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MARIA FÁTIMA OLIVIER SUDBRACK

MARIA INÊS GANDOLFO CONCEIÇÃO


RUBENS ADORNO
ORGANIZADORES

COMPARTILHANDO SABERES E CONSTRUINDO FAZERES


VOL. 2

DROGAS E TRANSIÇÃO DE
PARADIGMAS

BRASÍLIA

2018

TECHNOPOLITIK

ISBN 978-85-92918-19-4
Technopolitik Editora - Conselho Editorial
Ana Lúcia Galinkin - Universidade de Brasília
Ana Raquel Rosa Torres - Universidade Federal da Paraíba
Antonio Nery Filho - Faculdade de Medicina/Universidade Federal da Bahia
Claudiene Santos - Universidade Federal de Sergipe
Eroy Aparecida da Silva - Afip/Universidade Federal de São Paulo
Marco Antônio Sperb Leite - Universidade Federal de Goiás
Maria Alves Toledo Burns - Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto
Maria Fátima Olivier Sudbrack – Universidade de Brasília
Maria Inês Gandolfo Conceição – Universidade de Brasília
Maria das Graças Torres da Paz - Universidade de Brasília
Raquel Barros - ONG Lua Nova
Telmo Ronzani – Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________________________________
Revisão final: Maurício Galinkin/Technopolitik
Capa: Paulo Roberto Pereira Pinto/Ars Ventura Imagem & Comunicação
Projeto gráfico e diagramação: Maurício Galinkin/Technopolitik

Ficha catalográfica (catalogação-na-publicação) Iza Antunes Araújo – CRB1/079


__________________________________________________________________________
D784 Drogas e transição de paradigmas: compartilhando saberes e construindo
! ! ! fazeres ./ organização Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês
Gandolfo Conceição, Rubens Adorno.--Brasília, DF : Technopolitik, 2018.
567 p: il.

eBook (PDF)
Vários autores e texto em português e espanhol.
ISBN: 978-85-92918-19-4

1.Drogas, uso e prevenção. 2. Adolescente em situação de rua. 4.


Práticas sociais. 5. Terapia de família. 6. Formação profissional, educadores. 5.
Direitos Humanos. 6. Maternidade e drogas. 7. Toxicomania. 8. Clínicas de
dependência. I. Maria Fátima Olivier Sudbrack (Org.) II. Conceição, Maria Inês
Gandolfo (Org.). III. Adorno, Rubens (Org.).

CDU 178.1
615,81
_________________________________________________________________________________________________
Editor: Maurício Galinkin/Technopolitik (MEI) CNPJ 25.211.009/0001-72
Tel: (61) 98407-8262. Correio eletrônico: editor@technopolitik.com
Sítios eletrônicos na internet: http://www.technopolitik.com.br e http://www.technopolitik.com

© Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas - Abramd, autoras e autores

O V Congresso da Abramd e esta publicação contaram com o apoio financeiro da FAP-DF


Diretorias da Abramd
Gestão 2015/17 Gestão 2017/19

Presidente Presidente
Rubens Adorno Luciane Marques Raupp
Vice-Presidente Vice-Presidente
Edward MacRae Rubens Adorno
Primeiro Secretário  Primeira Secretária
Murilo Battisti Sandra Regina Fergutz
Segundo Secretário
Andrea Galassi
Primeira Tesoureira Primeiro Tesoureiro
Selma Lima da Silva Jardel Fischer Loeck
Segunda Tesoureira
Segunda Tesoureira
Selma Lima da Silva
Maria Angélica de Castro
Comis

Conselho Fiscal
Conselho Fiscal
Danielle de Carvalho
Regina de Paula Medeiros
Vallim Eduardo Viana
Dartiu Xavier da Silveira Filho
Vargas Edward MacRae
Celi Cavallari
Apresentação

Nem tudo o que é torto é errado...


veja as pernas do Garrincha e as árvores do cerrado!
Nicolas Behr

Com esta instigante metáfora, construída para o V Congresso


Internacional da Abramd, Drogas e transição de paradigmas:
compartilhando saberes e reconstruindo fazeres, realizado em
Brasília, de 1 a 3 de dezembro de 2015, no espaço de eventos do Estádio
Nacional Mané Garrincha: apresentamos esta obra que resulta de
construções elaboradas a partir do tema lançado no evento magno deste
coletivo profissional.
Compartilhando saberes e reconstruindo fazeres traduz
nossa leitura dialética entre teoria e prática na construção do
conhecimento, eixo fundador da transição paradigmática na
epistemologia científica.
A edição desta obra faz parte da comemoração aos dez anos da
Abramd (2005-2015), lançada em nosso V Congresso Internacional que
abrigou em torno de 800 pessoas em busca de compartilhar seus saberes e
seus fazeres sobre drogas.

v
Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

Nem tudo o que é torto é errado...


