujo enfrentamento ameaçador e sem escrúpulos direto contra as
forças progressistas tem sido a tônica, tal como fizeram os grupos
de apoiadores de Hitler na Alemanha nazista. A página do Black Bloc
Rio, uma das poucas que continuou publicando, sofreu ataques
constantes, quase que instantâneos. A cada postagem recebia um
ou vários comentários em contrário. Algo realmente desestimulan-
te para continuar alimentando uma página revolucionária e sua luta
em prol de liberdade e da igualdade. Mas permita-nos praticar um
pouco de filosofia. Quem são essas “pessoas” que ficam/ficavam
diariamente recebendo as notícias de uma página que não concor-
dam e ainda se prestavam a escrever nela e contra ela instantanea-
mente? Esse fenômeno não acontecia em 2013, mas foi construído e,
num primeiro momento, amplamente apoiado pelos oligopólios de
comunicação de massa e depois por think tanks.
Segue abaixo despedida, em 20 de outubro de 2016, de umas
das páginas mais ativas em 2013 e que sofreu ataques sistemáticos
das governanças institucionais e de grupos epistêmicos propagado-
res do ativismo conservador agressivo.

22 Estudo comprovou que 400 mil seguidores de Bolsonaro no Twiter são robôs. Outros
candidatos a presidente também possuem milhares de robôs seguidores. Fonte: http://
justificando.cartacapital.com.br/2018/07/04/400-mil-seguidores-de-bolsonaro-no-twitter-
-sao-robos-aponta-estudo/

2013 - revolta dos governados 443


COMUNICADO ANONYMOUS RIO

Como vocês podem perceber, a página Anonymous RIO,


está meio “inativa”. E não pretendemos voltar a pu-
blicar nela.

Ainda que Anonymous seja uma Ideia universal, sem


rostos e sem nomes, as pessoas que têm acesso às pá-
ginas mencionadas formavam uma célula que se reu-
nia com certa frequência e construíam coletivamente
ações, atos, intervenções, operações. projeções e etc.,
além da divulgação online que se dava por meio das
páginas e grupos no Facebook e outras redes sociais.
Acontece que esse grupo não se reúne mais. Enquanto
indivíduos, continuamos construindo nossas pautas e
lutas em outros espaços, mas enquanto coletivo, não
existimos mais! Acreditamos ser mais válido abando-
nar esta página do que apenas compartilhar coisas do
interesse e ponto de vista de algumas pessoas que se
disporiam a continuá-la.

Prezamos pela qualidade do conteúdo e pelas análises


que sempre fizemos. É um trabalho intelectual intenso
e sempre foi voluntário, porém para continuar com o
serviço, enfrentamos alguns problemas.

Como todos sabem, nossa página está arrolada a um


inquérito monstruoso de vigilância e persegui-
ção a manifestantes e ativistas. Dois ex-membros
do nosso coletivo foram perseguidos e presos base-
ado nessa repressão, e trazer novos membros signi-
fica colocar uma mira já focada em nós em cima dos
novatos. Dependendo do discurso dos novos membros,
os antigos também podem acabar sofrendo represá-
lias do Estado mesmo já não possuindo qualquer vín-
culo com o coletivo, por terem seus nomes marcados.

444 wallace de moraes


Deixamos aqui nossa despedida, e nossa página como
monumento. Sigamos nossas jornadas com novos pro-
jetos, novos caminhos, novos meios de luta. A vocês,
nosso profundo obrigado, por todo apoio ao longo dos
anos!

Anonymous é o anseio humano por justiça, liberdade e


novas formas de organização social nas quais não haja
necessidade de poder. Nesse processo, duas coisas são
essenciais de o sujeito reconhecer: primeiro, que não
é sua pessoa que realiza a luta. O indivíduo é o canal
através do qual Anonymous flui e realiza suas práticas,
e mais um nodo na mente coletiva que Anon compõe. E,
segundo, que as ações por meio de Anonymous, sejam
elas nas ruas ou nos meios digitais, não são um fim em
si mesmas. Sejam as mais pacíficas ou as de caráter
mais invasivo ou tumultuado, as práticas de Anony-
mous possuem como base a conscientização social, o
esclarecimento do povo acerca das relações de poder
que o cercam, os bastidores de tal trama, e os caminhos
que se deve trilhar para que mais e mais pessoas se
libertem do vazio existencial que o sistema impõe nas
mentes, e da domesticação a que se sujeitam os depen-
dentes do sistema.

“Há homens que lutam um dia, e são bons;


Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são imprescindíveis”.
(Bertold Brecht)

Um grande abraço, da equipe


Somos muitos, somos legião! Somos (e
sempre seremos) Anonymous!

2013 - revolta dos governados 445


Essa carta é bastante significativa para expressar o fim do mo-
vimento pela perseguição política que seus principais animadores
sofreram. Em 2013, com milhões de pessoas nas ruas, era difícil os
governantes identificarem seus impulsionadores. A tática da gover-
nança penal foi, portanto, retirar as massas das ruas através da pura
repressão física e pela propagação do medo. Fato realizado no dia
20 de junho de 2013. Os mais convictos - que ficaram, resistiram e
quiseram reacender a centelha revolucionária - se transformaram
em fáceis alvos dos registros estatais persecutórios. Aliás, é papel
do Estado fichar todos os rebeldes, possíveis ameaçadores da sua
ordem hierárquica, autoritária e desigual, como mostramos nos ca-
pítulos 5 e 6 desse livro. Por isso, os administradores das páginas
dos Black Blocs foram presos, seguidos pelos Anonymous e por fim
de vários integrantes da FIP, que sofrem processos até hoje. Além
desses coletivos que ficaram muito famosos, diversos outros indi-
víduos, desconhecidos do grande público, sofreram nas garras do
Leviatã. Para piorar, tudo isso aconteceu sob o governo do PT e seus
aliados no RJ. Definitivamente, não vivemos em uma democracia.
Não se é permitido protestar, tampouco autoinstituir-se. As po-
líticas públicas não são realizadas de acordo com os interesses da
maioria, mas em favor dos donos do capital. Por isso, chamamos
nosso sistema político por plutocracia.
Antes de terminarmos, apresentamos uma nota divulgada pelo
Jornal A Nova Democracia em julho de 2018, em apoio aos 23 con-
denados pela governança jurídica. Achamos essa nota importante e
nos solidarizamos com eles.

446 wallace de moraes


Nota de repúdio e de chamamento à luta

- Assinam esta nota 12 dos 23 ativistas condenados


pelos protestos no Rio -

Ontem, 17/07, o juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Ni-


colau finalmente entregou o serviço para o qual foi
escalado por Sérgio Cabral há quatro anos atrás: con-
denou todos os 23 ativistas envolvidos nos protestos
contra a farra da FIFA a penas que vão de 5 a 13 anos de
prisão, em regime inicialmente fechado.

Quais crimes nós cometemos?

Ousamos denunciar os desmandos de Sérgio Cabral, Pe-


zão & CIA, acobertados todo o tempo por parte do Poder
Judiciário e do Ministério Público do Rio?

Ousamos denunciar a farra da Copa da FIFA, cujo único


“legado” que restou para o povo foram os escombros
das comunidades removidas e a quebradeira dos servi-
ços públicos?

Ousamos participar, como estudantes e trabalhadores,


ombro a ombro com milhões de pessoas nas maiores
manifestações de massas da história recente do país?

2013 - revolta dos governados 447


Ousamos atuar ao lado de movimentos populares in-
dependentes, que não se curvam ou se vendem às “te-
nebrosas transações” da politicalha oficial que nos
desgoverna, cujos maiores símbolos são Pezão e Temer?

Se disso nos acusam, temos que aceitar com orgulho o


que dizem os nossos algozes. Porque foi isso mesmo que
fizemos, ou seja, lutamos. Todos precisam compreender
que é a toda nossa geração que buscam condenar e in-
timidar com esta sentença infame. Mas não consegui-
rão: carregamos a teimosia própria dos que insistem
em ter fé na vida, fé na luta, fé no povo. A teimosia dos
milhares que marcharam na Praça Saens Peña, no dia
da final da Copa do Mundo, apenas algumas horas de-
pois que dezenas de ativistas foram presos e enviados
para Bangu. Nós temos lado, e este não é o lado da casa
grande. Se disso nos acusam, muito obrigado, pois.

Com esta sentença, o Sr. Itabaiana entra para a histó-


ria pela porta dos fundos. Será sempre lembrado como
aquele que perseguiu de modo implacável a juventu-
de de junho de 2013. Que fique registrado: o que se fez
no Rio de Janeiro, quanto aos procedimentos perse-
cutórios, prisões abusivas, invasões de residências,
infiltração ilegal, grampos de advogados a até uma
“delação premiada informal” (a do sabujo Felipe Braz,
cujo depoimento é praticamente a única “prova” apre-
sentada para nos condenar) não teve par em nenhum
outro lugar do Brasil. Talvez os carrascos se orgulhem
do seu serviço; a esse “orgulho” nós achamos mais co-
erente chamar: VERGONHA!

Sim, porque é vergonhoso que os manifestantes contra


a farra da FIFA sejam condenados, quando hoje grande
parte dos próprios organizadores da Copa estão pre-

448 wallace de moraes


sos! Quando o ex-governador que nos reprimiu com
selvageria está preso! Quando o país é levado à beira
da fome e da devastação social pelos mesmos vampi-
ros que tremeram de ódio quando a juventude tomou as
ruas! Quando a Rede Globo, que nos perseguiu, ainda não
explicou as suas negociatas em torno dos megaeventos!

