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TEMPOS DE ESPERANÇAR:

ANTIGAS E NOVAS INSURGÊNCIAS

Organizadores(as):

Ediléia de Carvalho Souza Alves


Kátia Antunes Zephiro
Luiz Fernandes de Oliveira
Mônica Regina Ferreira Lins

1
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610,
de 19.02.1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa
anuência dos(as) organizadores(as)

Capa e Diagramação: José Fontenele


Edição: Ediléia de Carvalho Souza Alves, Kátia Antunes Zephiro,
Luiz Fernandes de Oliveira e Mônica Regina Ferreira Lins.
_________________________________________________________

Tempos de esperançar [livro eletrônico] : antigas e novas


insurgências / organizadores Ediléia de Carvalho Souza
Alves...[et al.]. -- Rio de Janeiro : Ed. dos Autores, 2023.
PDF

Vários autores.
Outros organizadores: -serif ”>Kátia Antunes
Zephiro, Luiz Fernandes de Oliveira, Mônica Regina
Ferreira Lins.
Bibliografia.
ISBN 978-65-00-86709-1

1. Antropologia 2. Educação básica 3. Política pública


4. Racismo 5. Relações étnico-raciais
6. Sociologia I. Alves, Ediléia de Carvalho Souza.
II. Zephiro, Kátia Antunes. III. Oliveira, Luiz
Fernandes de. IV. Lins, Mônica Regina Ferreira

23-181502 CDD-370.19
_________________________________________________________

Índices para catálogo sistemático:


1. Educação : Aspectos sociais 370.19
Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415

Editora Zona Oeste Escrita / Clube de Leitura ZO


@clubedeleiturazo
Quer publicar conosco?
clubedeleiturazo@gmail.com

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Essa obra é dedicada ao nosso amigo, companheiro de luta
e botafoguense, Aderaldo Gil. In memorian.

5 de agosto de 1961. Era um sábado quando, em Maceió, Alagoas, nascia


Aderaldo Pereira dos Santos, mais conhecido no Movimento Negro como Gil.
No seu trabalho como Aderaldo. Adotou então, Aderaldo Gil. Ele foi trazido
para o Rio com apenas dois anos de idade, sendo o lugar ao qual foi criado, de-
senvolvendo suas paixões pelo cinema, pelo samba,
pela militância negra e sindical, pelos animais e pelo
mar. Começou a trabalhar cedo no banco, mas de-
pois de desistir de fazer cinema, por considerar a
dificuldade de se manter, fez faculdade de Direito,
desistiu; e resolveu fazer História, na UFF.
Pós doutorado em História pela UFF (2022)
com o militante negro Vicente Ferreira como tema;
Doutor em História da Educação pela UFRJ (2019)
tendo o Professor Hemetério José dos Santos, pri-
meiro professor negro do Instituto de Educação e
do Colégio Militar, como tema – “Arma da Educa-
ção: Cultura Política, Cidadania e Antirracismo nas
experiências do Professor Hemetério José dos San-
tos”; Mestre em Educação pela Universidade do Es-
tado do Rio de Janeiro (2007); Especialização em História da África e do Negro
no Brasil pela Universidade Cândido Mendes (2008); Especialização em História
do Século XX pela Universidade Cândido Mendes (2001); Graduação em História
pela Universidade Federal Fluminense (1992); Professor de História do DEGA-
SE e da FAETEC; Coordenador de pesquisa do Centro de Memória da FAETEC
(CEMEF); Pesquisador do Centro de Documentação e Memória do DEGASE (CE-
DOM).
Suas lutas eram também temas de seu trabalho e aguerrida militância: His-
tória da educação de negras e negros; protagonismo de negras e negros na

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História; Movimento Negro e a luta antirracista; Educação em ambientes so-
cioeducativos; Ensino da História da África e dos afrodescendentes na diáspora;
Educação antirracista.
Aderaldo Gil era um homem calmo e tranquilo, porém muito firme nas
suas convicções e palavras. Sempre encarou a vida de forma leve e serena, des-
prendido de qualquer obsessão por objetos materiais. Seu amor pelo samba se
expandia nas suas composições, seu amor pela vida era nos ensinado em cada
conselho, cada palavra de conforto e cada incentivo para encarar as adversida-
des de forma mais leve, mas nunca deixando de lado as lutas para uma socie-
dade antirracista.
Começou a militar após ver uma banquinha na rua convocando para a
Marcha contra a farsa da abolição. Foi um dos mais aguerridos organizadores. É
possível ouvir sua voz no vídeo sobre a Marcha de 1988. Integrou o IPCN, mem-
bro da coordenação da Campanha dos 21 dias de ativismo contra o racismo. Foi
militante no sindicato dos bancários, da Associação de Professores do DEGASE
e também da FAETEC.
Em 25 de março deste foi internado com sepse respiratória em um hospi-
tal de Maricá, onde faleceu após 3 meses de muita luta – como sempre, aos 61
anos.
Deixando viúva, Luciene Lacerda, e seus dois filhos, Glauber Machel e Ana
Luiza, e seu enteado, Luan Thambo.
Esse gentil, amoroso, afetuoso, companheiro, e um excelente pai e padras-
to deixou saudades e amigos por onde passou. Um historiador que fez história
e recolocou na história importantes militantes da luta antirracista. Esta luta que
nós ainda temos tanto a fazer.

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SUMÁRIO
Apresentação .................................................................................................. 07

Ana Lúcia da Silva Raia


Corpos negros na luta pelo não-ser: o que há por
detrás dessas máscaras brancas? ........................................................ 16

Ana Cláudia Pinto da Silva


Corpos negros, identidades e racismo: um estudo sobre
o não pertencimento étnico-racial de meninas negras no
ambiente escolar ............................................................................................. 34

Danielle Tudes Pereira Silva


A literatura negra como lugar de fala e escuta ............................. 42

Valéria Paixão de Vasconcelos Nepomuceno


Vivências do povo da oralidade ............................................................. 62

Fabiana Helena da Silva e Jarlane de S. Lima


“aqui eu não sou a outra, mas sim eu própria”: reflexões
sobre a escrita autoetnográfica de mulheres negras
acadêmicas ........................................................................................................ 75

Amanda Neres de Castro


Sambando em discursos carnavalescos: a emergência do
letramento racial crítico em diálogo com a reflexão
decolonial ............................................................................................................ 90

Maria Alice Garcia de Mattos


“caraca, tia! Eu moro ali!” - o “almanaque da vizinhança: vila
cruzeiro e a pedagogia territorial ......................................................... 113

5
Diomario da Silva Junior e Vinícius de Luna Chagas
Costa
Nossa cabeça pensa onde os pés pisam: saberes
geográficos e militantes ......................................................................... 125

Carla Cristina Goulart Farias


Fora da lei: o racismo como pano de fundo da violência
nas escolas .................................................................................................... 145

Fabiana Helena da Silva e Luiz Fernandes de Oliveira


Penso, mas não existo: por uma educação decolonial
para a existência ........................................................................................ 157

Kátia Antunes Zephiro


Pedagogia da alternância nas licenciaturas
interculturais indígenas ......................................................................... 170

Kátia Antunes Zephiro, Fabiana Helena da Silva e


Jarlane de S. Lima
Educação do campo e base nacional comum curricular:
proposições e incongruências ........................................................... 184

Ediléia de Carvalho Souza Alves e Suelen Pereira


Estevam
Os elos que a educação do campo constrói para uma
formação antirracista ............................................................................. 197

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APRESENTAÇÃO

Em 2021, o Grupo de Pesquisa gerir e reproduzir o sistema capita-


em Políticas Públicas, Movimentos lista. Essa luta é vivenciada em vários
Sociais e Culturas (GPMC) completou espaços, seja em casa, no cotidiano
10 anos de existência. Nesse ano pu- das ruas, entre conhecidos e amigas,
blicamos o livro 10 anos de insurgên- nas universidades, nas escolas, no
cia: sínteses do Grupo de Pesquisa trabalho, nas redes sociais ... Mas, a
em Políticas Públicas, Movimentos cada leitura ou reflexão que fazemos
Sociais e Culturas. Essa publicação (individual ou coletiva) percebemos
divulgou 26 textos resultantes de o quão dura e difícil é a tarefa de
investigações de 26 pesquisadores construir mecanismos sólidos para
do GPMC. Este segundo livro que ora resistir e transpor o caos, a violência,
apresentamos é uma continuação as profundas desigualdades sociais
de nosso movimento coletivo de esti- e econômicas, os extermínios da/
mular escritas e reflexões que expres- na natureza, os genocídios e todas
sem uma perspectiva crítica decolo- as formas de conservadorismos, es-
nial e interseccional. Aqui veremos pecialmente os da extrema direita
outras pesquisas e outros enfoques, fascista que nos atingem cotidiana-
fruto de um longo trabalho coletivo. mente..
Em nossos diversos estudos so- Nos encontros do GPMC, pre-
bre colonialidade, trabalho, racismo, senciais ou remotos, contamos com
feminismos, territorialidades, cultu- mulheres e homens de diferentes for-
ras e tantos outros temas, sempre mações acadêmicas. Uma parcela
aprendemos que se faz necessário o significativa do grupo é formada por
engajamento numa luta política per- mulheres, professoras, negras, mães –
manente de enfrentamento das múl- algumas solo -, filhas, companheiras
tiplas opressões estruturadas para e com utopias coletivas e individuais.

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Algumas dessas mulheres têm mais Lugones discute a colonialidade de
de 10 anos de experiência no magis- gênero e ressalta que o olhar arro-
tério. Avançamos mais ainda em nos- gante eurocentrado decide quais
sa identificação: a maioria de nós se são os corpos que podem existir
encaixa naquele termo clássico do e quais devem ser invisibilizados e
conhecimento ocidental: somos clas- subalternizados. Analisa aspectos
se trabalhadora. da vida e obra de Carolina Maria de
O GPMC agrega pessoas a par- Jesus e a Escrevivência de Concei-
tir de um compromisso tácito de que ção Evaristo, com destaque para a
estudos e análises da realidade ra- análise da personagem Ponciá Vi-
cial, política, feminista e de classe cêncio de “Becos da Memória”, arti-
traz a exigência de uma ação políti- culando os conceitos no campo da
ca visando transformações sociais. E decolonialidade com o conceito de
esse é um dos objetivos de mais uma historicídio de Wallace de Moraes.
publicação intitulada “Tempos de Es- Ana Cláudia Pinto da Silva es-
perançar: Antigas e Novas Insurgên- creveu “Corpos negros, identidades
cias” em que as/os 16 autoras/es pro- e racismo: um estudo sobre o não
duziram textos que registraram suas pertencimento étnico-racial de me-
pesquisas, suas vivências e suas ninas negras no ambiente escolar”
práticas educativas em territórios e que é parte de sua pesquisa de
períodos diferenciados de suas his- Mestrado. Suas perguntas “sobre
tórias de vida. a relação de meninas negras com
Ana Lúcia da Silva Raia abre o seu cabelo crespo e pertenci-
essa coletânea com o seu artigo mento étnico-racial no ambiente
intitulado “Corpos negros na luta escolar” partem de suas vivências
pelo não-ser: o que há por detrás como mulher e educadora e re-
dessas máscaras brancas?”. A auto- correu à narrativa autobiográfica
ra articula as ideias de Audre Lorde como percurso metodológico. Seu
e Frantz Fanon com o pensamento texto discute como os padrões es-
de autores decoloniais como Anibal téticos e as referências positivas
Quijano, Walter Mignolo e Maldona- são baseados na branquitude e
do Torres para trazer a discussão são construções histórico-sociais
sobre como o privilégio epistêmi- que estruturam e afetam a autoes-
co dos corpos brancos ocidentais tima das crianças negras, negam
perpetua as injustiças, deprecian- suas histórias e culturas e produ-
do e desvalorizando esse corpo ne- zem efeitos negativos no processo
gro como um não-ser. Com Maria de escolarização. O artigo também

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trata do silenciamento dos docen- ratura universalizadora vai tam-
tes e dos currículos diante das te- bém criar uma determinada ideia
máticas que envolvem o racismo. de nação e forjar um herói nativo
Trabalha os conceitos de represen- fundador da literatura nacional. A
tatividade, diferença, identidade, autora parte da formulação de que
além de definir o cabelo como um precisamos forjar caminhos para a
marcador identitário fundamental construção de Pedagogias Deco-
para a criação de uma identidade loniais. Seu texto historiciza e con-
positiva. Seu texto dialoga com as ceitua Literatura Negra, trazendo a
formulações de Nilma Lino Gomes, atuação de escritoras, escritores e
Grada Kilomba, Eliane Cavalleiro e dos Movimentos Negros como re-
Stuart Hall. pertório para enfrentarmos o epis-
Danielle Tudes Pereira Silva temicídio com referências positivas
escreve o texto intitulado “A lite- e novas utopias.
ratura negra como lugar de fala e Valéria Paixão de Vasconce-
escuta”, parte de sua pesquisa de los Nepomuceno em “Vivências do
doutorado sobre as contribuições povo da oralidade” apresenta a sua
da Literatura Negra na construção história de vida através de recortes
de Pedagogias Decoloniais. O ar- de suas memórias de cor e de an-
tigo conceitua Literatura e Litera- cestralidade numa família inter-ra-
tura Negra e situa historicamente cial. Os cabelos, a cor da pele, os
como na modernidade o conceito apelidos, as “brincadeiras” forma-
de raça e o racismo, como um sis- ram vivências de dor, de conflitos,
tema estrutural de exploração e de resistência e de transformação.
exclusão, atravessaram os proces- Professora, mãe, moradora da Bai-
sos de criação literária no Brasil. A xada Fluminense, precisou fazer
relação estabelecida pela autora escolhas e uma delas veio através
entre os conceitos de distopia e o de um panfleto que anunciava bol-
processo histórico da colonização sas para estudantes de origem po-
é apresentada como uma “disto- pular, negros ou afrodescendentes
pia Colonial”, aliada ao tratamento que fossem da primeira geração
acerca da diáspora africana e do da família a entrar na graduação.
“genocídio” dos povos indígenas e A narrativa apresenta os caminhos
africanos que conecta-se ao con- de formação e de produção aca-
ceito de “epistemicídio”, traçando dêmica e política percorridos pela
parte do panorama conceitual do autora e os seus aquilombamentos
artigo. Tudes traz como uma Lite- em grupos de pesquisa que tratam

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das questões étnico-raciais des- tratamos dos grupos classificados
de a graduação. Em seu texto “es- como minorias, conceito apresen-
crevivente” encontraremos outros tado no texto a partir das formula-
conceitos dispostos como os de ções de Muniz Sodré. A experiência,
pensamento abissal e pós-abissal, as memórias e os pertencimentos
de ecologia de saberes. Como fer- culturais das pesquisadoras na tra-
ramentas pedagógicas a autora jetória de construção dos conteú-
propõe, a partir das formulações dos da escrita são valorizados no
de Catherine Walsh, a intercultura- texto como possiblidade discursiva
lidade crítica e a decolonialidade contra-hegemônica e decolonial.
como pressupostos analíticos dos Amanda Neres de Castro, em
processos de luta e das formas de seu texto “Sambando em discursos
pensar a diversidade e a educação carnavalescos: a emergência do le-
das relações étnico-racial para a tramento racial crítico em diálogo
área da formação de professores. com a reflexão decolonial” anali-
Fabiana Helena da Silva e Jar- sou as marcas da colonialidade e
lane de S. Lima escrevem o texto do racismo presentes nos sambas-
“Aqui eu não sou a outra, mas sim -enredos campeões, em diferentes
eu própria: reflexões sobre a es- anos, de quatro Escolas de Samba
crita autoetnográfica de mulheres do Grupo Especial da Cidade do
negras acadêmicas”. As autoras Rio de Janeiro: Imperatriz Leopol-
trazem o conceito de “autoetnogra- dinense, Beija-Flor, Mangueira e
fia” de Daniela Beccacia Versiani e Grande Rio. Segundo a autora, o
desenvolvem uma discussão acer- samba-enredo é um produto nacio-
ca das “sujeitas autoras” negras, nal de grande visibilidade, que pro-
mulheres que tomam posse da es- paga diferentes discursos identitá-
crita na primeira pessoa e dão vi- rios e também apresenta criações
sibilidade às suas subjetividades, discursivas colonialistas e racistas
contam suas histórias e memórias que reforçam o silenciamento da
e desempenham um duplo papel população negra. Para a análise
de pesquisadoras e sujeitas de sua das letras dos sambas-enredos os
pesquisa. Esse método permite a seus referenciais teóricos pauta-
aproximação da/o pesquisador/a ram-se no letramento racial crítico
com o objeto de pesquisa, contex- em diálogo com a reflexão decolo-
tualizando os fenômenos sociais e nial, buscando compreender a vio-
promovendo a consciência das/os lência colonial sofrida na América
sujeitas/os, especialmente quando a partir da perspectiva Modernida-

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de/Colonialidade e a sua manuten- levantamento tecido no âmbito da
ção ainda na contemporaneidade. pesquisa. Assim, é possível desta-
O texto nos remete ao passado car no texto falas que exprimem
com a história do samba no terri- o encantamento com um material
tório da Pequena África, além de que agrega o território que vivem
contextualizar cada samba anali- ao conteúdo curricular, seus afeta-
sado, terminando com os insurgen- mentos a partir das experiências/
tes “História para ninar gente gran- vivências do/no território, susci-
de” (2019) – Mangueira -, que revela tando, assim, uma possibilidade de
os verdadeiros heróis e heroínas intervenção prática a qual denomi-
da população, e “Fala, Majeté! Sete na Pedagogia Territorial.
chaves de Exu” (2022) - Grande Rio, Diomario da Silva Junior e Vi-
que traz à tona uma cosmovisão nícius de Luna Chagas Costa escre-
marginalizada do povo de terreiro vem o texto “Nossa cabeça pensa
dos Candomblés e das Umbandas. onde os pés pisam: saberes geo-
Maria Alice Garcia de Mattos gráficos e militantes” onde relatam
no texto “‘Caraca, tia! eu moro ali!’ uma experiência de trabalho de
- O “Almanaque da Vizinhança: Vila campo com integrantes do GPMC,
Cruzeiro” e a Pedagogia Territorial” coordenada pelos autores na Zona
apresenta um relato de experiên- Portuária da cidade do Rio de Ja-
cia que aborda a interação de uma neiro por meio de intervenções
turma do 3° ano do ensino funda- geoculturais e históricas. O foco
mental, de uma escola pública mu- da ação formativa foi o de regis-
nicipal situada na Vila Cruzeiro, trar as marcas das espacialidades
com o “Almanaque da Vizinhança: negras no território, pontuando a
Vila Cruzeiro”, desde a sua concep- questão racial na abordagem das
ção o texto toma o encantamento desigualdades espaciais, apresen-
que brota da curiosidade acolhi- tando outras abordagens de sabe-
da, bem como recorre a Paulo Frei- res geográficos e urbanos. O estu-
re para situar o/a leitor/leitora na do empírico in loco trouxe para os
compreensão da palavramundo sujeitos participantes a experiên-
como orientação para a atividade cia teórico-prática de produção
pedagógica desvendada. Numa de sentidos acerca dos processos
narrativa textual e imagética, com- sociais e históricos, da demogra-
posta pelas produções das crian- fia e da visualização de como his-
ças, a autora costura as impressões toricamente as políticas públicas
da turma sobre o território com o na região impactaram o espaço de

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uso da cidade, promovendo ações gumentos utilizados pela extrema
racistas. Ao caminhar pela chama- direita que tornam insignificantes
da Pequena África, o território em as vidas dos membros das chama-
questão foi pensado a partir da das minorias. A autora traz em sua
denominação oficial de Circuito análise o conceito de necropolítica
da Herança Africana. A forma de de Achille Mbembe e alerta para
narrar este lugar de memória, por as violências cotidianas que são
parte dos autores, ao ocuparem as chamadas de “brincadeiras”, estas
ruas da cidade, trouxe uma estreita fazem com que o racismo seja con-
relação com a cultura, alternando siderado um “crime perfeito” nas
narrativas históricas e geográficas, palavras de Kabengele Munanga. O
mapas, poesias e músicas que va- artigo indica a necessidade de que
lorizaram o papel político da região o currículo caminhe na construção
como braço cultural na luta antir- de um letramento racial e de práti-
racista. cas que contemplem a diversidade
Carla Cristina Goulart Farias humana, que combatam o racismo
produziu o texto “Fora da lei: o ra- e outras formas de opressão.
cismo como pano de fundo da Fabiana Helena da Silva e Luiz
violência nas escolas” onde reflete Fernandes de Oliveira produziram
como as diversas formas de vio- o texto “Penso, mas não existo: por
lência que acontecem no mundo uma educação decolonial para a
interferem nas instituições sociais. existência” onde descrevem e ana-
A partir de recortes geográficos e lisam uma experiência vivida com
temporais este artigo traz uma re- jovens quilombolas no momento de
flexão acerca do aumento de casos ingresso ao curso de Licenciatura
de violência com armas de fogo ou em Educação do Campo da Univer-
objetos cortantes em escolas pú- sidade Federal Rural do Rio de Ja-
blicas ou privadas em diferentes neiro – LEC/UFRRJ. A formação ofe-
estados brasileiros, com indica- recida neste curso reverte as bases
dores que chocam a sociedade e do pensamento excludente, dando
promovem uma cultura do medo. oportunidade de acesso aos povos
Os discursos de ódio se propagam do campo, quilombolas, indígenas,
nas redes sociais e em plataformas de terreiros e periféricos, através
virtuais fechadas, a exaltação de de uma seleção diferenciada, con-
uma supremacia branca e a defesa sumado na escrita de um memorial
de armar a população como forma e de questões sobre a relação do
de autodefesa, são alguns dos ar- candidato com o campo. A partir

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do contato com uma Comunidade análises realizadas, o artigo
Quilombola percebeu-se que não destacou a questão da utilização
bastava entregar o edital de se- da Pedagogia da Alternância como
leção para ingresso a LEC, existia base pedagógica das Licenciaturas
uma real necessidade de um acom- Interculturais. A autora apresenta a
panhamento à leitura do mesmo, origem e o conceito de Pedagogia
assim como auxiliar com o uso das da Alternância, os motivos para essa
ferramentas de inscrição. Com in- escolha pedagógica/metodológica
tuito de sanar dúvidas, foram rea- para as Licenciaturas Interculturais,
lizadas oficinas de escrita para a os dilemas e desafios para que
construção de textos de suas his- a Pedagogia da Alternância não
tórias de vida, trajetórias e relação se restringisse aos tempos de
com o campo. Compreendendo aprendizagem, mas como uma
que para essas pessoas, historica- metodologia de ensino. Por fim,
mente excluídas, encaminhá-las ao destaca alguns pontos importantes
ensino superior é um ato contra- para utilização dessa pedagogia
-hegemônico e decolonial, aconte- nas Licenciaturas Interculturais.
ceu uma mobilização junto a jovens Kátia Antunes Zephiro, Fabia-
quilombolas para possibilitar que na Helena da Silva e Jarlane de S.
os mesmos ingressassem na uni- Lima escreveram o texto “Educação
versidade, pois num contexto de do campo e base nacional comum
negação de direitos, estudar é re- curricular: proposições e incon-
beldia, é potência, é romper o ciclo gruências”. O artigo tem por obje-
de violência colonial. tivo apresentar uma reflexão sobre
Kátia Antunes Zephiro escre- os impactos da Base Nacional Co-
veu o artigo “Pedagogia da alter- mum Curricular sobre a Educação
nância nas licenciaturas intercul- nos processos de construção do
turais indígenas” que é decorrente currículo da Educação do Campo.
de sua tese de doutoramento. A As autoras apresentaram um bre-
pesquisa versou sobre a trajetória ve histórico de como surgiu a área
da implementação do Prolind de currículo, demonstrando que a
(Programa de apoio à formação construção curricular não é neu-
superior de professores indígenas), tra e atende a projetos de futuro e
iniciado no ano de 2005, com de seres humanos desejados para
objetivo de criar e expandir cursos um determinado tipo de socieda-
de Licenciatura Interculturais de. Abordaram o conceito de Edu-
Indígenas pelo país. Dentre as cação do Campo e a história desse

13
conceito atrelado aos movimentos cos decoloniais para transgredir o
sociais do campo e as expectati- sistema canônico que a universida-
vas educacionais estabelecidas a de sustenta. Através das experiên-
partir da discussão do que é uma cias em sala de aula, as docentes
educação do campo. Indicaram al- se propõem a enfrentar essa lógica
guns aspectos da legislação para colonial, construindo de forma ho-
Educação do Campo no que tan- rizontal o diálogo entre o cotidia-
ge ao currículo e objetivos dessa no da sala de aula, as experiências
proposta educativa. Por fim, elen- sociais e raciais suas e dos estu-
caram algumas características da dantes, com a produção do conhe-
Base Nacional Comum Curricular e cimento. Tessitura necessária para
como a mesma pode interferir nos a construção de uma sociedade e
objetivos e práticas curriculares uma educação antirracista.
das escolas do campo. Assim surgiu o nosso livro
Ediléia Carvalho e Suelen Pe- Tempos de Esperançar: Antigas e
reira Estevam escreveram o texto Novas Insurgências, que brota nos
“Os elos que a educação do campo difíceis tempos de luta contra a
constrói para uma formação antir- desesperança e que mais do que
racista” que trata de navegações, resistir continuamos na luta por
uma bio-travessia. As duas auto- um outro mundo que construa nas
ras têm como objetivo partilhar as utopias a esperança como verbo
suas experiências como educado- e ação contínua por novas episte-
ras, mulheres periféricas, que nas mologias, por todas as energias de
encruzilhadas da vida se encon- resistência, por todas as ecologias
tram na universidade pública como para outros tempos. Não podemos
docentes em disciplinas diferentes, parar de esperançar como a se-
mas com a mesma perspectiva in- mente da ancestralidade que nos
telectual e nas semelhanças dos move para o porvir e que nos abre
seus enfrentamentos percebem as as asas nas lutas contra o fascis-
convergências nas suas práticas mo, contra o colonialismo que con-
pedagógicas e questionamentos tinua a praticar genocídios, contra
psicossociais/raciais. Descrevem o capitalismo que produz a miséria,
os caminhos pedagógicos que en- a barbárie e a naturalização das
contraram no curso de Educação desigualdades. O sonho abriga a
do Campo, pela perspectiva da Es- vida e acolhe a nossa existência.
crevivência e em outras autoras ne- Convidamos a todos para a
gras, os seus recursos metodológi- leitura dos textos do nosso livro e

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rendemos os nossos agradecimen- que um outro mundo seja possível
tos as/aos autoras/es que escre- e um bem viver se anuncie.
viveram suas subjetividades, que
exerceram o direito da escrita, que Ediléia de Carvalho Souza Al-
no exercício de suas leituras de ves1
mundo nos presentearam com as Kátia Antunes Zephiro2
suas produções. E, por fim, dedi- Luiz Fernandes de Oliveira3
camos esse livro ao companheiro Mônica Regina Ferreira Lins4
Aderaldo, que destinou a sua vida
à luta antirracista e estará sem-
pre presente, segurando as nossas
mãos como exemplo de vida e do
esperançar por outros tempos.
Como as/os leitoras/es verão,
está coletânea do GPMC se pre-
tende, mais uma vez, incentivar o
diálogo, a escuta, a troca de co-
nhecimento entre aqueles que a
modernidade-colonialidade tentou
invisibilizar. Num mundo repleto de
mazelas, de opressão de classe, de
racismo, de sexismo, de homofobia,
nós não nos curvamos e tentamos
plantar sementes para as futuras
gerações de crianças e jovens, para
1 Doutora em Educação. Professora substituta na Licenciatura em Educação do Campo-UFR-
RJ. Membro do Grupo de Pesquisas GPMC. Pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa:
“Espaços Educativos e Diversidade Cultural” (CNPQ) no âmbito do Programa: Escolas do
Território” - IEAR/UFF. Parceira no OTSS e no Fórum de Populações Tradicionais de Angra,
Paraty e Ubatuba.
2 Doutora em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contem-
porâneos e Demandas Populares (PPGEduc), da UFRRJ. Professora de História da rede
municipal de Angra dos Reis.
3 Doutor em Educação pela PUC-Rio. Professor Associado da Licenciatura em Educação do
Campo da UFRRJ. Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais
e Culturas (GPMC).
4 Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH-UERJ), Professora Associada
do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – CAp-UERJ e Professora do Pro-
grama de Pós-Graduação em Ensino Básico PPGEB/CAp-UERJ.

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CORPOS NEGROS
NA LUTA PELO
NÃO-SER: O QUE
HÁ POR DETRÁS
DESSAS MÁSCARAS
BRANCAS?
Ana Lúcia da Silva Raia1

Eu levo minha filha de dois anos num carrinho de super-


mercado em Eastchester, Nova York, em 1967 e uma ga-
rotinha branca passando no carrinho de sua mãe grita,
empolgada: “Olha, mamãe, uma empregada bebê!” E a sua
mãe te cala, mas não te corrige. E então quinze anos de-
pois, numa conferência sobre racismo, você ainda pode
considerar essa história humorística. Mas eu ouço que
sua risada é cheia de terror e doença. (LORDE, 2019)

1Mestra pelo Programa de Pós-graduação em Ensino em Educação Básica do CAp-UERJ.


Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Professora
Regente da Rede Municipal do Rio de Janeiro.

16
Lorde, ao relembrar o que pas- rostos negros, tornando-os invisí-
sou, expressou um sentimento de veis para lutarem por direitos, nos
raiva e dor. A cor da pele é ainda aprisionando para a produção de
referência para se perpetuar a des- riquezas para os colonizadores.
truição do corpo negro, depreciá- Para Lorde, ter o reconheci-
-lo, destruindo e desvalorizando os mento de sua filha como “emprega-
corpos, que são os condenados do da bebê” é desumano, devastador.
presente. Um privilégio epistêmico, Para uma criança estereotipar uma
em que corpos brancos ocidentais outra criança como um ser diferen-
perpetuam injustiças e caracte- te, inferior e pronto para lhe servir
rizam esse corpo negro como um nos dá a dimensão de como o ra-
não-ser. As colonialidades do ser, cismo e o preconceito são cultua-
do poder e do saber, ao se expandi- dos desde cedo e que pela cor da
rem encontram um terreno fértil em pele somos considerados diferen-
sociedades ditas como democráti- tes, inferiores.
cas. Fanon propõe um “novo huma- Qual mulher negra que se re-
nismo” onde deverão caber outros cusou a moldar seu corpo com
mundos, excluindo as diferenças uma máscara branca, não tem uma
entre brancos, negros, indígenas e história semelhante à vivenciada
haja respeito mútuo entre os po- por Lorde, em pleno século XXI? A
vos. Atualmente essas colonialida- mídia informa, descomprometida e
des, em suas facetas múltiplas, que sem emoção os fatos racistas que
nos últimos séculos, destruiu e ani- ocorrem no cotidiano social. Cor-
quilou corpos negros, indígenas e pos negros descobertos em resi-
LGBTQIAP+ e cada espaço social, dências luxuosas como escraviza-
geográfico, político e cultural num dos, vivendo em situação que fere
formato desumano e cruel, levan- o princípio da dignidade humana.
do-nos à Necrofilia Colonialista Corpos negros, em sua maioria, fe-
Outrocida2, conceituado por Mo- mininos, servem a corpos brancos
raes (2020a). que utilizam o discurso que, caso
Condenados do presente, pois não houvessem dado abrigo e co-
nos imputam uma suposta inferiori- mida aquele corpo negro, ele esta-
dade, nos impondo a crença de que ria em condições de mendicância,
precisamos usar máscaras brancas deixados ao relento. E podemos
para sobrevivermos às opressões. acreditar nesse discurso de violên-
Máscaras brancas moldadas aos cia? Uma prática e discursos que
2 Necrofilia Colonialista Outrocida é um conceito que visa materializar o desejo pela morte
de corpos negros, indígenas, corpos vistos pelo Estado e suas políticas públicas para serem
exterminados. “Tem por objetivo representar várias formas de assassinar literalmente ou psi-
cologicamente, diversos segmentos sociais de governados na sociedade (...)”. (MORAES,
2020a)

17
impossibilitaram esses corpos de que, ao visualizarmos nossa ima-
terem o direito de escolha, o direi- gem, vemos os traços do coloniza-
to à existência. A raiva que Lorde dor, apagando os símbolos que nos
expressou, ao ver sua filha sofrer conectam aos nossos ancestrais.
racismo, é a mesma que nós, mu- O colonialismo, estrutura de
lheres negras, reconhecemos em poder, sangrou a América Latina e
nosso cotidiano. Um duplo narci- atua, pela colonialidade como pa-
sismo, onde “o branco está fechado drão de poder, dominação e hie-
em sua brancura e o negro em sua rarquização de territórios, raças,
negrura” (FANON, 2008, p. 27), pois o culturas e epistemologias, numa re-
corpo branco só reconhece e res- lação de dominação. Para Mignolo
peita a imagem que vê no espelho, (2003, 2016) a “colonialidade é o lado
desvalorizando e subalternizando escuro da modernidade”, sendo uti-
culturas e vidas. lizada como estratégia de explora-
Segundo Adichie (2009) não ção e dominação. Por isso, desobe-
podemos ceder às narrativas úni- decer, “desobediência epistêmica”
cas, que reduzem indivíduos, este- (2008), implicando em “aprender a
reotipando-os. Temos que preser- desaprender para reaprender”, que
var esses corpos e suas histórias, decoloniza as formas de pensar/
buscando perspectivas plurais. ser/fazer/sentir.
Para Quijano, o colonialismo é
a relação de um povo que está sob Colonialidade de Gênero
o poder político e econômico de
outra nação e que a colonialidade - O arco-íris foge de mim.
... Nós somos pobres, viemos
não está limitada ao período colo-
para as margens do rio. As mar-
nial, demonstrando um vínculo en- gens do rio são os lugares do
tre passado e presente, com base lixo e dos marginais. Gente da
num padrão de poder, envolto no favela é considerado marginais.
conhecimento, autoridade, rela- Não mais se vê os corvos voan-
do as margens do rio, perto dos
ções sociais e trabalho.
lixos. Os homens desemprega-
Quijano ressalta que “é tempo dos substituem os corvos. (JE-
de aprendermos a nos libertar do SUS, 1960, p. 48)
espelho eurocêntrico onde nossa
imagem é sempre, necessariamente Os visinhos de alvenaria olha
os favelados com repugnancia.
distorcida” (QUIJANO, 2005, p.126).
Percebo seus olhares de odio
Segato ratifica que “o roubo mais porque ele não quer a favela
importante do processo colonial é aqui. Que favela deturpou o
a memória de quem somos: o es- bairro. Que tem nojo da pobre-
pelho” (SEGATO, 2018). Um espelho sa. Esquecem eles que na mor-

18
te todos ficam pobres. (JESUS, iguais na medida de suas diferen-
1960, p. 49) ças e a construção de mundos. Há
um suposto ensinamento, desde a
Lugones (2003) conceitua olhar infância, de que devemos ter um
arrogante se contrapondo ao olhar olhar arrogante sobre o outro, so-
amoroso, baseada nas ideias de bre o diferente. Corpos negros, a
Marilyn Frye. “La mirada amorosa partir dessa perspectiva arrogan-
se opone a la mirada arrogante” te, devem pertencer a outro mun-
(Frye, 1983, p. 75). As pessoas se loco- do, invisibilizado e subalternizado.
movendo, ao passarem por outras Segundo Lugones:
pessoas comendo lixo, talvez esbo-
çassem espanto ou apatia, não se De niña me enseñaron a perci-
dispondo a mergulhar no mundo bir arrogantemente. También
do outro. Para Lugones, perceber fui objeto de percepción ar-
rogante. Aunque no soy una
através desse olhar arrogante, é
mujer blanca/angla, queda cla-
não ter empatia com pessoas que ro para mi que puedo enten-
pertencem ao mundo daqueles que der mi entrenamiento infantil
possuem suas casas e alimentos. como perceptora arrogante y
Olhar arrogante que é atravessado mi haber sido objeto de per-
cepción arrogante sin hacer
pelo olhar eurocentrado de quem
ninguna referencia a varones
detém o poder de decidir quais se- blancos/anglos. Esto nos da
rão os corpos que devem existir. A una pista: el concepto de per-
Necrofilia Colonialista Outrocida cepción arrogante puede ser
(Moraes, 2020a) visa o desejo pela usado transculturalmente, y los
varones blancos/anglos no son
morte do corpo negro, retratado
los únicos perceptores arro-
por Carolina Maria de Jesus, com gantes. (LUGONES, 2003, p. 133)
o apagamento de suas histórias e
da própria existência, impondo um Olhar através de um patamar
historicídio3 (Moraes, 2020b). de Norte Global, em que mulheres
Diante dessa realidade, não brancas têm um olhar arrogante em
existimos num mesmo mundo. O relação às mulheres negras, homens
pertencimento a mundos, com his- brancos têm um olhar arrogante em
tórias diferentes, não nos impede relação ao homem negro e a mulher
de termos empatia, de sermos soli- negra. Corpos brancos veem o todo
dários, de nos amarmos, num olhar a partir do seu olhar do mundo.
amoroso, reconhecendo direitos Para Lugones há uma amplia-

3 Historicídio (MORAES, 2020b), conceito que se baseia no apagamento de lutas e resistên-


cias dos negros, indígenas e povos invisibilizados, Um apagamento que faz com que os/as
mais jovens não possuam referências de seus/as mais velhos/as, perdendo-se a cultura e a
história de seu povo.

19
ção do olhar arrogante a partir do rolina Maria de Jesus, pois apesar
momento em que o olhar mascu- de uma vida de fome e dores, lutava
lino se apropria da subjetividade pelos seus sonhos e por uma quali-
feminina. O homem se apropria ar- dade de vida para si e para aqueles
rogantemente dessa subjetividade que estavam no espaço da favela.
feminina, numa cultura falocrática. Lugones (2003) propõe uma
Carolina Maria de Jesus não se coalizão, respeitando a indepen-
casou, pois não suportava pensar dência, mas que também provoque
em ser autorizada a escrever pelo a interdependência, viajando entre
mando de um homem. mundos, semelhantes em algumas
dores e gozos e tão diferentes em
Os meus filhos não são sus- outras. Uma coalizão não somen-
tentados com o pão de igreja.
te entre corpos negros, pois se al-
Eu enfrento qualquer especie
cançarmos o mundo uma das ou-
de trabalho para mantê-los. E
elas tem de mendigar e ainda tras, respeitando as subjetividades,
apanhar. Parece tambor. A noi- conseguiremos nos identificar com
te enquanto elas pede socorro suas lutas, contradições e resistên-
eu tranquilamente no meu bar-
cias. Para Lugones:
racão ouço valsas vienenses.
Enquanto os esposos quebra
Luego quiero considerar esta
as tabuas do barracão eu e
práctica como una práctica ho-
meus filhos dormimos socega-
rizontal de resistencia frente a
dos. Não invejo as mulheres ca-
dos mandatos relacionados: el
sadas da favela que levam vida
mandato para las oprimidas
de escravas indianas. (JESUS,
de tener nuestras miradas fi-
1960, p. 14)
jas en el opresor y el mandato
concomitante de no vernos y
O olhar amoroso está intrinse- conectarnos unas con otras, en
camente ligado à empatia, equidade, resistencia a esos mandatos,
pois apesar de não experienciarmos viajando kla los “mundos” de
sentido de las otras. (LUGONES,
determinadas dores, possamos ter o
2003, p. 134-135)
entendimento das dores de quem vi-
vencia. Jesus (1960) viajou no mundo
Ao não nos identificarmos com
de outros corpos negros, o que não
esses corpos, adotamos um olhar
é se deixar oprimir, pois essa lógica
arrogante sobre o outro, segun-
descarta as estratégias de resistên-
do Lugones. Esse olhar arrogante
cia que existem nas mulheres que
não é somente masculino, pois é
passam por essas opressões. Con-
atravessado por relações de raça,
ceitos de liberdade e ajuda mútua
envolvendo tanto mulheres quanto
são a base do pensamento de Ca-
homens, que estão em situação de

20
classe e opressão. Corpos negros vivenciam, nes-
se trecho, uma extensão sociogê-
Resistir, respeitando nossas nica, numa exploração que gera
subjetividades dor e revolta, sendo subjugado nas
terras dos colonizadores. A perso-
Quando Ponciá Vicêncio resol- nagem Ponciá Vicêncio deixou sua
veu sair do povoado em que
família, deixou dores e a violência
nascera, a decisão chegou forte
sentida no corpo negro, mas não se
e repentina. Estava cansada de
tudo ali. De trabalhar o barro libertou da sensação de perda, da
com a mãe, de ir e vir às terras falta de vida em seu corpo. Ponciá,
dos brancos de mãos vazias. ao ser violentamente explorada,
De ver a terra dos negros co-
se perdeu de si. Passou a viver em
berta de plantações, cuidadas
um mundo de ilusões, sem sonhos,
pelas mulheres e crianças, pois
os homens gastavam a vida buscando outras diásporas. Pensa-
trabalhando nas terras dos se- va não ser humana, pois a colonia-
nhores e, depois, a maior parte lidade deixou seu corpo sem vida,
das colheitas serem entregues
um historicídio (Moraes, 2020b).
aos coronéis. Cansada da luta
Maldonado Torres (2017) relata
insana, sem glória, a que to-
dos se entregavam para ama- os reflexos da colonização nas sub-
nhecer cada dia mais pobres, jetividades, ressaltando a teoria
enquanto alguns conseguiam de Fanon (2008). Fanon destaca a
enriquecer todos os dias. Ela
questão da colonização e a ques-
acreditava que poderia traçar
tão de gênero. Lugones (2007, 2008)
outros caminhos, inventar uma
nova vida. E, avançando sobre ainda adiciona a relação de gênero
o futuro, Ponciá partiu no trem e sexualidade. Ressalta a diferença
do outro dia, pois tão cedo a entre o humano e o não humano.
máquina não voltaria ao po-
Para Lugones (2011, p. 16) “[...] a hie-
voado. E agora, ali deitada de
rarquia entre o humano e o não
olhos arregalados, penetrados
no nada, perguntava se valera humano é considerada um eixo
a pena ter deixado sua terra. central da modernidade colonial”.
O que acontecera com os so- A autora faz uma crítica ao mode-
nhos tão certos de uma vida
lo ontológico-maniqueísta, binário
melhor? Não eram somente so-
e dicotômico do sistema colonial/
nhos, eram certezas! Certezas
que haviam sido esvaziadas moderno.
no momento em que perdera o Segundo Walter Mignolo (2014,
contato com os seus. E agora p. 9) a “colonialidade do ser e do sa-
feito morta-viva, vivia. (EVARIS-
ber” se baseia no controle político
TO, 2017, p. 17-18)
e econômico e no “controle de gê-
nero e sexualidade”, defendido por

21
Lugones (2014). Para Quijano (2014, para a surpresa de todos, Ponciá
p.185) a colonialidade é um padrão moldou um boneco de barro com
de poder surgida com a moderni- uma das mãos decepadas. Ponciá,
dade. Segundo Mignolo (2024) Lu- com esse ato, tentou romper com a
gones discute colonialidade do ser colonialidade do poder, atravessa-
e do saber a partir da sexualidade da por gerações, pois demonstrou
e do gênero. a importância dos seus ancestrais.
Em Becos da Memória (2017) vô A colonialidade do poder utili-
Vicêncio morre quando Ponciá ain- za esses corpos para hierarquizar,
da era um bebê, mas quando co- categorizar e inferiorizar. Descolo-
meça a crescer, todos percebem a nizar é resistir. Lugones (2014) res-
semelhança da menina com o seu salta as relações de gênero e inter-
avô, pois ela arrastava seu braço secção com as categorias de raça,
cortado. Era a herança que vô Vi- classe e sexualidade, resistindo ao
cêncio deixara para Ponciá, pois a poder e descolonizando subjetivi-
menina andava com um dos braci- dades. Quijano (2005) destaca um
nhos escondido às costas e tinha a padrão de poder, surgido do pro-
mão fechada, como se não existis- cesso de colonização e sedimenta-
se. A mãe de Ponciá ficou muito as- ção do capitalismo moderno/colo-
sustada ao perceber a semelhança, nial e eurocêntrico somado à raça.
mas o pai da menina achou natu- Segundo Quijano:
ral. Vô Vicêncio, num momento de
desespero, assassinou sua esposa Um dos eixos fundamentais
desse padrão de poder é a clas-
e tentou tirar a própria vida, pois
sificação social da população
não aguentava mais as dores da in- mundial de acordo com a ideia
visibilidade, mas apenas conseguiu de raça, uma construção men-
decepar a sua mão. Uma prática tal que expressa a experiência
comum nos tempos da escravidão, básica da dominação colonial
e que desde então permeia as
tentando dar fim ao sofrimento e
dimensões mais importantes
violência a que eram expostos. do poder mundial, incluindo
Um trauma que Ponciá repro- sua racionalidade específica, o
duziu, após a tragédia vivida pela eurocentrismo. (QUIJANO, 2005,
família. Um trabalho que ganhou p. 227)

nova versão, mas continuava a não


ser reconhecido, pois pai e irmão Essa dominação colonial des-
trabalhavam na lavoura dos coloni- tacada por Quijano (2005) são a
zadores. Ponciá e sua mãe modela- base para a colonialidade do po-
vam o barro, enquanto esperavam der, de acordo com as subjetivi-
eles voltarem da lavoura. Um dia, dades. Em contrapartida, Quijano

22
(2005) não destaca a função das nas bonecas, nas cirandas e
mulheres na tríade entre o colo- cirandinhas eram brutalizadas
pelos filhos do senhor Pereira,
nialismo, capitalismo e raça, num
Moreira, Oliveira e outros por-
intenso domínio dos homens sobre queiras que vieram do além-
as mulheres, desqualificando o sa- -mar. O pai negro era afônico;
ber feminino. Não há uma homo- se pretendia reclamar, o patrão
geneidade entre as perspectivas impunha: - Cala a boca negro
vadio! Vagabundo! O único re-
femininas do Sul Global, demarcan-
curso era entregar para deus
do a pluralidade de saberes, atra- que é o advogado dos pobres.
vessadas pelas mulheres de acordo (JESUS, 2007, p. 37 - 40)
com a sua raça, classe, orientação
sexual, entre outras intersecções. Jesus ressalta os desmandos
Carolina Maria de Jesus des- do colonizador em relação aos cor-
taca a luta das mulheres negras, pos negros. Lugones (2008) contra-
apesar das suas dores, numa roti- ria a ideia universal em que homens
na incessante de resistência, sendo dominam mulheres. Para a autora,
invisibilizadas, inclusive, por seus nos países colonizadores, essas
companheiros. mulheres eram do lar, já nos países
colonizados há uma solidariedade
As mulheres pobres não ti- mútua nessas relações. Neste sen-
nham tempo disponível para
tido, os colonizadores definiram a
cuidar de seus lares. Às seis da
manhã, elas deviam estar nas raça, as formas de explorar esses
casas das patroas para acen- corpos e destruíram essa solida-
derem o fogo e prepararem a riedade, configurando o conceito
refeição matinal [...]. Deixavam de sistema moderno/colonial de
o trabalho às onze da noite.
gênero (Lugones, 2008), vivendo as
O homem pobre deveria gerar,
nascer, crescer e viver sempre mulheres sob várias dominações,
com paciência para suportar tentando resistir, sendo essas for-
as falácias dos donos do mun- mas de resistência apagadas pela
do. Porque só os homens é que colonialidade.
podiam dizer “Sabe com quem
Gonzalez (1988) ressalta que a
está falando?” para mostrar
sua superioridade. Se o filho raça, na América Latina, tem espe-
do patrão espancasse o filho cificidades, pois o racismo, duran-
da cozinheira, ela não deveria te o período colonial, representa “a
reclamar para não perder o ciência da superioridade eurocris-
emprego. Mas se a cozinheira
tã, branca e patriarcal (GONZALEZ,
tinha filha, pobre negrinha! O fi-
lho da patroa a utilizaria para o 1988, p. 71), um “modelo ariano de
seu noviciado sexual. Meninas exploração”, definindo a produção
que ainda estavam pensando acadêmica ocidental. Para a au-

23
tora, a implementação do racismo movimento da subjetividade ati-
pelos colonizadores ecoou um dis- va (LUGONES, 2003) baseadas nas
curso que destacavam a sua supe- diferentes formas de dominação,
rioridade. Segundo Gonzalez: onde essa dominação não aconte-
ceu apenas física e territorial, mas
Dessa forma, as sociedades pela perda da identidade linguísti-
que constituíram a América La-
ca, cultural, religiosa e psicológica.
tina são herdeiras destas hie-
rarquizações ideológicas que
[...] a colonialidade se refere a
classificam os sujeitos. Sendo
um padrão de poder que emer-
racialmente estratificadas, e
giu como resultado do colonia-
com isso, garantindo a superio-
lismo moderno, mas em vez de
ridade dos brancos, estas so-
estar limitado a uma relação
ciedades dispensam formas de
formal de poder entre os dois
segregação. (GONZALEZ, 1988,
povos ou nações, relaciona à
p.73)
forma como o trabalho, o co-
nhecimento, a autoridade e
Gonzalez (1988) ressalta o femi- as relações intersubjetivas se
nismo do Sul Global e sua impor- articulam entre si através do
tância pois amplia o entendimento mercado capitalista mundial
e da ideia de raça. Assim, ape-
das relações raciais no Brasil e na
sar do colonialismo preceder
América Latina, de acordo com as a colonialidade, a colonialida-
opressões e formas de resistir. Com de sobrevive ao colonialismo.
base no Ocidente, corpos femininos [...] Neste sentido, respiramos a
subalternizados são observados a colonialidade na modernidade
cotidianamente (MALDONADO-
partir do local da subalternização.
-TORRES, 2007, p.131)
Essas experiências, a partir do Sul
Global, nos dá condições de obser-
Retirar os colonizadores dos
var a opressão e a resistência, com
territórios não extermina o colonia-
base no conceito de “subjetividade
lismo. Há raízes profundas, com a
ativa” (LUGONES 2003), definindo “a
permanência nos costumes, cultu-
volta para dentro, em uma política
ra, língua, entre outros. Para Fanon
de resistência, rumo à libertação”
há o “pretenso complexo de inferio-
(LUGONES, 2014, p. 940).
ridade e dependência do coloniza-
A consolidação intencional de
do” (FANON, 2008, p. 83).
determinadas mulheres num papel
A eficácia do colonialismo ao
de subalternizadas é construída
implantar o hábito no inconscien-
na interação, pois Gonzalez (1988)
te coletivo dos corpos negros co-
destaca a construção intersubjeti-
lonizados dificulta o movimento de
va do racismo na América Latina,
resistência. Fanon propõe uma res-
ampliada para a compreensão do

24
posta violenta, de enfrentamento de ter morrido, mas estou aqui.”
para a eliminação dessa opressão. (EVARISTO, 2013, p. 70-71)

Há uma busca para o Sul Global


resistir ao imperialismo do Norte Apesar de ter nascido livre,
Global europeu, branco, cristão, ra- após a Lei do Ventre Livre a diáspo-
cista e desafiar o controle político ra atravessa todo o texto, tio Totó
e de saberes, destruindo a colonia- trabalhou na lavoura por toda a
lidade do poder, abrindo espaço vida, levando a dor da separação
para a decolonialidade do saber. de seus ancestrais. “A vida passou e
passou trazendo dores” (EVARISTO,
Escrevivências 2013, p. 24). Já não havia distinção
em sua memória das histórias que
No romance, Becos da Memó- faziam parte de sua vida daquelas
ria (2013), o personagem tio Totó que foram vividas pelos donos das
passou por inúmeras diásporas, fazendas pelas quais trabalhou.
separando-se do seu povo. Adaptou-se, durante toda a vida,
às culturas dos senhores, escon-
Tio Totó sempre fora um ho- dendo sua religião para não ser
mem de riso e sorrisos fartos. expulso da fazenda com sua famí-
Ele viera de pais escravos. Vie- lia. Tio Totó queria se libertar da
ra são, salvo e sozinho da ou-
opressão, mas não tinha coragem
tra banda do rio, deixando nas
águas, o melhor de seu. Viera de, mais uma vez, fazer a travessia.
de uma primeira e de uma se- Através da linguagem do co-
gunda mulher morta. Viera de lonizador, ao falarmos, assumimos
filhos mortos. Estava no ter- sua cultura, civilização, compreen-
ceiro casamento, cumpria seu
dendo significados de sua configu-
tempo de vida com seus 90 e
tantos anos e até bem pouco ração gramatical (GROSFOGUEL,
tempo, ria gostoso, ria liberto. 2009). O colonizado se apropria da
Seu riso, sua gargalhada foi língua do colonizador exterminan-
rareando quando ele começou do sua própria língua e cultura.
a envelhecer. Tio Totó custou a
A linguagem, depois da raça, é o
se tornar um velho. Aos 80 anos
era um moço. E gostava de re- maior fator de colonização, pois o
petir: eu não sou de morte fácil, corpo negro, ao dominar a língua
de vida difícil, sim! De todas as do colonizador, se embranquece.
suas histórias, a que ele gos- O complexo de inferioridade
tava mais de contar e repetia
assimilado pelo negro é uma epi-
sempre era da travessia do rio.
Sempre começava assim: “Che- dermização do racismo, pois o ne-
guei são, salvo e sozinho na gro busca imitar o branco. Quanto
outra banda do rio. Gostaria mais tentar se assemelhar ao bran-

25
co, mais há o distanciamento de ligada à animalidade. Há a ideia de
sua raça, pois perde sua identida- que o homem branco é universal, já
de, língua e cultura. O corpo negro o homem negro está ligado à na-
quer “encarar o olhar branco” e se tureza, atraso e todo estereótipo,
descobrir nesse olhar, tentando en- incompatibilizado com o social po-
contrar o “eu” pelo crivo do outro, o lítico (Fanon, 2008). Neste sentido, o
branco. desejo por ser branco ou agir como
branco é pertencer a zona do ser.
O conhecimento do corpo é Carolina Maria de Jesus mer-
unicamente uma atividade de
gulhou nessa zona do não-ser, pois
negação. É um conhecimen-
um corpo negro subserviente, sem
to em terceira pessoa. [...] Eu
acreditava estar construindo direitos, é tolerado, mas a partir do
um eu fisiológico, equilibrando momento em que esse corpo negro
o espaço, localizando as sen- luta por seus direitos, torna-se um
sações, e eis que exigiam de
potencial corpo a ser exterminado.
mim um suplemento. “Olhe, um
preto!” (...) “Mamãe, olhe o preto,
- Se me fosse possível explicar
estou com medo!” (FANON, 2008,
tantas coisas! Mas o tempo
p. 104)
também é professor e te ensi-
nará. Os que aprendem por si
Há uma invisibilidade desse próprios aprendem melhor. Tra-
corpo negro, segundo Fanon, sen- balhamos quatro anos na fa-
do reduzido a uma não existência, zenda. Depois o fazendeiro nos
expulsou de suas terras.
de acordo com os padrões do bran-
Vão embora não os quero na
co, pois para os brancos, todos os minha fazenda. Vocês não me
negros são iguais (FANON, 2008). O dão lucro. Só me dão prejuízos,
racismo é uma “aberração afetiva” a sua lavoura é fraca.
que atinge negros e brancos, pois Ele vendia mil sacos de café
classificado, o café moca. Ven-
não existe um “problema negro”,
dia cem porcos gordos para
livrando a responsabilidade do frigoríficos, e nós ganhávamos
branco. Há um “problema branco”, trinta mil-réis com as verduras
mas não em sua essência (GROS- e ele queria divisão.
FOGUEL, 2009). Nestas fazendas só o fazendei-
ro tem o direito de ganhar di-
Segundo Fanon, baseado na
nheiro. [...] O fazendeiro entrou,
dialética hegeliana, há a zona do fechou a porta dizendo:
ser e a zona do não-ser, em que o - Oh! Se ainda existisse o tron-
homem branco ocupa a primeira. A co! (JESUS, 2007, p.167)
zona do ser está ligada à superiori-
dade, humanidade e existência e a Um quadro atual, com o cres-
zona do não-ser está intimamente cimento do agronegócio no país,