Uma importante máxima dos novos paradigmas é a função do
contexto na atribuição de significados. O olhar deixa de ser apenas para o
indivíduo e se volta para suas relações e inserção no social. A informação
adquire sentido a partir do contexto onde ela é gerada e decodificada...
Por isso, como nos ensina o professor Saul Fuks, um dos nossos convidados
estrangeiros, no trabalho comunitário, nos tornamos verdadeiros "artesãos
de contextos” e a questão que se coloca é: - Como transformar crises em contextos
criativos para novas possibilidades?

Antiproibicionismo e postura crítica ao paradigma da guerra


às drogas: pioneirismo dos abramdianos para a transição
de paradigmas
Merece aqui uma referência à histórica contribuição de muitos
pesquisadores e profissionais abramdianos, fundadores e colaboradores
que sustentam esta instituição, enquanto nomes que são responsáveis pela
possibilidade de pensarmos, hoje, a questão das drogas e das dependências
numa transição de paradigma. Referimo-nos ao contexto da produção
científica brasileira que acumulamos há três décadas, lançando os novos
paradigmas e investindo para sua consolidação. Como parte desta
comunidade de vanguarda, nos cabe resgatar esta história, pois nem
sempre ela tem a visibilidade que merece e, infelizmente, não sabemos
fazer esta transmissão para as novas gerações.
A transmissão do que vivemos no passado é um dever dos antigos e
um direito das novas gerações. Portanto, é necessário resgatar nossa
história para compreendermos o processo de avanço da política sobre
drogas nesta transição de paradigmas...
ABRAMD DEZ ANOS significa muito mais do que uma década pela
mudança de paradigmas. Por esta razão, exatamente, é que a Abramd foi
criada. Todos os que constituímos esta associação estávamos insatisfeitos.
Os grupos existentes não nos permitiam fazer esta transição, fomos
protagonistas do que se pode entender como sendo as construções

vi
Apresentação

científicas e de práticas com usuários de drogas nos diferentes contextos


em prevenção, tratamento e redução de danos.
Além dos espaços da academia, onde a maioria de nós nos situamos,
aos poucos ocupamos os espaços da política pública onde encontramos,
citando Edgar Morin, as “rachaduras” do sistema que nos apontam para
as possibilidades de um novo discurso que, por sua vez, geraria novas
práticas, convictos de que os novos saberes e os novos fazeres vêm sempre
juntos. Na verdade, a epistemologia dos novos paradigmas da ciência nos
permite superar a clássica dicotomia entre teoria e prática, nos
conduzindo para o reconhecimento do saber da experiência. Assim, não
se trata de aplicar a teoria na prática, mas de refletir sobre a prática como
fonte para a produção teórica.
Como somos envolvidos tanto com a teoria como com a prática, em
especial atuando na clínica das dependências químicas, este processo foi
natural e inevitável: - Como é possível para quem trata de pessoas em sofrimento pelo
uso problemáticos de drogas, suportar o paradigma da repressão e da criminalização ?
Basta nos conectarmos com esta clientela para aprender dela e com
ela mesmo sobre a complexidade das situações vividas. Situações
complexas exigem soluções complexas e estas inauguram a transição de
paradigmas.
As raízes do que agora nomeamos antiproibicionaismo, e que não se
reduz à dimensão do jurídico – na verdade trata-se de um novo paradigma
fundado no que buscamos estes anos todos: fazer ciência com diversidade
e com humanidade.
Os abramdianos são protagonistas deste processo de avanço das
políticas sobre drogas no Brasil, uma conquista que viemos trilhando há
mais de três décadas. Sem modéstia, reafirmamos o que se disse na
abertura: somos uma comunidade crítica colaborativa e, hoje, embora não
tenhamos necessariamente poder político direto, temos uma voz que se faz
respeitar em qualquer uma das políticas (se é que ainda temos alguma...).
As temáticas que definem os princípios da Abramd foram construções
de autoria de pesquisadores brasileiros e são estruturantes desta transição