Alguma palavra sobre a “conduta reprovável” e “per-


sonalidade distorcida” dessas pessoas, senhor juiz?

Reafirmamos o que dissemos ao longo de todos estes


anos: LUTAR NÃO É CRIME! Crime é o estado de calami-
dade oferecido ao povo na fila dos hospitais, crime é a
falta de vaga nas creches, crime são os ônibus caros e
superlotados, crime é o que se pratica diariamente nas
favelas, ensanguentadas pelo genocídio do povo preto
e pobre. Isto é crime! E estes crimes, tenham certeza,
não ficarão impunes para sempre.

Em tempos de sérios ataques aos direitos trabalhistas


e sociais, é fundamental desfraldar bem alto as ban-
deiras da liberdade de expressão e de manifestação,
sem as quais nenhum outro direito pode ser defendido,
muito menos conquistado. Isso é ainda mais importante
quando o Rio se vê sob uma intervenção militar, e as-
sistimos quase diariamente oficiais discursando aber-
tamente sobre a possibilidade de um golpe militar no
país. Conclamamos todos/as os/as lutadores/as, traba-
lhadores/as, estudantes, coletivos, ativistas, intelec-
tuais e democratas a se manifestarem nessa campanha.
Não é só pelos 23: é por todos os que lutam!

Lutar não é crime!

Fascistas, hoje e sempre: não passarão!

2013 - revolta dos governados 449


Viva as jornadas de junho de 2013!

---------------------

Assinam esta nota

Bruno de Sousa Vieira Machado, Elisa Quadros Pinto


Sanzi, Emerson Raphael Oliveira da Fonseca, Felipe
Frieb de Carvalho, Filipe Proença de Carvalho Mora-
es, Igor Mendes da Silva, Leonardo Fortini Baroni, Luiz
Carlos Rendeiro Júnior, Pedro Guilherme Mascarenhas
Freire, Rafael Rêgo Barros Caruso, Rebeca Martins de
Souza, Shirlene Feitoza da Fonseca

Terminando, mostramos que os setores rebeldes, que ten-


taram transformar a revolta em Revolução Social para por fim ao
capitalismo e todas as suas mazelas, não podem receber a respon-
sabilidade pelo ativismo conservador acionado justamente contra
2013. Nesse sentido, reiteramos a questão que colocamos no início
desse livro, a pergunta que se deve fazer não é: por que aconte-
ceu 2013?, mas: por que demorou tanto para acontecer 2013? Ou
ainda: por que não aconteceram revoltas populares e insurgentes
nos últimos 5 anos?23 É claro que a grande maioria dos intelectuais,
inseridos na sociedade de consumo, buscará amenizar a necessida-

23 Nos anos subsequentes a 2013, parte dos governados tentou reviver os protestos de ju-
nho, com especial ênfase para a luta contra as reformas da previdência e trabalhistas em
2017, mas as governanças penais trataram com uma truculência absurda, tornando insus-
tentável permanecer nas ruas. Em atuação conjunta as governanças penal, sociocultu-
ral, política e jurídica, estavam preparadas com discursos únicos e articulados para evitar
divulgação de questões e brechas que proporcionassem um novo 2013. Assim, a brutal
perseguição aos manifestantes, expulsando-os literalmente das ruas, não foi veiculada.
Como as redes sociais já estavam preparadas para evitar a propagação das visões dos
insurgentes, não foi possível a ampla veiculação como existiu em 2013. Os manifestantes
foram para casa desolados, apenas um grupo guerreiro de Black Bloc permaneceu na
luta, mas mesmo assim, caiu diante da infiltração e da rearticulação das forças policiais.

450 wallace de moraes


de de Revolta, ou mesmo desacreditar a priori de sua possibilidade,
dizendo que não era, não é, e nunca será, o momento. Portanto, é
covardia atribuir os resultados do fracasso de 2013 ou mesmo do
acionamento do ativismo conservador agressivo posterior àqueles
que lutaram diuturnamente contra todas as mazelas desse país.
O petismo perdeu uma oportunidade de ouro de ajudar a cons-
truir mudanças profundas e concretas em favor dos pobres, oprimi-
dos, trabalhadores. Ao preferir os coronéis como aliados e não se
somar às lutas das ruas, implementando, inclusive, a Lei Antiterroris-
mo para enquadrar insurgentes, a governança política plutocrática
neoliberal dissimulada dava um tiro no próprio pé que mais tarde lhe
custaria muito caro, ao cair sem ter os governados para defendê-la.
Foi ainda sob o governo do PT e com a sua ajuda que foram dados os
primeiros passos do ativismo conservador agressivo. O que o petis-
mo não sabia era que essa postura equivaleria a criar uma cobra em
casa que mais tarde envenenaria seu próprio criador.
A governança política petista e seus intelectuais, ao invés de
terem tratado a rebelião popular como um caso de polícia, deveriam
ter ouvido as vozes das ruas, aproveitando a ruptura da apatia da
população para a criação de novos direitos com vistas a diminuir as
extremas desigualdades do país. Poderiam ter efetivamente com-
batido a falta de seringas, medicamentos e leitos em hospitais públi-
cos; a falta de saneamento básico, com água tratada, para número
considerável de seus habitantes; ter ampliado e melhorado escolas
públicas, bem como os salários de seus professores e, sobretudo,
atendido as reivindicações que impulsionaram todo o movimento:
a tarifa zero nos transportes, entendendo o direito de ir e vir como
universal, obstaculizado pelo preço absurdo das passagens no Bra-
sil. O governo petista poderia ter aproveitado a crítica à plutocracia
representativa - que não representa nada mais que os banqueiros
e capitalistas em geral - para ter impulsionado a auto-gestão que
expressasse diretamente a vontade popular. Além disso, poderia
ter atendido as demandas dos protestos pela democratização da

2013 - revolta dos governados 451


comunicação de massa no país e posto um freio no sistema de ca-
pital financeiro despótico. Poderia ter atendido a demanda pelo fim
das polícias militares que mais matam no mundo. Enfim, poderia ter
feito muito.
Ademais, o sindicalismo ligado ao petismo também se mostrou
demasiadamente descolado dos anseios dos governados. As buro-
cracias sindicais ainda perderam uma grande chance para chamar
uma greve geral em junho. Eles preferiram ajudar a criminalizar o
Black Bloc e se aliar com a polícia para garantir o governo plutocrá-
tico neoliberal dissimulado petista.
Objetivamos com essas palavras rejeitar todas as formas que
buscam isentar a governança plutocrática neoliberal petista de suas
responsabilidades e suas opções pela manutenção do poder sem
atender aos interesses dos governados. Assim, não podemos permi-
tir a tentativa de desqualificação da Revolta de um povo oprimido
por séculos, sem sequer apresentar suas demandas. 24
Concluindo, o que acontecerá no Brasil daqui por diante não
podemos prever. Só arriscamos prognosticar que, no futuro, tere-
mos outras revoltas e quando isso acontecer estará em disputa uma
perspectiva da ação direta, de caráter popular e insurgente, e outra

24 Indicamos alguns dos diversos documentários sobre os protestos no Brasil: Documentá-


rio de Carlos Pronzato: “A partir de agora – as jornadas de junho no Brasil” ano: 2013;
duração: 80 minutos. Documentário: “Domínio Público”, disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=dKVjbopUTRs acessado em 26 de julho de 2014.
Documentário: “Protesto Passe Livre Brasil: Veja o que você não verá na televisão!” disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=xsBff36o-Nk acessado em 26 de julho de 2014.
Documentário: “Manifestação e Ocupação do Congresso Nacional em 17 de junho de
2013” disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0ox56RlZOuI acessado em 26
de julho de 2014.
Documentário: “Cenas exclusivas do confronto entre Black Bloc e PMERJ e de agressão a jorna-
listas em 27/08/2013 na cidade do Rio de Janeiro” disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=tsIAC99DM10 acessado em 26 de julho de 2014.
Documentário: “Cenas do protesto contra a Rede Globo em São Paulo” disponível em: ht-
tps://www.youtube.com/watch?v=wxg1kbhp4Eo acessado em 26 de julho de 2014.

452 wallace de moraes


que a nega, de caráter conservador e institucional, seja de esquerda,
ou de direita.
Como dissemos, as ideias não se matam e elas voltarão com
mais força em outro momento e esperamos que saia vitoriosa para
o bem do amor, da liberdade, da igualdade, do respeito e pelo fim
das governanças/opressões sociais, institucionais e das suas respec-
tivas plutocracias. 2013 nunca morrerá!
Convidamos os leitores a lerem no apêndice 1 o poema que
busca expressar mais diretamente a relação do petismo com os pro-
testos de 2013 e, por fim, o apêndice 2 com uma entrevista conce-
dida ainda em 2014, no calor dos acontecimentos, com as principais
teses desenvolvidas nesse livro.

