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GUERRAS

Organizador
Pedro Fiori Arantes

CULTURAIS
Autores
Amanda Alves
Amanda Feo
Ana Beatriz Tavares Barbosa
EM VERDE E AMARELO Ana Laura Brait
André Okuma
André Zaparoli Bertellotti
Bruna Andrade
Cristina Naiara Fernandes
Diego Lorena
Gabriela Ferreira
Giulia dos Santos Nascimento 3
Gustavo Almeida Alves
Isabella Mendes Marques dos Santos
Josiane Garotti
Júlia Rodrigues Borges
Kamilla Dourado
Keyla Vasconcelos de Melo
Larissa Avelino
Larissa Flauto
Lucius Goyano
Marcelo Lauton de Oliveira
Maria Luiza Meneses
Melissa Maria dos Santos Alejarra
Melissa Tavares
Nicole Pinheiro Santos
Paloma Monteiro
Paloma Oliveira
Pamela Silva
Patrícia Pinheiro Antunes de Paula
Pedro Fiori Arantes
Rebeca Nieves Inostroza Carreño
Este livro é resultado da UC Eletiva Guerras Culturais: Regimes
Visuais da Política Contemporânea, ministrada entre setembro e
dezembro de 2022 pelo Prof. Pedro Fiori Arantes e Monitor PAD
André Okuma, na EFLCH/Unifesp, Campus Guarulhos.

Coordenação editorial: Pedro Arantes


Projeto gráfico: Melissa Tavares e Pedro Arantes
Tratamento de imagens: Pâmela Silva
Diagramação: Pedro Arantes, Melissa Tavares e Amanda Alves
Capa: Melissa Tavares
Contracapa: (1) Grafite de Angelo Campos, Vila Cruzeiro, Rio. (2)
Escadaria Marielle Franco, Pinheiros, São Paulo, grafite organizado
pela casa da Lapa, Rede de Graffiteiras Negras do Brasil, projeto
Inki Dudu e artistas independentes: Monica Ancapi, Lady Guedes,
Lau Guimarães, Meneses, Negana, Patricia Bonani, Folego, Majo,
Isa Brisa, Gabi Bruce, Lhama Verde, Caju, Bea Corradi, Luna Bas-
tos, Thaina India, Badu. Lambe-lambe feito pelo Raul Zito.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

4
Guerras culturais em verde e amarelo [recurso eletrônico] / Org. Pedro Fiori
Arantes. -- São Paulo : Universidade Federal de São Paulo, 2022
PDF
ISBN 978-65-00-58227-7
Estudos dos estudantes da UC Guerras Culturais EFLCH/Unifesp 2º.
Sem/2022.
1. Conflito cultural – Brasil. 2. Cultura e política. 3. Fascismo e cultura. 4,
Direita e esquerda (Ciência política) – Brasil. I. Arantes, Pedro Fiori, 1974-.
II. Título.
CDD 303.61

Elaborado por Cristiane de Melo Shirayama – CRB 8/7610

Esta obra tem licença Creative Commons internacional 4.0


http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/

UNIFESP | UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO


EFLCH | ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
Estrada do Caminho Velho, 333
07252-312 | Guarulhos, SP
guarulhos@unifesp.br | [11] 3385-4100
Sumário

7 Apresentação: no campo de batalha

19 Capas de combate: a guerra contra o PT

25 Um míssil para destruir Brasília: a arte de


guerrilha a partir dos infláveis
5
31 Moda bolsonarista: identidade e propaganda

37 Memetização da política: imagens e humor na


extrema direita

43 A direita no universo gamer: repercussões do


jogo Last of Us 2

49 Masculinidade tóxica e o corpo-bombado


bolsonarista

55 Ataques ao movimento feminista e


criminalização do aborto

61 O Templo de Salomão e a estética da teologia


da prosperidade
67 Agronejo e o sertanejo como braço cultural do
bolsonarismo

73 Apropriação da estética de periferia em “funk de


direita”: MC Reaça e O proibidão do Bolsonaro

79 A pintura bolsonarista: entre o kitsch e a arte


de propaganda

85 O inimigo político nas obras de Lucimary


Billhardt
6
91 Brasil Paralelo na guerra cultural da educação

97 Primavera secundarista X Escola sem partido

103 Simbolismo nazifascista na comunicação


bolsonarista
Apresentação temas importantes para que possam aprovei-
tar melhor os artigos produzidos pelos/as estu-
No campo de batalha dantes. Vamos fazer uma breve introdução às
Guerras Culturais e explicar por que estudá-las.
Talvez esse trecho seja denso, com algumas re-
Prof. Dr. Pedro Fiori Arantes ferências históricas e teóricas, mas achamos
Doutorando André Okuma (Monitor PAD) importante situar a discussão, antes dos estu-
dantes mergulharem com vocês nas diferentes
trincheiras dessa guerra. Como exemplo, co-
Queridos/as leitores/as, bem-vindos/as ao nos- mentamos alguns filmes produzidos pela “nova
so campo de batalha – e de estudos. Vocês estão direita” que foram estudados em aula. Por fim,
prestes a ler um livro perigoso. Ele fala muito contamos um pouquinho da nossa metodologia
sobre o que estamos vivendo no Brasil dos úl- de ensino na disciplina, nosso percurso para
timos anos, olhando esse nosso estranho país chegar a este livro e como somos inspirados sim
pelo ângulo cultural, da imagem e da comuni- em Paulo Freire, aquele educador demonizado
cação. Vivemos uma guerra interna, desleal em pela direita.
muitos sentidos, em que a dimensão simbólica e Para entrar neste campo de batalha das
cultural tem sido decisiva. Por isso é preciso de- Guerras Culturais vocês não precisarão de uni-
cifrá-la ou, ao menos, ter mais elementos para formes militares nem coletes à prova de bala. 77
debatê-la. Nossas únicas armas serão a reflexão, a inteli-
Os 29 estudantes da disciplina eletiva Guer- gência, a colaboração, o espírito crítico e a capa-
ras culturais: regimes visuais da política con- cidade de narrar com voz coletiva.
temporânea, da EFLCH/Unifesp, passaram os Vocês vão ler 15 pequenas histórias, que
últimos 4 meses estudando o combate que levou são estudos de casos ou notícias do front (para
à polarização e radicalização da sociedade bra- usar o termo de um dos autores que lemos), cada
sileira e escreveram seus achados para vocês. uma entrando em uma trincheira dessa guerra
Esta não é uma publicação somente para fins e olhando o campo de batalha por um ângulo
acadêmicos. Nela, tentamos evitar a linguagem diferente:
por vezes estranha e difícil da universidade e
1. As capas de revista que propagaram ódio e
queremos abrir este diálogo com jovens de to-
golpismo que ajudaram a derrubar Dilma e a
das as idades, movimentos populares e coleti-
prender Lula;
vos, artistas e ativistas periféricos, professores/
as e estudantes das escolas públicas brasileiras – 2. A direita toma as ruas e usa bonecos infláveis
ou seja, com quem está em luta por um país mais como os pixulecos e outros mais estranhos,
justo, plural, tolerante, cooperativo, sem fome, como veremos;
pobreza, ódio e violência.
3. Ainda nas ruas, a “moda bolsonarista”: o que
Nesta apresentação, nós – o “Professor Pe-
dizem as estampas das camisetas que vemos
dro” do Departamento de História da Arte, e o
nas manifestações?;
pesquisador, cineasta e futuro “Professor Oku-
ma” – vamos conversar com vocês sobre dois 4. Entrando nas redes, vamos discutir memes
que circulam nos grupos bolsonaristas e seu 14. Este será o mote para entrarmos no movi-
poder de comunicação sintética; mento Escola sem Partido, que foi uma reação
não só ao professor de esquerda, mas ao estu-
5. Ainda no digital, vamos explorar o univer-
dante reflexivo e autônomo que vimos atuando
so gamer/nerd e porque ele se conectou com a
nos levantes secundaristas em 2015 e 2016;
chamada alt-right, a nova direita global;
15. No último artigo vamos conhecer a hipóte-
6. Além dos jovens gamers, existe na extrema-
se de que o bolsonarismo tem fortes influên-
-direita toda uma exaltação da masculinidade
cias nazistas e fascistas, que são intoleráveis
até um nível tóxico. Vamos ver alguns exem-
para a democracia brasileira.
plos disso;

7. De outro lado, o ataque ao movimento femi- Nosso tema: O que são e por que
nista e suas pautas, entre elas a dos direitos estudar as “Guerras culturais”?
reprodutivos, como o direito de decidir, e a Quais são as chaves de decifração simbólicas e
descriminalização do aborto; políticas deste novo regime político-cultural que
8. Entraremos então no Templo de Salomão em conquistou as maiorias? A “hegemonia cultural da
busca de pistas para compreender a aliança da esquerda” foi mesmo substituída por esse sistema re-
Igreja Universal com Bolsonaro; acionário? Para onde ele pretendeu – ou ainda pode
– nos levar? Quais são os seus limites e contradições
8 9. Indo para o campo da música, vamos en-
internas? Como fazer frente a essa máquina de sub-
tender por que o sertanejo e suas variantes
jetivação reacionária e de pulsões de ódio? Como
atuais se conectaram tão fortemente com o
pesquisadores/as e ativistas podem trabalhar jun-
bolsonarismo;
tos/as para construir teorias e práticas contra-hege-
10. Veremos também como a nova direita se mônicas com força combativa? Por onde começar?
apropriou da música funk, no Proibidão de Talvez relembrando que a antiga luta de clas-
Bolsonaro, e o que isso revela; ses continua viva, mesmo que sob novas modali-
dades de conflito capital-trabalho, como é visível
11. Depois da música, entraremos nas artes
no “precariado digital” – trabalhadores/as de
plásticas para conhecer um pouco mais dos ar-
contratos curtos ou “autônomos/as”, sem direitos
tistas que procuraram retratar o “Mito” e seus
trabalhistas, que estão em permanente risco de
aliados;
vida e de saúde mental, submetidos/as a patrões/
12. Dentre esses artistas, destaca-se uma pin- oas difusos/as, que chamam os/as contratados/
tora, que mereceu atenção especial, dado o as de colaboradores/as (ou empreendedores/as).
simbolismo de sua obra e como retrata os ini- Nesse terrível novo mundo do trabalho, conheci-
migos do bolsonarismo; do também como o mundo da “viração” perma-
nente (ou da economia GIG), há também lutas, e
13. Seguiremos depois para o audiovisual: co-
das mais importantes, como vimos por exemplo
nhecer um pouco mais da famosa produtora e
com o Breque dos Apps, no início da pandemia.
streaming Brasil Paralelo e seus documentá-
Mas a luta de classes, mesmo nas suas ver-
rios, como a trilogia atacando Paulo Freire e a
sões atuais, não explica tudo. Aliás, explica
universidade pública;
muito pouco sobre as polarizações sociais que vi- até em formato de memes e virais do TikTok.
vemos e os novos padrões de conflito, dominação E a maneira como produzimos, circulamos e
e violência. Os embates de vida ou morte entre as consumimos as imagens tem resultado em rea-
diversas frações dos trabalhadores, da pequena linhamentos surpreendentes entre as classes e
burguesia e dos capitalistas estão cada vez mais suas frações na disputa por hegemonia e poder.
pautados por dimensões da moral e da cultura, Ainda mais em uma era de incertezas no mundo
incluindo os “campos de batalha” na educação, da pós-verdade e do pré-apocalíptico – onde o
religião, comunicação, arte e consumo. É tam- fanatismo religioso e o oportunismo neoliberal
bém uma outra faceta da luta de classes, entre prosperam como rastilhos de pólvora.
frações da sociedade civil em luta por questões Há quase cem anos, Freud e seu discípulo
morais, identitárias, valores, visibilidade e po- Reich perceberam a ascensão do fascismo e do
der - e, no limite, pelo mais basal direito à vida. nazismo como um fenômeno que já embaralha-
O conflito capital-trabalho não sumiu, é va o entendimento da luta de classes e construía
claro, mas há décadas foi muito além do chão novas dinâmicas em função de questões psicoló-
de fábrica. Coloniza todas as esferas da vida, gicas e simbólicas, com seus desejos, recalques e
incluindo os desejos de consumo e o tempo li- ressentimentos. O desejo de ordem, hierarquia,
vre do/a trabalhador/a, que passa a ser cada vez autoridade e um líder forte fazia oposição dire-
mais exposto/a a novos tipos de indústria. São ta à emancipação social – o que permitiu a Rei-
elas as indústrias do desejo e do simbólico, como ch perceber que existiam forças que levaram a 9
a indústria cultural e do espetáculo, agora na classe trabalhadora a agir contra seus próprios
era digital; a indústria do consumo sob medida, interesses. A isso já se somava o salvacionismo
para nichos identitários e de renda; e também a religioso, uma moral sacrificante dos desejos, e
indústria da alma, a religião como mercadoria o medo do outro, que deve ser banido e extermi-
de autoajuda para “sobreviver no inferno” do nado – o que levou ao holocausto.
capitalismo em sua fase atual – de decomposi- Os marxistas mais atentos a isso, como
ção dos direitos, das políticas públicas, da pro- Gramsci, Benjamin e Adorno, entre outros, come-
teção social e do meio ambiente. çaram a perceber que a formação da consciência
Estudar as Guerras Culturais, numa pers- de classe, sua reprodução simbólica/identitária
pectiva histórica materialista e dialética, é e a construção da hegemonia eram muito mais
estudar novas dinâmicas e fronteiras da luta complexas do que os comunistas imaginavam até
de classes e por poder. A esfera da reprodução então. Muito antes da “virada cultural” nas hu-
social do trabalho também abarca a reprodu- manidades nos anos 1970, eles indicaram, ainda
ção simbólica da vida, e cada vez mais essa é no entreguerras e no imediato pós-guerra, que
uma dimensão decisiva. Como pesquisadores/ sem a compreensão dos embates culturais (e vi-
as da História da Arte (professor e estudantes), suais), que se desdobravam por sobre o mundo
o estudo dos Regimes Visuais dessa Guerra nos do trabalho, não compreenderíamos os novos pa-
interessa em particular. E, como explicou Guy drões de luta de classes, poder e dinheiro.
Debord, a imagem tornou-se a forma mais avan- Mais recentemente, após o fim da Guerra
çada e concentrada do capital na sociedade do Fria nos anos 1990, coube a um pensador liberal-
espetáculo, seja na publicidade ou no cinema, -progressista norte-americano, James Hunter,
indicar que, atravessando o conflito capital-tra- apocalipse é cada vez mais iminente, o que gera
balho sem encerrá-lo, emergia em importância pânico moral e espiritual, teorias da conspiração
um campo de batalha ao mesmo tempo pré e pós- e ethos guerreiro para eliminar inimigos.
-moderno: entre progressistas e reacionários, Esta nova direita é complexa de ser com-
em torno da moral e dos valores. Trata-se de um preendida e precisa ser estudada em todas as
campo de luta que poderia definir a identidade ou suas frações e interesses. Ela é composta por
“alma” da nação, e que resgatou, sobretudo, uma grupos heterogêneos, mas se destacam seto-
renovada combatividade cristã, envolvendo fun- res fundamentalistas cristãos e evangélicos,
damentalismo e a intolerância religiosa e social. desempregados e desfiliados da sociedade sala-
Esta “nova cruzada” passou a constituir o rial-industrial, pequenos/as proprietários/as
grande embate nos EUA depois de derrotarem autodenominados/as empreendedores/as, gran-
o bloco comunista. Suas origens mais imedia- des proprietários/as rurais, capitalistas agres-
tas estão na reação conservadora e religiosa aos sivos/as atuando por predação, especulação e
avanços sociais, éticos e legais conquistados despossessão, parcelas da mídia, das celebrida-
depois de décadas de lutas dos movimentos por des e do crime organizado, a quase totalidade
direitos das mulheres, negros, comunidade LGB- das forças militares e policiais, além de alguns/
TQIAP+, ambientalistas e pacifistas. Depois do mas poucos/as intelectuais e artistas ressenti-
colapso do bloco comunista, o inimigo interno dos/as com o fantasma da suposta dominação
10
10 passou a ser o foco principal, e a direita norte-a- cultural de esquerda. O tipo “genérico” de todas
mericana pretendeu reagir para retroceder no elas é o chamado “cidadão de bem”, que em nome
tempo, em nome de “Deus, pátria e família”. E de da família, da pátria e de Deus, atua “sem freios”
lá, esse padrão de embate e polarização social se e pode cometer as maiores atrocidades.
espalhou pelo mundo. Assim sendo, esta nova direita tem organi-
As Guerras Culturais contemporâneas tor- zado uma reação, estudado e atuado de forma
naram-se, então, um tópico de estudo e de defi- incisiva na guerra cultural, como parte de uma
nição de estratégias políticas, em diversas áreas estratégia mais ampla de reconquista de uma
do saber e em diferentes espaços de inteligência hegemonia global conservadora (para alguns
e planejamento de ação (indo das universidades denominada de neofascista e para outros teo-
às igrejas, dos partidos aos aparelhos de repres- cracia cristã), não apenas no campo cultural,
são). Para os/as cristãos/ãs de direita, forças da mas também econômico e político. Essa “in-
ordem e capitalistas aliados, trata-se de uma ternacional reacionária” atua em uma guerra
verdadeira guerra na qual é necessário ganhar híbrida em várias frentes. No campo político-
em várias frentes, a começar contra o assim cha- -cultural, as batalhas ocorrem em um contex-
mado “marxismo cultural” ou o “politicamente to de pós-verdade e de produção de narrativas
correto”, seguido do confronto violento com as paralelas, muitas delas de caráter messiânico,
lutas identitárias de hoje, em nome da família, nas redes sociais, canais de YouTube e suas de-
de Deus, da propriedade e de uma moral que colo- rivações, em atos e performances nas ruas – que
que limites ao “globalismo” e redefina a própria esses grupos passaram a ocupar –, nas igrejas
lógica do capital e da sociedade do espetáculo. O cristãs criacionistas e pentecostais, nas empre-
que acelera esse processo é a “profecia” de que o sas, na música pop, na produção audiovisual e
11
mesmo “acadêmica”, entre outros espaços. res de subprodutores de submaterial cultural de
Nossa disciplina eletiva pretendeu estudar a propaganda rebaixada para circulação frenéti-
emergência das guerras culturais no Brasil atu- ca por dispositivos digitais. Trata-se de slogans
al, em diálogo com outras partes do mundo, pro- textuais e visuais rápidos e diretos, com apelo
curando compreender seus embates sobretudo autoritário e revanchista, apresentando novas
no campo da imagem, da comunicação e propa- “razões”, que são paradoxais, e levam à cisão so-
ganda, das performances de rua, da memética, cial, ao negacionismo e a narrativas fantasiosas
do audiovisual, das narrativas reacionárias e da de ordem mítica e moral.
imaginação estético-política que representam. A pandemia, e depois a tentativa de reelei-
Mais especificamente, estudamos como a “es- ção de Bolsonaro aumentaram a temperatura
tética bolsonarista”, do senso comum ou do mau da guerra cultural para situações extremas.
gosto (com suas diferenças internas, entre evan- Esse regime de visualidade e propaganda entrou
gélicos/as, militares, classe média lavajatista, em uma fase de reiteração mítica, autoengano
gamers, agronejos, entre outros/as), alcança um voluntário e justificativas mórbidas para o ge-
tipo de narrativa carismática que move multidões nocídio em curso e, agora, para a não aceitação
em transe, no ritmo de combate cultural para ex- da derrota nas urnas. O “necropopulismo” de
terminar seus fantasmas: das lutas identitárias, Bolsonaro entrou em uma fase nova e vertigi-
da esquerda corrupta, do feminismo abortista, do nosa em busca de sua perpetuação no poder, que
12
12 comunismo revivido e do marxismo cultural. pretendeu alcançar um novo ponto de mutação
A eletiva permitiu discutir a bibliografia - para uma forma-social distópica. Os zumbis
fundamental no tema, escolher frentes de ba- dissonantes diante de quartéis são um sintoma
talha mais significativas para estudo, construir disso, o que mostra a relevância do nosso estudo.
categorias pertinentes, explorar possibilidades Mesmo com sua recente derrota, não assu-
e fazer análises de casos/eventos/objetos/ima- mida publicamente e com as movimentações
gens emblemáticos para compor este livro. golpistas que se seguiram, pode-se afirmar que
Estudamos como regimes de ódio, de co- a extrema-direita afirmativa-impositiva veio
municação e de visualidade entrelaçados, com para ficar. A derrota nas urnas foi apertada e
seus sujeitos permanentemente excitados, a queda política ainda não é evidente, muito
produzem uma máquina de propaganda e uma menos pacífica ou assimilada. Afinal, a “guer-
“mística” reacionária que geram subjetivações ra cultural” é antes de tudo uma guerra – e ela
(sádicas e catárticas) de massas enfurecidas. deve durar por anos ou décadas. Preparem-se!
Mas não se trata da mera repetição do fascis-
mo ou nazismo históricos, com seus sistemas Um exemplo: O audiovisual de combate
centralizados de produção de signos, com um da nova direita
Ministério da Propaganda à la Goebbels. A onda Para costurar com a turma um fio narrativo
reacionária parece ter emergido de uma rede complementar, debatemos a produção audiovi-
capilarizada em núcleos identitários, de célu- sual nas Guerras Culturais brasileiras. Estuda-
las pulverizadas de produtores/as de conteúdos mos o cinema documentarista de média e longa
(com seus ideólogos, sem dúvida). Uma rede mi- metragem, como imagem-técnica original, até
crobiana “autogerida” e promovida por milha- suas derivações quase instantâneas, produtos
da guerrilha digital: os vídeos de zap, Youtube, nas redes sociais, foi um dos protagonistas des-
Instagram, TikTok, entre outros formatos. ta nova direita ascendente e mobilizada na in-
No audiovisual, e mais especificamente ternet e nas ruas logo após a reeleição de Dilma
no cinema, a forma de enquadrar, iluminar e Rousseff, no final de 2014. Atuando como uma
apresentar seus protagonistas, atreladas a uma inesgotável fonte de memes, seus principais no-
montagem ritmada como uma música instigan- mes também são youtubers que propagam ide-
te, organizadas em um roteiro bem construído, ais liberais com grande alcance de público. Tal
atraem de forma aparentemente despretensio- domínio da linguagem visual na internet pro-
sa e imparcial o espectador que, seduzido pelas picia ao documentário Não vai ter golpe! uma
imagens, adere às ideias contidas na narrativa. mistura da agilidade das redes sociais com a lin-
Não por acaso, o cinema foi um dos instrumen- guagem cinematográfica convencional.
tos mais eficientes na difusão dos ideais nazis- Apesar de ser um documentário, Não Vai
tas e fascistas nas décadas de 1930 e 1940. Ter Golpe! tem uma forma de narrativa que se
Compreender o uso das imagens e toda sua assemelha aos filmes de ficção comerciais, no
força simbólica, aliada aos elementos da lingua- qual se apresenta o protagonista (neste caso, o
gem audiovisual, neste sentido, nos ajuda a imer- MBL) como personagem ordinário e desquali-
gir na maneira de conceber e articular a forma de ficado, que não se insere muito bem no seu am-
pensamento de seu produtor e a recepção de seu biente social, recebe uma missão a aceita após
público. No curso, portanto, abordamos alguns hesitar. Após muito sofrimento e luta, ele vence 13
13
filmes para exercitar o olhar, como obras de po- o inimigo em um feito quase impossível, mu-
sicionamento ideológico à direita produzidos dando assim toda a realidade na qual está inse-
neste tempo histórico, da ascensão da extrema- rido. É dessa forma que o MBL conta a história
-direita no Brasil (de 2013 aos dias atuais). Rapi- de “como cinco garotos que largaram a faculda-
damente relembramos alguns deles aqui. de mudaram a história do Brasil”.
Não Vai Ter Golpe, documentário produzi- A trajetória do herói é uma forma de
do pelo MBL (Movimento Brasil Livre) e lançado construção narrativa muito utilizada em
em 2019, foi apresentado como o contraponto do Hollywood, baseada principalmente em estu-
documentário Democracia em Vertigem, da di- dos de Campbell sobre as diversas mitologias
retora Petra Costa, lançado poucos meses antes em diferentes culturas. Tal estrutura, utilizada
- portanto, um filme assumidamente produzido à exaustão na história do cinema, é uma forma
para a “guerra”. Dirigido por um dos fundadores acessível ao telespectador, que gera identifica-
do MBL, Alexandre Santos, e Fred Rauh, o docu- ção e assimilação do conteúdo de forma natura-
mentário conta a história do próprio Movimen- lizada – e sua estrutura espetacularizada gera
to Brasil Livre, desde os motivos de sua criação empatia e admiração do espectador.
até o impeachment da então presidente Dilma Ao apropriar-se também da narrativa do
Rousseff, em 2016, na qual eles atribuem a si pró- herói, a saga Nada a Perder, composta por dois
prios o protagonismo deste fato histórico. filmes ficcionais baseados em fatos reais da vida
Narrado de forma bastante dinâmica, quase do Bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal
como um videoclipe, sua estética tem um públi- do Reino de Deus, apresenta Macedo com um
co-alvo: os jovens. O MBL, com atuação intensa protagonista aparentemente sem maiores qua-
lidades, mas sonhador. Ele tem um problema Seguindo neste contexto de produção au-
físico na mão e é um tanto rebelde, mas sonha diovisual da direita, destaca-se a produtora Bra-
em ser pastor evangélico, decidindo lutar con- sil Paralelo, pelo grande volume e regularidade
tra tudo e todos em busca de seus objetivos, dei- de produções que se inserem nos temas ligados
xando seus medos e dilemas de lado colocando à extrema-direita, produzindo documentários
“Deus acima de tudo”, vencendo assim, de forma de grande qualidade técnica, tornando-os sedu-
triunfal e após muita perseguição e injustiças, o tores e persuasivos, induzindo o telespectador a
inimigo – a Igreja Católica, mídia, políticos e ju- narrativas negacionistas e de cunho colonialis-
diciário. Neste aspecto, é interessante a forma ta, reacionário e patriarcal.
como a direção sempre apresenta esses adversá- Entre os filmes da produtora analisados na
rios na penumbra, como seres das sombras. disciplina estão O Fim da Beleza, sobre arte
A presença fundamental dos evangélicos e arquitetura; 1964: O Brasil Entre Armas e
nesta guerra ou “cruzada”, a partir da atuação Livros, sobre o período da ditadura militar; e
da Igreja Universal do Reino de Deus, liderada Pátria Educadora, a respeito da educação no
pelo Bispo Edir Macedo por meio do Grupo Re- Brasil. Em suma, esses documentários - e pra-
cord de Comunicação, têm dado relevantes con- ticamente todos os outros - têm uma estrutu-
tribuições através de seus produtos culturais ra parecida: trazem um panorama histórico
na arregimentação de um público conserva- do tema, com boa parte das informações sen-
14
14 dor-cristão, principalmente o neopentecostal, do verdadeiras enquanto omitem outras e, ao
adepto da Teologia da Prosperidade, trazen- adentrar no conflito do tema sob o ponto de vis-
do-os às pautas ligadas à extrema-direita, es- ta da produtora, distorcem fatos e direcionam
pecialmente no que diz respeito à agenda de o discurso para uma certa decadência do país,
costumes em diálogo com o discurso do empre- atribuindo isso às ações dos atores responsáveis
endedorismo neoliberal. por estes conflitos – de forma genérica, a junção
O Jardim das Aflições, também foi anali- desses atores é a esquerda.
sado no curso por retratar um dos personagens Tanto o MBL, a IURD e a Brasil Paralelo,
principais desta Guerra Cultural, o ideólogo citados aqui, têm como eixo de confluência o
Olavo de Carvalho, cujo protagonismo se deve velho maniqueísmo característico das narrati-
principalmente por ele ter sido um dos precur- vas cinematográficas de cunho comercial e con-
sores deste chamado à guerra. Olavo de Car- vencional. Neste contexto, o debate político do
valho, se fosse um dos arquétipos da trajetória mundo real é simplificado em uma irreconciliá-
do herói, seria facilmente identificado como o vel luta do bem contra o mal, no qual o inimigo
“mentor”, o mestre que orienta o caminho do é sempre o outro: a educação (universidades), a
herói. Neste documentário do cineasta Josias mídia, os corruptos (políticos do PT) e o judiciá-
Teófilo, Olavo é introduzido ao grande público a rio (STF). E estes são retratados como se estives-
partir de narrativa sóbria e comedida, cercado sem em um grande conluio, uma massa amorfa
de livros e da família, mostrando um lado inte- também chamada de “comunismo”, “petismo”
lectual e cristão para além da sua persona nas ou algo do gênero.
redes sociais, justificando assim seu título de Todos os filmes têm acesso fácil, seja nos
“guru” da extrema-direita. serviços de streaming mais populares ou no
15
YouTube. Ainda, todos eles contam com grande e grupos de estudos em Guerras Culturais. A
circulação dentro de seus nichos, tornando-os construção do percurso formativo na disciplina
peças de propaganda importantes na formação também garantiu aos/às estudantes a escolha
do imaginário desta extrema-direita ascenden- dos subtemas e uma trajetória, passo a passo,
te e que, invariavelmente, apontam um inimigo para se sentirem progressivamente mais apro-
a ser combatido e destruído. priados/as das questões motivadoras.
Nesta Guerra Cultural na qual estamos em As aulas foram acompanhadas de recomen-
meio à fumaça do combate, é relevante men- dações de leituras, podcasts e vídeos de autores
cionar que o termo shot, que significa tiro em diversos. Passamos por leituras de Freud, Reich,
inglês, é também utilizado no cinema para no- Adorno, Umberto Eco, James Hunter, e por jo-
mear a tomada/plano de câmera em uma gra- vens pesquisadores/as que acompanham os em-
vação – ou seja, o momento entre o “Ação” e o bates atuais, como Pablo Ortellado, João Cezar
“Corta”. A referência se dá pelo fato de a câmera de Castro Rocha, Adriana Kurtz, Isabela Kalil,
se parecer com uma arma – que ela de fato o é. Rodrigo Nunes, Gabriel Feltran, Lucas Pedretti,
Ronaldo Almeida, Fábio Py, Tales Ab’Saber, Vi-
Nosso processo: Educação como viane Freitas e Marielle Franco. Mergulhamos
construção de autonomia também na produção da extrema-direita, Olavo
de Carvalho, ORVIL, Thomas Giulliano, Eduar-
“Ensinar não é transferir conhecimento, mas
16
16 do Bolsonaro, Edir Macedo, falas do então pre-
criar as possibilidades para a sua própria pro-
sidente Jair Bolsonaro e de ministros, além da
dução ou a sua construção.” Paulo Freire, em
produção audiovisual da direita, MBL, várias
Pedagogia da Autonomia, p.47.
obras do Brasil Paralelo, Josias Teófilo, cine-
“Qualquer pedagogia radical precisa insistir ma evangélico, entre outros segmentos. Houve
em que a presença de todes seja reconhecida. também uma visita guiada ao Templo de Salo-
E não basta simplesmente afirmar essa insis- mão, da IURD. De quebra, houve alguns mo-
tência. É preciso demonstrá-la por meio de mentos de humor, como um vídeo da série Black
práticas pedagógicas. Para começar, o profes- Mirror, do episódio The Waldo Moment, e uma
sor precisa valorizar de verdade a presença de esquete da produtora Porta dos Fundos sobre a
cada um, que todes influenciam a dinâmica suposta balbúrdia nas universidades.
da sala de aula e que todes contribuem.” Bell A partir do meio do semestre, as aulas pas-
Hooks, em Ensinando a transgredir: A educa- saram a dividir o tempo com as apresentações
ção como prática de liberdade. p.18. dos estudos de caso pelos alunos/as. Isso permi-
tia trazer cada vez mais base empírica e mate-
Nossa disciplina lotou as vagas rapidamen- rial de discussão em classe, para que os debates
te, com estudantes quase todos em final de cur- estivessem ancorados na leitura do real e não
so de História da Arte. Mas não só: ingressaram apenas da bibliografia. Para que a construção
também estudantes de Filosofia, História, Ci- do processo formativo fosse também de autono-
ências Sociais e Pedagogia. Ou seja: de partida, mia, os/as estudantes escolheram seus temas a
contamos com uma turma interessada, curiosa partir de uma lista inicial, mas que poderia ser
no tema ou mesmo já participando de debates – e foi sendo – alterada e complementada. As du-
plas e trios se formaram na aproximação por in- de “inocentes úteis” que acabaram sendo estimu-
teresse, ampliando as possibilidades de diálogo lados/as ou cooptados/as para atuarem na “guer-
para além dos/as colegas de trabalho de grupo rilha digital” da polarização e propagação de ódio
de sempre. Alguns/mas seguiram na pesquisa e mentiras no Brasil dos últimos anos. Nosso obje-
individual, sem problemas. tivo ao compreender a guerra política brasileira,
Todos os grupos passaram por uma ou mais e as guerras culturais em especial, não é outro
conversas de orientação com o professor e moni- senão desarmar a máquina de intolerância, falsi-
tor, para discutir o tema, pensar na escolha de ficação, negacionismo e violência simbólica e real
casos de estudo e bibliografia e filmografia. Os que foi construída, sobretudo, pela extrema-di-
seminários eram, assim, um momento proces- reita nos últimos anos. Evidentemente, não uti-
sual, da reflexão em construção e consistiam em lizamos dos mesmos meios – o que só agravaria o
uma fase na qual os/as estudantes apresentavam círculo vicioso de um obscurantismo sem volta.
aos/às colegas o andamento da pesquisa, as hipó- Temos que criar alternativas ao sistema de
teses e possibilidades de interpretação. Além do comunicação, crenças e mobilização do tio e tia
debate em aula (a turma foi sempre muito par- do ZAP. Como desconstruir esse sistema ou in-
ticipativa), cada estudante deveria enviar, por vertê-lo? E, pensando nisso, vocês já repararam
escrito, comentários a ao menos 5 dos 15 grupos. que lido de trás para a frente, ZAP vira PAZ?
Esses comentários eram de sugestões para a pro- Pois é, talvez seja esse um caminho. Conhecer,
dução do artigo, o que destacar, pontos fortes ou compreender as regras do jogo e mudá-las pelo 17 17
aspectos para reformulação – e são métodos ho- avesso.
rizontais de ensino, dos estudantes aprendendo A lei da guerra messiânica do bem contra
com seus colegas. A entrega do artigo final tam- o mal que está no Velho Testamento parece ter
bém se deu em duas fases: uma versão inicial, voltado, propositadamente, para transformar
que foi amplamente comentada pelo professor e o debate democrático, o direito à diferença e ao
monitor, que fizeram o papel de editores/parece- contraditório, em uma “última cruzada” fanáti-
ristas ao indicar os ajustes finais; e a versão para ca contra inimigos satânicos sem direito a voz
publicação, que aqui apresentamos a vocês. ou argumentação. Seria uma nova inquisição? E
Assim, processo e produto final foram ambos isso interessa a quem?
valorizados e avaliados, com acompanhamento O ditado do “olho por olho e dente por den-
próximo dos orientadores, mas sempre deixando te” (Levítico 24:20), que move o fundamentalis-
que as/os estudantes fossem se apropriando do seu mo de todas as espécies, foi negado e superado
percurso, refletindo sobre os aprendizados e se por Jesus Cristo: “Agora eu lhes dou uma nova
fortalecendo intelectual e politicamente para esta Lei: ameis uns aos outros como os tenho amado”
batalha, que continuará certamente por anos, e (João 13:34 35). Daí que, diferentemente do esta-
mobilizará em especial essa jovem geração. do de guerra permanente do Antigo Testamento,
a mensagem de Cristo passava a ser a crítica aos
Conclusão: Transformar a guerra do poderosos, a ajuda preferencial aos pobres e des-
ZAP na PAZ possível validos, a misericórdia, o perdão, o amor e a paz.
Os famosos “tio ou tia do ZAP”, na alcunha E, para quem não é cristão, como colaborar
para o WhatsApp, simbolizaram uma tipologia para que cristãos se reencontrem com esse Cristo
misericordioso, que esteve ao lado dos oprimidos timas e sofreram e ainda sofrem muito com o
e que lutava contra as injustiças? Aliás, é neces- regime de ódio e intolerância em que ainda es-
sário ter como exemplos o quê e como fizeram – e tamos. Por isso, nossos encontros foram tam-
ainda fazem – a Teologia da Libertação, as Comu- bém um exercício terapêutico comunitário,
nidades Eclesiais de Base, as Pastorais, as redes além de acadêmico e reflexivo. E, como sempre,
de solidariedade Evangélicas, grupos ativistas de nós, professores, também aprendemos muito,
jovens cristãos, e grandes lideranças protestan- compartilhamos afetos e angústias e pudemos
tes inspiradoras, como Martin Luther King Jr.. exercitar o “pensar juntos” - que é o que mais
Não é o objetivo deste livrinho, mas o diá- encanta em nossa profissão de educadores/as.
logo aberto com a imensa maioria cristã no Bra- Foi a primeira vez que realizamos essa disci-
sil – seja católica, protestante, pentecostal ou plina, derivada de um grupo de estudos que ini-
neopentecostal – será fundamental para encon- ciamos em março de 2021. Cada preparação das
trarmos saídas que nos afastem dos fanatismos, aulas foi uma aventura, na escolha de textos, ví-
do reacionarismo e da crença de novos e falsos deo, imagens e preparação dos slides. Navegáva-
Messias. E também nos livrem da intolerância mos em mares revoltos, com nuvens carregadas e
religiosa ou moral contra as minorias. Diálogos temas sombrios. Mas a cada encontro nos ilumi-
inter-religiosos, interculturais e com o conheci- návamos e ríamos (ou chorávamos) juntos. Além
mento científico serão fundamentais para sair- do pré-aula, com os/as artistas da ocupação Ouvi-
18
18 mos do tempo sombrio em que estamos. dor 63 e estudantes do projeto de extensão Reci-
Mostremos a história e a realidade vivida procriar, que vocês conheceram e se envolveram.
pelo povo, e não o ‘Brasil Paralelo’ falsificado. Foi surpreendente ver a maturidade do gru-
Façamos novos mutirões nos bairros, vilas e po desde o início, quando em meio a uma aula
favelas, e reatemos os laços de solidariedade, souberam ajudar os/as representantes do mo-
amor, paz e justiça. A universidade pública deve vimento estudantil a perceber contradições e
participar desse diálogo com todos os grupos, a construir um processo coletivo e coerente de
combatendo o negacionismo, mostrando a evi- tomada de decisão, em um momento de pro-
dência histórica, científica e documental – e o testo contra mais cortes impostos pelo gover-
poder emancipador do conhecimento e da arte. no Bolsonaro às universidades públicas. Aliás,
Só construindo essa aliança entre diferentes se- também nos encontramos nas ruas, nas mani-
tores e saberes, em defesa da vida, da justiça e da festações estudantis contra os cortes. E, na sala
paz, é que as atuais e próximas gerações pode- de aula, a cada seminário, discussão de casos,
rão ser felizes e viver com dignidade. debate sobre os textos e vídeos, a troca de ideias
foi sempre enriquecedora e generosa. Chega-
Um último recado para nossos e nossas mos ao final da jornada, com este livro, que re-
estudantes presenta nossa construção conjunta, e com a
Foi incrível compartilhar essa discipli- festa de lançamento e despedida.
na com vocês, mesmo em um tema espinhoso
e dolorido para muitos de nós – e já pedimos Até uma próxima!
desculpas se ampliamos o sofrimento de vocês Nos cruzaremos por aí, nos corredores
em alguns momentos. Muitos/as de nós são ví- da Universidade ou nas estradas da vida!
Capas de combate: a guerra contra o PT