vii
Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

de paradigmas em sua história. Como reconhecimento aos pioneiros,


relacionamos a composição das diretorias da Abramd, em sua primeira
década (2005-2015), e das gestões que se seguiram até o momento da
presente publicação:
Primeira diretoria – gestão 2005-2007 – Presidente: Dartiu Xavier da
Silveira Filho; Vice-Presidente: Marcelo Santos Cruz; Primeira Secretária: Ana
Regina Noto; Segunda Secretária: Roseli Boerngen de Lacerda; Primeira
Tesoureira: Silvia Brasiliano; Segunda Tesoureira: Monica Gorgulho; Conselho
Fiscal: M. Lurdes Zemel, Edward Mac Rae, Helena M. Tannhauser Barros.
Segunda diretoria – gestão 2007-2009 – Presidente: Dartiu Xavier da Silveira
Filho; Vice-Presidente: Marcelo Santos Cruz; Primeira Secretária: Helena Maria
Becker Albertani; Segunda Secretária: Ana Regina Noto; Primeira Tesoureira:
Silvia Brasiliano; Segundo Tesoureiro: Sérgio Nicastri; Conselho Fiscal: Monica
Gorgulho, Edward Mac Rae, Helena Tannhauser Barros.
Terceira diretoria – gestão 2009-2010 – Presidente: Evaldo Melo Oliveira;
Vice-Presidente: Marcelo Sodelli; Primeira Secretária: Helena Maria Tannhauser
Barros; Segundo Secretário: Marco Manso Cerqueira Silva; Primeiro Tesoureiro:
George Hamilton Gusmão Soares; Segunda Tesoureira: Regina de Paula
Medeiros; Conselho Fiscal: Dartiu Xavier da Silveira Filho, Antônio Nery Filho,
Elisaldo Luiz de Araújo Carlini.
Terceira diretoria – gestão 2010-2011 – Presidente: Marcelo Sodelli;
Vice-Presidente: Celi Denise Cavallari; Primeira Secretária: Helena Maria
Tannhauser Barros; Segundo Secretário: Marco Manso Cerqueira Silva; Primeira
Tesoureira: Helena Maria Becker Albertani; Segunda Tesoureira: Regina de Paula
Medeiros; Conselho Fiscal: Dartiu Xavier da Silveira Filho, Antônio Nery Filho,
Elisaldo Luiz de Araújo Carlini.
Quarta diretoria – gestão 2011-2013 – Presidente: Marcelo Sodelli;
Vice-Presidente: Celi Denise Cavallari; Primeira Secretária: Helena Maria
Tannhauser Barros; Segundo Secretário: Osvaldo Francisco Ribas Fernandez;
Primeira Tesoureira: Helena Maria Becker Albertani; Segundo Tesoureiro:Telmo
Mota Ronzani; Conselho Fiscal: Dartiu Xavier da Silveira Filho, Regina de Paula
Medeiros, Elisaldo Luiz de Araújo Carlini.
Quinta diretoria – gestão 2013-2015 – Presidente: Maria Fátima Olivier
Sudbrack; Vice-Presidente: Marcelo Santos Cruz; Primeira Secretária: Miriam
Gracie Plena; Segunda Secretária: Rita Cavalcante; Primeira Tesoureira: Maria
Inês Gandolfo Conceição; Segunda Tesoureira: Maria Aparecida Gussi; Conselho

viii
Apresentação

Fiscal: Rossana Rameh, Maria Etelvina Reis de Toledo Barros, Luiz Fernando
Severo Marques.
Sexta diretoria – gestão 2016/2017 – Presidente:  Rubens de Camargo
Ferreira Adorno; Vice-Presidente: Edward MacRae; Primeiro Secretário:  Murilo
Battisti; Segunda Secretária: Andrea Galassi; Primeira Tesoureira: Selma Lima da
Silva; Segunda Tesoureira: Maria Angélica de Castro Comis; Conselho
Fiscal: Regina Medeiros; Dartiu Xavier e Celi Cavallari
Atual diretoria – gestão 2017/2019 – Presidente: Luciane Marques Raupp;
Vice-Presidente: Rubens de Camargo Ferreira Adorno; Primeira Secretária:
Sandra Regina Fergutz; Primeiro Tesoureiro: Jardel Fischer Loeck; Segunda
Tesoureira:  Selma Lima da Silva; Conselho Fiscal: Danielle de Carvalho Vallim,
Eduardo Viana Vargas e Edward MacRae.

A criação da Abramd abriu, pois, um novo espaço de discussão


científica, aperfeiçoamento profissional, divulgação do saber e, acima de
tudo, de participação social e política com posicionamentos corajosos e
ações inovadoras. Foi a concretização da aspiração de muitas pessoas:
participar de uma associação que encarasse as questões das drogas e
dependências não apenas com fundamento em práticas e teorias
atualizadas, mas com um olhar aberto, abrangente e humano.
O caráter multidisciplinar no Estudos sobre Drogas, enquanto uma
das marcas da Abramd, norteia o pensamento e as ações de todos os que
dela participam. A integração e complementariedade de saberes como
Farmacologia, Educação, Assistência, Saúde, Política, História, Direito,
Psicologia, Antropologia, Pesquisa e tantas outras áreas do conhecimento
cria novas perspectivas e muda paradigmas. No decorrer de uma década,
a Abramd atraiu mais de quatro centenas de associados, de todas as
regiões do país.
Os trabalhos aqui apresentados procuram explicitar a construção
desse paradigma de compreensão de um campo interdisciplinar e de
políticas públicas a partir de cinco partes. Na Parte 1 – Transição de
paradigmas em álcool e drogas, no cenário das práticas sociais
– trata dos aspectos fundantes tanto de uma política compreensiva da
relação dos usos e dos cuidados em relação às drogas como uma questão