2013 - revolta dos governados 453


APÊNDICES
1

Não tem mais jeito1

Primeiro exigiram tarifa zero para o transporte


Mas não me importei
Donos das empresas de ônibus nos davam aporte

Em seguida enfrentaram a polícia que mais mata


Não dei a mínima
Ela fazia nossa segurança plutocrata

Logo depois quiseram acabar com a Copa do Mundo


Mas não me importei
A FIFA era aliada

A seguir quiseram o fim da corrupção


Mas nem dei atenção
As empreiteiras financiavam nossa campanha

Depois pediram mais investimentos em saúde e educação


Novamente disse não
Já estava tudo em nossas mãos

Mas quando quebraram vidraças de bancos


Eu me importei
Criei a Lei antiterrorismo para acabar com o “vandalismo”

Meus amigos pediram a criminalização dos revolucionários e Black


Blocs
Atuei em sintonia
Resolvi processá-los, prendê-los e aniquilá-los. Liberei até o choque

1 Inspirado no poema original de Martin Niemöller

456 wallace de moraes


O bicho estava pegando e a população se revoltando
Resolvi juntar meus melhores partidários
Pastores, TVs, militares, empresários e o judiciário

Depois ordenaram a retirada dos direitos dos trabalhadores


Também atuei em harmonia
Os sindicatos e os empresários estavam ao nosso lado, dia a dia

Em seguida violentaram alguns LGBTs


Mas não me importei
Eles não tinham força no Senado para criar leis

Logo depois continuaram oprimindo as mulheres


Mas não me importei
Elas não tinham força nos partidos congregados

Continuaram a prender e assassinar os negros


Mas não me importei
Essa prática acontece há mais de 500 anos

Por fim, os coronéis/partidários que defendi me destituíram


Mas já era tarde. Como eu não me importei com os governados
Os verdadeiros combatentes não estavam ao meu lado

Agora meus apadrinhados estão no poder


Cuidei, acobertei e alimentei um monstro
Sofri o impeachment. Mas não me arrependo. Faria tudo de novo.

Hoje tem até candidato das armas


Querendo implantar o fascismo
Não tenho dúvida, tenho responsabilidade nisso

De fato, a governança política não tem mais jeito


Confiei em quem não podia e desdenhei de quem não devia
Quem sabe aprendo algum dia: que só a luta irradia

2013 - revolta dos governados 457


2

ENTREVISTA CONCEDIDA À REVISTA HABITUS IFCS/UFRJ EM


MAIO DE 20142

A Revista Habitus IFCS/UFRJ convidou dois professores para


conceder uma entrevista sobre o mesmo tema: “junho de 2013”. Ela
foi realizada em maio de 2014 por Camila Bevilaqua e Paulo Couto e
publicada com o título: “A Rua às Portas da Universidade: entrevista
com Bruno Cardoso e Wallace Moraes”, no vol. 12 do mesmo ano.
O que segue nesse livro são apenas as minhas respostas. Tomei o
cuidado de retirar as argumentações do prof. Bruno Cardoso e tam-
bém as referências que fiz aos seus argumentos. Ademais, fiz algu-
mas pequenas correções, atualizei alguns conceitos que criei e/ou
utilizei depois, mas deixei na forma como foi respondida de maneira
mais coloquial. Por fim, julgo essa entrevista importante porque foi
realizada mais ou menos no calor dos acontecimentos e muitas das
teses defendidas nela foram desenvolvidas a posteriori nesse livro.
Boa leitura!

REVISTA HABITUS: Vocês poderiam falar um pouco sobre suas tra-


jetórias acadêmicas - quais foram os lugares de formação, por onde
vocês passaram e como vocês começaram a se interessar pela área
que vocês estudam agora?

WALLACE: Primeiro eu quero agradecer o convite da Revista Habi-


tus. Eu sou do IFCS, aqui fiz História na minha graduação, entrei em
95. Na História, eu já tinha todo um interesse pela Ciência Política. A
minha monografia de final de curso foi sobre as eleições, a campa-
nha eleitoral de 89 no Brasil. Então, já tinha todo um aspecto políti-
co envolvido, tinha toda uma formação marxista, embora não fosse

2 Agradeço à Revista Habitus pela liberação para publicação da entrevista.

458 wallace de moraes


o momento do marxismo, muito ao contrário. A década de 90 foi
um momento de extrema crítica ao marxismo, mas como eu sempre
estive envolvido com movimento social - inclusive fui militante, fui
do Centro Acadêmico de História e do DCE da UFRJ -, então sempre
procurei o próprio marxismo para a minha formação. Fui orientado
pela Anita Leocádia Prestes, que é uma grande marxista daqui do
Instituto. Formado, eu comecei a dar aula, inclusive no ensino fun-
damental e médio, como historiador. Depois fiz uma pós lato sensu
na UFF, em História Contemporânea, com discussão em torno do na-
cionalismo. Naquele momento, saí da discussão de campanha elei-
toral e fui discutir nacionalismo, sobretudo a partir de Hobsbawm,
mas não só, Ernest Gellner, Benedict Anderson, e outros autores fo-
ram muito importantes nessa minha monografia. E eu resolvi fazer
mestrado e doutorado. Foi quando fui para o IUPERJ, atual IESP. Fiz
mestrado em Ciência Política. O IUPERJ tem uma formação muito
bacana, muito ampla, e ao mesmo tempo é um curso que você faz
nove disciplinas no mestrado, tem que defender uma dissertação,
tudo isso em menos de dois anos, e foi bastante importante para
minha própria formação dentro das Ciências Sociais. Eu já tinha uma
formação em História, não tinha uma entrada nas Ciências Sociais,
que eu passei a ter nesse momento, no mestrado. Eu fiz uma disser-
tação, orientado pelo Cesar Guimarães, sobre teoria política, e fui
discutir aquele que a gente pode chamar de o pai do liberalismo polí-
tico, que é John Locke. A questão da propriedade, especificamente,
a teoria da propriedade privada, no pensamento lockiano. A partir
daí, bem, eu fui Bolsista Nota 10 no IUPERJ, no mestrado, depois
entrei no doutorado direto. Discuti teoria política com Locke, evi-
dentemente dialogando com Hobbes, com Rousseau, com outros
teóricos modernos, da Ciência Política, sobretudo, sobre a questão
da propriedade. Eu tinha até uma perspectiva de ampliar, debater
com os antigos e depois com os contemporâneos, todavia, quando
estava no doutorado, em algumas aulas me interessei sobre Améri-
ca Latina. Então, migrei mais uma vez de objeto de estudo. Aí passei

2013 - revolta dos governados 459


para uma pesquisa comparada, saí do campo teórico e voltei para
o empírico, como já tinha realizado na minha graduação. No douto-
rado, discuti a relação capital/trabalho no Brasil e na Venezuela, de
forma comparada, especificamente nos governos Lula e Chávez. O
chavismo estava muito em voga naquele momento. Defendi a tese
em 2009, todavia comecei a estudar em 2006, 2007, quando redefini
meu objeto de estudo. Então, o que Chávez fazia na Venezuela esta-
va sendo muito discutido no âmbito político. O que era aquilo, qual
modelo, se era um populismo, neo-populismo, se era efetivamente
um governo que atendia as demandas da classe trabalhadora, ou se
era social- democrata, ou marxista. Enfim, a questão do Socialismo
no Século XXI, que estava posta. Evidentemente, como toda ques-
tão muito politizada, existia uma grande polêmica se era um gover-
no bom para a classe trabalhadora, ou ruim.
Nesse momento, existia toda uma literatura na Ciência Políti-
ca de que viveríamos num momento pós-neoliberal, no Brasil e na
América Latina. Os casos do governo Chávez, Morales, Rafael Cor-
rêa, principalmente, mas também Lula, a própria Bachelet, também
no Chile, o Kirchner, a família Kirchner, na Argentina. Enfim, existia
um processo e fui tentar empiricamente perscrutar isso. Efetiva-
mente concluo na tese que o governo Chávez atendeu em grande
medida interesses dos trabalhadores na Venezuela. Sobretudo em
função da criação de novos direitos, da ampliação dos direitos tra-
balhistas naquele momento.
Ao mesmo tempo em que eu estava no doutorado, eu con-
tinuei – ainda que em menor intensidade - na militância política e
social. Já tinha sido de partido político, mas tinha rompido. Saí em
função de toda a burocratização dos partidos. Robert Michels até
me influenciou bastante nessa leitura. É um autor que a gente dis-
cute muito na Ciência Política. E passei a ter toda uma discussão so-
bre o anarquismo. Passei para uma leitura de Bakunin, por exemplo,
de Kropotkin, Proudhon, os clássicos da teoria anarquista, que eu
não tive acesso na minha graduação. Então busquei isso em função

460 wallace de moraes


do que via no mundo, e aí acabei achando muito interessante essa
perspectiva anarquista, ou o resgate dela, que foi alijada da acade-
mia durante muito tempo. Acabei entrando muito nesse campo e
tentando construir algo nesse veio anarquista ou libertário. Tem o
Castoriadis, o Deleuze, o próprio Foucault, em grande medida, que
dialogam, que têm algum tipo de crítica ao modelo de um modo
geral, críticas aos sistemas autoritários, críticas ao capitalismo, etc.
Então, mais ou menos é isso. Acho que a minha formação é essa.
Para finalizar, eu começo muito interessado pelo marxismo e depois
eu vou militando mais nesse campo mais libertário, anarquista, com
algumas críticas às perspectivas autoritárias, em todos os sentidos.

REVISTA HABITUS: A cidade do Rio, assim como outros lugares,


tem passado por um momento de efervescência política – com os
protestos de junho de 2013, as greves e a Copa do Mundo, esse ano.
Que autores vocês acham que são bons para pensar esse momento?