Giulia dos Santos Nascimento. Sou artista, pessoa com deficiência, estudante,
leitora e amante da arte. Às vezes faço desenhos por encomenda.
Keyla Vasconcelos de Melo. Sou analista de projetos de T.I e estudante de História
da Arte. Apaixonada por arte, museus, livros e animais, por isso escolhi esse curso
como segunda formação.

O período que se estendeu desde o início da da denúncia de que eles estavam cientes do Pe-
Operação Lava Jato até o golpe parlamentar trolão, podemos dar início à discussão de como
que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, foi o jornalismo sensacionalista, principalmente
marcado por intensos ataques, mentiras, ma- da Veja e da Istoé, contribuíram fortemente
nipulações midiáticas e a sorrateira ascensão para o imaginário brasileiro contrário ao PT.
da extrema-direita na cena política brasilei- Trazendo matérias semanais e sensaciona-
ra, até estes conquistarem o governo federal. listas, é evidente a presença do contraste na 19
Aqui discutimos como as representações dos escolha de palavras, cores, objetos e posicio-
presidentes Lula da Silva e Dilma Rousseff du- namentos da mídia frente à situação do Petro-
rante este período, contribuíram para o ima- lão, e mais a frente, na denúncia de corrupção
ginário do povo a respeito do PT no Brasil. contra a presidenta Dilma Rousseff, que foi
Com a ascensão dos movimentos de direita injustamente acusada e sofreu consequências
e extrema-direita, em organizações como Vem extremas não só de seus supostos atos, mas
Pra Rua, Revoltados Online e Movimento Bra- também dos ditos crimes do ex-presidente
sil Livre (MBL) os ataques às figuras políticas Luiz Inácio Lula da Silva.
de esquerda se tornaram mais comuns, tornan-
do-se mais rotineiros após o início da Operação Campo da batalha político-institucional
Lava Jato, em março de 2014. Dentre os quais, A Operação Lava Jato foi uma investigação
os direcionados a Dilma, se deram através de que tinha como objetivo o “combate à corrup-
diversas manchetes do jornal O Estadão, e das ção” e lavagem de dinheiro praticada por dolei-
revistas Veja e Istoé, que utilizaram de diversas ros, empresários, agentes públicos e políticos.
imagens e recortes interpretativos disponíveis A principal instituição afetada foi a Petrobras,
para manipular a verdade. maior estatal brasileira. As investigações fo-
Observando a capa lançada pela Veja, em ram repletas de polêmicas e irregularidades,
outubro de 2014 (n°2397), que traz a figura de como o grampo telefônico ao ex-presidente
Dilma e Lula dividida ao meio, acompanhada Lula e o vazamento de conversas entre o ex-
-juiz Sérgio Moro e o promotor Deltan Dallag- apresentada por Ariel Goldstein (2016, p. 10),
nol, que continham informações controversas ao pontuar que a imprensa conservadora-libe-
quanto à imparcialidade da operação. Mais ral, ofereceu a legitimidade para o avanço do
tarde, alguns integrantes da operação, como o impeachment de Dilma Rousseff da presidên-
juiz Moro, passaram a fazer parte do governo cia em agosto de 2016.
Jair Bolsonaro, o que gerou ainda mais ques-
tões sobre a imparcialidade da operação. Capas de propaganda antipetista
Em novembro de 2019, após passar 580 Ao analisar as capas da Veja, é preciso re-
dias preso, o ex-presidente Lula foi solto, e em lembrar que existe um histórico dessa revis-
2021 o STF anulou as condenações, ao conside- ta contra o PT, e o editorial de Roberto Civita
rar que foram cometidos erros técnicos devido sempre deixou claro seu campo político, re-
à parcialidade e irregularidades no processo. forçado por meio de suas capas – verdadeiros
Na mesma época da Lava Jato, o país passava cartazes de combate pendurados nas bancas
também pelo impeachment da então presi- de jornal do país. Já a Istoé, ligada ao MDB,
denta Dilma Rousseff, com um processo que muda de acordo com o momento, seus inte-
começou em dezembro de 2015 e se estendeu resses e alianças. A Veja, desde muito antes, já
até agosto de 2016. Além das suspeitas de en- tinha um tom de deboche quando se referia ao
20
volvimento nos esquemas de corrupção na PT, e isso é claro desde os primeiros momen-
Petrobras, Dilma foi acusada de improbidade tos do partido no poder, quando em janeiro de
administrativa e desrespeito à lei orçamentá- 2005, a revista fez a capa nº1889 com a man-
ria. Apesar de alguns juristas contestarem as chete: “O PT deixou o Brasil mais burro?”,
acusações, o processo foi levado adiante mes- atacando a regulação do ensino superior pelo
mo que não existissem provas do envolvimen- MEC [Imagem 1].
to da presidenta em crime doloso. A capa traz a imagem de orelhas de burro
O processo de impeachment de Dilma foi e ofende o povo brasileiro, por estar suposta-
cercado de indícios de manobra política da mente concordando com a ação tomada pelo
elite para que Temer assumisse, sendo a im- partido. O tom debochado e contrário da re-
prensa brasileira um agente importante nes- vista com o governo petista se manteve e foi
ta operação. Usando de sua influência, assim até muito questionado por conta da ação que o
como usou historicamente em presidentes partido moveu contra a Veja, em 2005. Porém
que não chegaram a terminar seu mandato e esse comportamento se arrastou até o eventu-
que sofreram resistência da imprensa de sua al impeachment de Dilma, no qual a revista
época, como Fernando Collor e João Goulart. teve um grande papel em disseminar, impul-
Os meios de comunicação na sua maioria não sionar e cobrir, não só a saída da presidenta
são imparciais e tendem a influenciar o públi- de seu posto, como também toda a “heroiciza-
co conforme seu interesse político. Situação ção” e posterior “martirização” do juiz Sérgio
21
Moro, que depois acabou rompendo com o go- mento da imagem, com tons frios, remetem a
verno Bolsonaro. um famoso formato de finalização de novela,
Mesmo que a princípio a ideia das revis- algo que o brasileiro conhece bem e influencia
tas seja de informar, a opinião política desses na forma como lemos e interpretamos a capa.
editoriais nunca esteve realmente escondida. Outro caso interessante é a ligação que pode-
Tendo um histórico, desde seu início, de finan- mos estabelecer na forma como Lula e Dilma
ciadores e direções editoriais voltadas à direita são representados de maneira que se comple-
conservadora, não surpreende que a revista tam. Claro exemplo disso, se dá na capa da Veja
Veja, seja sob a direção da família Civita, ou de n°2469, que representa Lula com várias cobras
Fábio Carvalho – que assume a direção em 2019 na cabeça e na capa da Istoé n°2417, que repre-
– continue tentando distorcer, manipular e re- senta Dilma gritando [Imagem 3].
manejar seu discurso de acordo com a situação Existem muitas semelhanças nas imagens
em que se encontra o país. No caso da Istoé, a das capas, que foram lançadas com quinze
posição política se mostra um pouco mais vari- dias de diferença. A imagem de Lula faz refe-
ável, porém no período em questão, sua posição rência a um discurso dado em 04 de março de
era evidentemente a favor do impeachment da 2016, após o ex-presidente dar seu depoimento
22 presidenta, mesmo com todas as evidências de na Lava Jato, em que diz “Se quiseram matar
que ela não estava envolvida em qualquer es- a Jararaca, não bateram na cabeça, acertaram
quema de corrupção em seu governo. no rabo”. Como pontos em comum, as duas
Quando a Veja faz a acusação de que Dilma capas trazem uma referência à obra Medusa
e Lula sabiam de tudo que estava acontecendo (1595-1598) de Caravaggio. A imagem de Lula
na Petrobrás, além de vir com uma carga de fazendo uma clara referência a seu discurso, a
opiniões políticas que, no momento, repre- expressão manipulada de raiva, o uso de preto
sentavam uma boa parcela da população (68% no fundo da capa, o tratamento contrastante
das pessoas que foram entrevistadas pelo Da- de sua imagem, nos leva diretamente à imagem
tafolha), existe um interesse particular desde de Dilma. A capa com a frase “As explosões ner-
o início do governo do PT em descredibilizar a vosas da presidente” tem uma imagem que é
imagem de Lula e de Dilma. Tentativa esta que tratada com um foco muito detalhado em sua
ao final saiu vitoriosa, visto que boa parte do suposta exagerada revolta. A capa apresenta
povo brasileiro se manifestou a favor da deci- alto contraste – quase estourado – sua boca está
são de impeachment e, do posterior mandado praticamente preta e seus olhos escurecidos, de
de prisão emitido para o ex-presidente Lula. forma que nos remete à pintura de Caravaggio,
A estratégia visual da capa “Eles Sabiam também no enquadramento da fotografia, que
de Tudo”, deixa clara a intenção a ser comu- corta a presidente logo abaixo do rosto. Os ele-
nicada [Imagem 2]. A divisão de Dilma e Lula mentos presentes nas duas capas, trazem uma
ao meio é precisa, o contraste usado e o trata- sensação de loucura e esta foi exatamente a
23
proposta de ambas as capas, que parecem com- ou golpe parlamentar, e mesmo num país que
binadas a ridicularizar Lula e Dilma. hoje, escolheu reeleger Luiz Inácio Lula da Sil-
Para uma análise ainda mais adiante, ob- va, ainda permanece à sombra do martírio que
servamos a capa “Fora do baralho”, lançada em lhe foi causado injustamente.
abril de 2016, que reafirma a insignificância de
Dilma no Planalto, utilizando de seu próprio
discurso contra ela. A capa, que traz um ras- Referências
go no rosto da presidenta, como um cartaz de- 68% apoiam o impeachment de Dilma, diz pesquisa Da-
tafolha. G1, 2016. Disponível em <http://g1.globo.com/
predado numa rua qualquer, transmite a ideia politica/noticia/2016/03/68-apoiam-impeachment-de-
não só de que sua imagem não tem valor, mas -dilma-diz-pesquisa-datafolha.html> Acesso em: 29 de
também insinua que seu tempo e influência já novembro de 2022.
ANDRÉ, Hendryo; SILVA, Gabrielly Domingues da. Aná-
acabaram. Além de trazer uma perspectiva lise das capas da Veja que citam Dilma Rousseff no perío-
dita “a favor do povo”, a revista ainda estampa do de março a maio de 2016. 40° Congresso Brasileiro de
as frases “Veja só vê um lado, o lado do Brasil” Ciências da Comunicação. Disponível em: <ht t p s : //
portalintercom.org.br/anais/nacional2017/resumos/
e “Veja persegue, persegue a verdade”, trans- R12-1846-1.pdf> Acesso em: 30 de novembro de 2022.
formando às críticas direcionadas ao editorial CARDOSO, Maurício. Leia a Íntegra da Ação do PT contra
24 em afirmações sobre seu trabalho em busca da a revista Veja. Conjur, 2005. Disponível em: <ht t p s : //
www.conjur.com.br/2005-nov-08/leia_integra_acao_
“verdade sobre o governo do PT” [Imagem 4]. pt_revista_veja?pagina=14> Acesso em: 28 de novembro
de 2022.
Conclusão EDITORIAL. IMPEACHMENT, UMA tese equivocada.
Zero Hora. 23 de abril, 2015.
As imagens de Dilma foram vistas por vá-
EDITORIAL. O IMPEACHMENT é uma saída institucio-
rias pessoas que passavam em frente às ban- nal para a crise. O Globo. 19 de março, 2016.
cas de jornais diariamente, e mesmo que não LATTMAN-WELTMAN, Fernando; CARNEIRO, José
tenham sido lidas, ajudaram a criar e (de)for- Alan Dias; RAMOS, Plínio de Abreu. A Imprensa faz e Desfaz
um Presidente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
mar a opinião do povo. Não só as capas aqui
RODRIGUES, Machado Theófilo. O papel da mídia no pro-
mencionadas, mas várias outras transforma- cesso de impeachment de Dilma e Michel Temer. Contra-
ram a imagem de Dilma de uma tecnocrata campo, v.37, n.2, UFF, Niterói, 2018.
competente em uma inepta política. As capas,
quase todas misóginas e golpistas, pareciam
empenhadas em cancelá-la como figura po-
lítica de liderança, em questionar qualquer
ação ou fala da presidente. As matérias, falas,
o “heroísmo” do juiz Sérgio Moro, trouxeram
à imagem de Dilma, mais ainda que a de Lula,
evidente ruína. Anos mais tarde, a imagem de
Dilma continua atrelada ao seu impeachment,
Um míssil para destruir Brasília:
a arte de guerrilha a partir dos infláveis
Amanda Alves nasceu e mora em Itaquera, Zona Leste. Fotojornalista no Jornal A
verdade e militante da Unidade Popular. Pesquisadora, produtora cultural, arte-
educadora e graduanda de História da Arte na Unifesp.
Diego Lorena natural de Mauá, no ABC Paulista. É Fotógrafo e aluno do curso de
História da Arte da Unifesp.