ix
Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

das sociedades contemporâneas, a partir de perspectivas como a psicologia


social e a antropologia, como também denunciam como a política de
drogas é tomada como uma ação de guerra, repressão e exclusão às
juventudes pobres, pretas e periféricas, mostrando o desempenho de um
estado e, de certa forma, de atores de uma sociedade pós-colonial, que
utilizam a tecnologia dos “capitães do mato” do século XVIII para tratar
de cidadãos do século XXI, e nesse caso, apontamos aqui como que esse
tipo de ação está sendo reforçada hoje em 2018, uma perspectiva que
estava presente, porém fortemente denunciada na vigência de governos
democráticos que tínhamos até então, se apresenta agora como a forma
legitimada e chancelada para a indignação de todos nós.
Na Parte 2 – Transição de paradigma na clínica das

dependências – apresentamos um repertório bastante rico, diversificado
de perspectivas clínicas e terapêuticas, dando conta da presença dessa
discussão que foi fundante na construção da Abramd, como uma
associação interdisciplinar que teve origem na postura crítica e
contemporânea de pesquisadores e profissionais do campo do cuidado
com os usos, e de usuários de drogas que se tornam problemáticos, e que
na verdade explicitam um campo muito mais amplo de compreensão das
pessoas e seus contextos de usos que a visão pura e simples corporificada
no senso comum do termo “dependência”. Em nosso país a dependência
ainda é compreendida de uma maneira mono causal, determinista e
autoritária, tanto à revelia da própria ciência como à revelia de práticas
intersubjetivas e fundadas no direito das pessoas. Os artigos também
dialogam tanto com perspectivas que historicamente se colocaram nesse
campo amplo de exercício da clínica e da reflexão sobre os usos como com
a perspectiva de cuidado com as ações humanas, e também pontuam essa
dimensão em situações do contexto brasileiro.
Na Parte 3 – Transição de paradigma na prevenção – os textos
discorrem sobre experiências concretas no âmbito do cuidado com as
pessoas, chamando a atenção para aspectos pedagógicos e preventivos,
destacando o campo da educação como um instrumento de ação e
inclusão mobilizadora da capacidade de reflexão sobre as práticas e as

x
Apresentação

experiências, muito mais do que a imposição de valores e de


comportamentos normativos. Também nesse caso, são discutidas
perspectivas conceituais e princípios, assim como a descrição de
experiências práticas e situações locais/nacionais. Essas experiências dão
conta da necessidade de implementar ações e projetos de políticas públicas
voltadas para a horizontalidade, isto é, a discussão de situações de vida na
perspectiva da educação, como de situações contextuais e limites como o
caso dos jovens alvo de políticas repressivas e excludentes e de sua
necessidade de acolhida e, portanto, da necessidade de pedagogias de
acolhimento.
A Parte 4 – Drogas e populações em condição de

vulnerabilidades: o paradigma da diversidade – com a maior
quantidade de artigos, tem como foco um “paradigma” bastante
polêmico, o da relação das drogas com as populações excluídas e, mais
explicitamente, com as populações de rua. Polêmico, digamos, porque em
período recente da conjuntura brasileira esse tema tornou-se a discussão
e o paradigma das drogas. Isto porque perversamente tanto a mídia
como as esferas políticas passaram a focalizar essas populações, e no caso
do crack, como o paradigma das “drogas”. Em primeiro lugar, a
demonização de uma droga derivada e fabricada com os restos de uma
substância – a cocaína –, invisibilizada e largamente consumida sem
alardes nas mais amplas esferas do país. Em seguida, a estigmatização das
populações mais excluídas, com a construção do crack –
convenientemente alicerçado no paradigma do senso comum da
“dependência” e do poder da droga. Por fim, tem-se o cenário perfeito
para esconder os contextos de alta vulnerabilidade e de exclusão a que tais
populações estiveram historicamente exploradas, aniquiladas e
descartadas pelas chamadas elites da sociedade brasileira.
O que chamamos a atenção é para o aspecto complexo dessa
discussão. É necessário, ao mesmo tempo, compreender as práticas e os
processos que envolvem essas populações sem, no entanto, torná-las o foco
único e predominante das políticas públicas. Ao tratar do tema do
consumo de psicoativos deve-se ter em mente todas as práticas de uso,

xi
Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

desde os consumos não visíveis, e que envolvem todos os setores da


sociedade, até o consumo de drogas consideradas ilícitas. Tais práticas não
devem ser vistas restritamente como situações problemáticas, e sim
consideradas em suas complexidades, vistas como formas de uso do
tempo, do lazer e do consumo das felicidades e do bem-estar próprios do
mundo contemporâneo, tanto das populações excluídas quanto de todas as
“populações” da sociedade.
Os artigos apresentam uma diversidade de situações e de formas de
olhar para esse foco, e de destacar a importância dessa construção
sociopolítica em torno da demonização do crack como mais um sintoma
dos desmandos dos mercados e de poder na atual sociedade brasileira.
Finalmente a Parte 5 – Transição de paradigmas na formação

