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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

UNEAD
CURSO: Especialização em Gênero, Raça/Etnia e Sexualidade na
Formação de Educadoras/es
Disciplina Performances, Corpos e Sexualidades Dissidentes
Estudantes Luiza Dias, Mirella Novaes, Mônica Tamiris, Pablo Mateus dos Santos
Jacinto, Sílvia Ysnair

REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO E OS USOS DA IDEOLOGIA


DE GÊNERO

O cenário de retrocesso político que ocorreu na última década no Brasil atingiu


diversas esferas sociais, dentre eles a educação. Nesse campo, ganhou fôlego o ideário
da Escola Sem Partido, que buscou intervir em currículo e práticas docentes visando a
garantir uma formação ideologicamente neutra (como se isso fosse possível em
qualquer contexto social). No entanto, seu exercício demonstrou um conjunto de ações
repressivas frente às escolas, estudantes e professores, bem como a implantação de uma
ideologia de extrema direita, demonizando temáticas estruturantes à condição humana e
que carregam, levando em conta o histórico brasileiro, uma dimensão estruturante na
subjetividade, frequentemente atreladas a violências e discriminações a públicos vistos
como minoritários: negros e negras, pessoas LGBTQIAP+, pessoas com deficiência,
entre outros. Dentre essas temáticas, aquelas referentes às sexualidades foram alvo
especial de condenação.
Na lógica dos defensores do Escola Sem Partido e pessoas com raciocínio afim,
as identidades de gênero e a orientação sexual seriam, portanto, não expressões normais
da sexualidade humana, mas sim fruto de uma agenda política. Em tom alarmista, as
escolas estariam ensinando às crianças realidades que deturpariam a noção binária de
gênero e a “naturalidade” da heterossexualidade defendida pelas posições conservadoras
(muitas vezes alinhadas a segmentos religiosos tradicionais).
Para tanto, professoras e professores estariam expondo essas crianças a situações
impróprias para sua idade, incluindo atos exposição sexual, supostas violências a quem
funcionasse na lógica cisheteronormativa e até perdas de direitos para pessoas cis e
heterossexuais. Tais discursos se pautavam essencialmente em informações falsas,
porém com alto apelo social, especialmente nas camadas que carregam ideários extrema
direita, bem como em alegações deturpadas e patologizadas sobre as orientações sexuais
e identidades de gênero.
A esses discursos, atribuiu-se o nome “ideologia de gênero”, que não é um
conceito reconhecido ou usado por especialistas em gênero ou por organizações de
direitos humanos. Esse pseudoconceito foi criado por grupos conservadores para
desacreditar e difamar as lutas pelos direitos LGBTQIAP+ e a igualdade de gênero,
principalmente no contexto educacional.
A ideia de que a identidade de gênero e a orientação sexual são escolhas ou
produtos de uma agenda política é falsa e preconceituosa. A identidade de gênero é uma
parte fundamental da identidade de cada pessoa e não é algo que possa ser escolhido ou
alterado. A orientação sexual também não é uma escolha e deve ser respeitada como
uma expressão natural da sexualidade humana.
A ideia de que há uma "ideologia de gênero" também é falsa porque não existe
uma agenda ou ideologia única em torno da igualdade de gênero e da diversidade
sexual. Pelo contrário, existem diversas teorias e abordagens dentro do campo de
estudos de gênero e sexualidade, todas elas trabalhando para desafiar estereótipos e
preconceitos e promover a igualdade e a justiça para todas as pessoas,
independentemente de sua identidade de gênero ou orientação sexual.
Abordar as temáticas referentes à sexualidade (sexo, identidade gênero,
orientação sexual, etc.) se firma como um compromisso na educação brasileira, com
base na constatação de que a educação é um direito humano e um dos seus fundamentos
envolve a eliminação das situações de violência e discriminação. Reis e Eggert (2017)
lembram que o Estatuto da Juventude, Lei Nº 12.852, de 5 de agosto de 2013, salienta a
importância de alinhar as práticas formativas dos profissionais de saúde e educação com
temáticas que efetivem o direito do jovem à diversidade e à igualdade. Dessa forma, o
papel do professor inclui, necessariamente, abordar esse tema a partir de uma
perspectiva sempre dialógica, respeitosa, comprometida com a ciência e livre de
discriminação.
Portanto, o termo "ideologia de gênero" é enganoso e prejudicial, e deve ser
rejeitado em favor do respeito pela diversidade humana e da luta pela igualdade de
direitos para todas as pessoas.
Ideologia de gênero e política como mecanismo de exclusão na educação