Diante da modernização dependente e periféri- inserção direta no cotidiano, as mazelas e toda


ca aprofundada pelo regime ditatorial no Brasil, repressão instaurada pela ditadura militar.
algumas alternativas surgiram para ativistas e Esses termos para além das recorrentes
artistas no período da neovanguarda, nos anos classificações de estilo utilizadas pela história
1960-70, como a criação de espaços alternativos da arte apontam para o teor de envolvimento
de produção e circulação de arte como forma e militância por parte dos propositores com as
de resistência ao endurecimento dos regimes. causas sociais, nas quais atuavam com um ca-
Nesse sentido, os termos “arte de guerrilha” e ráter subversivo frente a ordem vigente. Esses 25
“contra-arte” foram cunhados pelo crítico de artistas criaram obras e realizaram ações que
arte e ativista Frederico de Morais, no final dos pretendiam aguçar a reflexão crítica das pesso-
anos 1960, no qual os artistas inseridos nessas as sobre a situação política do país. Neste con-
categorias, tais como Cildo Meireles1, Arthur texto os artistas atuavam para uma mudança
Barrio2, entre outros, combatiam com as suas efetiva no campo social, pelo fim da ditadura
obras, muitas vezes de caráter conceitual com militar e pela instauração da democracia, e
utilizavam suas obras como armas de comba-
1 Cildo Meireles nas Inserções em circuitos ideológicos, te na luta pelo fim dos anos de chumbo. Em tal
grava informações e palavras de ordem em objetos circu- contexto, o crítico Frederico Morais declara:
láveis, como por exemplo em garrafas retornáveis de Coca-
-Cola e cédulas de dinheiro, recolocando-as em circulação O artista, hoje, é uma espécie de guerrilheiro.
no seu uso cotidiano com ideias críticas, tais como a in- A arte é uma forma de emboscada. Atuando
dagação: “Quem matou Herzog?” Recentemente o artista imprevistamente, onde e quando é menos es-
carimbou o rosto de Marielle Franco em cédulas de reais. perado, de maneira inusitada (pois tudo pode
2 Em abril de 1970, Arthur Barrio colocou em atividade
transformar-se hoje em instrumento de guer-
a Situação T/T,1. Ação composta por quatorze trouxas ra ou de arte), o artista cria um estado de per-
ensanguentadas (sacos preenchidos com carnes, ossos, manente tensão, uma expectativa constante.
barro e espuma de borracha) que foram colocadas nos ar- Tudo pode transformar-se em arte, mesmo o
redores de um córrego em Belo Horizonte, causando um mais banal evento cotidiano. Vítima constan-
grande burburinho entre as autoridades e os passantes te da guerrilha artística, o espectador vê-se
pela suposta cena criminal em plena ditadura militar, obrigado a aguçar e ativar seus sentidos. (MO-
toda a ação foi fotografada. RAIS, 1970, p.2).
Esse estado de permanente tensão está massa. Com esse contexto comemorativo e de
presente na conjuntura política Brasileira que ascensão da direita voltamos ao ano de 2021,
serve de palco para as intervenções da arte de em uma Avenida Paulista repleta de pessoas
guerrilha e as manifestações de resposta das marchando em um clima belicoso de golpe.
elites brasileiras. Quando o presidente Jango Eis que em meio a cartazes contra o STJ, surge
entrou em uma onda de implantação de refor- um grande objeto, com grande poder de des-
mas de base, incomodou a pequena-burguesia truição da “tradicional família brasileira”, um
com o “perigo comunista” (Fausto, 2001, p.391). misto de míssil e pênis inflável, a caráter nas
Deu-se o início do fim de seu governo, ocorren- cores verde e amarelo, que sobre um carrinho
do em seguida a “Marcha da família com Deus de supermercados avança em sua missão.
e a Liberdade”, uma das primeiras manifesta- Essa curiosa proposição escultural de
ções de rua da direita no período, e de acordo grande formato (cerca de cinco metros de altu-
com Fausto, havia cerca de 500 mil pessoas que ra), infiltrando em meio a uma massa bolsona-
desfilaram nessa marcha que ocorreu em 19 de rista, causa uma paralisia interpretativa em
março de 1964, 12 dias antes do Golpe. quem observa. O responsável da ação é Frede-
Superada a ditadura militar, o Brasil rico Ravioli que, junto com mais quatro cole-
atravessa novamente uma situação política gas (Leonardo Zeine, Renzo Comolatti, Ingrid
26 Fernandes e Laura Viana), resolver fazer em 7
delicada, onde os ecos do passado ressoam e
assombram a sua jovem democracia. Os efei- de setembro uma “tiração de sarro” como dis-
tos são gritantes, sofremos um golpe em 2016 se Fred. E também uma explicitação do que de
que destitui a sua então Presidenta Dilma Rou- fato era o governo e movimento bolsonaristas.
sseff, e com os avanços efetivos da direita, se Em entrevista realizada com Frederico Ravio-
elege em seguida um presidente avesso aos li, ele afirma:
ideais democráticos. As ruas como um campo Pensamos então em usar o símbolo do míssil
em paralelo com uma piroca gigante e tentar
democrático por excelência, se torna a gran- explorar isso. No fundo, nos parece que essa é a
de arena de vozes dissonantes, colocando em própria lógica do bolsonarismo, falar uma coi-
cena palavras contrárias à democracia. sa grotesca para criar uma cortina de fumaça
para outro absurdo maior ainda. Nesse caso, a
graça do trabalho era criar uma confusão en-
Um pênis bélico verde-amarelo na tre as duas alternativas grotescas, o falo verde
Paulista amarelo patriarcal de plástico ou uma bomba
O dia 7 de setembro, data da Independên- explosiva que pretendia explodir tudo. Foi jo-
gando com essas duas ideias e imagens que fize-
cia do Brasil, é marcada por muitos símbolos
mos a performance. Ao mesmo tempo que ela
patrióticos que envolvem a imaginação sobre era uma tiração de sarro, ela também não dei-
a ideia de nação, e causam especialmente na xava de ser uma explicitação do que de fato era
mente dos direitistas uma embriaguez dos o governo e o movimento bolsonarista, ten-
tando criar assim uma repulsa a si própria ao
sentidos, que se nota no comportamento dessa conseguir colocar em imagens claras essa ideia
27
vaga e nublada de aniquilação, falocentrismo e relo, depois achando graça como se tudo aquilo
falsidade (2022). tivesse sido uma trollagem. A própria dúvida
sobre a origem e intenção do trabalho fez com
A dúvida gerada sobre a natureza do ob- que ele fosse disputado e olhado com mais in-
jeto, ser um míssil ou um pênis é um dos cho- teresse, mas talvez seja pouco dizer que ele era
ques esperados pela ação, uma vez que existe apenas um pinto verde e amarelo disfarçado
de míssil, para nós, ele era justamente esse
um culto ao armamento e a virilidade é con- contrário ainda mais perigoso, um míssil dis-
cebida como virtude por esse grupo (a ponto farçado de pinto.
do presidente gritar diversas vezes que era
A guerra dos infláveis: pato, rato e
“imbroxável” em plena comemoração dos 200
pixuleco
anos da independência do Brasil). Mesmo as-
Não foi agora que os chamados infláveis
sim, algo de estranho incomoda, essa ação é
entraram em cena nas ruas. Em 2015, o pu-
um infiltramento que troça com o absurdo dos
blicitário Paulo Gusmão criou um boneco in-
tempos em que vivemos, gerando indagações
flável de 15 metros de altura representando o
pelo estranhamento e pelo riso. Na esteira do
Lula com roupa de presidiário. O boneco foi
cômico, “O riso é sempre visto como economia
às ruas pedir o impeachment da Dilma. Pos-
de energia e descarga de tensão entre “isto” e
teriormente, passou a ser reproduzido em
o “superego”. Este permite a satisfação sim-
28 diferentes tamanhos em quase todas as mani-
bólica, antecipada da pulsão” (Minois, 2003,
festações de direita no Brasil. Em entrevista
p.615). As pulsões envolvidas segundo Jean
para a revista Veja em 2018, Gusmão explica o
Bergeret “são a agressividade e a sexualidade
motivo do nome:
e que o caráter subversivo do riso reside no
No começo, o boneco não tinha nome. Pensei
questionamento jubilatório da autoridade. O em chamá-lo de Luleco, mas aí apareceu o “Pi-
riso é, ao mesmo tempo, um fenômeno de su- xuleco”, associado a propina, e tomou uma for-
blimação e de fantasia.” (Apud Minois, idem). ça gigantesca. Tivemos todos os cuidados.
A ação do “Míssil para explodir Brasília” O boneco até então “adormecido” aguarda
não ficou fora da Guerra Cultural de Imagens o momento exato para voltar para as ruas, de
causada nas mídias sociais. A confusão, os me- acordo com o seu criador, que faz um exercício
mes, as montagens e a situação pifaram a men- de explicar, que para ele, o boneco tem uma
te de muitos colunistas de matérias de jornais, mente e inteligência que o mantém vivo até
gerando dúvidas sobre o propósito da ação que hoje. Além disso, existe o mascote que é consi-
torna a história mais curiosa e provocante. Ra- derado como o inflável número um da direita,
violi conta sobre: da Federação das Indústrias do Estado de São
Creio que um dos êxitos do trabalho se deu pela Paulo (FIESP) pela campanha “Não vou pagar
repercussão que ele teve nas redes sociais e na
guerra de disputas e narrativas que ocorreram o Pato” organizada em setembro de 2015, pelo
em torno dele. Num primeiro momento com a presidente da entidade, Paulo Skaf. O inflavél
internet horrorizada com o pênis verde e ama- da campanha contra o aumento de impostos
29
e volta da CPMF foi utilizado muitas vezes em Conclusão
manifestações em apoio ao Impeachment da A arena de disputa por meio da visualidade
ex-presidente Dilma. Pouco depois descobriu- operadas por esses personagens infláveis gigan-
-se que a FIESP tinha feito uma cópia indébita tes, munidos com suas armas ideológicas extra-
(aliás, a pirataria é comum na indústria bra- polam o espaço físico das ruas e caminham para
sileira) e entrou em uma polêmica de plágio o front digital. Os espaços virtuais são cada vez
em 2016 quando o artista plástico Florentijn mais recorrentes na atuação política, como a
Hofman acusou a toda poderosa Federação de manipulação orquestrada e operada por milí-
roubar a sua obra Rubber Duck (pato de borra- cias digitais da direita disparando fake news
cha). O mascote com aspectos de colonialismo para sequestrar o imaginário de nichos específi-
cultural e pirataria, mesmo após provas sendo cos da população. Portanto, as redes como arena
processado, continua ileso pois a Fiesp se recu- de disputa comportam também o crime e o ódio.
sou a pagar o pato ao artista holandês, dizendo Nesse sentido, enquanto temos uma direita acu-
que se inspirou em patinhos de banheira. sativa, temos uma atuação de guerrilha que
Em contraponto ao Pato, apareceu sorra- atua de forma infiltrada por meio de uma per-
teiramente na Av. Paulista um enorme Rato. formatividade ambígua e provocadora que saí
30 Mais uma vez uma inserção infiltrada em ma- das ruas e repercute na esfera virtual, causando
nifestações ideológicas, parafraseando aqui desordem mental para os manifestantes, utili-
Cildo, o rato tinha evidente ambiguidade: fa- zando as mesmas armas do ridículo e grotesco,
zia referência aos corruptos (como o Pixuleco jogando com espectador, gerando gatilhos críti-
de Lula) ou estava ironizando com a própria cos que coloca o espectador a se questionar so-
FIESP e manifestantes de direita que voltavam bre o absurdo, por meio do incômodo e do riso.
a ocupar as ruas 50 anos depois da Marcha da
Família com Deus pela Propriedade, que ocor- Referências
rera 12 dias antes do Golpe Militar de 1964. O Artista holandês acusa Fiesp de plagiar pato amarelo

rato também foi produzido por Fred e seu gru- <https://veja.abril.com.br/revista-veja/paulo-gusmao-


o-pixuleco-vem-sem-aviso/> e <https://www.bbc.com/
po de amigos. Ele afirma que a ideia de criar portuguese/noticias/2016/03/160329_pato_fiesp_fs>
um inflável, como uma escultura gigante meio FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Edusp/
podre e ambígua, já era uma forma que ele Imprensa Oficial do Estado, 2001.
FREITAS, Artur. Arte de Guerrilha. SP: Edusp, 2013.
costumava a trabalhar e em 2016, junto com o
GUSMÃO, Paulo. “O pixuleco vem sem aviso”.
mesmo grupo que produziu o Pênis-Míssil (e h t t p s : // v e j a . a b r i l . c o m . b r / r e v i s t a - v e j a /
com a adição do Bruno Storni), construíram o paulo-gusmao-o-pixuleco-vem-sem-aviso/
rato inflável de lona plástica preta para desfi- MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo:
editora UNESP, 2003.
lar nos atos da direita e da esquerda no dia da
RAVIOLI, Frederico: Um míssil para explodir Brasília,
votação do impeachment da Dilma. das ruas para os memes. Entrevista textual concedida aos
autores deste artigo. São Paulo: 2022
Moda bolsonarista:
identidade e propaganda
Gustavo Almeida Alves. Sou cria do Grajaú, na Zona Sul de São Paulo. Trabalho
como arte-educador, planejo construir uma carreira acadêmica pesquisando sobre
arte e necropolítica. E atualmente o meu passatempo preferido é jogar Pokemon
Black 2 no emulador pirata do meu celular.
Ana Laura Brait. Nascida e criada no ABC paulista, atualmente trabalho na área
de conservação do acervo do Centro de Memória do Circo. Além da graduação
em História da Arte, também estou terminando o curso técnico de Museologia,
pesquisando conservação de figurinos. Meus passatempos incluem fotografia, Clash
Royale e vídeos de cachorrinho.

Ao longo da história, a moda tem se mostrado A moda funciona como espelho de nossos tem-
pos, então ela é inerentemente política. Ela
como uma importante plataforma de disputa sempre foi usada para expressar tendências
política. Por meio dela, figuras icônicas e gru- patrióticas, nacionalistas e propagandistas,
pos revolucionários ou reacionários foram ca- além de complexas questões relacionadas à
classe, etnia, gênero e sexualidade. 31
pazes de se posicionar em relação ao sistema
vigente em suas respectivas épocas. A última Nesta linha, um grupo político que tem se
rainha francesa, por exemplo, impôs seu po- destacado são os “bolsonaristas”. Principal-
der e relevância através de sua indumentária, mente através da estamparia de camisetas,
que a permitia se destacar em cada momento grupos apoiadores do último ex-presidente
propício, fosse escolhendo vestir calças para conseguiram consolidar a sua própria identi-
se reunir com os homens da corte ou apare- dade seguindo padrões característicos da pro-
cendo em público com vestidos extravagantes paganda fascista. Tendo o patriotismo como o
que ostentavam o seu poder diante da plebe, seu valor máximo, a “estética bolsonarista” se
que por fim, a decapitou. Nos anos 1960, os destaca pela apropriação da bandeira e cores
Panteras Negras desenvolveram, através da nacionais, dando uma espécie de continuida-
moda, a estética black power, promovendo de aos manifestantes que foram para as ruas
novos ideais de beleza, reivindicando a auto- contra Dilma, entre 2014 e 2016. No entanto,
estima de pessoas pretas e ampliando a dispu- a performatividade patriótica bolsonarista é
ta pela sobrevivência dentro de uma sociedade bastante contraditória, como veremos.
racista.
Andrew Bolton, curador do Costume Ins- Patriotas do nada e performatividade
titute do Metropolitan Museum of Art de Nova fascista
York, explica em uma entrevista para a Vogue: A bandeira do Brasil busca ostentar as ri-
quezas naturais do país e possui o verde como o que às tradições populares e afro-brasileiras.
elemento dominante e mais emblemático, afi- A postura de afronta às artes e artistas, à
nal, é a cor que representa as matas e florestas, educação e professores, o anti-intelectualis-
um tema sensível para o governo Bolsonaro, mo, o negacionismo científico, o desinteresse
fortemente criticado pelas políticas coniven- pela própria cultura brasileira, em toda sua di-
tes com crimes ambientais. Isso para não falar versidade e riqueza, nos faz perguntar: afinal,
no ataque às reservas indígenas e seus povos, que patriotismo é esse?
que são os principais guardiões das florestas. O bolsonarismo ama a pátria como uma
O amarelo do ouro, cuja extração predató- embalagem oca de significado e identidade e
ria está sendo defendida por um presidente que não ama a cultura do povo e nem as riquezas
afirma defender garimpo ilegal e andar com naturais do país a ponto de achar relevante
uma “bateia no porta-malas”, está também preservá-las. O amor à pátria começa e termi-
associado ao escândalo de desvio de verbas no na em si mesmo, ao ponto em que se torna ape-
MEC por pastores que traficavam influência nas uma espécie de caricatura apoiada apenas
pedindo pagamento em barras de ouro. pelo teor propagandista que prolifera as ideias
O azul do céu, por sua vez, está em risco. vazias que formam esse tipo de posicionamen-
32 Entre 2019 e 2022, diversas vezes o céu do Bra- to (OLIVEIRA, 2020, p. 20).
sil foi encoberto por nuvens negras das quei- Além disso, a estratégia de propaganda
madas. Em 19 de agosto de 2019 o céu de São fascista promove a massificação e uniformi-
Paulo ficou de dia completamente escuro em zação de seus seguidores, criando um efeito
função de grandes focos de queimadas no país. visual de “maioria patriótica” ostensiva em
As estrelas, que representam os estados e relação à sua indumentária, ou “fardamento”.
nosso pacto federativo, também se apagam. O Os looks bolsonaristas são vestidos de
pacto federativo foi quebrado por Bolsonaro forma estratégica e funcionam como uma
ao descriminar os governadores nordestinos espécie de uniforme para criar uma ideia de
chamados de “governadores de ‘paraíba’” e maioria “de bem” em manifestações ou, até
cortar recursos (estados do nordeste “tem que mesmo, apenas para posar para fotos postadas
ter nada” - fala em 19 de julho de 2019). em redes sociais [Imagem 1]. Em alguns casos,
Por fim, o lema da ordem e progresso tam- a ideia de uniformização atinge um tom ainda
bém cai por terra com um crescimento do PIB mais radical, através das pinturas de rosto.
em 4 anos de apenas 1,2%, o menor de todos os Nesses casos, a ideia de massa e totalitarismo,
governos da Nova República. presente no texto “Propaganda Fascista” de
Além da flagrante contradição entre as Theodor Adorno, se torna ainda mais explícita
cores e símbolos da bandeira com as práticas quando pensamos que:
do governo Bolsonaro, há claros sinais de sub- “[...] o totalitarismo considera as massas não
missão aos EUA, colonialismo cultural e ata- como seres humanos autodeterminados [...],
33
mas os trata como meros objetos de medidas são, sobre o que concordam e discordam. Por
administrativas, ensinados, acima de tudo, a meio de coleta de observação de campo, entre-
se auto-anular e obedecer ordens”.
vistas, pesquisa de opinião (survey) e análise
Os perfis dos eleitores de Bolsonaro e de conteúdo publicado em redes sociais, os
suas camisetas de combate pesquisadores puderam listar 16 perfis distin-
A partir da observação das fotografias de tos de eleitores. Examinando-os de maneira
manifestações em campanhas de Bolsonaro, detalhada, é possível notar a proximidade en-
notou-se que, além das camisetas com símbo- tre eles e as categorias encontradas nos websi-
los e cores patrióticas, os eleitores vêm ado- tes, sendo as camisetas uma forma sintética de
tando o uso de camisetas que condensam suas perpetuar o discurso que cada perfil acredita e
opiniões (preconceitos e ódios), como uma defende.
forma de expressão. As estampas, nesse caso, O primeiro nicho de eleitores a ser anali-
possuem a função de falar pelo sujeito que a sado é definido pelo NEU como “Masculinida-
veste, como uma forma de identificação e reco- de Viril”. Predominantemente formado por
nhecimento em relação aos demais. Todavia, homens de 20 a 35 anos, acreditam que a popu-
ao examinar individualmente as camisetas lação deveria se armar para se defender, visto
34 fotografadas, é possível identificar que não ex- que, para eles, a justiça deve ser feita pelas pró-
pressam as mesmas ideias, apesar de servirem prias mãos. Esses eleitores frequentemente se
como campanha para o mesmo candidato. intitulam como homens “opressores” e veem a
Analisando websites que comercializam si mesmos como justiceiros. O discurso implí-
as camisetas bolsonaristas encontradas nas cito nas camisetas das categorias “armas” se
manifestações, observa-se que há uma seg- assemelha com esse perfil de eleitores. A Ima-
mentação e categorização das estampas que gem 2 mostra um manifestante, em 2019, em
parte dos próprios apoiadores do ex-presi- um ato pró-governo. Sua camiseta apresenta a
dente. Nos diferentes websites pesquisados, imagem do Bolsonaro três vezes, sendo a ima-
frequentemente, as camisetas se encontram gem em primeiro plano uma montagem com
agrupadas em nichos que contemplam ideias o rosto de Bolsonaro colado em um corpo que
de direita, sendo os temas mais frequentes: ar- aponta armas para o observador. Além de es-
mas, pró-vida, cristianismo, anti-comunismo tar armado, o que por si só exprime violência,
e frases (citações de “gurus” da direita, como Bolsonaro está representado em um papel de
Olavo de Carvalho). “opressor”, porque “olha” (com seus seis olhos
Em 2018, o Núcleo de Etnografia Urbana e frontais) de cima para baixo para quem obser-
Audiovisual da Fundação Escola de Sociologia va a imagem.
e Política de São Paulo (o NEU) realizou uma Outro perfil assíduo nas manifestações é
pesquisa com o objetivo de analisar os diferen- definido como “Fiéis religiosos”. Esse grupo
tes eleitores de Bolsonaro, entendendo quem não possui gênero ou faixa etária predomi-
35
nantes e é formado por cristãos de diversas influência tão descomunal (através das televi-
religiões. Seu discurso se baseia na defesa da sões, redes sociais, propagandas, filmes etc.),
família tradicional e dos bons costumes se- o bolsonarismo conseguiu se expandir através
gundo o cristianismo. Acreditam que o PT da montagem de uma iconografia própria, que
subverteu os valores da sociedade brasileira. se difundiu através de várias linguagens, des-
Dois slogans muito presentes na campanha de memes até um modo de se vestir.
de Bolsonaro aparecem frequentemente nas Analisando a forma como os bolsonaristas
estampas de camisetas desse grupo. São eles: utilizam essa indumentária, também é possí-
“Brasil acima de tudo, Deus de todos” e “Deus, vel perceber o caráter performático por trás
Pátria e Família” [imagem 3]. desse estilo. O patriotismo é o valor principal
As estampas bolsonaristas também estão seguido por esse grupo, mas trata-se de um
presentes nos universos nerd e gamer. Expres- valor que não ultrapassa a esfera do visual,
sando suas ideias conservadoras através de é apenas uma espécie de ficção que nunca se
memes e estampas cômicas, esse perfil é pre- torna realidade, visto que essa exaltação dos
dominantemente masculino e possui faixa símbolos nacionais se extingue nas roupas.
etária entre 16 e 34 anos. Reunidos em fóruns A moda bolsonarista é também um meio pelo
36 fechados e chats de jogos, esses eleitores dis- qual a direita pôde unificar seus eleitores, que
cutem ideias preconceituosas, homofóbicas vão desde mães cristãs em defesa da família,
e, principalmente, misóginas. Esse nicho de até “cidadãos de bem” que defendem o porte
eleitores foi fundamental para o resultado das de armas. O fato de que grande parte da co-
eleições de 2018, uma vez que, através de uma moção entre esses eleitores aconteceu graças
imagem divertida e “politicamente incorreta”, a influência das imagens produzidas pelo bol-
o “bolsomito” se popularizou. As camisetas sonarismo evidencia, mais do que nunca, que
bolsonaristas que conversam com esse eleito- no mundo contemporâneo as imagens se tor-
rado vão desde o personagem “bolsomito” (um naram um campo de batalha e que há muito
cartoon estilizado de Bolsonaro com óculos de tempo a extrema-direita já aprendeu a como
“mito”), até referências a filmes e séries do uni- se articular nessa disputa.
verso geek, como Matrix e super-heróis [Ima-
gem 4]. Referências
ADORNO, Theodor. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise.
Editora Unesp, 2007;
Conclusão
KALIL, Isabela Oliveira. Quem são e no que acreditam os
Ao observar o crescimento da extrema di- eleitores de Bolsonaro. Fundação Escola de Sociologia e
reita nos últimos anos, é notória a capacidade Política de São Paulo, 2018.
que esses grupos desenvolveram para se adap- OLIVEIRA, Rodrigo Cássio. Kitsch, consumo e política: a
publicidade das lojas Havan e a estética do bolsonarismo.
tar à sociedade contemporânea. Em um mun- Revista Compós, Universidade Federal do Mato Grosso do
do no qual as imagens possuem um poder de Sul, 2020.
Memetização da política:
imagens e humor na extrema direita

Cristina Naiara Fernandes é pesquisadora e graduanda em História da Arte pela


Universidade Federal de São Paulo. Seus principais interesses estão em pensar as
hierarquias excludentes e a possibilidade de novas narrativas na arte brasileira.
Larissa Avelino é artista visual, pesquisadora e graduanda em História da Arte pela
Universidade Federal de São Paulo. Seus interesses são a produção audiovisual
latino-americana, africana e os processos criativos multimídia.
Paloma Oliveira é fotógrafa, pesquisadora e graduanda em História da Arte pela
Universidade Federal de São Paulo. Seus objetos de interesse são Pixação, Arte
Urbana e estéticas transgressoras no universo da arte.

O ano é 2003, durante uma entrevista a Rede mentar vira motivo de piada, ela é ridicula-
TV! em que se discutia a redução da maioridade rizada e nessa manobra é omitida a violência
penal, Bolsonaro insulta a deputada do PT que sofreu. Em sequência, Bolsonaro aparece
37
Maria do Rosário, dizendo “Não te estupro fazendo sua pose clássica de imitar uma arma
porque você não merece” e entre empurrões com as mãos. Sua pena é a pena de morte, diz
e gritos ele prossegue: “Vagabunda!”. A o texto.
situação volta a se repetir em 2014, dessa vez Misoginia, armamentismo e execução de
em plenário na Câmara onde além de repetir criminosos são parte do ideário do movimen-
a mesma sentença, ataca a deputada dizendo to bolsonarista. Temas como pena de morte e
que ela “defende bandidos” e seria da “turma redução da maioridade penal sempre foram
dos direitos humanos”. tratados como julgamento moral, desconside-
Esses dois episódios violentos de quebra rando inclusive questões estruturais e sociais
de decoro parlamentar e intimidação ganham que alimentam a criminalidade dentro do con-
um caráter lúdico através da memética bolso- texto de desigualdade social em nosso país.
narista e do humor da extrema direita, como Questionar a atuação violenta da polícia mili-
na imagem 1. O primeiro quadro explora a fi- tar e seu uso excessivo de força, principalmen-
gura de Maria do Rosário chorando. O choro é te sobre corpos pretos e periféricos, é o mesmo
associado a um lamento por Bolsonaro não ter que defender bandidos.
pena de bandidos. A ironia na relação de texto
e imagem é uma referência aos episódios des- Memética de humor e ódio
critos acima. A despeito de toda a misoginia Ao transformar tais questões em meme,
presente naquele momento, o choro da parla- o riso se torna uma forma de dominação. Rir
para delimitar posições e nos distinguir da- A partir de 2018, o humor passou a ser
quilo que desprezamos. Segundo Quentin usado pelos segmentos mais conservadores
Skinner, historiador britânico, pensadores e extremistas de direita para desqualificar as
como Aristóteles trataram do riso como forma pautas de seus adversários, combater o “politi-
de demonstrar superioridade, diante daqueles camente correto” e “suavizar” o discurso auto-
que achamos ridículos: ritário do então candidato à presidência, Jair
A sugestão básica de Aristóteles é, portan- Bolsonaro.
to, que a alegria induzida pela zombaria é sem- Segundo o pesquisador Viktor Chagas
pre uma expressão de desprezo (...) A comédia (2021), há uma intensificação da produção de
trata do que é risível, e o risível é um aspecto memes nos episódios em que Bolsonaro foi
do vergonhoso, do feio ou do baixo. Chegamos confrontado com situações desfavoráveis. O
a rir de outras pessoas, porque elas exibem meme funciona então como “cortina de fuma-
alguma falta ou merca constrangedora que, ça” para desviar a atenção sobre os problemas
enquanto não dolorosa, as torna ridículas. que vão surgindo ao longo do processo políti-
(SKINNER, 2002, p.16-18) co. Assim, no contexto da política bolsonarista
Esse é o método de ação do antipetismo. memes seriam peças de militância, defesa/ata-
38 As figuras políticas de oposição presentes nos que e propaganda.
memes da direita comunicam a partir da pola-
rização de discursos. Eles se transformam na Mentiras em alta velocidade
figura antagônica do discurso bolsonarista e Com seu caráter objetivo de comunicar
são o alvo do riso. Ainda que o que vemos pare- rápido por associações de ideias, o meme se
ça superficial, há um encadeamento de ideias adapta bem à velocidade frenética da fruição
e pautas políticas, de acordo com James Hun- de informações das redes sociais e é uma ade-
ter, teórico que elaborou a teoria das guerras quação dos discursos políticos aos novos meios
culturais. de comunicação de massa (CHAGAS, 2017).
O humor está presente na política brasilei- Esse fato possibilita maior contato do cidadão
ra há bastante tempo. Em 1837, charges como comum com a política e o debate público, mas
“A campainha e o cujo” (LIMA, 2018) já circula- isso não significa que este seja um debate de
vam nos jornais do país, satirizando políticos qualidade, ao contrário - estamos no reino da
através da associação entre texto e imagem. pós-verdade e das “disputas de narrativas” (ou
O recurso do lúdico foi e é frequentemen- de memes) e há um descolamento em relação
te utilizado por inúmeros candidatos como à realidade, à verdade, à evidência científica e
Jânio Quadros, Enéas e Tiririca (CHAGAS, histórica. Como pontua Chagas:
2021) que incorporaram o humor como estra- Exatamente como outros replicadores, os
tégia de campanha para disputar visibilidade memes são selecionados naturalmente, de for-
midiática. ma que as crenças mais bem aceitas, as ideias
39
mais razoáveis, ou simplesmente aquelas que A odisseia bolsonarista de combate a um
têm maior apelo entre as pessoas, são as que suposto socialismo/comunismo a ser im-
se disseminam com maior eficácia. (...) isto é, plantado pela esquerda no Brasil é também
a abordagem não está centrada na condição de o medo das diferenças. Para Umberto Eco,
verdade que esses memes carregam, mas no o heroísmo ligado ao culto da morte é uma
modo como se propagam. (CHAGAS, 2021) das características com as quais o fascismo
A imagem 2, propõe uma falsa questão, se constrói. O que vemos na imagem 4 é jus-
ao indagar quem seria preso numa briga en- tamente o heroísmo da personagem disposta
tre uma mulher e uma travesti (identificada a entrar em um conflito armado para salvar
no meme com pronome masculino). A ideia de a pátria. A ironia do cumprimento cristão “a
masculino/feminino na frase desconsidera as paz irmãos”, em contraponto da arma, carre-
discussões de gênero e contraria a Lei Maria ga a distorção moral e ideológica promovida
da Penha, que atualmente inclui em sua defesa pela extrema direita: o que seria um lugar
mulheres transexuais. de paz e comunhão se tornou um palco de
Assim como na imagem 3, onde Lula apa- guerra.
rece junto do texto: “Sou trans-honesto, sou Na imagem 5, a Estátua do bandeiran-
40 ladrão, mas me identifico como honesto”. A te Borba Gato em chamas, incendiada como
despeito da absolvição de Lula pela justiça, se protesto por se tratar de um personagem
reforça a ideia de corrupção ao mesmo tempo que matou indígenas e negros, é comparada
em que são negadas as pautas de identidade a fotografia de manifestantes bolsonaristas
de gênero. Já que a frase encerra uma supos- pedindo a volta do voto impresso. As duas
ta farsa, uma transição da verdade (“ladrão”) mulheres, uma em cadeira de rodas e a outra
para uma mentira (“honesto”). que a acompanha, evocam a ideia de família,
de colaboração e construção coletiva de um
Medo da diferença ato democrático enquanto a imagem da está-
Umberto Eco (2018) em seu texto Fascismo tua sugere que a esquerda produz a barbárie
Eterno, sinaliza para uma das características e depois, cinicamente, “quer abrir o diálogo”.
do fascismo o “natural medo da diferença”. Na Assim, as pautas das minorias, como o com-
imagem 4 a estranha cena de uma Barbie mu- bate ao racismo, ao genocídio negro e indíge-
nida de metralhadora e Bíblia dentro da igreja, na são deslegitimadas. A crítica à forma de
disposta a fuzilar socialistas em nome da paz protesto se sobrepõe à validade da causa em
(dos valores cristãos e da “família”), reflete questão. Mas essa omissão é proposital, já que
várias das identidades do bolsonarismo: um problemáticas como essa não fazem parte das
mesmo projeto onde convivem o fundamenta- demandas da extrema direita.
lismo, o fascismo, o anticomunismo e a necro-
política (MBEMBE, 2018).
41
Conclusão Pol. Cult. Rev. Salvador, v. 15, n°1, p.22-62 jan/jun.2022.
A comunicação memética digital dilui o LIMA, Thais Guimarães. A charge como elemento
informativo, crítico e satírico no jornal Aconteceu. Pós em
limite entre o espaço público e privado, dimi- Revista. v. 1 n. 1 (2018), UNIUV, Rio de Janeiro, 2018.
nuindo também a distância entre o político e a MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições; 2018.
moral, criando as condições perfeitas para que NETO, Moysés Pinto. Política na era da visibilidade total:
as pessoas se sintam confortáveis em expres- observações conjunturais a partir do episódio The Waldo
Moment, de Black Mirror. Galáxia (São Paulo), São Paulo,
sarem suas opiniões, ressentimentos e ódios. v. 45, p. 139-152, Set-Dez 2020.
O humor brutal contido nos memes de extre- POPOLIN, Guilherme. O Messias Chegou, Mas Qual? O
ma direita, por sua vez, dá vazão para toda re- Papel Dos Memes Na Construção De Mitos. Museu de
Memes. Disponível em: <https://museudememes.com.
volta contida em relação às pautas sociais, de br/o-messias-chegou-mas-qual>. Acesso em: 25 de Nov.
diversidade e inclusão. Os meios de comunica- 2022.
ção digital e as redes (anti)sociais se tornaram Barbie e Ken Cidadãos de Bem. S/d. Museu de Memes.
Disponível em: <https://museudememes.com.br/
um novo modelo de agitação e propaganda
collection/barbie-e-ken-cidadaos-de-bem>. Acesso em:
política e cabe a nós, usuários das redes, cons- 25 de Nov. 2022.
truir e difundir uma postura crítica de leitura SKINNER, Quentin. Hobbes e a Teoria do Riso. São Leopoldo:
e interpretação dentro desses espaços virtuais Ed. Unisinos, 2004

para não cair em narrativas de ódio disfarça-


42
das de humor.