profissional – trata de um tema extremamente relevante que é a
formação de atores para empreender as mudanças de paradigma das
políticas públicas no campo do consumo problemático e da reflexão crítica
acerca dos psicoativos, tendo como perspectiva desde a formação de
pesquisadores como de quadros para a implementação de práticas e
projetos menos comprometidos com os paradigmas da não reflexão e da
violência.
Aos abramdianos autores desta obra agradecemos a chance de
compartilhar este projeto de fazer história na transição de paradigmas em
drogas e dependência;
Aos leitores, desejamos que encontrem inspiração e estímulo para
prosseguirmos avançando juntos!

Os organizadores

xii
Sumário

Apresentação v

Sobre Autoras e Autores xix

PARTE 1: Transição de paradigmas em álcool e


drogas no cenário das práticas sociais
1.1 Un “modelo” sistémico de comprensión-acción de dinámicas
sociales: tres dimensiones de las prácticas sociales
transformadoras 35

Saúl Ignacio Fuks

1.2 Un antropólogo con sus drogas: Entrevista de Oriol Romaní 67

Mónica Franch e Regina Medeiros

1.3 Violência e Juvenicídio, encarceramento: das políticas de


segurança à defesa dos direitos humanos e do direito à vida 85

Marisa Feffermann

PARTE 2: Transição de paradigma na clínica das


dependências
2.1 A clínica da drogadição no paradigma sistêmico e da
complexidade: as dependências e seus paradoxos 101

Maria Fátima Olivier Sudbrack

xiii
Sumário

2.2 O paradigma da toxicomania para além da droga: a clínica das


adições generalizadas 133

Giovana Quaglia

2.3 Toxicomania e Adições: a clínica viva de Olievenstein 145

Diva Reale, Marcelo Soares da Cruz e Fabio Carezzato

2.4 A Terapia de Família diante do uso de drogas na adolescência 153

Amanda Guedes Bueno e Isabela Machado da Silva

2.5 Dicotomias na atenção integral e no cuidado das pessoas que


usam de crack: a acessibilidade em foco 179

Rossana Carla Rameh de Albuquerque, Anna Carolina Vidal


Matos, Renata Barreto Fernandes de Almeida, Joselaine Ida
da Cruz e Solange Aparecida Nappo

2.6 Uso de maconha e adolescência 201

Maria Inês Gandolfo Conceição e


Silvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos

PARTE 3: Transição de paradigma na prevenção


3.1 A Escola como Comunidade Educativa e Protetiva: a experiência
do Prodequi/UnB na prevenção do uso abusivo de drogas 227

Maria Lizabete Pinheiro de Souza,


Maria Inês Gandolfo Conceição e
Maria Fátima Olivier Sudbrack

xiv
Sumário

3.2 Promoção da saúde e prevenção ao uso abusivo de drogas:


caminhos e possibilidades 251

Larissa Polejack, Gustavo Costa, Fabiane Braga Pereira e


Leandro Moreira dos Santos de Figueiredo

3.3 Acolhimento para adolescentes em situação de risco 273

Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira, Maria Fátima Olivier


Sudbrack e Marília Mendes Almeida

PARTE 4: Drogas e Populações em condição de


vulnerabilidades: o paradigma da diversidade
4.1 Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil
acesso/ocultas 293

Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

4.2 O “dispositivo do crack”: estratégia, saber e poder 329

Iara Flor Richwin

4.3 Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes


envolvidos com o tráfico de drogas e sua trajetória no
Sistema de Garantia de Direitos 353

Carla Dalbosco, Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira e


Olga Maria Pimentel Jacobina

xv
Sumário

4.4 Trajetórias familiares e sociais, crack e situação de rua: busca


por pertencimento 373

Rubens Mota, Maria Aparecida Penso e


Maria Eveline Cascardo Ramos
4.5 Crack e maternidade à “deriva”: sem ser filha, como ser mãe? 395

Luisa Soares, Maria Aparecida Penso e


Maria Eveline Cascardo Ramos
4.6 A polifonia da temática das drogas em um seminário regional:
Núcleo Abramd Sul: espaço para problematização e controle
social 417

Jardel Fischer Loeck e Luciane Raupp

4.7 Uso de drogas entre adolescentes em situação de rua no


município de São Paulo: uma contribuição etnográfica 431

Yone Moura

4.8 Ninguém falou sobre mim? O crack, as representações


midiáticas, o sujeito e o contexto sociocultural do uso no Rio
de Janeiro e em Nova Iorque 445
Danielle Valim