26
pois o que importa é o lucro desen- nização, se baseia no sistema co-
freado em detrimento da vida dos lonial de gênero, que exclui as mu-
trabalhadores e consumidores. Mi- lheres negras. Não são visíveis para
lhares abaixo da linha da pobreza, a colonialidade e foram excluídas
enquanto um percentual mínimo das lutas em nome da “mulher” (LU-
com a maior fatia das riquezas do GONES 2008), configurando o pro-
país, impondo regras para a políti- cesso de invisibilidade dos homens
ca social e econômica. negros e mulheres brancas.
Há uma relação entre o coloni-
O corpo negro e as zado e a metrópole, pois a coloniza-
subjetividades ção torna inferior as subjetividades
dos indivíduos colonizados. Os po-
Mulher sensível, inferior, frágil vos colonizados, atravessados pela
não se refere à mulher negra, que opressão, interiorizam a inferiori-
historicamente foi animalizada e, dade em razão do “sepultamento
caracterizada como “sem gênero”, de sua originalidade cultural” (FA-
oprimidas, colonizadas pelo siste- NON, 2008, p. 34). Esse corpo só é
ma colonial que relaciona raça e considerado branco ao incorporar
gênero e não receberam o apoio valores e discursos eurocentrados.
de seus pares, pois homens negros O Ocidente é o padrão, pois indí-
colonizados, em sua maioria, não genas e negros eram vistos como
se insurgiram à opressão de suas sub-humanos. A cultura europeia
companheiras, em termos de gêne- é o padrão de civilização e os po-
ro. vos colonizados são os selvagens,
numa Necrofilia Colonialista Ou-
Historicamente, no se trata trocida, apresentada por Moraes
simplesmente de una traición
(2020a).
por lós hombres colonizados,
Para Quijano (2014) a coloniali-
sino de una respuesta a una si-
tuación de coerción que abar- dade perpassa o colonialismo, lhe
co todas las dimensiones de incutindo intersubjetividades. Ape-
la organización social. [...] La sar do fim do período colonial, as
cuestión aqui es poe qué esa
formas de colonização epistêmi-
complicidad forzada continúa
ca prevalecem. O conceito de raça
aun em el análisis contemporâ-
neo del poder (LUGONES, 2008, foi utilizado pelo colonizador para
p. 76) classificar negros e indígenas es-
cravizados. Neste sentido, “os euro-
Questão importante para o fe- peus foram levados a se sentir não
minismo decolonial é que a base do só superiores a todos os demais
capitalismo estabelecido pela colo- povos do mundo, mas, além disso,

27
naturalmente superiores (QUIJA- ca improvisada, o turbilhão, a
NO, 2005, p. 121). Os homens estabe- vida, a morte, tudo indo de rol-
dão.
leciam as normas e controlavam as
Totó alcançou só a outra ban-
mulheres e a sua sexualidade, com da do rio. Uma banda de sua
discursos hegemônicos. Lugones vida havia ficado do lado de lá.
(2014) criou o conceito “colonialida- (EVARISTO, 2013, p.34-35)
de de gênero”, ressaltando a domi-
nação dos povos da América pelos Mulher e filha ficaram no Atlân-
colonizadores. Essa colonização tico e sobraram os trapos. Talvez
supervalorizou a cultura ocidental, os trapos, aos olhos do coloniza-
resultando na aculturação e perda dor, valessem mais do que os cor-
da identidade desses povos. pos negros femininos. Lugones diz
Evaristo narra histórias que que devemos combater a colonia-
se referem à travessia do Atlânti- lidade de gênero que persiste para
co, na diáspora. O personagem tio construirmos um feminismo de re-
Totó passa por perdas, mudando sistência, se insurgindo contra as
de lugar em vários momentos de formas de dominação, construindo
sua vida e carregando a dor que epistemologias para que as mulhe-
seu pai carregava, chamada “ban- res oprimidas, possam ter maiores
zo”. Após as terras serem vendidas, oportunidades.
mais uma vez Totó teve de deixar as É necessário descolonizar o
terras da fazenda onde trabalhava, ser e o saber, oportunizando um fe-
com sua mulher e filha. minismo decolonial, ecoando vozes
dos não-humanos (mulheres, ne-
Havia o rio para atravessar, uma gros, indígenas, LGBTQIAP+, entre
canoa improvisada de tronco outros). Lugones propõe a criação
de árvore. Não dava para espe-
de uma pedagogia decolonial que
rar mais do lado de cá. Já havia
uma semana de chuva, O rio entende o gênero como relacional
subindo, mais e mais. O deses- e racializado, propondo o comba-
pero também. te, a decolonização do poder, do
- A gente atravessa o rio ou saber, do ser e do gênero.
fica, Miquilina? Você é por ir ou
As personagens dos romances
ficar?
- A gente atravessa, Totó. Tenho de Conceição Evaristo nos levam
medo, mas havemos de atra- a refletir sobre nossos corpos e o
vessar! quanto transbordamos ao falar-
- É Miquilina, se agarra à meni- mos sobre nossas histórias e das
na Catira, eu me agarro aos tra-
histórias dos/as nossos/as mais
pos. Santa Bárbara há de nos
ajudar!... velhos/as. A autora diz que Escre-
O rio, a cheia, o vazio da bar- vivência não é um conceito, mas

28
um escrever, viver, ver. Escrevivência cas em todos da família.
atravessa nossos corpos negros A força ancestral explica as
que costuram histórias suas com marcas deixadas por vô Vicêncio
as já vividas. Como ler Ponciá Vi- em Ponciá, pois ao moldar o barro,
cêncio e não mergulhar nos gozos constrói uma imagem de seu avô
e dores dos personagens? Tio Totó com a mão decepada. Ponciá perce-
se parece com tantos outros cor- beu que não poderia mais ficar na
pos negros que lutam por um lugar, fazenda e parte em busca de uma
por existir, mas que foi desistindo vida melhor. Não encontrou e, sem
como tantos outros corpos negros ter notícias de sua mãe e irmão, anos
que conhecemos. depois, resolve voltar para visitá-los,
Ponciá Vicêncio perdeu a ale- não os encontrando e voltando para
gria de viver ao se afastar de sua a cidade com a dor da perda.
família, pois fugiu para tentar uma Ponciá viveu muitos anos tra-
vida melhor, mas não conseguia balhando em casa de família, na
ser a esposa que seu marido es- busca de ter uma vida melhor, mas
perava, não podia lhe dar os filhos o que encontrou foi a continuidade
que tanto queria. Vivia mergulhada das relações que viveu na fazenda
em seus pensamentos, tentando se do coronel Vicêncio. Cruz (2022) re-
lembrar de quando se perdeu. Pon- trata o arquétipo de um quarto de
ciá é uma mulher jovem, nascida empregada:
na fazenda do poderoso coronel
Vicêncio, que tratava seus funcio- Sei que eu, no fundo, não era
um quarto. Eu era uma solitá-
nários como se eles ainda fossem
ria. Exatamente. Uma prisão,
escravizados, vivendo presos a um lugar destinado a apartar
uma suposta dívida que nunca ter- do mundo e do restante dos vi-
minava. Apesar de todas as dores, ventes. Sou tão pequeno..., mas
Ponciá brincava de enganar o ar- sei também que consegui abri-
gá-las como nenhum outro cô-
co-íris para não se transformar em
modo da casa. [...] Todo quarto
um menino. Em sua ingenuidade de de empregada é próximo à lixei-
criança, sentia-se feliz e via na mãe ra da casa, porque está sempre
a força da família. “Ponciá Vicêncio no fundo do profundo do imó-
gostava de ser menina. Gostava de vel. Nós, os “quartinhos”, esta-
mos sempre perto dos odores
ser ela própria”. (EVARISTO, p. 13). A
da vida das pessoas que não
partir do momento em que cresce, nos habitam. Perfume francês,
essa alegria se esvai. Ponciá, ainda patê de fígado de pato, vinho
bebê, foi influenciada por vô Vicên- caro, trufas, papel higiênico,
cio, que morreu quando ela ainda absorventes, suor. Quase tudo
era deles. (CRUZ, 2022, p. 139)
era criança, mas que deixou mar-

29
Ponciá cansou dessa invisibi- policial e tem em Nestor como um
lidade e, ao relembrar os momen- exemplo. Luandi apaixona-se por
tos vividos em família, lembrava do uma mulher que é assassinada
quanto sentia prazer em confec- pelo cafetão da cidade. Apesar das
cionar objetos de barro, fugindo de dores, Luandi tem uma trajetória
sua realidade. Conseguia apegar- menos sofrida do que a de Ponciá.
-se às suas lembranças como uma Maria Vicêncio, mãe de Ponciá, par-
forma de permanecer viva. “Ela te para a cidade a procura de seus
gastava todo o tempo com o pen- filhos. Ponciá, sentindo o chamado
sar, com o recordar. Relembrava a ancestral, resolve voltar para casa
vida passada, pensava no presen- e encontra seu irmão na estação
te, mas não sonhava e nem inventa- ferroviária.
va nada para o futuro” (EVARISTO, p. Maria Vicêncio e Luandi res-
19). Percebeu que mesmo na cidade, gatam Ponciá, a levando à sua casa
vivia a perpetuar sua vida de es- e mostrando o rio que ela tanto
cravidão. Perdeu sete filhos no ven- amava. Ponciá voltou a querer viver,
tre, sentindo o vazio profundo que apesar do sofrimento. “A menina
era sua vida, entregou-se à apatia. continuava bela, no rosto sofrente,
Não tinha a compreensão daquele feições de mulher. Por alguns mo-
homem que pensou amar, vivendo mentos, outras faces, não só a de
uma violência cotidiana, resgatan- vô Vicêncio visitaram o rosto de
do o passado e se refugiando nele, Ponciá” (EVARISTO, p. 125). Luandi,
como uma forma de permanecer ao ver o resgate da alegria de viver
viva. Ponciá casou-se na esperança de sua irmã, entende que mesmo
de ter encontrado a felicidade, mas que se tornasse um soldado, conti-
percebeu que seu casamento era nuaria a receber ordens de homens
um grande vazio, agravado pela brancos.
violência física do marido, também Ponciá percebeu que sua co-
vítima da invisibilidade e exclusão nexão com o barro lhe restaurava
social. Ponciá não consegue liber- as forças, conectando-se com o
tar-se dos reflexos da colonialida- passado e com a ancestralidade.
de e da escravidão, pois aproxima- Uma mulher que percebeu que o
-se cada vez mais do sofrimento, da passado não está separado do
desilusão. presente e do futuro e são elemen-
Luandi, seu irmão, chega à ci- tos de cura.
dade em busca de Ponciá e se en-
canta pelo soldado Nestor, autori- Deixe-me ir
dade policial da cidade, apesar de Preciso andar
ser negro. Luandi resolve se tornar Vou por aí a procurar

30
Rir pra não chorar... poder, enquanto mulheres, negras,
indígenas e outros grupos são con-
Quero assistir ao Sol nascer siderados inferiores, não humanos
Ver as águas dos rios correr nas relações hierárquicas.
Ouvir os pássaros cantar Para a autora, há múltiplos co-
Eu quero nascer nhecimentos, linguagens, culturas,
Quero viver e ela destaca a importância da in-
tersecção entre as categorias de
Deixe-me ir gênero, raça, classe e sexualidade
Preciso andar na hierarquia estabelecida pelo
Vou por aí a procurar discurso eurocêntrico.
Rir pra não chorar Através do conceito do olhar
Se alguém por mim perguntar arrogante, Lugones aborda a falta
Diga que eu só vou voltar de identidade e empatia entre cor-
Depois que me encontrar pos negros e não negros. A partir
(...) do parâmetro do Norte Global, há
Compositor: Antonio Candeia a definição do que pertence ou
Filho. Fonte: LyricFind não ao mundo. Vemos o outro com
o olhar arrogante de quem detém
Ponciá andou por muitos ca- todo o saber, conhecimento e per-
minhos, imaginou lugares onde tencimento.
buscava a felicidade, tentando se A partir do conceito do olhar
encontrar. As dores que sentiu fo- amoroso, conseguimos enxergar
ram tantas que pensou em desistir, esse outro a partir de suas dico-
mas a força de sua ancestralidade tomias, diferenças, pertencimento
estava lhe dando caminhos para a outros mundos e, mesmo assim,
encontrar um motivo para resgatar respeitar suas subjetividades, acei-
a alegria de viver. Teimou até en- tando a ideia de que estamos to-
contrar um caminho melhor do que dos num mesmo mundo. Lugones
aquele que lhes disseram ser o final propõe um feminismo de resistên-
da estrada. cia, produzindo conhecimento que
não seja o conhecimento do colo-
Conclusão nizador.
Fanon reflete sobre o colo-
A perspectiva de Lugones de- nialismo e seus efeitos, em “Peles
monstra que o Ocidente se carac- negras, máscaras brancas” (2008),
teriza pela oposição binária de contestando o discurso de que não
gênero, instituindo hierarquias. Ho- existem corpos negros na zona do
mens brancos héteros ocupam o não-ser. O arquétipo das másca-

31
ras brancas é utilizado como uma Fanon propõe um “novo huma-
suposta sobrevivência, pois ao co- nismo”, que transcende saberes eu-
locar essa máscara branca, sua rocentrados, num “olhar amoroso”,
identidade, cultura, ancestralidade respeitando e celebrando nossos/
são invisibilizados. Embranquece a as mais velhos/as e seus ensina-
fala, vestimentas, cultura, identida- mentos, pois um rio quando esque-
de, mas aos olhos do colonizador, é ce onde nasce, ele seca, ele morre
aceito na exata medida de sua sub- (Ditado africano).
serviência.

Referências

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tras, 2022.
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rizonte: Autêntica Editora, 2019.
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32
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____. 2013 – Revolta dos Governados: ou, para quem esteve presente, revol-
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DER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciências So-
ciales, 2005.

33
CORPOS NEGROS,
IDENTIDADES E
RACISMO: UM
ESTUDO SOBRE
O NÃO
PERTENCIMENTO
ÉTNICO-RACIAL DE
MENINAS NEGRAS
NO AMBIENTE
ESCOLAR
Ana Cláudia Pinto da Silva1 relação de meninas negras com o
seu cabelo crespo e pertencimento
étnico-racial no ambiente escolar.
Introdução Esta discussão está presente em
minha dissertação de mestrado
A presente pesquisa parte de e se justifica pela necessidade de
uma busca por indagações perce- uma construção identitária posi-
bidas ao longo de minha vida pes- tiva para meninas negras. A meto-
soal e profissional e versa sobre a dologia de pesquisa aplicada faz

1 Mestra pelo Programa de Pós-graduação em Ensino em Educação Básica – PPGEB-CAp-


-UERJ. Professora Regente da Rede Municipal do Rio de Janeiro.

34
uso da narração autobiográfica de de formação dos professores para
fatos e memórias pessoais viven- trabalhar um tema com grande sig-
ciadas por mim enquanto mulher e nificativo identitário para a popula-
educadora negra. ção negra. Não somos todos iguais
O cabelo crespo é impregnado e sim temos direitos sociais iguais
de significados, e tem sido funda- mesmo que estes não sejam cum-
mental para compreender o pro- pridos na prática. Quando repro-
cesso de pertencimento étnico-ra- duzimos esta falácia, fortalecemos
cial das meninas negras. Ele possui as práticas de negação do corpo
destaque no conjunto corporal e negro no ambiente escolar.
estético e se configura em muitos A criança negra possui ciência
momentos, como fator condicio- que não é igual ao colega branco
nante a aprovação de negros e ne- ou não negro, pois já acumulou in-
gras na sociedade. Ele representa a formações culturais que lhe permi-
maneira como o negro se vê e, de tem realizar esta dissociação o que
certa forma, se apresenta aos ou- ela ainda não compreende é o mo-
tros. tivo por qual esta diferença é traba-
O trato do cabelo crespo so- lhada com a inferiorização dos seus
freu ao longo dos anos, muitas traços e negação de sua história.
mudanças influenciadas pelos pa- Segundo Cavalleiro: “O silêncio que
drões de beleza. Hoje vivemos uma envolve essa temática nas diversas
valorização do fio natural sem a instituições sociais favorece que se
modificação de sua estrutura capi- entenda a diferença como desigual-
lar. Mas ainda assim, é uma questão dade e os negros como sinônimos
delicada para as meninas negras de desigual e inferior.” (2003, p.20).
dentro do espaço escolar que his- Esse entendimento está incuti-
toricamente tem corroborado com do em nosso cotidiano e no caso da
a manutenção de estereótipos ra- escola, se reflete no currículo e nas
cistas sobre corpo e cabelo negro. práticas pedagógicas. O ambiente
A Instituição escolar ao longo escolar naturalizou a ausência da
de sua história foi responsável pela representação e a inferiorização
disseminação dos ideais racistas dos corpos negros em seu espa-
presentes na sociedade. A frase ço. Os livros didáticos e os murais
“somos todos iguais” ainda é muito escolares geralmente reproduzem
presente no ambiente escolar Esta cenas de crianças e famílias bran-
narrativa me remonta às culminân- cas, onde o negro, quando apare-
cias realizadas em homenagem ao ce, está em situações subalternas,
Dia da Consciência Negra, ela sem- retratando o pensamento de raça
pre está presente, revelando a falta inferior e de submissão.

35
Negação de corpos negros: negras com os cabelos crespos o
Rituais de exclusão... mesmo ritual de embelezamento
que as meninas brancas passavam.
Durante toda a minha jornada A grande surpresa que tive no início
como educadora, tenho vivenciado do processo foi a recusa por parte
práticas que reforçam a negação e das meninas negras em mexer em
a inferiorização dos corpos negros seus cabelos. Elas sempre diziam
no ambiente escolar. Mas trago que não precisavam e essa recusa
como ponto de partida para essa me fez retornar ao meu passado
discussão um fato vivenciado em e reviver histórias que enquanto
uma creche no município do Rio de criança negra me davam subsídios
Janeiro, com uma turma de mater- para compreender as narrativas
nal com crianças na faixa etária de daquelas meninas.
3 a 4 anos. Na creche, as rotinas e A situação vivenciada apon-
as atividades eram divididas entre ta para duas questões que justifi-
as auxiliares, desde a higiene, as cam a não permissão das meninas
refeições e o momento pedagógi- da creche para mexer em seus ca-
co. Não tínhamos problemas com belos. A primeira refere-se ao pro-
a etapa do banho, diferentemente cesso conflituoso de manipulação
do momento de pentear os cabe- de seus cabelos, marcado por dor.
los, principalmente os crespos. As Em geral, este processo é realiza-
outras auxiliares que dividiam as do pela mãe, tia, avó ou irmã mais
tarefas comigo, apresentavam re- velha e além de demorado, é muito
sistência para pentear os cabelos dolorido e estressante para quem
crespos e quando faziam, era algo penteia e para quem está sendo
mais simples e com pouco ou ne- penteado. Pentear os cabelos cau-
nhum zelo. sa, muitas vezes, repulsa em meni-
Esta resistência não se mos- nas e mulheres negras pela ausên-
trava para as crianças com cabelo cia de técnica e aplicação de força.
liso, pois saiam com os cabelos pen- A segunda questão está ligada
teados e sempre com um acessório à baixa estima e ao sentimento in-
diferente, xuxinhas coloridas, laços trojetado de inferioridade que atin-
e arcos. Vivenciar aquela situação ge a população negra desde muito
era extremamente desconfortá- cedo. Ao afirmar que não precisa
vel, tentei conversar com os meus fazer, na verdade, encobre o senti-
pares, mas não fui ouvida, pois as mento de não tenho direito a isso.
práticas racistas são naturalizadas Aquelas meninas tinham na época
em nossa sociedade. Sem apoio e citada, apenas três anos de idade
parceria, realizei com as meninas e já carregavam o peso de viver em

36
uma sociedade estruturada nos a minha transição capilar, e o meu
ideais racistas. Ocupavam aquele cabelo crespo natural ainda estava
espaço, mas não se sentiam parte sob análise naquele ambiente. Ela
dele. Afinal, os espaços escolares não tocou no meu cabelo, mas a
são marcados pelo seu embran- sua expressão facial demonstrava
quecimento no aspecto físico e cur- um misto de curiosidade e repul-
ricular e de práticas pedagógicas. sa sobre algo fora do considerado
Os estereótipos atribuídos ao “normal”. Esta frase e suas varia-
corpo, cabelo e personalidade da ções, “revelam uma associação da
população negra são inúmeros e negritude com o que é repugnante;
se reproduzem dentro do espaço elas anunciam como mulheres ne-
escolar. A associação de falta de gras no imaginário branco são de
higiene aos cabelos crespos é um alguma forma fantasiadas como
deles e geralmente inicia-se na sujas e selvagens.” (KILOMBA, 2019
Educação Infantil, passa pelo En- p.124)
sino Fundamental e Médio e per- Meninos e meninas negras são
dura por toda a vida do indivíduo. alvos de apelidos e piadas racis-
Na Educação Infantil, se manifesta tas no ambiente escolar que, “ex-
como preocupação com a higiene, pressam que o tipo de cabelo do
recomendando a lavagem dos ca- negro é visto como símbolo de in-
belos, como se esse processo já não ferioridade, sempre associado à
fosse realizado, para não propaga- artificialidade (esponja de bombril)
ção de piolhos e lêndeas. Faz parte ou com elementos da natureza (ni-
da memória de mães de crianças nho de passarinhos, teia de aranha
negras, o recebimento de bilhetes enegrecida pela fuligem).” ( GOMES,
na agenda reforçando a importân- 2019 p. 204) e muitas vezes passam
cia do cuidado e higienização dos por estas situações sem receber
cabelos dos pequenos. apoio nem mesmo de seus profes-
Mais tarde este estereótipo se sores.
manifesta no lugar de cabelo exóti- Segundo GOMES (2019, p. 203):
co em frases como: - Você lava o ca- “a escola impõe padrões de currí-
belo? Por mais absurdo que possa culo, de conhecimento, de compor-
parecer, pessoas negras, principal- tamentos e, também, de estética.”
mente mulheres, ouvem este tipo Esses padrões são baseados nos
de pergunta. No meu caso, eu ouvi ideais da branquitude e se consti-
de uma colega de trabalho educa- tuem como referências dentro do
dora branca dentro do espaço es- espaço escolar. Para crianças ne-
colar esta mesma pergunta. Fazia gras se manterem em um espaço
pouco tempo que tinha encerrado que nega a sua história e cultura e

37
tenta lhe enquadrar em um padrão A defasagem e as lacunas pre-
que não lhe atende causa grande sentes em nossa formação são fa-
abalo à sua autoestima, podendo tos, mas não seria sobressalente
repercutir em seu processo de es- se existisse a formação humana.
colarização, com a mudança de Este fato ocorre pois “as institui-
comportamento, baixo rendimento ções são apenas a materialização
e isolamento social. Muitas vezes, o de uma estrutura social ou de um
aluno se expressa e toma atitudes modo de socialização que tem o
agressivas, como um mecanismo racismo como um de seus compo-
de defesa aos insultos recebidos. nentes orgânicos” (ALMEIDA, 2019,
Esta agressividade é um des- p.47). Dentro do julgamento moral
dobramento do silencio negligen- do professor, as piadas e apelidos
te praticado por muitos docentes. pejorativos muitas vezes não são
O silenciamento docente frente a considerados atos graves, são ape-
questões que envolvem a temática nas brincadeira. Sendo assim, ne-
do racismo é uma realidade que se nhuma lei ou teórico dará conta de
sustenta, dentre outros motivos, na formar este professor racista. A lei é
falta de formação dos professores. fundamental, mas a sua ação ape-
A realidade brasileira em relação nas fará com que ele mude as atitu-
aos cursos de licenciaturas, no que des, pois sabe que está cometendo
compete ao ensino de história e um erro e sofrerá sanções por isso.
cultura afro-brasileira, ainda é fa- Atualmente, temos duas leis que
lha. Os currículos sofreram algu- nos amparam em relação a imple-
mas mudanças, mas ainda operam mentação de uma Educação Antir-
com o silenciamento da nossa his- racista no ambiente escolar. Em 2003
tória. Nesse sentido: tivemos a promulgação da Lei 10639
que torna obrigatório nos currículos
Acredito que desmontar os es- escolares o ensino de História e Cul-
tereótipos possa vir a ser um
tura Afro-brasileira e em 2008, tivemos
dos objetivos específicos dos
a 11645 que mantém a obrigatorieda-
cursos de formação de profes-
sores (...) como uma das formas de assegurada com a 10639 e estende
de visibilizar as diferentes prá- a mesma para ensino da cultura indí-
ticas cotidianas, experiências gena. Estas leis alteram o art. 26 da
e processos culturais, sem o
LDBEN e representam um importante
estigma da desigualdade, co-
conquista, fruto da luta do Movimen-
locando todos eles como par-
te do passado significativo, da to Negro por uma equidade educa-
tradição e do conhecimento cional de direitos e oportunidades.
universal”. SILVA (2005, p.24) As mudanças geram descon-
forto e nem sempre são bem recebi-

38
das, principalmente quando se tra- danças ocorreram e os referenciais
ta de questões raciais em um país negros com advento das políticas
estruturalmente racista com inte- sociais e luta do movimento negro
resse na manutenção do privilégio são mais expressivos. Mas, den-
branco de ditar regras e padrões. A tro do espaço escolar, as crianças
implementação dessas leis foi mar- negras ainda sofrem com a ausên-
cada por “incertezas, mal-estar e cia de referências negras. A repre-
resistências de toda ordem e tipo sentatividade afeta diretamente o
por parte de alguns estes que ain- processo de construção da nossa
da não compreenderam o espírito identidade, no caso brasileiro, es-
democrático de tais medidas.” (DU- sas representações são construí-
PRET e VIEIRA, 2013 p.49) das dentro dos discursos racistas.
Retornando a narrativa de re- Segundo Hall:
cusa das meninas negras ao ritual
de embelezamento, é fundamental [...] elas [as identidades] têm
a ver, entretanto, com a ques-
acenar para o processo de cons-
tão da utilização dos recursos
trução de identidades e pertenci- da história, da linguagem e da
mento étnico-racial. A construção cultura para a produção não
identitária é um processo que se daquilo que nós somos, mas
constrói socialmente na interação daquilo no qual nos tornamos.
Têm a ver não tanto com as
com o outro. Segundo Gomes (2012),
questões “quem nós somos” ou
nenhuma identidade é construída “de onde nós viemos”, mas mui-
no isolamento e sim nos espaços to mais com as questões “quem
sociais da casa, da rua, do traba- nós podemos nos tornar”,
lho e da escola. As identidades se “como nós temos sido repre-
sentados” e “como essa repre-
constituem de forma mutável, como
sentação afeta a forma como
um conjunto de experiências no nós podemos representar a nós
campo do social, cultural, histórico próprios” [...]. (HALL, 2000 p. 108)
e familiar a partir dos processos de
significação e ressignificação da A representatividade é um
trajetória de vida pessoal dos in- ponto sensível dentro do processo
divíduos. Nossa identidade parte de construção identitária pois as
da afirmação do que somos e das lacunas em nossa representação
referências que recebemos para a nos leva para os grupos sociais
sua construção. que gozam de privilégios e que ga-
Enquanto criança, minha famí- nham destaque e maior visibilida-
lia era a minha grande referência. de na sociedade. Negros e negras
Eu não tinha muitos exemplos fora brasileiros não possuem significa-
do seio familiar. Hoje, muitas mu- tiva representação e constroem as

39
suas identidades com referência ao de sua história e ancestralidade.
corpo branco e vivem uma busca
cruciante por um “quem nós pode- Considerações Finais
mos nos tornar” que os inclua sem
a marca da inferioridade das dife- Meninas e meninos negros
renças. As identidades represen- precisam construir uma identida-
tam “mais o produto da marcação de positiva sobre si e a escola é
da diferença e da exclusão do que um agente fundamental neste pro-
o signo de uma unidade idêntica” cesso, mas, para isso precisa rom-
(HALL, 2000 p.109). per com as suas práticas racistas
Os conceitos de Identidade e com a implementação de práticas
Diferença possuem relação de in- educativas pelo viés da 10639/03 e
terdependência, onde “as identida- 11645/08 que tenha como objetivo
des são construídas por meio da a valorização da figura do negro,
diferença e não fora dela” (HALL, sua história e contribuição para a
2000 p. 110). A identidade parte da construção deste país.
afirmação do que sou em oposição O cabelo crespo é um marca-
ao que não desejo ser. Neste con- dor identitário que reflete no pro-
texto, nossas afirmações e prefe- cesso de pertencimento étnico
rências estão associadas às cons- racial de mulheres negras. As meni-
truções e padrões equivocados de nas negras desde muito cedo, de-
um modelo branco alheio a nossa vem ser ensinadas a amar os seus
realidade. As mulheres negras vi- cabelos e conhecer a sua história
vem em seu cotidiano esta realida- para diminuir o abalo emocional
de com a luta entre afirmação e ne- frente aos comentários e atitudes
gação de identidade negra com as racistas que infelizmente estarão
imposições dos padrões de beleza. expostas ao longo de suas vidas.
O processo de construção da O trato desigual das diferen-
identidade da população negra ças atribui ao corpo negro infe-
é marcado pela ausência de fato- rioridade estética. É necessário e
res positivos que fazem com que urgente combater os estereótipos
crianças e adultos não se reconhe- negativos que atribuem ao cabelo
çam positivamente enquanto pes- crespo características como sujei-
soas negras. A não representação ra, maior propensão para ter pio-
na mídia, assim como a supressão lhos e lêndeas e descuido, rompen-
da história dos grandes líderes ne- do este ritual de exclusão que são
gros no currículo escolar, são fato- impostos aos meninos e meninas
res que impedem a construção de negros no ambiente escolar.
identidade pautada na valorização

40
Referências

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CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar:
racismo e preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo:
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DUPRET, Leila; VIEIRA, Clarice. Lei 10.639/03 e formação de profissionais
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LES, Sandra Regina (orgs.). Relações Étnico-Raciais e Educação: contex-
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identidade negra. Belo horizonte: Autêntica Editora,2019.
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no. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.p.124
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In: MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o racismo na escola. Brasília:
MEC, Secretaria de Educação continuada, Alfabetização e Diversidade,
2005.
SILVA, Ana Cláudia Pinto da. O cabelo crespo como fio condutor do pro-
cesso de pertencimento étnico-racial de meninas negras no ambiente
escolar. Orientadora: Monica Regina Ferreira Lins.2022. Dissertação (Mes-
trado). Programa de Pós-Graduação de Ensino em Educação Básica -
CAp UERJ. Rio de Janeiro. 2022. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/
handle/1/17898.

41
A LITERATURA
NEGRA COMO
LUGAR DE FALA
E ESCUTA
Danielle Tudes Pereira Silva1

Lá vem o navio negreiro


Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia...

1 Doutora em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contem-


porâneos e Demandas Populares (PPGEduc) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
– UFRRJ. Professora Assistente do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira –
CAp-UERJ.

42
Lá vem o navio negreiro real, contudo apresenta visões de
Com carga de resistência mundo relacionadas aos tempos e
Lá vem o navio negreiro
espaços aos quais pertence. Nela,
Cheinho de inteligência.
as questões humanas estão postas
Solano Trindade e nos permite o exercício da refle-
xão e do pensamento crítico. Tais
O presente texto constitui par- considerações endossam a beleza
te da minha pesquisa de doutorado da arte literária, pois ela concentra
sobre as contribuições da Literatu- a possibilidade de encantamento,
ra Negra na construção de Peda- liberdade e transformação.
gogias Decoloniais2. Nela, estudei Por vezes, as obras literárias
como a Literatura Negra, represen- baseiam-se no diálogo com o ou-
tada pelas escritoras Conceição tro, com hábitos e costumes que
Evaristo e Carolina Maria de Jesus, desconhecemos ou repudiamos,
pode contribuir para a construção nos permitindo a abertura para
de práticas pedagógicas emanci- mundos fictícios, onde podemos
padoras fundadas nas Pedagogias viver outras vidas e reinventar nos-
Decoloniais. Nesse recorte, a partir sas crenças. A Literatura nos cons-
do conceito de Literatura, descrevo titui como humanos, produz senti-
a Literatura Negra em suas carac- dos individuais e coletivos para a
terísticas e contextos, desde a ne- existência.
cessidade de grupos marginaliza- Como já citado, a Arte Literária
dos reafirmarem sua existência. À abrange a criação estética a par-
vista disso, a escrita funciona como tir da palavra. Esse conceito geral,
meio para a inscrição na cultura supostamente, compreende as pro-
para além dos estereótipos. De ma- duções de escritores e escritoras,
neira transversal o racismo é aqui independente de seu pertencimen-
apontado como fenômeno social to étnico-racial. À vista disso, no
central que estrutura a sociedade conceito de Literatura incluímos as
brasileira e perpetua a exclusão. obras de Clarice Lispector, Carolina
A Literatura é uma expressão de Jesus, Cecília Meireles, Solano
artística que compreende grande Trindade, Monteiro Lobato, Maria
variedade de manifestações atra- Firmina e Lima Barreto, para citar
vés da linguagem escrita e até mes- alguns exemplos.
mo por meio do diálogo com outras Contudo, existe uma questão
linguagens. Como toda forma de que torna a relação acima bastan-
arte, não constitui um retrato do te assimétrica: Clarice Lispector,
2 Pesquisa realizada no Curso de Pós-graduação em Educação, Contextos Contemporâneos
e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), sob a
orientação do professor Luiz Fernandes de Oliveira.

43
Cecília Meireles e Monteiro Lobato Neste cenário, durante a con-
nunca precisaram comprovar sua juntura colonial brasileira, carac-
qualidade literária e sua visibilida- terizada pela exploração máxima
de não foi comprometida por serem a fim de enriquecer a metrópole, o
brancos. Monteiro Lobato inclusive acréscimo da escravidão de povos
ocupou, durante muito tempo, o lu- africanos, ainda no século XVI, vai
gar confortável de referência lite- definir o comportamento social, ali-
rária infantojuvenil, ainda que sua mentar profundas desigualdades e
obra expusesse elementos racistas, alicerçar a raça como um critério
o mesmo racismo que tornou invi- fundamental de estabelecimento de
síveis ou condenou ao ostracismo, diferenças. Progressivamente vão se
escritoras e escritores negros como constituindo as bases do racismo,
Carolina de Jesus, Solano Trindade, que se fortalece no século XIX e per-
Maria Firmina e Lima Barreto. Suas manece estruturando a sociedade
trajetórias foram atravessadas por brasileira até os nossos dias.
esse fenômeno que estrutura a so- Portanto, podemos afirmar que
ciedade brasileira. o racismo constitui um conjunto de
Para que possamos perceber, crenças pseudocientíficas, funda-
de forma mais aprofundada, como mentadas em duas premissas que,
o racismo opera na sociedade bra- embora falsas, foram e continuam
sileira e, consequentemente, na arte, a ser aceitas socialmente: a primei-
precisamos olhar para a história do ra é que a espécie humana encon-
Brasil e compreender as implicações tra-se dividida em raças diferentes,
do nosso processo de colonização, distinguíveis entre si por um con-
que ocorreu baseado na violência. junto de características fenotípicas
O estudo da constituição do gerais e a segunda é que é possível
racismo na modernidade impli- estabelecer algum tipo de hierar-
ca em considerar que o início das quização entre essas supostas ra-
grandes navegações e a explora- ças, arbitrariamente classificando
ção da América possibilitou o en- algumas como sendo superiores
contro de diferentes povos a partir quando em comparação com as
da dominação europeia. Essa dife- demais. Historicamente, “a raça foi
rença foi estabelecida pela hierar- a sombra sempre presente no pen-
quização, sendo os colonizadores samento e na prática das políticas
europeus autoproclamados como do ocidente, especialmente quan-
modelo humano universal, enquan- do se trata de imaginar a desuma-
to os demais foram tomados como nidade de povos estrangeiros – ou
os outros, atrasados e selvagens, a dominação a ser exercida sobre
ou seja, inferiores. eles.” (MBEMBE, 2018, p.18)

44
Essas crenças pseudocientífi- o último a garantir a vigência
cas contribuíram para naturalizar de um modelo de trabalho que
pressupõe a posse de um ho-
a ideia de que alguns tipos huma-
mem por outro. Essas são es-
nos nasceram para a servidão, a tacas fortes, que constrangem
criminalidade e a promiscuidade, o a sociedade. A escravidão não
que justificou limpezas étnicas, ge- foi apenas um tipo de mão de
nocídios e perversidades de toda obra, ou um detalhe de nossa
economia. Ela criou um modo
ordem.
de ser e estar em tal socieda-
É fundamental enfatizar que as de: uma linguagem social com
diferenças genéticas entre as etnias graves consequências. Essa é,
humanas não são significativas o pois, uma história coletiva, mas
suficiente para caracterizarmos também individual porque traz
os dramas de cada pessoa e de
a existência de diferentes raças,
cada família. (SCHWARCZ, 2017,
tornando ambas as premissas p.26)
“científicas” do racismo falsas
e suas teorias desprovidas de É particularmente importante,
sustentação ou embasamento. para compreendermos as comple-
Porém, isso não impede que o xas relações criadas em nossa so-
conceito de raça exista no âmbito ciedade, a partir da introdução do
social e se perpetue ao longo da pensamento colonial, o fato que,
história. até o presente momento, houve
Os discursos racistas criados mais gerações de afrodescenden-
para justificar a ação colonialista tes escravizados do que livres em
europeia foram incorporados ao nosso país. A indignidade da escra-
arcabouço cultural da sociedade vidão não poderia gerar nada de
e passaram, não mais a apenas positivo, exceto para aqueles que
justificar a intervenção externa lucraram com o tráfico de vidas hu-
dos colonizadores, mas a regular manas. A abolição tardia, em 1888,
o funcionamento das instituições, não resolveu nenhum dos proble-
bem como a orientar suas práticas, mas decorrentes da migração for-
criando elementos de exclusão na- çada de homens e mulheres africa-
queles grupos descendentes dos nos.
que originalmente foram identifica- O colonialismo instaurou um
dos como sendo inferiores, heréti- cenário distópico para os povos
cos ou primitivos. Nas palavras da colonizados. Por aqui, a distopia
historiadora Lilia Schwarcz começa com a chegada da primei-
ra caravela, em um empreendimen-
[...] um país não passa impu-
to altamente lucrativo para pou-
nemente pelo fato de ter sido
cos nobres e burgueses, bem como

45
para os donos das companhias um tipo de sociabilidade baseada
de comércio e navegação. Desse na violência. O uso da força e da
modo, para os europeus, a empresa imposição de suas presenças, além
colonial significou um horizonte de do roubo e destruição de recur-
conquista, enriquecimento e glória. sos, ultrapassam a criatividade de
A utopia de poucos nobres e qualquer autora ou autor.
burgueses europeus foi construída
a partir da distopia de milhões de Um sujeito que saia da Europa
e descia numa praia tropical
ameríndios e africanos que tiveram
largava um rastro de morte por
um destino assombroso, pois “o ter- onde passava. O indivíduo não
ror é uma característica que define sabia que era uma peste ambu-
tanto os Estados escravistas quan- lante, uma guerra bacterioló-
to os regimes coloniais contempo- gica em movimento, um fim de
mundo; tampouco o sabiam as
râneos.” (MBEMBE, 2018, p.68)
vítimas que eram contamina-
A distopia define narrativas das. Para os povos que recebe-
onde os cenários futuros são o opos- ram aquela visita e morreram,
to de uma sociedade ideal (utopia). o fim do mundo foi no século
Comumente, apresentam um retrato XVI. Não estou liberando a res-
ponsabilidade e a gravidade
de opressão extrema, ausência de
de toda a máquina que moveu
liberdade e direito, destruição de re- as conquistas coloniais, es-
cursos naturais e morte. O governo tou chamando atenção para o
é extremamente autoritário e, por fato de que muitos eventos que
vezes, a religião opera a seu serviço. aconteceram foram o desastre
daquele tempo. (KRENAK, 2019,
Ou seja, uma distopia é um tipo
p.71-72)
de narrativa ficcional que apresen-
ta uma sociedade imaginária, geral- Além disso, o terror da diáspo-
mente no futuro, que é caracteriza- ra africana, que lançou os povos
da por extrema opressão, controle ao Atlântico para serem explorados
governamental absoluto, privação nas Américas, constitui um fenô-
de direitos, condições precárias de meno sem precedentes na história
vida e/ou tecnologia opressiva. É o moderna. A escravidão gerou mor-
oposto da utopia, que apresenta te, sofrimento e contribuiu para o
uma sociedade ideal e perfeita. sistema de classificação racial que,
A distopia colonial, se não fos- ainda hoje, impacta a vida de gera-
se real, infelizmente seria uma nar- ções de descendentes de africanos
rativa digna de grandes escritoras no mundo todo.
e escritores de ficção científica. Os Precisamos interpretar as im-
países europeus promoveram, em plicações de ser uma nação forjada
suas colônias ao redor do mundo,

46
no genocídio dos povos indígenas e que, no mínimo, há mais de 10.000
africanos. Grosfoguel (2016), ao tratar anos esses povos originários ocu-
de grandes genocídios3 promovidos pam esse território, com certe-
pelos europeus, relacionados uns za desenvolveram conhecimentos
aos outros em sistemas de apren- para lidar com os desafios relativos
dizagem, que foram se sofistican- à alimentação, à sazonalidade do
do e garantindo o sucesso de suas clima, a ocorrência de enfermida-
empreitadas homicidas, conecta-os des e outras questões impostas à
ao conceito de epistemicídio. As- sobrevivência humana. Tal cenário
sim, une genocídio e epistemicídio demanda conhecimentos produ-
tornando-os compostos a partir do zidos socialmente e tão relevantes
extermínio (ego extermino) dos cor- que, ainda hoje, são roubados dos
pos e corpus dos povos dominados. mesmos, especialmente nos cam-
A eliminação do outro foi tomada pos da botânica, medicina, filosofia
enquanto uma prática, uma espé- e outros. Além disso, seu modo de
cie de pedagogia, constituindo um compartilhar a Terra com a biodi-
campo de aprendizagem iniciado versidade existente tem sido estu-
pelos europeus no século XVI. dado e seguido por grupos que in-
O epistemicídio, conceito cria- vestem em outras lógicas de vida.
do pelo sociólogo Boaventura de Ainda assim, os indígenas são con-
Sousa Santos (1997), significa a eli- siderados intelectualmente inferio-
minação cultural, o apagamento res e anacrônicos.
dos conhecimentos e saberes. Além Desse modo, o epistemicídio
disso, ele é a afirmação da incapa- aniquilou a pluralidade epistêmica
cidade cognitiva de determinados do mundo, pois considerou como
povos. Podemos afirmar que todo válidos apenas os conhecimentos
genocídio, em si, constitui também produzidos por homens brancos
um epistemicídio, uma vez que a europeus. Tal como a plantation,
morte do corpo sepulta toda e enquanto um sistema baseado na
qualquer possibilidade de produ- monocultura e que esgota a ferti-
ção de conhecimentos para além lidade do solo, a possibilidade de
da memória dos que permanecem. uma episteme europeia universal é
Tomemos o caso dos povos extremamente redutora e, contra-
indígenas do Brasil. Considerando ditoriamente, provinciana. Quero

3 Esses quatro genocídios/epistemicídios ao longo do século XVI são: 1. contra os muçulma-


nos e judeus na conquista de Al-Andalus em nome da “pureza do sangue”; 2. contra os povos
indígenas do continente americano, primeiro, e, depois, contra os aborígenes na Ásia; 3.
contra africanos aprisionados em seu território e, posteriormente, escravizados no continente
americano; e 4. contra as mulheres que praticavam e transmitiam o conhecimento indo-eu-
ropeu na Europa, que foram queimadas vivas sob a acusação de serem bruxas. (GROSFO-
GUEL, 2016, p. 31)

47
dizer com isso que, nas universida- de de aprender, etc. (CARNEIRO,
des ocidentais, nos cânones e em 2005, p. 97)

outros espaços/tempos coloniza-


dos, essa lógica ainda se perpetua, A desumanização promovida
embora seja continuamente tensio- pelo racismo estigmatiza negras e
nada pelos movimentos de resis- negros como incapazes de produ-
tência. zir arte através da escrita, lingua-
Sueli Carneiro, na longa cita- gem considerada uma prerrogativa
ção abaixo, nos fornece um pano- do colonizador europeu e tomada
rama completo dos encadeamen- como representativa de civilização.
tos decorrentes do epistemicídio: Aqui já podemos reafirmar que
a Literatura, como qualquer cria-
Para nós, porém, o epistemicí- ção humana, também é permeada
dio é, para além da anulação pelo racismo. A Literatura no Brasil,
e desqualificação do conheci- tradicionalmente organizada em
mento dos povos subjugados,
escolas literárias, se construiu en-
um processo persistente de
produção da indigência cul- trelaçada com a história do país, o
tural: pela negação do aces- que explica as opções realizadas,
so à educação, sobretudo de no sentido de evidenciar determi-
qualidade; pela produção da nadas obras e invisibilizar outras.
inferiorização intelectual; pe-
Toda produção artística é situada
los diferentes mecanismos de
deslegitimação do negro como em um contexto e permeada por
portador e produtor de conhe- opções políticas, bem como toda
cimento e de rebaixamento da obra expressa uma visão de mun-
capacidade cognitiva pela ca- do. Dessa maneira, a história da
rência material e/ou pelo com-
Literatura Negra no Brasil reflete
prometimento da auto-estima
pelos processos de discrimina- a complexidade de uma trajetória
ção correntes no processo edu- baseada na ruptura do lugar de
cativo. Isto porque não é pos- subserviência imposto à popula-
sível desqualificar as formas de ção negra e configura-se como um
conhecimento dos povos do-
ato político.
minados sem desqualificá-los
também, individual e coletiva- Quando pensamos em uma
mente, como sujeitos cognos- Literatura produzida por homens
centes. E, ao fazê-lo, destitui- e mulheres negros, podemos afir-
-lhe a razão, a condição para mar que, de forma numericamente
alcançar o conhecimento “legí-
expressiva, os mesmos aparecem
timo” ou legitimado. Por isso o
epistemicídio fere de morte a na historiografia a partir do século
racionalidade do subjugado ou XIX. Os primeiros três séculos após
a sequestra, mutila a capacida- a invasão europeia são fortemente

48
caracterizados pela exclusão de re- “Porém o melhor fruto, que nela
gistros literários do povo negro. se pode fazer, me parece que
será salvar esta gente. E esta
Na história da Literatura Bra-
deve ser a principal semente
sileira, podemos afirmar que os que Vossa Alteza em ela deve
primeiros escritos, no século XVI, lançar.” (CAMINHA, [S.l: s.n.]
tinham caráter documental, infor- apud CUNHA, Antonio Geraldo
mativo e, posteriormente, de cate- da; CAMBRAIA, César Nardelli;
MEGALE, Heitor, 1999)
quização. Foram criados pelos via-
jantes e missionários europeus que
O fato de considerar esses
registravam informações sobre a
primeiros documentos como os
terra recém-invadida. Um exemplo
primórdios da Literatura no Brasil,
é a carta de Pero Vaz de Caminha,
não pode ser confundido com a
considerada o marco inaugural da
ideia equivocada, embora adotada
Literatura Brasileira.
durante muito tempo, de que a his-
“A feição deles é serem pardos, tória desse território se inicia com
maneira de avermelhados, de a invasão europeia. O trecho acima
bons rostos e bons narizes, evidencia a visão que os europeus
bem-feitos. Andam nus, sem tinham dos povos indígenas com
nenhuma cobertura. Nem esti-
os quais se depararam: povos sem
mam de cobrir ou de mostrar
suas vergonhas; e nisso têm história, sem moral e sem lei, aos
tanta inocência como em mos- quais caberia impor a “salvação”.
trar o rosto.” Neste caso, a salvação se configu-
[...] rou como a imposição da religião
“E portanto, se os degredados,
católica, o trabalho compulsório e
que aqui hão de ficar apren-
derem bem a sua fala e os en- o extermínio.
tenderem, não duvido que eles, Assim, a Literatura produzida
segundo a santa intenção de nesse contexto tinha também um
Vossa Alteza, se hão de fazer caráter didático e religioso, pois re-
cristãos e crer em nossa san-
fletia a necessidade de imposição
ta fé, à qual praza a Nosso Se-
nhor que os traga, porque, cer- cultural aos povos indígenas. Ela
to, esta gente é boa e de boa refletia a perspectiva a partir da
simplicidade. E imprimir-se-á qual os portugueses viam o territó-
ligeiramente neles qualquer rio, uma terra paradisíaca e cheia
cunho, que lhes quiserem dar.
de mistérios. Já nesse momento, os
E pois Nosso Senhor, que lhes
deu bons corpos e bons rostos, indígenas vigoram como bons sel-
como a bons homens, por aqui vagens, que necessitam de tutela e
nos trouxe, creio que não foi civilização porque eram a infância
sem causa.” da humanidade.
[...]