WALLACE: Atualmente existe uma grande discussão sobre qual foi


o significado do movimento. Está em disputa a narrativa da revolta
popular. E, aliás, eu estou escrevendo um livro sobre isso. Acompa-
nhei ativamente praticamente todos os protestos. Então, há uma
perspectiva, muito comum inclusive naquilo que eu chamo de es-
querda oficial - não governista, mas oficial, institucionalmente -, de
que os protestos não tinham pauta. Houve a crítica de que o mo-
vimento não tinha pauta, não tinha direção, portanto, não poderia
avançar. É uma crítica clara dessa esquerda. E eu tento contrapor
isso dizendo que o movimento tinha pauta sim, e essa pauta foi pos-
ta pela ação direta, outro conceito clássico do anarquismo, desde
Bakunin, Proudhon, etc. Esse é só um introito pra gente poder de-
pois discutir um pouco mais, ampliar o horizonte.
Bom, o que a ação direta, portanto, explanou para todos os
cantos em praticamente todos os protestos, desde os primeiros que
nasceram com 100 pessoas, e foram crescendo? A gente chegou a

2013 - revolta dos governados 461


ter, na semana antes do dia 17 de junho, antes do ápice, 5 mil pes-
soas, depois 30 mil, foi crescendo, e desde os primeiros protestos
o confronto com a polícia estava dado. Esteve presente, em todos
eles. A polícia reprimiu com toda a sua força. Claro, sem tiro de bala
letal, mas com bala de borracha, gás lacrimogêneo, gás de pimenta,
etc. E, diferente do que a gente percebia no Brasil nas décadas ante-
riores, sobretudo na década de 90, mesmo a década de 2000, esses
manifestantes entraram em confronto com a polícia. Era repressão
sobre os manifestantes, que por consequência resistiam e quebra-
vam vidraças de bancos. E quebrar o banco, desde as primeiras pas-
seatas é algo significativo. É uma propaganda pelo fato que explica,
que talvez mostre para todo mundo, pra quem quiser ver, eviden-
temente, que o banco é a instituição mais favorecida nesse tipo de
capitalismo no qual vivemos atualmente. Esse é o primeiro ponto.
Depois, o ataque à própria polícia. E aí, entra na pauta a crítica à
militarização da polícia, a truculência, a sua força empregada, na
resistência a ela, na crítica que vinha das palavras de ordem desse
movimento desde o seu início.
Junto com isso, nós podemos perceber que todos os jornalistas
da imprensa, do que eu chamo de grandes oligopólios de comunica-
ção de massa (atualmente, chamo por governantes socioculturais),
foram prontamente expulsos, quando identificados, de todas as ma-
nifestações. Além disso, vários carros das emissoras foram queima-
dos nessas manifestações. Esse é outro ponto. E, junto a isso vinha
uma mensagem que era o seguinte: “queremos a democratização
dos grandes oligopólios de comunicação de massa desse país”. A
ação direta estava mostrando isso. A propaganda pelo ato mostrou,
e vinha também seguida pela palavra de ordem.
Então, a gente já tem a crítica aos bancos, que são a represen-
tação do capital financeiro, a crítica aos oligopólios de comunicação
de massa, a crítica às forças de repressão, aí representada pela po-
lícia militar, e nós temos um quarto elemento que é fundamental:
a crítica ao Estado como um todo. Quando, no Rio de Janeiro, ten-

462 wallace de moraes


ta-se atear fogo na ALERJ, quando em Brasília tenta-se destruir o
Congresso Nacional, em São Paulo a prefeitura, e por aí vai, por todo
o país, isso tem um significado. Uma crítica contundente ao Estado,
tentando dizer que essas casas não nos representam. Essas casas
que, a princípio, eram para ser de representantes da população não
exercem a sua função. Acho que isso é outro sinal muito claro que
é uma crítica contundente às instituições estatais e, sobretudo, às
instituições que deveriam ser representativas.
A gente tem outros vários pontos que a ação direta nos mos-
trou: quebrar McDonald’s; quebrar multinacionais; quebrar conces-
sionárias de carro de luxo; quebrar, no dia 20 de junho, no Rio de
Janeiro, todos os pardais (câmeras de multas de trânsito). Nesse
dia, eu vi os soldados do exército, que ficam resguardando o Pan-
theon, correrem das pedradas dos governados. Então, uma crítica
contundente ao exército, que representaria as forças de repressão
de um modo geral (governantes penais). E ao mesmo tempo, nesse
20 de junho, por exemplo, - e aí não dá para ter dúvida -, tinha pelo
menos 1 milhão e meio de pessoas, nas seis pistas da Presidente Var-
gas tomadas, desde a Candelária até a prefeitura. E a imprensa, com
uma cara de pau, disse que tinham 300 mil pessoas. Só pra enten-
der a discrepância. Bom, o que está posto? O movimento tinha uma
pauta, e é claro que ela era muito heterogênea. Tinha ali tanto po-
pulares sem nenhuma ideologia; tinha pessoas, digamos, com muita
ideologia, militantes de partidos políticos; tinha os anarquistas, aliás
em número muito pequeno, infinitamente pequeno. Não tinha nem
como dirigir o processo, mesmo se quisessem. E têm grupos autô-
nomos, autonomistas, dos mais diversos. Coletivos que surgiram há
muito tempo para construir algo. Acho, na verdade, que ninguém
poderia prever que aconteceria aquilo, mas tinha gente trabalhan-
do para isso. Então, como a gente pode agora associar isso a uma
perspectiva teórica?
Só mais um dado importante: até 2013, como é que se caracte-
rizavam os protestos no Brasil? Vamos falar do Rio de Janeiro especi-

2013 - revolta dos governados 463


ficamente. Os manifestantes se concentravam na Candelária, saiam
em carro de som, que tinha os seus dirigentes, ou aqueles que se co-
locavam como dirigentes do movimento. Estavam lá os deputados,
vereadores, os representantes de DCEs, de centros acadêmicos, os
sindicalistas, todos disputando o carro de som, o microfone, e iam
da Candelária pela Rio Branco até a Cinelândia. Na Cinelândia, tinha
um palanque previamente montado. Esses políticos, enfim, esses
dirigentes, ou pseudo dirigentes, desciam e subiam no palanque e
de lá faziam outro discurso para a base. É a forma como se trata, eu
estou só utilizando os termos, não são termos meus; eu estou só
utilizando termos da política. E essa base não tinha direito à voz. Na
verdade, ela acompanhava, batia palma e escutava os discursos ou
cantava as palavras de ordem entoadas por esses dirigentes. Bom, e
ali os políticos estavam em plena campanha eleitoral.
Junho de 2013 teve um significado absolutamente distinto dis-
so! Primeiro, que as primeiras passeatas não tinham carro de som,
não tinham. Então, diversos coletivos ou agrupamentos, enfim, eles
cantavam as suas palavras de ordem na palma da mão, e cada grupo
entoava a sua palavra de ordem. Tanto que você poderia ver diver-
sas palavras de ordem ao longo da passeata. Se você circulasse a
passeata toda, veria coisas diferentes: umas mais radicalizadas, ou-
tras mais reformistas, outras mais dentro do sistema, como a defesa
da PEC etc. Umas mais nacionalistas, outro componente também
encontrado nas passeatas. Bom, o que está posto? Claro que depois,
esses mesmos que dominavam a política até então, levaram seus
carros de som para tentar dirigir o movimento, mas em junho eles
foram amplamente rechaçados.
Quando acontece o 20 de junho, que é a de 1 milhão e meio
de pessoas, aí se criou, a meu ver, o fantasma do fascismo, pela es-
querda oficial. As argumentações diziam: “bom, não podemos mais
fazer a passeata”, “a direita está dominando”, etc. Nesse momento,
ocorreu a união entre os petistas e esquerda oficial, que por decreto
tentaram cancelar as manifestações. Até então tinham duas passe-

464 wallace de moraes


atas por semana, na segunda e quinta. Depois do dia 20, aconteceu
uma no dia 24 de junho, mas foi esvaziada pelo boicote da esquerda
oficial e pelo desgaste das massas das jornadas extenuantes e pe-
rigosas dos dias 17 e 20 de junho. Mas no dia 27 de junho ocorreu a
passeata para a Fetranspor. Depois teve no dia 30 de junho, na final
da Copa das Confederações. Mas o emblemático aconteceu no dia 11
de julho. Foi a famosa passeata das centrais sindicais, que alguns se-
tores falaram: “agora os trabalhadores estavam presentes”. Como
se na passeata de 1 milhão e meio não tivesse trabalhador. Como se
o trabalhador representasse apenas quem faz parte do sindicato, e
quem é direção do sindicato. Essa é uma concepção de movimento
muito fechada, vanguardista, dentro da perspectiva do século XX.
Então, qual é o ponto que eu quero trazer? Se a gente vê que
não tem... se esse movimento negou, desde o seu início, que se ti-
vesse uma direção, e ao mesmo tempo foi extremamente radicaliza-
do pela ação direta, por tudo que fez, seja pelo enfrentamento com
a polícia, seja pela quebradeira das vidraças dos bancos; do ponto
de vista teórico, os pensadores anarquistas são os que melhor po-
dem nos ajudar a entender o próprio movimento, pois já discutiam
isso há muito tempo. E essas ações foram efetivamente, involunta-
riamente ou não, casadas com as perspectivas anarquistas. Por quê?
Porque, primeiro, houve uma descentralização do movimento,
que é uma das bandeiras principais do anarquismo, assim se garan-
tia que não tivesse hierarquia entre os manifestantes. Ainda presen-
ciamos a propaganda pelo fato, seguida pela crítica contundente ao
sistema capitalista, ao Estado, a crítica contundente aos monopólios
de comunicação. Aí, todavia, você perguntaria: “mas, Wallace, tinha
gente que não tinha a menor ideia disso”. E eu respondo: tinha. Exis-
tiam pessoas nacionalistas etc. Sem embargo, quais foram as ex-
pressões mais emblemáticas do movimento? Eu gosto de fazer um
paralelo, por exemplo, com a Comuna de Paris. O que aconteceu na
Comuna de Paris? Foi um movimento que nasce na Guerra Franco-
-prussiana, na qual os trabalhadores estavam em armas, muitos ope-