4.9 Cracolândia, Blocolândia, o outro, a imagem as emoções e o


contexto 455

Selma Lima da Silva e Rubens Adorno

4.10 O crack: das folhas ao ‘bloco‘ 465

Thiago Calil e Rubens Adorno

xvi
Sumário

PARTE 5: Transição de paradigmas na formação


profissional
5.1 Formação continuada de educadores de escolas públicas para a
prevenção do uso de drogas: construções metodológicas na
experiência do Prodequi/UnB (2004-2014) 481

Maria Fátima Olivier Sudbrack

5.2 Formação à distância em saúde: potenciais e limites do curso


Supera 501

Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni, Ana Paula Leal


Carneiro e Eliane Assunção Castro

5.3 Mestrado profissional: uma experiência construída a partir da


Política Nacional sobre Drogas do Brasil 523

Carla Dalbosco, Silvia Chwartzmann Halpern, Lisia von


Diemen e Flávio Pechansky
5.4 A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do
Maranhão: a narrativa de uma experiência 541

Fernanda Penkala, Miriam Senghi Soares e


Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque

POSFÁCIO: Drogas: porque se impõe a Transição de


Paradigmas 563

Marcelo Santos Cruz

xvii
xviii
Sobre autoras e autores

Amanda Guedes Bueno: psicóloga (UnB), mestranda em Psicologia


Clínica e Cultura (PPGPsiCC – UnB). Membro do Laboratório de
Fa m í l i a s , G r u p o s e C o m u n i d a d e s ( L a b f a m ) . E - m a i l :
amanda.guedes.bueno@gmail.com

Ana Paula Leal Carneiro: psicóloga, doutora (Programa de


Pós-Graduação em Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo
- Unifesp), pesquisadora na área de uso, abuso e dependência de
substâncias psicoativas (avaliação da efetividade do curso por Educação
à Distância Supera, coordenação de projeto de pesquisa vinculado ao
curso sobre estratégia de pós-curso). E-mail: ib.supera@gmail.com

Anna Carolina Vidal Matos: psicóloga e redutora de danos, mestre em


Psicologia (UFRN) E-mail: annacarolvidal@gmail.com

Carla Dalbosco: psicóloga e especialista em Atendimento Clínico com


ênfase em Terapia Familiar Sistêmica (UFRGS), mestre e doutora em
Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC – UnB). Ex-Diretora Técnica
da Senad/MJ, docente e coordenadora adjunta do curso de Mestrado
Profissional em Álcool e outras Drogas do Hospital de Clínicas de
Porto Alegre (HCPA/UFRGS). E-mail: cdalbosco@hcpa.edu.br

Carolina Coutinho: bióloga, mestre e doutora em Biodiversidade e


Saúde (Fundação Oswaldo Cruz), pesquisadora em Saúde Pública da
Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: carolina.coutinho@icict.fiocruz.br

xix
Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

Danielle Vallim: cientista social (UFRJ-2005), mestre em Ciência Política


(UFF-2010) doutora em Saúde Coletiva (Instituto de Medicina
Social/Uerj-2015) com estágio na Mailmam School of Public Health
(Columbia University / New York – 2014), pesquisadora sobre saúde no
contexto sociocultural, violência, estigma, miséria, redução de danos,
políticas de atenção, consumo abusivo e tráfico de drogas, encarceramento,
relações de gênero, indivíduos social e historicamente marginalizados,
especialmente em contextos urbanos em metrópoles, Prêmio Professor
Carlini, conferido pela Abramd em 2017. E-mail: dcvallim@gmail.com

Diva Reale: médica psiquiatra, psicanalista, mestre em Medicina


Preventiva/Fmup-USP, estagiária Marmottan/Paris, Coordenadora
d´O Barato no Divã, Instituto Sedes Sapientiae/São Paulo, fundadora
e coordenadora da Abramd-Clínica (gestão 2012-2014), organizadora
do livro ‘Toxicomania e Adições: a clínica viva de Olievenstein’.
E-mail: divareale@gmail.com

Eliane Assunção Castro: terapeuta ocupacional, especialista em Saúde


da Família (Faculdade Santa Marcelina), integra equipe do Centro de
Atenção Psicossocial Álcool e Drogas III (Caps-AD) do Instituto de
Atenção Básica e Avançada à Saúde (Iabas). Tutora do Projeto
Pós-Curso Supera da Unifesp/Senad com ações em educação
permanente na área da dependência química. Experiência profissional
na área da Saúde Pública, com ênfase na Atenção Primária à Saúde.
E-mail: elianecastro.to@gmail.com