49
Quando Fanon (2008) discorre vismo com a adoção de um discur-
sobre o povo negro, afirma que, para so, de autores portugueses, que
os brancos, ele não possui passado reforçava o esterótipo dos povos
histórico. Do mesmo modo, os po- escravizados como primitivos e
vos indígenas eram considerados bestializados, esvaziando-os do
sem lastro cultural. Para a Europa, status de humanos. Desse, modo,
a história dos povos colonizados mulheres e homens negros eram
começa com a sua chegada aos personagens, objetos, nas escri-
territórios. tas de homens brancos portugue-
Na perspectiva de uma histo- ses que narravam a vida no Brasil,
riografia eurocentrada, a história inclusive a vida de escravizados.
da América começa em 1492. Para Constatamos que não há ainda au-
viabilizar essa ideia foi preciso, de toria negra durante esse período, o
fato, invisibilizar todas as socieda- que se justifica pelo epistemicídio
des existentes antes dessa data, que influencia todos os âmbitos da
suas organizações políticas, cren- sociedade e inclusive a produção
ças religiosas, projeções arquite- literária.
tônicas e tecnologias. Inclusive o Com a vinda da família real
apagamento da língua de origem para o Brasil em 1808 e posterior-
significa a aniquilação de um mun- mente com a independência, em
do, de um modo de ser e pensar. 1822, ocorre um incremento cultu-
Além de uma conjuntura ca- ral que resulta também na propa-
racterizada pelo escravismo, que gação de escolas. Contudo a de-
subtraía o status de humanidade a sigualdade continua operando e
essa parcela da população, a con- mantendo negros e negras longe
dição de colônia impedia, de for- da produção intelectual e artística,
ma geral, o desenvolvimento de um pois desde sua gênese a educa-
mercado literário e a coletivização ção formal no Brasil foi criada para
da linguagem escrita. As culturas atender aos interesses da classe
africanas e indígenas, suas mani- dominante branca e masculina.
festações orais ou registros de ou- Logo, a Literatura no Brasil es-
tra natureza foram tomadas como teve, durante muito tempo, subju-
atrasadas e insignificantes, sendo gada ao pensamento europeu. Isso
a escrita, domínio da burocracia quer dizer, como afirmado anterior-
letrada, constituída por homens mente, que a autoria pertenceu, na
brancos que estabeleciam a comu- maior parte da história de nossa
nicação com a metrópole. Literatura, aos homens brancos. E
A Literatura do período colo- é um fato extremamente significa-
nial também vai justificar o escra- tivo, como já referido, que somente

50
em 1808, com a chegada da família uma sociedade racista/patriarcal,
real portuguesa ao Brasil, ocorre quanto pela falta de registros que
um crescimento expressivo na pro- permitissem sua presença na histó-
dução de jornais, revistas e livros, ria da Literatura Brasileira.
ou seja, pelo menos trezentos anos Nesse quadro, a Literatura
depois da invasão. produzida por mulheres e homens
A perspectiva sobre os povos negros responde ao racismo e à
negros mantêm-se na Literatura permanência do regime escravista
durante o Brasil Império, mas já com narrativas de negras e negros
nesse período há o surgimento de compartilhando suas experiências
uma literatura abolicionista que de vida. Ainda assim, predominam
defende o fim da escravatura e lan- as obras onde a representação de
ça novos olhares a partir da ideia negras e negros é estereotipada.
desses povos como produtores e Desde a Colônia, há uma tentativa
cultura e dignos de direitos. Embo- de retratar o Brasil nas obras lite-
ra essa produção ainda pertença, rárias e de construir uma imagem
predominantemente aos brancos, positiva para o país que se confi-
destacam-se autores importantes gurava com tantas contradições e
como Joaquim Nabuco, Luiz Gama desigualdades.
e José do Patrocínio. Por esse ângulo, no século XIX,
Somente no século XIX, surgem a Literatura Brasileira branca e eli-
de forma consistente os primeiros tista, comprometeu-se com a cria-
escritos de autoria negra que abor- ção de personagens que represen-
dam o racismo e inserem temas tavam a tecitura de uma narrativa
pertinentes para as vozes excluí- universalizadora sobre uma supos-
das. É importante considerar que ta “nação” brasileira. Em si, a ideia
a Literatura Negra possui raízes de construção de tal narrativa já
muito mais antigas nas tradições era racista por negar as diferenças
orais africanas que atravessaram e a racialização, que desde sempre
o Atlântico. Podemos marcar esse foi uma característica da socieda-
século pelo florescimento da Lite- de brasileira. Em um discurso na-
ratura de autoria negra, pois nele cional, obviamente, os marginali-
surgem as obras de grandes nomes zados não existem, pois os grupos
como Maria Firmina, Luiz Gama, hegemônicos impõem sua visão de
Machado de Assis, Cruz e Sousa, mundo e valores. Nesse momento
Lima Barreto. Note-se que há uma era preciso fundar uma Literatura
ausência de escritoras, que pode nacional.
ser explicada tanto pela limitação Nesse projeto, de fundação
de acesso ao ensino formal em de uma Literatura nacional/nação

51
brasileira, era preciso eleger um tismo brasileiro, escola literária
herói nativo, que não deveria ser onde foram sempre citados José
português e nem negro, com a des- de Alencar, Castro Alves e Casimiro
culpa de que o último seria estran- de Abreu. Aliás, o Romantismo, em
geiro. Assim, o indígena é recupera- sua busca pela construção de uma
do como herói nacional e por isso o identidade nacional, subtraiu com-
romance de fundação da Literatu- pletamente o papel do povo negro
ra Brasileira é Iracema, de José de na constituição da sociedade bra-
Alencar. sileira.
Nesse processo, negras e ne- A inserção da referida autora
gros sempre foram invisibilizados na História da Literatura, o estudo
ou retratados de forma degrada- e a popularização de suas obras re-
da. Obviamente, havia escritoras e presentam a possibilidade de uma
escritores negros produzindo suas história outra atravessada pela jus-
obras, mas sua presença não po- tiça cognitiva aos povos negros. Em
deria “manchar” a Literatura Brasi- Úrsula, Maria Firmina coloca a es-
leira. Ou seja, durante o Romantis- cravidão como um elemento social
mo, como já citado, optou-se por central e de maneira crítica aborda
investir na imagem dos indígenas a objetificação dos escravizados.
como bons selvagens, negligen-
ciando qualquer presença negra, Meteram-me a mim e a mais
trezentos companheiros de in-
ainda que investida de uma positi-
fortúnio e de cativeiro no estrei-
vidade tóxica. to e infecto porão de um navio.
Assim como as mulheres fo- Trinta dias de cruéis tormen-
ram completamente apagadas da tos, e de falta absoluta de tudo
história do país, escritoras e escri- quanto é mais necessário à
vida passamos nessa sepultura
tores negros não constam da His-
até que abordamos as praias
tória da Literatura. A maranhense brasileiras. Para caber a merca-
Maria Firmina dos Reis, escritora doria humana no porão fomos
do século XIX, atualmente tem sido amarrados em pé e para que
citada e reconhecida como a pri- não houvesse receio de revolta,
acorrentados como animais fe-
meira romancista brasileira. Mais
rozes das nossas matas, que se
de um século após seu lançamen- levam para recreio dos potenta-
to, o romance abolicionista Úrsula dos da Europa. Dava-nos água
é afirmado em sua relevância e es- imunda, podre e dada com
tudado nos espaços acadêmicos. mesquinhez, a comida má e
ainda mais porca: vimos morrer
Entretanto, Maria Firmina não
ao nosso lado muitos compa-
figura entre os autores considera- nheiros à falta de ar, de alimen-
dos mais importantes do Roman- to e de água. É horrível lembrar

52
que criaturas humanas tratem presentativo de uma autêntica
a seus semelhantes assim e que brasilidade. O índio selvagem,
não lhes doa a consciência de primitivo, antropófago, nos
levá-los à sepultura asfixiados e discursos do século XVI. O ne-
famintos. (REIS, 2018, p.122) gro incivilizado, sujo, perigoso,
naturalmente inclinado à vio-
lência e à marginalidade, nos
Concluímos que a Literatu-
discursos do barroco e do pen-
ra, como uma prática humana, é samento positivista novecentis-
atravessada também pelas diver- ta. O sertanejo fanático e igno-
sas opressões, inclusive na própria rante em pelo menos parte do
definição do que se considera Li- discurso – mesmo que ambíguo
– em Os Sertões, de Euclides da
teratura, de quem pode escrever e
Cunha, durante a guerra de Ca-
publicar. Muitos grupos são silen- nudos. Ao mesmo tempo, esses
ciados, como o são em outros cam- espaços e sujeitos têm servido,
pos. Por isso o uso dos termos Lite- por meio de um movimento mui-
ratura Negra se justifica pela longa tas vezes idealizador, como for-
ma de conceber uma identida-
permanência do racismo nesse
de nacional em contraposição
campo. Porque Literatura no Brasil aos discursos eurocêntricos. É
sempre teve cor e foi branca desde o caso, por exemplo, da litera-
seus primórdios. tura do romantismo, em que os
Sendo assim, a Literatura Bra- espaços e sujeitos idealizados
se transformam, com frequên-
sileira sempre encenou um papel
cia, em representantes de uma
importante na construção do dis- particularidade luso-tropical
curso de nação e identidade na- capaz de gerar referências
cional ao longo da história do país, para uma identidade nacional
mas baseado em uma visão elitis- que se pretende independente
da Europa e que, no entanto,
ta e excludente, como nos explica
continua, na maioria dos casos,
Alejandro Reyes na longa citação reproduzindo o pensamento
abaixo. colonial. (REYES, 2013, p.58)

A representação dos espaços


Com a abolição da escravatura,
e das populações marginais
que ocorreu vergonhosamente tar-
(ou marginalizadas), na história
cultural brasileira, esteve quase dia, em 1888, novos desafios foram
sempre relacionada a questio- impostos para a população negra
namentos sobre a identidade que não recebeu nenhum amparo
nacional e aos esforços por
ou reparação do Estado Brasileiro
moldar, criar ou inventar essa
que propiciassem sua inclusão so-
identidade. Por um lado, esses
espaços têm servido como con- cial e a dignidade devida aos que
traponto exemplificador do que tiveram durante séculos sua mão
não é (ou não deveria ser) re-

53
de obra explorada, para dizer o mí- do negro infantilizado, do escravo
nimo. A falta de acolhimento após demônio, do negro pervertido e a
a abolição é reforçada pelo projeto figura do negro exilado na cultura
de eugenia com o investimento na brasileira.
população imigrante branca. A Li- Podemos citar Tia Nastácia,
teratura contribui com esse intento personagem de Monteiro Lobato,
através de obras como O Cortiço, cozinheira de uma família branca
de Aluísio Azevedo e O Presidente que é desqualificada em sua es-
Negro, de Monteiro Lobato. tética e inteligência. A condição
Já no século XX, o Modernis- de servil constitui sua existência e
mo Brasileiro, mesmo intencionan- reforça o estereótipo da cozinha
do romper com as referências cul- como o lugar da mulher negra.
turais europeias, reproduziu uma Do mesmo modo, Bertoleza,
visão elitista da cultura brasileira, personagem do romance O Corti-
permitindo algumas assimilações, ço, de Aluísio Azevedo, é rebaixada
mas mantendo a exclusão ao povo e usada como um objeto por João
negro e suas manifestações artís- Romão, de acordo com seus inte-
ticas. Os veículos de publicação resses.
ligados a esse movimento não pos-
sibilitaram a inserção de narrativas Bertoleza é que continuava na
cepa torta, sempre a mesma
negras. Do contrário, contribuíram
crioula suja, sempre atrapa-
para reforçar um ideal de socieda- lhada de serviço, sem domingo
de cordial baseada na mestiçagem. nem dia santo: essa, em nada,
Também é importante registrar em nada absolutamente, par-
que, quando constatamos a pre- ticipava das novas regalias do
amigo: pelo contrário, à me-
sença da população negra repre-
dida que ele galgava posição
sentada pelo discurso literário, o social, a desgraçada fazia-se
“ser objeto” enquanto personagem mais e mais escrava e rasteira.
significa ser desumanizado, atra- João Romão subia e ela ficava
vés da construção de estereótipos cá embaixo, abandonada como
uma cavalgadura de que já não
como passivos, corruptos, hiperse-
precisamos para continuar a
xualizados, embrutecidos e anima- viagem. (AZEVEDO, 2010)
lizados.
Essa se caracteriza como uma As duas personagens, Tia Nas-
literatura sobre o negro, na qual tácia e Bertoleza, foram construídas
predomina uma visão distanciada como representações das mulheres
construída sobre a estética branca negras na sociedade brasileira. Es-
dominante. Destaca os estereóti- pecialmente Bertoleza, simboliza o
pos do escravo nobre, do negro fiel,

54
ápice do absurdo da representa- ciada, pelo poder público, na espe-
ção racista. Note-se que as mulhe- rança de que isso tornasse o país
res negras na Literatura não têm o gradualmente mais branco e, por-
direito de constituir uma família e, tanto, melhor.
nesse sentido, a arte imita a vida. Compreendemos que a au-
Quando negras e negros não sência de representatividade ou a
são retratados como degenerados, representação distorcida do povo
se estabelece uma fraude em rela- negro na Literatura, que não é neu-
ção à identidade racial na autoria. tra ou universal, representa uma
Um dos casos mais representativos escolha política. Nos explica Regi-
é o do já citado escritor Machado na Dalcastagnè que
de Assis, negro, cujos retratos fo-
ram alterados na cor e nos traços. Das mais sofisticadas teorias –
que afirmam a literatura como
Considerado o maior nome da Li-
um espaço aberto à diversi-
teratura do Brasil, com uma vasta dade – às mais rasteiras argu-
produção, foi branqueado para mentações, que a prescrevem
que pudesse alcançar o devido re- como um remédio para todas
conhecimento sem ferir os pudores as mazelas sociais (da desin-
formação à ausência de cida-
racistas. O maior ficcionista da Li-
dania), podemos acompanhar
teratura Brasileira jamais poderia o processo de idealização de
ser negro. um meio expressivo que é tão
Esse processo sempre teve a contaminado ideologicamente
eugenia como força motriz. A saber, quanto qualquer outro, pelo
simples fato de ser construído,
a defesa intransigente de uma con-
avaliado e legitimado em meio
figuração genética superior para a disputas por reconhecimen-
a raça humana, baseada exclusi- to e poder. Ao contrário do que
vamente no genótipo caucasiano. apregoam os defensores da
Desse modo, entende-se porque arte como algo acima e além de
suas circunstâncias, o discurso
prevalecia a tese de que o homem
literário não está livre das in-
branco europeu era o padrão hu- junções de seu tempo e, tam-
mano ideal. pouco, pode prescindir dele – o
Não houve nenhuma espécie que não o faz pior nem melhor
de subsídio ou estímulo para que o que o resto. (DALCASTAGNÈ,
2012, p.191)
povo negro, no período pós-aboli-
ção, se estruturasse com dignida-
A Literatura Brasileira, do sé-
de, ao contrário do que ocorreu,
culo XIX ao XXI, sempre pactuou
no início do século XX, quando a
com o discurso oficial. Os estereó-
imigração europeia para o Brasil
tipos permanecem até hoje, basta
foi amplamente estimulada e finan-

55
uma rápida incursão pela TV, pelos rocêntricas.” (SANTOS, 2007, p.49).
filmes, pelas adaptações e ainda Ao longo do tempo, diversas
veremos a imagem da população ações políticas vêm sendo desen-
negra como indolente, preguiçosa, volvidas no processo de reivindi-
incapaz, pois essa é a grande nar- cação. Os movimentos negros têm,
rativa nacional. através delas, construído conheci-
Porém, a população negra mentos fundamentais para a com-
nunca permaneceu submissa às preensão crítica da formação da
opressões, organizando-se em mo- sociedade brasileira. Para Nilma
vimentos de resistência desde o pe- Lino Gomes
ríodo colonial. Mulheres e homens
escravizados sempre resistiram de Uma coisa é certa: se não fos-
se a luta do Movimento Negro,
formas variadas e lutaram pela
nas suas mais diversas formas
abolição. Os Movimentos Negros de expressão e de organização
surgiram para pautar a necessida- – com todas as suas tensões, os
de de igualdade de oportunidades desafios e os limites, muito do
e direitos, pois a população negra que o Brasil sabe atualmente
sobre a questão racial e afri-
sempre foi excluída, consequente-
cana, não teria acontecido. E
mente formando os estratos mais muito do que hoje se produz
empobrecidos e marginalizados da sobre a temática racial e africa-
sociedade brasileira. Com base nis- na, em uma perspectiva crítica
so, nos anos 70, esses movimentos e emancipatória, não teria sido
construído. E nem as políticas
vão se configurar de forma mais
de promoção da igualdade ra-
próxima ao que temos nos dias de cial teriam sido construídas e
hoje. Abdias Nascimento e Lélia implementadas. (GOMES, 2017,
Gonzalez são dois nomes represen- p. 18-19)
tativos de grandes figuras atuantes
na luta por direitos. Dentre essas ações, cito aqui
Tais movimentos são bastan- a criação da Imprensa Negra e a
te diversificados em sua atuação, publicação dos Cadernos Negros,
mas destacamos a relevância da por sua relevância na produção da
escolarização como uma reivindi- Literatura Negra. A Imprensa Ne-
cação constante, pois “há uma for- gra eram jornais que publicavam
ma de combate ou um instrumen- uma grande variedade de gêneros
to de luta contra o racismo que é textuais, uma iniciativa política de
consensual entre os Movimentos atuação no espaço jornalístico e li-
Sociais Negros, qual seja, a luta por terário. Neles, a comunidade negra
educação formal e a reivindicação podia expor suas demandas, abor-
de políticas educacionais não eu- dar temas de seu interesse, mobili-

56
zar para eventos e outros fins. Foi tura Negra e a memória literária
também um espaço para divulga- desse grupo, sendo uma referência
ção da produção literária, uma vez em termos de acesso ao mercado
que o mercado editorial era bas- editorial. Os Cadernos são impor-
tante restrito para essa população, tantes subsídios de conscientiza-
ou seja, artistas negras e negros ção e rompimento com a estética
não faziam parte da imprensa tra- racista.
dicional e tinham poucas oportuni- Dentre muitas autoras que
dades de divulgar suas obras. publicaram suas escritas nos Ca-
Criado por Abdias Nascimen- dernos Negros, podemos citar
to, o jornal Quilombo pode ser ci- Conceição Evaristo, Elisa Lucinda,
tado como um dos mais importan- Cristiane Sobral e Miriam Alves.
tes exemplos da imprensa negra. Desse modo, houve também um es-
Podemos citar, dentre escritoras e paço para a divulgação da Litera-
escritores que publicavam nesse tura Negra Feminina, extremamen-
periódico, além do próprio Abdias te importante se considerarmos os
Nascimento, Lélia Gonzalez, Geni estereótipos construídos sobre as
Guimarães, Cuti e Carolina de Je- mulheres negras.
sus. Sendo as duas iniciativas in-
Portanto, a Imprensa Negra terligadas, ambas nos mostram
também cumpriu um importante que os Movimentos Negros foram e
papel na desconstrução do mito são muito atuantes no sentido da
da democracia racial. A Literatura decolonialidade, pois criaram es-
Negra está relacionada à militân- paços de produção e divulgação
cia enquanto esforço de transfor- em contraposição a um mercado
mação das estruturas racistas da branco e elitista. Tanto a Imprensa
sociedade. Negra quanto os Cadernos Negros
Os Cadernos Negros são co- foram essenciais para o fomento
letâneas de textos produzidos por da Literatura Negra. Ao publicar
autores negras e negros, em sua obras da comunidade negra incen-
maioria, contos e poemas. São pu- tivaram novas produções e abriram
blicados anualmente pela editora caminho para muitas iniciativas
Quilombhoje e constituem um dos atuais de publicações coletivas.
mais importantes registros históri- Nesse itinerário, a Literatu-
cos e uma grande referência na tra- ra Negra se caracteriza como um
jetória da Literatura Negra. Ideali- conjunto de contra-narrativas.
zados por um grupo do qual faziam Para Bhabha (1998) contra-narrati-
parte Cuti e Oswaldo de Camargo, vas são formas de expressão que
os Cadernos valorizaram a Litera- desestabilizam os discursos hege-

57
mônicos. Elas subvertem os discur- de brasileira. Portanto, não há di-
sos dominantes de grupos que tra- ficuldade em se estabelecer quem
balham pela manutenção de seu é negro no Brasil. Quanto a isso,
privilégio e poder de opressão so- qualquer dúvida pode ser dirimi-
bre outros. As contra-narrativas ne- da ao contemplarmos as salas de
gras são uma forma de resistência aula das universidades públicas,
e possibilitam o exercício de novas dos cursos mais prestigiados, onde
formas de pensar e compreender a claramente é possível identificar a
realidade. predominância de brancos. Por ou-
A Literatura negra no Brasil tro lado, uma panorâmica do siste-
se caracteriza fundamentalmente ma prisional explicita os pardos e
pela centralidade de negras e ne- pretos que compõem a categoria
gros como sujeitos da escrita. A pro- negros. Tal quadro somente se jus-
dução classificada como tal é an- tifica pelo racismo estrutural e ou-
corada em uma trajetória histórica tras opressões endêmicas no Brasil.
coletiva que se traduz nas narrati- É claro que há exceções, a
vas individuais. Nela, há uma visão maioria delas fruto de tímidas
de mundo, que remete à negritude políticas públicas, mas a questão
e é indissociável da opressão colo- é que a sociedade brasileira
nial, alimentando a criação literá- está racializada e a negação
ria e a assunção do pertencimento desse fato nos distancia de sua
étnico-racial. Por isso, trata-se do superação. Portanto, a adjetivação
“sujeito autorreferenciado negro e da Literatura como negra não cria
periférico como autor e narrador uma situação irreal, pelo contrário,
de sua construção artística na for- questiona a Literatura em sua
ma de prosa (diários, romances e ilusória neutralidade.
contos) [ou poesia], bem como sua Ou seja, está em jogo aqui a Li-
visão social de mundo, política e teratura produzida por negros, mu-
culturalmente construída.” (SILVA, lheres e homens pardos e pretos,
2013, p.34) pois nosso interesse se concentra
Não existe Literatura universal. na condição de protagonismo dos
As distinções baseadas na cor da mesmos e na potência de sua re-
epiderme e na estereotipia sedi- presentatividade, que
mentada se justificam pelo racismo.
As categorias sociais de cor/raça ...não se resume à honestidade
na busca pelo olhar do outro
não são naturais, foram criações
ou ao respeito por suas pecu-
modernas que estabeleceram dis- liaridades. Está em questão a
tinções de base fenotípicas e que diversidade de percepções do
operam com sucesso na socieda- mundo, que depende do aces-

58
so à voz e não é suprida pela A ancestralidade é valor bastan-
boa vontade daqueles que mo- te caro para os povos africanos e,
nopolizam os lugares de fala.
consequentemente, para os povos
(DALCASTAGNÈ, 2012, p.18)
da diáspora. Não se trata aqui da
reprodução de tradições cristali-
Não é o objetivo dessa pes-
zadas ou do apelo à ideia de uma
quisa delimitar de forma fechada o
África mítica. Toda tradição pode
conceito de Literatura Negra, mas
adquirir novas conotações ou sen-
transitar por seu percurso. Contudo,
tidos porque não são dadas, mas
cabe expor algumas de suas carac-
construídas socialmente (HOBS-
terísticas consideradas relevantes.
BAWN, TERENCE, 2018).
A Literatura Negra instaura um
Desse modo, as tradições ne-
sentido afirmativo da palavra ne-
gras atravessaram o Atlântico e
gro. Enquanto ela é utilizada para
se reconfiguraram em novos mo-
qualificar situações indesejadas e
dos de ser e estar no mundo. Tal
ruins, na Literatura Negra ela carac-
processo é contínuo e alimenta
teriza pessoas dotadas de capaci-
a resistência ao que Boaventura
dade intelectual para ler o mundo
de Sousa Santos (2011) denomina
e, a partir disso, compor cenários
pensamento abissal. Para ele, essa
ficcionais que encantam e pos-
forma de pensamento simplista se
suem um forte papel pedagógico.
funda em dualismos, sendo a tradi-
Escritoras e escritores negros são
ção contraposta à modernidade e
modelos de caminhos que crianças
considerada atrasada e inferior. O
negras acreditam poder seguir por
pensamento abissal marginaliza os
sentirem-se representadas.
conhecimentos africanos, afro-bra-
Também é um espaço privile-
sileiros, indígenas e todos aqueles
giado de composição identitária
que não cabem na modernidade
que passa pela memória e ances-
europeia.
tralidade porque dialoga com os
Por último, mas não menos im-
arquétipos da história africana e
portante, a Literatura Negra situa
afro-brasileira. A construção de
a comunidade na contemporanei-
um universo simbólico de perten-
dade, pois manifesta-se em diver-
cimento proporciona o enfrenta-
sos gêneros atuais e dialoga com
mento do cânone literário vigente
linguagens variadas construindo
e, sobretudo, o enfrentamento do
meios de expressão, mobilização e
modelo social vigente, ou seja, ela
fruição estética.
é potencialmente transformadora.
A Literatura Negra pode pro-
A literatura negra dialoga
porcionar aos estudantes uma visão
com as tradições e as ressignifica.
mais ampla e diversa do mundo, de-

59
safiando estereótipos, preconceitos maniza. Enquanto o racismo nos
e visões de mundo unidimensionais. aproxima dos primatas, sob uma
As obras, através de personagens perspectiva de subalternidade, a
e situações podem gerar reflexões arte, e aqui tratando especifica-
sobre questões sociais, raciais, de mente da Literatura, pode contri-
gênero, de classe e outras formas buir para a construção de novos
de opressão, desenvolvendo uma sentidos. Apostamos no potencial
compreensão mais profunda da da Literatura para nos fazer pensar
complexidade e das desigualda- e refletir sobre nossas identidades,
des presentes na sociedade. Mas, sobre quem somos em nossas ale-
sobretudo, pode atuar como uma grias e sofrimentos e sobre os moti-
forma de resistência e afirmação de vos de sermos como somos, refletir
identidades fornecendo modelos de sobre nossas vidas e as vidas que
referências positivas e inspiradoras. queremos construir nos horizontes
Acreditamos que a arte, em de nossas utopias.
contraposição ao racismo, nos hu-

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60
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61
VIVÊNCIAS
DO POVO DA
ORALIDADE
Valéria Paixão de Vasconcelos
Nepomuceno1

Escrevivências2

SANKOFA 4

Nasci negra chamada de morena, filha de mãe negra5 de pele es-


cura e pai visto como branco, de cabelos cacheados e me apelidavam
de cachinhos, eu gostava muito dos meus cachos. Ao me pentear, minha
mãe sempre falava que ainda bem que puxei mais o cabelo do meu pai.
1 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Professora
Substituta do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ- DAEE).
2 Conceito de Conceição Evaristo para as escritas de vivências de pessoas negras.
3 Adinkra: são Símbolos expressos graficamente. Ideogramas oriundos de um dos muitos sis-
temas de escrita africanos antigos. Têm como objetivo a transmissão de mensagens. Gana,
África Central. Disponível em: <http://www.adinkra.org/htmls/adinkra_index.htm>Acesso em:
2 de fev. 2017.
4 Símbolo da importância de aprender com o passado.
5 Levando em consideração a classificação do IBGE, quando me refiro a negros, refiro-me a
pretos e pardos.

62
Não entendia muito, mas via mi- va de “minha neguinha linda!”. Meus
nha mãe passar em sua cabeça um tios também me mimavam exaltan-
pente que ela deixava esquentar do a nossa cor. “A afirmação da
no fogão e que saia até fumaça de identidade negra é, sobretudo, in-
seus cabelos, tinha que correr para fluenciada por ambientes em que
não pegar chuva no cabelo e não as questões raciais são colocadas
encolher, como ela dizia, ainda co- de maneira não ameaçadora” (OLI-
locava rolos no cabelo para dormir, VEIRA, 1999, p.50). Nunca tive nenhu-
não parecia muito confortável, mas ma dúvida da minha cor, apesar de
como dizia não importava o quan- alguns conflitos internos, eu só não
to sofresse, ela queria ficar bonita. sabia que ser negra me excluiria de
Como foi meu pai que me re- alguns lugares/oportunidades e
gistrou, na minha certidão de nas- que na fala da minha tia, por exem-
cimento veio informada a cor bran- plo, havia uma ideologia de racis-
ca e isso foi usado por mim, muitas mo estruturada na sociedade e que
vezes, como motivo de defesa em ali não havia nada de brincadeira e
brincadeiras e brigas com os ir- sim um reforço no racismo, mesmo
mãos e primos mais claros ou não que ela não percebesse.
do que eu, mas mesmo documen-
tada, a minha cor sempre esteve Sonho de criança
em evidência. Na escola os colegui-
nhas me chamavam de porquinha, Sonhava em ser professora e
mesmo estando limpinha e sempre fiquei muito feliz quando ainda era
puxavam meu cabelo falando que criança e ganhei de meus pais um
parecia uma mola. quadro de giz, me sentia a profes-
Cresci ouvindo meu pai cha- sora e brincava de escolinha ensi-
mando minha mãe de minha Pre- nando minha irmã. Cresci estudan-
ta, minhas tias, irmãs do meu pai, do em escolas públicas, tive uns
brincando com minha mãe que o bons exemplos de professores ne-
lugar de preta era na cozinha e ela gros a me incentivar, inclusive uma
se defendia dizendo que fazia por- que entre elogios, disse para nunca
que gostava de cozinhar, ou seja, desistir de meus sonhos. Fiz o cur-
ser negra, preta ou/e a negritude so de Normalista para formação de
sempre esteve presente durante a Professores e foi uma grande emo-
minha infância e o racimo também. ção para mim e para minha família,
Minha família era uma dico- começar a trabalhar com a docên-
tomia, a parte da família que era cia. Lecionei em algumas escolas
negra, sempre me fortaleceu, pois particulares pequenas e outras es-
meu avô Dodô sempre me chama- colas públicas através de contrato,

63
mas nunca imaginei que poderia Dei início aos estudos para o
fazer curso superior, principalmen- vestibular e, nessa ocasião, só pen-
te, em uma universidade pública. sava se conseguiria passar para
No meio do percurso, casei, uma das universidades públicas,
tive filhos e dei preferência a parar pois seria a única que poderia fa-
de lecionar e assim acompanhar os zer já que não tinha condições fi-
primeiros anos de suas vidas. De- nanceiras para pagar uma univer-
pois de três anos, voltei a trabalhar sidade particular e nunca tinha
na Creche/escola onde consegui feito nenhum tipo de curso pre-
vaga para eles. Fiquei trabalhan- paratório, porque eram muito ca-
do por dois anos até que me mudei ros. Próximo às provas, busquei um
para um bairro que fica ainda mais curso pré-vestibular social, que me
no subúrbio de Nova Iguaçu, onde ajudou a ter uma noção das disci-
o acesso era bem difícil com ônibus plinas que o curso para professo-
de hora em hora e ficava árduo sair res não se aprofunda, como mate-
para trabalhar com duas crianças mática, física e química.
pequenas. Consegui! Assim sendo, minha
Como não consegui um empre- história de formação acadêmica se
go próximo de casa e não queria fi- entrelaça com a minha tentativa de
car longe dos meus filhos por mui- voltar ao trabalho, porque busquei
to tempo, esperei mais um pouco, a graduação em Pedagogia, pois, ao
me detendo nas atividades do lar e tentar voltar a lecionar, as exigên-
fazendo alguns cursinhos mais rá- cias nas escolas já não permitiam
pidos e domésticos, como crochê, mais ter somente o Curso Normal.
tricô, pintura em tecido, pelúcia e Com o ingresso na Universi-
doces, enquanto eles estavam na dade Federal do Estado do Rio de
escola. Janeiro – UNIRIO -considerei que
Depois de ter parado de tra- agora sim não ficaria mais desem-
balhar por mais um tempo, queria pregada, afinal sempre ouvi falar
voltar a lecionar, pois meus filhos que Faculdade Federal era difícil
já estavam mais autônomos, porém para entrar, mas que depois abre
eu não tinha nenhuma indicação portas.
de trabalho na área e em meu currí- Mas, logo que passou a alegria
culo não tinha muitas experiências. inicial, veio a realidade. Ingressei na
Então, após incentivo da minha faculdade e descobri que não era
irmã, que já cursava oceanografia tão fácil assim, simplesmente estu-
na UERJ – Universidade do Estado dar. Existiam outras preocupações,
do Rio de Janeiro - comecei a ambi- pois além da dificuldade de morar
cionar a faculdade. longe, os gastos aumentariam mui-

64
to, com passagem e alimentação Diversidade e Desigualdade8 com a
nesse novo trajeto. Quando fui fa- professora Maria Elena Viana Sou-
zer a matrícula, vi um panfleto que za e com o auxilio desta professora
anunciava bolsas para estudantes tive a possibilidade dar continuida-
de origem popular, negro ou afro- de a pesquisa no meu estágio e na
descendente e ser da primeira ge- participação no PIBID9 do Ensino
ração a entrar na graduação. Era Fundamental.
para mim, eu me encaixava em to- Pude ver a importância que es-
dos os pré-requisitos, então, fiz a ses estudos tiveram na minha vida,
inscrição, fui selecionada. pois a formação política nessas
pesquisas nos faz entender como e
Para além da graduação porque essa conjuntura brasileira
eurocêntrica e racista nos aliena.
Participei do projeto de pes- Nem todos os estudantes bolsistas,
quisa e extensão “Programa Cone- que passaram pelo projeto, se en-
xões de Saberes6: diálogos entre a caixavam no perfil exigido, mesmo
universidade e as comunidades po- porque a UNIRIO é uma universi-
pulares”, onde tive a oportunidade dade que quase não têm negros e
de desenvolver um trabalho espe- mesmo os que tinham precisavam
cífico de intervenção pedagógica7, trabalhar para se manter e muitas
em que as formadoras do projeto vezes manter a família.
que eram mestrandas assessora- Alguns professores negros que
vam pedagógica e politicamente passam pela graduação, tiveram
os bolsistas, dando início as nossas a formação acadêmica, mas sem
reflexões sobre localidade. passar por alguns caminhos de
Comecei também a desenvol- formação, infelizmente, eles não
ver minha pesquisa com foco na adquiriram essa sensibilidade e
educação das relações étnico-ra- não têm essa visão de emancipa-
ciais, no eixo de Ações Afirmativas ção para o educando e nem muito

6 É um Programa Nacional de pesquisa e extensão que visa o diálogo entre as universidades


e as comunidades populares.
7Refere-se às oficinas do Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e
as comunidades populares. Em parceria com Programa Escola Aberta, significava uma pos-
sibilidade concreta de ações e execução de metas que valorizavam o protagonismo do estu-
dante universitário de origem popular, identificando seus saberes, de modo a construir uma
política nacional de ações afirmativas no âmbito das instituições federais de ensino superior.
8 Este grupo de pesquisa estudava as questões étnico-raciais e de racismo e foi iniciado em
uma das vertentes de pesquisa do Programa Conexões de Saberes.
9 O Programa Institucional de Bolsas e Iniciação à Docência – PIBID, mantido pela Coordena-
ção de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior – CAPES, desenvolvido na UNIRIO,
por meio do Projeto Iniciação à docência – desde 2010, em escolas públicas de educação bá-
sica com a participação de estudantes de licenciaturas, professores supervisores das escolas.

65
menos pensam na educação para de uma educação escolar que, du-
as relações étnico-raciais10. rante anos e anos, não deu impor-
tância a uma grande parte da po-
Entendemos a educação étni- pulação de nossa sociedade que
co-racial como forma de edu-
foi historicamente excluída.
car para cidadania, ou seja, a
Na trajetória acadêmica de
partir do momento em que a
identidade das crianças negras ensino, pesquisa e extensão com a
e mestiças afrodescendentes expectativa do reconhecimento da
são valorizadas para que esse Diversidade Étnico-Racial e Cultu-
segmento populacional possa
ral, selecionei materiais e trabalhei
se emancipar cada vez mais e
com oficinas pedagógicas lúdicas
lutar por sua inclusão nos es-
paços políticos, sociais e eco- e com algumas experiências lite-
nômicos da sociedade brasilei- rárias étnico-raciais infantis, com
ra. (SOUZA, 2012, p.122) personagens negros, e nos livros
como: A Menina Bonita do Laço de
Com os estudos e debates, fo- Fita, Minha Família é Colorida, O
ram surgindo algumas questões cabelo de Lelê, O menino Nito, en-
polêmicas como a entrada de es- tre outros; confeccionamos bone-
tudantes negros na universidade cas Abayomi, bonecos de meia, fan-
pública através das Cotas Raciais e toches e marionetes; fizemos teatro
a implementação da Lei 10.639/0311 e outras atividades com auxílio das
que instituiu a obrigatoriedade do crianças, finalizando o trabalho
ensino de História da África e dos com círculo de conversas, trazendo
Africanos nas escolas de Ensino um posicionamento político e en-
Fundamental e Médio, alterando a fatizando, com um olhar sensível, a
LDB (Lei Diretrizes e Bases da Edu- temática afrodescendente brasilei-
cação) e estabelecendo as Diretri- ra.
zes Curriculares Nacionais para a Com o posicionamento polí-
Educação das Relações Étnico-Ra- tico e a oportunidade de dialogar
ciais e para o Ensino de História e com futuros professores, com as
Cultura Afro-Brasileira e Africana. oficinas pedagógicas e sobre elas,
Tais questionamentos surgiram, mostrando como é possível apre-
também, a partir da repercussão sentar a cultura étnico-racial de
10 O termo foi ressignificado pelo Movimento Negro que, em várias situações, utiliza com um
sentido político e de valorização do legado deixado pelos africanos. É importante, também,
explicar que o emprego do termo étnico, na expressão étnico-racial, serve para marcar que
essas relações tensas devidas a diferenças na cor da pele e traços fisionômicos o são tam-
bém devido à raiz cultural plantada na ancestralidade africana, que difere em visão de mundo,
valores e princípios das de origem indígena, européia e asiática. (BRASIL, 2004, p.5)
11 Utilizo a lei 10639/03 aqui neste trabalho, apesar de ter sido acrescida pela lei 11.645/08
desde março de 2008, incluindo as questões indígenas, pois a lei 10.639/03 tem o teor político
vinculado às questões de luta do movimento negro, dentre outras.

66
forma lúdica, entrando em contato com a temática, tendo interesse
com aspectos das Diretrizes e Ba- em se especializar no assunto. Pois
ses da lei 10.639/03 que estabele- alguns até já exercem a função de
cem a obrigatoriedade do ensino professor e segundo eles, não ha-
de História e Cultura Afro-Brasilei- viam tido nenhum contato com a lei
ra e Africana na Educação Básica 10.639/03.
que altera a LDB (Lei Diretrizes e Após esses estudos e com as
Bases) na Educação (BRASIL, 2004). experiências adquiridas com as
Estas oficinas foram realizadas ain- escolas e esse público em que foi
da na graduação com uma turma feita a minha monografia de gra-
de normalistas do 3º ano de for- duação: Perspectiva Educacional
mação de professores, no VI Semi- do Negro na Educação Escolar. Per-
nário de Educação Diferenciada e cebi a necessidade das instituições
Etnoconhecimento do IV Encontro escolares cumprirem a lei máxima
Luso-Brasileiro Educação e Cul- para educação, a Lei de Diretrizes
tura e também na Pedagogia da e Bases LDB com a inclusão da lei
UNIRIO, sendo uma vez na turma 10.639/03 para a Educação das Rela-
da disciplina de Arte e Educação e ções Étnico-Raciais e para o Ensino
mais de uma vez em diferentes tur- de História e Cultura Afro-Brasilei-
mas da disciplina de Literatura em ra e Africana, mesmo que, inicial-
Educação, com o professor Alberto mente, fosse através de projetos ou
Roiphe que adorava o diálogo com de políticas públicas, pois a esco-
a oficina da boneca Abayomi, e fa- la é o principal local de socializa-
lava que cada boneca tinha o seu ção onde as crianças negras e/ou
movimento próprio, ajudando na brancas devem aprender a respei-
formação das estórias que pode- tar outras culturas, outros povos
riam ser criadas. e também onde a juventude negra
Depois, continuei fazendo es- precisa construir uma identidade
sas oficinas em outras universida- de forma positiva e assim crescer
des para Formação de Professores com autoestima valorizada, convic-
e escolas através de convites ou to de sua capacidade intelectual,
editais de seminários e congressos. podendo prosseguir seus estudos
Com essas experiências, foi possí- de forma tangível e passando com
vel observar que esses futuros pro- equidade pela universidade públi-
fessores têm muito interesse em ca ainda muito elitizada, sabendo
adquirir mais conhecimentos de reconhecer o seu direito, em sua al-
como lidar com algumas questões teridade, em poder estar ali como
étnico-raciais, como o racismo; todos que têm aquele espaço como
aprender a desenvolver atividades norma, ter uma formação ampara-

67
da pelas políticas públicas e ser de aos estudos com o Mestrado e
respeitada. prossegui no grupo de pesquisa
Diante desse cenário, pensei que já participava na graduação,
na relevância de continuar minha entretanto atualizado no MEC e re-
pesquisa para trazer questões ét- nomeado por nós, GEPEER (Grupo
nico-raciais para professores da de Estudos e Pesquisa em Educa-
Educação Fundamental e, igual- ção Étnico-Racial). O meu grupo
mente, buscando mais embasa- de pesquisa que tinha também um
mento nessa temática e assim, con- quilombo de saberes, originando
tribuir para ações educacionais no pensamentos e ideias, com a pro-
campo das relações étnico-raciais. fessora Maria Elena impulsionada
Busquei cursos que me des- à temática.
sem mais bases teóricas, como o Além do GEPEER, na UNIRIO,
que fiz na Universidade Federal também tem outro “quilombo”, de
Rural do Rio de Janeiro Instituto educadoras negras “Etnoeducado-
de Educação/ Instituto Multidis- ras”, que com inspirações e diálogo
ciplinar de Nova Iguaçu, (UFRRJ/ estabelecidos com a Rede de Maes-
IM e/ou Rural de Nova Iguaçu) um tros y Maestras Hilos de Ananse
curso de aperfeiçoamento MEC/ (Bogotá/Colômbia) constituem um
UNIAFRO: Política de Promoção da evento de nome: “Encontro da Rede
Igualdade Racial na Escola, onde Carioca de Etnoeducadoras Ne-
encontrei professores e professo- gras”, Trazendo experiências que
ras que também fazem o curso e nos fortalecem com o protagonis-
que estudam e se preocupam com mo de educadoras negras no con-
o mesmo foco, me sentindo em um texto de educação básica, ensino
Quilombo de pensamento, saberes médio e superior.
e ideias. Logo após cursei uma pós- Assim como, o GPMC - Grupo
-graduação latu senso em História de Pesquisa em Políticas Públicas,
e Cultura Afro-brasileira e Africana, Movimentos Sociais e Culturas, que
promovido pela AÇÃO 20RJ/MEC/ conheci em uma reunião do grupo
UNIAFRO/UFRRJ Política de Promo- na UFRRJ - Rural de Nova Iguaçu,
ção da Igualdade Racial na Escola coordenado pelo professor Luiz Fer-
através do Laboratório de Estudos nandes de Oliveira e pela professora
Afro-Brasileiros (NEABI/UFRRJ) e do Monica Lins, é um grupo de estudos,
Grupo de Pesquisa Educação Su- de debates, lutas e encontros com
perior e Relações Étnico-Raciais os amigos. O meu quilombo para
(GPESURER) obtendo o título de Es- além dos saberes, meio que uma
pecialista em Educação. família, onde os encontros aconte-
Não parei, dei continuida- ciam sempre em grande estilo, com

68
lanches, almoços e sempre convida- para a juventude.
dos de lutas, ou movimentos sociais Nas aulas presenciais que mi-
e artísticos. Para além do acadêmi- nistrei para esses professores, a
co, leituras e escritas, aprendi e vi- questão racial foi um tema mui-
venciei com esse grupo a prática de to importante que vinha à tona
ir para as ruas lutar pelos nossos di- com os debates. Em Fortaleza, por
reitos, como protestos de professo- exemplo, uma cursista12 professora
res, estar presente em lutas como as do Projovem, de fenótipo não negro
dos Indígenas, do Movimento Negro disse que “O problema do negro
e na Marcha das Mulheres Negras. não era racismo e sim social” refe-
No mestrado, estudando com rente a problemas financeiros. O
a perspectiva epistemológica de- fato aconteceu ao assistirmos um
colonial, também tive a oportuni- vídeo13 “Não quero o seu batom”, um
dade de trabalhar como tutora do documentário da UFF (Universida-
curso a distância de Aperfeiçoa- de Federal Fluminense), do grupo
mento Formação de Professores de de pesquisa “Observatório jovem”,
Educação de Jovens e Adultos para para debater a situação do jovem
Juventude destinado a professores na universidade, onde uma mulher
e coordenadores do programa do negra faz analogia à faculdade com
governo federal Projovem, que con- os negros, ao batom que fica no
têm aulas preparadas pelos profes- dente, quase dentro da boca, mas
sores da UNIRIO que eram os coor- dali não passa e assim explica toda
denadores desse grupo, colocados situação de exclusão do negro.
na plataforma moodle e gerencia- Falei sobre o racismo existente
dos pelos coordenadores de tuto- na sociedade brasileira como nos
ria e inserindo a abertura da aula traz Oracy Nogueira (1985) que evi-
e acompanhando todos os dias denciou esse tipo de preconceito
no fórum de discussão pelos Pro- como sendo de marca. Ele diz que
fessores tutores que eram mestres o preconceito racial também atin-
e mestrandos, de forma virtual na ge pessoas de cor das classes eco-
plataforma moodle para facilitar nômicas mais elevadas, mas varia
a construção do conhecimento de de intensidade conforme a nuance
forma coletiva e interativa e nas au- do atributo cor, pois quanto mais
las presenciais, em que os tutores escura é a pele da pessoa, mais ela
administram aulas proporcionan- sofre as implicações do racismo. O
do atividades referentes a temas autor ainda afirma que, no Brasil, o
12 Denominação dada pelos coordenadores e tutores aos alunos do curso para agilizar a
identificação.
13 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=mzrbCBbSTX0>Acesso em set. de
2015

69
preconceito racial pode se caracte- vídeo aula14 do PENESB (Programa
rizar como “preconceito de marca”, de Estudos sobre o Negro na Socie-
identificado pelo “fenótipo, ou pela dade Brasileira) da UFF, vídeo que
aparência” como a forma do nariz, foi indicado para os alunos na pla-
o formato dos lábios, o tipo do ca- taforma de aula, após esse episódio
belo, a tonalidade de pele, etc. acontecido na aula presencial para
Muitos professores cursistas, melhor entendimento da questão.
ali naquele encontro, já tinham uma Ainda para tentar dialogar
visão crítica e sensível ao público com o que foi dito sobre os negros
que ensinava e entre vários comen- que não conseguem sucesso na
tários falaram que “era só ver os alu- vida, mesmo que com dificuldades
nos que estavam no Projovem, em tenham passado por uma gradua-
sua maioria são negros”. Portanto, ção, porque tem toda uma consti-
aos alunos negros são atribuídas tuição psicológica que nos impede
mais dificuldades de que ao branco de prosseguir, sem falar nos racis-
pobre, pois o branco vai se arrumar tas que estão sempre prontos para
e pode ir e entrar em qualquer lu- nos impedir, como nos fala Gomes
gar sem que por ele paire nenhuma (2003), uma questão pouco discuti-
desconfiança, mas já o negro pode da na escola brasileira é a dimen-
estar bem arrumado dentro dos pa- são da construção da “branquitu-
drões da sociedade, que mesmo en- de”, uma identidade que forma o
tre os seus o identificam como sus- branco como padrão e que há uma
peito. O racismo impede aos negros apropriação simbólica da autoesti-
de chegar em alguns lugares, pela ma e autoconceito em detrimento
falta de “boa aparência”, como foi aos demais, legitimando essa su-
dito, e ainda é muito usado. premacia.
Conversei com um grupo que
me abordou para saber mais sobre Em contrapartida, constrói-se
um imaginário extremamen-
“o mito da democracia racial que
te negativo sobre o negro, que
faz parte da educação do brasi- solapa a identidade racial, da-
leiro” que tenta criar uma imagem nifica sua autoestima, culpa-o
positiva de que não há discrimina- pela discriminação que sofre e
ção e nem racismo, o que não coin- ainda justifica as desigualda-
des raciais. (GOMES, 2003, p.73).
cide com a realidade, como explica
Vejo esse contexto em todas
Kabengele Munanga, antropólogo e
as instituições educacionais em
doutor em Ciências Sociais, Africa-
que passo e trago algum projeto ou
no congolês radicado no Brasil, no
oficina relacionada à educação ét-
14 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7FxJOLf6HCA> Acesso em nov. de
2014

70
nico-racial, pois acredito que para distinções” (SANTOS, 2007, p.2). E
trazer mudanças temos que ultra- essas dicotomias contribuem para
passar essa dimensão da branqui- tornar invisível esta linha abissal.
tude e assim,
No campo do conhecimento, do
[...] talvez um dos caminhos pensamento abissal que con-
para a superação dessa situa- siste na concessão à ciência
ção seja uma reflexão profunda moderna do monopólio da dis-
sobre a discussão já realiza da tinção universal entre o verda-
pelo Movimento Negro e por deiro e o falso, em detrimento
todos aqueles que acreditam de dois conhecimentos alterna-
em uma educação antirracis- tivos: a filosofia e a teologia. O
ta: a questão racial não se res- caráter exclusivo deste mono-
tringe à comunidade negra, e pólio está no cerne da disputa
a superação do racismo e da epistemológica moderna entre
desigualdade racial faz parte as formas científicas e não-
da luta pela construção da ci- -científicas de verdade. Sendo
dadania e a democracia para certo que a validade universal
todos. Em uma sociedade mul- da verdade científica é, reco-
tirracial e pluricultural, como é nhecidamente, sempre muito
o caso do Brasil, não podemos relativa, dado o fato de poder
mais continuar pensando a ci- ser estabelecida apenas em re-
dadania e a democracia sem lação a certos tipos de objetos
considerar a diversidade e o em determinadas circunstân-
tratamento desigual historica- cias e segundo determinados
mente imposto aos diferentes métodos, como é que ela se
grupos sociais e étnico-raciais. relaciona com outras verdades
(GOMES, 2003, p70). possíveis que podem inclusi-
vamente reclamar um estatuto
superior, mas não podem ser
Constitui-se de uma forma tão estabelecidas de acordo com
forte, esse imaginário de suprema- o método científico. (SANTOS,
cia do branco, que não deixa a pes- 2007, p.3, Grifo nosso).
soa perceber que o fato mexe não
só com a formação da identidade O pensamento abissal, des-
do negro como com a sua própria crito por Santos (2007), atinge os
vida social. Como nos explica Boa- dois lados de uma linha demarca-
ventura Sousa Santos (2007), é na da pela invisibilidade do outro, ou
estrutura do pensamento moder- seja, atinge toda a sociedade, mas
no ocidental que se constituem as como sugere o autor, devemos ir
relações políticas e culturais ex- além desse pensamento abissal e
cludentes. “O pensamento abissal no pós-abissal, não só reconhecer
moderno salienta-se pela sua ca- as perspectivas epistemológicas
pacidade de produzir e radicalizar do Sul global, mas difundir uma

71
ecologia do saber, com a concen- cruzam conceitualmente e pe-
tração epistemológica na diversi- dagogicamente, alentando for-
ças, iniciativas e perspectivas
dade15. Acredito que a educação,
éticas que fazem questionar,
em especial uma educação pensa- transformar, sacudir, rearticular
da para as relações étnico-raciais, e construir. Essa força, iniciati-
seja o meio possível de disseminar va, agência e suas práticas dão
e democratizar esse pensamento base para o que chamo de con-
tinuação da pedagogia de-co-
pós-abissal, trazendo a intercultu-
lonial. (WALSH, 2009, p.25)
ralidade para disseminar uma pe-
dagogia decolonial, que “é um ter-
Considerações Finais
mo que começa a emergir na área
da educação, alinhado com os
Nos estudos desenvolvidos e
estudos desenvolvidos no âmbito
debatidos desde a graduação, no
da América Latina”. (MIRANDA, 2014, p.
mestrado, no grupo de pesquisa,
1055). E como nos mostra Catherine
denominado GEPEER (Grupo de Es-
Walsh:
tudos e Pesquisa em Educação Ét-
nico-Racial), com a experiência de-
De maneira ainda mais ampla,
proponho a interculturalidade senvolvida através das atividades
crítica como ferramenta pe- nas práticas pedagógicas e nas
dagógica que questiona con- oficinas, foi possível averiguar a ne-
tinuamente a racialização, su- cessidade de pesquisas que iden-
balternização, inferiorização e
tifiquem e problematizem questões
seus padrões de poder, visibi-
liza maneiras diferentes de ser, que incidem facilitar à abordagem
viver e saber e busca o desen- de interculturalidade na educação
volvimento e criação de com- étnico-racial para a área da forma-
preensões e condições que não ção de professores e docentes do
só articulam e fazem dialogar
ensino fundamental, “um trabalho
as diferenças num marco de
legitimidade, dignidade, igual- de orientação de-colonial, dirigi-
dade, equidade e respeito, mas do a romper as correntes que ain-
que ao mesmo tempo alentam da estão nas mentes” (WALSH, 2009,
a criação de modos “outros” p.24), baseada na lei 10.639/03 que
de pensar, ser, estar, aprender,
instituiu o ensino de História da
ensinar, sonhar e viver que cru-
zam fronteiras. A interculturali- África e dos Africanos nas esco-
dade crítica e a de-colonialida- las de Ensino Fundamental e Mé-
de, nesse sentido, são projetos, dio que altera a LDB (Lei Diretrizes
processos e lutas que se entre- e Bases) e estabeleceu Diretrizes

15 Pensamos em ecologia do saber relacionada ao pensamento pós-abissal: “Como ecologia


de saberes, o pensamento pós-abissal tem como premissa a ideia da diversidade epistemo-
lógica do mundo, o reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conheci-
mento além do conhecimento científico.” (SANTOS, 2007, p. 19)

72
Curriculares para a sua implemen- primeiro segmento do Ensino Fun-
tação, buscando assim favorecer a damental, essas crianças em sua
possibilidade de mais embasamen- maioria negras, sem muitas expec-
to na temática. tativas educacionais e não havia
Diante da falta da procura de notado a necessidade do reconhe-
um curso de atualização e/ou for- cimento e valorização étnico-racial.
mação continuada nas questões ét- Esse sistema racista me levava
nico-raciais para professores e dis- a acreditar que era só por questão
ciplinas obrigatórias nos currículos financeira e falta de interesse deles
das licenciaturas, para sensibilizar e assim sendo tentava incentivá-
aqueles que ainda não vêem em al- -los, discorrendo sobre mais opor-
gumas situações e “brincadeiras” de tunidades que eles poderiam bus-
alunos, a discriminação e o racismo, car outros trabalhos, bastando se
é preciso trabalhar a Cultura Afro- esforçar e estudar mais, ou seja,
-Brasileira e Africana, mostrando o do mesmo jeito colocava a respon-
seu valor e beleza, nas culturas exis- sabilidade neles, acreditando que
tentes no continente Africano e nos estava ajudando a melhorar suas
seus descendentes reforçar identi- expectativas de vida.
dade de forma afirmativa. Essas experiências adquiridas,
É preciso destacar que o re- dentre outras, provocam inquieta-
conhecimento das desigualdades ções que me levam a perder o sono,
provocadas pelo racismo só foi ad- que produzem réplicas a uma inda-
quirido depois dos estudos empe- gação que não pode parar nela mes-
nhados, pois só se enxerga o que ma, isso precisa mudar. Por que há
se conhece. Então é essencial a tantas crianças negras nas escolas
educação para as relações étni- públicas de educação básica, porém,
co-raciais. Pude ver a importância quando chegamos às universidades
da graduação para os professo- públicas os negros são minoria?
res da educação básica, desde os Sigo caminhando com meus so-
que lecionam na educação infantil nhos Pedagógicos, trazendo possi-
e no ensino fundamental, pois com bilidades educacionais decoloniais.
os estudos e a pesquisa é possível Nessa tentativa de trazer mudanças
ter uma percepção diferenciada essenciais para romper essa estru-
e ampliada da concepção de en- tura racista, eurocêntrica, misógina,
sino. Assim, pude ver que a minha machista, homofóbica.
era muito eurocêntrica, mesmo nas
atividades que já pensava como
emancipatórias. Pois, já havia lecio-
nado muitas vezes com crianças do

73
Referências

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cultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio
de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 12-42

74
“AQUI EU NÃO
SOU A OUTRA, MAS
SIM EU PRÓPRIA”:
REFLEXÕES
SOBRE A ESCRITA
AUTOETNOGRÁFICA
DE MULHERES
NEGRAS
ACADÊMICAS
Fabiana Helena da Silva1
Jarlane de S. Lima2

1 Licenciada em Educação do Campo pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro -


UFRRJ. Pós-graduada em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo
Instituto Federal do Rio de Janeiro - IFRJ. Mestranda em Antropologia pela UFRRJ. Membra
Grupo de Pesquisas em Linguagens, Poder, Contemporaneidade - GELPOC. IFBA.
2 Engenheira Agrônoma e Licenciada em Educação do Campo pela Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Bolsista do Programa de Educação Tutorial, (PET) de Edu-
cação do Campo. Membra do Grupo de Pesquisas em Políticas Públicas Movimentos Sociais
e Culturais, GPMC.

75
Introdução Para promover essas reflexões,
apresentamos recortes de textos
Este trabalho traz uma revisão autoetnográficos, escritos por mu-
bibliográfica sobre a escrita autoet- lheres acadêmicas negras, na bus-
nográfica, apresentando-a como ca de questões que reforcem a ideia
uma ferramenta acadêmico-profis- de que mudando as pessoas que
sional, utilizada por mulheres ne- pesquisam, mudam os assuntos de
gras acadêmicas compreendidas pesquisa, os objetos, as reflexões e
como “sujeitas autoras” a partir do as formas de escrita do sujeito que
conceito de Versiane (2013). Essas também é o autor.
mulheres tomam posse da escri-
ta na primeira pessoa para refletir Conceituando a
sobre si, suas histórias e memórias, autoetnografia e a
elaborando estudos nos quais de- metodologia
sempenham o papel duplo de atuar autoetnográfica
como pesquisadoras e sujeitas da
sua pesquisa. As reflexões atraves- De acordo com SANTOS (2017)
sam as questões em que o acesso a autoetnografia é compreendida
destas pessoas ao meio acadêmi- como um modo específico de escri-
co promove mudanças conceituais ta a partir de si mesmo (self), sobre
sobre os sujeitos que pesquisam e um povo ou um grupo (selves) levan-
sobre o que escrevem. do em consideração a experiência
A mudança é percebida no obje- do pesquisador e sua relação com
to de estudo e na forma como essas a pesquisa e com as pessoas rela-
escritas são produzidas, sem o dis- cionadas a ela. Neste processo de
tanciamento do objeto. Deste modo, escrita, as memórias, os pertenci-
este método de pesquisa e de escrita mentos culturais e fenômenos so-
apresenta potencial para a promo- ciais envolvidos são valorizados na
ção da consciência destes sujeitos construção do conteúdo a ser es-
sobre o seu papel social no contexto crito no texto.
em que estão inseridos, suas neces- Reed-Danahay (1997) ao des-
sidades de expressar experiências crever a especificidade da autoet-
dentro de um campo, a realidade em nografia reforça a importância da
suas histórias e seu mundo, tecendo inclusão das narrativas e da expe-
em seu texto uma escrita decolonial, riência da pessoa que pesquisa,
diferente dos padrões engessados bem como a definição dos recursos
pela academia, registrando em pri- para a escrita do texto, tais como
meira pessoa, sentimentos, impres- as autobiografias, as histórias de
sões e histórias de vida. vida, memórias e as relações des-

76
tes fatores com as experiências dos grafia passa a ser produzida não
sujeitos da pesquisa e as relações mais apenas por homens brancos
da pessoa que escreve tem com o pertencentes à elite, quando pes-
tema ou com o campo que pesqui- soas fora da classe eleita tradicio-
sa, assim como o caráter transfor- nalmente como detentora da ca-
mador e político que este método pacidade intelectual e da escrita
tem de dar voz a quem fala. passam a “etnografar”, surge uma
Com um intuito semelhante, mudança do sujeito que pesquisa
Clifford (2005) ao refletir sobre os e também do objeto de estudo e a
textos antropológicos, fala sobre a etnografia passa a configurar uma
construção de uma antropologia atividade acadêmico profissional
mais humanista, atribuindo à escri- (SILVA, 2000). A partir de então, o
ta um tom mais intimista, a partir objeto de estudo, passa a ser não
de uma escrita semelhante às bio- apenas “o desconhecido”, “o distan-
grafias ou demais literaturas, apre- te” e o que na antropologia clássi-
sentando um sentido mais próximo ca era lido como o “outro”, mais os
entre o pesquisador e os grupos seus pares, o que é conhecido, algo
estudados. (CLIFFORD, 2005). E es- que faz parte da vida do autor, seu
sas abordagens diferenciadas pro- bairro, sua igreja, seu terreiro e até
duzidas neste estilo são fruto da mesmo sua trajetória, dando vida à
autoetnografia cuja metodologia escrita autoetnográfica.
abarca também as trajetórias. Re- Ainda com relação ao método
fletindo sobre o que diz este autor, autoetnográfico, pode se conside-
concluímos que é possível construir rar que: Uma narração breve sobre
múltiplas abordagens, a partir das como se chegou ao trabalho é a me-
experiências vividas por diferentes todologia (SILVA, 2000). Deste modo,
indivíduos, pois cada um transfere o momento em que se inicia o ma-
para a escrita as suas vivências, im- peamento do campo, o levantamen-
primindo as suas impressões, per- to de dados, coleta de informações
sonalidade e identidade. gerais, os caminhos percorridos até
A metodologia autoetnográ- se chegar a efetivamente aos sujei-
fica é discutida e problematizada, tos da pesquisa, é a metodologia e
ela deriva da etnografia e deste in- nestas empreitadas, recortes da ex-
tuito de imprimir uma escrita mais periência pessoal do pesquisador
íntima entre a pessoa que escreve nesta trajetória percorrida, também
e o objeto de pesquisa. Para o an- fazem parte da metodologia, inclu-
tropólogo Vagner Silva (2000), na sive as experiências que porventura
ocasião de seu texto “O antropó- não surtiram efeito positivo na pes-
logo e sua magia”, quando a etno- quisa (SILVA, 2022).