2013 - revolta dos governados 465


rários, e a França perde para Prússia, só para contextualizar. Depois
os trabalhadores franceses, em armas, criam a comuna e se insur-
gem contra o próprio governo. Ao mesmo tempo, eles se negaram
à criação do Estado, se negaram à criação da própria representação
política, negaram diversos fatores tradicionais ao que uma esquerda
marxista clássica defenderia. E, apesar do número de anarquistas
naquele momento ser menor do que das demais organizações, a
pauta do anarquismo foi praticamente a hegemônica na Comuna de
Paris. Não totalmente. Acho que esse é um paralelo importante com
o caso de 2013 no Brasil.
Queria agora ampliar um pouquinho o horizonte. Esse não é
um movimento típico brasileiro. Isso tem um significado mundial
e vem acontecendo, pelo menos, desde Seattle. Ou a gente pode
pegar um exemplo num âmbito de Europa e Estados Unidos, ou
o que aconteceu em Chiapas, que é um dos principais exemplos
para a América Latina, em 94. Seattle em 99 e Chiapas em 94. E aí,
o zapatismo, o Subcomandante Marcos tem vários escritos que re-
ferendariam. Se eles estivessem escrevendo sobre esse processo,
referendariam isso por completo: o caráter de insurgência, que não
é dependente de representação, portanto, daí a crítica também, de
maneira geral, aos partidos políticos. Veja, aqui é importante criar
um parêntese: não que se defenda que se bata em militante, muito
pelo contrário, foi abominável o que em certa medida aconteceu.
Mas, na sociedade de modo geral, existe uma crise atualmente da
representação política, seja no Brasil, seja no mundo. Onde não há
voto obrigatório, a ampla maioria, mais de 50% das pessoas, não vai
votar; ou se vão, votam nulo ou em branco. Exemplo disso agora
foi o Chile, há pouco tempo. A própria França, e por aí vai. Mesmo
no Brasil, em 1998, 40% da população ou se absteve, ou votou bran-
co, ou nulo. O Fernando Henrique, portanto, foi eleito em 1998 com
menos votos do que os votos que a grande imprensa julga como
inválidos. Como se não pudesse ter um componente de crítica, de
maneira geral, ao sistema.

466 wallace de moraes


Então, tem muita gente pensando sobre o que está aconte-
cendo hoje no mundo. Teóricos novos,... mas eu acho que será um
erro para qualquer pessoa que queira encontrar uma explicação, ou
apontar para o que isso pode levar, quer dizer, ao que pode levar no
futuro. É difícil. Primeiro, que ninguém previa que isso aconteceria.
Agora, você apontar para o que pode acontecer é muito difícil. Cla-
ro, a gente pode estabelecer, com base no que vêm acontecendo,
algumas projeções. Isso é possível que se faça, em função das ten-
dências estabelecidas pelo movimento. Mas apontar com certeza
que vai acontecer isso, aí você partiria para um determinismo, en-
fim, que não é muito salutar.
Para terminar eu queria falar três coisas.3 Começar, então, pe-
los anarquistas. Eu não achei que os anarquistas tivessem influên-
cia, tivessem influenciado... Eles não têm influência nenhuma. O que
eles podem é explicar isso. Porque aqui na universidade não tem
anarquismo. Os autores anarquistas não são apresentados para
os alunos. Eu me formei aqui sem ler nenhum. Ninguém falou: “lê
aqui”. Então, assim, popularmente, o anarquismo não existia. Por
outro lado, o movimento anarquista é muito pequeno, ele não tem
a influência que alguns imaginam. A influência do anarquismo para
isso foi, não vou dizer nula, porque aí já é muito, mas foi, enfim, ín-
fima. Todavia, o resultado do levante popular foi muito anarquista.
Acho que esse é o ponto. Aí entra a questão da horizontalidade, da
descentralização. E indo para o segundo ponto que eu acho que tal-
vez, não sei, é uma polêmica nossa: eu tenho desacordo da leitura
que os partidos, que eu chamo da esquerda oficial, fizeram, dizendo
que tinha componente de fascismo no dia 20. Eu acho que quando
eles frearam o movimento, dizendo “não vamos mais participar”,
foi porque eles não conseguiram dirigir o movimento. Eles estavam
acostumados a dirigir naquele modelo tradicional, em grande me-
dida hierárquico e centralizado, como já falei anteriormente. Como
3 A partir daqui, vou responder uma interpelação do Prof. Bruno realizada no meio da
minha resposta.

2013 - revolta dos governados 467


eles não conseguiram dirigir o movimento em momento nenhum, e
pior, ainda estavam sendo rechaçados – não pelo movimento como
um todo, mas por parte dele -, aí eles falaram: “não, isso é de direi-
ta”. Eu acho que eles não compreenderam que a horizontalidade
não permite tentativas de direção, e quem tenta dirigir é amplamen-
te rechaçado. Como a assembleia que teve aqui no IFCS com 5 mil
pessoas, eu também estava. Aquela disputa pelo microfone, todos
ali de partidos políticos, que se conhecem de movimento estudantil,
disputando a tapas, porque no fundo todo mundo queria dirigir. E aí,
a massa: “eu rechaço isso”. Eu vi muita gente indo embora... Desmo-
bilizou.4 Esse é um dos fatores, mas têm outros.
A esquerda - é muito polêmico, as pessoas não vão nem gostar
quando eu falar isso - mas essa esquerda oficial, a “esquerda” petis-
ta sem dúvida trabalhou o tempo inteiro para desmobilizar, porque
não interessa ao governo que tenha movimento popular na rua rei-
vindicando coisas. Não interessa a governo nenhum. Nesse sentido,
teóricos da Ciência Política, como Lipset, Huntington, Kurt Weyland
e mais algumas dezenas deles defendem em comum uma grande
tese, que ajuda demasiadamente aos governos da hora. Trata-se da
perspectiva da democracia minimalista, segundo a qual o papel ide-
al do povo deve ser “ir votar de tempos em tempos e depois voltar
para casa, e esperar que o seu governante cumpra o que prometeu.
Se ele não fizer, volte a votar e escolha outro candidato”. Simples
assim. A demanda popular, principalmente se vier por meio de pro-
testos, segundo esses autores, é o pior cenário para a democracia,
pois gera um problema para o Estado que não pode atender a de-
terminadas políticas. Então, a esquerda oficial estatal e institucional,
seguindo ou não esses teóricos, tentou desmobilizar e conseguiu. O
problema foi que a esquerda oficial de oposição também trabalhou
nesse sentido, infelizmente. Como explicar isso? Porque ela também
não conseguiu dirigir o movimento que era horizontal, que era hete-
rogêneo, e que tinham várias demandas.

4 Aqui respondo a outra interpelação do prof. Bruno.

468 wallace de moraes


Agora, dizer que era fascista eu acho que é um grandioso equí-
voco. Por quê? Antes de mais nada, é necessário entender o que é o
fascismo para evitarmos ficar a reboque do senso comum. O que foi
o fascismo na Itália e na Alemanha? É hierarquia, é disciplina, é en-
fim, verticalidade, é respeito às instituições, é exaltação do Estado,
do líder, do chefe, do Führer. O fascismo é por natureza hierárquico
e centralizado. Então... todos esses componentes não estão postos
em nenhum momento pela insurreição popular. Normalmente, o
fascismo está atrelado a essas estruturas hierárquicas, policiais. Não
ataca exército, não ataca as estruturas. Porque, aí é que está: teria
que fazer uma discussão, que eu estou escrevendo no meu livro so-
bre o movimento. Um movimento fascista significaria a valorização
extremada da polícia e de toda força de repressão. E o movimento
mostrou exatamente o oposto. Eu nunca vi um momento em que
a polícia estivesse tão desmoralizada, quer dizer, na minha pouca
história de vida, nunca vi uma polícia tão desmoralizada, desacredi-
tada, contestada, quanto em 2013.
A partir dessas reflexões, não dá para caracterizar como fascis-
ta nem do ponto de vista prático, nem teórico. Agora, por que essa
esquerda oficial chama de fascismo? Porque ela não dirige. E como
ela não concebe que ninguém à esquerda dela tenha predominân-
cia: “bom, a esquerda sou eu, eu tenho o monopólio da esquerda,
então, se é diferente de mim está à minha direita, está no fascismo”.
E foi triste desmobilizar um movimento desse, tão forte. Tanto que
em 11 de julho, que foi o ato das centrais sindicais, e eu também es-
tava, o que aconteceu lá? Aconteceu algo muito emblemático, que
é muito grave. A polícia reprimindo fortemente os Black Blocs (na-
quele momento o Black Bloc já tinha nascido) com tiros de balas de
borracha e gás lacrimogêneo, e o carro de som do sindicato botou o
hino nacional para tocar. Naquela repressão covarde! Aí eu fui e falei
para o carro de som: “amigo, o que é isso? Isso aqui não é ditadu-
ra. Como você vai botar o hino nacional, se os manifestantes estão

2013 - revolta dos governados 469


apanhando?” O cara tacou uma garrafa de água em cima de mim
e respondeu: “não temos nada a ver com esses Black Blocs, não”.
Enfim, evidentemente, depois de tudo isso, os black blockers quase
derrubaram o carro de som. Ele teve que sair correndo. Ali houve
um racha muito grande. O Black Bloc, mas não só, pois todos os mo-
vimentos autônomos, não hierarquizados, enfim, que estavam ali e
que estavam apoiando, e que viram aquela cena, tocando o hino na-
cional diante da repressão, ficaram indignadíssimos. E aí, houve um
grande racha naquele momento, entre quem até então estava em
conjunto: a esquerda oficial, junto dos movimentos autônomos, que
estavam com a mesma bandeira. Ali teve um corte, uma separação,
tanto que criaram a FIP, criaram outras organizações para se juntar.
E os próprios partidos também se organizaram juntos, para fazer a
auto-defesa.