Fabiane Braga Pereira: advogada (UFC – 1998), especialista em


Direito do Estado, graduanda em Psicologia na Universidade de
Brasília (UnB). Pesquisadora no Grupo de Estudos, Intervenções e
Educação em Psicologia, Cronicidades e Políticas Públicas em Saúde
(Integra). E-mail: fabianebpereira@hotmail.com

xx
Sobre autoras e autores

Fabio Carezzato: médico psiquiatra (FMUSP), membro do


Promud/USP, Psiquiatra no Cratod e Coordenador do curso "O
Barato no Divã: especificidades da clínica ampliada", Instituto Sedes
Sapientiae/São Paulo, organizador do livro “Toxicomania e Adições:
a clínica viva de Olievenstein”. E-mail: carezzatofabio@gmail.com

Fernanda Penkala: médica psiquiatra, especialista em Estratégia Saúde


da Família, especialista em Práticas Pedagógicas em Serviços de
Saúde/preceptora e supervisora Clínico-Institucional em Redes de
Atenção Psicossocial (Raps), coordenação, preceptoria e docência do
Programa de Residência Médica em Psiquiatria/São Lourenço do
Sul/RS, docente e preceptora de Residência Multiprofissional em
Saúde Mental Coletiva/ESP/São Lourenço do Sul/RS. E-mail:
fernanda.penkala@gmail.com

Flavio Pechansky: médico psiquiatra (UFRGS), mestre e doutor em


medicina Ciências Médicas (UFRGS). Professor titular do
Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal e da Pós-Graduação
em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS). Diretor do
Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas (Cpad-UFRGS), coordenador
e docente do Programa de Mestrado Profissional em Álcool e outras
Drogas (HCPA). E-mail: fpechansky@hcpa.edu.br

Francisco Inácio Bastos: médico, mestre em Saúde Coletiva e doutor


em Saúde Pública (Fundação Oswaldo Cruz), estágios de
pós-doutorado/pesquisador visitante na Alemanha, Canadá, Reino
Unido, EUA. Pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz e foi
pesquisador visitante honorário do Imperial College, Londres, Reino
Unido. E-mail: francisco.inacio.bastos@hotmail.com

xxi
Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

Giovanna Quaglia: psicóloga, psicanalista. Mestre em Psicologia


Clínica/UnB. Especialização Neurociências/USP e em Dependência
Química/Unifesp, coordenadora do Núcleo de Pesquisa em
Toxicomania de Brasília da Rede TyA Brasil do Campo Freudiano.
Associada à Delegação Goiás-Distrito Federal/Escola Brasileira de
Psicanálise. E-mail: giovanna.psicanalista@gmail.com

Gustavo Costa: graduando em Psicologia na Universidade de Brasília


(UnB). Pesquisador no Grupo de Estudos, Intervenções e Educação
em Psicologia, Cronicidades e Políticas Públicas em Saúde (Integra).
E-mail: gustavomcosta18@gmail.com

Helton Alves de Lima: psicólogo, formação em Saúde Coletiva


(Instituto de Saúde/Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo),
especialista em Saúde Mental e Dependência de Drogas (Faculdade de
Medicina/USP). mestrando (Faculdade de Medicina/USP), Atua nas
áreas de assistência, pesquisa e formação para o campo da saúde
mental, álcool e outras drogas. E-mail: lima_helton@yahoo.com.br

Iara Flor Richwin: psicóloga clínica na área de dependências químicas


(Caps-AD) e da socioeducação de adolescentes em conflito com a lei.
Doutora em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsic-UnB) e doutora em
Recherche en Psychopathologie et Psychanalyse (Université Sorbonne
Paris Cité /Paris Diderot). E-mail: iararaflor@gmail.com

Isabela Machado da Silva: psicóloga (UFRGS), mestre e doutora em


Psicologia (UFRGS), com especialização em Terapia de Família (Domus).
Professora do Departamento de Psicologia Clínica e do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de
Brasília (UnB). Membro do Laboratório de Família, Grupo e
Comunidade (Labfam) da UnB. E-mail: isabela.ms@gmail.com

xxii
Sobre autoras e autores

Jardel Fischer Loeck: cientista social (Universidade Estadual de Londrina


(UEL). Mestre e doutor em Antropologia Social (UFRGS). Vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Vale
do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista de pós-doutorado. Tem
trabalhado com os seguintes temas: Narcóticos Anônimos, Comunidades
Terapêuticas, políticas públicas de atenção em saúde para usuários de
drogas e Redução de Danos. E-mail: jardelfischer@gmail.com

Joselaine Ida da Cruz: farmacêutica-bioquímica, mestre em Ciências


da Saúde – Medicina Preventiva – Unifesp, doutoranda em Saúde
Coletiva/Unifesp. E-mail: jjosi.cruz@gmail.com

Larissa Polejack: psicóloga (UnB-1997), psicodramatista (ABP-2001),


especialista em Educação Permanente em Saúde (UFRGS-2015),
mestre em Psicologia Clínica (UnB-2001), doutora em Processos de
Desenvolvimento Humano e Saúde (UnB-2007) e estagio
Pós-Doutoral em Saúde Pública (Tulane University-2015-2016).
Professora adjunta do Instituto de Psicologia/UnB, Departamento de
Psicologia Clínica e Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Clínica e Cultura. Coordena o Integra: Grupo de Estudos,
Intervenção e Educação em Psicologia, Cronicidades e Políticas
Públicas. E-mail: larissapolejack@unb.br