77
Reconhecer que as metodolo- periências dentro de um campo, a
gias de pesquisas autoetnográfi- realidade em que vivem, suas histó-
cas são diferentes das tradicionais rias e seu mundo. Ao nosso ver, a
“receitas de bolo”, apresentadas autoetnografia colabora para uma
nos textos clássicos, talvez seja escrita decolonial, apresentando
uma dificuldade no início com este configurações diferentes daqueles
tipo de trabalho. Especialmente normalizados dentro da academia,
pelo fato desta escrita derivar de textos registrados em primeira pes-
uma etnografia, cuja metodologia soa, expressando sentimentos, im-
apresentada nem sempre foi des- pressões, histórias de vida, dente
crita de forma clara. Como exem- outras. Textos que diferentemente
plo apresentamos a experiência do daqueles cuja a escrita demanda-
antropólogo Foot Whyte (2005), que va um “raciocínio lógico intelectual
em sua obra “Sociedade de Esqui- inacessível” para algumas pessoas,
na” fala da dificuldade de entender do contrário, tem a pretensão de
a metodologia contida nos textos apresentar o conteúdo cientifico a
nos quais buscava referenciar-se, partir de outra episteme, e de for-
dizendo que uma explicação real ma acessível, por vezes até seme-
de como a pesquisa foi feita ne- lhante aos textos autobiográficos
cessariamente envolve um relato, (SILVA, 2022).
e muitos estudos etnográficos dei- E é através desta escrita que
xam lacunas sobre o processo da os autores passam a ler e escrever
pesquisa, apresentando apenas sobre si, estando eles na centralida-
resultados e relatórios. de do estudo no qual exercem o du-
Foote Whyte, (2005), discute plo papel de autores e sujeitos da
que a forma através da qual es- análise. Descrevem e analisam sis-
ses tipos de materiais eram escri- tematicamente suas experiências
tos, não deixava evidente qual ha- pessoais, a fim de compreenderem
via sido o método, que permitiu se de uma forma mais abrangente, as
chegar a resultados com gráficos e experiências culturais. Essas carac-
tabelas, ou quando apresentavam terísticas fazem deste método uma
alguma metodologia, suas respec- ferramenta que pode ser utilizada
tivas descrições seguiam um racio- tanto na investigação como na ela-
cínio lógico intelectual inacessível. boração da escrita. Deste modo, as
É dentro desta perspectiva de pesquisas autoetnográficas utili-
mudança do sujeito que pesqui- zam a etnografia e autobiografia.
sa, apresentada por Vagner Silva A autoetnografia, portanto, acaba
(2000), e das necessidades que es- por encampar diferentes técnicas
ses sujeitos tem em expressar ex- e procedimentos metodológicos a

78
fim de permitir um olhar sobre a performam sua existência e na sua
realidade e a interação do pesqui- compreensão sobre a dimensão de
sador, como leitor de seu próprio seu papel como protagonista de
mundo sócio cultural, histórico e suas histórias neste processo de
cultural (ELLIS, 2004). desenvolvimento. Nesta direção,
De acordo com Joselina da estudos apontam a autoetnogra-
Silva e Simone Euclides (2021) a au- fia como uma ferramenta potente
toetnografia é um método de pes- para a promoção de uma reflexão
quisa qualitativa que faz uso dos crítica da própria existência, quan-
dados sobre o self e o contexto em do os sujeitos escrevem e refletem
que está inserido, de modo que sobre si, suas histórias e memórias,
quem pesquisa ocupa o centro da sobre suas identidades e sobre o
investigação, sendo o sujeito e o seu contexto social coletivo (SILVA,
objeto de pesquisa, reunindo o Self 2022).
e outros Selves. Cada pessoa des- Sobre o exposto neste traba-
creve seu campo a partir de suas lho a autoetnografia se apresen-
próprias vivências, que podem par- ta como uma ferramenta poten-
tir de um tempo anterior à pesqui- te para o desenvolvimento desta
sa, revelando memórias e vivências consciência, através da produção
anteriores ao campo. Reportando de textos sobre si (self). Talvez um
de maneira episódica algumas si- dos maiores desafios atuais seja o
tuações podemos compreender de desenvolver uma reflexão crítica
desta forma “a experiência etno- sobre si próprio, reconhecer o per-
gráfica, em duas circunstâncias di- tencimento a um grupo, ou classe
ferentes: como primeira impressão, social, questões relacionadas à
em contato com um tema e campo raça, cultura, religiosidade, dentre
completamente desconhecidos e, outras, e a metodologia autoetno-
em seguida, como experiência reve- gráfica permite uma reflexão do
ladora, com a pesquisa já em anda- autor sobre sua própria existência,
mento”. (MAGNANI, 2009, p.149) dentro e fora do seu escopo de pes-
quisa ou do grupo em que estuda.
A escrita dos “sujeitos Além disso, a dinâmica da constru-
autores” e dos “grupos ção autoetnográfica, diferentemen-
minoritários”. te das demais escritas tradicionais,
conservadoras, escritas a partir
Atualmente, muito tem se fa- do pensamento masculino, bran-
lado, no papel dos sujeitos na co e europeu, privilegiam e permi-
transformação do contexto social tem uma produção autobiográfica
em que estão inseridos, e no qual dialógica, produtoras de leituras e

79
de visibilidades de outros tipos de este tipo de escrita permite a visi-
subjetividades (VERSIANE, 2002). bilidade da complexidade das he-
Diante do exposto, pensar esta ranças socioculturais dos sujeitos,
metodologia de pesquisa, significa contrastando os modelos tradi-
pensar também nas subjetividades cionais de escrita autobiográfica,
que nos formaram, nos ensinamen- inaugurada no Século XVIII e que
tos que recebemos durante a vida, apresentavam os sujeitos “estáveis”,
trazendo outros debates para a “unívocos” através de discursos cris-
academia, ampliando os horizon- talizantes de subjetividades e Sel-
tes neste ambiente que majorita- ves dando a entender que aquela
riamente articula com a pesquisa descrição ou condição da pessoa
tradicional, e com a metodologia fosse eterna, única (SILVA, 2022).
de escrita e de pesquisa conserva- Historicamente, os grupos mi-
dora. Pensar mecanismos que es- noritários são formados por pes-
timulem esta atitude é importante, soas que, por algum motivo, foram
e o método autoetnográfico de es- excluídas da sociedade. No geral
crita tem se firmado no meio aca- convivem com preconceito de cor,
dêmico como uma atividade aca- classe social ou gênero e não pos-
dêmico-profissional (SILVA, 2000) e suem seus direitos básicos garanti-
ferramenta potente na produção dos. Fazem parte dessas minorias;
de outras escritas, a escrita de “su- pessoas com deficiência (PcD), mu-
jeitos autores”. lheres, comunidade LGBTQIA+ en-
A autora Daniela B. Versiane tre outros. Muniz Sodré (2005), ao
(2002) em seu texto “Autoetnografia: dedicar-se ao estudo do conceito
uma alternativa conceitual” apre- de minoria, afirma que esta palavra
senta a autoetnografia como um tem como ponto de partida um sen-
processo de “empenho teórico que tido de inferioridade quantitativa
está em enfatizar que alternativas e que as pessoas inseridas nestes
discursivas nas quais a subjetivi- grupos são movidas pelo impulso
dade é compreendida como cons- de transformação, possuem uma
trução dialógica em processos intencionalidade ético-política e
interpessoais que ocorrem em con- atuam dentro de uma luta contra-
textos multiculturais”. (VERSIANE -hegemônica.
2002, p.58). Especialmente quando Ainda de acordo com Sodré
estes refletem sobre sua própria (2005), as minorias apresentam
inserção social, história de vida, quatro características básicas, a
identidade e quando suas subjeti- saber: vulnerabilidade jurídico-so-
vidades estão ligadas aos grupos cial, o grupo dito minoritário não
minoritários. Segundo esta autora é institucionalizado pelas regras

80
do ordenamento jurídico-social vi- Existir, humanamente, é pro-
gente; identidade in statu nascendi nunciar o mundo, é modificá-
-lo. O mundo pronunciado, por
– na condição de uma entidade em
sua vez, se volta problematiza-
formação que se alimenta da força do aos sujeitos pronunciantes,
e do ânimo dos estados nascentes; a exigir deles novo pronunciar.
luta contra-hegemônica - uma mi- (FREIRE 1996, p. 77)
noria luta pela redução do poder
hegemônico, mas em princípio, sem A partir do exposto, relaciona-
objetivo de tomada do poder pelas mos a comunicação escrita como
armas; e, por fim, estratégias dis- um direito dos sujeitos oprimidos
cursivas, são os principais recursos e dos grupos minoritários em pro-
de luta atualmente. nunciar suas ideias e a problemati-
Paulo Freire (1996) ao desenvol- zá-las, sendo as estratégias discur-
ver uma pedagogia voltada para a sivas, a principal arma nesta luta
classe oprimida, teve como princí- contra-hegemônica, na qual defen-
pio combater a hegemonia de clas- demos a autoetnografia como uma
se, apresentando uma forma de ferramenta potente para este fim.
educar problematizadora e liberta-
dora, de modo que esta classe opri- A escrita autoetnográfica:
mida consiga a sua emancipação um falar de si contra
em torno do pensamento crítico, hegemônico
entendendo a sua real condição
social e consiga lutar por melhores Refletindo sobre o que diz Gra-
condições sociais como finalida- da Kilomba (2019) em seu texto “Me-
de a construção de uma socieda- mórias da plantação”:
de mais crítica, mais igualitária e
menos opressora, onde o direito à Aqui eu não sou a “Outra”, mas,
sim eu própria. Não sou o obje-
comunicação se relaciona estreita-
to, mas, o sujeito. Eu sou quem
mente ao direito de cidadania e ela descreve minha própria histó-
reverbera em uma forma de liberta- ria, e não quem é descri-
ção dos oprimidos. Segundo Paulo ta. Escrever, portanto, emerge
Freire: como um ato político. Nesse
sentido eu me torno a oposição
absoluta do que o projeto colo-
A existência porque humana,
nial predeterminou. (KILOMBA,
não pode ser muda, silenciosa,
2019, p.28)
nem tampouco pode nutrir-se
de falsas palavras, mas de pa-
lavras verdadeiras, com que os A partir do exposto por Gra-
homens transformam o mundo. da Kilomba sobre as escritas re-

81
alizadas por mulheres3 acadêmicas, a fim de entender o quanto a au-
toetnografia tem se configurado neste meio como uma ferramenta
acadêmica-profissional para a escrita de si, representando uma ação
contra-hegemônica onde as sujeitas escrevem suas histórias. Para tanto,
realizamos uma busca na Plataforma Capes4 utilizando as palavras-cha-
ve “mulheres e autoetnografia”. Desta busca, resultaram 22 artigos gerais,
destes selecionamos os trabalhos “revisados por pares”, nacionais e que
apresentassem a autoetnografia para além de uma metodologia descri-
tiva, ou a autoetnografia como método (sobre o que escreve), e sim so-
bre quem escreve, as escritas de si, que tanto mencionamos aqui. Dos 14
trabalhos revisados por pares, 6 foram escritos por mulheres, a partir de
suas vivências e experiências, as quais apresentamos no quadro abaixo.

Artigos selecionados para compor a presente revisão narrativa da literatura.


Autoras Ano Título Resumo

“Este artigo tem por objetivo


Rosangela Aparecida Afetividade como estratégia Metodológica: Transgredir analisar de que maneira trajetórias
assimétricas, em função das
desigualdades sociais agravadas
Hilário Para (re) existir por um processo de escravização
que não se encerra, é impactado
Professora permanente pela afetividade mediada pela
dororidade em acadêmicas negras,
do Programa de Pós-Gradua- ou seja, como ser pobre (classe),
Hilário, R. A. (2023). A afetividade como estratégia preta (raça) e mulher (gênero)
ção em Educação/UNIR/Porto impacta os espaços (não) ocupados
Metodológica: Revista Espaço Acadêmico, 22(238), por mulheres pretas na academia
Velho. Professora do Depar- e como são impactadas, ou não,
pelo aquilombamento com/por
101-114. Recuperado de https://periodicos.uem.br/ojs/index. referências de outras mulheres
tamento de Ciências da Educa- negras. A proposta se estrutura sobre
php/EspacoAcademico/article/view/65963
os conceitos de decolonialidade e
ção da interseccionalidade em Gonzalez
(2020), Vergé (2020), Cesaire
Universidade Federal de (2020) Hooks (2017;2019) e
Carneiro (2019), a ressignificação
Rondônia. do conceito de aquilombamento
a partir dos estudos de Abdias
Membra do Comitê Nascimento e dororidade em Vilma
Piedade (2020). Foram utilizadas
metodologias combinadas com o
Executiva da Rede propósito de traduzir as violências
que circundam o processo de
Brasileira de Mulheres escolarização com inspiração a
autoetnografia, as escrevivências
Cientistas e Líder do para traduzir a articulação de
saberes e a exposição dialogada
Grupo de Pesquisa para dar conhecimento/fortalecer
referencial teórico. Até o momento
Ativista Audre Lorde. as conclusões a que se permite
chegar são de que ter professoras
negras encoraja, fortalece e amplia
percursos de acadêmicas negras”.

3 Escolhemos as mulheres por estas pertencerem ao grupo considerado minoritário (SODRÉ,


2005).
4 https://www.periodicos.capes.gov.br/

82
Mulheres com deficiência na Amazônia: a autoetnografia “Este artigo traz a reflexão de
como recurso metodológico para narrar histórias duas histórias de mulheres com
Keiliane de Lima invisibilizadas. deficiência, moradoras de dois
Bandeira
lugares distintos da Amazônia, uma
Pesquisadora da Amazônia da capital Belém,
independente _Santarém, Artigo • Horiz. antropol. 28 (64) • Sep-Dec 2022 outra da Amazônia interiorana da
PA, Brasil cidade de Santarém (PA). A partir da
vivência de ambas, conectadas
• http://orcid.org/0000-0002-
8256-6264
com a paisagem da beira do rio,
• como paisagem que constrói
https://doi.org/10.1590/S0104-71832022000300005
narrativas à margem e elemento
constitutivo da subjetividade
de suas identidades, faz-se uma
reflexão de como o capacitismo
esteve presente durante suas
Kamilla Sastre da Costa trajetórias nesse território.
Capacitismo como opressão que faz
UFPA, Brasil com que pessoas com deficiência
sejam lidas socialmente em um
Doutoranda em Sociologia estado diminuído. Nesse cenário,
e Antropologia a autoetnografia foi utilizada como
• http://orcid.org/0000-0001- recurso metodológico por permitir
6087-8200
narrar de forma crítica tais histórias,
e para além da escrita em prosa
dissertativa, também permitiu o
uso de poesia como componente
fundamental”

83
“Depois de quase uma década
Cartas para mim ou sobre mim? Notas autoetnográficas pesquisando partos e maternidades,
de um puerpério não silenciado. tornei-me mãe. Recordo-me de,
Rosa Maria Carneiro
durante o meu doutoramento, ter
Universidade de Brasília, sido interpelada, pelas mulheres
Brasília, Brasil com que convivia, acerca de minha
DOSSIÊ • Sex., Salud Soc. (Rio J.) (37) • 2021 • https:// sensibilidade para com as suas
Universidade Federal da experiências maternas (Carneiro,
doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2021.37.e21306.a
Paraíba, João Pessoa, Brasil 2015), já que ainda não tinha
vivido na pele o que me contavam.
Eu não tinha filhos e não tinha
• http://orcid. https://www.scielo.br/j/sess/a/cp4hLSj5PTzVpptSWfKT5SD/abstract/?lang=pt#
parido. Alguns anos depois, após
org/0000-0002-1271-7645 o nascimento de meu segundo
filho, passei a escrever e a publicar
algumas reflexões sobre a vida
no pós-parto, mas, agora, sobre a
minha própria experiência, a partir
de uma série intitulada Cartas de um
puerpério. Escrevi sobre mim, sobre
o parto, sobre o bebê e, sobretudo,
sobre o resguardo, em tom pessoal
e confessional, mas também
antropológico, haja vista minhas
reflexões dialogarem todo o tempo
com a teoria posta, ou ainda em
tessitura, bem como com a cultura
local sobre o maternar. O meu olhar
recaiu sobre o puerpério e suas
interfaces com ideias de corpo,
sexualidade, amizade, política,
domesticidade, solidão, cansaço
e, mais recentemente, pandemia.
Tais Cartas foram publicadas em
uma rede social virtual e, por isso,
despertaram o diálogo com outras
mulheres. Partindo delas, pretendo
discutir como e quanto funcionaram
como um diário pessoal e diário
de campo; como um espaço de
desague e de autorreflexão, tudo a
um só tempo; mas também como
lugar de produção intelectual e de
olhares sócio-antropológicos para
com a maternidade contemporânea.
Um olhar oriundo da casa e do
doméstico como espaço que
inventa vida.”

84
Em tempos de Coronavírus: home office “As mulheres geralmente são as
Thiele C. Muller Castro mais afetadas em momentos de
e o trabalho feminino epidemias e pandemias, inclusive
UFRGS no meio acadêmico, como este que
estamos vivenciando com a COVID
http://orcid.org/0000-0001- https://periodicos.ufpel.edu.br/index.php/NORUS/article/view/20017
19. A metodologia desse artigo
está baseada na autoetnografia
5570-1558
das autoras, todas ligadas à
DOI: https://doi.org/10.15210/norus.v8i14.20017 academia por serem professoras,
Carla Garcia Bottega pesquisadoras e estão estudando.
As questões orientadoras foram
UERGS as mobilizações iniciais diante da
pandemia e as estratégias utilizadas
https://orcid.org/0000-0001-6933- para a continuidade ou não de
8120 uma rotina, especialmente da
conciliação do trabalho em home
office, vida doméstica e pessoal em
tempos de cuidados para a proteção
da vida. Destaca-se a condição
Priscila Pavan Detoni de privilégios que possibilita
interseccionar o trabalho. Feminino,
UFFS com a branquitude e o ofício
docente. As narrativas mostraram,
https://orcid.org/0000-0002-7436- principalmente, a sobrecarga da
2229 mulher na sobreposição do trabalho
doméstico e profissional, bem como
a fragilização dos limites entre os
espaços públicos e privado trazidas
pelo trabalho via tecnologias
Jaqueline Tittoni digitais”.

UFRGS

https://orcid.org/0000-0002-3450-
080X

85
Maria Simone Euclides UFP- Dialogando com as auto-etnografias negras: “O presente artigo tem por objetivo
Brasil trazer relatos de experiências
intersecções de vozes, saberes e práticas docentes.
sobre a atuação e o fazer cientifico
Joselina da Silva UFRRJ– de duas professoras negras, em
Brasil universidades públicas brasileiras
https://periodicos2.uesb.br/index.php/praxis/article/ (região nordeste e sudeste). Nos
https://doi.org/10.22481/praxis. view/5042 valemos de um diálogo – embora
v15i32.5042 não exaustivo – com autores (as)
que tratam da teoria sobre auto
etnografia. A partir dela, construímos
Revista Práxis Educacional, Vitória da Conquista - Bahia - uma escrita sobre nossos “tempos
Brasil, v. 15, n. 32, p. 33-52, abr./jun. 2019. escola” – Joselina da Silva e
Simone Euclides - como discentes
e docentes, procurando trazer à
luz ações, reações e contestações
– estas últimas com mais ênfase -
demarcadas por situações racistas
e sexistas. Ressaltamos também
nossas práticas educativas nos
referidos cursos de atuação
(Licenciatura em Educação do
Campo) e as possibilidades de
problematização das questões
étnico raciais e de gênero dentro
e fora do espaço universitário. As
narrativas perpassam uma ação
docente interventiva e ao mesmo
tempo pragmática, desconstruindo
o imaginário do não lugar e a
invisibilidade de mulheres negras
nos espaços públicos”.

O desenvolvimento acadêmico e de liderança das


Angela D. Coker mulheres negras no ensino superior: um estudo auto- “Este artigo destaca os resultados
etnográfico. de um estudo qualitativo
autoetnográfico projetado para
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/ explorar as experiências de quatro
University of Missouri - St. periferia/article/view/33714 mulheres negras vivendo nos
Louis Estados Unidos, que usaram suas
próprias trajetórias de vida para
explorar e analisar fatores que
moldaram seu desenvolvimento
REVISTA PERIFERIA, V. 10, N. 2, jul./dez. 2018 - Mulheres Líderes em
acadêmico e a gravitação, em
Educação: das periferias aos centros / Women Leading Education: from
direção ao ensino superior e à
Claire Martin margins to centers liderança. A autoetnografia e os
elementos da Pesquisa Qualitativa
Consensual (CQR) foram utilizados
University of Missouri - St. no delineamento deste estudo,
além do Pensamento Feminista
Louis Negro (COLLINS, 1990) que serviu
de referencial teórico. Cinco
temas emergiram dos dados: (1)
Expectativas e Apoio à Família; (2)
Jennifer Culver
Autoeficácia (3) Importância dos
University of Missouri - St. Modelos de Função; (4) Resiliência
em lidar com estereótipos; e (5)
Louis Múltiplas Responsabilidades (si
mesma, família e comunidade).
Foram feitas recomendações
para futuras pesquisas sobre o
Crystal Johnson desenvolvimento acadêmico e de
liderança das mulheres negras”.
University of Missouri - St.
Louis

https://doi.org/10.12957/

periferia.2018.33714

86
Pensamentos conclusivos como lidaram com estereótipos e
as múltiplas funções que recaíram
A partir destas leituras iden- sobre seus corpos de mulheres ne-
tificamos o quanto se firma como gras vivendo nos Estados Unidos,
verdade as reflexões de Vagner Sil- as suas múltiplas responsabilida-
va (2000) a respeito da mudança do des e as expectativas com relação
sujeito que pesquisa e o quanto ao apoio das suas famílias.
isso reverbera no meio acadêmico Castro et al (2020) descrevem a
em uma escrita diferenciada, na partir de suas experiências como
qual os sujeitos passam a ter a sua mulheres, acadêmicas em tempos
voz pronunciada em seus textos. de pandemia e sobre suas dificul-
As mulheres foram escolhidas por dades em conciliar a atividade do-
representarem um grupo minoritá- cente com o trabalho doméstico,
rio. Em seus trabalhos acadêmicos contudo, reconhecem sua condi-
ficou evidente o quanto este grupo ção privilegiada na sociedade por
tem refletido sobre a sua condição serem brancas.
em seu meio social, condições es- Carneiro (2021) fala sobre soli-
tas relacionadas à maternidade, dão, puerpério, sexualidade, pro-
ao acumulo de tarefas (domésticas dução, autorreflexões de uma mu-
e acadêmicas), sobre questões ra- lher acadêmica, que experimenta
ciais, condições físicas e emocio- a maternidade após pesquisar
nais. sobre o tema e viver na pele suas
Euclides e Silva (2019) apre- experiências. Ao compartilhar em
sentam experiências vividas por uma rede virtual - diário de campo
professoras doutoras negras no - promoveu uma troca de vivências
meio acadêmico, questões étnico- com outras mães, pesquisando so-
-raciais, sexistas e machistas que bre si e suas experiências pessoais
atravessam seus corpos e suas de mãe que vive o puerpério e in-
subjetividades. Neste trabalho terfaces formadoras de reflexão a
apresentam como reagiram, con- partir de diálogos colhidos na rede
testaram e problematizaram esses social com outras mães. Em rela-
assuntos com seus pares. ção à solidão, suas reflexões fazem
De uma maneira semelhante, uma ponte com o trabalho de Ban-
Coker et al (2018) usaram suas pró- deira e Costa (2022), quando apre-
prias trajetórias de vida para explo- sentam histórias invisibilizadas de
rar e analisar fatores que moldaram mulheres amazonenses portadoras
seu desenvolvimento acadêmico e de deficiências e de suas respecti-
a gravitação em direção ao ensino vas conexões com o rio Amazonas
superior e à liderança. Descreveram e refletem a partir do capacitismo

87
como forma de opressão desses entre os pares. Uma vez que per-
corpos. mite explorar a partir de sua rea-
Hilário (2023) fala de sua ex- lidade, a autopercepção e escrita
periência como mulher acadêmica de sua história de vida, experien-
preta, pobre e sobre a importância ciando ser conjuntamente o objeto
de encontrar outras mulheres ne- da pesquisa e aquele que escreve
gras referências nestes espaços a sobre, o pesquisador; que aos pou-
fim de que elas sejam referências cos, estimula outras escritas a par-
nestes espaços, ela define essas tir daquelas. Gerando segurança
referências como aquilombamen- e fluidez de vasta gama de temas
to, e discute o quanto isso pode e histórias reais do cotidiano indi-
ser impactante na vida das mulhe- vidual e social, para além de suas
res negras que ocupam esses es- percepções. Utilizando-se de fer-
paços e sobre aquelas que ainda ramentas acadêmico-profissionais
não viveram essas experiências de para compor a etnografia decolo-
encontrar um referencial. Acredita- nial das mulheres “sujeitas autoras”
mos na autoetnografia como uma negras em nosso país. Que paula-
ferramenta importante na promo- tinamente estimulam outras cons-
ção desses diálogos, para decolo- truções e escritas sociais.
nização da escrita e interconexões

Referências

BANDEIRA, K. D. L, and COSTA, S. D. “Mulheres Com Deficiência Na Amazô-


nia: A Autoetnografia Como Recurso Metodológico Para Narrar Histórias
Invisibilizadas.” Horizontes Antropológicos 28.64 (2022): 121-41.
CARNEIRO, ROSAMARIA. “Cartas Para Mim Ou Sobre Mim? Notas Autoet-
nográficas De Um Puerpério Não Silenciado.” Sexualidad, Salud Y Socie-
dad (Rio De Janeiro, Brasil) 37 (2021): Sexualidad, Salud Y Sociedad (Rio De
Janeiro, Brasil), 2021 (37).
CLIFFORD, James. Obras e Vidas, o Antropólogo como Autor. Rio de Ja-
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89
SAMBANDO
EM DISCURSOS
CARNAVALESCOS:
A EMERGÊNCIA
DO LETRAMENTO
RACIAL CRÍTICO
EM DIÁLOGO
COM A REFLEXÃO
DECOLONIAL
Amanda Neres de Castro1 em Práticas de Letramento – IFRJ e
se propõe a investigar quais são as
marcas da colonialidade presen-
Resgate histórico: práticas tes nos sambas-enredos campeões
de silenciamento ou de insur- dos Grêmios Recreativos Escolas
gência? de Samba do grupo especial da ci-
dade do Rio de Janeiro. Para aná-
O presente artigo é um traba- lise serão considerados os sambas
lho de conclusão da Especialização da Imperatriz Leopoldinense – ano
2000; Beija-Flor de Nilópolis – ano
1 Mestre em educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ; Espe-
cialista em Práticas de Letramento pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Rio de Janeiro – IFRJ; e Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro – UFRRJ.

90
2005; Estação Primeira de Manguei- entender seus efeitos entre práti-
ra – 2019 e Acadêmicos da Grande cas que reforçam o silenciamento
Rio – 2022 para que seja possível da população negra, ou não, atra-
criar uma linha temporal/histórica vés das lentes dos referenciais teó-
e entendermos como os GRES do ricos pautado no letramento racial
Grupo Especial do Rio de Janeiro crítico em diálogo com a reflexão
vêm pensando suas narrativas des- decolonial, para que seja possí-
de o final do século XX até os dias vel partirmos do que já está pos-
atuais. Dessa forma, para além de to para “desaprender o aprendido
embalar corpos em tempos car- para voltar a aprender”. (WALSH,
navalescos, essas produções mu- 2009, p.24)
sicais serão analisadas enquanto Do morro ao asfalto, pensar
narrativas que constroem por meio o universo do carnaval carioca a
do discurso imagens capazes de partir dos sambas-enredos cam-
reforçar ou não, os estereótipos so- peões do Grupo Especial da cidade
ciais/raciais (CHIZZOTTI, 2013). No do Rio de Janeiro, tendo como ele-
que tange ao tema delimitado an- mento base o exercício da criticida-
teriormente, as seguintes questões de, contribui para que possamos
de pesquisa se colocam na presen- questionar os múltiplos espaços
te proposta investigativa: quais são em que estamos inseridos enten-
as marcas da colonialidade/deco- dendo que esse também é um lugar
lonialidade presentes nos seguin- de disputa de poder que propicia
tes sambas enredos campeões do reflexões, principalmente quando
grupo especial do Rio de Janeiro? questionamos quais são as episte-
Como a população negra é pensa- mes que vem sendo consideradas
da nestas narrativas musicais, con- relevantes e quais estão sendo invi-
siderando as lentes do letramento sibilizadas nesses processos.
racial crítico? Portanto, observar e identificar
Considerando o samba-enre- as intencionalidades contidas nes-
do enquanto um produto nacional, se espaço de fomento é entender,
de grande visibilidade, que propa- de forma crítica, o contexto em que
ga diferentes discursos identitá- estamos inseridos, além de pensar
rios, marcado também em tempos a longo prazo na maneira que es-
contemporâneos por discursos sas práticas irão refletir na socie-
coloniais, o presente estudo vem dade, enquanto um gênero musical
se debruçando nessas produções que tem um grande poder de circu-
para explicitar as contradições lação nas mídias, problematizando
existentes no universo carnavales- os discursos presentes nessas le-
co. Neste sentido, procuraremos tras, pois segundo Chizzotti (2013),

91
o discurso é a expressão de um Com efeito, ao observarmos as
sujeito no mundo que explicita sua linhas principais da exploração
e da dominação social em es-
identidade (quem sou, o que quero)
cala global, as linhas matrizes
e social (com quem estou) e expõe a do atual poder mundial, sua
ação primordial pela qual constitui distribuição de recursos e de
a realidade (p. 120-121). trabalho, entre a população
Nesse sentido precisamos pen- do mundo, é impossível não ver
que a vasta maioria dos explo-
sar o racismo enquanto uma estru-
rados, dos dominados, dos dis-
tura de poder que se manifesta na criminados são exatamente os
sociedade de diferentes formas e membros das “raças”, das “et-
reproduzindo diferentes desigualda- nias”, ou das “nações” em que
des que nos assolam. Compreender foram categorizadas as popu-
lações colonizadas, no proces-
como essa estrutura racial de poder
so de formação desse poder
foi projetada e continua se manten- mundial, da conquista da Amé-
do até os dias atuais, requer uma rica em diante (Quijano, 1992, p.
racionalização em torno do que foi 438).
idealizado e construído no processo
de colonização da América e como Tal resgate histórico é impor-
esse planejamento ainda afeta as tante para que a partir de então
nossas relações socioculturais legiti- seja possível pensar e agir em tor-
mando a supremacia racial. no de ressignificações dessas re-
lações étnicas e raciais que foram
[...] a estrutura colonial de poder usurpadas e marginalizadas du-
produziu as discriminações so- rante muito tempo pela lógica da
ciais que posteriormente foram
Modernidade/Colonialidade a par-
codificadas como “raciais”, “ét-
nicas”, “antropológicas” ou “na- tir da ideia de raça. Portanto, este
cionais”, segundo os momen- trabalho também está em diálogo
tos, os agentes e as populações com a educação das relações étni-
implicadas. Essas construções co-raciais e com a lei 10.639/03, ten-
intersubjetivas produto da do-
do sua fundamentação construída
minação colonial por parte dos
europeus, foram inclusive assu- com base nas possibilidades de
midas como categorias (de pre- práticas pautadas em uma análi-
tensão “científica” e “objetiva”) se documental crítica projetando a
de significação a-histórica, isto criação/divulgação de epistemolo-
é, como fenômenos naturais e
gias não hegemônicas.
não da história do poder. Tal
estrutura do poder foi e ainda Segundo Quijano (2005),
é o marco a partir do qual ope-
ram as outras relações sociais, Dois processos históricos con-
de tipo classista ou estamental. vergiram e se associaram na

92
produção do referido espa- indígenas e a escravidão dos povos
ço/tempo e estabeleceram-se africanos, é importante para con-
como os dois eixos fundamen-
ceituarmos também alguns termos
tais do novo padrão de poder.
Por um lado, a codificação das que serão base dos nossos estudos
diferenças entre conquistado- e análises, como é o caso da moder-
res e conquistados na ideia de nidade/colonialidade.
raça, ou seja, uma supostamen- Segundo Walsh, C., Oliveira, L.
te distinta estrutura biológica
F., & Candau, V. M. (2018, p.03) “A mo-
que situava a uns em situação
natural de inferioridade em re- dernidade foi uma invenção das
lação a outros. Essa ideia foi classes dominantes europeias a
assumida pelos conquistado- partir do contato com a América”
res como o principal elemento onde, suas razões foram estabele-
constitutivo, fundacional, das
cidas como universais enquanto a
relações de dominação que a
conquista exigia. Nessas bases, razão do não europeu seguia sen-
consequentemente, foi classifi- do invisibilizada e subalternizada,
cada a população da América, ou seja, a invenção da modernida-
e mais tarde do mundo, nesse de foi uma violência colonial. Nes-
novo padrão de poder. Por ou-
se mesmo caminho temos a colo-
tro lado, a articulação de todas
as formas históricas de contro- nialidade que, segundo os mesmos
le do trabalho, de seus recursos autores, “implica na classificação
e de seus produtos, em torno e reclassificação da população do
do capital e do mercado mun- planeta, em uma estrutura funcio-
dial. (p. 107)
nal para articular e administrar es-
sas classificações” (p.04). Maldona-
Compreender a história a par-
do Torres fala que a colonialidade é
tir do lugar em que estamos inseri-
“um padrão de poder que emergiu
dos, ou seja, o nosso território, dá a
como resultado do colonialismo
possibilidade de enxergar com pro-
moderno” (2007, p.131). Ou seja, essa
priedade quais são as relações de
colonialidade não se limitou às re-
poder que vêm se materializando
lações de poder econômico entre
na sociedade de diversas formas,
os povos/nações, como acontecia
entendendo como a construção da
no colonialismo, mas se articula
ideia de raças superiores e inferio-
com toda sociedade capitalista se
res serviu como justificativa para
engendrando na relação com o co-
todas as atrocidades que aconte-
nhecimento, na construção identi-
ceram e ainda permanecem no cha-
tária, na relação com o trabalho a
mado mundo moderno. Entender
partir da ideia de raça.
essa violência colonial, que resultou
Por esses motivos, sempre que
no extermínio de várias populações
falarmos da modernidade/colonia-

93
lidade devemos pensá-las juntas, trução das formas de pensar a ne-
pois assim como Mignolo nos ex- gritude, a África, a diáspora africa-
plica "a colonialidade é constitutiva na, a religiosidade e tantos outros
da modernidade, e não derivada” saberes que foram neutralizados e
(2005, p. 75), ou seja, não é possível distanciados do seu real significa-
pensar a modernidade sem a vio- do e importância. Assim, de acordo
lência colonial e as suas relações com Oliveira e Candau:
de poder. Contudo, é interessan-
te pensar que esse entendimento [...] a decolonialidade implica
partir da desumanização e con-
nos apresenta uma possibilidade
siderar as lutas dos povos his-
de virada epistemológica, só que toricamente subalternizados
dessa vez partindo de fora do con- pela existência, para a constru-
texto da modernidade ocidental e ção de outros modos de viver,
pensando uma crítica a partir dos de poder e de saber. Portanto,
decolonialidade é visibilizar as
sujeitos que foram subalternizados
lutas contra a colonialidade a
e invisibilizados pela modernidade partir das pessoas, das suas
europeia, articulada com os movi- práticas sociais, epistêmicas e
mentos sociais e políticos. políticas (2010, p.24).
Considerando a colonialidade
de nossos territórios em tempos Neste sentido, o ato de nos ree-
atuais, o presente trabalho se ins- ducar se torna urgente pois, isso
creve por meio de uma Pedagogia implica em uma construção prática
Decolonial2, capaz de problemati- vinculada a diversos grupos e ato-
zar as produções dos sambas-en- res sociais e a capacidade de inter-
redos, os entendendo como produ- pretar criticamente os códigos que
tos de uma disputa de narrativas culturalmente estão naturalizados
em que precisamos problematizar em nossa sociedade, caminhando,
e evidenciar as contradições, pois através da releitura do mundo em
este gênero musical serve a pro- que estamos inseridos, para uma so-
cessos educativos dentro e fora do ciedade antirracista e plural. Essas
espaço escolar possibilitando os práticas, requerem levar em conside-
questionamentos desses discursos ração e problematizar, muitas vezes
hegemônicos. Ou seja, podemos por meio da análise do discurso, o
partir do que já está estabelecido lugar que os/as negros/as ocupam
hoje pela modernidade europeia nos diversos espaços sociais.
rumo a um caminho de descons- Dessa forma, consideraremos

2 Segundo Walsh, Oliveira e Candau (2018) a pedagogia decolonial é um trabalho de poli-


tização da ação pedagógica para além dos sistemas educativos, que dialoga e se conecta
com os movimentos sociais pela luta dos povos colonizados e silenciados pela modernidade
ocidental.

94
que as práticas de letramento racial essa pesquisa que dialoga com os
crítico buscam entender e eviden- cincos princípios destacados pela
ciar os conflitos que as desigualda- autora, essa articulação não po-
des e a relação de raça e racismo deria deixar de acontecer nesse
promovem em contato direto com a estudo, pois o nosso ser social se
construção da identidade e subje- constrói a partir dessa relação com
tividade da população negra e não o território e com a história, desa-
negra, trabalharemos com o concei- fiando a lógica colonial dominante
to de letramento racial crítico a par- e buscando entender como o ra-
tir dos estudos de Ferreira (2014) que cismo e as desigualdades raciais
possibilita analisar as experiências afetivamente se evidenciam nesse
e os sentidos atribuídos às identi- campo de poder, disputa e privilé-
dades raciais de negros e brancos a gios que vem se tornando o carna-
partir dos seus contextos. A autora val Carioca.
apresenta os cinco princípios que Nesse sentido, o processo de
definem a Teoria Racial Crítica: letramento racial crítico se tor-
na urgente e importante para que
1. Raça e o racismo são endêmi- possamos compreender como se
cos na sociedade e se intersec-
dá a questão racial nas socieda-
cionam com base em gênero,
des, e então a partir dessa relação
classe, sexualidade, linguagem,
cultura e status de imigrante. dialógica, adentrar a luta antirra-
2. Desafia a ideologia domi- cista de maneira mais consciente
nante e suas reivindicações e engajada. É preciso destacar que
alegando que suas posturas
ao nos letrarmos criticamente te-
mascaram os problemas asso-
mos a possibilidade de desfrutar
ciados com poder e privilégios.
3. Possui compromisso com a relações mais democráticas, justas,
justiça social. com equidade, sendo esta uma luta
4. Tem perspectiva interdisci- de pessoas negras e não negras no
plinar que permite uma análise
enfrentamento/combate ao racis-
mais abrangente de como raça,
mo. Desta forma, articulando o le-
racismo e (des)igualdade racial
de manifestam. tramento racial crítico e a reflexão
5. Reconhece a centraliza do decolonial pretendemos compreen-
conhecimento experiencial das der a maneira como lidamos com
pessoas de cor como altamente
os conhecimentos trazidos do Nor-
valioso (FERREIRA, 2014, p. 243).
te para o Sul e como questionamos
essa violência colonial, sofrida na
Entendo que letramento racial
América a partir de Modernidade/
tem uma relação fundamental com
Colonialidade, tendo sua manuten-
o lado experiencial, assim como
ção ainda na contemporaneidade.

95
Pensando o samba como uma musical brasileiro que sofreu mui-
manifestação cultural, que repre- tas influências de outros países e
senta a identidade nacional e tem estilos musicais, seja nas suas me-
a capilaridade para ser assimilado lodias, nas suas composições, nas
em diversos lugares, ele se apresen- danças ou no estilo de vida que ele
ta principalmente como uma ferra- proporciona. A origem etimológica
menta que possibilita a construção da palavra samba vem sendo de-
de saberes e imaginários, que po- batida e apresenta algumas verten-
dem caminhar ou não com a critici- tes, sendo uma delas relacionada a
dade do contexto e com os anseios “umbigada”, forma como o “semba”,
da população negra. Ao falarmos palavra de origem banto, era dan-
em letramento, imaginamos quase çada nas festividades tradicionais
que automaticamente que há uma em seus países, supostamente,
reflexão de base considerando um dano origem ao que conhecemos
contexto problematizador. Mas hoje. O primeiro samba oficial foi
será mesmo que todo letramento é do grande compositor Ernesto dos
crítico? Santos, o Donga, em 1917 chama-
Enquanto produto nacional, do “Pelo telefone”, onde ela marca
de origem afro-brasileira que evi- a música como um samba, relacio-
dencia a resistência de sua popula- nando a sua letra com a folia e o
ção, o que o carnaval carioca traz carnaval. O samba-enredo então
sobre a perspectiva de letramento surge como um subgênero de cria-
em negritude? Considerando o car- ção livre, a princípio, explanando
naval carioca uma produção cultu- assuntos cotidianos do universo
ral com visibilidade internacional e daquela sambista, em sua grande
que faz parte do imaginário nacio- parte, pessoas negras.
nal, qual(is) identidade(s) socio-ra- Tanto na literatura quanto na
cial é /são apresentada/as nesses história oral percebemos que o
sambas? Essas são algumas pro- samba foi um grande aparato de
vocações que procuraremos res- resistência da população negra,
ponder no decorrer do relato desta herança dos nossos ancestrais
pesquisa. que permite um resgate da nossa
formação social e cultural, e assim
Do morro ao asfalto: o como toda tentativa de apagamen-
contexto do mundo do samba to foi visto até recentemente como
vadiagem. O carnaval, sendo a fes-
Atualmente conseguimos idea- ta da alegria, transmite também
lizar e projetar muito bem a defini- essa resistência, assim como sua
ção do samba enquanto um gênero beleza ímpar e todo trabalho que

96
existe por trás dessa locomotiva senvolver dessa história e de todo
cultural. É importante ressaltar que aparato cultural/religioso estava o
não temos como objetivo julgar o samba, e posteriormente, o samba-
carnaval carioca e o rumo que ele -enredo.
vem tomando durante as décadas,
mas, sim, problematizar os sambas- No caso específico das escolas
de samba, há que se considerar
-enredos e seus contextos discursi-
ainda que elas surgem entre o
vos. final da década de 1920 e início
O Rio de Janeiro, segunda ca- dos anos 1930, período marca-
pital do Brasil, foi o estado com uma do por um dilema desafiador:
das mais significativas entradas de de um lado, os negros tentavam
desbravar caminhos de aceita-
negros escravizados da história do
ção social; do outro lado, na to-
país entre os séculos XVIII e XIX. Po- caia, havia um Estado disposto
demos ver essa parte da história a disciplinar as manifestações
recente no pouco que permaneceu culturais dos descendentes de
conservado ou no que foi desenter- escravos, vistos constantemen-
te como membros de “classes
rado, após as inúmeras tentativas
perigosas” que precisavam ser
de apagamento da nossa história, controladas. É desse encontro
pelo Centro da cidade, mais espe- entre desejo e aceitação social
cificamente nos locais hoje conhe- das camadas populares urba-
cidos como Pequena África, que nas e o interesse disciplinador
do Estado que surgem as pri-
abrange os bairros da Saúde, Gam-
meiras escolas de samba cario-
boa, e Santo Cristo. ca. (SIMAS; FABATO, 2015, p.12)
Com o projeto de branquea-
mento da sua população, arqui- Com o passar do tempo, com a
tetura e história, juntamente com visibilidade que esse espaço vinha
a expulsão dos negros que habi- ganhando nas grandes massas e
tavam o Centro do Rio de Janeiro, com os contextos históricos brasi-
as comunidades cariocas foram se leiros e mundiais que vivenciavam a
constituindo enquanto novos terri- época, principalmente com a oficia-
tórios para essa população, tanto lização dos concursos em 1930, as
no quesito moradia quanto na so- agremiações foram sofrendo pres-
lidificação de suas culturas e reli- sões do Estado para que seus enre-
giosidade. Porém, as tentativas de dos servissem à modelos civilizató-
marginação dessas epistemes per- rios, abordando obrigatoriamente
maneciam enquanto um projeto temas nacionalistas, exaltando per-
de sociedade que tinha como ob- sonagens históricos que se limitavam
jetivo manter as relações de poder ao ponto de vista da elite branca.
através da ideia de raça, e no de- Mesmo em um clima propício

97
para a reprodução de ideologias li- uma elite de homens brancos. Des-
berais algumas escolas de samba, sa forma, dando prosseguimento,
em resistência, conseguem trazer apresentarei a seguir uma tabela
à visibilidade as suas lutas abor- com os sambas-enredos das esco-
dando temas como as religiões de las campeãs do Grupo Especial da
matriz Afro-brasileira, rituais, can- cidade do Rio de Janeiro, entre os
tos, culturas Nagô/Iorubá e as- anos 2000 a 2020, para que a princí-
sim por diante. Sabemos que essa pio seja possível visualizarmos, ao
conquista ainda está em curso, menos pelos seus títulos, a temá-
pois a predominância até os dias tica abordada por cada escola de
atuais, considerando que o carna- samba no término do século XX e
val que conhecemos hoje, ainda é início do XXI.
pensado, planejado e julgado por

TABELA 1 – SAMBAS-ENREDOS DE 2000 A 2020


ANO ESCOLA CAMPEÃ SAMBA-ENREDO

2000 Imperatriz Quem descobriu o Brasil, foi seu Cabral, no dia 22 de Abril, 2 meses
Leopoldinense depois do Carnaval.
2001 Imperatriz Cana-caiana, cana roxa, cana fita, cana preta, amarela,
Leopoldinense Pernambuco... Quero vê descê o suco, na pancada do ganzá
2002 Estação Primeira de Brazil com Z é pra cabra da peste, Brasil com S é nação do
Mangueira Nordeste
2003 Beija-flor de Nilópolis O Povo conta a sua história: saco vazio não para em pé, a mão que
faz a guerra, faz a paz
2004
Beija-flor de Nilópolis Manôa, Manaus, Amazônia, Terra Santa: Alimenta o corpo, equilibra
a alma e transmite paz.
2005 Beija-flor de Nilópolis O vento corta as terras dos Pampas. Em nome do Pai, do filho e
Espírito Guarani. Sete povos na fé e na dor... Sete missões do amor
2006 Unidos da Vila Isabel Soy Loco por ti, América – A Vila canta a Latinidade

2007 Beija-Flor Áfricas - Do berço real à corte brasiliana

Tambor
2008 Beija-flor de Nilópolis Macapabá: Equinócio solar, viagens fantásticas ao Meio Mundo

2009 Acadêmicos do Tambor


Salgueiro
2010 Unidos da Tijuca É segredo
2011 Beija-flor de Nilópolis A simplicidade de um Rei

2012 Unidos da Tijuca O dia em que toda a Realeza desembarcou na avenida para coroar
o Rei Luiz do Sertão
2013 Unidos da Vila Isabel A Vila canta o Brasil, celeiro do mundo – “Água no feijão que
chegou mais um”

98
2014 Unidos da Tijuca Acelera, Tijuca! (Ayrton Senna do Brasil)

2015 Beija-flor de Nilópolis Um griô conta a história: um olhar sobre a África e o despontar da
Guiné Equatorial. Caminhemos sobre a trilha da nossa felicidade.

2016 Estação Primeira de Maria Bethânia: a menina dos olhos de Oyá


Mangueira

2017 Portela Quem nunca sentiu o corpo arrepiar ao ver esse Rio passar?

Mocid. Indep. de As mil e uma noites de uma ‘Mocidade’ para lá de Marrakesh


Padre Miguel

2018
Beija-flor de Nilópolis Monstro é aquele que não sabe amar. Os filhos abandonados da
Pátria que os pariu
2019 Estação Primeira de História para ninar gente grande
Mangueira

2020 Unidos da Viradouro Viradouro de Alma lavada


2021 Inicialmente adiados para o mês de julho, os desfiles do Carnaval 2021 foram cancelados
devido a pandemia de Covid-19
2022 Acadêmicos da
Grande Rio
Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu

FONTE:https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_campe%C3%A3s_do_carnaval_do_
Rio_de_Janeiro

Vemos que o samba, em sua já que nem sempre quem está es-
origem, enquanto manifestação crevendo e à frente das escolas de
popular, sempre teve a preocupa- sambas, ou até mesmo patrocinan-
ção de pensar o lugar social que do, tem esse pertencimento e com-
o negro ocupava em seu território, promisso com a pauta antirracista.
projetando, sua ascensão dentro Ao falarmos de carnaval bra-
da base negra e urbana. Porém, a sileiro/carioca, a priori, pensamos
história nos mostra que essa pers- em um espaço cultural, majoritaria-
pectiva sofreu grandes influências mente negro, propício às narrativas
de controle políticas e sociais, onde que valorizem elementos constituti-
a liberdade de escrita e expressão vos da cultura negra considerando
foi controlada pela elite carioca evi- aspectos como ancestralidade, re-
denciando suas intencionalidades ligião e história de luta, ou seja, um
e projetos de manutenção da he- espaço oportuno para abarcar sa-
gemonia branca. Com a tabela aci- beres e produção de conhecimen-
ma percebemos que essa trajetória tos que foram invisibilizados his-
reverbera ainda nos tempos atuais, toricamente. Mas nesta arena de

99
disputa entre dizer e ocultar, a pro- po teórico/prático, já que o mesmo
dução de um samba-enredo pode tem uma relação direta com as ex-
reproduzir discursos opressores, periências vividas no mundo e com
principalmente se questionarmos o mundo, pois os processos educa-
como as epistemologias hegemôni- tivos também acontecem fora dos
cas ficam evidentes, saindo do muros escolares, em nosso cotidia-
samba e refletindo a sociedade. no. Neste sentido, cabe destacar
que o letramento racial crítico nos
Análise dos sambas-enredos: instrumentaliza para adentrar na
sambando em discursos luta antirracista enquanto sujeitos
coloniais ativos na sociedade, objetivando
processos, vivências e oportuni-
Refletimos no caminho percor- dades democráticas para pessoas
rido sobre como a ideia de mundo negras e não negras. Sabemos que
moderno produziu colonialidades experiências projetam ações futu-
que se fazem presentes na con- ras, e é exatamente isso que quere-
temporaneidade e estruturam as mos aqui. Possibilitar experiências
nossas relações. O resgate da his- de leituras outras que nos permita
tória das escolas de samba e de enxergar discursos e contextos de
seus sambas-enredos evidenciam maneira problematizadora tendo
as diversas práticas discriminató- como lentes um referencial teórico
rias na/da nossa sociedade. Dessa crítico e ações antirracistas em prol
forma, avançaremos neste momen- do engajamento em favor de ações
to com 4 sambas-enredos selecio- democráticas.
nados a partir dos seus discursos, Assim, iniciaremos a análise
para que possamos pensar o lugar documental através de sambas-
que os mesmos ocupam nesse pro- -enredos que reproduzem discur-
cesso histórico e social, estabele- sos coloniais e racistas. O primeiro
cendo um paralelo com a reflexão documento a ser discutido, o sam-
decolonial e com o letramento ra- ba da escola campeã do ano 2000
cial crítico, ou seja, nossa história – o GRES Imperatriz Leopoldinense
contextualizada, no intuito de tra- (com sede no bairro de Ramos, zona
zer uma problematização atual da norte da cidade do Rio de Janei-
representação do negro na con- ro), foi escolhido por entendermos
temporaneidade. que este enredo fecha um século
O letramento, apesar de ser passando uma mensagem que até
um conceito amplamente discutido pouco tempo não era questionada;
no âmbito educacional, não é uma logo após, discutiremos também
proposição exclusiva desse cam- o samba de 2005 da escola Beija-

100
-flor de Nilópolis, que foi a escola assim, seguiremos com a primeira
campeã no respectivo ano. Sendo análise:

TABELA 2 - SAMBA-ENREDO 2000 - IMPERATRIZ LEOPOLDINENSE


Quem descobriu o Brasil, foi seu Cabral, no dia 22 de abril, 2 meses depois do
Carnaval
Eu quero é mais Partiram caravelas de Tão linda, tão bela E, hoje, a minha escola é
Viver feliz Lisboa Paraíso tropical toda raça
Sambando Com o desejo de Foi seu Cabral quem
Com a Imperatriz comercializar descobriu o Brasil Convida a massa e conta
As especiarias da Índia Dois meses depois do a história
Eu quero é mais E o ouro da África Mas, Carnaval São quinhentos anos vivos
Viver feliz depois na memória
Sambando O rumo se modificou Terra De luta, esperança, amor
Com a Imperatriz Olhos no horizonte Abençoada de e paz
Um sinal surgiu encantos mil
Terra à vista De Vera Cruz, de Santa Eu quero é mais
O grito de Em 22 de abril, quando Cruz, Brasil Viver feliz
conquista do ele avistou Iluminada é a nossa Sambando
descobridor Se encantou terra Com a Imperatriz
A ordem do rei é Em 22 de abril, quando
navegar O branco Eu quero é mais
ele avistou Viver feliz
E monopolizar Se encantou O negro e o índio
riquezas de além- No encontro Sambando
mar A origem da nação Com a Imperatriz

Fonte: https://www.letras.mus.br/imperatriz-leopoldinense-rj/46374/

Imerso no mundo do letramen- na qual exterminou tantos povos


to, ler esse enredo me leva automa- que não conseguimos contabilizar
ticamente a pensar todo processo até os dias atuais. Traz a ideia de
escolar que vivenciamos durante conquista do colonizador e nos co-
séculos no Brasil, sabendo que his- loca, enquanto povos nativos, em
tórias foram tidas como verdades um lugar subalterno de salvação,
absolutas e repetidas incansavel- sem considerar o longo histórico
mente. Assim, iniciamos o debate de violência sangrenta, racista e
desse samba confirmando logo de epistemicida. O atual carnavalesco
início o quanto a reflexão decolo- da Mangueira, Leandro Vieira, faz
nial é importante para entender- uma análise em 2019, não se referin-
mos e identificarmos as marcas da do a este samba, mas que conversa
colonialidade presentes à nossa muito com o que estamos falando
volta e combatê-las. neste momento, observe:
Percebemos que o título desse
samba-enredo, dessa escola cam- Não à toa o termo “DESCO-
BRIMENTO” ainda é recorrente
peã, valoriza a violência colonial
quando, na verdade, a chega-

101
da de Cabral às terras brasilei- experiências que, em alguns mo-
ras representou o início de uma mentos, os caminhos que as vezes
“CONQUISTA”. E, ao ser ensina-
precisamos traçar não condizem
do que foi “descoberto” e não
conquistado, o senso coletivo com o objetivo final da nossa jorna-
da nação jamais foi capaz de da e que enquanto parcela menos
se interessar ou dar o devido favorecida da população estamos
valor à cultura indígena, asso- em constante negociação societá-
ciando-a “a programas de gos-
ria, porém hoje propomos descami-
to duvidoso” ou comportamen-
tos inadequados vistos como nhos, para projetarmos e vivermos
“vergonhosos”. Comemoramos uma sociedade longe das subalter-
500 anos de Brasil sem refazer- nizações.
mos as contas que apontam Sendo assim, não podemos
para os mais de 11.000 anos de
terminar essa análise sem sinalizar
ocupação amazônica, para os
mais de 8.000 anos da cerâmica que o samba da Imperatriz Leopol-
mais antiga do continente, ou dinense do ano 2000, escola cam-
ainda, sem olhar para a civiliza- peã, reforça um estereótipo colonial
ção marajoara datada do início de paraíso tropical apenas para
da era Cristã. (VIEIRA, Leandro.
seus invasores, invisibilizando por
In: LIESA. Abre alas: segunda,
2019, p. 313) meio de um discurso de “bênçãos”
as lutas que seguem acontecendo
O samba continua e o discurso até os dias atuais e as mortes do
opressor se potencializa. Ao cha- nosso povo. Esse samba potencia-
mar-nos de paraíso tropical, olhan- liza um enredo discriminatório, ra-
do o Brasil como a terra prometida cista, desigual que contribui para
a partir do grito de conquista do o mito da democracia racial e para
colonizador, o samba segue invi- justificar um Brasil que não existe.
sibilizando o conflito existente a Sabemos que o Brasil que conhece-
partir da invasão e que se estende mos hoje foi construído a partir da
até hoje. Imagino eu que, enquanto interferência dessa guerra colonial
corpos negros e indígenas atraves- estabelecida pela modernidade
sados cotidianamente pelo que nos europeia, mas é impossível aceitar-
impactam e nos mobilizam, chegar mos e propagarmos um discurso
na avenida e cantar esse samba te- harmonioso desse extermínio irre-
nha sido profundamente doloroso parável.
para os membros engajados no de- Com o mesmo senso crítico se-
bate racial da torcida Leopoldinen- guiremos para a análise do samba-
se. Compreendemos através das -enredo de 2005 do GRES Beija-flor
histórias dos nossos ancestrais, e de Nilópolis, que está situada em
vivenciamos por meio das nossas um Município da Baixada Fluminen-

102
se, região metropolitana do Rio de um tempo plausível para análise de
Janeiro, como já diz o nome da es- pequenas mudanças e, especifica-
cola. Importante marcar que temos mente, alguns ganhos nas políticas
um recorte temporal de cinco anos públicas brasileiras e internacio-
entre este e o samba da Imperatriz nais. Dessa forma, temos a seguir o
Leopoldinense, o que representa samba da escola campeã:

TABELA 3 - SAMBA-ENREDO 2005 – BEIJA-FLOR DE NILÓPOLIS


O vento corta as terras dos Pampas. Em nome do Pai, do filho e Espírito Guarani.
Sete povos na fé e na dor... Sete missões do amor
Clareou Os jesuítas vieram de Oásis para a vida em Oh, pai, olhai por nós!
Anunciando um novo além-mar comunhão Ouvi a voz desse
dia missioneiro
Clareou Com a força da fé O paraíso! O vento cortando os
Abençoada estrela- catequizar e civilizar Santuário de riquezas pampas Dobrando a
guia naturais esperança
Na liberdade dos Onde ergueram
Traz do céu a luz campos e aldeias Nesse rincão
menino monumentos brasileiro! Em nome
Em lua cheia, canta e Imensas catedrais
Em mensagem do dança o guarani. Com do pai, do filho
divino Mas a ganância A beija-flor é guarani
tubichá e o feitiço de Alimentada nos
Unir as raças pelo crué Sete povos, na fé e
amor fraternizar palácios de Madri na dor
Na y maraey aiê, povo Com o tratado
A companhia de Jesus de fé! Surgiu Sete missões de
Restaura a fé e a paz assinado amor!
Nas mãos da redução a A traição estava ali
faz semear evolução

Fonte: https://www.letras.mus.br/beija-flor-rj/76330/

Em 2005 o contexto de paz na manutenção do discurso hege-


ainda se faz presente no enredo mônico de que esta foi uma época
do samba da Beija-flor, retratando com proposições fraternas e divi-
a época colonial onde a chamada nas.
guerra santa se fazia presente. A Mas seguiu ecoando na Mar-
canção inicia com uma anuncia- quês de Sapucaí um discurso racis-
ção divina que clareia o dia, em um ta e desumano que segue eviden-
movimento de salvação necessária ciando a “liberdade dos campos e
para aquela sociedade sem civili- aldeias”, liberdade essa que nunca
zação. Essa mensagem dizia para tivemos e não temos até hoje. In-
“unir as raças (...) com a força da fé teressante observar que o samba
catequizar e civilizar”, onde, ao meu fala sobre a evolução, fazendo uma
entendimento, “as raças” estão pos- referência à sociedade moderna
tas na relação de poder – inferior/ como um autodesenvolvimento eu-
superior - juntamente com a igreja ropeu, como se em um estalar de

103
dedos a Europa tivesse produzido mento racial crítico em prol de uma
todo o referencial epistêmico que educação antirracista, mas para os
garantisse essa evolução os colo- carnavalescos do GRES Beija-Flor
cando em um lugar superior, e logo de Nilópolis, neste ano, o discurso
na próxima estrofe, reduz o Brasil antirracista ainda não fazia senti-
a um paraíso, santuário de rique- do.
zas naturais, apenas, o que nos faz
problematizar, mais uma vez, todo Análise dos sambas-enredos:
processo histórico e a relação Mo- Caminhos insurgentes de
dernidade/Colonialidade a partir diálogo com os
dessa violência colonial. Qual seria sambas-enredos
a nossa identidade, exóticos?
Não podemos deixar de fazer Percebemos ao longo do tem-
uma análise da conjuntura socio- po que escolhas são atos políticos,
política de 2005. Tínhamos o Luiz principalmente quando ocupamos
Inácio Lula da Silva como presiden- determinados cargos e ofícios. É
te do Brasil, no final de seu primei- perceptível que a base das escolas
ro mandato, que foi marcado por de samba em seu processo históri-
um período de grandes conquis- co, seja nos avanços ou nos retro-
tas para a população, entre elas a cessos de toda esfera social, vem
sansão da lei 10.639/03 que altera negociando a todo instante com
o artigo 26A da Lei de Diretrizes e seu público consumidor ou agen-
Bases – LDB 9394/96 tornando obri- ciador. Independente da realidade
gatório o ensino da História e Cul- vivenciada no momento, as lutas
tura Afro-brasileira nas escolas de por nossas demandas permane-
ensino fundamental e médio. Nesse cem, pois são muitas instâncias a
cenário, fruto do movimento negro transformar. A partir desse ponto
em articulação com os educadores iremos investigar se no decorrer
engajados, mostra a preocupação desses 20 anos tivemos sambas-
da população com o avanço do ra- -enredos de agremiações campeãs
cismo, com os discursos reproduzi- que ecoaram discursos críticos em
dos na sociedade, com o já temido seus desfiles, e como esses sambas
mito da democracia racial e com a se articularam com a temática da
necessidade de garantir a luta dos religiosidade negra, ameríndias,
povos pelo reconhecimento de suas com as pautas sociais e resgate do
histórias e saberes silenciados por protagonismo da mulher. Nos de-
longos anos. Portanto, em 2005, ti- bruçaremos para analisar os sam-
midamente, já caminhávamos em bas-enredos das escolas campeãs:
diálogo com o debate em letra- GRES Estação Primeira de Man-

104
gueira (2019) e do GRES Acadêmicos por seus discursos de potência e
do Grande Rio (2022), escolhidos comoção social.

