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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO – UENF

CENTRO DE CIÊNCIAS DO HOMEM – CCH

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS SOCIAIS- PPGPS

História das Políticas Sociais na América Latina

Prof. Dr. Marcelo Gantos

AS DESIGUALDADES DE GÊNERO NAS MOBILIZAÇÕES


SOCIAIS REFERENTES À BUSCA POR DIREITOS DAS PESSOAS
COM AUTISMO NO CONTEXTO DA REDEMOCRATIZAÇÃO
BRASILEIRA

BIANCA DE SOUZA MORAES

CAMPOS DOS GOYTACAZES - RJ

2023
1- Introdução

Considerando que a sociedade abrange um complexo de relações sociais nas


quais as dominações de uma classe sobre a outra estão implícitas em manifestações de
opressão. E nesse sistema, diversos tipos de opressões recaem sobre as mulheres e a
população negra, ou seja, o sistema capitalista possui a opressão de gênero e de raça
como um de seus pilares de sustentação. As esferas de gênero e raça merecem uma
atenção maior e mais minuciosa quando se trata de políticas sociais.

No que se refere às desigualdades de gênero, historicamente, as mulheres


ocupavam um lugar de opressão e submissão na sociedade. Sendo assim, tinham acesso
limitado aos direitos civis, à inserção na vida escolar, ao mercado de trabalho, na vida
política, entre outros. A conquista gradativa dos direitos através de movimentos
feministas trouxe reflexos para diversos setores da sociedade. Um exemplo deste fato, é
a inserção da mulher no mercado de trabalho que resultou em novos arranjos familiares
e sociais. Com a nova configuração de estilos de famílias, muitas mulheres se tornam
chefes-de-família, e a dinâmica familiar é focada ainda mais em torno dela
(MEDEIROS, 2000). Com o aumento da participação das mulheres no mercado de
trabalho, a contribuição feminina nos rendimentos familiares passou a ser bastante
significativa. Entretanto, é preciso ressaltar que a atuação delas no mercado é
majoritariamente ligada à ocupação de espaços relacionados a cuidados e educação
como: professores, enfermeiras, babás, etc. As estatísticas indicam que a porcentagem
de mulheres ocupando espaços de poder na sociedade é consideravelmente baixa.
(OXFORD, 2023). E por fim, o acúmulo de funções e de responsabilidades reflete e
resulta em uma sobrecarga sobre a figura da mulher.

Em relação à participação da vida política as mulheres encontram grandes


dificuldades em ocupar espaços de poder, serem eleitas ou ter voz ativa na tomada de
decisões políticas. A não ocupação desses espaços, deixa as mulheres à margem dos
processos de elaboração de políticas públicas, além de enfraquecer a democracia
(PACHECO, 2023). Sendo assim, existe uma expressiva atuação das mulheres na esfera
da sociedade civil, onde busca-se formar articulações que possam fortalecer o
desenvolvimento de demandas políticas. A atuação das mulheres através da sociedade
civil não está apenas relacionada às demandas relacionadas a gênero, mas também à
diversas demandas que afetam diretamente a dinâmica social delas, como os direitos das
pessoas com deficiência.

Com base no que foi tratado na disciplina ‘Histórias das Políticas Sociais da
América Latina’ através das aulas e dos materiais disponibilizados, em consonância
com a minha pesquisa que se intitula ‘Mobilizações políticas das organizações civis em
defesa das pessoas com autismo no contexto da redemocratização brasileira: embates e
disputas’, abordarei pontos de intersecção no que diz respeito à desigualdade de gênero
e a atuação de familiares na construção de políticas para pessoas com autismo.

2 - Fundamentação: breve recapitulação sobre desigualdade de


gêneros.