Tratar sobre gênero, os lugares que o gênero pode alcançar vem a cada dia
ganhando espaço nas discussões em vários âmbitos sobretudo na política nacional,
estadual e municipal, pois, foi compreendido que a sociedade produz conceitos, corpos,
normas, símbolos, preconceitos, constroem um modelo a ser seguido, ignorando “como
uma construção sócio histórica produzida sobre as características biológicas” (LOURO
1997), foram e são fundamentais para manifestações de exclusão, marginalização a
determinados grupos da sociedade, corpos que fogem ao que é regra binária biológica.
Diante do escrutínio experienciado por pessoas LGBTQIAP+, referente a
subjetivação das suas vidas em sociedade em torno da pauta biologização dos corpos
juntamente com concepções religiosas, através dos códigos morais, a repulsão a esses
corpos, compreende-se e necessidade de movimentar-se por direitos civis e sociais.
A noção de gênero ganha novos contornos referentes ao seu conceito, no que
tange à promoção da pluralidade e garantias de igualdade, sobretudo no ambiente
escolar e do trabalho. A luta dos movimentos ganha concretude e a partir daí grupos
extremistas no intuito de desmoralizar, tratam a pauta de maneira pejorativa como
“ideologia de gênero”,

aquilo que é entendido como identidade de gênero é uma performance


apoiada em sanções sociais e tabus. E essa condição de performance
guarda a possibilidade de contestar seu status reificado. (BUTLER,
2019, p. 214)

Gênero é um fenômeno de longa durabilidade, pois muda de maneira concreta


as relações tradicionais estabelecidas com a sociedade. Não por acaso o movimento de
gênero se relaciona com o movimento de mulheres. Diante das narrativas de
“moralidade e bons costumes” que pairam no imaginário da sociedade, disseminadas
por grupos extremados, os dois movimentos convergem em sua luta para evitar a perda
de direitos sociais, educacionais e constitucionais conquistados. Ambos tentam
esclarecer as intenções do que se pode chamar de um pânico moral, sobre o qual se pode
observar:

Os elementos de uma simplificada e depauperada "teoria de gênero"


devem ser distorcidos, caricaturados e revestidos de tons grotescos
para serem, enfim, denunciados e repelidos. Em vez do confronto
acadêmico ou da busca de convencimento de seus adversários, esses
cruzados demonstram-se sequiosos em alcançar, aliciar e conquistar
adesão de outro público-alvo: gestores públicos, parlamentares,
juristas, jornalistas, dirigentes escolares, eleitores/as (Garbagnoli,
2015). (JUNQUEIRA, 2018, p. 462)

E a imprensa pois,

Entende-se que os meios de comunicação influenciam esta


participação – principalmente a televisão e as mídias digitais, que de
certa forma, produzem e disseminam “verdades”. Nesse sentido,
discussões sobre as “anormalidades” se fazem presentes nos diversos
produtos midiáticos (CABRAL, 2016, p.32)

Assim, essa aliança entre setores distintos a “ideologia de gênero” ganha força
com mecanismos legitimados pela sociedade, interferindo especialmente no ambiente
escolar formal, por ser um espaço de formação que tem o papel fundamental de separar
e privilegiar corpos, histórias, culturas, raças, gêneros e sexualidades e que exige
regramentos. Os currículos escolares são um dos mecanismos de controle para os
antigêneros, pois, através deles, são reforçadas as dinâmicas de retroalimentações das
padronizações construídas pela sociedade. Como afirma Miranda:

Como espaço formativo, a escola é uma instituição que tem um papel


fundamental no silenciamento ou na afirmação das questões que se
referem às relações entre os gêneros e a percepção das crianças quanto
as diferenças no campo da sexualidade. Assim, a escola legitima e
privilegia algumas identidades sexuais, raciais/étnicas e marginaliza
outras. Como a escola é uma instituição que contribui no processo de
construção dos sujeitos que dela fazem parte, imagina-se que este
processo de construção seja mais incisivo em crianças que estão na
primeira infância (MIRANDA, 2014, p. 186).