Referências
CHAGAS, Viktor. Meu malvado favorito: os memes
bolsonaristas de WhatsApp e os acontecimentos
políticos no Brasil. Estud. Hist. (Rio J.) 34 (72), Jan-Apr 2021.
Doi: https://doi.org/10.1590/S2178-149420210109   
__. A política dos memes e os memes da política: proposta
metodológica de análise de conteúdo de memes dos
debates eleitorais de 2014. Intexto, Porto Alegre, n. 38, p.
173-196, jan./abr. 2017.
__. Da memética aos memes de internet: uma revisão da
literatura. BIB, São Paulo, n. 95, 2021, pp. 1-22.
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FALCÃO, Márcio e GUERREIRO, Gabriela. Para rebater
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rebater-deputada-bolsonaro-diz-que-nao-a-estupraria.
shtml> Acesso em: 25 de Nov. 2022.
HUNTER, James Davinson. A guerra cultural continua.
A direita no universo gamer:
repercussões do jogo Last of Us 2

André Zaparoli. Estou quase no fim do curso de História da Arte. Sou um artista
plástico, desenho e faço pinturas digitais.
Rebeca Nieves. Estou me graduando em Ciências Sociais. Busco compreender
o comportamento humano e sua evolução através de estudos antropológicos e
cinematográficos.

A indústria gamer, o espectador ativo e No entanto, uma vez que ela está associa-
a alt-right da ao ambiente majoritariamente ao prota-
O universo gamer e nerd é mágico e quase gonista dominante: masculino, branco, cis
hipnótico, você se identifica com os mocinhos gênero, classe média, que é normalizado pelos
e luta contra os vilões, torna-se o persona- usuários; o desejo de manter o status quo tor-
gem que melhor lhe convier, mudando cabe- na o ambiente gamer um espaço nocivo para as 43
los, olhos, estatura, armamentos e posições minorias. Desse modo, a cultura gamer acaba
sociais. Ao contrário de outros produtos da por ser suscetível a discursos de ódio da extre-
indústria cultural, o espectador não é passi- ma direita, que domina os fóruns de discussão.
vo, mas ativo dentro do simulacro do game, Pode-se enxergar, sobretudo a partir do
mesmo que sob as possibilidades do que já foi surgimento da nova “direita alternativa” (a al-
pré-programado. É, por isso, um espectador t-right) nos EUA e da candidatura de Trump à
atuante, um público que é ator, que intera- presidência, a enorme ampliação do contágio
ge com os ambientes e personagens dos jogos desses discursos nos âmbitos ligados à “cultu-
como se estivesse neles imerso, tomando deci- ra gamer”. A captura ideológica é sub-reptícia,
sões, comandando a si mesmo e a seu avatar. levando ao player um conjunto de premissas
Muito diferente de estar sentado numa pol- ideológicas, de classe, raça e gênero comple-
trona de cinema, os games produzem simula- tamente desvinculados do mundo do jogo e
ções imersivas cada vez mais realistas, ou até da ludicidade. Desse modo, o preconceito e o
“mais realistas” que o real, em 3D, alta resolu- ódio precisam ser, na maioria das vezes, ca-
ção, cores vívidas, som surround e leitura por muflados, para que quem a propague, possa
escaneamento de movimentos. Não por acaso, alegar que está protegendo a “identidade ga-
a indústria gamer bate há anos o faturamento mer”, fragilizada pela quebra do equilíbrio de
da indústria de cinema e conquista multidões poder responsável pela conformação dessa e
de jovens em todo o mundo. tantas outras normatividades. Assim sendo,
qualquer entidade que ataque essa essência The Last of Us 2 é considerado o jogo mais
de “avatar de si mesmo” é merecedora de es- premiado do ano na história segundo a ND-
cárnio e desprezo. Essa dupla identidade é que Games. O game da Naughty Dog obteve 259
fornece uma camada adicional de proteção prêmios em 2020, superando The Witcher 3:
para os propagadores do ódio, e sua estratégia Wild Hunt que obteve 258 troféus em seu lan-
de autodefesa afirmando que não era ele em si çamento, em 2015. Desse modo, The Last Of Us
quem produziu o discurso, mas seu heterôno- 2 também se tornou o jogo mais premiado da
mo ficcional. história dos videogames. Todavia, o sucesso
Em jogos ou filmes da cultura gamer/nerd da crítica não parece o suficiente para driblar
que pretendem ser inclusivos, geralmente pela os haters. Entre as inúmeras reclamações está
necessidade das empresas se posicionarem po- o fato de a protagonista Ellie ser lésbica e ter
liticamente, englobando pautas LGBTQIA+, uma antagonista mulher, Abby, que segundo o
étnico-raciais, ou até mesmo críticas a Trump, roteirista do jogo, Halley Gross, é “puro mús-
esses produtos mais “politicamente corretos” culo, um caminhão”.
aborrecem os gamers por se sentirem invadi- No jogo, há personagens trans, cultos re-
dos por ideais que não defendem. A maioria ligiosos pagãos e um violento mundo pós-apo-
44 não diz abertamente sobre o motivo de não te- calíptico onde não há só homens na liderança,
rem gostado da mídia em específico, a menos gerando uma onda de alt-rights apelidando o
que esteja no Twitter ou em alguma outra pla- jogo de “The Lesbian of Us” ou, no Brasil, “The
taforma “segura” para expressarem seus des- Lacre of Us”, apontando o videogame como
prazeres e ressentimentos. “ideologia de gênero”. Mesmo assim, Neil Dru-
ckmann, diretor e roteirista comentou que:
Um jogo que enfrenta seu público “como as pessoas vão se sentir em relação ao
Nos filmes da Marvel, por exemplo, ter material é problema delas. Temos um grande
uma protagonista mulher “estraga o filme”, orgulho da temática do jogo”. A PlayStation,
a presença de personagem que visibilize a ho- por exemplo, já havia publicado que o jogo
mossexualidade é sempre levada como um ato não seria lançado no Oriente Médio, uma vez
de “militância” e nunca visto com naturalida- que o enredo contém homossexualidade, nu-
de. Entre os jogos, destaca-se nessa inversão dez e consumo de substâncias proibidas, atos
de expectativas do público dominante bran- censurados pelo regimes conservadores e
co-cis-misógino-racista, The Last of Us 2. Na teocráticos.
versão 2 do game, as expectativas dos fãs do A personagem Ellie é a responsável por de-
primeiro jogo, se frustraram não somente pela senvolver o enredo da história que está sendo
protagonista ser lésbica, mas também porque contada. É ela quem leva o jogador de um canto
as duas protagonistas jogáveis são exclusiva- para o outro, tendo sido já apresentada desde
mente mulheres, diferente do primeiro jogo. o primeiro jogo como a chave para todo o de-
45
senrolar da trama. A reação ao protagonismo no entanto, essa suposição foi dissolvida após
de Ellie por parte dos jogadores de perfil domi- o lançamento, mas não impediu que zombas-
nante é uma cultura também machista, hete- sem do design da personagem, pois “não era
ronormativa, contra a mudança de papeis e de realista que uma mulher pudesse ser tão afi-
poderes de comando no jogo. cionada”, apesar da personagem ter sido mo-
Enxergar essa problemática é entender a delada por uma fisiculturista real. Com todas
forma como a mulher é normalmente apresen- essas críticas de uma parcela do público gamer
tada visualmente, com enredos clichês e fra- que não aceita diferenças, o que podemos con-
gilizadas, reflexo de como a mulher é vista na cluir a partir daqui? Há muito que aprender
sociedade, mesmo que as lutas por igualdade e sobre a cultura dos jogos e como as pessoas
a quebra de paradigmas de serem o “sexo frá- operam de forma dominante-normativa e re-
gil” vem há anos. É interessante pensar na or- acionária. Isso porque quando as coisas não
dem cronológica dos videogames e como desde acontecem como o esperado em sua visão de
Lara Croft em 1996, até Ellie em 2020, a forma mundo, quando o ativista gamer-nerd (tam-
como as mulheres são retratadas se tornou bém chamado de Incel, celibatários involun-
muito mais humanizada e favorável ao seu em- tários), fazem julgamentos rápidos, revelando
46 poderamento. Em God Of War, por exemplo, muito mais sobre si mesmos, suas pulsões de
na primeira versão o protagonista se deitava ódio, ressentimentos e frustrações.
com mulheres extremamente irreais e muitas
delas sem arcos narrativos, e mudou recente- Conclusão
mente para uma história próxima da de Ellie e A liberdade irrestrita de expressão, apre-
Joel do primeiro The Last Of Us. sentada como ideologia fundamental da ex-
Devido à expectativa do lançamento de trema-direita e refletida no espaço gamer, em
The Last of Us 2, parte de seu conteúdo foi va- todos esses casos, se tornou a ferramenta nú-
zado por hackers meses atrás, o primeiro em mero um para que se sintam no direito de ferir
26 de abril de 2020, o que desencadeou mais os direitos humanos e colocar seus posiciona-
críticas sobre o seu teor político no jogo. Mes- mentos reacionários como dominantes. Vem
mo assim, no agregador Metacritic (um Rotten deles a reclamação principal sobre a invasão
Tomatoes dos jogos) a produção tem uma nota dos games por pautas mais sérias, politica-
de 95 em 100. O jornal The Guardian chama o mente corretas ou que empoderam persona-
game de “inovador e poderoso”, ao passo que o gens não masculinos-brancos-cis no ambiente
Washington post de “um dos melhores video- que era para ser supostamente “prazeroso e
games já criados”. É importante ressaltar que de lazer”. Jogos mais progressistas e de gran-
durante o vazamento, ao falarem de uma per- de impacto podem ajudar a lembrá-los de que
sonagem transgênero, imaginaram que seria a sociedade é muito mais plural, e deveria ser
a personagem Abby, pois ela parecia “gorda”, muito mais democrática e inclusiva.
47
O grande ódio por mulheres dentro da in- MOLINA, Murilo. The Last Of Us 2: jogo de 2020 é o
mais premiado da história. Techtudo, 2021. Disponível
dústria Nerd e Gamer (tema para psicanalistas em: <https://www.techtudo.com.br/noticias/2021/01/
também) é cada vez mais perceptível quando the-last-of-us-2-jogo-de-2020-e-o-mais-premiado-da-
historia.ghtml>. Acesso em: 11 de novembro de 2022.
os usuários veem sua supremacia-macho-
MOURA, Eduardo. Game ‘The Last Of Us Parte 2’ insere
-branca em seu “habitat natural” ameaçada. personagens lésbicas e trans e atiça conservadores. GHZ,
Os ataques passam a se intensificar quando as 2020. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.
mulheres não apenas estão no ambiente como br/cultura-e-lazer/noticia/2020/06/game-the-last-of-
us-part-2-insere-personagens-lesbicas-e-trans-e-atica-
jogadoras, mas como personagens protagonis- conser vadores-ckbm4k iy v001z01jfm6aol5vl.html>.
tas. Para os gamers-nerds-Incels, mulheres só Acesso em: 11 de novembro de 2022.
entram no seu imaginário masculino subal-
ternizadas de forma erótico-fetichista caso
respondam adequadamente às suas pulsões
gozosas. Isso só mostra que a representativi-
dade das mulheres (e também de LGBTQIA+,
negros e outros personagens racializados/
subalternizados) nos jogos deve ser cada vez
48 mais disseminada, uma vez que o mundo dos
games, por serem uma mídia de grande alcan-
ce e influência, pode ser um ambiente mais
construtivo se assumir alguma responsabi-
lidade em incluir, apresentar e fortalecer a
diversidade.

Referências
ALHADAD, Zahra. An Infected Start: A look Into the
‘Last Of Us Part 2’ Hate and Backlash. IGN Southeast
Asia, 2020. Disponível em: <https://sea.ign.com/the-last-
of-us-2/165807/feature/an-infected-start-a-look-into-
the-last-of-us-part-2-hate-and-backlash>. Acesso em: 11
de novembro de 2022.
Banco de imagens: https://www.flickr.com/photos/
playstationblog/albums/72157690013439846 Acesso em:
20 de novembro de 2022
GÓIS, Paulo. ‘The Last of Us 2’ é banido em ditaduras
conservadoras do Oriente Médio, NerdSite, 2020.
Disponível em: <https://www.nerdsite.com.br/games/
the-last-of-us-2-e-banido-em-ditaduras-conservadoras-
do-oriente-medio/>. Acesso em: 11 de novembro de 2022.
Masculinidade tóxica e o
corpo-bombado bolsonarista

Amanda Feo. Olá, consigo falar de tudo, mas não sei de nada. Sempre aprendendo.
Sempre do coletivo.
Bruna Andrade. Arte Pública, Cidade, Cultura Popular e Arte Digital. Em alerta!

A história dá voltas, e por vezes marcha-a-ré. recursos financeiros, racional e prático, pro-
Parece que assistimos à forma inicial em que a tetor e detentor da razão e do conhecimento,
sociedade humana foi “uma horda governada apoiado pelas Leis Trabalhistas bem terrenas,
irrestritamente por um macho forte” (em Psi- que lhe davam alguma estabilidade e seguran-
cologia das Massas e Análise do Eu). E, assim, ça, agora se vê acuado, sem trabalho fixo, e
como chegamos aos tempos atuais de masculi- mesmo sem renda.
nidade tóxica? E o que ela nos explica sobre o De um ponto de vista sociocultural, o que
49
bolsonarismo? isso representa para o conceito de masculi-
nidade? Em uma esfera psicanalítica, o que a
Crise do mundo do trabalho e perda do poder decisório sobre o seu trabalho
toxicidade masculina e renda causa sobre um indivíduo? Em que me-
Após a reforma trabalhista de 2017, a vali- dida a crise do mundo do trabalho no capitalis-
dação institucional para modalidades intermi- mo vai produzir uma masculinidade reativa,
tentes de emprego aprofundou as camadas de tóxica, misógina e depressiva?
exclusão econômica e social de diversos grupos. Desde os anos 1970 existem estudos sobre
Este contexto realça duas importantes mudan- as “mulheres chefes de família”, pois a que-
ças: na escassez da garantia de renda, a origem bra da exclusividade da obtenção de renda
dos proventos familiares deixa de ser majorita- não é tão recente, apesar do contexto atual de
riamente masculina e, de outro lado, sem direi- desemprego, desregulação e desproteção tra-
tos trabalhistas, os homens entram em disputa balhista no Brasil atual ter aprofundado uma
permanente por qualquer bico, empreendedo- realidade já muito desigual. Nesse campo de
res de si mesmos e sempre competindo. batalha pela sobrevivência, em que os papéis
Ao perder seu lugar de protagonismo na de homens e mulheres se embaralham, ao se
família, o homem que antes exercia a partir de tornarem chefes de família, as mulheres saem
um imaginário de gênero embebido de valores de um imaginário que as coloca em um mode-
cristãos, a figura paterna de Chefe Provedor de lo de Mãe Cuidadora, dona dos saberes do lar e
guardiã das condições ideais para a educação e A repetição de padrões comportamentais
saúde dos filhos. nocivos como ideias de que “meninos não cho-
Essas transformações na relação entre gê- ram”, “homens se interessam apenas por car-
nero e trabalho são complexas e ambíguas. É ros e futebol”, “homens são garanhões”, com
ao mesmo tempo um exercício de libertação determinados códigos de vestimenta - entre
e empoderamento das mulheres. Tudo isso tantas outras regras - escala às extremidades
se confunde, sobretudo na cabeça do homem da violência, afetando toda a sociedade com
trabalhador, com sentimentos de frustração agressões, glorificação do poder, transtornos
e ressentimento, que vão ser explorados pelo psicológicos, sexismo e morte (padrões estes
bolsonarismo. muito acompanhados de impunidade). A satis-
Vamos analisar neste artigo como a in- fação dessa performance ritualística culmina
ternet enquanto transformadora da manei- em um estado de afirmação de si enquanto ho-
ra como a cultura de massas se dissemina e mem “macho forte’’. Assim, não bastaria ser
influencia, abriu espaço para novos tipos de homem (branco, cis e hetéro): seria preciso
escape para a frustração, descontentamento exercer seu papel assertivamente como domi-
e principalmente manipulação ideológica pe- nante, poderoso e viril.
50 rante a essas transformações e gerou uma bus-
ca digital por “machos fortes”. A assemblage estranha de Rambonaro
O corpo bombado no imaginário bolsona-
O velho machismo em concentração rista mobiliza aspectos de masculinidade tóxi-
tóxica ca, compondo uma propaganda personalizada
A masculinidade tóxica é um conjunto de que satisfaz o desejo inconsciente de poder
comportamentos e rituais de passagem que (isso se não sugestiona ativamente estes dese-
enfatizam estereótipos de gênero - neste caso, jos e interesses). Quando se observa montagens
o masculino. Esses comportamentos se tor- esquisitas e baratas de “Rambonaro”, onde a
naram tão intrínsecos à vivência masculina cabeça de Jair Bolsonaro é colocada em corpos
que aquele que não os performa é considerado sarados - fortificados e imbatíveis como o de
desconforme, como se sua performance fosse Rambo -, sem camisa ou com pouca vestimen-
uma manutenção de padrões e de demonstra- ta para mostrar os músculos enquanto segura
ção de afinidades. Esta performance é, nesse uma arma, com frases destrutivas direciona-
contexto, algo ritualístico e/ou artístico que das a algum grupo (ou genéricas para finalizar
mesmo não correspondendo necessariamente a composição dessas montagens), percebe-se
a um ideal individual continua sendo reprodu- que essas construções são metáforas de sim-
zida: sua realização mantém essa neurose viva ples compreensão e com alta carga ideológica,
à custo do indivíduo ser excluído de seus gru- mesmo sem uma análise aprofundada - princi-
pos caso não participe dela. palmente por seu totemismo.
51
Cada parte da montagem das imagens Aos olhos desatentos e aos discursos cíni-
Rambonaro é simbólica em uma organização cos esse volume de montagens bizarras pode
de mensagens comuns a um grupo: primeiro reverberar de forma cômica e inofensiva, mas
a própria imagem de Jair Bolsonaro como um é essa exata ambivalência de sentidos (entre
líder poderoso, evidenciada através de múscu- sua bizarrice e sua intencionalidade) que ca-
los atribuídos, evoca a ideia de governo de um mufla sua potência no imaginário popular: a
macho forte e protetor (do que? das ameaças!). estranheza interrompe o processamento de
Os músculos exagerados exaltam uma ideia suas reais mensagens por aqueles que não per-
de corpo infatigável, ultrapassando a ideia de tencem ao grupo em que os totens evocados
um corpo saudável e sadio e se tornando uma por elas são decodificados e glorificados.
concepção megalomaníaca do arquétipo mas-
culino. Além do foco do corpo, as montagens O resgate do soldado Silveira
trazem também armas e mensagens de des- Ao analisar os significados das montagens
truição, se vangloriando do poder que detém que circulam pela internet e pensar no mundo
e incitando a agressão de alguns (quem? Eles!) sensível nos deparamos com esta imagem e a
e a proteção de outros (nós, os De Bem!), o que figura de Daniel Silveira na política brasileira.
52 determina seu potencial de ameaça, evocando Os elementos mobilizados culminam na repe-
símbolos falocêntricos. tição dos padrões descritos: o corpo atribuído
A violência implícita e explícita nas mon- a Bolsonaro é atlético e jovem, disposição e va-
tagens exalta a irracionalidade, o derrama- lores que conservam os ideais de um povo - tal
mento de sangue e a morte como métodos de como, no mundo sensível, o corpo bombado
salvação e objetos de fascínio. As narrativas, do próprio Silveira ergue a placa de Marielle
desejos e expectativas de retomada de poder Franco partida ao meio em riste, esbravejando
são transpostas nessa mobilização de armas como um representante do rugido de uma hor-
enquanto objetos de potência falocêntrica e da que se opõe a tudo que Marielle representa.
destruição absoluta dos Inimigos. Neste caso, A imagem organiza uma perspectiva es-
estabelece-se uma relação fetichista que mui- pecífica de moralidade e gozo mórbido que se
to fala do desempoderamento econômico e gratifica de relações de poder e destruição:
social que as transformações estruturais re- no mundo sensível, Silveira possui o corpo
presentam para o arquétipo masculino. O ar- fortificado; no mundo simbólico, Bolsonaro
gumento armamentista de que a posse e o uso é quem o carrega com sua força política (esta
podem garantir a proteção do lar contra os que impediu a prisão de Silveira após ordem
“vagabundos” (os que não são de Bem) constrói expedida por Alexandre de Moraes). Essa fu-
novo sentido e função para a ideia de provedor, são-contaminação entre os arquétipos de
talvez agora se tornando um vigilante dos va- Silveira (nosso Rambo das fake news) e de
lores de Bem. Bolsonaro (o presidente com poder de fato) é
53
emblemática, pois o corpo de Bolsonaro no tada pela internet. Assim, criando uma horda
mundo real é velho, enfraquecido, constan- pronta para ser governada por seu “macho
temente apresentado como medicalizado (de forte”.
forma intencional, principalmente após o epi-
sódio da facada em sua campanha eleitoral e
sucessivas cirurgias). Referências
Ainda assim, na imagem “até o último ADORNO, T. W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise.
Editora Unesp, 2015. cap. Antissemitismo e propaganda
mito”, em cena de guerra, na Normandia ou
fascista, p. 137 - 151.
no Vietnã, Bolsonaro, mesmo um senhor FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros
de idade, é quem carrega e resgata o solda- textos (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
do ferido corpulento. O herói de guerra não p. 84 - 92.
KALIL, I; PINHEIRO-MACHADO, R; SCALCO, L.
abandona no campo de batalha um dos seus
DREAMING WITH GUNS Performing Masculinity and
(correligionários fiéis). Ainda que, no mundo Imagining Consumption in Bolsonaro’s Brazil (Precarious
real, o Bolsonaro velho e enfraquecido tenha Democracy: Ethnographies of Hope, Despair, and
Resistance in Brazil). Rutgers University Press, 2021.
abandonado muitos dos seus. Como salvador
KURTZ, Adriana Schryver. Holocausto judeu e a Estética
de Silveira em um esplendor físico fictício do nazista: Hitler e a Arquitetura da Destruição. Comunicação
Rambonaro mais uma vez revivido, Bolsona- & Política, Rio de Janeiro, v. VI, n.2 e 3, p. 139-158, 1999.
54
ro está lá, dando o indulto ao criminoso Sil- NOGUEIRA, C; MIRANDA, M. A (re)produção das
masculinidades hegemônicas- homens, famílias
veira, como o ápice de ideais conservadores populares e violações dos direitos humanos. In:
em caleidoscópio que culminam em seu ros- Interritórios: Revista de Educação. Universidade Federal de
Pernambuco, Caruaru, Brasil. V. 3, N. 5. 2017.
to, em sua figura e biografia, validando-os e
transformando-os em algum tipo de realida-
de paralela.

Conclusão
Por fim, torna-se evidente que a extre-
ma-direita se apropria de fragilidades socio-
políticas, escancaradas pelo capitalismo, e
desenvolve uma narrativa de identificação
e pertencimento para os “excluídos”. O bol-
sonarismo, como visto neste caso (mas não
só) estabelece uma relação semiótica simples
e avacalhada em que consegue permear os
grupos e fazer com que as pessoas se sintam
reconhecidas nos ideais transmitidos via se-
miótica, com sua propagação rápida e facili-
Ataques ao movimento feminista
e criminalização do aborto

Josiane Garotti. Josi, sou questionadora desde que me conheço por gente, além de
designer de produtos digitais e futura historiadora da arte.
Melissa Tavares. Mel, sentindo a vida em gotas caóticas. Se divide entre gerir o
próprio brechó e fotografar ensaios de moda — nem sempre dá conta.
Larissa Flauto. Lari, atuante na área de conservação patrimonial. Desde sempre
admiradora de memórias e incomodada com muita coisa.