Através dos séculos as mulheres têm falado abertamente sobre desigualdades


enfrentadas por causa da diferença entre os sexos. Isso porque a dominação masculina
está enraizada no sistema patriarcal, que esteve na base da maior parte das sociedades
humanas por séculos. O sistema patriarcal ascendeu quando as sociedades se tornaram
mais complexas e passaram a exigir uma regulação maior, foram criadas instituições
que reforçavam o poder masculino e infligiram a opressão às mulheres. Tal dinâmica
refletiu em todas as áreas da sociedade, nas leis, nas religiões, no trabalho, etc. As
mulheres então eram consideradas inferiores aos homens em termos de posição cultural,
social e intelectual. (PACHECO, 2023)
O período do Iluminismo, no final do século XVII e início do século XVIII, foi
um marco pois houve uma ênfase ao desenvolvimento intelectual e à liberdade
individual. Nesse contexto, muitas mulheres militaram para que as novas liberdades
fossem aplicadas a elas também. Por mais que essa militância não tenha sido de um
todo bem-sucedida à época, esse advento foi um dos grandes marcos iniciais de um
movimento efetivamente feminista, que sucederam três grandes ondas do movimento,
que abrangiram desde direito ao voto e acesso igualitário à educação, a luta contra a
opressão até a busca pela liberdade sexual.
O avanço do movimento feminista trouxe reflexos para a sociedade como um
todo, avanço à direitos civis, à educação, ao mercado de trabalho, a independencia
financeira, entre outros. No entanto, apesar dos avanços no acesso à educação por parte
das mulheres, estes não se traduzem em condições de igualdade no mercado de trabalho.
Os nós estruturais da desigualdade de gênero, que são um traço histórico e persistente,
manifestam-se na segregação ocupacional, na sub-representação das mulheres em
setores dinamizadores da economia e de maior produtividade, vinculados, por exemplo,
às áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática, nas disparidades salariais e,
em geral, numa menor participação das mulheres no mercado de trabalho. (PACHECO,
2023)
Neste contexto, a desigual carga do trabalho de cuidado não remunerado
constitui um nó estrutural crítico que impede a plena participação das mulheres e
impossibilita o avanço para sua autonomia econômica. Estas lacunas de gênero também
contribuem para perpetuar a baixa participação das mulheres na pesquisa e
desenvolvimento, na produção científica, na publicação de pesquisas acadêmicas, na
obtenção de patentes e na representação em cargos de liderança acadêmica.
Além dos fatores indicados acima, o processo de acesso à direitos básicos das
mulheres, refletiu na configuração das famílias como um todo. O número de famílias
chefiadas por mulheres aumentou expressivamente na América Latina, especialmente
entre os estratos mais pobres da população. Nesses tipos de família as mulheres devem
assumir diversas responsabilidades e víem-se sujeitas a diversas pressões, o que afeta
negativamente o bem-estar dos membros da família, e principalmente o dela mesmo.
(MEDEIROS, 2000)
Importante considerar, no entanto, que algumas das novas formas de organização
familiar possuem menor capacidade de atuar nas lacunas do Estado e compõem os
grupos mais vulneráveis à pobreza da sociedade. Essa vulnerabilidade apresenta uma
distinção por sexo, já que as mulheres prevalecem nessas famÌlias. As famílias são
muito menos estáveis ​e as mulheres muitas vezes enfrentam graves dilemas entre o
emprego e as obrigações familiares. Diante desse cenário, faz-se necessário pensar em
novos tipos de políticas que atendam esses novos arranjos familiares e sociais.
(MEDEIROS, 2000).

No Brasil, a primeira Conferência Nacional de Direitos aconteceu em 1941, por


Getúlio Vargas. A criação das primeiras políticas públicas com vinculação de gênero
ocorreu um pouco antes da Constituição de 1988, com a formação do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) em 1985, para promover políticas que
visassem eliminar a discriminação contra a mulher e assegurar sua participação nas
atividades políticas, econômicas e culturais do país.

Nos anos 2000, com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva para a presidência do
Brasil, destaca-se a criação da Secretaria Especial de Política para as Mulheres no ano
de 2003. Diversas conferências de políticas públicas foram um marco dos governos
Lula e Dilma. De caráter consultivo ou deliberativo, as conferências apostaram na
participação da sociedade como ferramentas de processos decisórios e de legitimação
das decisões políticas. (PACHECO, 2023)

Para além das discussões sobre as mobilizações femininas em busca de


igualdade de gêneros, as mulheres atuam em diversos setores da sociedade civil,
inclusive relacionado a obtenção de direitos das pessoas com deficiência, é o que iremos
abordar no próximo tópico e que se relaciona com a minha pesquisa desenvolvida no
Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais.

3 - A desigualdade de gênero nas mobilizações sociais referentes à


busca por direitos das pessoas com autismo no contexto da
redemocratização brasileira.