O que Miranda nos alerta é que, quando ocorre na tenra infância o processo de
internalização, pode ser ainda mais incisivo, visto que o processo de escolarização da
criança carrega a formação de si como sujeito/a e a sociabilização. Este modelo escolar
literalmente extermina pessoas fora da norma heterossexual, seja retirando dos
processos escolares ou retirando-lhes a própria vida.

Ideologias de gênero e o impacto nos feminismos

As implicações sobre a discussão acerca da “ideologia de gênero” refletem em


diversos campos da sociedade (citados anteriormente), entre eles a luta das mulheres em
busca de liberdade e igualdade de direitos em que historicamente foi alvo de
perseguição de toda uma sociedade, bem como as religiões cristãs, mais
especificamente pela Igreja Católica e o Protestantismo.
A utilização do conceito de gênero, pela ótica religiosa é usado para definir as
diferenças socioculturais através da binariedade do feminino e do masculino, elegendo
assim falácias preconceituosas e crimes contra pessoas que não se encaixam nesses
padrões, como por exemplo, os discursos da ex-ministra Damares Alves, que estava à
frente da pasta do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, durante o
desgoverno do ex-presidente Jair Bolsonaro, no qual a referida ministra exaltava a
distinção de cor de menino e cor de menina, azul e rosa respectivamente. Discursos
como estes, vindos que quem basicamente estaria para defender a vida, conforme os
Direitos Humanos, legitimam e potencializam crimes como o feminicídio e a homofobia
no qual segundo o Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada -
IPEA no ano de 2020, foram registrados 1350 casos de feminicídio no Brasil.
A doutrina da Igreja Católica é carregada de posições negativas sobre a
“ideologia de gênero” nas quais associam as discussões de gênero à destruição do
modelo tradicional de família, a união matrimonial de pessoas do mesmo sexo, como
também se opõe ao direito reprodutivo das mulheres, uma das várias bandeiras de luta
dos Movimentos Feministas que vem sendo massacrado e interpretado de maneira
equivocada para a toda a sociedade, influenciados diretamente pelas religiões cristãs,
mais especificamente a Igreja Católica.

De facto, a conotação negativa subjacente ao termo “ideologia de


gênero" foi inventada pela Igreja Católica como uma forma de
associar “questões críticas”, como “a ordem de gênero, família e
sexualidade”. Constitui igualmente uma forma de se opor tanto à
emergência do debate sobre os direitos de reprodução da mulheres, o
aborto, a homossexualidade, o casamento entre pessoas do mesmo
sexo, como a programas de educação que incluem questões
relacionandas com o gênero.” (GARRAIO; TOLDY, 2020, p.134)

Discursos como estes tentam deslegitimar a luta por direitos, a liberdade e a


igualdade das diversas vertentes do Movimento Feminista nas quais são atacadas e
condenadas dentro e fora da Instituição Católica, colocando as mulheres no lugar de
submissão e subalternidade atreladas a prerrogativa do sexo frágil.
Perspectivas atuais das ciências em torno da ideologia de gênero

É consenso entre as análises contemporâneas que a categoria de discurso


intitulada “ideologia de gênero” compõe um conjunto de mecanismos de poder e
exclusão social. Visto desta forma, é preciso dimensionar os elementos que reforçam
tais mecanismos.
A história da humanidade se construiu e se constrói com base nas relações de
poder. Culturalmente, as relações de poder produziram polarizações, políticas
sobretudo, mas, também econômicas e sociais. A sociedade contemporânea, delineada
na industrialização capitalista, teve sua capacidade de polarização potencializada pelo
contexto da Guerra Fria. Neste, os movimentos sociais ganharam novo fôlego como
também um novo olhar das ciências sociais.
Contudo, o tratamento sistemático das ciências, principalmente a sociologia, não
garante por si só, a eliminação das visões estereotipadas. É preciso considerar, conforme
salienta Judith Butler, que os agentes sociais formam uma realidade por meio do
discurso. No momento em que determinados grupos colocam sua vivência em torno da
sexualidade como uma possibilidade de contestação social, outros tantos utilizam a
ideologia de gênero como garantia de manutenção das separações necessárias para a
garantia do modelo tradicional que lhes beneficia.
Compreender os usos do termo e da ideia de gênero é fundamental para que se
possa avançar no enfrentamento das exclusões advindas da exploração verificada nas
últimas décadas. Dar luz à história política fundamentada no terreno do gênero, é
imprescindível para que se possa desconstruir os estereótipos afirmados com sucesso até
o momento. Entre as desconstruções necessárias, destacam-se: a diferenciação entre
sexualidade e gênero; o reforço de que a moral religiosa não pode voltar a ocupar o
espaço político; e, finalmente, a reestruturação da noção de educação sexual nos
ambientes sociais.
Quanto ao uso do termo, Foucault há muito já advertia sobre a lógica da censura
baseada numa estranha intensificação do discurso. A lógica repressiva, utiliza, entre
outras estratagemas, da proliferação disfarçada de interação.