REVISTA HABITUS: As mobilizações políticas recentes parecem


mostrar um descrédito quanto às instituições políticas tradicionais,
além de recorrentes demonstrações de violência. Vocês poderiam
falar um pouco sobre os limites da participação política numa demo-
cracia, principalmente sobre a questão da violência?

WALLACE: Vou começar pela bancada ruralista. Victor Nunes Leal,


em “Coronelismo, enxada e voto”, mostrava a força dos coronéis
no interior do Brasil; é importante frisar que ela não acabou. Acho
que é isso. A bancada ruralista é uma representação disso. Embora
Getúlio, em 1937, tenha feito o ato simbólico da queima das ban-
deiras estaduais que, portanto, para alguns, representaria o fim do
poder das oligarquias, é importante destacar que isso não se efeti-
vou. As oligarquias continuam existindo. Então, podemos perceber
o quanto que essa democracia está viciada, e o quanto que ela está
dominada por esses grupos.
A democracia, que deveria ser o governo do povo, é na verda-
de o governo de algumas pessoas/corporações com grande poder

470 wallace de moraes


econômico. Essa é real representação da democracia. Fazendo um
pouco o histórico: a gente passou por 20 anos de Ditadura Militar-
-Plutocrática Desavergonhada.5 Mas ela não acabou com o institu-
to do voto, por completo. O Congresso foi fechado em 1977, mas
continuou funcionando durante o restante do período. A ditadura
conseguiu conciliar perfeitamente o instituto do voto com censura
e ausência de liberdade. Por isso, teimo em defender que o oposto
à ditadura não é democracia, pois se ela é reduzida, no limite, ao
direito de voto, é compatível com regimes autoritários. O oposto à
ditadura, portanto, é a autogestão.
Tem um texto que é muito bom, que eu recomendo, que é de
um brasileiro, Luiz Felipe Miguel, que foi publicado na Revista Da-
dos, já tem tempo, foi em 2003, se não me engano. O título, se eu
não estou errado, é “A democracia domesticada - bases antidemo-
cráticas”, algo assim, não lembro exatamente o título.6 É um texto
fantástico que vem fazendo a discussão do quanto a democracia
contemporânea atual foi reduzida ao aspecto do voto. Ao ato de
votar. Isso não é democracia. Então, ele compara com a democra-
cia grega, dos antigos, que evidentemente tinha os seus problemas,
com a exclusão das mulheres e com a exclusão dos escravos; passa
por essa discussão da questão democrática na Idade Média e depois
mesmo no liberalismo.
É importante frisar que a democracia nasce em oposição ao li-
beralismo. Os democratas, no século XIX, estão em extrema oposi-
ção aos liberais. Depois, acabam confluindo, mas essa confluência
que acontece no século XX ocorre em detrimento da própria demo-
cracia, enquanto tal. Por quê? Porque aí ela se resume ao ato de vo-
tar e não engloba nenhum mecanismo de participação efetiva da

5 Conceito incluído na revisão dessa entrevista em 2018, criado nesse ano e publicado em
De Moraes (2018).
6 MIGUEL, Luis Felipe (2002) “A Democracia Domesticada: Bases Antidemocráticas do Pen-
samento Democrático Contemporâneo.” Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Ja-
neiro, vol. 45, n. 3, pp. 483 a 511.

2013 - revolta dos governados 471


população, a não ser a de mero expectador dos atos dos políticos.
Isso na prática não significa que o povo governe, como induz a en-
tender a etimologia da palavra democracia.
Voltemos agora para o Brasil. Então, acabou a ditadura. Qual
foi a grande esperança da geração anterior à minha? Era eleger o
presidente desse país. A grande esperança da juventude da década
de 80, das pessoas de um modo geral, era eleger o presidente: “a
minha possibilidade de escolha vai mudar os rumos desse país”.
E todos sabemos que a ditadura militar-plutocrática concentrou ren-
da exorbitantemente. O Brasil cresceu muito sim, mas com riqueza
concentrada. De modo que o país passou a ter ou a pior distribuição
de renda do mundo, ou uma das piores. Variava entre as três piores.
A possibilidade de escolha do presidente foi o que movimen-
tou a geração inteira. Em 1989, existiam 21 candidatos concorrendo
às eleições. Inclusive tinham partidos coligados. Bom, era a grande
esperança. E aí a esquerda deposita toda sua esperança no Lula, por
exemplo. Por que o Lula? A simbologia do Lula era espetacular: nor-
destino, retirante, operário, fundador de um dos maiores partidos
de massa do mundo, que era o PT. Fundador da Central Única dos
Trabalhadores para aglutinar a luta contra o Capital. Tem um discur-
so do Lula em 89, aqui na Candelária, na campanha, que foi muito
emblemático. A grande mídia, dizendo que se o Lula ganhasse, ia ser
a pior coisa do mundo. A nossa mídia é muito partidarizada, como
toda grande mídia no mundo inteiro. Se eu não me engano, o Mário
Amato, que era o presidente da FIESP na época, falou assim: se o
Lula ganhar, vão sair 100 mil empresários do país. E o Lula veio e
falou no comício aqui da Candelária: “olha... nós queremos ganhar
porque, se os empresários saírem do país, nós trabalhadores vamos
ocupar as fábricas e geri-las a nossa maneira”. Olha só! Que discur-
so! Que ponto! E aí, como todos sabem, o Lula não ganhou em 89,
ganhou o Fernando Collor, candidato das grandes elites, candidatos
dos ruralistas, candidato, enfim, da Rede Globo de Televisão e por
aí vai.

472 wallace de moraes


A perspectiva que ficou para a esquerda popular foi: tudo bem,
não ganhou agora, vamos trabalhar para ganhar no futuro. O Collor
cai em 1992, sofre o impeachment. Em 1994, o Lula perde de novo.
Perde em 98, mas ganha em 2002. Era a grande esperança. Aliás, o
slogan era a “esperança venceu o medo”. Então, percebam a simbo-
logia para toda aquela geração, e para os filhos dela que apostaram
na vitória de um partido que tinha como lema a ética. A ética na po-
lítica, não tem roubalheira pra gente. Muito parecida até, tentando
lembrar um pouco com o Jânio Quadros, o da vassourinha, limpar a
corrupção. Fazendo um paralelo rápido, mas era a questão da ética.
Bom, Lula chega ao poder, agora vai mudar. A esperança, o
sinal que foi emitido para a sociedade era de alternância, de mu-
dança profunda. Qual foi a mudança profunda estabelecida pelos
dois governos Lula? Essa é a grande pergunta! A grande mudança
foi transformar o Bolsa Escola do Fernando Henrique Cardoso em
Bolsa Família. E aí, quais foram as outras? É claro que os petistas
elencaram que o Brasil cresceu.
Eu acho que junho põe à prova, põe em dúvida todos os nú-
meros divulgados pelos governos. Porque não é possível que simul-
taneamente em todas as capitais do país milhões de pessoas vão
pras ruas protestar contra tudo! Contra o governo, contra a Copa,
contra os gastos da Copa, contra o aumento do custo do transporte
público, etc, etc. Então essas pessoas não estão satisfeitas. Não é
possível que estejam.
Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, voltando um pouco aos
protestos, daqui a pouco falo um pouco mais da democracia. Os
protestos aconteceram em praticamente todas as cidades: Niterói,
Nova Iguaçu, Caxias, São João de Meriti. Em bairros: Irajá, Bonsu-
cesso. Os protestos ocorrem nas favelas Rocinha, no Santa Marta,
tudo nesse momento. Quer dizer foi muito emblemático, é uma
insatisfação generalizada que perpassou por todas as classes so-
ciais. Evidentemente, num segundo momento, a grande mídia con-
segue controlar e estabelecer uma falsa pauta para o movimento.