TABELA 4 - SAMBA-ENREDO 2019 – ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA


História para ninar gente grande
Mangueira, tira a poeira dos O avesso do mesmo lugar Brasil, o teu nome é Dandara
porões Na luta é que a gente se encontra E a tua cara é de cariri
Ô, abre alas pros teus Não veio do céu
heróis de barracões Brasil, meu dengo Nem das mãos de Isabel
Dos Brasis que se faz um A Mangueira chegou A liberdade é um dragão no
país de Lecis, jamelões Com versos que o livro apagou mar de Aracati
São verde e rosa, as Desde 1500 tem mais invasão do
multidões (2x) que descobrimento Salve os caboclos de julho
Tem sangue retinto pisado Quem foi de aço nos anos de
Brasil, meu nego Atrás do herói emoldurado chumbo
Deixa eu te contar Mulheres, tamoios, mulatos Brasil, chegou a vez
A história que a história Eu quero um país que não está no De ouvir as Marias, Mahins,
não conta retrato Marielles, malês

Fonte: https://www.letras.mus.br/mangueira-rj/samba-enredo-2019-historias-pa-
ra-ninar-gente-grande/

Cantar na avenida para o mun- do por meio da oralidade o que a


do discursos campeões que ecoam história, o currículo escolar e a mo-
potência, que denuncia para além dernidade europeia seguem ten-
da violência física, mas também a tando apagar: “o avesso do mesmo
epistêmica, em um campeonato de lugar”.
repercussão internacional mostra a
nossa identidade social enquanto Deram vez a outros. Outros que,
por certo, já caíram nas suas
seres históricos e políticos no mun-
provas. Você aprendeu que os
do e este samba-enredo da Man- “BANDEIRANTES” – assassinos e
gueira já inicia sua primeira estrofe saqueadores – eram os “bravos
anunciando para o que veio: tirar “a desbravadores que expandi-
poeira dos porões, ô abre alas pros ram as fronteiras do território
nacional”. DOM PEDRO, o pri-
teus heróis de barracões!
meiro, você decorou que era o
Trazendo a história ignorada “herói” da Independência, sem
e apagada nos livros, a escola diz que as páginas dos livros con-
que “quer um país que não está no tassem a camaradagem de um
retrato” e que ela chegou para fazer “negócio de família” tão bem
traduzido pela frase do PAI do
esse movimento. O carnavalesco
Imperador, que a ele orientou:
Leandro Vieira, em um enredo au- “ponha a coroa na tua cabeça,
toral, traz os verdadeiros heróis e antes que algum aventureiro o
heroínas da população, resgatan- faça”. Convém esclarecer aqui

105
que os “aventureiros” citados Brasil do “dengo”, do negro, dos po-
por DOM JOÃO éramos nós, vos nativos, dos afro-brasileiros, ou
brasileiros, e que a “indepen-
seja, o “país que não está no retra-
dência” proclamada – ou pro-
gramada – foi para evitar que to”.
tivéssemos aqui “aventureiros” Importante contextualizar
como Bolívar ou San Martin, esse samba com sua época históri-
patriarcas bem-sucedidos das ca. Vivíamos no Brasil uma grande
independências que não que-
onda conservadora que culminou
riam por aqui. Como CABRAL, o
“ladrão”, que “roubou” o Brasil lá na eleição de um presidente de ex-
pelas bandas de mil e quinhen- trema direita em 2019. Essa onda
tos, ou PEDRO I, que através foi um projeto articulado nos de-
de um acordo “mudou duas ou talhes e começou muito antes das
três coisas para que tudo ficas-
eleições de 2018, nosso país já vi-
se da mesma forma”, tem tam-
bém o Marechal, o DEODORO nha sofrendo esses golpes antide-
DA FONSECA, homem de con- mocráticos há um longo período e,
vicções monarquistas – amigo dentro desse espaço temporal, ti-
pessoal do Imperador PEDRO II vemos o assassinato da vereadora
– autor da proclamação de uma
Marielle Franco e de seu motorista
República continuísta – sem
participação popular – traduzi- Anderson Gomes em março de 2018.
da em golpe e que, na ausên- Executada a tiros em um crime bár-
cia de líderes, mandou pintar baro, ação que mostra a intenção
um retrato do Alferes Joaquim evidente de calar as lutas pelas ca-
José da Silva Xavier, o TIRADEN-
madas populares, Marielle é cita-
TES, na tentativa de produzir
um personagem pra chamar de da no samba da Mangueira, mas
“seu”. (VIEIRA, Leandro. In: LIESA. agora em um grito de anunciação
Abre alas: segunda, 2019, p. 314) e não de silenciamento. PRESENTE!
“Os anos de chumbo3” ainda
Através da análise do discur- são os dias atuais, isso está presen-
so proferido pelo carnavalesco te no samba-enredo e se completa
Leandro Vieira percebemos todo no desfile da escola campeã do
o protagonismo que o enredo em Estandarte de Ouro, prêmio con-
questão traz para a avenida, pois cedido à melhor escola e samba-
torna-se um discurso de luta coleti- -enredo pelo Jornal O Globo, uma
va; das nossas histórias apagadas, espécie de “Óscar do Carnaval”. Em
mas não esquecidas; da comuni- um movimento insurgente, o carna-
dade LGBTQIA+; das mulheres que val anuncia por meio da oralidade
estruturam esse país sem pais; o o Brasil que queremos, descons-

3 Essa expressão refere-se ao período da ditadura militar e ao longo contexto de violência


vivida na época.

106
truindo a magnitude pintada por ressignificou e reclassificou todas
traz de figuras como a Princesa Isa- as estruturas societárias a partir
bel e trazendo à tona quem sempre da subalternização por conta dos
esteve na luta por nossa liberdade, seus fenótipos, cor, modos de vida,
os verdadeiros heróis brasileiros. etc. A Colonialidade do Saber pos-
Assim como essas análises se sui a mesma matriz de surgimento,
tornam um grande potencial de vi- mas se refere especificamente a ne-
rada epistemológica, tecendo con- gação das epistemes produzidas
siderações sobre a história que pelo não-europeu, dessa forma, os
nos foi negada, o samba da Man- colonizadores ficam conhecidos
gueira se faz insurgente ao propor por sua superioridade intelectual
uma reconstrução do Brasil a partir seja religiosa, científica, filosófica,
das multidões, do coletivo, dos mo- geográfica, enquanto invisibiliza
vimentos sociais e negro, do “san- saberes produzidos por outras po-
gue retinto pisado” em cada canto pulações, instaura a ideia de pro-
o nosso território brasileiro desde gresso e o racismo epistêmico. E
1500 até a contemporaneidade. para fechar, a Colonialidade do Ser
Não dá mais para aceitar as bases que abarca todas essas violências
racistas, hegemônicas, patriarcais vividas a partir do “outro” atribuin-
e eurocentradas que estruturam a do aos povos colonizados um lugar
nossa sociedade, sendo a educa- inferior, de silenciamento, pois as
ção uma grande ponte entre esse relações modernas criaram novas
passado não oficial e futuro a se formas de se construir e validar o
construir. seu ser social. Assim, segue o sam-
Assim, seguindo na trilha des- ba-enredo da Grande Rio 2022.
ses caminhos insurgentes de diá-
logos com os sambas-enredos te-
mos o samba campeão da Grande
Rio, ano de 2022, “Fala, Majeté! Sete
chaves de Exu” que traz para as ex-
periências sociais questionamen-
tos pautados durante séculos no
que Quijano (2005) define como:
Colonialidade do Poder, do Saber
e do Ser. A Colonialidade do Poder,
como vimos, surgiu atrelada a ideia
de raça, onde a Europa e o seu
“autodesenvolvimento” moderno

107
TABELA 5 - SAMBA-ENREDO 2022 - ACADÊMICOS DA GRANDE RIO
Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu

Exu Caveira, Sete Saias, Num mar de dendê Sou do fogo e Adakê Exu, Exu, ê Mojubá
Catacumba Caboclo, andarilho, gargalhada, ê Mojubá Ê Bará ô, Elegbara
É no toque da macumba, mensageiro Lá na encruza, onde a flor
saravá, Alafiá Meu povo firma ponto no Ô, luar, ô, luar nasceu raiz
Seu Zé, malandro da terreiro Catiço reinando na Eu levo fé nesse povo que
encruzilhada A voz de Palmares, Zumbi segunda-feira diz
Padilha da saia rodada, ê Àgbá Ô, luar, dobra o surdo de
Mojubá terceira Boa noite, moça, boa noite,
Exu Pra saudar os guardiões moço
Sou Capa Preta, Tiriri O Ifá nas entrelinhas dos da favela Aqui na Terra é o nosso
Sou Tranca Rua, amei o Sol Odus Eu sou da Lira e meu templo de fé
Amei a Lua, Marabô, Alafiá Preceitos, fundamentos, bloco é sentinela Fala, Majeté! Faísca da
Eu sou do carteado e da Olobé cabaça de Igbá
quebrada Prepara o padê pro meu axé Laroyê, laroyê, laroyê Na gira, Bombogira,
Sou do fogo e gargalhada, ê É poesia na escola ou no Aluvaiá
Mojubá Exu Caveira, Sete Saias, sertão Num mar de dendê
Catacumba A voz do povo, profeta Caboclo, andarilho,
Eu levo fé nesse povo que É no toque da macumba, das ruas mensageiro
diz saravá, Alafiá Tantas Estamiras desse Meu povo firma ponto no
Seu Zé, malandro da chão terreiro
Boa noite, moça, boa noite, encruzilhada A voz de Palmares, Zumbi
moço Padilha da saia rodada, ê Laroyê, laroyê, laroyê
Àgbá
Aqui na Terra é o nosso Mojubá As Sete Chaves vêm abrir
templo de fé meu caminhar Boa noite, moça, boa noite,
Fala, Majeté! Faísca da Sou Capa Preta, Tiriri À meia-noite ou no Sol do moço
cabaça de Igbá Sou Tranca Rua, amei o Sol alvorecer Boa noite, moça, boa noite,
Amei a Lua, Marabô, Alafiá Pra confirmar moço
Na gira Bombogira, Aluvaiá Eu sou do carteado e da Boa noite, moça, boa noite,
quebrada Adakê Exu, Exu, ê
moço
Mojubá
Ê Bará ô, Elegbara
Lá na encruza, a
esperança acendeu
Sou Grande Rio, Grande
Rio sou eu
Fonte: https://www.letras.mus.br/academicos-do-grande-rio-rj/samba-enredo-
-2022-fala-majete-sete-chaves-de-exu/

Voltando o olhar para a cons- cação da história hegemônica da


trução histórica das escolas de produção de conhecimento mo-
samba e de seus sambas-enredos, derno/colonial. Temos pela primei-
que esteve sempre em um movi- ra vez na história do carnaval do
mento de negociação com a elite Grupo Especial da Cidade do Rio
patriarcal, porém os entendendo de Janeiro, um enredo totalmente
enquanto patrimônio imaterial que alicerçado na construção do que
se manifestam em forma de sabe- é Exu (Divindade esta pertencente
res e práticas ancestrais, o respec- aos cultos afro-religiosos). E sua in-
tivo samba vem para a avenida do surgência está exatamente nesse
grupo especial do Rio de Janeiro fato, pois se antes tínhamos sam-
cantando a potência de ressignifi- bas-enredos em que pequenos tre-

108
chos nos possibilitavam em potên- afinal, quem é Exu?
cia um letramento reduzido sobre Rufino (2019) já inicia seu texto
a potencialidade e representativi- trazendo a resposta a essa pergun-
dade de Exu, hoje, com o samba da ta, observe:
Grande Rio temos a ressignificação
das lentes. Dessa forma, esse sam- Exu na cultura ioruba e nas
suas múltiplas inscrições na
ba traz a possibilidade de discutir
diáspora africana emerge
a intolerância/racismo religioso a como princípio explicativo de
partir da construção do “outro”. mundo sobre o acontecimen-
Esse enredo possui um grande to, comunicação, linguagem,
comprometimento com a causa an- invenção, corporeidade e ética.
Nesse sentido, considerando
tirracista e com a decolonialidade,
que os domínios do orixá são
pois envolvido com os movimentos também comuns ao fenômeno
sociais, culturais e negro, ele traz educativo, podemos, a partir de
à tona uma cosmovisão marginali- um giro enunciativo, perspecti-
zada, do povo de terreiro seja dos var uma educação referencia-
da por ele (RUFINO. Luiz, 2019, p.
Candomblés e Umbandas. Desta
262).
forma, o samba-enredo Fala, Maje-
té! Sete Chaves de Exu provoca um
Entender os processos educa-
letramento racial crítico em eviden-
tivos, em espaços formais e/ou não
ciar essa epistemologia (Exú) en-
formais, enquanto práticas eman-
quanto potência de conhecimen-
cipatórias e interculturais nos fa-
to e se distanciando da imagem
zem dialogar com a sociedade que
colonial comumente disseminada
estamos construindo, nos com-
enquanto demônio cristão. E cami-
preendendo enquanto seres que
nhando nessa insurgência discur-
interferem no mundo. Essa intercul-
siva tivemos reações pautadas nos
turalidade, vivenciada a partir da
letramentos, seja ao ouvir o samba
colonialidade, quando assumida
e/ou ver o desfile, de identificação,
de forma crítica junto à decolonia-
orgulhosamente, diante da figura/
lidade, ao letramento racial e aos
história de Exu, abrindo caminhos
movimentos sociais, possibilita a
e estabelecendo um diálogo, em
construção de uma nova sociedade
comunicação com o povo de ter-
com caminhos mais democráticos,
reiro. E por outro, o incômodo que
éticos e políticos. Exu nos possibi-
o enredo causou, assim como seu
lita esse giro epistêmico quando
desfile, nas pessoas de religiosida-
seus conhecimentos abrem espaço
des diferentes das de matrizes afri-
para uma perspectiva antes rejei-
canas, acostumas a entender Exu
tada; quando compreendemos a
enquanto o diabo, o maligno. Mas

109
simbologia de um mundo a partir Nessa perspectiva, destaca-se
do amor e da constante evolução a necessidade de uma agenda
política que denuncie os vín-
humana; quando em um processo
culos e impactos da coloniali-
diaspórico, de escravização, dos dade na educação e proponha
negros alforriados, ou da constru- formas de transgressão a esse
ção dos terreiros, entendemos essa modelo. Assim, ressalto três
divindade presente e localizada em pontos emergenciais: o primei-
ro é a defesa de que a proble-
todos os processos e lugares que
mática da política do conheci-
há movimento e ressignificação. As- mento é também étnico-racial,
sim, em diálogo com essa perspec- o segundo é o fortalecimento
tiva, Exu está em tudo que é vivo e de um modo de educação in-
se permite co-presença com as de- tercultural e o terceiro são as
elaborações de pedagogias
mais formas de pensar e existir no
decoloniais (RUFINO. Luiz, 2019,
mundo. Pois Exú não é excludente. p. 265).
Sua identidade é potencialmente
em favor do encontro. Sendo assim, esse samba-en-
Dessa forma, Exu que é o ser redo é de grande potência para
do movimento, da capacidade de que nós, enquanto sociedade, pos-
comunicação e de ressignificação samos refletir, denunciar e propor
dentro da religião de matriz afri- novas formas de organização e
cana, uma perspectiva que nos foi saberes que não sejam as estabe-
negada, é localizado enquanto o lecidas pela colonialidade moder-
satanás, o mau, na visão e religio- na ocidental. Com essa narrativa
sidade do colonizador. Logo, as conseguimos viabilizar saberes e
bases coloniais que identifica Exu contextos transgressores que mo-
como o diabo, que subjuga essa bilizam, a partir da comunicação
divindade e toda a sua religiosida- e da ressignificação, a prática de
de, são as que precisam ser com- combate às ações discriminatórias
batidas justamente porque além em um projeto decolonial e antirra-
de ser uma grande inverdade, não cista.
há respeito às múltiplas formas de
pensar. Muito se diz sobre a laici- Considerações
dade do Estado, quando na verda-
de esse discurso serve para enco- Fica cada vez mais evidente
brir a colonialidade e a hegemonia que propor, projetar e colocar em
do saber cristão, já que o mesmo ação uma proposta decolonial re-
está em todos os espaços públicos quer se afastar de modelos enges-
e Exu não. sados e rígidos que os ambientes
escolares/acadêmicos exigem. Tal

110
movimento propõe uma ressigni- tivos e objetos conduzem a novos
ficação de todo o processo cons- caminhos e conhecimentos, propi-
truído até o momento, além de es- ciando compreensões do mundo
tar disposto a (re)aprender. Esses e evidenciando anseios e lutas. As
diálogos e trocas sugerem, seja estrofes dos sambas-enredos da
através da construção de conheci- Mangueira e Grande Rio nos mos-
mentos ou do reconhecimento, tan- tram a insurgência da coletividade
to de si quanto do outro, novas ex- frente as violências e aos saberes
periências e contextos a partir das coloniais, entendendo que os mes-
nossas vivências objetivando a (re) mos além de luta pedagógica são
construção dos sujeitos envolvidos política e social, assim como a his-
nesse processo. Assim, fica eviden- tória das escolas de samba e seus
te que essas desconstruções po- enredos. Essa articulação epistêmi-
dem ocorrer a partir de muitos re- ca, dos que foram subalternizados
pertórios, como a música, a cultura, e as ocidentais, potencializa a mu-
a religiosidade, etc., sempre na luta dança urgente que precisa aconte-
coletiva contra a colonialidade, re- cer em nossa sociedade, sem per-
conquistando os espaços que nos der de vista a colonialidade, mas
foram negados. contestando-a. Assim, vejo com
Caminhando com os discursos esse estudo, o entendimento e o
presentes nesses sambas-enredos compromisso político que tais prá-
entendemos que na educação for- ticas assumem e precisam perma-
mal ou informal, popular ou tradi- nentemente se estabelecer em nos-
cional, o letramento e as teorias se sas ações.
tornam práticas quando seus obje-

Referências

CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais.


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letras, 2009.

112
“CARACA, TIA!
EU MORO ALI”:
O “ALMANAQUE
DA VIZINHANÇA:
VILA CRUZEIRO”
E A PEDAGOGIA
TERRITORIAL
Maria Alice Garcia de que, em uma projeção, a turma re-
Mattos1 conhecesse seu território na esco-
la. E como num passe de mágica:
“- Caraca, tia! Eu moro ali!”; “- Eita!
Apresentação Acho que é ali que minha tia mora
com meu padrinho.”; “Maluco! É a
Numa dessas tardes de quar- favela!”. E assim, entre exclamações
ta-feira, em que a semana mal co- e interjeições que surgiam dos pe-
meçou e já está terminando, sen- quenos, foi apresentado o Almana-
tamo-nos na Sala de Leitura para que da Vizinhança: Vila Cruzeiro
1Mestra pelo Programa de Pós-graduação em Ensino em Educação Básica do CAp-UERJ.
Professora da rede municipal do Rio de Janeiro SME-RJ; professora da rede municipal de
Caxias - SME-PMDC.

113
para a turma 1.304 da E.M. Monse- mórias, histórias e sentimentos que
nhor Rocha, escola pública muni- permeiam as territorialidades ali
cipal da Vila Cruzeiro, no subúrbio constituídas. Uma carga que é lite-
carioca. rária, imagética, tecnológica, mas
Paulo Freire (2006) nos ensina sobretudo, dialógica, que se mos-
(no presente, porque vive) que a trou pertinente (mesmo necessária)
leitura de mundo precede a leitu- dentro de um contexto que discute
ra das palavras, palavramundo é, padrões culturais e estéticos, além
assim, a essência de Paulo Freire, de conhecimentos científicos cate-
assim como o amor que afeta as dráticos, que não conversam com
relações humanas e, portanto, a as vivências cotidianas, com as his-
educação. tórias contadas e ouvidas, com o
Ao perceber que as crianças compartilhamento de experiências,
da Vila Cruzeiro são o presente do com a passagem do tempo nesse
meu passado e do passado dos espaço.
meus antepassados, busquei me Este texto visa apresentar o re-
aprofundar na história daquele ter- conhecimento e a autorreferência
ritório denso, complexo e cheio de de uma proposta pedagógica afeti-
vida. Assim nasceu a pesquisa Vila va e intencional, que reverberaram
Cruzeiro, escolas e movimentos so- nos dias que seguiram a projeção
ciais: múltiplas narrativas sobre o do Almanaque, e possibilitaram
território, a vizinhança e a história envolver, encantar e (re)conhecer
local, origem do Produto Educacio- mais e melhor as crianças daquela
nal Almanaque da Vizinhança: Vila turma, assim como suas histórias,
Cruzeiro, tecida no âmbito do Pro- para além do que era compartilha-
grama de Pós-graduação em Ensi- do nas histórias cotidianas. Assim
no em Educação Básica do CAp- sendo, como relato de experiência,
-UERJ, sob orientação da Prof.ª Dr.ª traz a aplicabilidade do Almanaque
Mônica Lins. da Vizinhança: Vila Cruzeiro como
Pesquisa e Produto se interse- parte indissociável da ação-con-
cionam nas salas de aula, no chão ceito Pedagogia Territorial, conce-
da escola, nas sedes dos movimen- bida nesta mesma pesquisa, que se
tos sociais, no território. Carregam dispõe a alcançar os espaços edu-
narrativas de personagens-agen- cacionais da Vila Cruzeiro como
tes, pessoas comuns, que viven- forma de (re)conhecer, valorizar e
ciam a Vila Cruzeiro no cotidiano; criticar as vivências que se cons-
contam histórias de personalida- tituem no território. Tal proposta,
des que nomeiam equipamentos assim como o almanaque, é passí-
públicos do entorno; agregam me- vel de replicabilidade para propo-

114
nentes de/e territórios outros que Retomando o relato
se disponham a captar histórias,
sentidos e memórias viabilizando Uma curiosidade retumbante
assim, nos processos educacionais sobre o que tanto a “tia” fazia com o
neles constituídos, o protagonismo computador enquanto estavam na
dos seus espaços e personagens. Educação Física, na aula de Artes
ou na de Inglês gerava inquietude e
Caminhos metodológicos burburinho: O planejamento faze-
mos juntos, a chamada também, as
Em se tratando este texto de atividades impressas que construí-
um relato de experiência, cabe apre- mos, ficam organizadas em pastas
sentar primordialmente as expe- para serem distribuídas nos mo-
riências que o compõem. Contudo, mentos planejados. Então o quê? O
trata-se também de uma demons- que ela fica fazendo ali? Enquanto
tração da aplicabilidade do Alma- alguns curiosos mais ousados lar-
naque da Vizinhança: Vila Cruzeiro gavam a Educação Física – inve-
como material de apoio educacio- javelmente a aula mais esperada
nal, que ampara a proposta de uma da semana – e não saiam do meu
Pedagogia Territorial, cuja premissa lado para observar cada contorno,
é levantar, reconhecer, criticar, va- cada edição, cada palavra escrita
lorizar e articular nas instituições ou foto inserida no arquivo. “Shiu! É
educacionais, movimentos sociais e surpresa!”, “Caraca, a tia manja de
com a comunidade as produções e computador!”, o Almanaque da Vi-
sujeitas/os emergentes do território zinhança: Vila Cruzeiro foi tomando
da Vila Cruzeiro e sua vizinhança a forma, sendo modificado com suas
partir das suas narrativas, dos mo- sugestões e olhares encantados,
vimentos sociais ali articulados e críticos e curiosos.
das observações possíveis no que Neste cenário, a Prefeitura do
concerne à revisão bibliográfica. Rio de Janeiro, em março de 2022,
O material, assim como a pro- lançou o projeto Rio Bicentenário,
posta de intervenção prática susci- que marcava o ano do bicentenário
tada pela Pedagogia Territorial, de- da Independência do Brasil. O prê-
manda uma pesquisa exploratória mio Rio Todo (Em) Prosa desse ano
territorial, a qual aborda a história entrou na temática da valorização
local a partir das produções, me- do Rio de Janeiro como capital da
mórias e experiências de organiza- Independência do país.
ções e sujeitas/os viventes, sendo, O concurso Rio Todo (Em) Pro-
assim, passível de replicabilidade sa nasceu em 2019, na GEL / Gerên-
para outros territórios. cia de Leitura da Secretaria Muni-

115
cipal de Educação / SME carioca sual. Alguns responsáveis enviaram
e prevê movimentos de valorização fotos que já tinham, outros progra-
da cidade a partir da literatura e maram passeios e fotografaram
das artes em geral, no âmbito da para que as crianças participas-
educação, desde então. Para parti- sem. Surgiram fotos da Igreja da Pe-
cipar do concurso de 2022, a turma nha, do Parque Ary Barroso, muitas
1.304 foi convidada pela professora do Parque Shanghai e até da Serra
de Sala de Leitura a produzir mate- da Misericórdia, caminho até hoje
rial audiovisual que apresentasse utilizado para atravessar a região
nossa perspectiva sobre a cidade “sem descer pra pista”, como dizem
do Rio, sob a temática específica as crianças. Mesmo que muitos
Rio Bicentenário: patrimônios entre não tenham enviado fotografias,
a montanha e o mar. todas as crianças participaram do
Foi possível, assim, entrelaçar a processo do material, que tomou o
pesquisa com a demanda apresen- tempo destinado à aula de Artes,
tada pelo convite. Propus, então, que pois nesse período ficaram sem do-
mostrássemos um pouco do nosso cente para ministrar a disciplina.
território para as outras escolas, a Na rota da pesquisa sobre o
4ª Coordenadoria Regional de Edu- território e reconhecendo a em-
cação / CRE e o nível central (SME). polgação da turma e das famílias,
Logo, discutimos sobre o que seria compus o poema Penha, nossos
feito e as crianças sugeriram trazer cantos e encantos, que nomeou
fotos para compor o que viria a ser o audiovisual, foi declamado por
nosso vídeo premiado. Listamos os uma criança da turma e sobrepos-
lugares que gostaríamos de apre- to às imagens, com o fundo instru-
sentar e a Igreja da Penha e os Par- mental da música Aquele Abraço,
ques Shanghai e Ary Barroso foram de Gilberto Gil. O poema que segue
os mais efusivamente lembrados. compõe, também, a dissertação e o
Para começarmos, solicitei no Almanaque.
grupo de mensagens que os res- Penha, nossos cantos e encantos
ponsáveis enviassem fotos das
crianças nesses lugares e em ou- Me pediram pra falar
Dos cantinhos que mais gosto
tros espaços do território que acre-
Através de fotos e desenhos,
ditassem ser interessante mostrar Pode ser, mas me demoro.
no vídeo. Expliquei como o projeto Então vamos logo de rima,
seria articulado e que seria neces- Pra fazer jus à nossa história,
sário autorização do uso da ima- Porque a Penha é mais que
um bairro,
gem e voz das crianças para que as
É família, vida e memória.
fotos fossem inseridas no audiovi-

116
Aqui é “meu lugar”,
Peço licença a Arlindo Cruz,
Igreja da Penha é cartão postal,
Que bem ao longe reluz;
Abençoa quem chega à cidade,
Que é dita maravilhosa;
Acolhe a Vila Cruzeiro,
Bem do alto do penhasco,
iluminada e majestosa.
Aos seus pés, o Parque Shanghai,
Alegria da criançada,
Deixa vivos nossos sonhos
De uma infância encantada.
Em outubro, a Festa da Penha,
Que fez história na Cidade:
Donga, “Pelo Telefone”,
Convocava a mocidade;
As tias e os sambistas,
Capoeiras e romeiros,
Todos juntos, no mesmo espaço,
E o povo todo lampreiro.
Nossos cantos encantados
Têm mais que imaginamos:
Um Campo... Ordem e Progresso,
Que já fez muito sucesso!
Lembra do menino Wallace,
Com a “canarinho” pintada?
Lá foi eternizado,
Por lentes encantadas.
Também foi berço de Imperador,
Adriano é seu nome,
Que a todos encantou,
Fazendo jus ao codinome.
E a Serra da Misericórdia,
De natureza, terra e luta,
Guardada por todo o Complexo,
Sua importância ninguém refuta.
Roda de Capoeira da Penha
e Parque Ary Barroso
Estão guardados na memória,
De uma história de luta e gozo.
Somos da Penha e seus cantos,
Apresentando olhares e afetos,
Somos sujeitos e encantos
E, em paz, estamos completos.
(Mattos, 2022)

117
A premiação do Rio Todo (Em) ram a primeira banca do curta Pe-
Prosa aconteceu em outubro de nha, nossos cantos e encantos e do
2022, na Estação NET Rio, em Bo- Produto Educacional Almanaque
tafogo, para onde fomos com as da Vizinhança: Vila Cruzeiro.
crianças que apareceram no curta A projeção feita na Sala de
divididas em dois carros de pas- Leitura foi o início da experiência.
seio. Dentre os 200 alunos premia- Ali pudemos visitar e compartilhar
dos, estávamos muito satisfeitos algumas histórias, personagens e
com o produto que apresentamos, espaços reconhecidos, além de co-
mas além disso, as crianças que fo- nhecer novas histórias e persona-
ram à premiação tiveram a chance gens do cotidiano que atropelamos
de passear por alguns lugares so- com as demandas da vida urbana.
bre os quais somente ouviam fa- Ao final da projeção, voltamos para
lar na TV. Ainda assim, visitando o a sala e discutimos sobre as ques-
Aterro do Flamengo, avistando tar- tões que envolvem nossa vida na-
tarugas, o Cristo Redentor e o Pão quele território e fora dele. Assim,
de Açúcar, puderam perceber que levantei o questionamento: “Que lu-
há mais lugares que podem ocupar, gar você conhece e gosta muito?”,
mas que os lugares que já conhe- seguido de “Que lugar você sonha
cem têm tanta importância quanto conhecer?”.
aqueles que conheceram naquele As respostas foram as mais di-
momento: foi o seu território que versas e geraram desenhos que re-
proporcionou o prêmio recebido tratavam seus desejos e afetos no
cheio de alegria. que concerne ao território conhe-
Após a entrega do vídeo para cido e ao imaginário. O que mais
a avaliação da banca do concur- chamou atenção foi a capacidade
so, fizemos uma interseção entre a de abstração de muitas crianças
pesquisa e o prêmio. Era, portan- ao entrelaçar lugares distantes,
to, preciso apresentar à turma os que assim sabiam ser, como per-
trabalhos prontos, o quanto antes, tencentes a um mesmo território.
antes mesmo de passar pelas ban- Segundo Alves (2003, p. 67), “É im-
cas avaliadoras. Pois o tempo das portante lembrar que mostrar es-
crianças não é o nosso, elas têm paçostempos educativos usando
pressa! Assim, com seu olhar crí- imagens significa, em primeiro lu-
tico, mas carinhoso, curioso, mas gar, mostrar aquilo sobre o que um
com a perspectiva que precisamos artista quis chamar a atenção.” Al-
alcançar para encantar e envolver ves falava de fotografia, aqui falo
nas nossas práticas cotidianas, as de desenho, imagens... Neste senti-
crianças da turma 1.304 constituí- do, a escola aparecendo como um

118
lugar prazeroso em alguns dese- teorização. A ordem que aparecem
nhos, pois era disso que se tratava é a que os desenhos foram entre-
a proposta, afaga a alma. gues, escaneados e, posteriormen-
Os referidos desenhos seguem te, expostos.
abaixo, contudo não há uma hierar-
quia estética entre eles, tampouco

Figura: Desenhos da turma 1.304 referentes aos questionamentos: “Que


lugar você conhece e gosta muito?” e “Que lugar você sonha conhecer?”

119
120
Fonte: Acervo de atividades da turma 1.304

121
É possível observar pelos cia em dias que há relatos de opera-
desenhos lugares que fazem parte ção policial com tiroteio em lugares
do imaginário coletivo suburbano específicos e que não refletem no
carioca, como a Igreja da Penha e funcionamento da escola, mas na
o Parque Shanghai, mas há, para ausência de estudantes.
além dos consagrados pontos A partir desse ponto, refleti-
turísticos da cidade – Pão de Açúcar mos sobre demandas que são, mui-
e Cristo Redentor –, um detalhe que tas vezes, sonegadas à infância por
se repete em muitos desenhos: motivos diversos: proteção, dedu-
estrelas. Ao questionar sobre as ção de imaturidade, impaciência ou
estrelas, descobri que há um lugar desconforto para aprofundamento
que alguns chamam de Mirante diante de questionamentos emer-
da Estrela e outros nomeiam por gentes. As crianças falaram sobre a
Estrelinha, que não apareceu em circulação pelo território por conta
nenhum relato dos entrevistados da insegurança ou demandas eco-
na pesquisa. Fiquei muito curiosa nômicas – o que depende de dinhei-
em visitar esse espaço especial ro para fazer; acesso à água, luz,
para tantas crianças. coleta de lixo, arborização e inter-
Após essa atividade, planeja- net – itens básicos de sobrevivência
mos destrinchar as atividades pro- e interação consigo, com o outro
postas no Almanaque e começaría- e com o ambiente. Tudo isto traz à
mos pelos mapas. Assim, no tempo tona questões que reverberam em
de aula destinado à Matemática, na suas vidas e vão acompanhar seu
semana seguinte, conduzi a turma à crescimento na Vila Cruzeiro ou em
análise de gráficos e leitura de ta- qualquer lugar que vivam. Enten-
belas. Construímos no quadro um de-se, nesse sentido, que é preciso
gráfico com a localização de suas viabilizar tais discussões nos espa-
residências dentro do Complexo da ços educacionais, em consonância
Penha. Escrevi os nomes das regiões com as histórias que as suscitam e
em que moram no quadro, um ao com o conteúdo estabelecido pe-
lado do outro; distribuímos papel los documentos orientadores, para
colorido quadrado com fita adesiva que a educação ocupe lugar de ser,
para cada uma das crianças. Cada estar e construir conhecimento sig-
qual deveria colar seu quadrado nificativo para a vida cotidiana.
acima do nome do seu “lugar” de
residência. Assim, constatamos que Considerações finais
as crianças vêm de muitos lugares
diferentes para frequentar a mesma O presente artigo teve a inten-
escola, o que influencia na frequên- ção de apresentar mais que uma

122
experiência específica, mas uma da rede, que, por maior, aparente e
possibilidade de intervenção práti- reconhecido esforço em desuniver-
ca – Pedagogia Territorial – a partir salizar o conhecimento, valorizar e
das territorialidades constituídas desierarquizar saberes, não atende
onde se estabelece o processo edu- as expectativas e necessidades es-
cacional. O território é aqui enten- pecíficas dos territórios, sobretudo
dido como espaço usado e as ter- territórios periféricos e favelados.
ritorialidades como os encontros Assim, além de ter alcançado o
que acontecem neste território e conteúdo preconizado no currícu-
viabilizam vivências e experiências lo formal, sentimos que o cotidiano
múltiplas. Dessa forma: adentrou a sala de aula, as territo-
rialidades foram reconhecidas, dis-
território passa a ser não so- cutidas, criticadas e valorizadas.
mente o espaço constituído,
Não cabem conclusões finais,
cuja forma é definida pela plan-
pois o trabalho apresentado é par-
ta local; as territorialidades se
evidenciam constituintes dos te de uma reconfiguração da práxis
encontros entre seres, ambien- cotidiana. Nesse sentido, estamos
te e espaço, (trans)formando envolvidos – professora-pesquisa-
histórica e geograficamente as
dora e proposta – em uma ação que
relações que se atravessam (ou
se propõe continuativa no âmbito
não) nesses espaços-tempos; e
as multi/trans territorialidades do doutoramento, em articulação
se apresentam como os atra- com a comunidade escolar e os mo-
vessamentos dessas relações vimentos sociais presentes na Vila
entrecruzando pessoas e luga-
Cruzeiro e no Complexo da Penha,
res. (MATTOS, 2022, p. 108-109)
referência da Vizinhança apresen-
tada, para que à educação neste
Diante disso, torna-se possí-
território (e possivelmente outros)
vel considerar que a aplicabilidade
sejam incorporadas as memórias,
do Almanaque da Vizinhança: Vila
experiências e expectativas em re-
Cruzeiro influenciou as discussões
lação à Vila Cruzeiro como com-
sobre o nosso território, entoando
partes desta trajetória.
especificidades desconsideradas
em livros didáticos e no material

Referências

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de Janeiro. Disponível em: http://www.ppgeb.cap.uerj.br/wp-content/
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124
NOSSA CABEÇA
PENSA ONDE
OS PÉS PISAM:
SABERES
GEOGRÁFICOS E
MILITANTES
Diomario da Silva Junior1
Vinícius de Luna Chagas Costa2

Minha militância
alimenta
meu pensamento
derruba muralhas
feitas de pedregulho
e preconceito.
1 Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos
Contemporâneos e Demandas Populares - PPGEDUC/UFRRJ e Professor da Educação Bá-
sica, vinculado à Secretaria Municipal de Educação- RJ e da Rede Privada de ensino da
cidade do Rio de Janeiro.
2 Doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor Assis-
tente do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ).

125
ela mora em mim cidade.
mora em você Considerando que as pesqui-
e constrói pontes
sas em Geografia sobre os modos
para que o racismo
não exista mais. de vida da população negra, histo-
(Benício dos Santos, Militância, ricamente, não focalizam o ponto
2018) de vista deste grupo social, o artigo
traz essa temática com o intuito de
Entre o grupo de pesquisa e privilegiar experiências que contri-
uma prática descolonizadora: buam no olhar para as marcas es-
Nasce uma aula de campo paciais negras no território. Além
disso, entendemos o papel potente
O presente texto foi construí- da Geografia urbana em contem-
do por docentes com diferentes fi- plar a Lei 10.639/20033 de modo for-
liações institucionais que atuam no mativo; ampliando a abordagem do
campo das relações étnico-raciais espaço urbano, além daquelas tra-
em interface com a Geografia e dicionalmente pregnantes no sa-
tem como ponto em comum serem ber geográfico que encobertava a
membros de um grupo de pesqui- questão racial, pairando a sombra
sa e estudos denominado Grupo do preconceito e não pontuando a
de Pesquisa Movimentos Sociais e questão racial ao abordar as de-
Culturas – UERJ/UFRRJ (GPMC). O sigualdades espaciais. Disputar a
objetivo deste texto é relatar a ex- interpretação sobre esses saberes
periência vivida pelos integrantes urbanos impacta nossas formas de
deste grupo na Zona Portuária da ensinar.
cidade do Rio de Janeiro por meio Partimos da premissa elabo-
de intervenções geoculturais e his- rada por Pereira (2013, p.7) de que
tóricas que contemplaram docen- é necessário discutir de modo fun-
tes, licenciandos e militantes do damentado sobre o preconceito, o
movimento negro, dando foco às racismo e a discriminação racial,
espacialidades negras nos territó- invertendo o foco sobre o negro. Ao
rios onde tecem suas relações de abordarmos o espaço urbano, um
trabalho, moradia e lazer – comuni- campo saturado de tensões, trata-
dades de centros urbanos e com- mos de processos sociais, sua de-
preender em alguns casos, sua ex- mografia e como as políticas públi-
pulsão em direção às periferias da cas foram impactando o espaço de

3 A Lei federal 10.639/2003, que altera a LDBEN torna obrigatório o ensino da história e cultu-
ra afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares do ensino fundamen-
tal ao médio. Trata-se de uma conquista do movimento negro e tem como grande função o
reposicionamento da população negra, contribuindo para uma formação étnico racial que não
se limite ao período escravagista em suas narrativas e análises.

126
uso da cidade e promovendo ações tiva apontou para o entendimento
racistas. das desigualdades, protagonismos
Compreendemos que a po- negros e políticas sociais a partir
pulação negra é contribuinte em do recorte histórico de ocupação
todos os tempos dos aspectos da da cidade e da diáspora africana. A
vida social carioca e nas relações forma de narrar este movimento ao
complexas e conflituosas que man- ocupar as ruas da cidade mantém
tém com o estado constroem suas uma estreita relação com a cultu-
subjetividades nesses espaços, ra, alternando narrativas, poesias e
sendo este processo atravessa- músicas que valorizassem o papel
do por diversos fatores - culturais, político e seu braço cultural.
raciais, econômicos, geopolíticos, Reafirmamos que no mundo
históricos, de gênero. Como nos ocidental a população negra foi
aponta Moura (1995, p.83), João da conformada a partir do discurso
Baiana, um dos talentos que apare- racialista, que conferiu uma hierar-
cem naquele momento, fala dessas quização de corpos e saberes, es-
tradições festeiras e musicais dos tabelecendo um lugar de silencia-
baianos que seriam uma das fontes mento e de submissão, instituído
primordiais dessa “cultura popular por meio mecanismos de poder e
carioca” que se montaria depois a controle do Estado sobre as deci-
partir do impulso e dos interesses sões cotidianas de seus moradores.
da indústria cultural, se aproprian- O discurso científico estabele-
do do que era antes desvalorizado cido pela modernidade sobre a hu-
e mesmo perseguido. manidade se apresentou numa pre-
A vivência optativa no território tensa de se tornar e ser percebido
da Pequena África pelos membros como universal, tomando como re-
do GPMC, ocorreu durante o inver- ferência homens burgueses, bran-
no de 2022 por meio de uma prática cos, europeus e urbanos. Dessa for-
autofinanciada por seus integran- ma, se impõe violentamente sobre
tes. Desde sua instituição, o grupo outras populações do planeta por
conta com uma contribuição men- meio da colonialidade.
sal realizada por seus membros em A produção de saber da Geo-
condição de fazê-la, ou seja, não grafia, especificamente, emana um
possui uma natureza compulsória, conhecimento universalista euro-
e tem sido direcionada para ações cêntrico, majoritariamente alemão
em prol da coletividade como ati- e francês. Consequentemente, os
vidades de campo, organização de estudos sobre os grandes centros
eventos formativos e publicações. urbanos produzem/reproduzem o
Essa prática autofinanciada e cole- olhar hegemônico nas Ciências So-

127
ciais em relação a uma desvaloriza- Caminhar pela Zona Portuária
ção das vidas negras presentes na da Cidade do Rio de Janeiro, onde
cidade. temos localizada a também cha-
Por isso, é preciso afiar a arma mada Pequena África, recebe nas
da teoria. De um lado, depu-
publicações oficiais o território em
rar a ideia ampla e potente de
questão a denominação de Circui-
Consciência Negra os conteú-
dos conceituais e históricos, to da Herança Africana, represen-
que a alavancam de certo ro- tado geograficamente pela planta
mantismo, de certa tendência abaixo, não utilizamos a sequência
de idealizar e descontextualizar
proposta, pois entendemos ser o
aspectos do passado africano
trajeto da caminhada uma cons-
ou afro-brasileiro, como se es-
tes existissem em si mesmos, trução de interesse do grupo que
descontectados de processos a realiza, sendo importante apenas
de transformação mais amplos, visão dos espaços a serem percor-
de formação e desenvolvimen-
ridos. Portanto, iniciamos pela pra-
to de sociedades. (Pereira, 2013,
ça da Harmonia.
p.29).

Imagem 1 – Circuito da Pequena África e herança africana

Fonte: Companhia Carioca de


Parcerias e Investimentos4 (2023). cultural no cotidiano carioca resul-
tante da sua presença no território
A partir do referencial históri- percorrido. Esse trajeto realizado
co, não apenas abordamos o so- buscou a partir da ação, uma refle-
frimento dos escravizados, mas es- xão coletiva em relação a temática
curecemos o legado da produção étnico-racial na Cidade, através da
4 Disponível em: https://www.ccpar.rio/mapa-interativo/. Acesso em 27.jul.2023.

128
perspectiva negra, diaspórica e de- Da vacina obrigatória
colonial. O nosso caminhar contou Os magnatas da sabença
Estão teimando dessa vez
com cinco pontos a serem elenca-
Em meter o ferro a pulso
dos ao longo deste capítulo. Um Bem no braço do freguês
dos propósitos do trabalho tam- E os doutores da ciência
bém buscou uma aproximação afe- Vão deitando logo a mão
tiva e cultural ao intercalar música Sem saber se o sujeito
Quer levar o ferro ou não
e poesia ao trajeto delimitado.
Seja moça, ou seja, velho
Iniciamos a caminhada na Pra- Ou mulatinha que tem viço!
ça da Harmonia, hoje denominada Homem sério, tudo, tudo
Coronel Assunção, localizada nas Leva ferro que é servido...
proximidades da primeira favela do (Mário Pinheiro, Vacina obriga-
tória, 1904)
Brasil em área metropolitana do país,
a Providência. Um dos fatores para
A modernização citadina apre-
esta escolha, por ter sido o território
sentada na primeira metade do
da revolta da Vacina, liderada pelo
século XX, durante as reformas ur-
capoeirista e estivador Horácio José
banas ocorridas, resultou no pro-
da Silva, mais conhecido como o Pra-
cesso de gentrificação5·, condição
ta Preta, movimento de resistência ao
reverberada na nova onda de
processo eugênico desenvolvido a
intervenções urbanas provocada
partir da política de saúde do início
pelos eventos internacionais -
do século XX, dentro do conjunto que
Jornada Mundial da Juventude,
projetava a reforma urbana da cida-
Copa do Mundo e Olimpíadas - na
de nos moldes de Paris, a chamada
segunda década do século XXI.
Paris Tropical. A revolta é um exemplo
Onde o crescimento do valor do solo
de repertório negro de ação.
urbano aumentou o processo de
A batalha do Porto Artur acon-
remoção, fazendo com que bairros
teceu bairro da Saúde durante o
populares e majoritariamente
início do século XX, evento urbano
ocupados pela população negra
conhecido como Revolta da Vacina,
que constituem a Zona Portuária
e foi assim descrita na letra da can-
fossem foco de mudanças radicais
ção de Mário Pinheiro, da qual des-
por serem considerados áreas
tacamos um trecho:
problemáticas e “indesejáveis”.
Anda o povo acelerado Entendemos que a partir des-
Com horror à palmatória! se momento histórico, a Zona Por-
Por causa dessa lambança tuária foi definida como prioritária

5 Processo de valorização imobiliária de uma zona urbana, geralmente acompanhada da


deslocação dos residentes com menor poder econômico para outro local e da entrada de re-
sidentes com maior poder econômico.

129
para uma reformulação geral orga- Outro fixo importante aborda-
nizada por parcerias público-priva- do neste trecho inicial do percur-
das que liberou os espaços com a so foi o Batalhão da Polícia Militar
retirada da avenida Perimetral para na Praça da Harmonia, percebido
a especulação imobiliária. O Con- como a marca de um racismo estru-
sórcio Porto Novo, formado por em- turante do Estado ao promover o
presas ligadas à construção civil, foi controle da população negra. Ain-
responsável pelos ajustes necessá- da na praça, visitamos o Instituto
rios para realização das mudanças Inclusartiz, um casarão construído
pretendidas através da Companhia em meados de 1906, polo cultural
de Desenvolvimento Urbano da para desenvolvimento social que
Região do Porto do Rio de Janeiro realiza ações em prol da produção
(CDURP), na atualidade substituída cultural negra e periférica, educa-
pela Companhia Carioca de Parce- ção e sustentabilidade que abriu
rias e Investimentos (CCPar). suas portas a partir de 2021.

Imagem 2 – Início do trabalho de campo na Praça da Harmo-


nia, em frente ao Moinho Fluminense.

Fonte: Vinícius Costa e Diomario Silva, 2022.


Imagem 3 – Membros do GPMC reunidos no hall da Casa Inclusartiz

Fonte: Vinícius Costa e Diomario Silva, 2022.

130
No que tange ao contexto da nova intervenção artística ao to-
aula de campo, a presente propos- mar as palavras de Luedji Luna:
ta concebe este território da cida-
de como complexo e diverso, dis- Atravessei o mar, um sol
Da América do Sul me guia
tanciando-se da noção de urbano
Trago uma mala de mão
como um espaço exclusivamente Dentro uma oração, um adeus
por relações econômicas ou co-
merciais. A zona portuária do Rio Eu sou um corpo,
vem passando historicamente por um ser, um corpo só
Tem cor, tem corte
transformações sociais, ao mes-
E a história do meu lugar, ô
mo tempo em que comunidades Eu sou a minha pró-
negras tradicionais resistem e (re) pria embarcação
existem ao processo de expulsão Sou minha própria sorte...
pelo capital, cultivando formas es- (Luedji Luna, um corpo no mun-
do, 2017)
pecíficas de se relacionarem com o
lugar e com o território. A propos-
O segundo ponto, depois de
ta dessa atividade buscou revelar
muitos passos observados com o
através de uma abordagem afetiva,
grupo, revelou um espaço pouco
cultural e geográfica, um pequeno
conhecido para os presentes. O
fragmento da indiscutível presença
Museu da História e Cultura Afro-
negra na formação social e cultural
-Brasileira - MUHCAB. A escolha se
da cidade do Rio de Janeiro.
deu por se associar o relevante es-
tudo sobre o período escravagista
Para uma nova interpretação
até o pós-abolição com as inter-
da cidade e de seu papel
venções culturais contemporâneas
estruturante na Geografia
ligadas a cultura negra. O painel lo-
calizado na sala de início da cami-
Através do resgate das memó-
nhada dentro do museu represen-
rias espaciais confirmamos que no
ta as migrações dos negros África/
primeiro quartel do século XX hou-
Brasil, espacializando os locais de
ve enfrentamento e rebeldia con-
saídas e chegadas, em paralelo ao
tra as desigualdades. Homens e
movimento das placas tectônicas,
mulheres que não aceitavam “o lu-
onde a divergência é fruto da ação
gar do negro” que lhes impunham
brutal do homem. Outro aspecto
cerceamentos e limitações sociais,
importante a ser destacado é que
mesmo em condições econômicas
os mapas são construídos a par-
e políticas desfavoráveis. A invisibi-
tir de um ponto de observação do
lidade da população negra está à
mundo. Como instrumento de po-
violência colonial. Realizamos uma

131
der, foi apropriado por grupos do- a reexistência territorial africana e
minantes. No entanto, neste enun- afro-brasileira.
ciado realizamos um debate sobre
Imagem 4 – Painel no MUHCAB: Rotas de escravos da África
para o Brasil, localizado na Sala Conceição Evaristo

Fonte: Vinícius Costa e Diomario Silva, 2022.

Com a presença de uma mu- mortos no período da Ditadura Ci-


seóloga, os integrantes participa- vil Militar, em destaque Marighela,
ram de uma exposição ligada ao demonstrado que a historiografia
sagrado e às religiões de matrizes oficial constrói um padrão de nor-
africanas. Destacamos ainda a ins- malidade que aniquila a presença
talação sobre os anos de chumbo, negra.
por dar nomes a corpos negros

Imagem 5 – Fachada do MUHCAB

Fonte: Vinícius Costa e Diomario Silva, 2022.