A minha dissertação está sendo desenvolvida através do Programa de


Pós-Graduação em Políticas Sociais, sob orientação da Prof. Dra. Renata Maldonado, e
tem como objetivo principal investigar o processo de mobilização política construído
pelas associações em defesa das pessoas com autismo no contexto da chamada
redemocratização brasileira. No decorrer da década de 1980, após os 21 anos de
vigência da ditadura empresarial-militar, segmentos da sociedade civil se organizaram
em função de atuar junto à sociedade política em busca da ampliação dos direitos
sociais, tais como o acesso às políticas de saúde e educação. No caso específico dos
indivíduos com autismo, em função do tardio descobrimento do transtorno na literatura
científica internacional e do percurso de construção das políticas voltadas para o
público-alvo da educação especial no país, a atuação das organizações sociais voltadas
para reivindicar a visibilidade desses indivíduos foi estratégica durante os embates
anteriores à Constituição Federal de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde.
Portanto, diante das dificuldades na identificação no diagnóstico na literatura
científica internacional e na recente incorporação do Transtorno do Espectro Autista
(TEA) como uma síndrome distinta de patologias anteriormente conhecidas, pode-se
inferir que as políticas voltadas para este público-alvo ainda são muito recentes. No caso
do Brasil, em função da orientação hegemônica do Estado brasileiro em apoiar as
instituições privadas assistenciais ou mercantis, historicamente, ocorreu muito
tardiamente a construção de uma política pública de saúde mental voltada para as
crianças e adolescentes com TEA (OLIVEIRA et all, 2017). Portanto, pode-se afirmar
que até as primeiras décadas do século XXI, este público-alvo esteve assistido somente
pelas instituições privadas-assistenciais, como a APAE e a Pestalozzi, ou por meio de
iniciativas não-governamentais, como a que se pretende abordar nesta pesquisa.

Segundo Oliveira et all (2017), o reduzido quantitativo de instituições públicas e


de recursos para promover o atendimento dos indivíduos com TEA resultaram no
engajamento de pais e familiares em criar grupos voltados para divulgar conhecimentos
sobre o tema, inspirados nos modelos europeus e norte-americano. No Brasil, esse
processo ocorreu durante o fim da ditadura empresarial-militar, no contexto denominado
de “abertura política” (FONTES & MENDONÇA, 2004), em que houve um
reflorescimento da oposição política, associada à organização do movimento sindical e
das lutas populares.

Nesse mesmo contexto, os movimentos articulados pela sociedade civil


passaram a reivindicar ações mais efetivas por parte do Estado. Em relação às pessoas
com TEA, o ano de 1983 foi marcado pela criação da primeira associação voltada
exclusivamente para a defesa dos direitos desse público-alvo, que foi a Associação de
Amigos do Autista de São Paulo (AMA-SP).

O que pôde ser detectado como a intersecção entre a mobilização civil em defesa
das pessoas com TEA e a desigualdade de gênero corresponde ao fato de que os
familiares que compuseram essas mobilizações sociais eram majoritariamente mulheres.
Esse fato ocorre porque as mães das pessoas com autismo estão diretamente vinculadas
aos cuidados de seus filhos com deficiência. E não apenas ao cuidado doméstico mas
também aos cuidados relacionados à educação (pois, muitas vezes naquele contexto de
redemocratização esses indivíduos não eram acolhidos no sistema de educação da forma
correta), e também no quesito de tratamentos e acompanhamentos médicos. Sendo
assim, além de serem suporte para toda a família, as mulheres eram totalmente
responsabilizadas pelo desenvolvimento dos seus filhos diagnosticados com TEA, e
muitas vezes culpabilizadas pelo diagnóstico deles (LEANDRO e LOPES, 2018).

Além de toda a sobrecarga e a forte ausência da paternidade nos cuidados das


pessoas com autismo dentro do convívio familiar, muitas vezes essas mães eram
abandonadas por seus companheiros apenas pelo fato do diagnóstico de seus filhos,
aumentando muitas vezes a sobrecarga já antes estabelecida, uma vez que quando
aconteciam esses abandonos, elas ficavam desamparadas financeiramente também.

Sendo assim, os indivíduos que compunham as mobilizações sociais e que


formaram as organizações civis em defesa das pessoas com TEA, eram compostas
majoritariamente por mães de pessoas com autismo, que buscavam apoio e
reivindicação de direitos junto à sociedade política.