Neste texto escolhemos como estudo de caso que saiu a decisão conhecida como “Roe contra
a perspectiva conservadora de Ana Carolina Wade” que descriminalizou o aborto. Naquele
Campagnolo e sua produção audiovisual, por ano o procedimento não era uma pauta discu-
se tratar de uma figura pública chave no mo- tida por religiosos tão veementemente como
vimento “pró-vida”, anti-feminista e contra vemos nos dias atuais. 55
a descriminalização do aborto no Brasil. Bus- Médicos e líderes evangélicos acredita-
camos traçar uma relação entre a deputada e vam que era uma questão de foro privado e
os ataques que grupos feministas sofrem ao não repudiavam a ação. Até que, em 1979, o di-
reivindicar esse direito perante à justiça1, e retor Francis Schaeffer, sob influência de seu
temos por finalidade entender porque ambos filho Frank, lançou uma série cinematográ-
são hostilizados pelo conservadorismo e pela fica, intitulada “Whatever Happened to the
extrema-direita no Brasil. Human Race?”, na qual se discutia o procedi-
mento abortivo a fim de convencer os fiéis que
Movimentos anti-aborto nos EUA e a a prática não deveria ser aceita com normali-
Marcha pela vida dade. Porém não houve um retorno positivo
Para entendermos a influência dos Estados da comunidade cristã, como esperado, mas
Unidos nesta pauta precisamos também falar houve uma intensa articulação do movimento
sobre o viés religioso. Voltemos a 1973, ano em feminista contra a produção, que abominou a
forma como o assunto fora abordado, fazendo
1 Em nosso país esse é um procedimento autorizado legal-
com que protestos fossem realizados contra
mente quando se enquadra em algumas restrições, assim os Schaeffer’s. Não demorou muito para que
como na maioria dos países da América Latina. Segundo os evangélicos escolhessem um lado, e come-
o artigo 128 do Código Penal, o aborto no Brasil é liberado
pela justiça em caso de estupro, risco à vida da gestante e çassem a perseguir e coagir médicos e líder
em gestações que apresentam anencefalia fetal. pró-escolha.
Em agosto de 1995, Norma McCorvey A maioria dos eleitores e manifestantes da
(dona do pseudônimo Jane Roe, do caso judi- causa pró-vida consideram sua opinião políti-
ciário que descriminalizou o aborto) se demite ca conservadora e defendente da “família e dos
da clínica médica de aborto que trabalhava e bons costumes”, e até mesmo se articula para
se torna uma manifestante pró-vida, e dá iní- impedir que casos de aborto aprovados pelo
cio a tentativa de reverter a lei que ela mes- Ministério Público Federal sejam revertidos,
ma ajudou a estabelecer, porém a instituição como o exemplo da menina de onze anos, víti-
pró-vida Operação Resgate subornou e coa- ma de abuso sexual, caso esse que será analisa-
giu McCorbvey para que ela mudasse sua opi- do a seguir.
nião pública. Em um documentário intitulado
“AKA Jane Roe” produzido pela FOX, Norma Ana Campagnolo e a CPI do aborto
declara que “Foi tudo um ato [...]”. Foi a partir Ana Caroline Campagnolo é professora de
de então que ela se juntou a March for Life, e história, autodeclarada bolsonarista, antife-
começou uma falsa carreira ao tentar reverter minista e conservadora, e é a atual deputada
a lei que ela mesmo ajudou a criar. estadual mais votada de Santa Catarina, pos-
No Brasil a Marcha pela Vida acontece suindo quatro livros lançados em seu nome:
56 desde 2007, organizada pela Comissão Arqui- O mínimo sobre Feminismo (O mínimo,
diocesana de Defesa da Vida de São Paulo. A 2022); Feminismo: perversão e subversão
marcha ocorre na Avenida Brigadeiro Luís An- (Vide Editorial, 2019); Guia de bolso contra
tônio, em São Paulo, mas também há edições mentiras feministas (Vide Editorial, 2021);
realizadas na Esplanada de Brasília que rei- e Ensino domiciliar na política e no direito
vindicam o “Estatuto do Nascituro”, que está (Estudos Nacionais, 2022) escrito em conjunto
sendo tramitado na Câmara dos Deputados. com David Amato e Isadora Palanca.
Tal projeto alega que a vida se inicia na con- A deputada se apoia nas ideias de Olavo de
cepção, e que não deve ser interrompida por Carvalho, e como professora da rede pública
razão alguma, e ressaltam que querem salvar de Santa Catarina, faz parte do Movimento Es-
duas vidas: a do feto e a da mulher. A organi- cola Sem Partido, além de ser colaboradora da
zação “Brasil sem aborto: movimento nacio- produtora Brasil Paralelo. Ana também traba-
nal da cidadania pela vida” foi responsável por lha contra a imposição de ideologia de gênero
elencar em seu site diversos candidatos que nas escolas, alegando isso como uma forma
concorreram ao cargo de senador e deputados de deturpação e erotização de crianças. O fe-
estaduais, federais e distritais — dentre os no- minismo para ela é uma ideologia anti-cristã,
mes eleitos em 2022 estão Damares Alves, Alan que produz ideias muito progressistas que co-
Lopes, Bia Kicis e Chris Tonietto, do PL, dentre locam sob ameaça a estrutura da família tra-
outros candidatos do PSC e Republicanos. dicional, que segundo ela, é a base saudável de
qualquer sociedade (Lobo, 2021).
57
Vale ressaltar que ela se declara seguido- um vídeo no canal Brasil Paralelo. Ela declara
ra do presbiterianismo, e ampara seu discur- se tratar de “um caso de estupro mal conta-
so no cristianismo, sendo também respaldada do” por parte da vítima, levantando a hipótese
pelo conservadorismo e pela ideia de tradição de se tratar de caso orquestrado pelo movi-
da família, e se mostra desfavorável a descri- mento feminista com a intenção de permitir o
minalização do aborto. Seu discurso propaga a abortamento em qualquer estágio da gestação.
ideia de que essa é uma prática de manipulação
do movimento feminista que deseja corrom- Pânico moral em animação vilanizadora
per os valores cristãos. No primeiro vídeo da sequência da CPI,
A CPI do Aborto é um projeto idealizado localizado no canal do YouTube da deputada,
por Campagnolo, que teve início em 2022 em intitulado “Abortistas mataram o bebê no 7º
seu canal no Youtube, com vídeos curtos. Em mês”, entre a minutagem 00:59 e 3:28, há um
suma, se trata de uma produção de conteúdo enxerto de uma animação produzida pelo
audiovisual que busca investigar os casos de grupo Choice4.2 [Escolha por dois], chamada
violência sexual que ganharam grande desta- Modern Child Sacrifice, ou O sacrifício mo-
que da imprensa, e que obtiveram a concessão derno de crianças, em tradução livre.
58 do procedimento abortivo amparado pelo ar- Neste desenho animado, traduzido e du-
tigo 128 do Código Penal. blado por Campagnolo, é possível notar o
O projeto foi votado e aprovado na Assem- aspecto de convencimento através do apelo
bleia Legislativa do Estado de Santa Catarina emocional das imagens e da narração do ví-
e se iniciou a investigação de um caso no qual deo. Dentre as estratégias de pânico moral e
uma menina de onze anos, vítima de abusos persuasão há a substituição da palavra aborto,
sexuais do próprio tio, engravidou. O pedido para se referir ao procedimento médico, pelo
de aborto foi negado pelo hospital e, poste- termo “assassinato de bebês”. Situação de hu-
riormente a juíza do caso incentivou a menina manização antecipada de um feto que ainda
a não interromper a gravidez, sob a alegação não se formou por completo, se contrapondo
que a gestação já estava muito avançada para a contextos nos quais o feto leva a gestação a
ser interrompida, que na época constava ser de ser interrompida em defesa da vida da mãe —
vinte e duas semanas. Após a interferência do como má formação, anencefalia ou risco de
Ministério Público Federal o procedimento foi vida à gestante. O termo “assassinato” tem
realizado, já que a legislação brasileira não es- como finalidade sensibilizar o espectador.
tabelece período máximo para a realização do O assunto é interpretado sob uma pers-
aborto em caso de violência sexual. pectiva cristã ortodoxa. Cenas ilustram ce-
Em outubro, mês de eleições presiden- rimônias “pagãs” astecas, incas e cananeias
ciais, o assunto foi retomado por Campagnolo, (minutagem 1:16 — 1:44) por meio uma paleta
responsável pelo projeto e relatora da CPI, em de cores quentes e escuras, representam deu-
59
ses através de uma estética cartunista com e cria-se a ideia de que as culturas têm de ser
feições maléficas, associando-as a algo intrin- colocadas em um mesmo contexto, excluindo
secamente ruim. Assumindo assim a interpre- toda e qualquer historicidade ou dimensões
tação de que culturas e religiões pré-cristãs culturais, até mesmo aquelas que colocam em
ou simplesmente distintas do cristianismo, risco a vida de um ser humano em segundo
se resumem a rituais selvagens e brutais, sem plano, em favor de um feto em formação.
referência a contexto, cosmovisões ou estudo
histórico sério.
Outro ponto relevante na estética do ví- Referências
deo são as cenas provocativas associadas à BLAKE, Meredith. The woman behind ‘Roe vs. Wade’
didn’t change her mind on abortion. She was paid. LA
vilanização da figura feminina (1:53 — 1:30),
Times, Los Angeles, Califórnia, 19 de maio de 2020.
Mulheres “abortistas” são representadas Television. Disponível em: <https://www.latimes.com/
conversando com uma figura masculina na entertainment-arts/tv/story/2020-05-19/roe-v-wade-
jane-roe-norma-mccorvey-hulu-doc-abortion> Acesso
praia, recebendo um prêmio associado ao su- em: 28 de novembro 2022.
cesso profissional e até mesmo marchando em Brasil Paralelo. Entenda a CPI do aborto e o caso da
uma manifestação feminista. Enquanto isso menina de 11 anos que foi vítima de ideologias feministas.
Youtube, 16 de outubro de 2022. Disponível em: <https://
60 acontece, na sombra das personagens pulsam youtu.be/cKG-W4EU1eg>. Acesso em: 26 de novembro de
imagens de fetos, criando a narrativa de que 2022.
aquelas são mulheres assassinas, e o fazem em CAPAGNOLO, Ana. Abortistas mataram o bebê no 7º mês
| #cpidoaborto. Youtube, 28 de junho de 2022, Disponível
nome da carreira, do prazer e do sucesso.
em: <https://youtu.be/1Mvsy6WxdDU>. Acesso em: 14 de
A animação age como uma caça às bruxas novembro de 2022.
por uma culpada, na qual uma vida tem mais CHOICE42. Modern child sacrifice. Youtube, 31 de
valor que a outra, neste caso, a do feto preva- outubro de 2020. Disponível em: <https://youtu.
be/1Hs7SHV5o9M>. Acesso em: 01 de dezembro de 2022.
lece sobre a da mulher. Além de promover uma
CPI do aborto. Disponível em: <https://cpidoaborto.com.
ideia de que o procedimento é adotado de for- br/>. Acesso em: 26 de novembro de 2022.
ma irresponsável e egoísta por aquela que opta G1 DF. Marcha Nacional pela Vida: manifestantes
por realizá-lo, não importando a circunstân- protestam contra o aborto, em Brasília. G1, Distrito
Federal, 07 de junho de 2022. Disponível em: <https://
cia social, econômica, psicológica e nem a es- g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2022/06/07/
pecificidade individual de cada caso. marcha-nacional-pela-vida-manifestantes-protestam-
contra-o-aborto-em-brasilia.ghtml>. Acesso em: 16 de
O vídeo termina estabelecendo uma re- novembro de 2022.
lação entre o procedimento abortivo e as ce- LOBO, Iann Endo; SPAREMBERGER, Cristian; DA SILVA,
rimônias e sacrifícios a deuses pagãos, antes Igor Campos. A nova direita e as guerras culturais:
um estudo de caso da atuação de Ana Campagnolo no
realizados por “egoísmo” para receber favo- Facebook. Em Tese, v. 18, n. 2, p. 196-213, 2021.
res das entidades celestiais e agora realizado
por mulheres em troca de sucesso e liberdade.
Seringas viram prédios banhados de sangue
O Templo de Salomão e a
estética da teologia da prosperidade
Ana Beatriz Tavares Barbosa. Cristã Protestante, natural de Santos-SP. Graduanda
em História da Arte, atualmente trabalha como Técnica em Museologia. Tem
interesse por estudos teológicos e filosóficos da arte, e participa ativamente da
luta por novas narrativas no cenário religioso brasileiro.
Melissa Maria dos Santos Alejarra. Estudante de licenciatura em História, com
experiência na área da educação. Moradora de São Miguel Paulista, Zona Leste
de São Paulo. Possui interesse por estudos na área de História Moderna e
Contemporânea, analisando mentalidades e culturas religiosas destes períodos.

No dia primeiro de setembro de 2019, o presi- cristianismo, numa perspectiva materialista


dente Jair Bolsonaro foi ao Templo de Salomão capitalista.
da Igreja Universal do Reino de Deus, no bairro A Teologia da Prosperidade, provinda de
do Brás, em São Paulo. A ocasião contou tam- um movimento religioso denominado neopen-
bém com a presença do Bispo Edir Macedo, líder tecostal, traz uma série de novas propostas te-
61
e fundador da igreja, o Bispo Renato Cardoso, ológicas, e segundo ela, “a base da civilização
responsável pela Universal no Brasil, e o de- ocidental” já não serve mais de fundamento
putado federal Marcos Pereira (Republicanos). para a igreja, então seria preciso buscar a mo-
Esta seria a primeira vez, segundo Bolsonaro, ral, os valores, a família, as leis (10 mandamen-
que visitaria o Templo de Salomão [imagem 1]. tos) e o Deus do Antigo Testamento, o Deus de
Israel. Nesse contexto, a Igreja Universal apa-
A relação de Jair Bolsonaro e Edir rece por usar de elementos do judaísmo, do
Macedo sionismo e do Estado de Israel em sua liturgia
A visita de Jair Bolsonaro ao Templo de e na própria definição da reconstrução de um
Salomão ocorre apenas nessa ocasião, mas sua templo judeu (uma sinagoga do século VI antes
relação com o líder da Igreja Universal vem de de Cristo) como catedral cristã [imagem 2]. As-
antes. Para entender essa relação, dois pontos sim, “no Templo de Salomão, vê-se tremular a
de discursos propagados por tais figuras pre- bandeira israelense e, do lado de dentro, uten-
cisam ser mencionados: a ênfase ao Antigo sílios judaicos integram os rituais, talvez seja
Testamento e a uma certa utilização que dele o caso mais emblemático nesse sentido”.1
é feita como estratégia de instrumentalização Ao longo do processo de ascensão da extre-
da fé; e o discurso do individualismo exacer-
bado, da meritocracia, do empreendedoris-
1 Disponível em: <https://brasil.elpais.com/bra-
mo e da acumulação como compatíveis com o sil/2019/04/06/opinion/1554584441_281600.html>
ma-direita e de Jair Bolsonaro ao poder, o uso A campanha de Jair Bolsonaro à presidência
de símbolos ligados ao Estado de Israel, as via- em 2018 foi marcada pelas alianças estabeleci-
gens à Israel, o batismo no Rio Jordão, e vários das publicamente com diversos líderes religio-
episódios em que a bandeira do país foi ergui- sos. Edir Macedo declarou abertamente em suas
da em comícios e atos públicos, pode ser iden- redes sociais seu apoio ao até então candidato3,
tificado como um fenômeno inédito. Nota-se bem como a TV Record, emissora de TV coman-
também que grupos conservadores, em es- dada por Edir Macedo, apresentou diversas
pecial evangélicos e militaristas, passaram a matérias favoráveis ao candidato, além de entre-
utilizar o Estado de Israel para alavancar suas vistas com o próprio Bolsonaro nos dias poste-
agendas religiosas e armamentistas no Brasil. riores ao episódio da facada4. A Igreja Universal
O movimento pró-Bolsonaro pode ser também publicou diversos jornais/folhetins que
apontado como grande propulsor dessa teolo- utilizavam os jargões da campanha de Bolso-
gia que se volta à busca pelo enriquecimento, naro, “acabar com a velha política” e “afastar o
disseminando a ideia de “superioridade” do comunismo”, bem como defender os “valores da
“povo de Deus” como sendo herdeiro e merece- família tradicional”. A IURD assim demonstra-
dor das bênçãos celestiais, relembrando a fala va sua aliança com a candidatura [imagem 3].
62 do próprio Jair Bolsonaro: “vamos fazer um
país para as maiorias. As minorias têm que se A diferença entre Bolsonaro e os outros
curvar às maiorias”2, que reflete bem essa ideia. políticos
Considerando que Bolsonaro surge quase Em sua visita ao Templo, Bolsonaro já elei-
sempre acompanhado em maioria por homens to presidente, assistiu ao culto de oração e foi
brancos engravatados, héteros e cisgênero, no- convidado a subir no altar para receber uma
ta-se o fortalecimento de um discurso e uma unção [imagem 4]. Durante a unção, Edir Ma-
estrutura patriarcal (como as histórias dos pa- cedo afirmou que Deus o tem dado autoridade
triarcas do Antigo Testamento), onde homens para curar os enfermos e levar o evangelho aos
estão sempre à frente, na liderança de grandes confins da terra:
igrejas, de grandes empreendimentos e do país. “[...] mas eu uso toda esta autoridade para
Nesse sentido, mais uma vez a Igreja Univer- abençoar este homem e pedir que o Espírito
Santo dê a sabedoria, coragem, ânimo, saú-
sal se destaca como aliada, sendo válido men- de, força, vigor para cuidar do país e fazer um
cionar como exemplo as reuniões intituladas novo Brasil”.
“Congresso para o Sucesso: Palestra motivacio-
nal para o sucesso financeiro” realizada todas
as segundas-feiras em seus locais de culto. 3 Disponível em <https://noticias.uol.com.br/politica/
eleicoes/2018/noticias/agencia-estado/2018/09/30/edir-
-macedo-declara-apoio-a-bolsonaro.htm>
2 Disponível em: <https://www.youtube.com/ 4 Disponível em <https://www.youtube.com/
watch?v=6cIkWMKeDhs> watch?v=kk2quhx3Rqo>
63
A relação de Edir Macedo com candidatos à sacerdotais, e encenando com vozes enfáticas
presidência e outros políticos não é nova, vem os acontecimentos bíblicos durante as visi-
desde a democratização. É válido relembrar tas, induzem os visitantes a uma simulação de
que durante o governo PT a Igreja Universal aproximação literal com o contexto histórico
foi base governista, rompendo com o Partido propagado. Esta simulação colabora na imer-
somente na época do impeachment. Assim, as são do público ao ambiente, transformando o
visitas de políticos ao Templo de Salomão po- Complexo do Templo de Salomão numa espécie
dem ser entendidas no contexto da história da de espetáculo desconectado com o presente,
própria IURD e sua utilização estratégica para numa tentativa de “viagem ao passado’’, como
ampliar seu espaço, visibilidade e poder. num parque temático religioso [imagem 5].
Jair Bolsonaro, que tem como segundo Os símbolos e elementos ligados à tradi-
nome de batismo Messias, é até então o único ção histórica não são apenas usados nas vesti-
político que participou publicamente da litur- mentas desses profissionais, mas também na
gia evangélica, enquanto os demais no máxi- arquitetura do Complexo. Esse tipo de produ-
mo apareciam em ocasiões específicas, o que ção é caracterizada pelo pastiche, que pode
evidentemente aproxima Bolsonaro da figura ser entendido como uma cópia que incorpora
64 do “enviado de Deus”, aquele que aceitou o ver- para si singularidades do original que copia.
dadeiro Deus, passou pelas ritualísticas e ago- Porém, este retorno a formas e símbolos his-
ra vai comandar o país. tóricos torna-se superficial e acaba não carre-
Esta predileção de Edir Macedo por Bol- gando o valor da obra original. Assim, têm-se
sonaro é percebida no final da visita, na qual nessas obras arquitetônicas pastiches expri-
o Bispo declara: “aposto todas as fichas no pre- mindo um novo tipo de valor de uso, ou seja,
sidente Bolsonaro porque tudo leva a crer que se utilizando de formas do passado, mas pro-
ele foi o escolhido por Deus”5. pagando ideologias novas de seu tempo, para
fins próprios.
O Templo de Salomão: Imersão e Não apenas a grandiosidade, como tam-
Prosperidade bém os elementos que remetem à riqueza, po-
Bolsonaro conheceu também os arredores der e prosperidade são destacados pela obra. O
do Templo, onde visitou o restante do Comple- Piso e o altar do templo revestidos com pedras
xo: o Jardim Bíblico, o Tabernáculo de Moisés, trazidas de Israel, bem como cores predomi-
o Jardim das Oliveiras e o Memorial. Essa visita nantes de tons dourado e amarelo colocados
foi mediada por Edir Macedo, mas também por nos corrimãos, paredes e luzes do ambiente,
outros guias. Esses guias, vestidos com trajes fazem parte, em conjunto a grandeza da edifi-
cação do Templo, na colaboração da constru-
5 Entrevista retirada da Record Tv. Disponível em:<ht- ção de um espaço marcado pela prosperidade.
tps://www.youtube.com/watch?v=RMWVcFf4>.
65
Conclusão acabou sendo colocado na figura de Bolsonaro
A partir da análise crítica sobre os aconte- ao longo da sua candidatura e de seu mandato
cimentos e implicações que perpassam a visita também.
do presidente Bolsonaro ao Templo de Salomão, Confere-se ao complexo do Templo de Sa-
percebe-se alguns dos fatores que caracterizam lomão, suas características e seu contexto, o
a ascensão e a influência do conservadorismo e significado de uma “materialização” da Te-
do movimento neopentecostal no Brasil. ologia da Prosperidade, parte de uma estéti-
Destaca-se a relação entre o líder religioso ca utilizada como objeto de poder reforçado
Edir Macedo e Jair Bolsonaro - sendo Mace- pelo bolsonarismo. Além disso, também se
do um grande influenciador e propagador da destina ao Templo de Salomão, sede da Igreja
campanha de Bolsonaro e de seus valores mo- Universal, um papel fundamental como uso e
rais, e assim usufruindo dos benefícios dessa instrumento político de seu líder religioso. As
relação6 - como um dos principais dissemina- imagens escolhidas são reveladoras no enten-
dores de ideologias, discursos moralizantes e dimento de que a propagação dos discursos e
políticos, que influenciam pessoas de variadas as investidas do movimento pró-Bolsonaro
classes sociais, na qual a ligação entre elas se alcançaram espaço e ganharam tamanha for-
estabelece na crença religiosa. Tais discursos ça, o que culminou na guerra cultural perver-
66
entre estas duas figuras, revela a instrumenta- sa e intensa em que se insere o atual cenário
lização da fé para fins políticos, não existindo brasileiro.
assim a separação entre Estado e Deus.
Assim, Edir Macedo acaba se mostrando Referências
como uma das figuras centrais para compre- DREGER, Lahayda. O Templo de Salomão: A Presença do
ender o uso da Bíblia para a política, na qual passado. TCC, 2021.
KALIL, Isabela Oliveira. Quem são e no que acreditam os
seu discurso revela-se como um desejo de con-
eleitores de Jair Bolsonaro. Fundação Escola de Sociologia e
solidar uma ideia de nação divina brasileira Política de São Paulo. 2018.
criada desde o Antigo Testamento por Deus, MACEDO, Edir; Oliveira, Carlos. Plano de Poder: Deus, os
em que para a sua realização seria necessário Cristãos e a Política. Editora: Thomas Nelson. 2008.
MELLO NETO, Gustavo Adolfo Ramos; SILVA
um “mito”, ou seja, um agente apropriado para JUNIOR, Mauricio Cardoso da. A sedução divina no
orquestrar e liderar seus fiéis. Este líder colo- neopentecostalismo: um estudo psicanalítico. Revista
cado por Macedo como uma espécie de salva- Mal-Estar Subj., Fortaleza , v. 10, n. 3, p. 757-786, set. 2010.
MELO, Cristina; VAZ, Paulo. Guerras Culturais: conceito
ção seria ele próprio, mas que em certa medida
e trajetória. Revista ECO-Pós v. 24, n. 2, 2021.
OLIVEIRA, F. R. C.; MARTINS, C. C. N. . O discurso
6 Vale ressaltar que no final da eleição deste ano, 2022, eleitoral da Igreja Universal do Reino de Deus e a ascensão
Edir Macedo mudou o seu discurso e já ensaia uma apro- de Bolsonaro. Plural (online), v. 28, 2021.
ximação com o PT, sendo mostrado a sua utilização estra- SPYER, Juliano. Povo de Deus. Quem são os evangélicos e por
tégica para ampliar seu espaço, visibilidade e poder no que eles importam. São Paulo: Ed. Geração, 2020.
cenário político.
Agronejo e o sertanejo como
braço cultural do bolsonarismo
Nicole Pinheiro Santos. Também conhecida como Nick ou Cole, moradora do bairro
dos Pimentas desde a infância, é estagiária no educativo do SESC Pompeia e
professora voluntária de história no Cursinho Comunitário Pimentas, tem interesse
por pesquisas sobre arte, cultura e política brasileir