O terceiro passo da caminha- abriga um importante cemitério ar-


da seguiu até o Instituto de Pesqui- queológico. Não houve possibilida-
sa e Memória Pretos Novos (IPN) que de de adentrar o espaço, mas apro-

132
veitamos a entrada do museu para nada Atlântica exigia um de tempo
recontar sua importância, um antigo de recuperação, como nos indica o
casarão que durante a reforma de historiador Carlos Eduardo Morei-
suas estruturas pela proprietária ra de Araújo:
foram encontrados ossos humanos,
e após escavações de arqueólogos, Antes de sua venda para áreas
rurais ou mesmo regiões ur-
foi constatada a existência de sepul-
banas, ficavam armazenados
turas coletivas de escravizados afri- em depósitos próximos aos
canos, o Cemitério dos Pretos Novos. portos, durante algumas se-
O painel apresentado ante- manas, para recuperar o peso
riormente, onde podemos ter a e a aparência. Esse tempo de
quarentena era fundamental
noção dos deslocamentos África-
para garantir aos traficantes e
-Brasil dos negros na condição de intermediários bons negócios.
escravizados, nos permite pensar (Araújo et al, 2006, p. 15)
não apenas no tempo cronológi-
co do tráfico Atlântico, mas refle- Diante do problema expos-
tir sobre as condições estruturais to e da solução citada anterior-
das embarcações que realizavam mente, o índice de mortalidade era
o transporte, os chamados tumbei- elevadíssimo. Próximo local de de-
ros. Nessa longa travessia estavam sembarque dos africanos e do de-
expostos a diversas doenças, con- pósito para a sua recuperação foi
dições insalubres e alimentação constituído o Cemitério dos Pretos
restrita, são fatores para a perda Novos, onde eram sepultados mi-
de peso e elevada taxa de mortali- lhares de africanos mortos pelas
dade dos escravizados. A condição condições trágicas e insalubres do
de saúde precária depois da jor- tráfico Atlântico.

Imagem 6 – Acesso ao Instituto dos Museu Memorial Pretos Novos.

Fonte: dos próprios autores, 2022.

133
Tomamos emprestadas as pa- do tráfico negreiro intercontinental e
lavras de mais dois artistas para forte pressão da Inglaterra, a região
refletirmos sobre a presença das passa a receber negros e negras es-
lutas dos negros na cultura e cons- cravizados de várias partes do país.
trução da cidade: Muitas interações, trocas culturais
e relações sociais foram realizadas
Kyrie eleison formando um caldeirão multicultural
Christe eleison,
que marcaram decisivamente as his-
Kyrie eleison.
tórias e sociabilidades da Cidade do
Alma não é branca,
luto não é negro, Rio de Janeiro.
negro não é folk. Contornamos a rua Sacadu-
Kyrie eleison. ra Cabral até chegar ao Cais do
(Milton Nascimento, Missa dos
Valongo, simbólico sítio arqueoló-
quilombos, 1982)
gico presente no roteiro. Também
Um grande mastro conhecido como o Cais da Impe-
Enterrado no barco...Velas ratriz, era uma estrutura portuária
Me levaram para além-mar. de desembarque dos escravizados
O vento sopra, o chicote estala.
a partir da imposição do vice-rei
Corpo preso, alma livre, pensa-
Marquês do Lavradio, substituindo
mentos azeviche.
A nebulosidade invade a minha o porto da Praia do Peixe, na atual
mente. região da Praça XV.
Gente amontoada no porão. No século XVIII, a maioria dos
Confuso, ouço a bizarra sinfo-
homens, mulheres e crianças escra-
nia das correntes.
vizadas foi levada para o centro co-
De repente, que sonho dantes-
co... mercial da cidade do Rio de Janeiro
A respiração ao meu lado su- próximo ao que hoje é a Praça XV.
miu. Em 1774, depois de inúmeros regis-
Mais um corpo jogado no mar.
tros de reclamações feito pela elite
O silêncio surgiu.
compradora, o ponto de desembar-
Engasgo, enxugo as lágrimas,
engulo ar. que do mercado de escravos foi al-
(Adegmar Candiero, Atlântico terado para a região do Valongo na
Urbano, 2018) Pequena África. Outro fato signifi-
cativo é que o termo Pequena África
Enfatizamos que a região por- foi cunhado pelo artista Heitor dos
tuária conhecida como Pequena Prazeres, demonstrando o papel dos
África foi o ponto de desembarque negros como sujeitos de sua própria
de cerca de 1 milhão de africanas e história e necessário para a preser-
africanos escravizados entre 1811 e vação da memória, mesmo em um
1831. A partir de 1850, com a proibição contexto social em que se impôs um

134
projeto de branqueamento. Africana, ao lado de outros espa-
No ano de 1843, a Prefeitura ços: Jardim suspenso do Valongo,
da cidade construiu uma estrutura Largo do Depósito, Cemitério dos
por cima do Cais de Valongo com o Pretos Novos, Centro Cultural José
firme objetivo de apagar da memó- Bonifácio e a Pedra do Sal.
ria o mercado de escravos e criar Sentamo-nos nas escadarias
um porto de entrada para a chega- de pedra para uma nova interven-
da da princesa italiana Tereza Cris- ção, iniciando os diálogos no quar-
tina de Bourbon, a esposa do Dom to ponto, considerado Patrimônio
Pedro II. O nome então é alterado, Histórico Mundial pela UNESCO
a rua do Valongo torna-se a rua da desde 1º de março de 2017, serviu
Imperatriz. Entre os anos de 1904 e como o mais importante traço físi-
1910, a Prefeitura fez um aterro por co da chegada de escravizados nas
cima do Cais do Valongo, escamo- Américas. Com isso, houve o reco-
teando parte da história do merca- nhecimento do seu valor universal
do escravo do Rio. O aterro e, ques- como memória da violência contra
tão fazia parte da Região Portuária a humanidade através da escravi-
onde hoje se localiza a Praça Mauá. dão, fortalecendo as responsabili-
Em 2012 a prefeitura da cidade dades históricas do estado brasi-
acatou as solicitações do Movimen- leiro. Lembramos ali que o Brasil foi
to Negro e transformou o monumen- o último país do extremo ocidente
to preservado e aberto a visitação a abolir a escravização e o Rio de
pública. Desse modo, passou a inte- Janeiro a cidade que mais recebeu
grar o Circuito Histórico e Arqueo- escravizados no mundo.
lógico da Celebração da Herança

Imagem 7- Ruínas do Cais do Valongo/Cais da Imperatriz

Fonte: Cais do Valongo6 (2023).

6 Disponível em: http://portal.iphan.gov.br. Acesso em 26 jul. 2023.

135
Abordamos as diversas cama- Se reproduziam graças a deter-
das históricas e a toponímia local, minadas condições e caracte-
rísticas das relações de poder,
pois o local Valongo designa um
bem como a mecanismos con-
vale longo, as estruturas portuá- cretos de adscrição e manuten-
rias constituídas no local foram ção do status quo no mercado
desativadas poucos anos depois de trabalho e na educação”.
de sua construção (1811-1831) e por (Pereira, 2013, p.17)

força das elites da cidade que não


Neste mesmo local tratamos
desejavam associar o porto ao trá-
de identificar um outro fixo mar-
fico humano, a região sofreu aterro,
cante localizado na rua Barão de
ou seja, apagamento de sua utiliza-
Tefé: o Armazém Docas Dom Pedro
ção no comércio Atlântico. A área
II, cuja construção foi idealizada
portuária com nova denominação,
pelo engenheiro André Rebouças
Cais da Imperatriz, volta a ter des-
na segunda metade do século XIX.
taque, com a chegada da impe-
Os irmãos Rebouças participaram
ratriz Teresa Cristina, noiva de D.
da luta abolicionista e foram res-
Pedro II. Assim, concordamos com
ponsáveis por vários projetos de
Pereira (2013) ao afirmar que:
edificação da estrutura urbana no
O preconceito e a discrimina- Rio de Janeiro e em Curitiba.
ção racial não podem ser vistos
como resquícios da escravidão.

Imagem 8 – Armazém das Docas D. Pedro II/


André e Antônio Rebouças

Fonte: Porto Maravilha1 (2023).7

7 Disponível em: portomaravilha.com.br. Acesso em 27 jul. 2023.

136
Seguimos até os Jardins Sus- como pano de fundo a concepção
pensos do Valongo, na rua Cameri- de uma política higienista. Vale des-
no. O Jardim se localiza na encos- tacar que as reformas urbanas no
ta oeste do Morro da Conceição. Rio de Janeiro serviram como fer-
Reforçamos com o grupo que re- ramenta da racialização. Impulsio-
formas no porto e o apagamento naram ainda o branqueamento da
da presença negra e pobre não era cultura urbana ao se conectar com
uma novidade para os moradores o eurocentrismo. Em O terreiro e a
da Zona Portuária. Marcamos este cidade: a forma social negro-brasi-
momento do percurso com mais leira, o sociólogo baiano Muniz So-
duas críticas a branquidade: dré atravessa diversos aspectos so-
bre o pensamento sobre a cidade,
Meu irmão, axé tomando a dimensão racial para
Olha o sol diferente
problematizar o processo de remo-
Levante a cabeça, meu irmão
ções e tentativas de branqueamen-
Axé
Hoje é manhã de car- to territorial urbano. Para apro-
naval (ao esplendor) fundar essa discussão, vale apena
As escolas vão des- apresentar algumas reflexões de
filar (bravosamente)
Muniz Sodré sobre a racialização
E aquela gente de cor com
da cidade em diferentes momentos
a imponência de um rei
Vai pisar na passarela (salve a históricos, pois a história ocorre
Portela) num território. Segundo ele:
(Dia de Graça, Candeia, 1978)
Na ocupação paulatina do Rio
de Janeiro, sobrou para os ne-
Já derramei mil lágrimas gros o pior, ou seja, a periferia
e pus espinhos em minha car- insalubre e os morros (Favela,
ne Santo Antônio, Providência e
agora regurgito pedras outros), onde eram péssimas as
condições de vida. Tal foi o no-
deixo escorrer o fel mos originário e também pro-
enquanto giram os ponteiros gressivo do território carioca.
dessa longa espera. De fato, depois das reformas
(Sentença – Lidiane Ferreira, urbanas no início do século XX
2018) e na expansão da cidade para
os subúrbios (Zona Norte), to-
Construído pelo então Prefeito caram ao negro as partes mais
inóspitas. (Sodré, 1988, p.42)
Pereira Passos em 1906, a ideia de
um Jardim romântico e pretensa-
Em outras palavras, para fa-
mente moderno era destinado ao
passeio da alta sociedade. Tinha zer uma crítica ao planejamento

137
urbano, o autor demarca o racismo com terraço, passeio, arborização,
como um padrão de dominação depósito de água para irrigação e
que permanece e se reconstrói com até mesmo uma cascata artificial.
o fim da escravidão ao abordar o Outro fato marcante foi a institui-
período das reformas urbanas. Re- ção de uma Casa da Guarda, que
tomando os jardins e seu padrão tinha entre outras atribuições con-
arquitetônico, foi concebido como trolar a ocupação do morro da
um local embelezado e elevado que Conceição e da Providência. Ape-
contribuísse com a vista privilegia- sar da proximidade com a região
da para o centro da cidade, que Central, entendemos que o morro
naquele momento abrigaria ave- representa uma periferia, produzi-
nidas largas e arejadas como as do e desenvolvido de outra manei-
grandes metrópoles da Europa e ra por seus moradores ao longo do
numa tentativa de apagamento ou século XX. É um espaço de adapta-
embranquecimento histórico, está- ção, onde também ocorre um forte
tuas com deuses gregos foram im- fluxo de policiamento e controle.
postas ao local. O espaço contou

Imagem 9 – Jardim Suspenso do Valongo

Fonte: Jornal O Globo8

Bem próximo a primeira favela gundo historiadores os africanos


do Brasil, a Providência, outro lo- escravizados trazidos para o Brasil
gradouro destacado na atividade eram mantidos em casas chama-
foi a rua do Valongo, via que seguia das de engorda, para aumentar
para o Largo do Depósito, onde se- seus preços no mercado, até que
8 Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/cais-do-valongo-os-ne-
gros-21573246. Acesso em 28 out. 2023.

138
eles estivessem prontos para serem importante destacar que a Pedra
vendidos no mercado de escravos do Sal é o mais antigo bairro ne-
do Valongo. Fixos como casas e gro continuamente habitado no
pequenas lojas ao longo dessa via Rio e graças aos seus moradores,
também foram usadas para ven- preserva tradições de influência
der escravos e abrigá-los até que africana, sobretudo pela presença
a venda ocorresse. Arqueólogos dos terreiros, uma forma de organi-
descobriram uma riqueza de arte- zação social negra. A comunidade
fatos de uso doméstico em torno se mantém como fonte da cultura
da área, que falam da vida diária afro-brasileira, sendo reconhecida
ao longo da rua. Nos posicionamos como como o território de nasci-
em frente ao muro para observar mento do samba e do carnaval. O
com maior amplitude a praça dos lugar recebeu seu nome devido a
estivadores e da antiga rua do Va- pedra enorme que se encontra no
longo. No período da escravização local, usada para secar e vender o
também havia o Largo do Depósi- sal na época em que as águas da
to, onde os negros escravizados baía ainda alcançavam as suas
que sobreviviam a árdua viagem margens. Ao aludir as histórias não
eram comercializados. Já no perío- contadas pela historiografia oficial,
do pós abolição abrigou o primeiro contamos com duas narrativas re-
sindicato do Brasil e está ligado ao silientes assim destacadas:
bairro de Madureira por conta do
trabalho e do samba. Ressaltamos Negro é uma cor de respeito
Negro é inspiração
que diversos integrantes de escolas
Negro é silêncio, é luto
tradicionais como Império Serrano Negro é a solidão
e Portela desenvolviam atividades Negro que já foi escravo
profissionais nos portos da cidade. Negro é a voz da verdade
Finalizamos o trajeto na Pedra Negro é destino, é amor
Negro também é saudade
do Sal, um marco da africanida-
Um sorriso negro
de brasileira e espaço cultural de (Ivone Lara, Um Sorriso Negro,
convivência. Tombado pelo Institu- 1981)
to Estadual do Patrimônio Cultural
(INEPAC) em dezembro de 2005 e Já não aceito que escreveram
considerado um dos três quilom- minha história
bos urbanos na cidade do Rio de Com mentiras e preconceitos,
Que borrem
Janeiro. Atualmente o local é um
Minha imagem com as alvas
ponto de encontro altamente po- tintas
pular por abrigar rodas de sam- Da Marginalização.
ba, atraindo cariocas e turistas. É Minha história te incomoda?

139
Por que essa indignação mes- lientes
clada com indiferença? Elas estão postas, ávidas por
É porque já não me curvo às reescrever
novas chibatas, As verdades de meu Povo.
Às cruéis palavras que me Minha voz me eleva...
cortam? (Serafina Machado, EUscrevo,
Tenho minhas mãos fortes, resi- 2018)

Imagem 10 – Placa informativa Pedra do Sal

Imagem 10 – Placa informativa Pedra do Sal

Fonte: Vinícius Costa e Diomario Silva, 2022

Imagem 11 – Casario localizado nas proximidades da Pedra do Sal,


declarado como quilombo urbano pela fundação palmares.

Fonte: Vinícius Costa e Diomario Silva, 2022.

Consideramos a cidade do Rio escravos já representavam 45,6%


de Janeiro como uma cidade negra, da população dessas freguesias
condição apresentada pelos dados urbanas, condição referenciada e
demográficos desde o século XIX, fortalecida ao longo do século XX
como nos aponta Moreira (2006) os e XXI, segundo o Instituto Brasilei-

140
ro de Geografia e Estatística – IBGE, Rio porque lá no Rio a gente vai
na atualidade 56 % da população ganhar dinheiro, lá vai ser um
lugar muito bom”. (...)Era barato
carioca é composta por negros e
a passagem, minha filha, quan-
pardos. do não tinha, as irmãs inteira-
A Pedra do Sal, encravada no vam pra ajudar a passagem.
bairro da Saúde, recebe este nome Eu queria achar um livro que
por conta da antiga atividade de- a enchente extraviou, aquele li-
vro sim é que tinha as baianas
senvolvida no período colonial, o
todas, subindo em cima do na-
transporte e distribuição de sal nos vio, tocando prato. Tinha nas
trapiches de seu entorno. Recebeu minhas coisas, mas a enchente
ainda outros nomes, como Pedra da extraviou (...) Dois, três dias de
Prainha, em consonância com a re- viagem, a comida a gente fazia
antes de vir, depois era ali mes-
gião que marcou a forte presença
mo, tomava camaradagem com
africana e afrodescendente. A im- aqueles homens de lá de den-
portância da referida região para a tro do navio, sabe como é baia-
população negra é explicitada pelo na, mais uma graça, mais outra.
depoimento de Carmem Teixeira da (apud MOURA, 1995, p.43)

Conceição, arquivo Corisco Filmes,


apud MOURA, 1995. Para o autor, a O aquilombamento formado
capital do Império era miragem e, no território composto pela Pedra
de repente, uma realidade: do Sal e Largo da Prainha é fruto
dessa profusão de negros, como
Tinha na Pedra do Sal, lá na apontado anteriormente, que vi-
Saúde, ali que era uma casa viam aglomerados nas casas cole-
de baianos e africanos, quan- tivas denominadas zungus. Neste
do chegavam da África ou da
espaço a cultura afro-carioca de-
Bahia. Da casa deles se via o
navio, aí já tinha o sinal de que senvolve-se, em função da fusão
vinha chegando de lá (...) Era do candomblé, choro, samba e ca-
uma bandeira branca, sinal poeira. Hoje esse espaço é uma das
de Oxalá, avisando que vinha referências culturais e de lazer da
chegando gente. A casa era no
cidade negra carioca.
morro, era de um africano, ela
chamada Tia Dadá e ele Tio Acreditamos que a atividade
Ossum, eles davam agasalhos, de campo, como essa caminhada
davam tudo até a pessoa se militante e pedagógica, é fértil na
aprumar. (...)Tinha primeira clas- construção do saber geográfico e
se, era gente graúda, a baiana-
contribuinte para a educação das
da veio de qualquer maneira, a
gente veio com a nossa roupa relações étnico-raciais. Entende-
de pobre, e cada um juntou sua mos ter sido a nossa condução
trouxa: “vamos embora para o úteis na relação de aproximação

141
entre dos docentes e discentes, produção das desigualdades.
como nos afirma Santos:
Considerações finais
A Geografia foi, assim, um im-
portante instrumento de co-
Nas grandes cidades brasilei-
nhecimento e disciplinarização
ras as desigualdades raciais, so-
de experiências de espaço de
indivíduos e grupos que, no ciais e espaciais são ignoradas, e
contexto de afirmação do ca- o racismo estruturante para esta
pitalismo, passaram a se rela- falta de condições. Como profes-
cionar a partir de mecanismos
sores, entendemos que a formação
de classificação social voltados
antirracista deve trazer aos sujei-
para a hierarquização. A estabi-
lização e controle de experiên- tos a possibilidade de se encontrar
cias de espaço de indivíduos no tema abordado, de se sentir in-
e grupos teve papel crucial na cluído pelas discussões e que haja
territorialização do capital,
possibilidade de transformação da
instaurando a modernidade e
realidade. Neste sentido, nosso re-
criando um mundo no qual a
Geografia contribuiu de forma corte espacial foi a área Central da
decisiva, inclusive nas formas cidade do Rio de Janeiro, núcleo da
de classificação social funda- região metropolitana.
mentais para tais processos. O
O caminhar pelo espaço urba-
papel da Geografia na afirma-
no citadino trata-se de uma outra
ção de um mundo dividido em
territórios de Estados Nacio- forma de construir o conhecimento
nais, duplamente produzindo que possam responder a proble-
isto como leitura a ser naturali- mas vividos pela sociedade atual-
zada e inculcando sentimentos
mente, onde o histórico de raciali-
de identidade nacional a partir
zação na construção da cidade se
de uma comunidade de laços
com o território. (Santos, 2018, faz presente. A luta por justiça so-
p.32). cial e existencial passa pela supe-
ração do muro da colonialidade e
Falamos sobre conteúdos sig- do eurocentrismo.
nificativos, pois a realidade histó- Assim, nossa proposta foi apro-
rico-cultural da maior parte dos ximar os participantes, muitos deles
estudantes cariocas não é contem- trabalhadores da educação, de uma
plada pelo ensino formal escolar e aula de campo, fortalecendo seus
em consequência disso a cultura e conhecimentos para uma discussão
os conhecimentos locais são des- mais ampla de aspectos históricos
valorizados ou invisibilizados no e geográficos a partir de uma pers-
cotidiano escolar. Reforçamos que pectiva que valorize a ancestralida-
esta ausência é fulcral para a re- de, evitando assim, apagamentos.

142
Aqui voltamos à questão não Nesta ação, procuramos apre-
apenas do acesso à cidade, acredi- sentar as marcas da presença ne-
tamos que se faz importante como gra na região, bem como a sua
olhar a cidade pelas suas rugosi- construção identitária a partir da
dades como nos fala Milton San- contribuição dos africanos e seus
tos, lendo e interpretando os seus descendentes nas carioquices que
marcos históricos e culturais. A for- fazem da diversidade a beleza des-
ma manifesta do racismo interna- sa cidade.
cionalizou o Rio como uma cidade No desfecho da atividade per-
de brancos e mestiços, valorizando cebemos pelas falas dos partici-
apenas a zona Sul. pantes, como a abordagem afetiva
Durante a caminhada realiza- pelas poesias e musical contribuí-
da com os membros do GPMC, pro- ram para aumentar a necessidade
blematizamos a história da cidade, de interrogar os espaços urbanos
justamente por ser constantemen- dentro de uma perspectiva negra,
te alvo de disputa de narrativas. diaspórica e decolonial.

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144
FORA DA LEI:
O RACISMO COMO
PANO DE FUNDO
DA VIOLÊNCIA NAS
ESCOLAS
Carla Cristina Goulart Farias1
Escola é ... o lugar que se faz amigos.
Não se trata só de prédios, salas, qua-
dros
Programas, horários, conceitos...
Escola é sobretudo, gente
Gente que trabalha, que estuda
Que alegra, se conhece, se estima.
O Diretor é gente,
O coordenador é gente,
O professor é gente,
O aluno é gente,
Cada funcionário é gente. (...)
(Poema de Paulo Freire)
1Mestra pelo Programa de Pós-graduação em Ensino em Educação Básica do CAp-UERJ.

145
O período de 2019 a 2022 foi to cortante. Alunos, funcionários e
marcado por acontecimentos im- professores foram as vítimas desses
pactantes e de alcance global: atos chamados por alguns veículos
Pandemia do Coronavírus, crise de mídia de terroristas. Ataques
econômica, guerras e uma explo- que chocam a sociedade e acabam
são de notícias e casos envolven- por propagar uma cultura de medo.
do diversas formas de violência. Diante de tantos casos é preciso
Esses acontecimentos interferem entender os sinais que precedem e
e modificam diretamente o funcio- motivam jovens, em sua totalidade,
namento e rotina das instituições a cometerem tamanha brutalidade.
sociais, e com a escola não acon- Um relatório divulgado em dezem-
tece diferente. Fazendo recortes bro de 2022, durante o período de
geográficos, trazemos neste artigo transição de governos, aponta que
uma reflexão acerca do aumento a propagação de ideias extremis-
de casos, no período destacado, de tas através de jogos e canais da
violência nas escolas públicas ou internet tem convencido e aliciado
privadas nos estados brasileiros. É esses jovens a conversas, planos
certo que apontar os motivos que e práticas violentas.2 Junto a esta
corroboram para que haja casos de propagação de discursos de ódio
violência nos espaços escolares se- que circulam nas redes, ideais po-
ria uma pretensão que não caberia líticos ( vinculados a grupos e par-
em um único texto, pois existem si- tidos da extrema direita) durante o
tuações externas ou para além dos período supracitado exaltavam a
muros, envolvendo o poder público supremacia branca, a lei e a ordem
e as famílias. Entretanto, é possível, conquistadas pelo poder das ar-
diante dos acontecimentos men- mas, muitas vezes em nome da au-
cionados e dos ideais propagados, todefesa, trazendo uma lógica que
correlacionar alguns aspectos que tornaram insignificantes as vidas
interferem diretamente, como o ra- dos membros das chamadas mino-
cismo. rias. Esses grupos protagonizados
No Brasil, entre o ano de 2022 e principalmente por adolescentes
o primeiro semestre de 2023 foram do gênero masculino, promoveram
noticiados cinco casos de ataques, a reprodução de atitudes racistas,
com vítimas fatais, em escolas onde misóginas, homofóbicas e de práti-
um aluno ou ex-aluno adentrou cas discursivas que propagaram a
armado na instituição e disparou cultura do armamento, facilitando
golpes com arma de fogo ou obje- assim as articulações de atenta-
2 https://campanha.org.br/acervo/relatorio-ao-governo-de-transicao-o-ultraconservadorismo-
-e-extremismo-de-direita-entre-adolescentes-e-jovens-no-brasil-ataques-as-instituicoes-de-
-ensino-e-alternativas-para-a-acao-governamental/

146
dos. tados; nos jogos e postagens que
Não há como não associar os indicam a ação do “mártir” (o exe-
fatos e ações anteriormente cita- cutor), a propagação do terror, a
dos com o conceito de Necropolíti- possibilidade de sobrevivência ou
ca cunhado pelo cientista e filóso- sacrifício; afinal, segundo Mbembe,
fo camaronês Achille Mbembe. Em “o sobrevivente é aquele que, tendo
seu trabalho intitulado “Necropo- percorrido o caminho da morte, sa-
lítica: biopoder, soberania, estado bendo o caminho dos extermínios e
de exceção, política da morte” ele permanecendo entre os que caíram,
ressalta diversas reflexões quanto ainda está vivo”(MBEMBE,2018,p.62).
a influência do poder político so- Partindo para as estatísticas, é
bre a vida e a morte (como e quem possível observar no quadro abai-
deve morrer). Destaco que, ao es- xo, os casos de violência nas esco-
crever sobre o tópico “do gesto e do las registrados a partir do ano de
mental”, o autor apresenta caracte- 2011 até abril de 2023.
rísticas facilmente encontradas no
processo de investigação dos aten-

Fonte:https://www.poder360.com.br/brasil/brasil-teve-5-ataques-com-mortes-em-escolas-em-

-2022-e-2023/

Se fora dos muros da escola as instituições de poder têm repensa-


do através de levantamentos, projetos e ações efetivas para combater

147
a violência, é preciso que no inte- cola.
rior dos espaços escolares sejam Enquanto escrevia sobre es-
colocadas em práticas ações não ses tais casos de violência, outro
apenas de repressão e contenção, caso fatal acontecia na Escola Es-
mas de prevenção de violências se- tadual de Sapopemba (Zona Leste
jam elas nos níveis macro, como os de São Paulo), seguindo os mesmos
atentados fatais ou nas violências modelos, inspirações e motivações
cotidianas, onde as vítimas são si- dos demais. Um adolescente de 16
lenciadas por golpes “sutis”; casos anos entrou na escola munido de
esses que nem sempre recebem a arma de fogo, atirou nas costas de
atenção dos veículos de informa- uma jovem estudante que morreu
ção e mídia, que nem sempre são no local (nas escadas da escola) e
noticiados, mas que acontecem feriu outros estudantes. Logo nas
diariamente em escolas do Brasil. investigações iniciais, foram en-
Nos levantamentos acerca da contradas mensagens trocadas em
violência nas escolas, nem sempre grupos nazifascistas que atuam na
os motivos que levam o agressor/ internet e que incentivavam o cri-
criminoso a concluir um plano de me. Sobre essas motivações, Welter
ataque são explícitos, antes, atra- et al. (2022)
vés de investigações concluem-se
que estes estavam associados a É um crime que pode ser
classificado como organizado
algum grupo virtual de ideias ex-
e planejado e é comum que as
tremistas; mas um caso recente motivações do homicida estejam
ocorrido na cidade de São Paulo, relacionadas ao sentimento
em que um adolescente de 13 anos de alienação social, raiva e
atacou fatalmente uma professora vingança, embora distinções
relativas à motivação também
e deixou quatro pessoas feridas 3,
se mostrem cabíveis (Simpson,
indicou pistas para as motivações. 2020). Não se revela incomum,
As investigações apontam que dias o fato de ex-alunos ou alunos
antes, a professora (vítima) havia de instituições escolares,
separado uma briga na qual o alu- tornarem essas instituições
o local para atentados em
no adolescente agressor proferiu
massa, muitas vezes, motivados
xingamentos e falas racistas a um por sentimentos de exclusão e
colega de classe. O caso gerou re- vingança, ligados diretamente
flexões acerca do que leva um ado- à violência do bullying. (Welter
lescente a executar de forma fria et al.,2022, p.2/12)

um plano como este dentro da es-


Embora o sentimento de vin-
3 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/03/27/aluno-conta-que-agressor-xingou-co-
lega-de-macaco-e-professora-morta-tentou-apartar-briga-ele-fugiu-para-nao-ser-morto.ghtml

148
gança sobressaia nesses casos, ensino. A escola, enquanto insti-
outros aspectos devem ser analisa- tuição, tem papel fundamental no
dos e observados, aspectos esses processo educativo, principalmen-
relacionados aos discursos nazi- te quando este papel é desempe-
fascistas4 que convencem e arras- nhado junto a comunidade edu-
tam jovens pelo mundo, tendo como cativa. Neste ponto, destacamos
veículo acessível, rápido e direto os a importância do educar para a
grupos de conversas, jogos e pla- diversidade, do educar para as re-
taformas clandestinas nas redes; lações étnico-raciais promovendo
como apontam as investigações assim, a ruptura com conceitos e
do caso em questão que destacou valores supremacistas.
que o crime antes de ser executado
foi planejado e compartilhado em Fora da Lei: o racismo e a
grupos fechados da internet. escola
Voltemos aos princípios bá-
sicos expressos na Constituição A escola não é um lugar à par-
brasileira sobre a educação. Esta te da sociedade, não se constitui
constitui, como indica no artigo 205 em um mundo invertido ou para-
“direito de todos e dever do Esta- lelo, é uma instituição social que
do, e da família”, tendo como aliada reproduz e produz conhecimentos
a sociedade. Em situações de vio- e valores. Fruto de uma sociedade
lência nas escolas, não é incomum estruturalmente racista (ALMEIDA,
o jogo de empurra a respeito das 2019), muitos espaços escolares são
responsabilidades: o que a família ainda hoje disseminadores do ra-
deveria ter feito, o estado deveria cismo. Há instituições que perma-
ter proposto, como a sociedade de- necem “fora da Lei”, o que significa
veria agir e por aí vai. Contudo, é que após 20 anos de promulgação
fundamental que haja articulação da Lei 10639/2003, que traz em suas
nesse processo educacional de diretrizes a obrigatoriedade da
complementariedade e continui- História e cultura africana e afro-
dade. Este é o ponto central deste brasileira nos currículos, propõe
trabalho. Ao Estado cabe o ma- a formação, valorização dos po-
peamento e dissolução de grupos vos africanos e afrodescendentes
extremistas, planejamentos estra- e, principalmente, o combate ao
tégicos de desarmamento de cida- racismo; contudo, muitas escolas
dãos civis e promoção de diálogos continuam alheias, por ignorância,
frequentes com as instituições de no sentido não pejorativo do termo,
4 O termo contemporâneo refere-se às ideias expressas nos governos ditatoriais que existi-
ram durante o século XX, como o nazismo alemão e o fascismo italiano, tal como supremacia
branca e masculina.

149
ou por conveniência. Escolas que
negam o racismo estão longe de Então, essa coisa de pensar
que a diferença é simplesmen-
erradicar os discursos e atitudes
te social, é claro que o social
preconceituosas que circulam por acompanha, mas e a geografia
entre suas salas e paredes, como do corpo? Isso aqui também
afirma BARROS (2005), vai junto com o social, não tem
como separar as duas coisas.
A discussão sobre racismo no Fui com o tempo respondendo
contexto escolar leva-nos à re- à questão, por meio da vivên-
flexão sobre um fenômeno a ele cia, com o cotidiano e as coisas
diretamente ligado: a violên- que aprendi na universidade,
cia. Uma maneira de entender depoimentos de pessoas da
como a violência que se mani- população negra, e entendi que
festa na escola é afetada pelo a democracia racial é um mito.
racismo é observar as diversas Existe realmente um racismo
formas que ela assume. (pág.5) no Brasil, diferenciado daquele
praticado na África do Sul du-
rante o regime do apartheid,
Se por um lado a violência bru- diferente também do racismo
tal atinge o físico, choca e mobiliza, praticado nos EUA, principal-
por outro, as violências cotidianas mente no Sul. Porque nosso ra-
muitas vezes permanecem silencia- cismo é, utilizando uma palavra
bem conhecida, sutil. Ele é vela-
das, ignoradas, taxadas como “brin-
do. Pelo fato de ser sutil e vela-
cadeiras inocentes” e as vítimas se- do isso não quer dizer que faça
guem com seus traumas por vezes menos vítimas do que aquele
incubados. Munanga (2010) destaca que é aberto. Faz vítimas de
que o racismo praticado no Brasil qualquer maneira. (MUNANGA,
2010).
trata-se de “um crime perfeito”. Isto
porque enquanto se propaga ain-
Nos espaços escolares, crian-
da a falácia da democracia racial,
ças e jovens negros são os princi-
mito sustentado por aqueles que
pais atingidos. Desde a educação
defendem a meritocracia sem con-
infantil, quando ainda pequenos,
siderar o quão desigual se cons-
recebem apelidos que ridiculari-
tituiu a sociedade brasileira, essa
zam sua identidade, recebem me-
desigualdade que tem cor e pele
nos toques de afeto, menos cuida-
preta e indígena persiste, resiste e
do e atenção como denunciou em
ganha corpo, sobretudo, em forma
sua tese, CAVALEIRO (2012), em que
de violências cotidianas. Sobre este
o título já nos alerta “Do silêncio do
contexto o professor e antropólogo
lar ao silêncio escolar: racismo, pre-
destaca em entrevista à Fundação
conceito e discriminação na educa-
Perseu Abramo
ção infantil”. Nos segmentos educa-

150
cionais posteriores, sem conhecer Essas escolas não se fecham em
a História por uma visão afrocen- si mesmas, antes, oportunizam
trada (que considera aspectos, e viabilizam que debates tão
personagens e acontecimentos ne- importantes e relevantes cheguem
gados pela historiografia eurocên- à comunidade escolar como um
trica), convencidos pelos discursos todo. BARROS (2005) destaca que,
do colonizador estampados nos
livros didáticos adotados pelas es- Se a escola é uma das institui-
ções que contribuem para a
colas “Fora da lei”, participando de
manutenção da violência atra-
atividades pontuais e por vezes re- vés do racismo nela existen-
forçadoras de estereótipos (no 13 te, pode também ser um lugar
de maio e 20 de novembro), os es- onde este racismo pode ser
tudantes seguem reproduzindo as combatido e superado. Para
que isto aconteça, é preciso que
mais diversas formas de violências
seja criado o ambiente propício
verbais e físicas. Na escola “fora da ao diálogo. Deste modo, as in-
Lei” a violência se estabelece e aca- satisfações de alunos e profes-
ba por institucionalizada, ela acon- sores poderão ser reveladas e,
tece não apenas entre estudantes, consequentemente, criadas no-
vas possibilidades de interven-
mas entre funcionários, educado-
ção... (p.8)
res, gestores e familiares , como em
um ciclo. Assim, o racismo que de-
Compreender a escola como
veria ser um tema trabalhado no
espaço democrático de diálogos
cotidiano, só recebe atenção dian-
é entender que nele há diferenças
te de casos que fogem aos muros
que precisam ser reconhecidas e
da escola, que são então, filmados
valorizadas; é pensar em práticas
e divulgados nas redes sociais.
que não se prendam ao discurso
É possível perceber, em
ilusório de que “somos todos iguais”
contrapartida, através de dados
e que acabam por reforçar a dis-
estatísticos sobre o assunto, a
criminação e o preconceito racial;
redução da violência nas escolas
que são repetidas durante a vida
e o aumento no rendimento
escolar de crianças e jovens, tendo
escolar, mediante a práticas que
como resultado o que destaca GO-
contemplam o letramento racial e
MES (2001):
o educar para as relações étnico- As práticas educativas que se
raciais, em espaços educativos em pretendem iguais para todos
que a Lei 10639/2003 é cumprida acabam sendo as mais dis-
não apenas como obrigatoriedade, criminatórias. Essa afirmação
pode parecer paradoxal, mas
mas com o entendimento da
dependendo do discurso e da
necessidade de reparação histórica.

151
prática desenvolvida, pode-se devidamente nomeadas. Especi-
incorrer no erro da homoge- ficamente sobre a questão do ra-
neização em detrimento do re-
cismo verbalizado, Pinheiro (2023,
conhecimento das “diferenças”.
(p.86) p.71) alerta que “xingar alguém de
‘macaco’, ‘betume’, de ‘asfalto’ não
Valorizar a diversidade é um é bullying, é injúria racial. A autora
dos objetivos gerais que norteiam faz referência à Lei 14532/2023 san-
a Educação, mas para tanto, é ne- cionada em janeiro de 2023 pelo
cessário conhecer e reconhecer presidente Luiz Inácio Lula da Sil-
sobre a “tal diversidade”, sobre as va, que tipifica a injúria racial como
diferenças, individualidades e mul- crime de racismo.
tiplicidades. É urgente que esse O não reconhecimento do pre-
processo aconteça logo na primei- conceito e as suas variadas mani-
ra infância para que os padrões festações, acaba por perpetuar o
de discriminação sejam rompidos. silêncio e a invisibilidade. É preciso
Outro ponto importante, é que esta romper com essas questões, discu-
missão seja coletiva, ela deve envol- tindo e orientando os educadores e
ver todos aqueles que são respon- futuros educadores quanto ao po-
sáveis pelo processo educacional. sicionamento diante das questões
Superar o racismo na escola, raciais, instigando-os a repensar
parafraseando o título do livro or- as práticas para que se encontrem
ganizado por MUNANGA parece intencionais e envolvidos com uma
ser um objetivo dificílimo, princi- educação que se propões antirra-
palmente se esbarrar em um dos cista; como apontam as Orienta-
entraves comum nas escolas: A ne- ções e Ações para a Educação das
gação. Há os educadores, gesto- Relações Étnico- Raciais, 2010:
res e familiares, principalmente da
[...] Precisamos questionar as
Educação Infantil, que alegam não
escolhas pautadas em padrões
perceber ações de discriminação dominantes que reforçam os
entre os alunos, ou entre alunos e preconceitos e os estereótipos.
professores; seja nas “brincadei- Nessa perspectiva, a dimensão
ras” ou formas diretas de insultos. do cuidar e educar deve ser
ampliada e embasados em va-
Quando acontece uma situação
lores éticos, nos quais atitudes
envolvendo xingamentos e apelidos racistas e preconceituosas não
direcionados para pessoas pretas, podem ser admitidas. Nessa di-
tentam contornar o ocorrido ou reção, a observação atenciosa
tratam como casos de bullying. Ig- de suas próprias práticas e ati-
tudes podem permitir às edu-
norar as violências acontece quan-
cadoras rever suas posturas
do também quando estas não são

152
e readequá-las em dimensões é pano de fundo que aponta para
não-racistas. É importante evi- as desigualdades. Combater o ra-
tar as preferências quando os
cismo e as faces violentas que a
critérios que permeiam tais
preferências se pautam por ele se atribuem: racismo estrutural,
posições preconceituosas [...] institucional, recreativo, epistemo-
(p.39) lógico, ambiental e outras formas
de opressão é dever também da
Pensar em práticas pedagó- escola, é obrigação. Esquivar-se
gicas voltadas para o ensino das deste dever é extremamente pre-
relações raciais vai além de meto- judicial aos sujeitos envolvidos no
dologias pontuais. Tem a ver, ain- processo educativo.
da, com a questão da autoestima É necessário que nos
e da autoafirmação, principalmen- ambientes de convívio de
te de crianças negras e pardas. crianças e adolescentes, sejam
Percebendo a pluralidade predo- oportunizadas práticas de
minante na sociedade brasileira, é diálogos onde as questões
incompreensível que a educação e relacionadas à identidade, corpo
as práticas educacionais estejam e cultura possam estar presentes
voltadas para a padronização, seja e ao alcance de questionamentos
ela qual for. O desafio é notório e o e trocas. Essa importância se dá
trabalho também. Entretanto, o ca- para que crianças e jovens negros
lar-se diante das questões até aqui não sejam submetidas a imagens
expostas, não deve ser mais uma de inferiorização e subalternidade
alternativa. relacionadas a sua identidade.
Para tanto, é imprescindível que no
Conclusão: O pano de fundo processo de construção identitária
sejam atribuídos valores positivos
Longe de concluir ou esgotar em relação a si próprio e ao grupo
o assunto sobre violência nas esco- étnico pertencente, valorizando
las, entendendo que há demandas ainda sua cultura (Farias, 2022).
complexas e de esferas distintas Alguns passos são impres-
que precisam ser esmiuçadas e co- cindíveis para que haja uma troca
locadas em prática de forma cole- deste pano de fundo, passos já ex-
tiva e complementar, apontamos a plicitados anteriormente, como a
educação para as relações étnico- formação de professores, constru-
-raciais como um grande percurso ção identitária ou letramento racial
dessa trilha. O racismo expresso não apenas de alunos, mas da co-
no sentimento de superioridade e munidade escolar como um todo,
pautado nas ideias supremacistas revisão de práticas e materiais di-

153
dáticos e a construção de currícu- educação formal ou aos espaços
lo que contemple a diversidade. Um escolares, até porque seus contex-
provérbio africano, que chega até tos são anteriores a esses. Mas a
aqui (neste tempo) através da orali- frase expressa no provérbio pode
dade e da tradição de uma cultura nos direcionar às estratégias que
ancestral que contempla a coletivi- devem ser apropriadas para com-
dade, diz que “é preciso uma aldeia bater tanto o racismo, quanto os
inteira para educar uma criança”. casos de violência nas escolas: En-
A frase pode não ser reduzida à volver uma aldeia inteira.

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article/view/38921. Acesso em: 3 nov. 2023.

156
PENSO, MAS
NÃO EXISTO:
POR UMA
EDUCAÇÃO
DECOLONIAL
PARA A
EXISTÊNCIA
Fabiana Helena da Silva1 é a possibilidade do pensamento”
Luiz Fernandes de Oliveira2 (p. 22). Esta afirmação tem um sig-
nificado profundo para os povos
Em um de seus textos, Cathe- subalternizados pelo colonialismo
rine Walsh (2005), cita a frase de um e pela colonialidade. É uma citação
pensador árabe-islâmico Abdelke- que faz jus as ideias de uma rede de
bir Khatibi: “Descolonizar-se, esta intelectuais latino-americanos, de-

1 Licenciada em Educação do Campo pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro -


UFRRJ. Pós-graduada em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo
Instituto Federal do Rio de Janeiro - IFRJ. Mestranda em Antropologia pela UFRRJ. Membra
Grupo de Pesquisas em Linguagens, Poder, Contemporaneidade - GELPOC. IFBA.
2 Doutor em Educação pela PUC-Rio. Professor do Licenciatura em Educação do Campo da
UFRRJ. Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturas
(GPMC).

157
nominada Modernidade-Coloniali- titutiva da modernidade, e esta
dade (MC) que fazem referência às não pode ser entendida sem levar
possibilidades de um pensamento em conta os nexos com a heran-
crítico a partir dos subalternizados ça colonial e as diferenças étnicas
pela modernidade capitalista e a que o poder moderno/colonial pro-
tentativa de construção de um pro- duziu. Essa perspectiva teórica nos
jeto teórico voltado para o repen- aproxima de práticas educativas,
samento crítico e transdisciplinar, denominadas de Pedagogias Deco-
caracterizando-se também como loniais (ou Educação Decolonial).
força política para se contrapor às Pedagogias Decoloniais fazem
tendências acadêmicas eurocêntri- referência a uma luta política e
ca de construção do conhecimento epistêmica contra a colonialidade.
histórico e social. Colonialidade significa um padrão
Se mergulharmos nesta litera- de poder que surge como resultado
tura, podemos perceber algumas do colonialismo moderno europeu,
afinidades com a questão da luta porém, não se limita “a uma relação
povos quilombolas por uma educa- formal de poder entre os povos ou
ção digna e de resistência a invisi- nações, refere-se à forma como o
bilidade e as opressões, pois esta trabalho, o conhecimento, a auto-
luta também questiona os padrões ridade e as relações intersubjeti-
eurocêntricos de interpretação da vas se articulam entre si através do
realidade brasileira, já que uma das mercado capitalista mundial e da
principais proposições epistemoló- ideia de raça” (MALDONADO-TOR-
gicas do grupo MC é o questiona- RES, 2007, p.131).
mento da geopolítica do conheci- A colonialidade sobrevive até
mento, entendida como a estratégia hoje “nos manuais de aprendiza-
modular da modernidade. Esta es- gem, nos critérios para os traba-
tratégia, de um lado, afirmou suas lhos acadêmicos, na cultura, no
teorias, seus conhecimentos e seus senso comum, na autoimagem dos
paradigmas como verdades uni- povos, nas aspirações dos sujeitos,
versais e, de outro, invisibilizou e e em tantos outros aspectos de
silenciou os sujeitos que produzem nossa experiência moderna” (idem).
“outros” conhecimentos e Histórias. Como face da mesma moeda,
Para a perspectiva teórica decolo- a Modernidade foi uma invenção
nial foi este o processo que consti- das classes dominantes europeias
tuiu a modernidade, cujas raízes se a partir do contato com a Améri-
encontram na colonialidade. ca. A Modernidade não foi fruto
Implícita nesta ideia está o de uma autoemancipação interna
fato de que a colonialidade é cons- europeia que saiu de uma imaturi-

158
dade por um esforço autóctone da como os únicos com capacidade
razão que proporcionou à humani- de acesso à universalidade e à ver-
dade um pretenso novo desenvol- dade.
vimento humano. Foi necessário, Apesar da colonialidade, des-
segundo Dussel (2009), afirmar uma de quando os europeus chegaram
razão universal a partir da Europa ao Brasil, dominando povos nativos
e estabelecer uma conquista epis- e escravizando povos africanos, es-
têmica na qual o etnocentrismo ses nunca se resignaram ou se dei-
europeu representou o único que xaram dominar completamente. Em
pôde pretender uma identificação meio às ruínas da colonização e
com a “universalidade-mundialida- da colonialidade, povos indígenas,
de”. quilombolas e negros pensaram a
A modernidade foi inventada partir dessas ruínas, das experiên-
a partir de uma violência colonial. cias e das margens criadas pela
Em outros termos, conquistada a colonialidade. Reconstruíram ou-
América, as classes dominantes tras subjetividades, outros conhe-
europeias inventaram que somen- cimentos e se constituíram como
te sua razão era universal, negan- diferenças coloniais.
do a razão do outro não europeu, Foi uma reconstrução que re-
daí, constituindo a Modernidade/ presentou também dimensões pe-
Colonialidade. Se a colonialidade dagógicas e de pensamento, pois
operou a inferioridade de grupos foi e é vivida a partir de experiên-
humanos não europeus do ponto cias próprias em meio ao terror da
de vista da produção da divisão ra- colonialidade, foi pensada a partir
cial do trabalho, do salário, da pro- de visões de mundo não eurocên-
dução cultural e dos conhecimen- tricas e foi capaz de produzir novos
tos, foi necessário operar também conhecimentos e outra compreen-
a negação de faculdades cogniti- são simbólica do mundo, que, por
vas nos sujeitos racializados. Neste sua vez, questiona a hegemonia da
sentido, o racismo epistêmico não Modernidade/Colonialidade (WAL-
admite nenhuma outra epistemolo- SH, 2005).
gia como espaço de produção de Portanto, quando emerge esse
pensamento crítico, científico ou novo conceito de pedagogias de-
pedagógico. Isto é, a operação teó- coloniais, as afinidades entre este
rica que, por meio da tradição de e as histórias e legados de povos
pensamento e pensadores ociden- africanos escravizados são muito
tais, privilegiou a afirmação de es- fortes. Pois as pedagogias decolo-
tes serem os únicos legítimos para niais, enquanto projeto político (a
a produção de conhecimentos e opção decolonial), faz expressar o

159
colonialismo que construiu a de- nizados, como referências funda-
sumanização dirigida aos subal- mentais.
ternizados pela modernidade eu- No diálogo com a colonialida-
ropeia e pensa a partir da ideia de de e a opção decolonial em edu-
uma prática política diferente, pois cação, fomos construindo durante
se trata de visibilizar, enfrentar e quase dois anos um diálogo com
transformar as estruturas e insti- jovens quilombolas da Ilha da Ma-
tuições que têm como horizonte de rambaia no município de Manga-
suas práticas e relações sociais a ratiba no Estado do Rio de Janeiro.
lógica epistêmica ocidental, a ra- Além disso, acreditamos na edu-
cialização do mundo e a manuten- cação como prática libertadora e
ção da colonialidade. promotora da abertura de novos
Segundo Walsh (2007), a cons- horizontes, em oposição a ideia de
trução teórica da noção de peda- vida regrada à obediência impos-
gogias decoloniais, ou seja, uma ta através dos diversos dispositi-
práxis baseada numa insurgência vos de violência conhecidos, mui-
educativa propositiva - portanto to comum aos espaços periféricos
não somente denunciativa - onde e subalternizados. A transgressão
o termo insurgir representa a cria- através da educação pensada por
ção e a construção de novas con- bell hooks (2013), remete os princí-
dições sociais, políticas e culturais pios pensados por Paulo Freire, de
e de pensamento, se projeta muito uma educação que considere a in-
além dos processos de ensino e de dividualidade dos sujeitos, em um
transmissão de saber, é uma pe- sistema de acolhimento, uma peda-
dagogia concebida como política gogia horizontal, na crença de que
cultural, envolvendo não apenas os o conhecimento se constrói junto e
espaços educativos formais, mas tem intrínseca relação com o ter-
também as organizações dos movi- ritório, com a construção pessoal
mentos sociais. do indivíduo e seus conhecimen-
A mesma autora afirma que tos adquiridos em suas práticas de
esta perspectiva ainda está em vida.
processo de construção nos siste- Contudo, para que se atinja
mas educativos, mas cita as formu- este objetivo, conforme orienta bell
lações e práticas educacionais de hooks, “para educar para a liberda-
Paulo Freire (1987), além das teoriza- de, portanto, temos que desafiar e
ções de Frantz Fanon (1983 e 2005) mudar o modo como todos pensam
sobre a consciência do oprimido sobre os processos pedagógicos”
e a necessidade de construção da (p.193). E é dentro desta perspecti-
humanização dos povos subalter- va, em diálogo com jovens quilom-

160
bolas, que a educação do campo as praias entre as famílias. Essas
se propõe a realizar um enfrenta- pessoas passaram a viver livres na
mento às práticas tradicionais de ilha durante muitos anos, desenvol-
ensino, propondo uma pedagogia vendo suas práticas culturais e de
da alternância, capaz de conferir sobrevivência, no entanto, sem a
a estes sujeitos do campo, das al- documentação de suas terras. Re-
deias e dos quilombos, uma pro- gistros históricos dão conta de que
posta de educação diferenciada, no transcorrer das primeiras déca-
complementar aos seus saberes, das, a ilha foi vendida pela esposa
fazendo sentido e transformando do comendador, dando início a um
suas vidas e de suas comunidades. processo que culmina com o con-
Mas para que tudo isso seja fisco destas terras pela União.
possível, é necessário que esses O Quilombo da Marambaia é
sujeitos conheçam as formas de formado por aproximadamente 200
acesso ao ensino superior vigen- famílias4 e cerca de 420 moradores,
tes no país, para além da tradicio- descendentes de africanos escravi-
nal prova do ENEM, as provas de zados no século XIX. O sociólogo
acesso diferenciado como a que Clovis Moura (1981) define quilombo
dá acesso à Licenciatura em Edu- como um agrupamento de pessoas
cação do Campo da Universidade cujo sentido está relacionado ao
Federal Rural do Rio de Janeiro, conceito de resistência, formas de
comprometida com a formação de organização sócio-políticas que,
professores capazes de transfor- para além do contexto da escravi-
mar a realidade de seus territórios, dão, visam abranger a questões ét-
com consciência crítica e emanci- nicas e de territorialização. O povo
pação dos sujeitos. negro nunca foi passivo à domina-
ção escrava, eles sempre atuaram
Um breve histórico da na mobilização de estratégias de
comunidade da Marambaia resistência, demostrando alta ca-
pacidade organizacional em bus-
A ilha de Marambaia, situa- ca de sua liberdade (MOURA, 1981).
da no município de Mangaratiba, Esses agrupamentos visam a ma-
Rio de Janeiro, abriga as histórias nutenção dos padrões culturais
de negros escravizados nas fazen- de vida e a sobrevivência (MOURA,
das de café do Comendador Bre- 1988).
ves. Com o processo abolicionista Neste quilombo, as famílias vi-
de 1888, o comendador distribui3 veram sob a condição de libertas
3 “Doação de antigo dono foi só verbal”. Reportagem de Athos Moura no Jornal O Dia
14/12/2014
4 Fonte ARQUIMAR. Associação Remanescentes Quilombo da Marambaia. Junho 2023.

161
e “donas” de suas terras, até a ilha festações culturais dos quilombo-
ser vendida pela esposa do Co- las, conforme relata a historiadora
mendador a uma empresa no ano Daniela Paiva Yabeta, na ocasião
de 1891, cerca de dois anos depois a em que fala sobre o jongo, em sua
empresa entra em falência e a ilha pesquisa de doutoramento defen-
é transferida para a União (YABETA, dida em 20145: “a chegada da Ma-
2014). Em 1940, é inaugurada na ilha rinha na década de 1970 e os no-
a Escola Técnica de Pesca, nela, fi- vos conflitos que se instauraram
lhos de pescadores de todos os na ilha devido a várias práticas de
estados do Brasil tiveram acesso a proibições, acabaram deixando de
técnicas relacionadas à pesca, ma- vez o jongo apenas na lembrança”
rinharia, sinalizações, navegações, (YABETA, 2014). Sobre as manifesta-
além de serviços sociais e de saú- ções religiosas, dados colhidos na
de, acessíveis os quilombolas. pesquisa desta autora, na ocasião
Em 1971, quando a Marinha do em que entrevista o Seu Naná - um
Brasil se instala na ilha, assume o rezador da Marambaia - dão conta
controle ao acesso. Os serviços so- de que como eles viviam antes da
ciais básicos, inseridos através da presença da Marinha: “tinha jongo,
escola de pesca são extintos e aos tinha dança, tinha uma porção de
poucos a relação entre a Marinha coisas”. A autora descreve como
e os quilombolas fica insustentável. aconteciam as ladainhas:
A Marinha implementa um severo
disciplinamento através do CADIM Ele explicou que as ladainhas
funcionavam da seguinte for-
(Centro de Adestramento da Ilha
ma. Cada família era devota de
da Marambaia) o qual tinha como um santo. Quando chegava a
objetivo inserir restrições aos cos- data de festejá-lo, a família de-
tumes e direitos, disciplina e “ades- vota oferecia rezas em sua ho-
tramento”. A partir de então, a ilha menagem. Essas rezas eram a
ladainha. O melhor rezador da
passa a sofrer intervenções em sua
Marambaia, o homem que sa-
vida cotidiana, com expulsões, epi- bia todas as rezas, era o Olím-
sódios de humilhação à comunida- pio. Conhecido como tio Límpio.
de quilombola, e esta adquire o sta- O pai de Seu Naná era devoto
tus de invasora de terras da União de Nossa Senhora da Concei-
ção, festejada em 08 de dezem-
e passa a coabitar às margens.
bro. Ele contou que a oração e
Essas restrições aos costu- o louvor eram acompanhados
mes e direitos, afetaram as mani- de festa. (PAIVA, 2014. p. 236).

5 Tese de Daniela Paiva Yabeta de Moraes - 2014. Título: MARAMBAIA História, Memória e
Direito na luta pela titulação de um território quilombola no Rio de Janeiro (c.1850 – tempo
presente).