Isso seria próprio da repressão e é o que distingue das interdições


mantidas pela simples Lei Penal: a repressão funciona, de certo, como
condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao
silêncio, afirmação da inexistência e, consequentemente, constatação
de que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para
saber. Assim mancharia, com sua lógica capenga, a hipocrisia de
nossas sociedades burguesas. (FOUCAULT, 1981, p. 100)

Não se trata de negar a existência de discursos repressivos, mas, de observar que


eles se apresentam muitas vezes de forma obtusa.

Algumas considerações...

Após todas as leituras, diálogos e estudos relacionados a Ideologia de gênero,


percebemos o impacto negativo da gestão política nos últimos 8 anos. O quanto
deixamos de avançar em torno da política de inclusão da população LTBTQIAP+ e o
quanto a escola tem um poder para combater políticas que inviabilizam a condição
humana de identificação de gênero e sexualidade, embora estejamos vendo o oposto.
O lugar que poderia desconstruir a condição binária biológica que nos mostra
com seres normatizados e condicionados a heteronormatividade, tem sido utilizado
como forma de demonizar qualquer outra expressão de gênero e sexualidade. A
“ideologia de gênero” boicota a diversidade humana e a busca pelos direitos e a
liberdade que precisa ser respeitada.
Sabe-se que é uma luta constante, assim como o é a luta das mulheres que
buscam os seus direitos e reparos históricos. A política e a religião tiveram e têm um
papel de destaque para o agravamento do preconceito, da segregação e da exclusão das
populações LTBTQIAP+, contudo, podem também ser o lugar que agrega e respeita os
diferentes contextos da existência humana.

Referências

CABRAL, Juliana. Ideologia de gênero uma discussão político-social. Diversidade e


Educação, v.4, n.7, p. 31-34, jan./jun. 2016.

FOUCALT, Michel. Nós Vitorianos: a hipótese de repressiva. In: História da


sexualidade I - a vontade do saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

GARRAIO, Júlia; TOLDY, Teresa. “Ideologia de Género”: origem e disseminação de


um discurso antifeminista. Mandrágora, v.26, n.1, p. 129-155, 2020. Disponível em
https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/MA/article/download/
10283/7272. Acesso em 10 abr. 2023

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência. Brasília, DF,


2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/52. Acesso
em 10 abr. 2023.
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A invenção da “ideologia de gênero”: a emergência de
um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária
antigênero. Ver psicol. polít. Vol. 18 no.43 São Paulo set./dez.2018

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis: Vozes, 1997.

MIRANDA, Amanaiara Conceição de Santana de. Gênero/Sexualidade/Diversidade


Sexual no Âmbito da Educação Infantil – UFBA. Cronos: R. Pós-Grad. Ci. Soc.,
UFRN, Natal, v. 15, n. 2, p.185-200 jul./dez. 2014, ISSN 1518-0689.

REIS, Toni ; EGGERT, Edla. Ideologia de Gênero: Uma Falácia Construída Sobre Os
Planos De Educação Brasileiros. Educação & Sociedade, v. 38, n. 138, p. 9–26, 2017.
Disponível em: <https://www.scielo.br/j/es/a/htcmPttvFjg4sb8rYT8CzPD/abstract/?
lang=pt>. Acesso em: 26 mar. 2023.

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