As eleições presidenciais de 2018 no Brasil fo- Estas duas vertentes da música sertaneja
ram uma das mais importantes da história são atualmente hegemônicas no Brasil. Segun-
do país, sendo a primeira eleição democrática do dados da Spotify Charts1 o estilo musical
após o golpe parlamentar contra a presidente sertanejo é o mais consumido na plataforma
Dilma Rousseff, em 2016. O então presidente desde sua chegada ao Brasil em 2014. Em 2018,
eleito, Jair Bolsonaro, político de extrema-di- ano da eleição de Bolsonaro, o estilo musical
reita e militar reformado, tem a oposição de ocupou 82 das 100 músicas mais ouvidas nas
quase a totalidade da classe artística da indús- rádios do país2 e, em 2019, ocupou todas as
67
tria musical, mas com exceções importantes. posições do top 10 das músicas mais tocadas
Estão ao seu lado a imensa maioria dos canto- do Brasil3. Esses dados nos comprovam quão
res sertanejos, em especial o sertanejo pop e o hegemônica tem sido a música sertaneja: seu
novo “agronejo”. consumo extrapola recortes de classe, raça,
gênero e idade. Isso se dá principalmente por
A indústria cultural do agronegócio sua temática fácil para identificação por um
O sertanejo pop surge nos anos de 2012, amplo público, além do seu patrocínio por
caracterizado popularmente pelo tema da grandes commodities do agronegócio brasilei-
“sofrência” (desilusões, separações e traições ro para artistas do gênero.
amorosas), por sua produção musical pop,
globalizada e “urbana”, além de mega shows 1 Disponível em <https://g1.globo.com/pop-arte/musi-
midiatizados e espetaculares similares a apre- ca/noticia/2022/06/27/quais-sao-as-musicas-mais-ouvi-
sentações de astros internacionais. Já o “agro- das-da-historia-do-spotify-no-brasil.ghtml> Acesso em:
25/11/2022.
nejo” ganha repercussão em meio ao mandato
2 Dados da Crowley Broadcast disponível em: <https://
de Bolsonaro (2019-2022), com uma estética maistocadas.mus.br/2019/> Acesso em: 25/11/2022
característica de fazendeiros do meio rural 3 Dados do Spotify Charts disponível em: <https://tecno-
brasileiro, com botas, cinto e chapéu de couro, blog.net/noticias/2019/12/03/spotify-revela-musicas-ar-
suas temáticas dizem sobre a vida na roça, pa- tistas-mais-ouvidos-2019-decada /> e <https://ricmais.
com.br/entretenimento/musicas-ma is-tocadas-de-
queras e ostentação. -2019-spotify/> Acesso em: 25/11/2022
Bolsonaro Pipoco que surge a espetacular entrada em cena do
E quais são os valores políticos empregados funkeiro carioca Nego do Borel, que chega so-
nas músicas sertanejas e como elas se relacio- bre um tanque militar.
nam com o bolsonarismo? É importante des-
tacar a intimidade existente entre o Bolsonaro Agroapocalipse
e os cantores e cantoras do sertanejo, que tem No âmbito da visualidade construída no
um longo histórico de situações e eventos em videoclipe há uma união entre o agronegócio
que se encontram pessoalmente, seja para uma (colheitadeira) e o exército (tanque de guerra),
reunião, evento ou celebração, normalmente entre campo e cidade, entre fazendeiros bran-
em hotéis, torneios, festas de peão e feiras da cos e um preto de favela do Rio, entre o serta-
agropecuária. Declararam publicamente o seu nejo e o funk, além de uma curiosa sensação
apoio à “Deus, pátria e família”, slogan de Bol- pós apocalíptica da cena, similar aos filmes
sonaro (e do movimento fascista brasileiro, o Mad Max. Os dançarinos presentes no palco
Integralismo), ao armamento civil, à defesa da utilizam roupas de tecidos aparentemente ras-
propriedade privada e do agronegócio. gados, sujos, em estilo “sobreviventes” de um
Obra emblemática das afinidades estéticas cenário de guerra, além de pinturas corporais,
e políticas entre o bolsonarismo e o sertanejo é que simulam as presentes nos filmes.
68
o videoclipe de Menina Pipoco4 da dupla ser- A estética do clipe também pode ser com-
taneja Fernando & Sorocaba com participação parada à visualidade do esporte Trekker Trek
do funkeiro carioca Nego do Borel, lançado ou Tractor Pulling, que consiste na modifica-
no fim de 2017. É mais uma música sobre festa, ção de tratores, e máquinas semelhantes, para
mulheres e paquera, mas quando nos detemos torná-las mais potentes e competir em pistas.
na visualidade construída no videoclipe, po- Há também a avaliação da beleza da maquina-
demos identificar diversos elementos visuais ria modificada, com altas tochas de fogo, pneus
da ascensão da extrema-direita no Brasil, e a enormes, estilização em cores e a performance
união entre o sertanejo e o agronegócio com as das manobras de direção do piloto. O esporte
forças militares. ainda é recente no Brasil e ocorre principal-
O videoclipe é a gravação de um show ao mente no interior dos Estados de São Paulo e
vivo (ou encenado), com público assistindo a Paraná, seu modo de promover a apreciação
performance dos músicos sobre uma enorme das grandes e potentes máquinas, adulteradas
colheitadeira. Até que saindo de trás da plan- de seu modelo original, também está presente
tação, ouve-se um ruído de engrenagens e eis na estética dos automóveis utilizados em Mad
Max e na ideia de uma potência agrícola-mili-
tar performada de modo estilizado.
4 Fernando & Sorocaba Menina Pipoco ft. Nego do Borel,
2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/wat- É possível que um observador diante do vi-
ch?v=e5IP5Ke2mts> Acesso em: 25/11/2022 deoclipe não consiga apreender todas as simbo-
69
logias nele presentes, pois o videoclipe estimula Racismo agrotóxico
uma experiência de êxtase contemplativo, dei- Voltemos ao clipe. A visualidade dos can-
xando seu sentido político em segundo plano. tores também deve ser motivo de atenção, Fer-
Já um público mais crítico pode reconhecer no nando & Sorocaba se vestem como sertanejos
videoclipe a estética da extrema-direita brasi- globalizados, calças apertadas, blusa xadrez,
leira em uma performance espetacular. chapéu karandá, cinto e bota de couro. Nego
No intermédio entre jogos de interesses do Borel se apresenta de maneira mais conti-
político-econômicos, Menina Pipoco deve ser da, como uma transição, ou sincretismo, com
lida como uma produção de uma visualidade roupas sem estampa, composta por uma calça
representativa desta aliança que sustenta o justa e uma camisa manga longa, bota de cou-
bolsonarismo agromilitar. Há uma espeta- ro e chapéu karandá que são os únicos elemen-
cularização das máquinas de guerra e extra- tos que o inserem na ambientação rural.
tivista, tornando evidente a guerra cultural A performance destes corpos é complexa,
travada pela indústria do agronegócio e pelos Fernando & Sorocaba, uma dupla de homens
setores militares, se utilizando do “encobri- brancos, ricos e de meia idade, têm uma atua-
mento totalizante da realidade por uma po- ção dura e contida no palco se comparados ao
sitividade que se afirma sem deixar brechas” Nego do Borel, homem preto da favela carioca,
70
(NETO, 2020, p. 143). A disputa dentro desta que exerce o papel principal de manter o pú-
guerra é reafirmar o agronegócio como o car- blico entretido: rebola, pula, dança, grita, ri,
ro-chefe econômico do país, e que as forças e ao final da música simula no microfone um
armadas são instrumento para que a acumu- som como de alguns tiros, e performa seu cor-
lação extrativista, latifundiária e intensiva po como sendo atingido por eles, tremendo e
em agrotóxicos possa ocorrer sem encontrar se jogando de costas no chão. Fernando & So-
oposição (em especial de movimentos que de- rocaba por vezes explicitamente ri e se diverte
fendam a reforma agrária, a agricultura fa- diante da performance de Nego do Borel, sub-
miliar e o combate à fome, como o MST). Os contratado por eles. Fica subentendido o papel
militares estão ali para garantir o sucesso do de palhaço ao qual o cantor negro está subme-
agro, mesmo à custa da pobreza, desnutrição tido. É a dupla sertaneja quem comanda aquele
e sofrimento de imensa parcela da população. espaço, observa, se diverte, interage, mas cabe
Vale destacar que toda esta dinâmica de ao funkeiro a posição de entretenimento cari-
embates políticos é visível no videoclipe em cato que, depois de alvejado, pode ser retirado
estudo, uma vez que a sonoridade e letra da do show. Lembremos que tanques como aquele
música Menina Pipoco fazem uma cortina de em que se apresentava Nego do Borel fizeram
fumaça sobre toda essa narrativa imagética, parte da intervenção militar no Rio, naquele
se detendo a mesclar sertanejo com funk e fa- mesmo ano de 2017, autorizada pelo governo
lar de festa e azaração. golpista de Michel Temer e coordenada por
71
Braga Netto, que seria Ministro da Defesa do larização destas forças atuantes no show bu-
governo Bolsonaro e seu candidato a vice-pre- siness no atual momento político brasileiro.
sidente em 2022. Sem que se perceba, isso impacta diretamen-
Há mais uma questão a ser analisada, ou te no pensamento dominante da população
questionada, neste objeto revelador da dinâ- brasileira.
mica político-social brasileira, sendo esta a Com esta breve análise, é possível concluir
nomenclatura que serve de título do objeto que dentro da guerra cultural aqui instaurada,
aqui estudado, Menina Pipoco. Recentemen- um dos mais fortes braços do bolsonarismo é o
te foi lançado a música Pipoco pela cantora sertanejo e sua relação com o agronegócio, que
Ana Castela, artista revelação do “agronejo” vem alcançando um público cada vez maior
em 2022, em parceria com a funkeira Melody, no Brasil, e que se vende como “não político”,
seguindo quase que estritamente a mesma di- como mera manifestação cultural. É neces-
nâmica de Menina Pipoco. Nesta produção o sário tomar atenção como esta guerra se mo-
sincretismo se repete, a união entre o agrone- vimenta amparada pelo poderio econômico,
jo interiorano (Ana Castela) e o funk urbano uma das bases do sertanejo. E que esta é a mais
paulista (Melody). A coincidência da mesma importante ação para formação e conquista de
72 palavra no título, Pipoco, e da mesma mensa- um público mais jovem e moderno pela extre-
gem sobre festa e azaração na letra da música ma direita brasileira.
não podem ser lidas à toa, elas estão inseridas Não apenas Olavo de Carvalho filósofo-
em meio a uma guerra cultural aqui travada -trollador, think tanks conservadores ou ul-
e se propõem a isso de modo consciente. Pi- traliberais, ou ainda pastores Evangélicos
poco significa estouro, estalo, explosão, tal formam o imaginário da nova direita e atraem
qual um tiro de arma de fogo, e embora quei- a juventude: é preciso ficar de olhos bem aber-
ram nas letras destas músicas atrelar o termo tos para o complexo agro-sertanejo-militar e
como um adjetivo às mulheres, por um outro sua indústria cultural, que aqui resumimos
ângulo, Pipoco é uma referência a um discur- por meio de um videoclipe, e que está conquis-
so belicista presente nestas músicas, que mes- tando corações e mentes de forma massiva.
mo que com a aparência despolitizada de suas
letras, se aproximam de uma abordagem vio- Referências
lenta, postura comum entre os simpatizantes ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e
psicanálise. Editora UNESP, 2007, p 398.
à extrema-direita.
FRANÇA, V. R. V., & Vieira, V. H. . (2021). Universo
sertanejo: amor traído e Bolsonaro. Revista Mídia E
Conclusão Cotidiano, 15(1), 6-28.
Os efeitos destas produções no âmbito so- NETO, Moysés Pinto. Política na era da visibilidade total:
observações conjunturais a partir do episódio The Waldo
cial são potentes, a ausência de crítica leva à Moment, de Black Mirror. Galáxia (São Paulo, online), n.
recepção ingênua do “bolsonejo”, da espetacu- 45, set-dez, 2020, p. 139-152.
Apropriação da estética de periferia em “funk de direita”:
MC Reaça e O proibidão do Bolsonaro
Kamilla Dourado, mulher lésbica da zona leste de São Paulo, estudante de História
da Arte, educadora em museu e pesquisadora na área do patrimônio. Acredita na
arte como instrumento para a sensibilização e consciência de mundo e de classe.
Pamela Silva, Fotógrafa, Arte Educadora e estudante de História da Arte, natural do
Fundão da zona oeste de São Paulo. Interesse e pesquisa ligada à arte educação e a
conhecimentos não hegemônicos de cultura afro.

No comecinho dos anos 2000, o consenso sobre é forma de resistência periférica, uma “resis-
o funk carioca era praticamente unânime: “é tência vencedora”, que tem a possibilidade de
som de preto, de favelado”. Hoje, quase vinte conforto pelo confronto, sem precisar se sub-
anos depois desse hit e de ter se espalhado pelo meter ao trabalho precário, alienado e exaus-
Brasil, a lista de subgêneros do funk já é bem tivo que tanto explora a população periférica.
maior. Além de subdividido entre carioca, mi- Com toda esta pluralidade reafirmada ao
73
neiro, “da baixada” ou paulista, estilos como o longo dos anos, era de se imaginar que esse
funk consciente, ostentação, proibidão, man- som atingisse outras esferas sociais. O funk
delão, brega funk e, um dos mais recentes, o começou a tocar no rádio, na TV, na balada e
rave funk, unem o ritmo melódico ou dançante virou série em plataforma de streaming, com
a letras que cantam assuntos diversos, que vão direito à glossário para entender o que cada
desde passar a visão do dia a dia das perife- gíria significava. Um ritmo marginalizado e
rias, dos bailes, superação e ostentação ou até diretamente associado à “perversão” dos mais
mesmo sexo, tráfico, repressão e resistência. pobres passa então a ser socializado entre as
A estética presente nas vertentes do funk classes média e alta.
paulistano (a divisão que daremos ênfase) rei-
vindica bens de consumo e de lazer para uma MC Reaça e o Funk Fake pró-Bolsonaro
comunidade que vive dentro de um espaço pre- No meio de todo esse contexto, o que ex-
carizado e distanciado da “sociedade” branca plica a viralização de uma música chamada O
de classe média, a periferia. É uma forma de proibidão do Bolsonaro, que vai destoar do
autoafirmação, ou de “inclusão”, pelo consu- movimento funk em todos os sentidos mas que
mo, modelo de cidadania que foi turbinado “colou por aí”?
no período Lula (2003-2010). Acessar lugares Tales Volpi, vulgo MC Reaça, criou paró-
e consumo negados a essas comunidades, ao dias de músicas em apoio à campanha da extre-
mesmo tempo que é algo pró-sistema, também ma direita nas eleições de 2018 que enaltecem o
Bolsonaro e atacam de forma violenta seus ad- O clipe-paródia é aberto com uma placa
versários e a esquerda, de modo geral. Essas mú- onde se escreve “#somostodosBolsonaro”. Na
sicas viralizaram de tal forma nas redes sociais sequência, MC Reaça aparece em um ambien-
que ainda nas eleições de 2022 as músicas de MC te fechado, que indica ser um estúdio musical,
Reaça tocaram nas ruas ou em trilha sonora de cantando a sua ansiedade em votar no Bolsona-
vídeos em apoio à campanha de Bolsonaro. ro nas eleições de 2018. É interessante reparar
O videoclipe de O proibidão do Bolsona- na forma como MC Reaça se veste e se comporta.
ro é um dos mais emblemáticos da campanha Durante o clipe ele usa uma camiseta estampa-
pró-Bolsonaro, com mais de 3 milhões de visu- da com uma caveira vestindo uma bandana com
alizações no canal “Bolsonaro Músicas”. Seria a bandeira dos EUA no crânio. Imageticamente,
de se estranhar uma figura como Tales Volpi, percebe-se logo de cara uma proximidade com
um jovem branco, na época do clipe com 26 a necropolítica e a subserviência política e cul-
anos, morando no interior de São Paulo, casa- tural. A partir de sua expressão corporal, fica
do, cristão, defensor da família tradicional e nítido que ele não faz parte da cultura do funk:
dos bons costumes… Cantando funk? Sim. A não tem ritmo, não tem flow, não tem estilo e as
questão principal é que MC Reaça tenta ressig- rimas são ridiculamente pobres. Se o MC Rea-
74 nificar o funk e afastá-lo o máximo possível da ça realmente vivesse a cultura de periferia, ele
maneira que o conhecemos, “limpando e dig- provavelmente teria ouvido o conselho do tra-
nificando” uma cultura subversiva e longe dos pper “MD Chefe”, o nosso Rei Lacoste, dizendo:
padrões conservadores, para manter a batida “Isso é feio, primeiro cê vê, depois copia. Cê não
que mobiliza os jovens. vive, por isso parece só uma fantasia.”
O Proibidão do Bolsonaro é uma paródia
de Baile de favela do MC João, que é um fenô- Baile de Favela em Tóquio
meno mundial: 238 milhões de visualizações Em um Baile de Favela real encontramos
no Canal oficial do Kondzilla, a maior produ- alguns símbolos da cultura de periferia, lugar
tora de funk do Brasil, com o maior canal do onde o funk é nascido e criado. No clipe, uma
YouTube brasileiro e difusora de conteúdo de multidão de jovens joga as mãos e o MC João
favela através do site e das redes sociais. Isso para o alto, que balança uma camiseta de time
significa que MC Reaça não sorteou ao acaso de várzea, chamado os “100 juízo”. De maneira
qualquer funk para fazer a paródia, mas sim completamente orgânica, na própria organi-
escolhe trabalhar em cima do hit do ano novo zação e curtição dos fluxos, todo mundo canta
de 2016, que além de dividir espaço no top10 do e grita a letra de cor e salteado. Diferentemen-
Itunes e Spotify com Anitta e Justin Bieber, te de um homem branco e do interior como MC
atingiu o marco histórico de ser o primeiro vi- Reaça, MC João enfrenta até hoje tentativas de
deoclipe de funk a atingir 100 milhões de visu- censura e repressão por conta da letra de “Bai-
alizações no YouTube. le de Favela”.
75
Ao ser mixada com Toccata e Fuga do Na música, a CUT, as feministas, persona-
compositor barroco Bach exclusivamente lidades políticas brasileiras e em especial mu-
para a apresentação de Rebeca Andrade nas lheres de esquerda são diretamente atacadas,
Olimpíadas de Tóquio em 2021, a música origi- humilhadas e até comparadas com cadelas.
nal atinge o marco de mais de 230 milhões de Homofobia e misoginia seriam algumas das in-
visualizações no YouTube. Rebeca Andrade, citações à violência provocadas pelo MC Reaça,
uma mulher preta da periferia de Guarulhos, o que pode claramente justificar o nome da mú-
consagrou seu nome na história das Olimpí- sica – falar o que é “proibido” pela Lei, ou pelo
adas como a primeira medalhista olímpica “politicamente correto”. Entoada pelo grupo
feminina da ginástica artística brasileira, juntado às pressas no parque, com crianças e
conquistando uma medalha de prata e uma de idosos, o grotesco salta aos olhos como o “Proi-
ouro embalada pelo Baile de Favela. bidão da Família Brasileira”.
Tanto na música quanto no clipe, MC Rea-
O Proibidão da Família Brasileira ça não cria nada, se apropria indebitamente de
No Proibidão do Bolsonaro, MC Reaça apa- uma melodia já famosa, e usa imagens batidas
rece no primeiro plano e todos os outros ficam na internet e memes. De maneira geral, este é
76 atrás. É como se ele fosse o líder de seu líder: um aspecto já conhecido da estética da extre-
está na linha de frente do movimento pró-Bol- ma-direita: o conceito de pastiche e do kits-
sonaro. Enquanto puxa o coro, nem todos os ch, que dá nome à essa prática da cópia ou das
integrantes do seu baile podem olhar direta- imitações de produções artísticas de maneira
mente para a câmera, pois estão ocupados lendo superficial e de mau gosto.
os versinhos da letra em pedaços de papel. Esse Paulo Freire, patrono da educação brasilei-
baile, diferente do de Favela, não tem organi- ra, também é atacado sendo “mandado para a
cidade, não fala da vida vivida nas periferias e atmosfera”. MC Reaça em seu baile da família
suas festas. É uma gravação diurna, com idosos, delirante, em substituição ao Paulo Freire, pede
crianças e bebês de colo, quase todos brancos de que seja “distribuído livro do Olavo pra galera”.
classe média, onde o conceito de “família tradi- Mesmo se não o citasse diretamente, seria
cional” se une à bandeira nacional. possível identificar a influência de Olavo de Car-
“Show é de fato a palavra certa”, como dis- valho sobre a canção. O gosto pela agressão ver-
se Theodor Adorno em Propaganda fascista. bal e pela trollagem faz parte da retórica do ódio
A letra “show” do MC Reaça enfatiza as perfor- Olavista. Essa violência verbal é muito presente
mances heroicas e atléticas de Bolsonaro: que nas músicas produzidas pela direita, como o rap
“salta de paraquedas”, é “capitão da reserva” e O velho Olavo tem razão! do rapper Luiz, o Vi-
“casou com a Cinderela’’. Esta grande lista de sitante, que para além de subverter outro estilo
feitos, na música, faz parte da construção do periférico, ataca o antirracismo, o feminismo e
líder (Mito) que merece ser glorificado. o comunismo de maneira ofensiva.
77
De MC Reaça a MC Espancador tica de ódio que se afunda em hipocrisia e mau
A violência e a truculência de quem tem gosto, que flerta com o nazismo enquanto quer
Olavo de Carvalho como guru e mentor ex- embalar na batida do Funk sua vontade de fa-
trapola as redes sociais e a internet e chega na lar com as massas. Mas quem é do Funk não se
vida real. Em 2019, MC Reaça espancou a mu- engana. As periferias votaram em massa con-
lher com quem mantinha um relacionamento tra Bolsonaro. Não foi só o nordeste quem der-
extraconjugal e, após fraturar o rosto da jo- rotou o falso Messias, foi a voz e o corpo jovem,
vem em várias partes, Tales Volpi confessou o negro, periférico do Rap e do Funk.
crime para o pai e a madrasta. Horas depois,
foi encontrado morto e a polícia registrou o
caso como “possível suicídio”. Referências
Mesmo após as incitações à violência que A estética do Funk Ostentação como subsídio de um
brada em seu “proibidão” até os crimes que lifestyle para a juventude periférica. Disponível em:
<http://celacc.eca.usp.br/pt-br/celacc-tcc/1933/detalhe>.
cometeu antes de sua morte, Tales Volpi re- Acesso em: 25 nov. 2022
cebeu homenagens e condolências saudosas Bolsonaro e filhos são criticados por lamentarem
da família Bolsonaro, que jamais comentou o morte de “MC Reaça”. Disponível em: <https://www.
pragmatismopolitico.com.br/2019/06/bolsonaro-mc-
caso de espancamento. Via Twitter, ao lamen-
78 reaca-mulher-gravida.html>. Acesso em: 25 nov. 2022.
tar a morte de Tales Volpi, Bolsonaro disse que BOLSONARO, J. M. Tales Volpi, conhecido como Mc
MC Reaça “Tinha o sonho de mudar o país e Reaça, nos deixou no dia de ontem... Disponível em:
<https://twitter.com/>. Acesso em: 25 nov. 2022.
apostou em meu nome por meio de seu gran-
Como paródia de “Baile de favela” virou hino contra
de talento. Será lembrado pelo dom, pela hu- esquerda e viralizou em perfis pró-Bolsonaro no
mildade e por seu amor pelo Brasil.” Mais uma TikTok? Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-arte/
musica/noticia/2022/10/08/como-baile-de-favela-virou-
vez, Jair Bolsonaro legitima e normaliza um h ino - cont r a- esquerda- e -v ir a l i zou- em-per f is -pro -
discurso de ódio, naturalizando e omitindo a bolsonaro-no-tiktok.ghtml>. Acesso em: 27 nov. 2022
violenta agressão a uma mulher. MC Reaça morre em Valinhos aos 25 anos; velório e enterro
acontecem em Indaiatuba. Disponível em: <https://
g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2019/06/02/
Conclusão mc-reaca-morre-em-valinhos-aos-25-anos-velorio-e-
A curta e polêmica trajetória musical de enterro-acontecem-em-indaiatuba.ghtml>. Acesso em:
27 nov. 2022.
MC Reaça exemplifica como a extrema-direita
PYL, B. A potencialidade transgressora da estética
tenta a qualquer custo apropriar e subverter as funkeira. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/
vivências e práticas culturais de periferia (em a-potencialidade-transgressora-da-estetica-funkeira/>.
Acesso em: 23 nov. 2022.
especial de jovens negros) para uma cultura
Rebeca Andrade: Como “Baile de Favela” foi parar
da classe média branca, patriarcal, racista e nas Olímpiadas de Tóquio. Disponível em: <https://
machista. Com isso, consegue apenas mostrar g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2021/07/29/
rebeca-andrade-como-baile-de-favela-foi-parar-nas-
cada vez mais a sua face perturbadora: da polí-
olimpiadas-de-toquio.ghtml>. Acesso em: 29 nov. 2022.
A pintura bolsonarista:
entre o kitsch e a arte de propaganda

Lucius Goyano, artista visual, estudante de História da Arte, bolsista FAPESP,


dedica-se a assuntos sobre raça, arte e religiosidade afro-brasileira.

Por arte conservadora, nos referimos ao co- relevo [Figura 1] de Rudney Sarmento [à es-
nhecimento e ao apreço pelos clássicos. Ba- querda] exposta no terceiro andar do Palácio
seados nesse conhecimento e nesse amor,
daremos às pessoas o ímpeto para criar obras do Planalto, busca estabelecer a relação entre
de semelhante grandeza em nossa época. Isso é Bolsonaro e o marechal Deodoro da Fonseca,
o que o governo brasileiro está determinado a militar e político central na Proclamação da
fazer. (Roberto Alvim, 2021).
República [à direita], retratado por Henrique
Essa citação resume o pretendido programa Bernardelli. Além de copiar a cena e realizar
de arte e cultura do Governo Bolsonaro, apre- a substituição, Sarmento compara as perso-
79
sentado em uma reunião da Unesco em 19 de nagens, agora Bolsonaro é o proclamador de
novembro de 2021 pelo então Secretário da cul- um novo período político no Brasil, tendo essa
tura Roberto Alvim. Tendo-a como referência, obra como objeto de confirmação e símbolo de
pretendemos discutir a produção de artistas validação da importância do atual presidente
visuais alinhados ao atual governo. para a história do Brasil tal como fora Deodoro
Apesar dos inúmeros escândalos envol- da Fonseca.
vendo membros do governo Bolsonaro no O que observamos é a criação de uma nar-
campo da cultura, com perseguições e ataques rativa em torno de um suposto líder nacional
a artistas, ações contra leis de incentivo, cen- através da referência à arte do passado, fa-
sura a obras e o caso mais emblemático e gro- zendo crer que Bolsonaro é um grande líder,
tesco - a repetição de um discurso de Joseph repleto de conquistas, digno de respeito e de
Goebbels, ministro de Hitler, que levou à de- ter um retrato seu exposto em um dos edifí-
missão de Alvim -, iremos nos atentar às ques- cios do governo. Trata-se de uma obra que não
tões presentes na definição apresentada como dialoga com a produção contemporânea, pre-
epígrafe. tendendo conectar-se diretamente aos “mes-
tres do passado”, mas o faz de modo ingênuo e
Farsa e cópia kitsch da arte do passado precário. Por isso, é também uma obra kitsch,
A primeira delas a autovalidação por meio que simula a aura da original, de maior valor
da aproximação com o passado. A pintura em estético ou importância histórica. Do mesmo
modo que o dourado quer se passar por ouro, limitações técnicas e de composição eviden-
o gesso por mármore, as obras ordinárias e re- tes, dão um claro traço não apenas conserva-
produções de obras de arte kitsch querem se dor, mas reacionário a essa produção. Além da
passar por grande arte. Mas, diferentemente dimensão kitsch, já comentada.
das originais, elas não proporcionam qual- Voltando ao ideólogo Roberto Alvim, no
quer experiência artística de maior profundi- mesmo discurso citado,
dade e transcendência, nem são registros da Nas últimas duas décadas a arte e cultura no
história, tradição visual e expressão do passa- Brasil foram reduzidas à mera ferramenta de
propaganda de uma agenda política interes-
do, constituindo apenas objetos literalmente sada em destruir as bases de nossa civilização.
ordinários. Arte e cultura trabalham contra os desejos da
Por hora, a reflexão em torno do kitsch e maior parte da população [...] quando arte e
as obras bolsonaristas nos possibilita perceber cultura adoecem, a sociedade adoece [...] uma
ideologia terrível fez emergir uma guerra cul-
que: do mesmo modo que uma cópia da Mona- tural no Brasil.
lisa ou de A última ceia não transformam o
ambiente doméstico em uma sala em museu ou Nota-se o ressentimento de Alvim e des-
em templo religioso, ou um chaveiro da Tor- ses artistas com a arte contemporânea, com
re Eiffel – souvenirs são outro tipo de objeto a produção cultural nas décadas sob governo
80
importante para a estética kitsch – ainda que petista, que teriam pretendido “destruir as
comprado em Paris, não reproduz a experiên- bases da nossa civilização” – ataque similar
cia de estar diante da Torre Eiffel, igualmente ao que os nazistas fizeram às vanguardas, de-
a cópia Rudney Sarmento não possui o mesmo finidas como “arte degenerada”. Observamos
valor histórico e simbólico do quadro de Ber- na produção de Rudney Sarmento, Paulo Fra-
nardelli. Em resumo, é uma farsa, uma cópia de, Marco Angeli e Rodrigo Camacho, artistas
grosseira, uma representação cafona queren- bolsonaristas de destaque – a maioria inclusi-
do se passar por “grande arte do passado”, o ve obteve acesso ao presidente para a entrega
mesmo ocorre com Bolsonaro, que a pintura de suas obras –, o desejo reacionário de uma
fantasia tanto como político quanto militar de arte pré-modernista, atreladas a discursos
mesmo prestígio que Deodoro da Fonseca. de direita, conservadores, cristãos, nostál-
gicos, revisionistas, paralelos à realidade
O ressentimento com a arte contemporânea.
contemporânea Na produção de Rudney Sarmento e Pau-
Observando o conjunto de artistas bolso- lo Frade – o último, autor do retrato à óleo de
naristas, observamos que todos recorrem a Bolsonaro e da pintura digital Comunavi-
técnicas mais ou menos convencionais da pin- rus [Figura 2] – encontramos cópias de obras
tura acadêmica e realista do século XX. Esse do passado, no caso de Frade explicitamente
apego à pintura de cavalete tradicional, e com como forma de se aproximar ou de se colocar
81
junto aos “velhos mestres”, sobretudo Rem- não Lula. O trocadilho é infame Comuna ao
brandt e Caravaggio, por meio do uso de téc- invés de Corona. Como se o comunismo esti-
nicas e métodos tradicionais, supostamente vesse aí pronto para se instalar em nosso país
os mesmos utilizados por esses artistas, logo e nossos corpos como o Covid-19.
acrescentando maior valor técnico, estético e
intelectual a suas obras e a si mesmo. Pintura e propaganda fascista
Frade, com essas afirmações, tenta se esco- Deixando as questões envolvendo a esté-
rar na autoridade e influência que esses pinto- tica kitsch na arte bolsonarista, outro aspec-
res de quase quatrocentos anos atrás exercem to se destaca: o desenvolvimento de múltiplas
na história da arte ocidental para vender cur- narrativas em torno da figura mítica de Bolso-
sos online e aumentar as turmas presenciais naro e a relação com a propaganda fascista. A
em seu ateliê. Desde 2018 ele também vem pin- narrativa do líder grandioso e messiânico aqui
tando apoiadores de Bolsonaro, alguns já dis- se distancia da cópia de Deodoro da Fonseca, e
sidentes, como o comediante Danilo Gentili, o se aproxima da narrativa de combate.
ex-ministro Sérgio Moro e o jogador de futebol Nas duas pinturas digitais de O Ilustra
Neymar Jr. como forma de criar uma base de [Figuras 4 e 5] observamos dois Bolsonaros, o
82 consumidores alinhados ao bolsonarismo. primeiro forte, viril, carregando os ex-gover-
Como exposto sobre o kitsch, simbolica- nadores João Doria e Wilson Witzel para jogá-
mente obras feitas com a técnica, supostamen- -los no lixo, enquanto ao fundo reluz o prédio
te, de Rembrandt e Caravaggio não tornam do Congresso Nacional com a limpeza efetu-
o Frade ou sua produção tão válida quanto ada; o segundo já é um Bolsonaro frágil, que
a destes em seu período, nem tão pouco dão luta sozinho no Brasil para proteger a liberda-
mais prestígio para o artista, pelo contrário, de, personificada em uma mulher de branco.
demonstram aquilo que ele e os demais artis- Ela está sendo tomada pelos juízes do Supremo
tas fingem ser em contraposição a arte que eles Tribunal Federal, que em um pentagrama em
apontam como degenerada, imoral, de esquer- brasa violam a justiça, outra figura feminina
da. A questão aqui, outra característica da es- identificável pela venda, espada e balança que
tética kitsch, é o antagonismo com a arte de se encontram no chão.
vanguarda, neste caso arte contemporânea. As obras são intituladas Ucranizar I e Li-
No caso da obra Comunavírus, há ainda berdade ameaçada, respectivamente, a pri-
má-fé e falsificação histórica. É preciso lem- meira está ligada a revista Vida Destra, que
brar que o presidente responsável por espalhar publicou em 23 de abril de 2020 o texto O de-
o vírus no país, de forma irresponsável, nega- ver de ucranizar e a integrantes de protestos
cionista, desmerecendo a ciência, atrasando bolsonaristas que carregavam bandeiras do
a compra de vacinas, fragilizando o SUS, am- Pravyi Sektor, partido de extrema-direita ne-
pliando o número de mortos, foi Bolsonaro e onazista ucraniano que surgiu no contexto das
83
revoltas populares de 2013-14 exigindo a entra- tas agem de forma independente e diferente-
da do país no bloco europeu, assim como a sa- mente da propaganda nazista não parecem
ída do então presidente que representava uma buscar a agitação das massas, enquanto glori-
ligação com o passado soviético. Já a aparição ficam o líder, parte fundamental dos regimes
ocorrida no Brasil, diferentemente, não tem fascistas.
como inimigo o presidente, mas agentes “em A produção desses artistas de pouco ou
outras esferas do poder, notadamente o legis- nenhum reconhecimento pelo sistema das ar-
lativo e o judiciário, estendendo-se entre as tes, da crítica e dos acervos de museus, parece
entidades estaduais e municipais” (PORTAL; ter sido uma jogada de marketing, como uma
GELLER JÚNIOR, 2021, p.281), que como a pin- oportunidade para conquistar visibilidade.
tura sugere devem ser descartadas. É impor- Talvez tenham imaginado que despontariam
tante pensar as duas imagens em conjunto; a como celebridades seguidos por milhões,
primeira aponta Bolsonaro como expurgador como os youtubers bolsonaristas, mas segui-
dos opositores, enquanto a segunda demons- ram irrelevantes e quase no mesmo anonima-
tra o seu estado frente seus inimigos, que são to, seja por sua mediocridade, seja porque as
retratados como estupradores satanistas que massas no Brasil quase não consomem e pouco
84 abusam da justiça e da liberdade – no caso de prestigiam as artes plásticas.
Paulo Frade, o inimigo identificado como um
vírus [Figura 2].
Referências
Conclusão A arte segundo Bolsonaro: <https://youtu.be/
Js3rrL7ZDVA> Acesso em 05 dec. 2022.
Procuramos compreender alguns artistas
A estética do bolsonarismo - Parte 1:<https://youtu.be/
plásticos da produção bolsonarista para além YfM2nNvU4tQ> Acesso em 05 dec. 2022.
dos memes e fake news. Buscamos entender os A estética do bolsonarismo - Parte 2:< https://youtu.
aspectos da arte da extrema-direita para além be/0CDMJ72XtbI> Acesso em 05 dec. 2022.
da auto validação de seus apoiadores, caindo ADORNO, Theodor. Teoria freudiana e o padrão da
propaganda fascista. In MARGEM esquerda: ensaios
fatalmente no kitsch. Vimos como parte da marxistas. São Paulo: Boitempo, 2006.
narrativa da polaridade em que se delineia o OLIVEIRA, Rodrigo Cássio. Kitsch, consumo e política: a
líder como político e militar viril, libertador, publicidade das lojas Havan e a estética do bolsonarismo.
Anais do XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade
mas que se encontra só em sua luta e em que se Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 2020.
figura os opositores que o cercam como uma PORTAL, João Camilo; GELLER JÚNIOR, Lúcio. “Chegou
doença, como pagãos, corruptos, comunistas a hora de ucranizar!”: usos do passado e nacionalismo
nas manifestações públicas em defesa de Jair Bolsonaro.
e estupradores. No entanto, é importante ob-
Esboços, Florianópolis, v. 28, n. 48, p. 269-289, maio/ago.
servar a pouca interação entre o presidente e 2021.
os artistas além de recebê-los para a entrega
das obras, de tal forma que seus propagandis-
O inimigo político nas obras de Lucimary Billhardt
Maria Luiza Meneses é graduanda em história da arte pela UNIFESP. Seus interesses habitam
os campos das imagens, memória e racialidade. Atua no graffiti desde 2012 e é co-
organizadora da Rede de Graffiteiras Negras do Brasil.