162
Essas afirmativas feitas por O projeto de leitura de editais
Seu Naná, são importantes para da Marambaia e seus frutos
entendermos o contexto da ilha e
o quanto este pacote de restrições O projeto de leitura de editais
aos costumes e direitos, através da da LEC foi idealizado por uma es-
implementação da disciplina, da tudante egressa no início de 2022
obediência e da docilização dos e trata-se de um trabalho volun-
corpos, fizeram parte de um projeto tário baseado em incursões à co-
de epistemicídio. Com a assinatura munidade previamente agendadas
do Termo de Ajustamento de Con- junto à diretoria da Associação da
duta - TAC, as regras de convivên- Comunidade dos Remanescentes
cia entre a comunidade e o Estado, de Quilombo da Ilha da Maram-
personificado através da Marinha baia - ARQIMAR. Os ajustes para os
do Brasil, são regradas por este do- encontros foram realizados atra-
cumento. Durante pouco mais de vés de grupo de conversas online,
trinta anos, esta comunidade viveu assim como outros assuntos e dú-
impedida de ter o seu curso natural vidas, foram previamente sanadas
de vida, e por mais que exista um através deste canal, considerando
esforço na intenção de um proces- a dificuldade em acessar o territó-
so de resgate, as perdas são imen- rio, pois além de se tratar de uma
suráveis. ilha, o acesso é controlado pela
Os jovens que nasceram na Marinha, como já foi mencionado
década de 1970, desconhecem as anteriormente.
práticas de campo de seus pais, Nossa primeira empreitada foi
tampouco seus filhos, constituindo no vestibular de 2022/1 na qual reali-
gerações impedidas de exercerem zamos 14 inscrições. Nesta ocasião,
a plenitude da dinâmica de vida de ainda vivíamos um processo de
seu povo. Hoje não há rezadores na adaptação pós-pandemia e todo
Marambaia, nem os festejos em tor- processo seletivo foi realizado on-
no da devoção aos santos, citados line, inclusive o envio do memorial.
por Seu Naná. A prática de plantio Realizamos três encontros, um para
nos quintais é modestamente prati- inscrição e explicação sobre o cur-
cada pelos mais velhos, dentro das so, no qual também realizamos uma
permissões do TAC. O poder do co- oficina de redação, mediado por
lonialismo sobre a vida dessas pes- dona Lídia, quilombola da Maram-
soas ainda é muito forte. baia e professora aposentada. O
encontro durou o dia inteiro, realiza-
mos um almoço coletivo e pudemos
compartilhar muitas experiências.

163
Um segundo encontro foi reali- conta de todos, impotentes diante
zado na Marambaia já com o edital de não poder resolver a questão
aberto, na ocasião um grande mu- imposta pela falta de energia, de
tirão se formou em torno de uma mobilidade de autonomia sobre
mesa para escanear documentos nossos corpos. Silenciamos nossas
pessoais. Em outra, os candidatos tristezas e servimos de amparo um
passaram a limpo suas redações e ao outro.
individualmente auxiliados no en- No grupo de WhatsApp, um es-
vio do seu texto, junto com docu- tado de consternação tomou conta
mentos digitalizados. Tivemos al- de todos, foi a noite mais difícil des-
gumas dificuldades com o sinal de de o anúncio da classificação final,
internet, mais ao fim, conseguimos e muitos saíram do grupo, tanto os
realizar todas as inscrições. Acom- que tentaram, quanto aqueles que
panhamos o andamento do con- estavam ali para o próximo edital.
curso ansiosos, mas na ocasião, Foi necessária uma nova aborda-
não contávamos com um apoio de gem individual para convencer de
voluntários. Aos poucos, os resul- que teríamos que seguir adiante e
tados foram nos entusiasmando, fazer novas tentativas. Aos poucos,
vibrávamos a cada fase vencida, fomos conseguindo trabalhar na
porém não tivemos muito êxito. Dos segurança desses jovens, o grupo
14 inscritos, efetivamente apenas de conversa ficou mais informal,
dois jovens foram classificados. No brincamos de guerra de figurinhas
dia da matrícula, realizamos a tra- que retratasse nossa situação, que
vessia para a ilha da Marambaia, foi a forma lúdica para conseguir-
os candidatos aprovados estavam mos nos manter firmes até que
eufóricos, alguns companheiros abrisse um novo edital.
não-aprovados apareceram para Diante do exposto, percebe-
dar um apoio e comemorar a vitó- mos a necessidade de elevar as
ria dos aprovados. Quando liga- notas desses candidatos, através
mos o computador a energia aca- de oficinas de redação. Reconhece-
bou e não foi possível matricular mos como educadores que aqueles
os únicos aprovados classificados ilhéus, não receberam uma forma-
naquele edital. ção de ensino médio equiparada
Passamos por um sentimen- aos demais concorrentes. A condi-
to de luto, a matrícula encerraria ção de estudo que receberam foi
antes que pudéssemos chegar ao precarizada, inicialmente com uma
continente de volta, pois a embar- extensa caminhada na ilha, pois
cação possível seria no final da tar- não existe escola de ensino médio,
de. Um estado de tristeza tomou seguida de uma longa travessia ao

164
continente de barco, isso quando além dos professores especialistas
as condições climáticas permitiam. que atuam voluntariamente neste
E foi neste sentimento que toma- processo, contamos ainda com a
mos a decisão de mobilizar a turma participação dos egressos do pro-
via WhatsApp diariamente, através jeto, hoje graduandos.
de mensagens explicativas e lúdi- O trabalho com esta última
cas. Além disso, com a chegada de leva de jovens quilombolas que
professores especialistas em comu- aguardam o resultado da seleção
nidades tradicionais e doutores em - no momento em que finalizamos
educação, recebemos apoio peda- este artigo – foi, como dizem os mi-
gógico, adequado à temporalidade litantes os movimentos populares,
e as especificidades destes candi- um trabalho de “formiguinha”. Dia-
datos. riamente entrávamos em contato,
E foi assim que diariamen- esclarecendo dúvidas, lembrando
te trabalhamos para manter a es- de cada passo, cada detalhe, com-
perança, até que outro vestibular partilhando dificuldades de inter-
abrisse em dezembro de 2022. Na pretação de textos e elucidando
ocasião deste novo vestibular, ti- possíveis soluções para as dificul-
vemos 14 inscritos, 12 aprovados, e dades.
desses, 10 permanecem estudando. Nestes momentos, refletíamos
A escrita do memorial foi presen- juntos como a lógica opressora e
cial, em Angra dos Reis, fato que excludente do colonialismo opera-
gerou inicialmente um sentimento va no cotidiano de jovens, a quem
de muita dificuldade com trans- sempre foi negado uma formação
porte, levando alguns a pensaram de qualidade, crítica e autônoma.
em desistir, porém conseguimos o E nesta reflexão, a coordenação
transporte através de parceiros. do curso de Licenciatura em Edu-
Hoje esses estudantes caminham cação do Campo delibera, junto a
para o segundo período do curso Pró-Reitoria de Graduação da UFR-
e o projeto ganhou força através RJ, de realizar a prova de seleção da
desta experiência que deu certo. LEC perto do território quilombola,
Atualmente, aguardamos a facilitando os deslocamentos dian-
classificação final dos 18 candi- te das dificuldades impostas pelos
datos inscritos, sendo 15 da Co- poderes públicos, especialmente
munidade da Marambaia e 3 do as dificuldades impostas pela Ma-
Quilombo Santa Justina, uma co- rinha do Brasil.
munidade irmã da Marambaia no
município de Mangaratiba, situa-
do no continente. Neste momento,

165
Possuir a própria história ocidental e tenta estabelecer, por
meio de uma postura intercultural,
Nasci na Marambaia, nesta projetos de existência que promo-
casa que estão querendo me vam trocas culturais autênticas e
tomar, meus pais nasceram
não baseado em dominação políti-
aqui, meus filhos nasceram
aqui, minha casa é herança ca, epistêmica e identitária.
de meus antepassados escra- A recente geração de jovens
vizados. Meus passos vêm de quilombolas da Marambaia viven-
longe...Tenho posse de minha cia situações de restrições de direi-
História.
tos: não oferecimento de uma edu-
Dona Zenilda
cação de qualidade, deslocamento
para o continente controlado pela
Mignolo (2003) afirma que pre-
Marinha do Brasil e tantas outras
cisamos fazer emergir a diferença
restrições culturais. Entretanto, as
colonial, ou seja, pensar a partir
brechas são criadas e novas parce-
das ruínas, das margens criadas
rias desabrocham, especialmente
pela colonialidade do poder, das
com sujeitos de outras comunida-
experiências e histórias subalterni-
des, redes de apoio e entidades de
zadas para se contrapor a raciona-
lutas pelos direitos quilombolas. E
lidade de violência da modernida-
nessas redes é que surgem a possi-
de-colonialidade. Não se trata aqui
bilidade de acesso à universidade.
de resgate de autenticidades iden-
Mas, essa não é uma história nova.
titárias, mas sim de uma operação
Segundo Gomes (2005), os qui-
conceitual a partir de um lócus es-
lombos nunca permaneceram iso-
pecífico de enunciação, marcada
lados, mas sempre reuniam várias
pelas várias opressões.
comunidades interdependentes
Por outro lado, Enrique Dus-
que se articulavam e construíam
sel (1993) escreve que a categoria
grande capacidade de interação
“razão do outro” significa a com-
com vários setores da sociedade, e
preensão de que os conhecimentos
isso era o que mais incomodava as
construídos pelos povos e grupos
autoridades. Ainda que nem sem-
subalternizados pela colonização
pre ligados a insurreições, os qui-
não são despojados de uma estru-
lombolas ampliavam suas comuni-
tura racional, mas composto por
dades e chegaram a se associar as
um complexo simbólico funcional
revoltas populares.
de relacionamento com o real e que
Rafael Sanzio A. dos Anjos
institui a vida coletiva. Esta “razão
(2005), em seus estudos sobre os
do outro” se contrapõe historica-
descendentes de quilombos, afir-
mente a razão colonial/racional/
ma que estas sociedades foram

166
postas à margem do sistema e que perspectiva, qual seja: explicitar
a sua falta de visibilidade territo- que os “senhores” da história, não
rial e social é agravada pelo abso- podem mais exigir a “senhoria” da
luto esquecimento promovido pela existência quilombola.
história oficial e que “a história e o Estar na universidade, signi-
sistema oficial brasileiro têm se re- ficará também nos reportar a an-
ferido ao povo negro escravizado e cestralidade, ou seja, àqueles que
aos quilombos sempre no passado, nos trouxeram ao lugar que ocupa-
como se esses não fizessem mais mos hoje, que nos trouxe até aqui. E
parte da vida do país”. (p.173) lembrar de onde viemos, é fazer um
Entretanto, o passado não é pacto de honra com aqueles que
morto, os jovens atuais demons- criaram as ferramentas necessá-
tram, mesmo que com seus limites, rias para que hoje possamos lutar.
que a luta por direito a educação Estas histórias ancestrais vão
em meio à invisibilidade, faz jus a estar presentes nas salas de aula,
histórica luta de seus ancestrais. nos seminários, nos textos acadê-
O acesso à universidade está sig- micos, nas rodas de conversas, nos
nificando a posse de suas próprias projetos de pesquisas e extensão,
histórias, a possibilidade de reto- enfim, a razão do outro pode se co-
mar o percurso de lutas e conquis- locar no mesmo patamar da razão
tas de seus ancestrais. Ingressar na eurocêntrica, possibilitando um
universidade é também a possibili- pensamento outro. Pescar, cantar,
dade de reversão de um processo orar, dançar e preservar o ambiente
de desumanização construída pelo não serão consideradas mais como
colonialismo e pela colonialidade coisas do passado ou folclore sem
atual. significados, mas um pensamento,
Os jovens quilombolas e seus uma razão de ser e estar no mundo
ancestrais da Ilha de Marambaia e que vem de longe. Pois, em con-
não têm suas histórias contadas traposição à lógica moderno/colo-
nas escolas e nas universidades, nial, os jovens quilombolas ingres-
mas eles possuem suas próprias santes na UFRRJ, poderão afirmar:
histórias. E essas histórias são con- “Sou, onde penso!”
tadas nos quintais, nas roças, nas
pescarias e, com o acesso à univer-
sidade, serão contadas na relação
intercultural com outros sujeitos do
campo e da cidade. E nessa rela-
ção pode vir à tona a possibilidade
de decolonizar e aflorar uma outra

167
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168
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Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, 2014.

169
PEDAGOGIA DA
ALTERNÂNCIA
NAS
LICENCIATURAS
INTERCULTURAIS
INDÍGENAS
Kátia Antunes Zephiro1

Ainda pequeno na aldeia


Na vivência com os irmãos,
Plantar macaxeira, tirar lenha,
Comer peixe com pirão,
É ensino, é educação.
(…)
Hoje estamos nas Universidades,
Levamos junto nosso lugar,
A construção do conhecimento é uma teia,
Que liga a tua cidade com minha aldeia
1 Doutora em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contem-
porâneos e Demandas Populares (PPGEduc), da UFRRJ. Professora de História da rede
municipal de Angra dos Reis.

170
(Poema Educação Indígena, de mentação das Licenciaturas Inter-
Márcia Wayna Kambeba) culturais. Apresentaremos a origem
e o conceito de Pedagogia da Alter-
O presente artigo é parte da nância, os motivos para essa esco-
tese de doutoramento da autora, lha e os dilemas e desafios para que
no qual se pesquisou a trajetória a Pedagogia da Alternância não se
da implementação do Prolind (Pro- restringisse aos tempos de apren-
grama de apoio à formação supe- dizagem, mas como uma metodo-
rior de professores indígenas), ini- logia de ensino. Por fim, destaca-
ciado em 2005, com o objetivo de remos alguns pontos importantes
implementar e expandir cursos de para utilização dessa pedagogia
Licenciatura Interculturais Indíge- nas Licenciaturas Interculturais.
nas pelo país.
A pesquisa utilizou uma me- Pedagogia da Alternância
todologia qualitativa, com o arca-
bouço teórico e metodológico do A Pedagogia da Alternância
Grupo Modernidade/Colonialida- foi uma proposta educativa surgi-
de/Decolonialidade, que contribuiu da na França, elaborada por dois
com um olhar Outro nas análises e agricultores e um padre buscando
conceituações da pesquisa. soluções para um adolescente, que
O referido grupo é composto se recusava ir à escola com o argu-
por diversos autores de campos do mento de que ela não fazia sentido
conhecimento e localidades diver- e não atendia suas necessidades
sas, contudo, circunscritas na Amé- continuar estudando. Tentando re-
rica Latina. Um grupo que produz solver essa situação, e dos demais
do lócus epistemológico e histórico dos jovens que não conseguiam
do Sul para o Sul, fazendo emergir frequentar a escola por conta de
novos conceitos e perspectivas de necessitarem conciliar o trabalho
análise que tem como eixo central rural com os estudos, surgem as
a relação Modernidade Europeia Maison Familiales Rurales, em 1935.
e o processo colonizador sobre os Os pioneiros:
territórios africanos, ameríndios e
asiáticos e as consequências desse imaginaram um tipo de escola
processo até os dias de hoje. que seus filhos não rejeitariam,
Dentre as análises realizadas porque ela iria atender às suas
reais necessidades. Assim eles
na tese, neste artigo, gostaríamos
pensaram em criar uma es-
de destacar a questão da utiliza- trutura de formação que seria
ção da Pedagogia da Alternância da responsabilidade dos pais
como base pedagógica na imple- e das forças sociais locais, em

171
que os conhecimentos a serem to tempo, foram estabelecidos dois
adquiridos seriam encontrados tempos para o processo formativo
na escola, mas também na vida
de aprendizagem: o Tempo Escola
cotidiana, na família, na comu-
nidade, na vila. (SOUZA, 2008. e Tempo Comunidade.
In: http://31reuniao.anped.org. O Tempo Escola acontece nos
br› GT14-4500--Int) espaços escolares onde os estu-
dantes permanecem em regime de
Essa pedagogia foi pensada internato por um tempo determi-
com intuito de possibilitar um inter- nado. Nesse período, desenvolve-
câmbio e uma reflexão entre os sa- -se o saber teórico, elaborando e
beres teóricos e práticos, ou seja, a refletindo sobre a teoria.
práxis. Estabelecendo uma relação O Tempo Comunidade é o que
entre os conhecimentos prévios ad- acontece fora da escola, nos terri-
quiridos no ambiente social, políti- tórios. Esse é o momento quando
co, cultural, econômico e de traba- os estudantes retornam às suas
lho, no qual se vive com os novos comunidades. Nelas, eles verificam,
saberes apresentados pela escola, aplicam e refletem sobre os conhe-
relacionando esses conhecimentos cimentos aprendidos de forma teó-
a partir da teoria e aplicação prá- rica na prática cotidiana dessas
tica, e depois refletindo sobre esse comunidades. Projetos são elabo-
processo continuamente. rados no tempo escola para serem
A centralidade no processo aplicados no tempo comunidade e
educativo está no estudante, não depois apresentados, refletidos e
se pressupõe uma educação ban- revistos no tempo escola. Isso possi-
cária (FREIRE, 1987), na qual o edu- bilita que os conhecimentos desen-
cador transfere, deposita conhe- volvidos sejam fruto de uma reflexão
cimentos no educando, mas uma e tenham um valor comunitário.
relação dialógica em que a troca Durante o Tempo Comunidade,
de experiências e a articulação en- os estudantes são assessorados,
tre os conhecimentos se dê de for- acompanhados por monitores que
ma a relacionar a teoria e a prática, os visitam nesse período. Nesse mo-
os conhecimentos provenientes do mento, os estudantes são estimula-
seio popular e os científicos. dos e orientados nos seus planos
A partir dessa articulação en- de estudo e projetos de aplicação
tre a teoria e a prática, sabendo na comunidade, as famílias ouvidas
que o estudante é um indivíduo que e o trinômio escola-aluno-família é
já ocupa um lugar no espaço social fortalecido.
e de trabalho na sua comunidade, A Pedagogia da Alternância,
não podendo se ausentar por mui- além de promover a práxis, não

172
afasta completamente o indivíduo jetivo dessas escolas era garantir
da sua comunidade, possibilitando o estudo a partir da formação téc-
um diálogo entre os saberes teó- nica dos agricultores incentivando
ricos e práticos, entre os saberes a permanência dos estudantes no
universitários/escolares e comuni- seu local de origem propiciando o
tários e dando sentido aos saberes incremento de novas técnicas agrí-
adquiridos. colas no seu meio (BEGNAMI, 2002).
Ao não afastar completamente Realizar uma proposta peda-
o indivíduo, há a possibilidade de gógica com a Pedagogia da Al-
que ele esteja ainda partilhando ternância não é uma tarefa fácil e
do convívio e da autossustentação muito menos simples, assim como
da sua comunidade. Ele mantém o afirma Gimonet (2007), a Alternância
vínculo, continua presente atuan- não é uma facilidade pedagógica.
do nas conquistas e contribuindo Sua implementação e desenvolvi-
para solucionar os problemas do mento exigem muita organização,
grupo e da sua família. Com isso, envolvimentos de todos (monitores,
além de toda questão pedagógica estudantes, famílias, comunidade
que envolve um aprendizado ligado e gestores escolares) e muitas reu-
a reflexão teórica sobre a prática, niões nas quais serão avaliados os
incidindo positivamente sobre os progressos e dificuldades no fun-
territórios, o índice de evasão esco- cionamento da escola.
lar é menor, pois não há necessida- Existem muitos projetos com o
de de se descolar completamente nome de Pedagogia da Alternância
da comunidade/família enquanto que não se utilizam dos seus reais
se estuda. pressupostos pedagógicos, tor-
A Pedagogia da Alternância nando-se uma falsa Alternância ou
chega ao Brasil na cidade do Es- apenas uma alternância dos tem-
pírito Santo, em 1968, trazida por pos de estudo, apenas dividindo
um padre italiano preocupado com os espaços de aprendizagem em
a situação econômica e de aces- tempo escola e tempo comunida-
so à educação das comunidades de, contudo, sem articulação, inte-
agrícolas locais. Ele ajuda a criar a gração e inferência entre os tem-
Escola Família Agrícola de Olivânia pos. Esses espaços são divididos,
e, a partir dessa experiência, as Es- mas acontecem de forma isolada
colas Famílias Agrícolas (EFAS), que e os conhecimentos provenientes
tem a Pedagogia da Alternância, de cada um não se articulam, não
foram levadas a diversos estados causando interferência no meio so-
do Nordeste e, logo depois, a ou- cial no qual o estudante é oriundo.
tros lugares do Sudeste e Sul. O ob- Numa proposta com a Peda-

173
gogia da Alternância, o currículo - Atividades de Retorno: é a
não é estipulado a priori, mas é fru- conclusão do Plano de Estudo com
to de um debate dos interesses e uma ação de intervenção na comu-
necessidades do estudante a par- nidade;
tir da observação e diagnóstico - Visitas de Estudo e Interven-
da sua comunidade e, geralmente, ções Externas: são ações e visitas a
segue a proposta de Tema Gerador outros locais;
formulado por Paulo Freire e/ou a - Caderno da Realidade ou Ca-
Pedagogia de Projetos. Todo um es- derno de Campo: é como um diário,
tudo, uma pesquisa prévia sobre os um registro das observações e aná-
temas de interesse e necessidade lises feitas durante o tempo comu-
comunitários são realizados para nidade;
que, a partir desses temas, os con- - Caderno Didático: é o mate-
teúdos sejam selecionados. O cur- rial a ser utilizado no tempo escola
rículo é então pensado da comu- como registro dos conteúdos peda-
nidade para a escola, da realidade gógicos;
para teoria e não o contrário, como - Tutoria: é um acompanha-
temos na maioria dos processos mento especializado feito ao estu-
educativos atuais, nos quais os dante para ajudar no processo de
conteúdos são selecionados inde- ensino-aprendizagem;
pendente da comunidade e estu- - Serões de Estudo ou grupo
dantes que estejam sendo atendi- de estudos: encontros fora do ho-
dos por eles. rário escolar para tirarem dúvidas
Para a implementação desse e se ajudarem;
currículo e do processo de ensino- - Visitas às famílias: compõe a
-aprendizagem são utilizadas di- tutoria, é quando o educador vai à
versas ferramentas, são elas: comunidade para conhecer a rea-
- Plano de estudo: um roteiro lidade e aproximar as famílias da
de pesquisa a partir do tema e eixo escola;
gerador traça o perfil, local e diag- - Estágios;
nóstico, o que, como e para que es- - Projeto Profissional: processo
tudar os conteúdos; de reflexão sobre um projeto para
- Colocação em Comum: é o o futuro profissional do estudante;
momento que o estudante ou um - Avaliação;
grupo de estudantes expõe à tur- Essas ferramentas, articuladas
ma o resultado de sua pesquisa na ao projeto e proposta pedagógica,
qual estará relacionado o conteú- divididas em tempo comunidade
do escolar, sua relação e aplicação e tempo escola, com um currículo
com o meio; que atenda os projetos de futuro,

174
promova uma reflexão e possibilite se aproxima dos objetivos deseja-
uma intervenção na realidade lo- dos pelos estudantes quanto a sua
cal, são as formas de se desenvol- formação:
ver uma Pedagogia da Alternância.
“Espero que o Curso de Forma-
ção Específica em Ensino Supe-
Pedagogia da Alternância
rior, me dê condições de melho-
nas Licenciaturas rar a minha prática pedagógica
Interculturais Indígenas e política. [...] Além disso, busco
também compreender o con-
A utilização da Alternância no texto político, econômico e cul-
tural da sociedade do entorno.
Prolind contribui com a participa-
Detectar dispositivos frágeis na
ção e permanência dos indígenas minha cultura e construir so-
nos cursos, tendo em vista que a luções de como fortalecê-los;
maioria das comunidades indíge- tirar angústias quanto ao pro-
nas se localizam em áreas rurais ou cesso de mudança em que pas-
sa o movimento local, regional
de difícil acesso e as universidades
e mais amplo; busco também
em regiões centrais e metropolita- realização profissional”. (Pro-
nas das grandes cidades. Outro fessor indígena do Amazonas)
fator que contribui para a utiliza- (PINTO, 2020, p. 84).
ção da Pedagogia da Alternância
“A minha prática pedagógica
é a questão da conciliação do tra-
mudou: antes, eu dependia do
balho com os estudos, afinal, as livro, eu achava difícil estudar.
aulas eram realizadas em períodos Hoje eu pesquiso, posso en-
de recesso escolar, feriados e férias trar na sala de aula com um
escolares, possibilitando aos pro- graveto, mas consigo dar aula
sem contar só com o livro.” (Pro-
fessores leigos em serviço (princi-
fessor indígena do Amazonas)
pal público-alvo das Licenciaturas (PINTO, 2020, p. 84).
Interculturais Indígenas) poderem
realizar sua profissionalização. Observando essas questões,
Além disso, tem toda uma podemos perceber a importância
questão pedagógica da Alternân- de uma proposta pedagógica as-
cia que pode levar a uma forma- sociada a realidade, que garanta
ção mais próxima, reflexiva e crítica a autonomia do profissional a tra-
da realidade, possibilitando que o balhar de forma reflexiva e políti-
professor seja também um pesqui- ca, pensando numa inferência na
sador da sua realidade e consiga realidade e sem dependência de
refletir sobre como seu trabalho materiais didáticos prontos e vin-
impacta a comunidade. Toda pro- dos de outra realidade. Essas são
posta pedagógica da Alternância

175
questões que são desenvolvidas escolares. Um professor que aten-
com uma proposta pedagógica em desse aos dois calendários nunca
alternância. tiraria férias ou teria recesso, pois
Ao lermos os trabalhos sobre o período de aula de um curso é
as Licenciaturas Interculturais In- justamente nas férias e recesso do
dígenas, percebemos que não há outro. Isso muitas vezes inviabilizou
uma única proposta definida de que algumas licenciaturas intercul-
alternância e que ela aconteceu/ turais, ao longo do tempo, pudes-
acontece de forma diferente em sem manter seus calendários origi-
cada curso/universidade de acor- nais, levando a uma adequação de
do com a realidade e possibilidade calendário deixando de atender a
de cada uma. proposta real de alternância àque-
Em alguns trabalhos pesqui- le grupo específico.
sados, foi apontado que o corte - Falta de conhecimento de
de recursos tem atrapalhado uma muitos docentes e universidades
proposta de Alternância mais pró- sobre como se construir um projeto
xima com a proposta original, sem de Alternância. O desconhecimen-
se desviar para uma falsa Alter- to ou um conhecimento superficial
nância. Os cortes de recursos têm sobre como funciona a Pedagogia
impossibilitado, especialmente, as da Alternância levou alguns a ela-
visitas dos professores às comuni- borarem projetos nos quais os tem-
dades no tempo comunidade para pos comunidade viraram tempo de
acompanhamento dos projetos e “atividades de casa”, destinando a
implementação de propostas pen- esse momento a execução de tare-
sadas no tempo escola. fas puramente acadêmicas e des-
Percebemos que as quatro conectadas com o real objetivo do
grandes dificuldades das universi- Tempo Comunidade, esvaziando-o
dades para lidar com a Alternância da reflexão teoria/prática e desco-
foram: lando-o dos projetos de interven-
- Não ter professores destina- ção nas comunidades.
dos exclusivamente para as licen- - Os parcos recursos que difi-
ciaturas interculturais. Isso levou a cultavam e, em alguns casos, invia-
entraves nos calendários acadêmi- bilizaram o financiamento da Peda-
cos, pois havia necessidade de con- gogia da Alternância. Os recursos
ciliar o calendário acadêmico geral destinados visitas dos professores
da universidade com o calendário às comunidades para acompanha-
das licenciaturas interculturais in- rem esse tempo de aprendizagem
dígenas, nos quais as aulas acon- e auxiliar os estudantes deixou de
teciam durante o período de férias existir. Não havia recursos para

176
diárias dos professores, transporte, das as teses/dissertações lidas que
hospedagem e alimentação neces- refletem a fala da estudante:
sários para o acompanhamento
nas comunidades. Além disso, as A gente não podia ficar longe
de casa o mês todo, né? Seria
bolsas permanência ofertada aos
muito difícil pra gente ficar lon-
estudantes foram sendo cortadas ge da família, das obrigações
e diminuídas com o tempo, além da que temos na nossa aldeia, ai
garantia de alojamento, transporte quando a universidade cha-
e alimentação dos estudantes du- mou a Copipe pra discutir o ca-
lendário do curso a gente disse
rante o Tempo Escola.
que queria mudar isso. Aí a uni-
- a rigidez da estrutura, or- versidade aceitou.” (estudante
ganização e tomadas de decisões indígena de Pernambuco) (AL-
das universidades, que dificulta- MEIDA, 2017, p. 191)
va a flexibilização dos Tempos de
aprendizagem, a contratação de Entretanto, a organização des-
mestres comunitários, anciãos e ses tempos e como eles acontece-
sábios como professores das dis- ram nos mais diversos cursos, das
ciplinas indígenas, atrapalhava a mais diferentes regiões, sempre foi
organização do calendário e ga- fruto de debates e negociações, às
rantia de benefícios rapidamente, vezes, não muito fáceis e que, em
sem passar pela burocracia uni- muitos momentos, não contempla-
versitária, os estudantes e todas as vam completamente os estudantes.
demais decisões que precisariam Uma outra questão que apareceu
ser tomadas coletivamente entre com frequência nos trabalhos so-
cursistas, professores e universida- bre as licenciaturas foi o cansaço
de, mas que, na prática, não acon- e acumulo de demandas que esses
teciam pela organização hierarqui- estudantes possuíam, pois acaba-
zada e burocrática, presa a normas vam não tendo férias no período
e ordenamentos gerais e que não de 4 anos, já que a grande maioria
atendem a cursos com tantas es- era docente nas escolas indígenas,
pecificidades. ou foi se tornando ao longo do cur-
Como já citamos, a questão so. Isso tornou todo processo de
da alternância dos tempos escola formação mais pesado e cansativo,
e comunidade também é um fator tendo em vista que nos momentos
que contribui para a permanência de tempo escola, o horário de es-
dos estudantes indígenas, pois eles tudos era integral, com serões de
podem associar trabalho e vida co- estudo à noite.
munitária com a graduação. Essa Outro ponto a ser analisado
é uma questão que aparece em to- e que precisa de adequações, em

177
especial no tempo comunidade, é a Rondônia:
situação das mulheres/mães. Nes-
se período, como ficam os filhos? “muitas das estudantes passam
por situações constrangedoras
Essa questão vamos abordar no
para manterem-se no Curso,
próximo ponto. umas por não terem apoio dos
companheiros e às vezes da
Mulheres e a Alternância própria comunidade para par-
ticiparem da formação em nível
Sou estudante, sou mãe e sou superior, e outras por ouvirem
trabalhadora2 (Sirê Pataxó) reclamações dos próprios cole-
gas indígenas do sexo mascu-
lino por trazerem as crianças
Quando iniciamos a pesqui- para as etapas/aulas no Curso,
sa de doutorado, não tínhamos o que segundo as reclamações,
horizonte de discutir a questão de atrapalha a concentração dos
gênero, e ainda não temos (pelo mesmos.” (ALVES, 2014, p. 34)

menos não de forma aprofundada),


mas era impossível não se afetar Em outros lugares/etnias isso
e empatizar com a quantidade de apareceu de forma mais natura-
colocações, ao longo dos trabalhos lizada, apesar de ainda ser uma
sobre as licenciaturas, sobre o que questão que mereceu destaque na
é ser mulher indígena, mãe e estu- pesquisa:
dante de um curso de graduação.
“É comum durante as etapas
Essa questão apareceu mais vezes
do Tempo Universidade ver
quando os trabalhos abordavam as crianças indígenas pelo
a questão da Alternância e como campus, entrando e saindo
aconteciam os tempos escola/uni- das salas de aulas, brincando,
versidade dos estudantes indíge- comendo e descansando com
bastante autonomia e sem
nas.
perturbações no ambiente.
Sempre apareciam falas e indi- (SANTOS, 2018, pg. 38)
cações que para as mulheres, espe-
cialmente durante o Tempo Escola As crianças eram levadas a
e a decisão de se manter numa cada etapa e assistiam às au-
las junto com suas mães, tran-
graduação tinha uma dificuldade
sitavam pelo espaço escolar, e
maior: a de lidar com a maternida- aos poucos, foram crescendo
de. na Universidade. Eram cuida-
Em algumas situações isso pa- das pelos irmãos e irmãs mais
recia mais difícil, como é o caso de velhos, ou por ―cuidadoras‖

2 Fala de estudante indígena Pataxó do curso de Licenciatura Intercultural Indígena da UFMG


quando foi se apresentar/dizer quem era para a pesquisadora da tese da qual tiramos a cita-
ção: BRITO, 2019, p.70)

178
– geralmente mulheres, e pa- so de Ensino Médio em Formação
rentes próximos – que eram tra- de Professores Indígenas no estado
zidas para etapa, junto com a
do Rio de Janeiro, destinado aos
mãe da criança. As cuidadoras
ficavam com as crianças, brin- indígenas Guarani Mbya e Pataxó,
cavam, davam comida, e quan- tínhamos, ao todo, numa turma de
do o choro não cessava, leva- 26 estudantes, apenas 4 mulheres
vam-nas às suas mães. (MELO, (três Guarani e uma Pataxó). Das
2014, p.142)
três mulheres que tinham filhos:
Na universidade, os acadêmi- duas levavam as crianças a todas
cos indígenas ―reproduziam, as aulas do tempo escola e uma ti-
de certo modo, o jeito de cuidar nha um excesso de faltas, a justifi-
das comunidades indígenas: cativa sempre girava em torno dos
todos olhavam as crianças,
cuidados com a criança. Isso me
muitos colegas de sala ajuda-
vam as mães carregando seus leva a crer que essa é uma ques-
filhos no colo, empurrando tão a ser debatida e analisada não
carrinho e cuidando para que só nas Licenciaturas Interculturais,
nada acontecesse às crianças, mas nas relações de gênero den-
enfatizando a coletividade na
tro das comunidades indígenas e o
criação das crianças. Uma das
acadêmicas Kaingang fez re- que se pode fazer para oportunizar
cuperação à noite com a filha que as mulheres também possam
no colo; outra assistia aula en- estudar.
quanto seu bebê ficava com o Em uma das aulas do magis-
marido (trazido como ―cuida-
tério indígena, conversamos sobre
dor); às vezes a família vinha
completa: com todos os filhos essa questão e foi muito forte a si-
e filhas. Os esforços incluíam nalização das mulheres sobre os
todos os parentes próximos, desafios, dificuldades e resistências
que percebiam a formação das que enfrentavam para estarem na-
mães, como algo muito impor-
quele lugar e quantas mulheres na
tante. (MELO, 2014, p. 147-148)
aldeia gostariam de estar lá, mas
eram impossibilitadas pela ques-
Precisamos destacar que o
tão do cuidado das crianças, que é
número de mulheres indígenas for-
em grande parte é tarefa feminina
madas é bastante inferior ao de
e isso tem uma forte relação com a
homens e a distância entre mulhe-
cultura.
res e homens formados, se formos
Ao estudarmos outros povos
analisar o caso das populações
indígenas, notamos que as assime-
indígenas, essa diferença é bem
trias entre homens e mulheres nos
maior do que na sociedade de for-
cargos de liderança, na escolari-
ma geral. Como professora do cur-
zação e profissionalização é bem

179
grande. Em geral, os cuidados com para outras cidades em busca
as crianças é mais feminino, isso do estudo dada a distância dos
filhos que vai na contramão da
acaba dificultando as mulheres de
educação indígena tradicional,
se locomoverem, manterem fora na qual a mãe e os filhos con-
dos espaços da aldeia e ocuparem vivem continuamente. (Indígena
cargos. Guarani Rosileide)”
Nos trabalhos sobre as Licen- Eu estou me testando até onde
vai o meu limite enquanto mu-
ciaturas, percebemos que há mu-
lher indígena, porque deixar fi-
lheres que levam os filhos, outras lho não é fácil. Aí você está lá
que levam os filhos e uma “babá”, distante, não sei quantos qui-
que ficará com eles no período das lômetros e sente vontade de vir
aulas, mas que permanecem nas embora, mas precisa ficar ali
firme e forte.” (Indígena Guarani
imediações da universidade, nos
Simone). (SANTOS, 2018, p. 89)
alojamentos, para terem a compa-
nhia das mães nos intervalos e, ain- Eu penso assim: deixar o mari-
da, as que deixam os filhos em suas do em casa tudo bem, né?! Você
comunidades. Nenhuma dessas si- não se importa muito mais com
marido, então até que vai! Mas
tuações aparecem como confortá-
agora filho? A criança não tem
veis ou ideais, e sempre a sugestão como você deixar em casa não,
é de que o melhor cenário seria que principalmente se for filho pe-
as aulas pudessem ocorrer nas co- queno. Então eu levava ele para
munidades, ou que os tempos es- a faculdade. Tinha hora que ele
chorava, passava frio, calor,
colas levassem em conta a realida-
mas eu não desisti! (Indígena
de das mães e conjuntamente com Guarani Rosely Quevedo) (SAN-
elas pensassem em alternativas. TOS, 2018, p. 47)
Não há uma solução pronta, mas
a ser construída coletivamente. As- “se vê no meio de um fogo cru-
sim como as mulheres não indíge- zado porque você tem uma
família, tem filhos, mas você
nas, as mulheres indígenas têm que
também tem que dar suporte
lidar com esse desafio ao persistir dentro da comunidade porque
em estudar. E mesmo quando essas o professor tem que ajudar a
mulheres têm apoio e com quem sua comunidade.” (Indígena
deixar os filhos: Guarani Rosileide) (SANTOS,
2018, p. 91)

“Além da questão econômica,


que dificulta a permanência de O peso da maternidade e suas
muitos indígenas na universi- responsabilidades que acabam
dade, um outro problema que por sobrecarregar física e emocio-
se coloca para estas mulheres
nalmente as mulheres não é um
é a dificuldade de se deslocar

180
fardo exclusivo das mulheres não se que permanecer todo calendário
indígenas. Não temos como afir- acadêmico geral na universidade.
mar se esse peso maior estabeleci- Mesmo com toda essa proble-
do às mulheres é fruto do processo mática das mães que precisa ser
colonial que interferiu nas culturas avaliada, discutida e repensada em
indígenas ou não, contudo, isso é moldes que essas mulheres pos-
um elemento que já tem sido pauta sam conciliar de forma menos im-
dos Movimentos de Mulheres Indí- pactante para suas vidas e de seus
genas. filhos esse momento da gradua-
Notamos que um dos fatores ção, a alternância ainda é a opção
que estimula os estudantes a se menos impactante, tendo em vista
manterem nos cursos, apesar de que, sendo um curso realizado lon-
todas as dificuldades, é o suporte à ge das residências dessas mães, ele
comunidade que eles poderão dar se tornaria inviável ou mais doloro-
futuramente, quando formados. A so, se elas precisassem descolar-se
formação não se configura como cotidianamente ou manterem-se
uma realização pessoal ou algo definitivamente afastadas por qua-
que trará benefícios pessoais, mas tro anos (pelo menos) das suas co-
algo compartilhado socialmente munidades e redes de apoio.
como uma conquista da comuni- Se para as mães, com a alter-
dade e beneficiará a todos. nância, há dificuldades, sem ela a
permanência dessas mulheres se-
Inconclusões ria ainda mais dificultada e pro-
vavelmente o número de mulheres
Acreditamos que a Alternância, indígenas nas graduações, que já
apesar de toda complexidade da é baixo e bastante inferior ao dos
sua implementação e manutenção homens, seria ainda menor. O que
para que ela se estabeleça como se faz necessário é que essa alter-
uma Pedagogia da Alternância de nância e a questão dos alojamen-
fato, ainda é a melhor alternativa tos, transporte, alimentação sejam
para uma proposta de Educação mais bem discutidos e que essas
Superior Indígena, pois, apesar dos mães possam ser ouvidas para se
desafios que ela impõe, no caso de construir coletivamente uma pro-
uma educação com adultos e de co- posta que as atenda conjuntamen-
munidades indígenas, ela permite a te com seus filhos.
conciliação do trabalho e da vida A alternância e a necessidade
comunitária com os estudos, o que de um calendário acadêmico dife-
seria inviável no caso de uma gra- renciado, discutido e organizado
duação na qual o estudante tives- em parceria com os estudantes,

181
que apesar das dificuldades de im- culturais Indígenas se mantenham
plementação deles, é fundamental no caminho de uma proposta em
para que os cursos se tornem pos- vias de decolonialidade, pois esta-
síveis de serem frequentados. belecem formas Outras de pensar,
Para além de facilitar a frequên- transmitir e produzir o conheci-
cia, a Pedagogia da Alternância mento orientado numa perspectiva
garante uma proposta pedagógica que não só os conhecimentos de
que tem a práxis, o trabalho como matriz ocidental estejam presentes,
princípio Educativo e uma propos- mas também os conhecimentos,
ta de intervenção na realidade que epistemes, educação e pedagogias
atenda os projetos comunitários, de origem indígenas.
mesmo ainda precisando de ajus-
tes em alguns casos, é fundamen-
tal para que as Licenciaturas Inter-

Referências

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183
EDUCAÇÃO DO
CAMPO E BASE
NACIONAL COMUM
CURRICULAR:
PROPOSIÇÕES E
INCONGRUÊNCIAS
Kátia Antunes Zephiro1
Fabiana Helena da Silva2
Jarlane de S. Lima3

1 Doutora em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contem-


porâneos e Demandas Populares (PPGEduc), da UFRRJ. Professora de História da rede
municipal de Angra dos Reis.
2 Licenciada em Educação do Campo pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro -
UFRRJ. Pós-graduada em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo
Instituto Federal do Rio de Janeiro - IFRJ. Mestranda em Antropologia pela UFRRJ. Membra
Grupo de Pesquisas em Linguagens, Poder, Contemporaneidade - GELPOC. IFBA.
3 Engenheira Agrônoma e Licenciada em Educação do Campo pela Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Bolsista do PET Educação do Campo. Membra do Grupo
de Pesquisas GPMC.

184
O presente artigo tem por ob- como a mesma pode interferir nos
jetivo apresentar uma reflexão rea- objetivos e práticas curriculares
lizada por três pessoas que estão das escolas do campo.
em diferentes lugares na Educação
do Campo: uma professora de uma Currículo: de onde veio, para
Licenciatura em Educação do Cam- onde vai?
po, uma estudante e uma egressa
do curso. O campo de estudos e pes-
Essas reflexões são sobre os quisas sobre currículo surgem nos
impactos da Base Nacional Co- EUA, no final do século XIX e iní-
mum Curricular sobre a Educação cio do XX, a principal preocupa-
nos processos de construção do ção desse campo do conhecimen-
currículo da Educação do Campo. to que vinha sendo desenvolvido
Para isso, analisamos documentos era o de “planejar ‘cientificamente’
e fizemos uma revisão bibliográfica as atividades pedagógicas e con-
sobre o tema, contudo nos permiti- trolá-las de modo a evitar que o
mos desenvolver, neste trabalho, os comportamento e o pensamento
argumentos como em um ensaio. do aluno se desviassem de metas
Iniciamos apresentando um e padrões pré-definidos.” (MOREIRA
breve histórico de como surgiu a & SILVA, 1995, p.9). Isso ocorreu para
área de currículo, demonstrando contribuir com uma nova fase do
que a construção curricular não é capitalismo oriunda da crescen-
neutra e atende a projetos de futu- te industrialização dos EUA. Era
ro e ser humanos desejados para um momento no qual precisavam
um determinado tipo de socieda- de muitos trabalhadores com uma
de. Depois abordamos o conceito formação e especialização míni-
de Educação do Campo e a his- ma para conseguirem dar conta de
tória desse conceito atrelado aos atuarem nas indústrias, cheias de
movimentos sociais do campo e maquinários e modernização.
as expectativas educacionais es- Nesse momento, a escola foi
tabelecidas a partir da discussão vista como a instituição capaz de
do que é uma Educação do Cam- desempenhar um papel de relevân-
po. Nesse momento, destacaremos cia na função de gestar novos valo-
alguns aspectos da legislação para res, comportamentos, conhecimen-
Educação do Campo no que tange tos e adaptar as novas gerações as
ao currículo e objetivos dessa pro- transformações da economia capi-
posta educativa. Por fim, aponta- talista.
remos algumas características da Duas correntes surgem nesse
Base Nacional Comum Curricular e contexto: a que tinha como teóri-

185
cos Dewey e Kilpatrick e pensava no dição humanista e hermenêutica,
currículo que valorizasse os inte- representada principalmente por
resses dos estudantes e outra liga- Willian Pinar e a Universidade de
da a Bobbitt que pretendia um cur- Ohio. (MOREIRA & SILVA, 1995, p.15)
rículo que desenvolvesse aspectos Mesmo com toda diferença
desejáveis da personalidade dos entre as duas correntes acima cita-
estudantes. Dessas duas correntes das há um consenso, a partir dos
se desenvolveram duas teorias da anos de 1970, que os currículos a
educação no Brasil, da primeira o partir de então deixam de enfatizar
escolanovismo e da segunda o tec- os objetivos comportamentais, su-
nicismo. (MOREIRA & SILVA, 1995) pervalorizar o planejamento, a im-
Decorrente dessas perspecti- plementação e controle curricular
vas curriculares e pelas transfor- e não mais se incentivaria procedi-
mações vivenciadas na sociedade, mentos ditos científicos de avalia-
novas formulações sobre o currí- ção. Dessa maneira, o foco sobre a
culo surgiram posteriormente. O discussão curricular mudou a par-
currículo sempre esteve atrelado tir desse momento.
ao pressuposto de contribuir com Temos a Teoria Crítica do Cur-
a construção de um modelo de so- rículo, herdeira da tradição neo-
ciedade. Ele ajudaria a desenvolver marxista de Apple e Giroux, no qual
comportamentos, aprendizados, o enfoque passou a ser
habilidades necessárias às expec-
tativas de cidadão que se encaixa- [...] a favor de quem o currículo
trabalha e como fazê-lo traba-
ria naquele projeto de sociedade.
lhar a favor dos grupos e clas-
Na década de 1970, uma reor- ses oprimidos. Para isso, discu-
ganização do campo foi proposta te-se o que contribui, tanto no
numa conferência na Universidade currículo formal como no cur-
de Rochester. Havia uma rejeição rículo em ação e no currículo
oculto, para a reprodução de
a tendência curricular dominante,
desigualdades sociais. Identifi-
que era vista como instrumental, cam-se e valorizam-se, por ou-
apolítica e ateórica. Duas grandes tro lado, as contradições e as
correntes se desenvolveram a par- resistências presentes no pro-
tir dessa conferência: uma mais ba- cesso, buscando-se formas de
desenvolver seu potencial liber-
seada no neomarxismo e na teoria
tador, [...] (SILVA, 1995, p.16)
crítica, ligada às Universidades de
Wisconsin e Columbia, no qual os
O currículo “é uma área con-
representantes mais conhecidos
testada, é uma arena política.” (MO-
no Brasil são Michael Apple e Hen-
REIRA & SILVA, 1995, p.21). Onde as
ry Giroux; e outra associada à tra-

186
questões do poder, da ideologia e por lhe dar o significado real.
da cultura são elementos marcan- Daí que a única teoria possível
que possa dar conta desses
tes e presentes na construção cur-
processos tenha de ser todo
ricular. Não é neutro e sempre tem tipo crítico, pondo em evidên-
na seleção do que é ou não impor- cia as realidades que o condi-
tante ensinar expectativas do ser cionam. (SACRISTÀN, 2000, p.21)
humano a ser formado para de-
terminado tipo de sociedade. Por- O currículo está para além de
tanto, “currículo é uma opção cul- uma prescrição, um elenco de con-
tural, o projeto que quer tornar-se teúdos a serem desenvolvidos em
na cultura-conteúdo do sistema sala de aula pelos professores. Ele
educativo para um nível escolar ou está correlacionado com o projeto
para uma escola de forma concre- de sociedade que se pretende e de-
ta.” (SACRISTÀN, 2000, p.34) pende também de todas as condi-
Nesse sentido concordamos ções de sua aplicação na realidade
com SILVA : concreta.
Ele é uma práxis, no sentido
[...] o currículo não é um elemen- que é teoria a princípio, que se
to inocente e neutro de trans- converte em prática nas salas de
missão desinteressada do co-
aula e é ressignificado e construí-
nhecimento social. O currículo
está implicado em relações de do a partir dela, transformando-se
poder, o currículo transmite vi- numa nova teoria. Dentro desse
sões sociais particulares e in- processo se constrói e reconstrói
teressadas, o currículo produz coletivamente à medida que os sa-
identidades individuais e so-
beres são expressão de um conhe-
ciais particulares. (SILVA, 1995,
p.8) cimento produzido coletivamente
e os envolvidos nessa relação que
Também não podemos esque- são sujeitos desse currículo ao ser
cer que o currículo não é um ele- aplicado nas salas de aula também
mento isolado da escola, da so- interferem nessa construção, do
ciedade que a envolve. Quando como, para quem e por que ensinar
pensamos em currículo não pode- determinados saberes, conteúdos.
mos esquecer que ele Nosso artigo pretende discutir
em tempos de valorização e normati-
[...] modela-se dentro de um sis- zação do currículo no Brasil, através
tema escolar concreto, dirige- da Base Nacional Comum Curricular
-se a determinados professores (BNCC), qual lugar da Educação do
e alunos, serve-se de determi-
Campo e dos educandos do Campo
nados meios, cristaliza, enfim,
num contexto, que ó que acaba nesse processo, afinal:

187
[...] a análise do currículo é uma aos processos educativos, curricu-
condição para conhecer e ana- los e projetos pedagógicos das de-
lisar o que é a escola como
mais escolas, sem interagir, refletir e
instituição cultural e de socia-
lização em termos reais e con- impactar a realidade social no qual
cretos. O valor da escola se ma- essa escola está inserida. É um mo-
nifesta fundamentalmente pelo delo de escola urbanocêntrico que
que faz o desenvolver um de- não contribui com uma permanên-
terminado currículo, indepen-
cia digna dos povos no campo, mas
dente de qualquer retórica e
declaração grandiloquente de com o processo de exclusão, explo-
finalidades. (SACRISTÀN, 2000, ração e/ou expulsão da população
p.17) campesina do seu território. É o
que historicamente chamamos de
Desejamos refletir os objetivos Educação Rural.
da BNCC em contraposição às ex- Quando falamos em educação
pectativas que há pelos movimen- do Campo, estamos nos referindo a
tos sociais e das escolas do campo um projeto de educação, um proje-
com relação aos projetos de futu- to de futuro de um lugar, um terri-
ro destas comunidades. Um proje- tório que a escola está inserida e
to homogeneizador como a BNCC ajuda a construir. No dicionário da
atende essas expectativas? Ela li- Educação do Campo, verbete Edu-
mita ou não as possibilidades de cação do Campo, estão apontados
construção curriculares que refli- as características desse modelo
tam as necessidades e projetos das de educação: ela é uma educação
comunidades do campo? com os trabalhadores do campo e
não para ele, ela é construída em
Educação do Campo e não conjunto (escola, profissionais da
Educação no Campo educação, trabalhadores do cam-
po, movimentos sociais, estudantes
Vamos começar essa seção e comunidade), tem por base uma
pela diferenciação dos termos educação dialógica, do oprimido,
Educação do Campo e Educação conforme desenvolvido por Paulo
no Campo. Não é simples termino- Freire, assume a dimensão de pres-
logia, mas mudança de perspec- são coletiva por políticas públicas
tiva na orientação pedagógica, mais abrangentes para o campo em
curricular e projetos educativos de contraposição as propostas hege-
futuro para àquela sociedade. A mônicas do agronegócio; combina
educação no campo nos remete a luta pela educação com a luta pela
educação em espaço, território do Reforma Agrária, direito ao traba-
campo, rural, mas exatamente igual lho, a soberania alimentar, ao terri-

188
tório; busca desenvolver um projeto tam as contradições envolvidas
educativo que tenha relação com o nesses processos.”(CALDART,
2012, p.263)
trabalho, raízes e produções cultu-
rais, formas de luta e resistência,
Essa perspectiva de Educação
organização, compreensão política
do Campo vem sendo construída
e de modo de vida; tem a diversida-
desde a década de 1990, mas so-
de e valorização da diferença como
mente nos debates realizados no
uma referência; reafirma o direito
contexto da formulação do Parecer
de pensar e construir a pedago-
do Conselho Nacional de Educação
gia a partir da realidade específica,
(CNE) nº 36/2001 relativo às Diretri-
pensando na totalidade e não só
zes Operacionais para a Educação
na sua comunidade; reflexão críti-
Básica nas Escolas do Campo que
ca da realidade para interferir nela
culminou na Resolução nº 01/2002
de forma a transformá-la; os edu-
do CNE que o termo Educação do
cadores são sujeitos fundamentais
Campo foi sendo estabelecido. Ele
da formulação pedagógica e das
foi referendado pelos movimentos
transformações da escola; tem uma
em 2004 na II Conferência Nacional
concepção de educação emanci-
de Educação Básica do Campo. Em
patória, vinculada a um projeto his-
2010 temos a formação do Fórum
tórico, às lutas e a construção so-
Nacional da Educação do Campo
cial e humana de longo prazo; não
(Fonec) com intuito de retomar a
deseja a intervenção estatal na sua
atuação articulada de diferentes
construção de forma a mudar seus
movimentos sociais, organizações
projetos construídos coletivamen-
sindicais e outras instituições como
te. (CALDART, 2012)
universidades, institutos federais
O verbete ainda complementa:
de educação, estudantes universi-
[...] no plano da práxis pedagó- tários e outros segmentos para luta
gica, a Educação do Campo e desenvolvimento de uma Educa-
projeta o futuro quando recu- ção de fato do Campo.
pera o vínculo essencial entre
A proposta de implementação
formação humana e produção
material da existência, quan- da Educação do Campo é ainda
do concebe a intencionalidade um projeto em disputa, cheio de
educativa na direção de novos confrontos, avanços, recuos, reto-
padrões de relações sociais, pe- madas que não são simples quan-
los vínculos com novas formas
do se pensa num projeto coletivo e
de produção, com o trabalho
associado livre, com outros va- de transformação social.
lores e compromissos políticos, Quando pensamos nas ques-
com lutas sociais que enfren- tões curriculares na legislação

189
estabelecida para Educação do Somado a essas duas legisla-
Campo, recorremos primeiro a ções temos o decreto Nº 7.352, de
LDBEN/9394/96: 4 de novembro de 2010, o qual dis-
põe sobre a política de educação
Art. 28. Na oferta de educação do campo e o Programa Nacional
básica para a população ru-
de Educação na Reforma Agrária –
ral, os sistemas de ensino pro-
PRONERA que aponta:
moverão as adaptações ne-
cessárias à sua adequação às
peculiaridades da vida rural e I - respeito à diversidade do
de cada região, especialmen- campo em seus aspectos so-
te: I – conteúdos curriculares e ciais, culturais, ambientais, po-
metodologias apropriadas às líticos, econômicos, de gênero,
reais necessidades e interes- geracional e de raça e etnia;
ses dos alunos da zona rural; II II - incentivo à formulação de
– organização escolar própria, projetos político-pedagógicos
incluindo adequação do calen- específicos para as escolas do
dário escolar às fases do ciclo campo, estimulando o desen-
agrícola e às condições climáti- volvimento das unidades esco-
cas; III – adequação à natureza lares como espaços públicos
do trabalho na zona rural (Bra- de investigação e articulação
sil, 1996). de experiências e estudos di-
recionados para o desenvolvi-
mento social, economicamente
Temos também a Resolução nº justo e ambientalmente sus-
3/2002 que diz respeito às Diretri- tentável, em articulação com
zes Operacionais para Educação o mundo do trabalho; III - de-
Básica nas Escolas do Campo. Nela senvolvimento de políticas de
formação de profissionais da
fica estabelecido
educação para o atendimento
da especificidade das escolas
[...] um conjunto de princípios
do campo, considerando-se as
e de procedimentos que visam
condições concretas da produ-
adequar o projeto institucional
ção e reprodução social da vida
das escolas do campo às Dire-
no campo; IV - valorização da
trizes Curriculares Nacionais
identidade da escola do campo
para a Educação Infantil, o En-
por meio de projetos pedagógi-
sino Fundamental e Médio, a
cos com conteúdos curricula-
Educação de Jovens e Adultos,
res e metodologias adequadas
a Educação Especial, a Edu-
às reais necessidades dos alu-
cação Indígena, a Educação
nos do campo, bem como fle-
Profissional de Nível Técnico
xibilidade na organização es-
e a Formação de Professores
colar, incluindo adequação do
em Nível Médio na modalidade
calendário escolar às fases do
Normal” ( Resolução nº01/2001,
ciclo agrícola e às condições
CNE, art.2)
climáticas; e V - controle social

190
da qualidade da educação es- Essas reformas anunciam o pro-
colar, mediante a efetiva parti- fessor como foco e o problema da
cipação da comunidade e dos
Educação sendo visto como de ge-
movimentos sociais do campo
(Brasil, 2010). renciamento e não de investimen-
to e recursos. Um dos pontos das
Percebemos em todo arcabou- Reformas Educacionais em curso,
ço legislativo à garantia de aten- desde então, estava na construção
dimento as especificidades das de uma Base Nacional Comum Cur-
Escolas do Campo, associadas à ricular, um mecanismo de homo-
necessidade de se adequar isso às geneização curricular que facilita
políticas curriculares nacionais, se- a aplicação de exames standarti-
jam elas as Diretrizes Curriculares zados e nacionais para medir uma
ou agora a Base Nacional Comum suposta qualidade da Educação.
Curricular. Isso mostra um dualis- Essa proposta interfere diretamen-
mo da legislação que acarreta mais te na autonomia do professor e dos
uma pauta de luta dos movimentos Projetos Políticos Pedagógicos das
por uma Educação do Campo e escolas que perdem a força e cami-
não para o Campo, pois na práti- nham para um processo de aliena-
ca o que acaba ocorrendo é uma ção e subjulgamento a uma norma
valorização e primazia do currículo exterior à escola e às necessidades
a partir das normatizações nacio- observadas no “chão da escola”.
nais, o que não corresponde aos A BNCC começou a ser cons-
objetivos pensados quando pensa- truída num governo de Frente Po-
mos numa proposta de Educação pular, mas de caráter Neoliberal nas
do Campo solicitada, refletida, dis- suas práticas econômicas, do pre-
cutida e apontada pelos Movimen- sidente Lula em 2008. Foi durante o
tos que a criaram. governo de sua sucessora, a presi-
denta Dilma Roussef, que iniciaram
BNCC: normatização e homo- as discussões para elaboração da
geneização curricular para Base. No meio desse processo, em
atender ao Capital 2016, houve o golpe institucional e
o impedimento da presidenta. As
Desde a década de 1990, o Neo- discussões sobre a Base não para-
liberalismo vem ganhando espaço ram e atravessou o governo do seu
e poder na cena nacional e pro- substituto, Michel Temer, sendo de-
postas de Reformas Educacionais cretado em 2017.
estimuladas e financiadas pelo Essa construção em 2015 e 2016
Banco Mundial e outras organiza- foi realizada a partir de consultas
ções internacionais vem ocorrendo. online às escolas e profissionais de

191
educação, não houve nenhum en- do pouco espaço e tempo para o
contro, organização, congresso ou campo diverso do currículo.
algo similar para debates acerca Para além da centralização
da construção da base. Após esse curricular, temos ainda o controle
período um conjunto de 116 espe- do que vai ser ensinado nas esco-
cialistas compilou e escreveu o do- las através das avaliações externas
cumento decretado em 2017. Essa nacionais. Isso acaba levando a
forma de elaboração privilegia uma supervalorização da Base em
especialistas e subalterniza o diá- detrimento da parte diversificada,
logo com as comunidades escola- pois o que será cobrado, medido
res, além de não discutir com essas e punido/premiado é a prescrição
mesmas comunidades as implica- da Base. As próprias secretarias
ções nos processos de avaliação, de estado e municípios tendem a
de ensino e aprendizagem, na ho- estimular e promover um trabalho
mogeneização do currículo, na for- maior sobre a Base e deixar de lado
mação de professores e autonomia a parte diversificada.
de docentes e escolas que se debi- Na BNCC vemos a instituição
litam com a lógica de centralização do pressuposto de competências e
que a BNCC instaura na Educação. habilidades a serem desenvolvidas
Por que instituir um currículo pelos estudantes ao longo da vida
único para todo país, uma nação escolar. Esse pressuposto tira o
com dimensões continentais, com foco dos direitos de aprendizagem,
uma diversidade cultural, linguís- dos conteúdos para o desenvolvi-
tica (dado as línguas indígenas, mento de competências e habilida-
sotaques locais, dentre outros as- des socioemocionais que são com-
pectos), econômica, na qual ao per- portamentos e habilidades úteis
corrermos, muitas vezes poucos ao trabalhador que a nova fase do
quilômetros saímos de um ambiente Capitalismo necessita. O que está
rural para outro cosmopolita? Será em jogo nesse momento é desen-
que as necessidades educacionais volver nos futuros trabalhadores
e projetos de futuro são iguais? Há habilidades múltiplas para lidar
um discurso de que a Base só ins- com a sociedade do não emprego,
titui cerca de 60% dos conteúdos do “empreendedorismo”.
a serem ministrados, contudo com Durante o seminário Educação
olhar atento e leitura cuidadosa para o século 21, promovido pelo
percebemos que a quantidade de IAS em parceria com a Secretaria
conteúdos, competências e habi- de Assuntos Estratégicos da Pre-
lidades prescritos tomam pratica- sidência da República (SAE) e com
mente todo período letivo, deixan- a Organização das Nações Unidas

192
para a Educação, a Ciência e a Cul- É um mecanismo de assemelhar a
tura (UNESCO), inicia um momento escola a uma empresa ou estimular
de incorporação da noção de com- o estudante a virar um empreende-
petências nas propostas de Educa- dor que vai agir onde há “oportuni-
ção no Brasil. dades”, bem ao discurso do Capital
nesse momento.
Por meio desses estudos, sabe- Assim como a Nota Crítica da
mos hoje que o êxito na apren-
Anped a BNCC, acreditamos que:
dizagem não acontece apenas
“Não há uma preocupação com a
pelos investimentos feitos no
campo exclusivo da cognição formação integral do estudante,
– onde se concentram a maior com um desenvolvimento omnila-
parte dos esforços públicos e teral dessas novas gerações. Pelo
privados em educação –, mas
contrário: se trata de um desenvol-
são altamente impactados
vimento estreitamente ligado à in-
pelo desenvolvimento de
outros atributos pessoais, que serção produtiva das novas gera-
praticamente não são obje- ções.” (2018).
to das políticas educacionais: Nesse sentido pela forma como
persistência e disciplina, capa-
a BNCC foi elaborada, o contexto
cidade de atenção e concen-
político de sua implementação e
tração, capacidade de adiar
recompensas, autoestima, so- os mecanismos de controle curri-
ciabilidade, dentre outros, de- cular que ela estipula, a inserção
nominados de diversas formas, das competências e habilidades
como competências compor-
e a perda de autonomia da esco-
tamentais, relacionais, emocio-
la e dos docentes no processo de
nais, atitudinais, socioafetivas,
não cognitivas etc. (Instituto construção do que e para que ensi-
Ayrton Senna, 2011, s/p. Apud nar, não acreditamos que a mesma
MAGALHÃES, 2021, p.66-67) possa contribuir para o desenvol-
vimento de uma educação crítica,
A cognição é deixada de lado emancipatória, reflexiva e transfor-
e no lugar dela, atitudes, compor- madora da realidade. Ela foi criada
tamentos e formas de lidar com as e implementada para homogenei-
emoções são colocadas como prin- zar, controlar e medir através das
cipais nos processos de ensino- avaliações externas com objetivo
-aprendizagem. Esses comporta- de formar um trabalhador acrítico,
mentos do “saber fazer”, “aprender com comportamentos e subjetivi-
sozinho/pesquisando”, ter capaci- dades formadas para atender ao
dade de liderança, pró atividade Capital.
são nesse momento o esperado dos
estudantes/futuros trabalhadores.