2013 - revolta dos governados 473


Que aliás, o governo adota: Ah, o povo queria a reforma política.
Então vamos fazer a reforma política. Foi a primeira medida do dis-
curso da Dilma.
Bom, aí voltando à democracia. Então o povo elege um nordes-
tino, retirante e operário para fazer mudanças profundas e o Brasil
continuou sendo o paraíso dos banqueiros. Essa é a marca funda-
mental do governo. Continuou sendo o paraíso dos banqueiros. Se
você pegar, os números do Bradesco, do Banco do Brasil, perceberá
que os lucros estão se superando a cada semestre. E é por isso que
grande parte desse movimento se indigna contra as vidraças desses
bancos e atentam contra eles.
Bom, depois do Lula, então, foi eleita a primeira mulher brasi-
leira, primeira mulher a ocupar o principal cargo Executivo do país.
Quem foi Dilma? Ela foi para luta armada, contra a ditadura militar-
-plutocrática. Olha que simbologia. Não tem símbolo maior do que
isso. Então é, uma mulher agora, é o que muitos falam: “ah, mulher
tem mais sensibilidade etc”, e o Brasil continuou sendo o paraíso
dos banqueiros! Esse é o marco fundamental.
Ah! Dizem os petistas, o Bolsa Família tirou não sei quantas mil
famílias da miséria. Para tirar essas pessoas da miséria absoluta o
governo implementou um programa que o próprio PT criticava na
década de 80. Isso é importante frisar. Um programa assistencialista
que atendendo seus anseios de poder lhe rendeu uma indústria do
voto. Os mesmos milhões que recebem o bolsa-família continuam
sem a emancipação social, dependentes do Estado e fiéis do petis-
mo. Uma verdadeira indústria do voto miserável.
Veja, não estou dizendo que sou contra o Bolsa Família. Não
sou! Eu acho muito importante tirar pessoas da miséria, todavia
acho que ela deve ser feita por outros meios e é por isso que sou
socialista. Defendo que as pessoas tenham acesso aos meios de pro-
dução e possam geri-los coletivamente, com o fim da alienação.
E veja, o programa Bolsa Família não é algo que foi pensado
pelo petismo. Ele existe no Brasil, na Colômbia, na Venezuela, na Ar-

474 wallace de moraes


gentina, em praticamente todos os lugares da América Latina com
nomes distintos ou com um amalgama de programas assistencialis-
tas. Isso é para garantir o mínimo de reprodução social dessas pes-
soas, senão a violência tinha uma explosão. Tal como foi na década
de 90. O que foi a explosão da violência? Foi a explosão do desem-
prego, das desigualdades, das políticas neoliberais.
E por que estou falando tudo isso? É só para a gente poder
entender as causas de a grande massa popular não confiar mais na
democracia representativa. Esse é o ponto. Peguei o empírico para
explicar a teoria. Fiz uma inversão da relação mais comum. Veja,
você elege um deputado e não existe nenhum mecanismo de pres-
tação de contas com o seu eleitor. Nenhum. Percebe? No fundo, não
existe nenhum compromisso. O que os críticos anarquistas dizem é
que a redução ao ato de votar significa que você dá um cheque em
branco para aquele deputado, ou vereador, ou para o cargo Execu-
tivo, sem qualquer compromisso.
Essa crise da democracia representativa não é um fenômeno
exclusivo brasileiro, como eu falei anteriormente. É um fenômeno
mundial. Na Venezuela, que eu estudo um pouquinho, a vitória do
Chávez, portanto, foi o que salvou a democracia. Na Venezuela, por
exemplo, tinham apenas dois partidos que concorriam praticamen-
te sozinhos nas eleições. A AD, que é o partido da Ação Democrá-
tica, e o Copei. A AD era tida como centro-esquerda e o Copei de
centro-direita. Desde o pacto de “Punto Fijo” em 58, só eles dois
concorriam nas eleições e a maioria da população nem sequer vo-
tava, falava: não tem opção. E Chávez apareceu como a grande es-
perança para grande maioria da população venezuelana. Tal como
o exemplo da chegada de Chávez ao poder na Venezuela temos ou-
tros pelo mundo. Não sei se foi tentativa deliberada ou não, mas é
algo simbólico para gente analisar. Tivemos Lula no Brasil, Morales
na Bolívia, Rafael Correa no Equador, e, pasmem, um negro, conse-
guindo o cargo Executivo de maior expressão nos Estados Unidos:
Barack Obama. O país mais racista do mundo foi exatamente aquele

2013 - revolta dos governados 475


que elegeu um negro para presidência. Que também estava naquele
último suspiro de esperança de garantir a democracia representa-
tiva nos EUA, onde a maioria das pessoas opta por não votar. Po-
demos ampliar essas representações simbólicas que a gente vê na
América Latina e nos EUA para os exemplos do Labor Party, partido
trabalhista britânico, o Partido Socialista francês, Partido Social-De-
mocrata alemão, o Socialista espanhol. Todos eles alcançaram o po-
der na década de 90 e implementaram as reformas neoliberais, que
foram contra os interesses dos trabalhadores. Então, a crise da de-
mocracia representativa significa que aqueles representantes não
nos representam. No fundo, eles estão muito mais compromissados
com os donos do poder, sejam eles ruralistas ou não. Não só os rura-
listas, mas os próprios banqueiros, e empresários capitalistas de um
modo geral pelo mundo.
Então, para finalizar, tento trazer um conceito: o dos gover-
nados, que trabalho a partir da dicotomia entre governantes e
governados. No fundo, 2013, no Brasil, representou a revolta dos
governados, claro, muito difusa, em parte nacionalista, por diver-
sas questões, mas representou uma insatisfação com toda forma
de governo. Depois dessa explosão em outros países, ela chegou ao
Brasil e representa a crise da democracia representativa. A conexão
entre governante e governado está impossível. Daí a importância do
anarquismo, dos autonomistas, apontarem para auto-gestão, como
solução para esse processo. Mas essa é uma outra discussão.

REVISTA HABITUS: Queríamos pedir para vocês falarem um pouco


mais das mídias sociais e as novas tecnologias, em contraposição com
o papel da mídia clássica, na cobertura dos movimentos políticos.

WALLACE: Vamos pegar o protesto, o levante popular, enquanto


objeto para análise e responder essa sua pergunta.
Eu acho que os protestos só foram possíveis em função desse
midiativismo, no seguinte sentido: na medida em que a gente tem
claro que o papel dos grandes oligopólios de comunicação de massa

476 wallace de moraes


no Brasil, historicamente, foi contra toda forma de protesto popu-
lar, contra toda forma de greve, contra toda forma de contestação
do sistema como um todo, podemos inferir muito facilmente que
sem o midiativismo não existiria o Levante de 2013. Na lógica dos oli-
gopólios, é possível até criticar o governo A, B ou C, mas não se pode
contestar o sistema como um todo. Em função desse papel histórico
e da consequente censura que existe nesses oligopólios, dificilmen-
te seria mostrado um policial batendo em um manifestante, como
covardemente aconteceu, em uma grande rede de televisão.
Como isso foi possível? No Facebook estava todo mundo ven-
do a repressão que tinha acontecido, repressão totalmente despro-
porcional, covarde, dos aparelhos de repressão do Estado sobre os
manifestantes. Os manifestantes pediram: “não bata, não bata” e o
policial dando tiro a queima roupa, de bala de borracha. Uma coisa
absurda. Isso indignou a população. Além do mais, entrou o corpo-
rativismo da categoria, pois alguns jornalistas foram gravemente
feridos pelos policiais. E os meios de comunicação foram obrigados
a mostrar isso. Nunca tinha visto isso, eles tiveram que ir a reboque
do que estava sendo já divulgado amplamente pelo Facebook. Essa
postura dos oligopólios deu maior impulso para os protestos. Na-
quela semana foi o ápice, de 17 a 21 de junho.
Cada um com um smartphone na mão e uma rede social, ele
vira um jornalista em potencial. Esse é o grande diferencial.
Vamos pegar como exemplo uma passeata da década de 90
no Rio em que participei. Foi em 1998 e contra o governo Fernando
Henrique Cardoso, com dimensões grandes para a época, grande
assim, 30 mil pessoas. Para 2013 não era nada, mas em 1998 tinha
tempo que não acontecia nenhuma passeata. Aí eu pensei, vou pra
casa ver qual vai ser a repercussão na grande mídia. E aí cheguei lá:
nada. Sem nenhuma linha, nada. O Jornal Nacional no dia e o jornal
O Globo, no dia seguinte, não disseram nada, como se não tivesse
acontecido. E não existia rede social para divulgar aquilo. Então...
não aconteceu. Aquela passeata de 30 mil pessoas não aconteceu

2013 - revolta dos governados 477


para o Brasil. O Brasil não soube e nem os cariocas souberam, os
que não estavam na Rio Branco na hora. Então... é uma forma de
censura.
Todavia, seria cômico, se não fosse trágico, ao mesmo tempo
muito emblemático para mim, foi que na sexta-feira fizemos a passe-
ata, não saiu nada sexta à noite, não saiu nada no sábado... Naquele
ano existia uma campanha para castrar pitbull, porque um pitbull
tinha matado crianças etc, saiu uma lei sobre isso. Então doze caras
com pitbull fizeram uma passeata. Doze. E saiu na capa do jornal O
Globo do domingo, os doze. Era a capa do jornal O Globo: donos
de pitbull fazem protesto. Veja a prioridade jornalística: 30 mil não
importava, mas doze era importante.
Então, o papel hoje dessa mídia, do midiativismo, ele é funda-
mental, pois consegue colocar em xeque as próprias notícias dos
meios de comunicação. Junho colocou em xeque. Uma das princi-
pais palavras de ordem do movimento desde o seu início era “A ver-
dade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura”. A crítica aos meios de
comunicação é fundamental, tomara que continue ganhando corpo.
Eu não posso dizer que é irreversível, porque é possível que se crie
algum tipo de censura e eles com certeza já devem estar pensando
nisso. Porque isso abala. Isso abala o poder. Porque uma das gran-
des formas de poder é essa: o monopólio da informação.
Tem uma teórica que se chama Elizabeth Noelle Neuman, que
tem alguns textos discutindo no campo da teoria da comunicação e
ela trata de um conceito que se chama espiral do silêncio. Esse con-
ceito significa que aquilo que não é dito nos grandes oligopólios da
comunicação, parece não existir. Portanto, a pessoa que é crítica e
pensa diferente daquilo que é difundido, ela se sente intimidada ao
expor sua opinião em público. Enquanto aquela pessoa que assiste
ao Jornal Nacional todos os dias e reproduz o que o William Bonner
fala na televisão fica super à vontade para expor “sua opinião”, pois
está falando aquilo que é o senso comum.