Nascida no Amazonas, Lucimary Billhardt viveu as publica em suas redes sociais, Instagram e
no Rio de Janeiro, onde começou a dançar balé Twitter, diariamente. As obras possuem sim-
até mudar-se para a União Soviética, passando bolismo descomplicado, facilmente compre-
a ser bailarina da companhia da professora Iri- ensível, que fornece recursos visuais para as
na Yakobson. Segundo relata em reportagem de narrativas da polarização. Lucimary mobiliza
Marie Declercq, após o segundo ano no leste eu- cores, composições e símbolos que determi-
ropeu, tentaram doutriná-la ao “comunismo”. nam e delimitam os lados à esquerda ou direita
Após quatro anos em Leningrado (atual São Pe- do espectro político maniqueísta que a artista
tersburgo), viveu de balé na Itália, França e re- busca evidenciar. Trata-se, portanto, de ele-
sidiu durante 20 anos nos EUA, retornando ao mentos de composição baseados em oposições
85
Brasil em 2018. Ao chegar ao país, nota um déficit binárias estruturantes, para reforçar os inte-
de artistas dedicados às pautas da direita. Sem resses ideológicos.
formação ou estudos em artes visuais, decidiu
apoiar a direita brasileira representando suas A construção plástica do inimigo
lideranças políticas através de desenhos e pintu- A representação do inimigo na pintura de
ras. A partir deste momento, a artista reconhece Lucimary Billhardt pode ser notada por meio
sua produção como parte do cânone da “arte de de aspectos marcantes em suas composições,
direita”, em oposição ao que chama de “arte de como as deformações faciais, a presença de
Satanás”. Se define como “conservadora, realis- animais e objetos que causam repulsa, com-
ta e com um toque espiritual” (UOL, 2020). portamentos “imorais”, clima sombrio, as-
Seus trabalhos podem ser organizados pectos psicológicos e expressões explosivas,
através de algumas categorias: representações sarcásticas, irritáveis, desequilibradas, con-
de Jesus Cristo, retratos de Jair Bolsonaro, re- fusas, irônicas, maldosas [Imagem 1]. Esteti-
tratos de aliados políticos do bolsonarismo, camente degenerados, perversos, depravados,
representações de inimigos políticos, celebri- repulsivos. Aparecem sempre em oposição a
dades e, por fim, a reprodução de obras canô- Bolsonaro, a Cristo ou à águia americana. Es-
nicas através de um discurso complexo que tão relacionados a seres fantásticos e temero-
por hora podemos alocar na categoria “res- sos [Imagem 2] - vampiros, demônios, bruxas
sentimento”. Lucy realiza pinturas digitais e - ou repulsivos [Imagem 3] - sapos, vermes,
vírus, cobras, escorpiões - e representados em ço, cabelo desarrumado, tem a função política
mundos obscuros e fantásticos - inferno, cra- de relacionar a imagem de Lula com a indispo-
teras, buraco negro, floresta mágica. Quando sição, inabilidade e incapacidade de governar
não, aparecem em cenários abstratos. Uma ca- o país. Na orelha esquerda, o escorpião, ani-
racterística fundamental são as deformações mal peçonhento e altamente perigoso, carrega
no rosto. Em geral faz uso das cores vermelho, o rosto de Marisa Letícia, em equilíbrio com
preto, roxo, azul escuro, verde, majoritaria- a outra figura que aparece na orelha direita,
mente tonalidades escuras. o Diabo, soprando palavras ao ex-presidente.
De forma direta e simples, a artista coloca no
Lula satânico mesmo nível a ex-primeira-dama e Satanás,
Para a pesquisa, do total de 1604 imagens figuras que seriam supostamente influências
publicadas pela artista em seu Instagram até perniciosas a orientar Lula.
1 de dezembro de 2022, foram analisadas 84 A imagem se completa com o objeto de de-
imagens, de 60 diferentes ilustrações (conside- pravação: a garrafa de cachaça adornada com
rando que as imagens se repetem). Como fonte um bico em formato de pênis, conhecida como
para a análise, tomaremos o caso da pintura “mamadeira de piroca”. Tal símbolo é fun-
86 publicada pela artista na véspera do segundo damental e não poderia ficar de fora da com-
turno das eleições de 2022 [Imagem 4]. A pin- posição uma vez que exerce a dupla função de
tura apresenta o futuro presidente Luiz Inácio dar peso à imoralidade do representado como
Lula da Silva visivelmente alcoolizado, por- suposto alcoólatra e retoma o imaginário de
tando uma garrafa de cachaça transfigurada perversão sexual associado à esquerda ao reme-
em “mamadeira de piroca”, acompanhado de morar a fake news que fora amplamente difun-
um escorpião com o rosto da falecida ex-pri- dida na eleição anterior. Ao utilizar tal símbolo
meira-dama Marisa Letícia Lula da Silva e um que à época foi divulgado como parte de um su-
emoji do Diabo. Nesta imagem, é notável a to- posto “kit gay” distribuído às escolas munici-
nalidade avermelhada presente, desde o fun- pais de São Paulo na gestão do então candidato
do, passando pela roupa de Lula, até o tom da à presidência Fernando Haddad, a artista tenta
pele. Tal cor habita os discursos bolsonaristas retomar no espectador o mesmo sentimento de
como relacionada ao comunismo, à China, à “pânico moral” e confusão que foi fundamental
URSAL, ao Foro de São Paulo e ao Partido dos para eleger Jair Bolsonaro em 2018.
Trabalhadores, todos resumidos ideologica- Esta imagem aparece pela primeira vez em
mente como inimigos da moralidade cristã e 19 e depois em 20 de abril de 2022 e retorna em
bélica da direita brasileira. 30 de outubro, véspera do segundo turno das
A expressão cabisbaixa, com conotação a eleições presidenciais. O objetivo de repostar
um alcoolismo fictício e exagerado, expressão a imagem na véspera da eleição é claro: tentar
dos olhos caídos, entre a embriaguez e o cansa- reforçar aspectos supostamente reais da perso-
87
nalidade do candidato para causar repulsa e ten- uma vez que o material “(...) está concebido em
tar agir como propaganda negativa (BORBA), na termos mais psicológicos do que objetivos. Al-
tentativa de contribuir com a redução dos votos meja convencer as pessoas manipulando seus
em Lula a partir da moralidade. Em outras pa- mecanismos inconscientes, e não apresentan-
lavras, o objetivo de tal imagem e sua repetição do ideias e argumentos.” (ADORNO, p. 138).
está na perversão da imagem do opositor políti-
co e seus aliados através do vínculo com compor- Deformação facial e degeneração moral
tamentos considerados imorais, relacionados a Por fim, uma característica notável em to-
más condutas: alcoolismo, satanismo, comunis- das as representações do inimigo político nas
mo, obscurantismo, feitiçaria, tabagismo, te- obras de Lucimary são as deformações faciais.
mas recorrentes nas representações do inimigo As representações de diversos inimigos
político, além do vínculo com animais repulsi- político [Imagem 5] - entre os quais Lula é uma
vos, no caso o rosto de D. Marisa Letícia incorpo- importante figura mas não a única -, apresen-
ra-se a um escorpião e com o principal símbolo tam rugas, deformações, aspectos monstruo-
de maldade no imaginário cristão, Satanás. sos e repugnantes, com orelhas pontiagudas,
reforçando traços de idade - em oposição a
Freud e Adorno explicam uma juventude admirada e desejada que pode
88
A despeito de qualquer similaridade com a ser vista nas representações de aliados políti-
realidade do inimigo, a massa, segundo Freud, cos, que chegam a ser rejuvenescidos e melho-
“(...) é excitada apenas por estímulos desmedi- rados. Esta prática de deformação de rostos do
dos. Quem quiser influir sobre ela, não neces- inimigo em oposição à suposta beleza harmô-
sita medir logicamente os argumentos; deve nica dos aliados políticos reforça a ideia de “de-
pintar com as imagens mais fortes, exagerar e generação” que a presença do outro deflagra
sempre repetir a mesma coisa” (FREUD, p. 7). no meio social e caracteriza esse tipo de repre-
Neste sentido, o exagero representativo, as ca- sentação como aquilo que Umberto Eco cha-
madas de significação e a repetição de elemen- mou de “ur fascismo” ou “fascismo eterno”.
tos nas pinturas digitais de Lucy contribuem Para exemplificar, Paul Schultze-Naum-
para a afirmação do imaginário sobre o inimi- burg foi um arquiteto, pintor e autor que atuou
go. Este último recurso é facilitado pelo uso do no Terceiro Reich nazista. Desde 1931, antes
suporte digital, que permite a pintura em ca- mesmo de Hitler assumir o poder 1, Schultze
madas que podem ser reutilizadas em outros realizava palestras sobre arte, comparando as
trabalhos, aparecendo em posições e contex- figuras humanas em produções modernas com
tos variados, como é comum notar nas obras as deformações físicas encontradas em pesso-
da artista. Ao observar a função política de
tais representações, é nítida a pretensão pro- 1 Sobre o processo de incorporação do nazismo na so-
pagandista a favor do governo e seus aliados, ciedade alemã, ver o filme “O ovo da serpente” (1977)
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as com deficiências, traumas e doenças, por ao mesmo tempo comunista e satânico, a ser der-
exemplo. Tais comparações ficaram famosas rotado pelo militarismo de Estado e amparado
e ajudaram a reforçar a polaridade entre dege- pela mística religiosa.
neração e pureza estética, cultural e social. A Não por acaso, há representações em que
partir de 1937 os nazistas realizaram exposições Jesus Cristo aparece empunhando espadas e
de “Arte Degenerada” (Entartete Kunst) para bandeiras do Brasil. Cristo se funde ou acom-
mostrar ao público que a deformação visual na panha Bolsonaro em diversas das suas pintu-
arte de vanguarda (como no expressionismo) ras, numa fusão entre o primeiro e o último
era também uma deformação moral - que deve- Messias. Eles, juntos, é que poderão limpar a
ria ser extirpada. Lasar Segall, pintor judeu de sociedade dos inimigos e ameaças políticas e
vanguarda, teve obras apresentadas nessa ex- morais. Em sentido geral, o trabalho de Luci-
posição, e migrou para o Brasil, fugindo do ho- mary Billhardt não é artisticamente notável,
locausto, tornando-se um dos mais importantes mas é o que se apresenta como a melhor
pintores modernistas brasileiros. formulação estética e técnica da arte bolsona-
Para a ideologia fascista, a beleza forma o rista. Dentre os artistas plásticos da extrema-
mundo e dá harmonia a ele. Sendo assim, “(...) -direita, ela é a que mais nos assombra em seu
a menos que seja exterminado, o Outro já não fôlego vigoroso para a representação visual
90
nos é externo. Ele está dentro de nós, sob a du- do fascismo, que se pretende eterno, inclusive
pla figuração do outro eu e do eu outro, cada um através da arte e da cultura.
mortalmente exposto ao outro e a si mesmo.”
(MBEMBE, p. 83). As imagens do inimigo refor- Referências
çam a repulsa que leva à necessidade de extermi- ADORNO, Theodor. Antisseminismo e propaganda
fascista. In: Ensaios sobre psicologia social e psicanálise.
nar o inimigo e de instituir uma necropolítica.
BORBA, Felipe. Propaganda negativa nas eleições
A pandemia de Covid-19 foi uma das oportuni- presidenciais brasileiras. 2015.
dades para isso, além da criminalização e per- DIRCEU, Ricardo Mariano; GERARDI, André. Eleições
seguição de movimentos populares, LGBTQIA+, presidenciais na América Latina em 2018 e ativismo
político de evangélicos conservadores.
indígenas, negros e ativistas de esquerda.
ECO, Umberto. Fascismo Eterno.
Filme Arquitetura da Destruição
Conclusão FREUD, S. Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos.
Lucy coloca em imagem plástica a política JING, Tsai Yi. Bolsolixo versus Malddad - O uso dos
contemporânea da polarização maniqueísta. memes para campanha negativa apócrifa no Twitter nas
eleições de 2018.
Trata-se do colapso das democracias liberais que
KURTZ, Adriana Schryver. Holocausto judeu e estética
regridem ao fundamentalismo, fanatismo e in- nazista: Hitler e a Arquitetura da Destruição.
tolerância - além da perigosa mistura entre Esta- LACOUE-LABARTHE, Philippe; NANCY, Jean-Luc. O mito
do e religião. O objetivo é encenar visualmente a nazista.

guerra física e moral contra um inimigo comum: MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade.
Brasil Paralelo na guerra cultural da educação
Gabriela Ferreira Neves. Filha de pais divorciados, passei a infância e parte
da adolescência sob o cuidado da minha avó materna no bairro Bela Vista em
Guarulhos. Meus momentos de lazer envolvem a prática de esportes; ler livros,
histórias em quadrinhos, mangás. Como estudante de História da Arte, tenho prazer
em analisar produções audiovisuais.
Paloma Montero de Carvalho. Divorciada, mãe do Rogério e da Livia, moradora
do bairro do Itaim Paulista, zona leste de SP. Além de estudante de História da
Arte, sou formada em Naturologia pela (UAM). Trabalho como chocolatier para
complementar a renda. Sou, jogadora amadora de vôlei, simpatizante do yoga;
apaixonada por cinema, cultura indie e culinária japonesa.

A trilogia de filmes constituintes da série Pá- cos de pedra, mas a câmera explora o ambien-
tria Educadora foi publicada no Youtube em te, realiza movimentos retos e curvilíneos
2020 pela produtora Brasil Paralelo (BP). São como se fiscalizasse o acontecimento, assim
no total 3 horas e 45 minutos de críticas feitas como ocorre em reconstituições de cenas de
91
à educação pública brasileira. crime em programas jornalísticos.
A trilogia conta com uma vinheta de aber- A abertura exemplifica como a BP exprime
tura animada, em que cenário e personagens suas críticas também implicitamente – o que
tem o aspecto de pedra. Ela apresenta o Con- pode ser mais prejudicial, pois o espectador é
gresso Nacional em Brasília e o Ministério da influenciado sem sequer notar.
Educação – órgãos públicos que, ao sancionar
leis, ditam o rumo da educação; uma esteira Financiamento paralelo
de dinheiro, simbolizando todo o dinheiro A produtora e empresa de mídia Brasil Pa-
direcionado, inclusive para corrupção. Na se- ralelo foi criada em 2016. Os fundadores afir-
quência, em uma sala como plano de fundo, mam ser “...uma empresa de entretenimento
carteiras estudantis e objetos são arremessa- e educação. Somos orientados pela busca da
dos ao ar pela classe “baderneira”. Diante des- verdade histórica, ancorada na realidade dos
ta situação o professor – homem que aparece fatos, e sem qualquer tipo de ideologização na
graduando-se em momento anterior da narra- produção de conteúdo” (Sobre Nós. BRASIL
tiva – perde a compostura, porque não foi ca- PARALELO). Dentre as produções feitas pela
paz de “dominá-los”, de se impor como figura organização existem aquelas de maior fôlego,
de autoridade. A direção artística representou com maior investimento, supostamente ban-
esta sequência por meio de uma cena estática, cados apenas pelas assinaturas dos inscritos
objetos e pessoas são representados por bone- no canal – a empresa declara não receber re-
cursos públicos, mas não declara outros finan- Para ilustrar tal afirmação eles apresen-
ciadores privados que não os assinantes. tam, preconceituosa e grotescamente, ima-
Estes documentários de maior enverga- gens de jovens antes e depois de ingressar na
dura, geralmente, repercutem mais, tanto universidade pública. Primeiro com cabelos
por sua capacidade de atrair o público por seu compridos com coloração natural, e depois,
esmero, quanto pelas críticas realizadas pela com cabelos curtos, descolorido e/ou assimé-
comunidade jornalística e acadêmica em rela- trico. Ao exibir fotos dos “degenerados” eles
ção à inserção de dados sem fontes confiáveis, aplicam um filtro acinzentado, principalmen-
entrevistados sem formação na área e a distor- te nas extremidades do quadro, o que agrega
ção dos fatos, contrariando inclusive ampla um clima sombrio às figuras antagonistas.
produção histórica ou científica no tema.
A fórmula para criar uma realidade
Paulo Freire e Universidades na mira paralela
Voltando à Pátria Educadora. A BP criti- Quase todos os “documentários” da BP
ca o sistema de ensino-aprendizado brasilei- recorrem à mesma “fórmula”, uma base nar-
ro, supostamente apoiado e doutrinado pela rativa e estética que é capaz de capturar a
pedagogia de Paulo Freire. O ponto de partida confiança do público e progressivamente ir
92
da crítica já é paradoxal. A pedagogia de Freire “traficando” conteúdo ideológico, direitista
é antidoutrinadora, porque associa o conteú- e sem base na realidade (evidência científica
do educacional ao cotidiano dos alunos para ou documental). Esta estrutura de captura do
uma melhor compreensão da sociedade. Ela é espectador para depois doutriná-lo, eles sim,
emancipadora. é composta por três momentos do roteiro de
Para a produtora o ato de vincular o en- cada documentário:
sino-aprendizagem às situações vividas no 1° Um início frenético com ampla quantidade
de imagens históricas, manchetes e trechos
cotidiano, fazer os alunos refletirem sobre a
de telejornais – seria uma prova irrefutável da
sua vida pessoal e social seria uma ferramen- confiabilidade da BP. O fato em si. No entanto,
ta de doutrinação política de esquerda. Para a narrativa já é superficial, sem embasamento
eles, o “controle ideológico comunista” esta- em pesquisa histórica, simplificadoras e apre-
sentando o material jornalístico como se fos-
ria presente, desde a elaboração da cartilha sem provas de verdade. Nesse início é também
de pautas obrigatórias no material didático de comum mostrar o inimigo e construir pânico
todas as escolas. E se ainda assim houvesse re- moral no espectador para que ele se torne um
sistência do jovem à doutrinação durante a al- espectador aderido ao narrador do filme.

fabetização, esta seria inevitável para aqueles 2° Momento é de “aprofundamento no tema”,


que adentram às universidades públicas, pois quando se inicia o revisionismo histórico e fac-
tual – retrospectiva tendenciosa, que em geral
elas estariam sob controle total do “marxismo
contrariam as narrativas estabelecidas pelos
cultural”. historiadores e pesquisadores do tema. Sua
93
análise já está condicionada a uma ideia esta-
conceitual, serve de estofo para atribuir cre-
belecida a priori: “Partir sempre da conclusão
inaugura uma forma nova de teoria conspira- dibilidade ao que é apresentado logo adiante,
tória que se afasta da causalidade diabólica” quando entrarão em cena fatos históricos en-
(CASTRO ROCHA, 2021). viesados; além da presença de fontes biblio-
3° Momento é o mais ardiloso, quando entra a gráficas de origem duvidosa, desconhecidas à
manobra abertamente direitista. É quando os comunidade acadêmica.
entrevistados dão um passo além, com afirma- Quando entra o momento ideológico e de
ções sem embasamento e opinativas. Depois
de trazer o espectador “embalado” e conquis- enganação, além de Paulo Freire, as universi-
tado pela narrativa do filme, agora é o “pulo dades públicas são atacadas: incompetência,
do gato”. Essa virada é baseada quase exclu- esquerdismo, balbúrdia, desvio de verbas etc.
sivamente na retórica e veemência dos entre-
Segundo a BP, apresentando dados não confi-
vistados, que já haviam ganhado credibilidade
pelo primeiro e segundo momento do roteiro, áveis do Movimento Docentes pela Liberdade-
mais factuais. Aqui o tráfico ideológico entra -MDL, o Brasil estaria em péssima colocação
pela porta dos fundos, pelo subconsciente. En- nos rankings, à frente apenas da Venezuela na
tram edição, trilha, escolha de imagens preci-
América Latina. No entanto, como apontado
sa, construção do inimigo e novamente pânico
moral cobrando adesão do espectador. em aula pelos professores, a BP e o MDL usam
94 dados citação por paper (CPP), que não é o
Documentário deseducador
único nem o melhor indicador de avaliação da
Em Pátria Educadora, a fórmula que des-
qualidade universitária. Os rankings interna-
crevemos é mais uma vez adotada. Primeira-
cionais são compostos por múltiplas variáveis
mente, é exibido um frenesi de manchetes, e
e mostram que as universidades brasileiras
trechos de matérias televisivas. Na sequência,
lideram na América Latina (das 10 melhores, 7
o roteiro faz uma retrospectiva da história da
são brasileiras, segundo a Times High Educa-
educação, a partir do primeiro passo para a de-
tion, 2021-22) e a USP está entre as 90 melhores
mocratização da leitura, e por consequência da
universidades do mundo (e não em 708º lugar,
difusão do conhecimento, a tradução da Bíblia
como erroneamente apontado pela BP).
do Latim para o Alemão. Iniciativa de Marti-
Essa é apenas uma, dentre diversas desin-
nho Lutero, a tradução excluía a figura do padre
formações que poderiam ser desmascaradas.
como mediador, mensageiro de Deus aos ho-
A BP equipara Freire a figuras políticas contro-
mens, despertando a população para novas pos-
versas como Mao Tsé-Tung e Che Guevara, sem
sibilidades ao proporcionar a busca autônoma
a existência de argumentos sólidos, ao invés de
por conhecimento contanto que fosse letrado.
discutirem seriamente sua pedagogia.
O filme aborda inúmeros fatos históricos e
pensadores, afinal são séculos de história para
Estética de combate
chegar ao presente. Todavia, essa ambienta-
A linguagem visual adotada por eles endos-
ção que aparenta ser uma unidade coerente,
sa seu posicionamento político – o qual eles afir-
95
mam veementemente não existir nos filmes. BP, de fato, constrói uma “realidade paralela”,
Não existe imparcialidade, ou ao menos pon- como Bonsanto (2021), argumenta:
deração. A representação é feita para reafirmar […] as narrativas revisionistas não necessa-
ou agredir, pessoas e conceitos. A estética sus- riamente negam os fatos – como veremos no
caso de Brasil Paralelo, por exemplo – mas os
tenta tudo o que pertence ao conservadorismo instrumentalizam para justificar suas ações
e repudia o que contiver caráter progressista. políticas no presente, construindo assim ver-
A montagem recorre com frequência ao sões alternativas e, por que não, “paralelas” do
uso das cores como ferramenta significan- passado. (BONSANTO, 2021, p. 9)

te. Eles utilizam uma cartela composta por Em suma, a BP alcançou grande alcance
vermelho, branco, preto e subtons para re- levando suas produções a um número expres-
presentar o lado antagonista, dando-o uma sivo de pessoas, teve capacidade de articular fi-
atmosfera vilanesca. Por outra ótica, os entre- guras públicas como Felipe Pondé e seu ‘guru’,
vistados, protagonistas, muitas vezes com tra- Olavo de Carvalho, com quem a empresa sem-
jes sociais, estão sob uma iluminação de cena pre está alinhada, e demonstrou habilidade
clássica; límpida e difusa. A direção recorre ao comunicacional por meio de produtos audio-
uso de móveis, e estantes de livros, ambos de visuais persuasivos.
96 madeira de aspecto envelhecido como objeto Debruçar-se sobre a Brasil Paralelo e estu-
de plano de fundo, pois eles transmitem a ideia dá-la para melhor análise é tarefa importante
de um ambiente com credibilidade, frequen- para impedir que narrativas preconceituosas,
tado por pessoas confiáveis, quase sempre ho- negacionistas e reacionárias sejam validadas
mens brancos e elitistas. e reproduzidas em massa. A extrema-direita
tem utilizado com frequência produções da
Conclusão Brasil Paralelo como fonte “factual” em con-
Com a escalada do fenômeno da direita versas e debates e é importante saber fazer o
brasileira e mundial, um dos principais men- contraponto bem fundamentado.
tores intelectuais dessa “nova” direita é Olavo
de Carvalho, que abordou pautas que origina-
ram debates na política atual e é uma referên- Referências
cia significativa para a BP que incorpora em BONSANTO, A. Narrativas “historiográfico-midiáticas”
suas produções revisionismo histórico e nega- na era da pós-verdade: Brasil Paralelo e o revisionismo
histórico para além das fake News. Liiinc em Revista, 17(1),
cionismo. O conceito de revisionismo se baseia 2021, p. 9. DOI: https://doi.org/10.18617/liinc.v17i1.5631
em uma interpretação autônoma que não pre- BRASIL PARALELO. Sobre nós. Disponível em: <https://
cisa divergir forçosamente dos acontecimen- www.brasilparalelo.com.br/sobre>. Acesso em 22 de nov.
2022
tos, mas se vale de mecanismos que operam a
CASTRO ROCHA, João Cézar de. Guerra cultural e retórica do
favor de justificar um discurso “alternativo” ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Editora Caminhos, 1ª
que efetiva a guerra cultural política atual. A edição, 2021, p. 281. E-Book Kindle.
Primavera secundarista X Escola sem partido
Marcelo Lauton de Oliveira. Professor, licenciado em Artes Visuais pela
Universidade Cruzeiro do Sul e estudante de História da Arte na Universidade
Federal de São Paulo. Atuando na educação básica de anos iniciais em escolas
públicas do estado de São Paulo.
Patricia Pinheiro Antunes de Paula. Graduada em História pela Universidade
de São Paulo e estudante de História da Arte na Universidade Federal de São
Paulo. Atuando no projeto Reciprocriar, Poéticas entre Universidade, Ocupação e
Sociedade.