A pesquisa tem sido desenvolvida através de pesquisa bibliográfica e


documental, e também com entrevistas semiestruturadas com indivíduos que estavam
no momento de construção das organizações civis em prol dos direitos das pessoas com
TEA. E um último fator que reforça essa intercessão de gênero e as mobilizações sociais
desenvolvidas no contexto da redemocratização brasileira é a ausência da presença
masculina. Todas as pessoas entrevistadas são mulheres, mães das pessoas
diagnosticadas com autismo que se articulam, por volta dos anos 1980, para reivindicar
os direitos civis e sociais de seus filhos.

As mobilizações iniciadas na década de 1980, resultaram em diversos avanços


na política de inclusão e assistência das pessoas com TEA. Entre as conquistas estão o
reconhecimento pelo Estado como integrantes da perspectiva inclusiva, e também a Lei
nº 12.764/12 direcionada para esse público, intitulada Política Nacional de Proteção dos
Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
4- Conclusão

É inegável que a mobilização das mulheres resultou em diversos avanços e


acessos em relação à desigualdade de gênero. Mas tal mobilização não se fixou apenas
nesse âmbito. Quando tratamos do avanço dos direitos das pessoas diagnosticadas com
TEA demonstra um crescente avanço, e boa parte desse movimento organizado e
articulado por mulheres. Portanto, é importante destacar a necessidade da
interseccionalidade na avaliação e na implementação de políticas sociais para mulheres
para que realmente se efetivem políticas que possibilitem a diminuição das
desigualdades, mesmo entre as próprias mulheres. Através desses fatores constata-se o
quão fundamental foi a mobilização, majoritariamente de mulheres, para que
pudéssemos ter políticas sociais de diversos segmentos no Brasil.
Por isso, é necessário avançar em direção a políticas públicas integrais com
perspectiva de gênero, que sejam multidimensionais e abordem sinergicamente os nós
estruturais da desigualdade de gênero. Isto implica transversalizar a perspectiva de
gênero em todas as esferas. Para isto, é importante fomentar a corresponsabilidade
social dos cuidados, reduzir sua carga nos domicílios e avançar para sistemas que
garantam os cuidados como um direito.

O Estado, através das políticas sociais e públicas, pode acelerar ou diminuir a


desigualdade de gênero, bem como a pressão dos movimentos sociais organizados
tenciona esse mesmo Estado a construir alternativas e políticas públicas para a melhoria
de vida de diversos segmentos da população. Necessita-se que o Estado, como
regulador e coordenador do desenvolvimento, oriente suas políticas para questões de
gênero como a maior integração das mulheres nas esferas econômica, jurídica, de saúde,
educação e fomento das organizações da sociedade civil.
5 - Referências Bibliográficas

CEPAL/UNESCO. Panorama Social da América Latina e do Caribe 2022. A


transformação da educação como base do desenvolvimento sustentável. 2022.

FONTES, Virgínia. “A sociedade civil no Brasil contemporâneo: lutas sociais e luta


teórica na década de 1980”. In: LIMA, Júlio Cesar França (org.). Fundamentos da
educação escolar no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Editoria Fiocruz/EPSJV,
2006.

LEANDRO, J.A., LOPES, B. A. Cartas de mães e pais de autistas ao Jornal do Brasil na


década de 1980. Interface (Botucatu). 2018.

LISBOA, Teresa Kleba. O empoderamento como estratégia de inclusão das mulheres


nas políticas sociais. Empoderamento, inclusão social, políticas de gênero. UFSC. 2008.

MEDEIROS, Marcelo. A importância de se conhecer melhor as famílias para a


elaboração de políticas sociais na América Latina. Planejamento e Políticas Públicas nº
22. 2000.

OLIVEIRA, B.D.C. Análise das políticas públicas brasileiras para o autismo: entre a
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Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2015.

Pacheco EM, Dias MTG. A luta das mulheres por políticas sociais: avanços e
retrocessos. Serv Soc Soc [Internet]. 2023

OXFAM Brasil. Desigualdade do Brasil. Folha de São Paulo. 2023


Pacheco, E. M., & Dias, M. T. G.. (2023). A luta das mulheres por políticas sociais:
avanços e retrocessos. Serviço Social & Sociedade, 146(1), 263–283.

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