193
A BNCC está alinhada à pro- mos falando do agronegócio, que
posta de Educação do Cam- movimenta milhões para o capital,
po? mas dos Povos Tradicionais, peque-
nos produtores, trabalhadores as-
Como já afirmamos na primei- salariados, boias-frias ou meeiros
ra seção deste artigo, currículo é (sim! Ainda existem) do campo?
seleção de cultura, escolha do que Conforme sinaliza Caldart:
é válido e necessário transmitir as
gerações futuras para formação Pela lógica do modelo domi-
nante, é a educação rural e não
de um ser humano preparado para
a Educação do Campo, que
o projeto de sociedade que se de- deve retornar à agenda do Es-
seja. Ele não é neutro, tampouco tado, reciclada pelas novas de-
inocente. Sempre está atrelado a mandas de preparação de mão
projeto societário de futuro. Por- de obra para os processos de
modernização e expansão das
tanto, a implementação de uma
relações capitalistas na agri-
Base Nacional Comum Curricular, cultura, demandas que não ne-
uma proposta homogênea, que ins- cessitam de um sistema público
titui o paradigma de habilidades e de educação no campo. Porém
competências socioemocionais no isso é confrontado pela pres-
são articulada que movimentos
lugar de aprendizagem cognitiva e
de trabalhadores camponeses
de conteúdos na atual conjuntura continuam a fazer a partir de
não é algo por acaso ou para me- outras demandas e na direção
lhorar a qualidade da Educação de outro projeto. (CALDART,
como anunciado. 2012, p.260-261)

O desejo de estabelecer o que


e como deve ser ensinado nacional- Novamente vemos projetos na-
mente e a instituição de avaliações cionais que não cabem e servem
nacionais para se medir se o pres- ao campo brasileiro, já tão castiga-
crito foi pelo menos desenvolvido do pelo seu histórico de disputas,
nas escolas de todo país faz parte expropriações, desigualdades. A
de um projeto de qual cidadão/tra- nova BNCC e seu projeto não ser-
balhador pretende-se ter no futuro. vem a uma proposta de Educação
Se esse modelo já não serve as do Campo, pois são antagônicos
classes subalternizadas pelo pro- em seus objetivos. Enquanto a Edu-
cesso histórico nacional que ha- cação do Campo visa um projeto
bitam os espaços urbanos, como de desenvolvimento de pensamen-
será que esse projeto se associa to crítico, emancipatório da classe
aos espaços rurais, do campo? E trabalhadora com vistas à transfor-
quando falamos campo, não esta- mação das desigualdades, que ga-

194
ranta soberania alimentar e proje- na formação e conscientização dos
tos sustentáveis de futuro a BNCC Profissionais da Educação que está
preconiza um projeto a-crítico que o ponto chave desse processo, pois
serve ao Capital e a manutenção se esses profissionais implementa-
do status quo. rem seus currículos em ação, con-
Por conta disso afirmamos que forme preconiza a Educação do
sem reflexão crítica sobre a BNCC Campo, não existirá legislação ou
e organização de uma resistência prescrição que impedirá que essa
a esse processo, o impacto da sua Educação comece a acontecer nas
aplicação nas Escolas do Campo Escolas do Campo.
será drástico à medida que põe em Para além dessas resistências
xeque um projeto diferenciado e es- internas e cotidianas nos espaços
pecífico de educação voltado para escolares, desenvolvendo projetos
o atendimento da comunidade e que tenham articulação com a co-
seus projetos de sustentabilidade, munidade, propostas dialógicas,
promoção da soberania alimen- democráticas e nas quais toda co-
tar e transformação social, para munidade escolar participe, temos
colocar em prática uma proposta ainda os movimentos sociais do
homogênea de campo/cidade, tra- campo, os sindicatos e universida-
balhador/burguesia que mantém des que vem desenvolvendo a resis-
a subalternização dos trabalhado- tência política e acadêmica a esse
res, especialmente do campo brasi- projeto.
leiro. Essas resistências históricas e
Há como abrir mão da BNCC que nunca cessam são o que fazem
na Educação do Campo? Dentro do projetos como esse não avançarem
prescrito/legislação não absoluta- e destruírem qualquer possibilida-
mente, mas nas disputas internas, de de construção de uma Educa-
no Currículo em Ação, na retomada ção Emancipadora que leve a au-
dos Projetos Políticos Pedagógicos tonomia, liberdade e garantia dos
há espaços de resistência e possi- modos de vida das populações do
bilidades. campo.
No campo da legislação, se to-
marmos o decreto Nº 7.352, de 4 de
novembro de 2010, podemos articu-
lar projetos, desenvolver atividades
e pensar a Escola do Campo de
acordo com seus princípios e ob-
jetivos e sem tanta interferência da
BNCC. Contudo, acreditamos que é

195
Referências

ALENTEJANO, Paulo & FRIGOTTO, Galdêncio. Dicionário de Educação do


Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio, Expressão Popular, 2013. p. 257-264.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996.
BRASIL.
CALDART, Roseli Salete. Verbete Educação do Campo. In: CALDART, Roseli
Salete; PEREIRA,Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo & FRIGOTTO, Gaudên-
cio. Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
BRASIL. Decreto-lei nº 7.352, de 4 de novembro de 2010
RIBEIRO, Willian de Góes. Currículo e BNCC. Possibilidades? Para quem?.
[SYN]THESIS, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 44-53, jan./jun. 2018, p. 44-53.
Resolução CNE/CEB 1/2002 - Institui Diretrizes Operacionais para a Edu-
cação Básica nas Escolas do Campo. MEC: Brasília - DF, 2002. BRASIL.
Resolução CNE/CEB/2/2008 - Estabelece diretrizes complementares, nor-
mas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendi-
mento da Educação Básica do Campo.
MAGALHÃES, Jonas Emanuel Pinto. Competências Socioemocionais: Gê-
nese e Incorporação de uma Política Curricular no Ensino Médio. Revista
Multidisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão e Cultura do Instituto de
Aplicação Fernando Rodrigues de Silveira (CAp–UERJ), v. 10, nº 23, jan-abril
de 2021. In: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/e-mosaicos/arti-
cle/view/46754
https://institutoayrtonsenna.org.br/pt-br/BNCC/o-que-e-BNCC.html
https://www.anped.org.br/news/nota-anped-proposta-de-bncc-do-ensi-
no-medio-alguns-pontos-para-o-debate
MOREIRA, Antônio Flávio & SILVA, Tomaz Tadeu da. (Orgs) Currículo Cultu-
ra e Sociedade. São Paulo: Cortez, 1995.
SACRISTÁN, Gimeno. O Currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Ale-
gre: Artmed, 2000.

196
OS ELOS QUE A
EDUCAÇÃO DO CAMPO
CONSTRÓI
PARA UMA
FORMAÇÃO
ANTIRRACISTA
Ediléia de Carvalho Souza Alves 1
Suelen Pereira Estevam2

“Temos um sujeito que, ao falar de si, fala dos outros e,


ao falar dos outros, fala de si”.

1Doutora em Educação. Professora substituta na Licenciatura em Educação do Campo-UFR-


RJ. Membro do Grupo de Pesquisas GPMC. Pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa:
“Espaços Educativos e Diversidade Cultural” (CNPQ) no âmbito do Programa: Escolas do
Território” - IEAR/UFF. Parceira no OTSS e no Fórum de Populações Tradicionais de Angra,
Paraty e Ubatuba.
2 Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos
Contemporâneo e Demandas Populares PPGEDUC-UFRRJ. Licenciada em Educação do
Campo – UFRJJ. Membro do Grupo de PEssquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais
e Culturas – GPMC.

197
A construção de uma angústias confidenciadas, planeja-
bio-travessia mentos e sonhos de sala de aula,
a sala de aula da vida! Espaços e
Antes de adentrarmos nas momentos que nos aproximaram
questões que vão alinhavar este e nos constituíram neste lugar de
artigo, queremos compartilhar parceria nessa nossa bio-travessia.
uma breve história que se consti- Além da Educação do Campo,
tui em um lugar concebido por nós outro espaço em comum que nos
como bio-travessia. Uma bonita e aproxima e corrobora potencial-
afetuosa parceria que se dá nas mente para a construção das nos-
encruzas da vida. Duas mulheres sas subjetividades e identidades
que apesar de terem muitas coisas docentes no sentido teórico-políti-
e pautas políticas em comum (ain- co e militante é o GPMC. Pensar, por-
da que algumas dessas nem mes- tanto, nessas instâncias em cruzo é
mo soubessem), não se conheciam pensar também nos atravessamen-
pessoalmente até pouco tempo. tos que encharcam de sentidos e
Como o tempo aqui é algo que não significações as nossas realidades,
concebemos numa perspectiva uni- bem como a construção das expe-
lateral, esvaziada, mas como algo riências que vamos aqui apresen-
que pode e deve ser compreendido tar.
também de forma plural e cíclica, Seguimos, apresentando o ar-
sabemos que este encontro já ha- tigo que se insere no bojo das dis-
via se dado em outros planos, mui- cussões atuais sobre a proposição
to antes do físico se reconhecer. de uma educação antirracista e
Somos duas professoras uni- decolonial enfocando a localiza-
das por um elo: a Licenciatura em ção da escrita e das experiências
Educação do Campo da Universi- sociais de sujeitos racializados na
dade Federal Rural do Rio de Janei- universidade e suas sistemáticas
ro-UFRRJ. Não apenas pela pers- formas de apagamentos no con-
pectiva da partilha do espaço físico texto de produção do conhecimen-
deste lugar produzido pelos muitos to. Dessa forma, podemos afirmar
encontros nos corredores, nos in- que este trabalho é fruto do acú-
tervalos entre as aulas, nos mo- mulo de estudos, reflexões e deba-
mentos do café na cantina, nas ati- tes que foram feitos durante o de-
vidades acadêmicas, mas também senvolvimento de duas disciplinas
pela perspectiva simbólica, política ministradas pelas autoras deste
e afetiva produzida pela militância artigo, uma disciplina intitulada
em comum, pelas trocas informais “Pensamento Social Brasileiro”, ofe-
madrugadas a fora, inquietudes e recida no âmbito do Curso de Li-

198
cenciatura em Educação do Cam- esteira da concepção colonial-ra-
po da Universidade Federal Rural cial-eurocêntrica que até o presen-
do Rio de Janeiro- LEC-UFRRJ e a te reverbera nos debates etnicorra-
outra disciplina intitulada “Educa- ciais.
ção e Relações Etnicorracias na Es- Uma experiência que buscou
cola” oferecida pelo Departamento desenvolver e propiciar uma prá-
de Teoria e Planejamento de Ensino xis educativa sintonizada com a
DTPE – UFRRJ para as licenciaturas, perspectiva da “escrevivência” de
ambas no campus de Seropédica. Conceição Evaristo (Soares & Ma-
Soma-se a essas reflexões, o chado, 2017), compreendida aqui
próprio percurso formativo e ex- como uma metodologia que vai
periências proporcionadas pela muito além da escrita de si justa-
Licenciatura em Educação do mente porque não se esgota no
Campo, lugar de interseção entre próprio sujeito, mas que carrega a
as autoras, como já mencionado vivência da coletividade (Evaristo,
anteriormente. Deste modo, nos 2020). Por conseguinte, uma práxis
foi possível avaliar a abordagem e suleada pelo desejo de produzir
comprometimento político e peda- um conhecimento Outro, de/desde
gógico com os processos de lutas os sujeitos, rompendo assim com
das populações negras, campesi- a monocultura de um só saber no
nas, tradicionais e periféricas que contexto universitário, compreen-
o curso apresenta em seus funda- dendo o universo potente que se
mentos, sobretudo, no que concer- revela cada aluno quando o mes-
ne às questões intrínsecas ao seu mo se sente seguro ao entrelaçar o
caráter educativo e político. conhecimento teórico e seu conhe-
Trata-se de um ensaio elabora- cimento empírico e polifônico. (Wal-
do a partir da abordagem teórica sh, 2012; Backtin, 2004).
dos estudos etnicorraciais e de- Convém aqui ressaltar que
coloniais oferecidos nas referidas desde o início das disciplinas, uma
disciplinas onde pretendeu-se ar- das questões reafirmadas como
ticular os pensamentos produzidos centrais nos debates ali realizados
por tais correntes e as experiências foi a compreensão e a problema-
políticas e sociais vivenciadas pe- tização do racismo estrutural (Al-
los estudantes e as docentes. Uma meida, 2019) e o epistemicídio que
articulação compreendida aqui até hoje perdura no ambiente aca-
como de extrema importância para dêmico. Apagamentos de sujeitos,
a (des)construção do pensamento grupos, povos e suas epistemes.
social brasileiro hegemônico que Deste modo, propor escovar essa
foi produzido historicamente na história a contrapelo (Benjamin,

199
2015) foi um caminho que se conso- e de suas re-incrições epistêmicas,
lidou potente e contra hegemônico tendo como referência seus modos
para a desconstrução de um pen- de pensar-se enquanto sujeitos-
samento intelectual assentado so- -territórios-afrodiaspóricos e peri-
bre a hegemonia da branquitude féricos (Carvalho, 2023).
produzida pelo espelho eurocêntri- O diálogo aqui estabelecido,
co (Quijano, 2005), bem como para acrescidos de outros esforços on-
a consolidação de novos debates tológicos, desafiam-nos a pensar
e produção de um conhecimento sobre as experiências de produção
que se dá na insurgência dos mais de um conhecimento referencia-
diferentes sujeitos que, através das do na localização da escrita e das
suas escritas e experiências so- experiências sociais dos sujeitos
ciais, que se dão numa encruzilha- periféricos e afro-diaspóricos. Ins-
da de sentidos e experiências ter- tiga-nos a refletir sobre o caráter
ritoriais, identitárias e epistêmicas, urgente da promoção de proces-
fazem descobertas amplificadoras sos de enfrentamentos à monocul-
de si, de suas trajetórias racializa- tura da ciência moderna e a pers-
das, seus modos de ser e/ou estar pectiva que a universaliza como
no mundo. Assim, ao se descobri- único pensamento válido (Santos,
rem e se reconhecerem neste pro- 2009), que apaga a contribuição de
cesso de luta fronteiriça, enfrentam sujeitos e grupos no processo de
e subvertem lógicas construídas construção do pensamento social
sob a égide do racismo estrutural e e etnicorracial. Certamente, um de-
reconstroem suas subjetividades a safio nessa construção cotidiana
partir da noção de pertencimento de sala de aula repensando as fi-
etnicorracial (Carvalho, 2023). guras rígidas e do “como deve ser”
Sem dúvida, uma experiência e (Hooks, 2013), onde objetiva-se pro-
troca onde nos descobrimos com- mover processos educativos signifi-
panheiras, partilhando o fazer do- cativos e situados, em consonância
cente no cotidiano das aulas, o que com o “mundo da vida”, tendo como
nos permitiu subsidiar a análise, a referência o modo dos estudantes
espacialização e a visibilização dos se compreenderem enquanto terri-
conflitos sociais que marcam traje- tórios étnicos e/ou racializados (Ar-
tórias de sujeitos Outros dentro da royo, 2012).
universidade e que perpassa pelas O texto se encontra organi-
nossas trajetórias como universitá- zado da seguinte forma: em um
rias também, propiciando assim, a primeiro momento, abordaremos
construção de um saber emanci- o conceito de “escrevivência”, me-
patório a partir da re-autoria de si todologia utilizada pelas autoras

200
nas experiências realizadas, defen- sino superior.
dendo não apenas sua importân- Por fim, teceremos algumas
cia enquanto método investigativo, considerações que julgamos per-
sobretudo, enquanto lugar de rota tinentes para o debate aqui apre-
da escrita acadêmica, de produ- sentado.
ção de sentidos, de identidades e
de encantamento (Felisberto, 2020), Escrevivência: mais que um
potencializando, assim, as expe- conceito, uma metodologia,
riências sociais, bem como a circu- um lugar...
lação de saberes silenciados.
Em um segundo momento, Escrevivência, como afirma
discorreremos sobre nossas expe- Conceição Evaristo, escrita e vivên-
riências pedagógicas vivenciadas cia (Evaristo, 2020). Metaforicamen-
e produzidas em sala de aula. Tra- te poético, politicamente incisivo.
tam-se de práticas tramadas pela Falar de escrevivência significa fa-
relação dialógica promovida entre lar de dois lugares dos quais gru-
nossas experiências sociais (dis- pos e sujeitos racializados foram
centes e docentes juntos nessa bio- produzidos historicamente como
-travessia) e as discussões teóricas inexistentes em detrimento de uma
e políticas presentes no referen- hegemonia mantida pelo pacto
cial antirracista que mergulhamos narcisista da branquitude (BENTO,
ao longo das referidas disciplinas. 2022).
Sem dúvida, construções que apon- Seja do ponto de vista da es-
tam para a reflexão insurgente em crita racializada, cujos mecanismos
torno das experiências territoriais de exclusão intelectuais, ainda vi-
e racializadas que evocam a força gentes, incidem sobre a ortografia,
e a potência da coletividade. sobre a letra, sobre os signos, inter-
Em um terceiro momento, te- pelando toda e qualquer forma de
ceremos uma análise dessas expe- possiblidade de intervenção social
riências em sala de aula à luz dos sobre a língua e seus signos. Seja
pressupostos teóricos da perspec- do ponto de vista da vivência que,
tiva decolonial e das relações et- dentre muitos outros aspectos,
nicorraciais, buscando destacar aponta para confrontos entre con-
alguns aspectos que elucidam a cepções de saber sobre sujeitos e
contribuição deste fazer-ser do- sociedade historicamente legiti-
cente comprometido com uma madas e outras concepções silen-
práxis pedagógica transgressora ciadasLogo, falar de escrevivência
e promotora de um conhecimento é falar também de “rota da escrita
emancipatório e antirracista no en- acadêmica”, de “produção de sen-

201
tidos”, de identidades e de “encan- A escrevivência das mulheres
tamento”, potencializando assim, a negras não precisa mais disso.
Nossas histórias e escritas se
circulação de saberes silenciados,
dão com o objetivo contrário:
tal como afirma Felisberto (2020). incomodar e acordar os da ca-
Em entrevista concedida a Re- sa-grande. Não estamos aqui
vista Eletrônica da PUC-RS (2019), para ninar mais ninguém nem
Conceição Evaristo afirma que o apaziguar as consciências.
(EVARISTO, Conceição. “Esse lu-
conceito de escrevivência é algo
gar também é nosso”, entrevista
que ela já vinha “maturando” ao lon- concedida à Revista Eletrônica
go do tempo. Em sua dissertação da PUC-RS, 2019. Disponível em:
de mestrado, Evaristo fez um jogo https://www.pucrs.br/revista/
de palavras entre escrever, viver, esse-lugar-tambem-e-nosso/ )

escrever-se, vendo e escrever, ven-


do-se e foi daí que surgiu a pala- Ao se debruçar sobre o pensa-
vra “escreviver” que, tempos depois, mento evaristiano, Felisberto (2020)
ganhou o sentido de escrevivência, afirma que a escrevivência pode
tornando-se hoje uma práxis tex- ser compreendida como o compro-
tual nos trabalhos acadêmicos, so- misso de incorporar o pensamento
bretudo, nos estudos atuais sobre das mulheres negras e seus dese-
as relações étnico-raciais. jos no contexto do pensamento
Conceição Evaristo afirma científico, contribuindo assim para
também que o termo tem como a promoção de saberes emancipa-
imagem fundante as africanas e tórios, capazes de incomodar os
suas descendentes escravizadas sujeitos da “casa-grande” de seus
dentro da casa-grande. Uma das “sonos injustos” (Evaristo, 2020).
funções dessas mulheres escra- Neste sentido, compreendemos
vizadas era contar histórias para que a perspectiva da escrevivência
adormecer os meninos, filhos dos corrobora potencialmente para a
senhores e senhoras. A palavra das produção de construção de conhe-
mães pretas e bás era domesticada cimentos intelectuais suleados por
na medida em que tinham que usá- processos individuais e coletivos
-la para acalentar esses meninos. impregnados de sentidos, signos,
Após todo um histórico de luta e experiências instituintes e consti-
re-existência que se perdura até os tuintes de subjetividades forjadas
dias atuais, podemos afirmar que no deslocamento de um sentimen-
hoje, a palavra e a vivência das mu- to de subalternidade para o da in-
lheres negras têm ganhado outro surgência política.
sentido e significado na sociedade. Outra importante contribui-
Nas palavras de Evaristo (2019): ção da escrevivência se refere àqui-

202
lo que Conceição Evaristo vai falar Construindo e “Escrevivendo”
enquanto um lugar de expurgação experiências afro-diaspóri-
pessoal e coletiva. A autora afirma cas-periféricas em sala de
que enquanto escrevemos nossas aula
memórias, embora grande parte
destas estejam impregnadas de ex- Escrever sobre nossas expe-
periências dolorosas, afirmamos a riências sociais, de fato, não é um
nossa potência, a nossa resistên- exercício muito confortante. É pre-
cia e a nossa resiliência, o nosso ciso audácia e coragem. Um tanto
quilombismo (Evaristo, 2020). Neste de resignação diante da dor que
sentido, compreendemos que, en- um texto pode nos causar. E se tem
quanto nos afirmamos neste lugar um lugar capaz de suscitar as pio-
da escrita racializada, produzimos res dores a quem vem de territórios
outros signos e sentidos a produ- periféricos, de contextos e históri-
ção de construção do conhecimen- cos de vida marcados pela espo-
to, como também outra relação liação racial, social e de gênero é
com essa construção, a do prota- o ambiente universitário. Desde as
gonismo, o da reterritorialização, dificuldades e percalços enfrenta-
o da re-autoria e o da re-inscrição dos no processo de ingresso: você
epistêmica. precisa provar que é negra quando
Trata-se de uma forma afroan- não se é retinta, atestar pobreza,
cestral de compreensão que não mesmo tendo sido negado a você
apenas democratiza o processo de o direito de cursar o ensino supe-
construção do conhecimento como rior em detrimento da necessida-
acrescenta a necessidade de cons- de do trabalho para sobreviver, até
truir saberes pedagógicos a partir os descasos e personificação do
da experiência. Como afirma Can- estado de violações de direitos no
dau (2020), uma interlocução neces- que tange às nossas permanências
sária e situada numa perspectiva (e são muitos). Tudo é muito difícil,
de orientação à desconstrução do mas para alguns é ainda mais!
formato padronizador dos currí- O sistema é branco, patriar-
culos e das práticas pedagógicas, cal, elitizado, sexista e excludente.
questionando a colonialidade pre- A colonialidade do poder decora
sente nas culturas escolares e uni- paredes e mantém o status quo de
versitárias, ao reconhecer os sabe- sujeitos, grupos e seus cursos privi-
res insurgentes existentes nestes legiados socialmente. O racismo e
espaços, oriundos dos grupos so- o preconceito de classe chegam na
ciais subalternizados e inferioriza- Licenciatura em Educação do Cam-
dos na nossa sociedade. po, impactando seu corpo discente

203
formado majoritariamente por su- “Meus pais criaram 8 filhos, com
jeitos oriundos de territórios tradi- muita luta, como diziam. Cada
um, de certa forma, tinha seu
cionais, periféricos e camponeses.
modo de ler a realidade do pon-
Os depoimentos que seguem, frag- to de vista de suas vivências.
mentos de textos de escrevivências Todos os filhos frequentaram a
dos/as estudantes produzidos no mesma escola, a única escola
âmbito das experiências aqui abor- pública do bairro, porém aos
poucos foram abandonando
dadas, retratam bem isso:
os estudos para trabalhar. Con-
segui iniciar o segundo grau, os
“Quando olho para a trajetória cursos ofertados na rede públi-
que estou construindo dentro e ca eram contabilidade e forma-
fora da universidade, percebo- ção de professores, mas no final
-me “privilegiada” por cursar a a grande maioria, formados ou
Licenciatura em Educação do não, eram absorvidos pelo co-
Campo na UFRRJ. Isso porque mércio. No meu caso, fiz forma-
temos no curso uma das gra- ção de professores, trabalhava
des curriculares mais comple- durante o dia como empregada
tas e contra-hegemônicas, em doméstica e estudava à noite,
comparação aos demais cur- porém minha mãe adoeceu e
sos desta mesma Universidade. sem trabalhar ficou difícil con-
O referido curso, valoriza, dá tinuar estudando. Perdi um ano
ênfase, promove o pensamento escolar, pois muitas vezes ia a
crítico e decolonial. Está com- pé ou não tinha dinheiro para
prometido com um projeto de o transporte, vivia sob pressão
educação popular, acessível pois precisava do trabalho,
e de qualidade. Reconhece-se mas sabia que precisava es-
como um agente político de tudar. Hoje, eu estou aqui na
transformação no combate ao universidade. Não é fácil. Uma
racismo e às formas de opres- mulher na minha idade. Negra
são em todas as suas atuações e nordestina. Você precisa se
e esferas. Ocorre que, às vezes, afirmar o tempo todo, sabe?
nós (discentes) não estamos Eu sempre soube que era po-
preparados para a enxurrada bre e nordestina, mas a minha
de informações e aportes teó- negritude só passo a tomar
ricos que recebemos e que nos consciência dela de forma po-
direcionam para um movimen- sitiva agora! Na educação do
to de construção, desconstru- Campo! Ler essas autoras (Bell
ção, reconstrução, dissolução Hooks, Conceição Evaristo, Lé-
e criação. Fato social que se lia Gonzalez) foi um divisor de
explica pelas sistemáticas for- águas na minha vida!” (setem-
mas de exclusão que sofremos bro de 2022)
ao longo da vida” (setembro de
2022).
Os escritos das estudantes
apontam para um “lugar comum”

204
no contexto das narrativas que le- “Eu-Mulher” que nos descreve
mos e ouvimos em nossas salas de como “fêmea-matriz., força-mo-
triz, abrigo da semente moto-
aula: “os sistemáticos processos
-contínuo”. “Eu-Mulher”, sim-
de exclusão social-racial”. Lugares boliza a força que nunca me
estes que muitas vezes coincidem disseram ter, mas que eu sem-
também com as nossas próprias pre soube existir e ser! Não sei
histórias de vida e trajetórias até se pelas temáticas, palavras ou
vivências que temos parecidas
chegarmos à universidade. Para re-
- como mulheres pretas e dia-
sistirmos, portanto, a toda forma póricas - foi instantâneo e ful-
de expropriação social que sofre- minante minha identificação. E,
mos ao longo da nossa existência, exatamente por se tratar des-
faz-se necessário nos aquilombar- sas autoras, sinto-me livre das
“conveniências e convenções”,
mos, construirmos redes, irmanda-
antes, convidada (e convidan-
des, práticas de autocuidado e de do) a tirar os chinelos, esticar
cuidado com os nossos e nossas. os tendões e pisar na terra. Ir
O exercício desses escritos relata fundo nas memórias construí-
esses encontros e acolhidas e con- das pelo exercício da escuta, a
mesma escuta que Conceição
solidam a escrevivência enquanto
Evaristo e Bell Hollks afirmam
uma epistemologia que refuta o su- ter forjado suas competências
jeito universal das narrativas mo- de escrita. (setembro de 2022).
dernas, ao mesmo tempo em que
propõe um modo de pesquisar pelo Aqui compreende-se a impor-
encontro, pelo giro afetivo e epistê- tância do conhecimento afrocen-
mico (Oliveira, 2022). trado e ancestral para o pleito das
nossas pautas e lutas. A escrevi-
Quando li as obras sugeridas, vência, neste sentido, emerge como
descobri um mundo, uma leitu-
uma rota da escrita acadêmica da
ra que me abriu feridas, limpou
e nutriu com unguentos pode- qual Felisberto (2020) nos provoca
rosos. Encontrei uma mão es- a pensar. E, para tanto, pensar o
tendida, um ombro amigo, um alargamento de correntes teóricas
colo e um abraço como quem comprometidas com a luta antir-
diz: “Bora lá minha filha! Vamos
racista, privilegiar o pensamento
querer!”. Não se tratava apenas
de empoderar-se, mas de en- de mulheres negras enquanto um
trar em sinergia e retribuição campo epistemológico, e de como
(setembro de 2022). esse ativismo político e acadêmico
protagonizado por essas mulheres
Um pouco mais à frente, o fe- tem feito toda a diferença na nos-
liz encontro com Conceição
sa formação enquanto docentes
Evaristo e com a sua poesia
e discentes, sujeitos em formação

205
por toda vida, é, sem dúvidas, de perspectiva interseccional,
extrema importância. É justamente não o “encaixotando” de forma
dogmática, como pilares ba-
neste contexto e processo de bus-
sais intocáveis, mas sim, como
ca que propusemos o mergulho nos uma consequência, uma tática
pensamentos de Conceição Evaris- de desumanização dos seres.
to, Lélia González e Bell Hooks. Tra- Problematizando o quanto os
mando, articulando, existindo, in- estigmas produzidos neste pro-
cesso são normatizados, críveis
sistindo, frutificando e fertilizando.
e prevalentes. Sua indexação
A escrita abaixo, para onde a estu- a estrutura é algo indissolú-
dante direciona seu hálito e grafia, vel da estrutura de Leis e do
reflete bem isso: próprio Estado que as desig-
nam, tal como as cracas que
Ler os escritos de Lélia, Hooks no mar grudam nos navios e
e Evaristo torna-se uma expe- plataformas de petróleo cons-
riência pessoal construtora e truindo suas colônias, dando
constituinte por me perceber um aspecto simbiótico e code-
em diversos momentos dos pendente, de modo que não
seus textos. A minha história, a se consegue -à primeira vista
história dos meus. Aquilo que - desvencilhar o artrópode da
nos atravessa e nos faz irmãs estrutura ao qual ele se hos-
e irmãos na luta. Aquilo que peda. Assim como é notória a
nos difere, mas que não nos dificuldade em se remover as
distancia, pelo contrário. Um cracas de seus “hospedeiros”
paradoxo, pois ao mesmo tem- com suas colônias calcificadas
po em que me alegro por me e estabilizadas, igualmente é
sentir representada, ponho-me dificultoso extrair o racismo
triste por saber as razões que da estrutura e desigualdade
me fazem identificar-me. O inte- de gênero, sobretudo, quando
resse e conforto intelectual que os fenômenos atravessam a
agora tenho em Lélia, Evaristo existência de mulheres pretas.
e Hooks, embora tardio dentro Todavia, compreendo, a partir
da minha noção de tempo, e da leitura dessas e sobre essas
digo isso pela grande sensa- mulheres, não ser impossível!
ção que deveria tê-las conhe- Para tanto, confrontar o racis-
cido antes e principalmente de mo e as dores que ele nos cau-
como faria diferença ter lido sa, levando-nos muitas vezes a
suas obras nos anos iniciais da desistir de dar prosseguimento
minha vida, o que me pouparia à luta e a caminhada é preciso
de muito choro e baixa autoes- e urgente! É educativo! É políti-
tima. (setembro de 2022). co! (setembro de 2022)

Aprendi com Lélia, Bell Hooks Na direção do que a estudan-


e Evaristo a olhar para a ques- te traz em sua narrativa, é preciso
tão do racismo estrutural numa
falarmos aqui sobre o movimento

206
de ocupação e empretecimento do processo contínuo de me des-
espaço universitário (questão que cobrir mulher negra e periféri-
ca e para cada linha escrita, um
atravessou todos os relatos) que,
tanto de cada uma delas. Tal
ainda hoje, é forjado pela coloniali- como Lélia e Conceição Evaris-
dade do poder, por sentidos de dis- to, mulheres que compartilham
puta e um conhecimento que vem conosco cotidianamente suas
de forma vertical. Um exemplo des- vivências, experiências, intelec-
tualidades e que, principalmen-
sa constatação pode ser visto na
te, semeiam em nós o despertar
manutenção de aportes teóricos para o empoderamento negro
eurocêntricos, brancos e patriar- feminino, a vontade do perten-
cais que deslegitimam, silenciam e cer e do referenciar. (setembro
apagam vozes e histórias de dife- de 2022)

rentes culturas, sujeitos e grupos,


Essas autoras negras chegam
desconsiderando suas epistemes, para mim e a muitos outros co-
formas de ser e estar no mundo. legas de graduação, como tí-
Promover, portanto, processos de midas protagonistas, no passo
rasuras decoloniais neste tecido manso, inseridas dentro de um
conteúdo... Entre uma discipli-
social epistêmico é um exercício
na e outra, transitam em meio a
que precisa estar presente na prá- outros autores delineando uma
tica pedagógica de sala de aula de perspectiva e olhar. O protago-
todo docente comprometido com nismo tímido a que me refiro
uma educação antirracista. Veja- tem a ver ainda com um nível
de resistência a utilizá-las de
mos a importância desse movimen-
forma mais profunda, extensi-
to político nos escritos das estu- va e difundida. Resistência tal-
dantes abaixo: vez causada pelo desconforto
que algumas de suas posições,
Com Evaristo, aprendi sobre a apontamentos e contribuições
importância de reconhecermos (tal como a força vital dessas
os lugares de nascimento da mulheres) geram ao refletir so-
nossa escrita, sobretudo, o da bre aspectos formadores da
escrita racializada, carregada sociedade brasileira ao longo
de sentidos e memórias de per- de suas historiografias. (setem-
tencimento. Com Lélia, ances- bro de 2022)
tral e contemporânea, aprendi
sobre o sentido de “sankofa”, do Os escritos das estudantes
voltar atrás e buscarmos o que
levam-nos a constatação daqui-
esquecemos ou o que nos obri-
garam a esquecer. Obviamente lo que não se configura como no-
que existiram e existem outras vidade para nós, pelo contrário. A
mulheres grandiosas, que me presença de um epistemicídio na
inspiraram e inspiram nesse nossa produção intelectual, sobre-

207
tudo, quando pensamos na produ- ou superado. Compreendemos que
ção advinda dos/das intelectuais os saberes construídos durante as
negros/as. Onde mais temos o pri- aulas são sementes plantadas an-
vilégio e alegria de ler as obras e tes das nossas chegadas e com o
pensamentos de Lélia Gonzalez? encontro desabrocha e transborda
Conceição Evaristo? Grada Kilom- sala a fora, universidade a fora e
ba? Maria Carolina de Jesus? Sue- vida a dentro. Conhecimentos con-
li Carneiro? Fernanda Felisberto? tra-hegemônicos, produzidos de e
Bell Hooks? Mulheres cujas produ- desde os sujeitos, que nos ensinam
ções, histórias de vida e atuações sobre germinar e transfluir, como
políticas na educação, na cultura, afirma o escritor quilombola Bispo
nos Movimentos Sociais imprimem dos Santos (2015, p.89).
resiliência, força, denúncia e anún- É nesta perspectiva de
cio. Rompem com os estigmas não construção de uma sala de aula que
apenas socioeconômicos, sobretu- desabrocha, transborda e transflui,
do, racistas que classificam os su- que situamos a experiência
jeitos enquanto bons e maus, feios da escrita criativa enquanto
e bonitos, cultos e ignorantes, supe- proposta avaliativa das respectivas
riores e inferiores (Munanga 2004). disciplinas. Pensada no contexto
Nesta tessitura cotidiana com- de construção da perspectiva da
plexa, tecida no chão de nossas escrevivência, tendo como mote
salas de aula, mas também fora o coletivo, propor uma avaliação
dela, os saberes, o conhecimento, individualizada e formatada pelos
as identidades, gênero, raça e clas- padrões da cultura universitária e
se… todas essas questões e pautas escolar, não fazia nenhum sentido.
embalam um movimento contínuo, Era preciso irmos além. Sermos
transitando em assuntos e ritos coerente com tudo o que foi
que se pretendem muito menos vivenciado ao longo dos encontros.
acadêmicos e muito mais próximos Já tendo nos aproximado da
daquilo que temos por referência perspectiva da escrita criativa em
simbólica e afetiva: o nosso territó- oficinas de escrevivência, muito
rio e a nossa oralidade. Tudo muito inspiradas por importantes edu-
bem desenhado e demarcado pela cadoras negras como a professora
representação e representativida- Joselina da Silva da Licenciatura
de dos sujeitos que por ali circu- em Educação do Campo da UFR-
lam e deste espaço, agora fazem RJ e a autora Elaine Marcelina do
parte. Contudo nada é fixo e tudo MNU do Rio de Janeiro, optamos
que ali está também pode, de certa por trazer essa proposta como ins-
forma, ser continuado, aprimorado trumento avaliativo de todo o pro-

208
cesso vivenciado em sala de aula. de maneira atroz. Dessa forma,
A quimera desta avaliação propomos uma prática avaliativa
com a metodologia da escrita cria- nada convencional como forma de
tiva, passa pela máxima da ação pensarmos, sobretudo, a educação
coletiva dos movimentos sociais, bancária competitiva e individua-
que são os grandes parceiros da lista que nos é imposta por anos.
consolidação da Educação do Onde importa menos o conheci-
Campo enquanto licenciatura. Me- mento apreendido e a perspectiva
todologia esta que na bio-travessia do coletivo e importa mais o desen-
experimentamos a práxis do hino volvimento do individualismo e da
“Companheira me ajude que eu não competitividade.
posso andar só, eu sozinha ando Ainda no que tange a essa
bem, mas com você ando melhor!”. perspectiva de avaliação, com-
Se é na partilha que o conhecimen- preendemos que o ato da partilha
to se multiplica por que perpetuar de conhecimento verbal é ancestral
a avaliação individualizada? e nos coloca em um lugar de confor-
Desse modo, a proposta para to. O lugar da escrita, por sua vez,
as turmas era que a avaliação teria gera insegurança e ser avaliado nos
um texto base para estudo, no ato retoma o medo da não-suficiência,
da avaliação o primeiro parágrafo transgredir as práticas curriculares
seria iniciado pela pessoa que as- é a forma mais difícil de vulnerabili-
sinaria a prova, depois de vinte mi- dade pela qual o professor/a preci-
nutos a prova seria partilhada com sa ter coragem para assumir como
outro colega da sala, depois de nos fala Hooks (2017). Seguir na ma-
mais vinte minutos ela rodaria no- nutenção do sistema já imposto,
vamente e no fim o aluno receberia resguarda essa figura cânone do
a prova de volta, leria tudo e faria que é ser professor/a, romper com
a conclusão. A reação dos alunos um sistema colonial epistêmico, he-
passava pelo risos altos e caras gemônico e castrador é um desafio
de espanto. Entre outros questio- até mesmo para os discentes que
namentos, o maior deles era: Mas, dizem ansiar por este professor/a
professora e a nota? revolucionário, mas os próprios
Somos ensinadas ao longo do alunos tem suas dificuldades de se
processo formativo que a maior inserirem no projeto inovador. Foi
nota significa aprovação nas vagas possível percebermos isso, sobre-
mais almejadas, logo a competiti- tudo, em relação aos estudantes de
vidade acadêmica se inicia antes outras licenciaturas.
mesmo da tão sonhada aprova- Rompida essa barreira inicial,
ção no vestibular e nos entrelaça a escrita criativa enquanto meto-

209
dologia prática e avaliativa da es- dinâmicas que refletem uma estru-
crevivência coletiva, tirou-nos da tura colonial tanto do ponto de vis-
inércia que os padrões coloniais ta de quem são considerados seus
sobre a linguagem, escritos e seus principais intérpretes- homens
signos academicistas nos sujeitam. brancos, formados por uma base
Ao serem provocados a pensarem de educação europeia e oriundos
a escrevivência enquanto o lugar das classes dominantes- quanto do
da “escrita de nós, e por nós”, seja ponto de vista do próprio conheci-
pela sua dimensão ética, política, mento produzido, em razão disso
subjetiva… A compreendê-la como foi necessário as implementações
uma perspectiva teórica-metodoló- das leis !0.639 e 11.645 para que hou-
gica capaz de promover uma rasu- vesse o questionamento do mito da
ra no tecido colonial epistêmico, os democracia racial e seus malefícios
estudantes foram conduzindo suas na educação da sociedade brasi-
próprias rotas de navegação den- leira.
tro da disciplina e da avaliação. As Ao olharmos para o contexto
estudantes negras e oriundas de sociocultural e político das temá-
territórios periféricos, por exem- ticas abordadas nas duas disci-
plo, ao partilharem suas experiên- plinas pelas lentes da perspectiva
cias, foi possível percebermos seus decolonial e antirracista, vislum-
modos de construção coletiva de bramos um emaranhado de ques-
cuidado com o seu quilombo pe- tões políticas e sociais que de-
riférico. E, neste sentido, a prática nunciam um padrão de poder que
de uma escrita compartilhada de- opera através da naturalização de
monstrou ser a maior ferramenta hierarquias territoriais, raciais, cul-
dessas estudantes contra um sis- turais e epistêmicas que imprime
tema de opressão estrutural e suas às Ciências Sociais e Teorias de
políticas de extermínio. Ensino, bem como ao próprio pro-
jeto universitário, uma imagem dis-
Construindo um saber torcida pelo espelho eurocêntrico
decolonial, emancipatório e (Quijano, 2005). Outrossim, identi-
antirracista em sala de aula ficamos na proposta de uma edu-
cação decolonial, justamente por
Os debates promovidos nas suas inovadoras contribuições in-
disciplinas Pensamento Social Bra- telectuais no campo educacional,
sileiro e Educação e Relações Étni- elementos fundamentais para não
coraciais na Escola que ainda hoje só questionar a vigência da colo-
é privilegiado dentro do projeto uni- nialidade nos planos do existir, do
versitário mantém as hierarquias e poder e do pensar, mas também

210
porque construíram estratégias de que muitas vezes está a serviço da
formação-militância-investigação reprodução desses conceitos – “bra-
profundamente emancipadoras e sileiro é um povo cordial”; “não tem
antirracistas. racismo no Brasil”; “por aqui somos
A experiência proporcionada todos iguais”. Discursos forjados na
pela subversão do modo “tradicio- esteira da colonialidade do poder
nal” de ensinar e aprender, deno- (Gomes, 2017).
tam o quanto educador e educan- Cabe aqui enfatizarmos tam-
do promovem trocas e experiências bém que não há como falarmos em
que dentro de um espaço cartesia- escrivências sem mencionarmos
no não seria possível. Assim, a es- um aspecto que se sobressai nesse
crevivência produzida por sujeitos mergulho empírico: o falar-pensan-
e grupos marginalizados é trans- te. Enquanto narramos e escreve-
formado em ferramenta contra-co- mos sobre a nossa própria histó-
lonial e aliada de uma educação ria de vida, experiências, vivências
emancipatória, libertadora e antir- demarcamos o lugar de onde nos
racista. anunciamos, perpassamos pelos
Quando traçamos um parale- nossos arcabouços de sentidos,
lo com o que foi proposto teórica significações e produções de sub-
e metodologicamente e os assun- jetividades em coletividades e em
tos discutidos nas referidas disci- partilhas. Quando nos atrevemos
plinas, fica ainda mais evidente o a dialogar com este território que
quão racista foi (e continua sendo) nos constitui e institui, retomamos
o processo de formação do pensa- aos valores civilizatórios que nos
mento social brasileiro e o apaga- fundamentam, que fundamentam
mento da história e cultura afro- a existência do nosso povo pre-
-brasileira e africana e história e to, quilombola, indígena, caiçara,
cultura afro-brasileira e indígena camponês, periférico… A experiên-
na educação básica. Aspectos que cia aqui não só vivenciada pelos
apontam para o quanto o racismo estudantes, mas também por nós,
fundamenta as relações sociais e enquanto docentes, neste movi-
contribuem para o ideal de socie- mento embalado por um vir a ser
dade que temos. constante, reflete que ao escrever-
Diante disso, pensar a cons- mos e refletirmos sobre as nossas
trução social do Brasil é, antes de experiências que se materializam
tudo, desligar-se de conceitos e em fortes e significativas lembran-
“verdades” introduzidos em nossas ças pessoais e coletivas, lugares de
vidas desde nosso primeiro conta- dores e de sonhos embalados pelo
to com a escola. Aliás, escola essa esperançar imperativo existencial

211
e histórico do qual afirma Paulo a partir do próprio mundo em que
Freire (2003), somos também convi- vivemos e das epistemologias que
dados a pensar sobre a lógica de lhes são próprias, deslegitimando
distribuição desigual da condição e negando outras formas de saber,
ontológica, a partir da noção ilumi- advindas dos grupos e sujeitos su-
nista de humanidade a que fomos balternizados (Walsh, 2012, Carva-
submetidos historicamente (Olivei- lho, 2023).
ra, 2023).
O falar-pensante aqui contri- Considerações de uma
bui para que possamos entender a parceria para além da sala
nós mesmos e aos diferentes con- de aula
textos em que estamos inseridos.
Compreender as muitas realidades Este texto, fala de um lugar
e como elas se constroem social- que se constitui em um encontro
mente, sobretudo, a importância de parceria, ao que chamamos de
do nosso compromisso político e bio-travessia, rotas de navegação,
pedagógico com aqueles que esta- grande kalunga. Neste movimento
mos formando e por quem também constante de construção docente
somos formados. Numa relação que não se dá pelos meandros ca-
dialógica e constante, em um pen- nônicos, por uma questão de po-
sar-atuar-militante. Esse pensar da sicionamento político destas que
experiência que trazemos, à medi- aqui escrevem, mas sim pelas suas
da que olhamos criticamente para afirmações enquanto militantes
a nossa própria realidade, faz com educadoras. Que fazem seus re-
que nos percebamos enquanto “su- cuos, esquivas, escutas, defesas e
jeitos de transformação”. giros sobre o que trazemos e como
Outrossim, compreendemos trazemos para a nossa escrita. Um
que toda a “diversalidade epistê- exercício perene de atenção e sen-
mica” potente nestas experiências sibilidade diante do nosso compro-
foram por muito tempo despreza- misso em educar e transgredir com
da no contexto do pensamento tudo aquilo que foi construído na
científico e ainda é (Oliveira, 2016). esteira do discurso colonial-racial.
Revelando que, para além do lega- Ao realizar essa subversão
do de desigualdade e injustiças so- do modo “tradicional” de ensinar
ciais, há um legado epistemológico e aprender, educadoras e educan-
do eurocentrismo compreendido dos promovem trocas e experiên-
aqui como uma perspectiva hege- cias que dentro de um espaço car-
mônica do conhecimento que nos tesiano não seria possível. Assim, a
impede de compreender o mundo sala em roda, a descentralização

212
da figura das docentes, uma biblio- grupos sociais à universidade, con-
grafia referenciada em intelectuais trariando toda forma de sistema-
negras, discussões potencializadas tização do processo de exclusão
por músicas e poesias produzidas e epistemicídio, coloca em pauta
por esses grupos marginalizados, a necessidade de enfatizarmos às
são transformados em ferramen- insurgências sociais, políticas e
tas pedagógicas contra-coloniais e epistêmicas destes sujeitos e per-
aliadas de uma educação emanci- cebê-los como potentes orientado-
patória, libertadora e antirracista. res de uma mudança no intuito de
As experiências aqui compar- interculturalizar e descolonizar as
tilhadas, que fazem também des- estruturas e as instituições do Es-
se artigo um texto “escrevivente”, tado, tal como afirma Whalsh (2012).
foi uma tentativa de buscarmos E neste sentido, a escrevivência se
construir uma práxis sintonizada inscreve como um potente caminho
com a perspectiva decolonial no para a produção de modos de sub-
cotidiano do nosso fazer docente, versão da produção do conheci-
acreditando no potencial que foi mento no ensino superior.
e está sendo este encontro que as Quanto a nós, que seguimos
encruzilhadas da vida nos propor- atravessando e sendo atravessa-
cionou. Sem dúvida, práticas que das pela formação e em formação...
nos permitiram e permitem produ- na metamorfose, neste entrelace,
zir uma reflexão coletiva sobre os em um processo contínuo de des-
projetos de escola e de universida- construção e reconstrução. Só que
de existentes em nossa sociedade, agora não mais sós! Somos elas e
bem como na produção do conhe- com elas... Lélias, Conceição, Bells...
cimento e do pensamento social Somos nós professoras transfor-
brasileiro valorizado e legitimado, madas por nossos alunos e por
onde ainda é possível constatar o esta Educação do Campo que nos
apagamento histórico e social so- faz elos e pontes em meio as lutas
frido por grupos étnicos e culturais. para a construção de uma socieda-
Em linhas gerais, defendemos de antirracista.
e afirmamos que a chegada desses

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