Primeiro campo de batalha nos contra à “reorganização’’. No dia seguinte,


Primavera secundarista, ou levante dos a Escola Estadual Fernão Dias, na região de
secundaristas, foi um dos maiores movimen- Pinheiros. Em seguida, várias escolas segui-
tos estudantis de resistência do Brasil. Em 2015 ram o mesmo curso, chegando a estimativa de
aconteceram várias ações de sucateamento e mais de 200 escolas ocupadas. A princípio, o
precarização da educação básica, como super- governo determinou a reintegração com ação
97
lotação e fechamento de salas em São Paulo. No policial. Mas no dia 13 de novembro, o juiz Luis
segundo semestre, o governo de Geraldo Alck- Felipe Ferrari Bedendi, da 5ª Vara de Fazenda
min, impôs uma “reorganização” do ensino, que Pública, suspendeu essa determinação da jus-
tinha como um dos objetivos alterar os ciclos tiça defendendo o diálogo.
que cada escola oferecia, limitando-as a oferecer Além das ocupações, os estudantes também
apenas um ciclo, Ensino Fundamental I, Funda- fizeram atos de protesto com fechamentos de
mental II ou Médio. Para a alteração o governo ruas e avenidas, como na avenida Faria Lima no
pretendia disponibilizar 1,8% das 5.147 escolas cruzamento com a avenida Rebouças. Na oca-
estaduais, ou seja, em 1.464 escolas haveria essa sião, também houve violenta repressão policial.
mudança. Esta “reorganização” afetaria a vida As ocupações das escolas se deram de for-
de 311 mil alunos, 74 mil professores, técnicos e ma organizada, inspiradas nas experiências de
funcionários, trazendo incerteza para centenas luta de alunos argentinos e chilenos. Uma car-
de milhares de pessoas e suas famílias. A reor- tilha relatando essas ações estudantis trouxe
ganização resultaria também no fechamento de de forma simples esquemas de organização de
93 escolas. Ao final de outubro, o governo anun- ocupações com assembleias, atividades e comis-
ciou quais escolas seriam fechadas, sendo este o sões de setores indispensáveis como segurança,
estopim para a movimentação estudantil. alimentação, limpeza, informação, relações
No dia 9 de novembro, a Escola Estadual externas e imprensa. Desta forma, várias ocu-
Diadema foi a primeira a ser ocupada por alu- pações conseguiram resistir. As assembléias
aconteciam constantemente, com os ocupantes, Centre, em Londres, o prêmio de melhor dire-
alunos de outras escolas e comunidade [Imagem ção para Martha Kiss, e o Prêmio Zé Renato da
1]. Após dois meses de resistência, Geraldo Alck- Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
min, depois de várias suspensões da “reorgani- Em 2022 o grupo realizou apresentações junto
zação”, por fim acaba revogando a decisão. ao Sesc [Imagem 2]. O reconhecimento nas co-
munidades e nos espaços teatrais convencio-
O levante secundarista como campo de nais reforçam a potencialidade e importância
possibilidades da luta dos estudantes e sua releitura pela arte.
O Levante Secundarista rompe com o Todas essas experiências evidenciam a ca-
padrão em busca de um novo campo de pos- pacidade de criação dos estudantes. A forma
sibilidades na relação dos estudantes com o de entender as imposições do governo, lutar
aprendizado. Ao ocuparem as escolas, os es- contra, de forma autêntica, concreta e com isso
tudantes assumem também as responsabili- mudar a decisão do então governador e ao mes-
dades do funcionamento do espaço e de sua mo tempo expandir o campo de possibilidades
ressignificação. Nas mais de duzentas unida- de trocas, aprendizados, espaços educativos foi
des escolares ocupadas, as experimentações de inédita na história brasileira recente. O estu-
98 convivência em comunidade, os possíveis usos dante capaz de pensar por conta própria, como
dos espaços, as formas e duração das aulas são sujeito reflexivo, e de agir para mudar as con-
criados com suas particularidades. Diversos dições de opressão ou alienação no ambiente
dos materiais nas suas mais diversas formas escolar é um sujeito perigoso, a ser combatido.
são desenvolvidos também pelos estudan- A estrutura disciplinar imposta pelo Esta-
tes. Documentários como Primavera Secun- do e os conservadores se opõem ao estudante
darista (2016) e A Escola é nossa! (2020) são reflexivo que problematiza o mundo e a escola e
exemplos desta materialidade. Também foram que se torna sujeito da sua própria história. Con-
desenvolvidos textos, livros, artigos etc. cebem os educandos como seres passivos, in-
O grupo teatral ColetivA Ocupação trás fluenciáveis e doutrináveis, que podem receber
consigo a multiplicidade cultural vivencia- conteúdos acriticamente. É também uma visão
da nas ocupações. Fundado em 2017 por es- simplista do ensino-aprendizagem, porque re-
tudantes que se conheceram nas ocupações, duz o papel do professor a um simples transmis-
com atuações desde apresentações em escolas sor de conteúdos escolares e não um educador.
e comunidades a circuitos internacionais de É contra esse estudante capaz de reivindicar di-
teatro. Com sua peça Quando Quebra Quei- reitos, lutar por eles, se auto-organizar e enfren-
ma (2018) dirigida por Martha Kiss Perrone, tar opressores que a extrema-direita passou a se
o coletivo faz apresentações em países como mobilizar, e não apenas contra o “professor es-
Portugal, França e Inglaterra. A peça gera querdista”. A Guerra Cultural na educação tem
também uma residência no Battersea Arts como premissa o estudante passivo, seja para ser
99
“doutrinado” por um lado ou por outro. E essa ja católica, a burguesia, a família tradicional,
percepção de incapacidade do educando como a propriedade privada, o capitalismo, o livre
sujeito da sua aprendizagem que é a base do pen- mercado, o agronegócio, o regime militar, os
samento do movimento Escola Sem Partido. Estados Unidos etc.” Para eles, as principais ví-
timas dessa prática de doutrinação “são jovens
Segundo campo de batalha inexperientes, imaturos, incapazes de reagir
O movimento Escola Sem Partido, que já intelectual e emocionalmente a um professor
foi uma Associação, depois se tornou um Pro- que esteja determinado a fazer sua cabeça”.
grama, e por fim tentou se tornar uma Lei, foi O ESP teve atuação na esfera política, ju-
criado em 2004 pelo procurador do estado de rídica e educacional. Na política, a polarização
São Paulo Miguel Nagib. Apesar de existir qua- e o apoio de políticos conservadores deram vi-
se uma década antes, ele adquiriu maior força e sibilidade ao Movimento. Debates acalorados
visibilidade a partir de 2014 com os apoios da fa- e lives apresentaram as pessoas às ideias do
mília Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Bia Kicis, ESP e encontraram eco em parte da popula-
Fernando Holiday, Kim Kataguiri, entre vários ção. Eles atenderam a convocação de políticos,
outros integrantes da extrema-direita. O mo- influencers e religiosos a fiscalizar professores
100 vimento se declarava uma “iniciativa conjunta e denunciar qualquer tentativa dessa doutri-
de estudantes e pais preocupados com o grau nação [Imagem 4]. Em 2016, a mídia e as redes
de contaminação política-ideológica das es- sociais foram responsáveis pela apresentação
colas brasileiras”1. Também se identificavam do Movimento a sociedade, quando propostas
como “uma associação informal, independen- de lei começaram a tramitar nas Câmaras Mu-
te, sem fins lucrativos e sem qualquer espécie nicipais, Estaduais e Federal. Ocorreu um mo-
de vinculação política, ideológica ou partidá- vimento conservador coordenado que tinha a
ria”. Segundo seus defensores, existe a neces- intenção de inundar a esfera legislativa com
sidade de se protegerem do que eles entendem diversos projetos que reuniam temáticas se-
como doutrinação ideológica [Imagem 3]. Eles melhantes às da ESP, popularizando o assun-
afirmam que “um exército organizado de mi- to nas mais diversas camadas sociais. Apesar
litantes travestidos de professores” abusa da dessa variedade de proposições, o Movimento
liberdade de ensino para forçar a sua própria idealizou uma proposta de lei específica, que
visão de mundo aos alunos, ao martelar ideias tornaria obrigatória em todas as salas de aula
de esquerda na cabeça dos estudantes. Ideias do ensino fundamental e médio a fixação de
essas que pregam contra “a civilização ociden- um cartaz com os 6 deveres do professor, com o
tal, o cristianismo, os valores cristãos, a igre- objetivo de indicar aos alunos os seus direitos.
Com isso e, apesar de o projeto de lei ter sido
considerado inconstitucional, o ESP também
1 Miguel Nagib em escolasempartido.org. Todas as cita-
ções entre aspas nesse parágrafo são da mesma fonte.
teve influência na educação, por outros meios.
101
Diversos ministros da educação defenderam da sociedade, que novos projetos de leis estão
premissas iguais ao do Movimento, aplicando sendo apresentados em Câmaras de todos os
esses ideais nas decisões relacionadas às defi- níveis. Alguns que foram aprovados até o mo-
nições pedagógicas da política educacional. mento, são questionados na esfera jurídica. No
Deste modo, mesmo sem uma lei, a escola sem entanto, os outros recursos estão sendo mais
partido influenciou muito as decisões do MEC. bem sucedidos. Com a presença dentro do Mi-
Quando analisamos o ESP, é inevitável nistério da Educação, mudanças já foram rea-
lembrar do ideólogo Olavo de Carvalho [Ima- lizadas em materiais didáticos e tentativas de
gem 5]. O que muitos não sabem é que, apesar mudanças no currículo básico escolar tam-
dos ministros da educação e técnicos do gover- bém estão em ação. Isso inspira bastante pre-
no que defendiam as premissas do Movimento ocupação já que, mais uma vez, menospreza
durante o governo serem discípulos de Olavo, as capacidades de estudantes como indivíduos
ele mesmo mudou de ideia. Mudou de ideia a pensantes e atuantes.
respeito da forma como a “doutrinação” seria
combatida, não da existência da doutrinação Conclusão
em si, que segundo ele é um fato. As disputas em torno da educação e das
102 Em 2018, Olavo em vídeo (‘Aviso ao Escola capacidades do educando enquanto sujeito
Sem Partido’) critica o uso do recurso ‘proje- autônomo continuam. Nas experiências das
to de lei’ para obrigar professores a cumprir ocupações das escolas é possível perceber que
determinações, o que deveria ser feito ini- os estudantes dispõem de ferramentas intelec-
cialmente na esfera intelectual. Para ele seria tuais, críticas e sociais para se organizarem,
absurdo esperar que um professor reproduza e deixar claro seus anseios. Por outro lado,
uma opinião diferente da sua: “Você cria uma existem as iniciativas de movimentos ultra-
situação de pânico. Então aqueles mesmos que conservadores como o ESP que, com um pater-
são os culpados pela situação opressiva nas nalismo risível, inferiorizam esses indivíduos
universidades [e escolas], passam a posar de e buscam controlar o sistema educacional para
vítimas de uma perseguição. E quem ajudou viabilizar a implementação de seu projeto de
a fazer isso foram vocês ‘Turminha da Escola poder e sua visão de mundo.
sem partido’, vocês não entendem coisa ne-
nhuma de combate cultural” A recomendação Referências
de Olavo passa a ser: formar professores de di- CARVALHO, Olavo de. Aviso ao Escola Sem Partido – 12’29
reita, em todos os níveis e todas as áreas. Publicado por Olavo de Carvalho em 15/11/2018. https://
youtu.be/qySuenfRkDk
Contudo, mesmo com o racha de Olavo
GRUPO CONTRAFILÉ (São Paulo, SP). A batalha do vivo:
com o ESP e com a recente renúncia de Nagib Grupo Contrafilé, secundaristas de luta e amigos. São Paulo, SP:
da liderança do Movimento, estes são discur- [s. n.], 2016.
sos tão cimentados na parcela conservadora NAGIB, Miguel. http://escolasempartido.org/
Simbolismo nazifascista
na comunicação bolsonarista
Isabella Mendes Marques dos Santos. Estudante da graduação de História da Arte
na Universidade Federal de São Paulo. Atua como oficineira no Centro de Atenção
Psicossocial Adulto de São Miguel Paulista.
Júlia Rodrigues Borges. Estudante de História da Arte na Universidade Federal de
São Paulo. Movida por revolta e indignação. Tucuruvi.

Em junho de 2022, Mário Frias – ex-secretário novos participantes (LEVIN, 2022). Da mesma
de Cultura – publicou, em suas redes sociais, forma como o som do apito só é perceptível aos
uma foto aparentemente inofensiva do pre- cachorros, esses sinais só seriam identificados
sidente Jair Bolsonaro enquanto assistiam à por aqueles que fazem parte de um grupo espe-
uma partida de futebol. O que chamou aten- cífico, mas não pelo público geral.
ção, no entanto, foi a camisa usada pelo pre- A associação entre Bolsonaro e os regimes
sidente: Bolsonaro usava a camisa do time de extrema-direita nunca deixou de ser imper-
103
italiano Lazio, que curiosamente foi atrelado ceptível e antecede em muito a sua declaração
a diversas polêmicas de cunho fascista, como durante o impeachment de Dilma Rousseff, em
entoar hinos repletos de injúrias raciais e até que dedicou seu voto ao torturador Carlos Bri-
um ‘Saluto Romano’, executado pelo ex-ata- lhante Ustra. Porém, durante sua campanha
cante Paolo Di Canio, em homenagem a Mus- eleitoral em 2018 e sua trajetória na presidên-
solini. Se estavam assistindo a uma partida cia, encerrada em 2022, ocorreram inúmeras
de futebol brasileiro por quais motivos Bolso- ações e formas de estreitar essa relação. Quais
naro vestiria a camisa do que é considerado o foram, então, alguns dos momentos em que o
time mais fascista do mundo? governo bolsonarista apresentou evidências
concretas que permitem a comparação entre
Apito do cachorro fascista regimes nazistas e fascistas?
Bolsonaro, há muito, segue o que chama-
mos de política apito de cachorro – dog whist- Banalização do mal
le. Esse termo foi designado à prática de fazer Em 1990 foi criada, por um jurista judeu,
algum sinal que é identificado por grupos ne- a lei que busca impedir a banalização e o uso
onazistas ou supremacistas brancos, sinali- impróprio do termo ‘nazista’ ou comparações
zando para estes grupos que ‘estão com eles’. entre figuras centrais de uma discussão e Hi-
É uma tática que indica pertencimento, aju- tler – principalmente dentro dos ambientes
dando a indicar quem é do grupo e a recrutar virtuais. Mike Godwin explica que “à medida
que uma discussão online se alonga, a probabi- Propaganda é a alma do negócio
lidade de surgir uma comparação envolvendo A ascensão de muitos líderes nazifascistas
Hitler ou os nazistas tende a 100%”. Portanto, pelo mundo durante a História se deu pelos in-
a Lei de Godwin é evocada nos momentos em cisivos e estratégicos métodos de propaganda.
que uma comparação com os regimes totalitá- Seguindo as ideias de Theodor W. Adorno, po-
rios de extrema-direita é inevitável, encerran- demos entender que a propaganda e a comuni-
do a discussão e deixando claro que não, não cação fascista se utilizam incansavelmente da
estamos falando de nazismo aqui. sensibilização psicológica através da manipu-
Se posicionando contrariamente às pro- lação do inconsciente.
postas do então candidato à presidência da Nesse regime, o discurso emocional e
República, Jair Messias Bolsonaro, Godwin messiânico leva à construção do inimigo como
uniu-se à onda de manifestações com a hash- o outro, diferente, a ser eliminado. O discurso
tag #EleNão que tomou conta das redes sociais fascista também não possui nenhum compro-
em meados de 2018 [Imagem 1]. Além disso, misso com a realidade. Assim como o moinho
também escreveu o seguinte o tweet: “Eu adi- de vento está para Dom Quixote, o “comu-
cionei #EleNão ao meu Twitter em solida- nismo” está para a extrema-direita. Segun-
riedade à democracia brasileira. (Obrigado do Adorno, a propaganda fascista considera
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pelo #MarcoCivil!)”, em elogio à legislação a população como mentes e corações a serem
aprovada no governo Dilma Rousseff, que tutelados para a ascensão ao poder. Seres sem
garante liberdade de expressão e neutrali- interesses particulares, mas obedientes às or-
dade na rede.” dens dadas [Imagem 2].
Segundo o historiador e professor da A propaganda bolsonarista também não
UFRJ, Michel Gherman, autor do livro O não se preocupa com o compromisso com a ver-
judeu judeu: A tentativa de colonização do dade ou em trazer argumentos sólidos para
judaísmo pelo bolsonarismo, deve-se “locali- embasamento de seus ideais, mas sim com
zar os crimes produzidos pelo bolsonarismo e discursos de fácil absorção – como as combina-
a partir desses crimes educar a população so- ções de palavras-chave e símbolos visuais que
bre o que efetivamente aconteceu”, como feito são representativos diretos desses “valores”:
pela Alemanha no pós-guerra (GHERMAN, Deus, pátria, família, propriedade privada,
2022). O historiador também reforça que o ordem, hierarquia etc.
fenômeno de normalização de discursos ex- Desde o início de sua campanha, Bolsona-
tremistas, genocidas e racistas (que dialogam ro adota o lema “Deus, pátria e família”. Em
diretamente com a simbologia nazista), é um outubro de 2022, durante o debate do segun-
dos principais responsáveis pela ascensão de do turno das eleições presidenciais, realizado
Bolsonaro ao poder. entre ele e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, bradou a frase com os braços levanta-
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dos, como quem opera uma prece, causando e onipresente [Imagem 4]. A declaração de Al-
desconforto em parcela dos presentes. Esse vim sobre o papel da arte no país também é um
incômodo tem justificativa: “Deus, pátria e fa- plágio de Goebbels: “A arte brasileira da pró-
mília” era o lema do Integralismo, o Fascismo xima década será heroica e será nacional. Será
brasileiro do entreguerras, liderado por Plínio dotada de grande capacidade de envolvimento
Salgado. Outra frase adotada pelo Bolsonaris- emocional e será igualmente imperativa [...]
mo foi diretamente inspirada na Alemanha ou então não será nada”.
nazista: “Deutschland über alles”, que signifi-
ca “Alemanha acima de tudo” [Imagem 3]. Soa O sieg heil catarinense
familiar? Outro aspecto que se assemelha os regimes
A figura difusa do líder como “mito” en- citados com a tática bolsonarista, é a própria
globa em si os diversos valores da extrema- estratégia de comunicação seletiva. Patriotis-
-direita: o pater família, cristão, cidadão de mo sempre à vista enquanto se invisibiliza a
bem, temente a Deus e destemido em relação criminalização das minorias e o genocídio em
aos inimigos, que luta para exterminar a “pe- curso. As falas agressivas, antidemocráticas,
tralhada”. Além disso, a propaganda na forma homofóbicas, xenofóbicas, machistas e pre-
106 de memes foi sem dúvida um instrumento de conceituosas de Jair Bolsonaro existem e estão
convencimento acessível às diversas camadas devidamente acessíveis e documentadas, mas
da população, como Whatsapp e Facebook. não são difundidas direta e explicitamente por
seus apoiadores. Quando muito, são ressignifi-
O Goebbels verde-amarelo cadas em tom de “má interpretação” daqueles
Em 2020, durante a pandemia de Covid-19, que a criticam.
o secretário de Cultura do Governo achou de Falando em má interpretação, já no ano de
bom tom usar a ópera Lohengrin, de Richard 2022, o que antes tinha um tom subentendido,
Wagner, compositor favorito de Adolf Hitler, escancarou-se principalmente após a derrota
para se pronunciar nas redes sociais. Não de- de Bolsonaro nas eleições presidenciais. O mo-
morou muito para que o plágio fosse percebido vimento golpista ganhou força, se materiali-
pelos internautas: o discurso de Roberto Alvim zando em forma de barricadas e barreiras em
foi intensamente inspirado na fala do minis- rodovias, aglomerações em frente aos quar-
tro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels. téis militares enfrentando intempéries para
Além do texto, toda a construção imagética do garantir o seu direito de apoiar uma “inter-
vídeo foi plagiada: o aspecto minimalista da venção” (federal, militar ou mesmo extrater-
construção do cenário, a mesa de escritório, o restre) que impedisse a posse de Lula.
penteado, o olhar direto e decidido e a foto do Essas manifestações perderam qualquer
líder/führer acima da cabeça de Alvim carre- pudor em esconder a matriz neonazista. Re-
gando a aura de um ser soberano, onisciente produzindo um gesto similar à saudação ‘Sieg
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Heil’, amplamente utilizada pelo nazismo em tivamente evocam o nazifascismo, e isso faz
várias das ações, em especial no estado mais parte da estratégia de convivência com aquilo
conservador do país e com reconhecidas cé- que deve ou não ser explicitado. O exército de
lulas neonazistas: Santa Catarina [Imagem 5]. agitprop bolsonarista aprendeu a interpretar
Heiko Thoms, embaixador da Alemanha no os sinais nazifascistas que estão explícitos ou
Brasil, se pronunciou em seu Twitter: O uso implícitos na propaganda e mantém o compro-
de símbolos nazistas e fascistas por “mani- misso de defendê-los a todo custo, mesmo que
festantes” claramente de extrema direita é camuflados - como militares na selva do ódio.
profundamente chocante. Apologia ao na-
zismo é crime! Referências
ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e
Conclusão psicanálise. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2015. 137-152 p.
ISBN 8539305925.
Como Bolsonaro conseguiu cooptar jovens
CAPITAL, Carta. Uso de símbolo nazista por
para seu regime de claros sinais nazifastistas? ‘manifestantes’ é chocante e criminoso, diz embaixador
Adaptando-se ao gosto juvenil, o exército digi- alemão no Brasil. Carta Capital, 2022. Disponível em:
https://jornalistaslivres.org/nazismo-escancara-sua-
tal de Bolsonaro lançou, no YouTube, a estética ameaca-slogan-de-bolsonaro-e-traducao-de-lema-de-
BolsoWave: vídeos da juventude de Bolsona- hitler/. Acesso em: 13 nov. 2022.
108
ro e da Ditadura Civil-Militar, embalados em LEVIN, Renato. ‘Dog whistle’: a tática de extremistas
que utilizam símbolos para se comunicarem. O
uma estranha melodia lo-fi/vaporwave mi- Dia, 2022. Disponível em: https://odia.ig.com.br/
xadas com falas polêmicas do presidente. São br a si l /2 0 2 2/0 2/6 3 3 6 6 47- dog-wh i s t le - a-t at ic a-
esses vídeos que ajudam a criar na juventude de - e x t r e m i s t a s - q ue - ut i l i z a m - s i mb olo s - p a r a - s e -
comunicarem.html. Acesso em: 13 nov. 2022.
da extrema-direita um leitmotiv para que se
MAGALHÃES, Guilherme. Michel Gherman: ‘É preciso
mobilizem dentro dessa estética militarista e punir Bolsonaro e seus cúmplices’: Historiador enfatiza
neonazista (TEODORO, 2020). O termo leitmo- necessidade de o Brasil ‘produzir algo que produz
mal: punição e conhecimento dos crimes’. Jota, 2022.
tiv significa motivo condutor, um tema musi- Disponível em: https://www.jota.info/eleicoes/michel-
cal que está atrelado a uma ideia, personagem gherman-e-preciso-punir-bolsonaro-e-seus-cumplices-
18112022?amp. Acesso em: 04 dez. 2022.
ou regime específico. Quem popularizou essa
TEODORO, Jonas. A VANGUARDA ARTÍSTICA DE
técnica foi ele mesmo, Richard Wagner, o com- BOLSONARO: A Arte Política da Alt-Right e o Anti-
positor citado anteriormente. Kitsch. Medium, 2020. Disponível em: https://medium.
Ao afirmar que Jair Bolsonaro é nazista, com/@jonas.teodoro/a-vanguarda-art%C3%ADstica-de-
bolsonaro-a-arte-pol%C3%ADtica-da-alt-right-e-o-anti-
Mike Godwin e Michel Gherman validam que kitsch-a8ea762cdc8d. Acesso em: 18 nov. 2022.
todas as “má-interpretações” e “infelizes coin- WANDELLI, Raquel. NAZISMO ESCANCARA SUA
cidências” na verdade são uma estratégia mui- AMEAÇA: Slogan de Bolsonaro é tradução literal do lema
de Hitler. Jornalistas Livres, 2018. Disponível em: https://
to bem traçada e delimitada. A propaganda e jornalistaslivres.org/nazismo-escancara-sua-ameaca-
a comunicação bolsonarista trazem intrin- slogan-de-bolsonaro-e-traducao-de-lema-de-hitler/.
Acesso em: 13 nov. 2022.
secamente mensagens que indireta e subje-
Queridos/as leitores/as, bem-vindos/
as ao nosso campo de batalha – e de
estudos. Vocês estão prestes a ler um
livro perigoso. Ele fala sobre muito
do que estamos vivendo no Brasil
dos últimos anos, olhando esse nosso
estranho país pelo ângulo cultural, da
imagem e da comunicação. Vivemos
uma guerra interna, desleal em muitos
sentidos, em que a dimensão simbólica
e cultural tem sido decisiva. Por isso
é preciso decifrá-la ou, ao menos, ter
mais elementos para debatê-la.
29 estudantes da Unifesp passaram os
últimos 4 meses estudando o combate
que levou à polarização e radicalização
da sociedade brasileira e escreveram
seus achados para vocês.
Para entrar neste campo de batalha
das Guerras Culturais vocês não
precisarão de uniformes militares nem
coletes à prova de bala. Nossas únicas
armas serão a reflexão, a inteligência,
a colaboração, o espírito crítico e a
capacidade de narrar com voz coletiva.
Vocês vão ler 15 pequenas histórias,
que são estudos de casos ou notícias
do front (para usar o termo de um dos
autores que lemos), cada uma entrando
em uma trincheira dessa guerra e
olhando o campo de batalha por um
ângulo diferente.

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