478 wallace de moraes


Isso também acontecia nos protestos, as pessoas tinham que
se colocar contra os vândalos. Nomenclatura criada pelos oligopó-
lios de comunicação de massa. Criou-se esse conceito fluído, com-
pletamente descolado de qualquer realidade. Aliás, os vândalos,
na verdade, ajudaram a destruir o Império Romano, portanto, seria
algo de positivo, mas enfim... o sinal emitido pelos oligopólios de co-
municação de massa era: não ouse defender aqueles que estavam
quebrando as vidraças dos bancos. Não ouse! Porque criou-se um
consenso de que você não poderia, de maneira alguma, fazer aquela
defesa. E isso se chama espiral do silêncio.
Então pra concluir: essa mídia, esse midiativismo, em que todos
nós podemos nos transformar em jornalistas com um smartphone
na mão e uma rede social, isso é muito bacana, muito válido, e com
certeza, para responder a pergunta, não só tem tirado o poder dos
grandes oligopólios de comunicação, tem tirado, junho mostrou
isso, mas não tira totalmente. Eles continuam ainda com poder. Eu
acho que a juventude hoje não assiste mais ao Jornal Nacional, e
é muito possível que essa juventude hoje já está nascendo em um
novo contexto, um novo mundo, que ela não foi acostumada a assis-
tir o Jornal Nacional, a se informar pela televisão, ela tá acostumada
a se informar pelo Facebook. E aí isso abre uma grande oportunidade
para efetivamente o declínio desses grandes oligopólios. Todavia, as
gerações que foram acostumadas a se informar pela televisão, pelos
meios tradicionais de comunicação de massa, elas ainda continuam
presas a isso, embora aos poucos vão se descolando, mas continuam
muito presas. Então eu acho que tem aí um componente geracional.
Os mais jovens estão mais descolados desses aparelhos, portanto,
eles podem, não estou dizendo que vão, podem, por consequência,
se transformar em pessoas mais críticas. Por quê? Porque ao assis-
tir ao Jornal Nacional, se informar pelos grandes oligopólios, você
não se transforma em uma pessoa crítica, você se transforma em
pessoa adaptada, subordinada ao sistema de maneira a entender

2013 - revolta dos governados 479


que não tem alternativa, não tem solução radical das questões. Você
sabe que tem problemas, mas não tem canais de transformação.

REVISTA HABITUS: Sobre a questão da segurança pública e os


grandes eventos, vocês podiam falar um pouco dessa questão do
exército? O exército esteve na Maré, fazendo a pacificação, e vai fa-
zer a segurança, de certa forma, da Copa. Como é possível ver isso?

WALLACE: Existe toda uma discussão sobre o papel do exército. A


gente está vendo hoje isso aqui na academia, diversos eventos con-
tra a ditadura militar-plutocrática, com vários temas: “para nunca
mais acontecer”, “para nunca mais se esquecer”, “foi ditadura sim”,
etc. Acho que é muito emblemático agora, no dia primeiro de abril
de 2014 completando 50 anos do golpe, o exército estar ocupando
a favela da Maré. Daí o que é importante para gente ver? O exérci-
to ocupou a Maré agora, em 2014, mas ocupou favelas no Rio de
Janeiro nos últimos 20 anos. Não sistematicamente, mas ocupou,
vez ou outra ocupa, desocupa, ocupa, desocupa; foram várias as fa-
velas ocupadas. E a atuação do exército ou das forças policiais nas
favelas não deixa nada a perder para atuação que o exército tinha
durante a ditadura militar. Acho que isso é importante. Importante
fazer esse tipo de denúncia, porque hoje nós vivemos sob o manto
de democracia; só que uma democracia para a classe média, uma
democracia para as elites. Mas as periferias e favelas do Rio de Ja-
neiro estão sob controle militar praticamente o tempo todo. A UPP
é controle militar das comunidades pobres. A UPP significa que o
trabalhador que mora na favela corre o risco de ser pego para ave-
riguação o tempo inteiro e isso não tem nada a ver com um regime
eleitoral democrático, mas com garantia de liberdade. Tem garantia
de liberdade no asfalto, mas nas favelas e periferias, não tem. E o
fato do exército estar lá ocupando para um megaevento, para Copa,
e vir ocupar as ruas, isso é simbólico, tem problema. Então, tem que
chamar a força de repressão para garantir um evento? Em qualquer

480 wallace de moraes


que seja o país, isso significa que sua população está descontente,
significa que há descontentamento. Ou que aquele evento ocorre
à revelia do interesse da população, o que ficou muito claro com a
Copa das Confederações do ano passado e, aparentemente, acon-
tecerá com a Copa do Mundo. E olha que futebol é a maior paixão
do brasileiro, acho que ninguém pode ter dúvida disso. Todavia, até
nesses momentos de futebol a população se indignou. Embora os
grandes oligopólios de comunicação de massa7 estejam trabalhan-
do dia e noite para fazer com que a população pinte o rosto, pin-
te a rua, etc., etc., em favor da Copa, curta a Copa, como curtiu no
passado. Só que hoje não está dando tão certo. Um ou outro está
pintando, comprando, mas da maneira generalizada como aconte-
ceu em outras Copas, isso não acontece mais. O papel do exército
nas ruas é um sintoma muito grave para toda a democracia, para
toda a população, para as liberdades. O que é importante dizer é
que nas favelas e nas periferias eles continuam sob o manto... como
sempre estiveram no Brasil... Ou seja, os escravos do século XV ao
XIX, sempre foram objetos de suspeição. Ser negro era e ainda é ser
objeto passível de repressão, de um Estado repressor; no início do
século XX, os anarquistas, que eram hegemônicos no movimento
operário no Brasil, sofreram, foram deportados, torturados, assassi-
nados; depois aconteceu com os comunistas, o próprio caso da Olga
Benário é um exemplo; depois, a ditadura que pegou os estudantes,
muitos deles foram pra luta armada; nas décadas de 80 e 90, essa
repressão se voltou para a periferia. O Estado, enquanto aparelho
de repressão, esteve sempre presente na história brasileira, sempre
contra os segmentos que pudessem ameaçar o sistema de qual-
quer forma, como esteve contra os manifestantes no ano passado e
como estará agora na Copa. Então é isso.
Eu só queria falar mais uma coisa: que é mais uma representa-
ção do novo momento atual dessa horizontalidade, que foi a greve
7 Esse também é outro conceito que comecei a tratar depois de 2014. Ele também está
justificado tanto nesse livro quanto em De Moraes (2018).

2013 - revolta dos governados 481


dos garis e a greve dos rodoviários. Ambas foram realizadas por fora
dos sindicatos e dos partidos, significando o declínio daqueles ins-
titutos centrais de representação do século XX, como os partidos
políticos, os sindicatos junto com a própria participação institucio-
nal estatal. Praticamente, agora eles estão sendo postos em xeque.
Ou seja, os trabalhadores, os garis, rodoviários no Rio, rodoviários
em São Paulo e diversas outras categorias que estão por fora do
sindicato, atropelando o sindicato que tem acordo com os patrões
etc, estão contestando o próprio corporativismo estatal brasileiro.
Contestando essas representações que deveriam representar os
trabalhadores, mas não o fazem. Os partidos que estão no poder
fazem a mesma coisa: deveriam representar os trabalhadores, mas
na verdade não representam e só atendem interesse de quem está
em cima. Isso é emblemático. Tem uma passagem de um dos livros
do Kropotkin, que é um autor que eu gosto muito e recomendo a
leitura. Eu não vou lembrar exatamente do trecho, mas lembro que
ele traz essa perspectiva de quanto o chefe da oposição e o che-
fe do governo, embora aparentemente em oposição, estão atrela-
dos, muito imbricados, porque ambos defendem toda a estrutura
existente, defendem o Estado. Então, um faz a crítica ao outro pelo
modo da gestão. A sua gestão é ruim, a minha pode ser melhor, mas
não critica a hierarquização, a desigualdade, o autoritarismo, enfim,
o próprio Estado e o sistema do capital e tudo mais.

Terminamos com a passagem literal do Kropotkin citada acima:

“Uma adoração comum, um culto comum une todos os burgueses,


todos os exploradores. O líder do poder e o líder da oposição le-
gal, o papa e o ateu burguês adoram igualmente um mesmo deus,
e esse deus de autoridade reside até nos recantos mais ocultos de
seus cérebros. Eis porque eles permanecem unidos apesar de suas
divisões. (...) Também se compreende quão insensato é querer co-
locar a revolução sob essa bandeira, buscar conduzir o povo contra

482 wallace de moraes


todas as suas tradições, aceitar esse mesmo princípio, que é aquele
da dominação e da exploração. A autoridade é a bandeira deles, e
enquanto o povo não tiver uma outra, que será a expressão de suas
tendências de comunismo, antilegaritárias e antiestatistas – anti-ro-
manas, em resumo – ele será forçado a se deixar conduzir e dominar
pelos outros“ (Kropotkin, 2007: 104-05).

2013 - revolta dos governados 483


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