Leandro Moreira dos Santos de Figueiredo: graduando em


Psicologia na Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador no Grupo
de Estudos, Intervenções e Educação em Psicologia, Cronicidades e
Políticas Públicas em Saúde (Integra) e também no Grupo de
Intervenções Precoces em Crises do Tipo Psicótica (Gipsi). E-mail:
leandromsfigueiredo@gmail.com

xxiii
Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

Lidiane Toledo: enfermeira (Faculdade Novo Milênio - 2008), mestre e


doutora em Epidemiologia - Saúde Pública (Escola Nacional de Saúde
Pública da Fundação Oswaldo Cruz). Pesquisadora no Instituto de
Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde.
Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: epilidi.toledo@gmail.com

Lisia von Diemen: médica, psiquiatra, mestre e doutora em Ciências


Médicas (UFRGS). Professora do Departamento de Psiquiatria e
Medicina Legal e da Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do
Comportamento (UFRGS). Chefe da área de Ensino/Pesquisa do
Serviço de Adição do HCPA. Membro da Comissão Coordenadora e
docente do Mestrado Profissional em Álcool e outras Drogas
(HCPA/UFRGS). E-mail: ldiemen@hcpa.edu.br

Luciane Raupp: psicóloga (UFRGS-1999), mestre em Psicologia Social e


Institucional (UFRGS-2006); doutora em Saúde Pública (Faculdade de
Saúde Pública USP- 2011; docente do Curso de Psicologia, supervisora
do Serviço Escola de Psicologia e pesquisadora no Programa de
Pós-Graduação em Memória Social e Bens Culturais da Universidade
La Salle; atual presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de
Estudos sobre Drogas (Abramd); sócia da Compondo Coletivos
Consultoria. Experiência profissional nas áreas de Psicologia Social
Comunitária e Saúde Coletiva, com desenvolvimento de pesquisas na
área de estudos sobre usos de drogas e redução de danos; juventudes;
violência e políticas públicas. E-mail: lucianemraupp@gmail.com

Luisa Soares: psicologa, terapeuta, mestre em Psicologia pela


Universidade Católica de Brasília. E-mail: luisa.villela@gmail.com

Marcelo Santos Cruz: médico, mestre e doutor em Psiquiatria,


coordenador do Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido

xxiv
Sobre autoras e autores

de Drogas – Projad – do Instituto de Psiquiatria da Universidade


Federal do Rio de Janeiro, vice-presidente da Abramd nos períodos
2005-2009 e 2015-2016. E-mail: marcelosantoscruz@ipub.ufrj.br

Marcelo Soares da Cruz: psicólogo, psicanalista, mestre e doutor


Psicologia Clínica (Instituto de Psicologia/USP), coordenador do Habitat,
coordenador dos Seminários clínicos: clínica em tempos de fim de Guerra
às Drogas/O Barato no divã, Instituto Sedes Sapientiae/São Paulo,
membro da Abramd, organizador do livro “Toxicomania e Adições: a
clínica viva de Olievenstein”. E-mail: marceloscruz@gmail.com

Maria Aparecida Penso: psicóloga, terapeuta conjugal e familiar,


psicodramatista. mestre e doutora em Psicologia Clínica e Cultura
(PPGPsiCC- UnB), Pós-doutora em Psicossociologia (UFF). Coordenadora
do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Católica de
Brasília. E-mail: mariaaparecidapenso@gmail.com

Maria Eveline Cascardo Ramos: psicóloga (UnB), mestre em


Psicologia Clínica (UnB), psicodramatista didata e supervisora,
terapeuta de famílias e casais. Fundadora e docente nos Cursos de
Especialização em Psicodrama e em Terapia de Famílias e Casais no
Interpsi – PUC/GO. Professora aposentada da Universidade Católica
de Brasília/UCB. Dedica-se ao atendimento de pessoas envolvidas em
violência contra a mulher, crianças e adolescentes e desenvolve
pesquisas nesta área. Atua nas áreas clinica social e jurídica
principalmente nas relações familiares, comunitária, exclusão social e
metodologia de intervenção. Coordenadora do Interpsi e do
Intervenire – Grupo de intervenção e Pesquisa Socioterapêutica.
Membro da Abrapahp – Associação Brasileira de Ajuda Humanitária
Psicológica. Membro do IAGP – International Association of Group
Psychoterapy, Email: evelinecascardo@yahoo.com.br

xxv
Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

Maria Fátima Olivier Sudbrack: psicóloga (UFRGS/1978), mestre


em Psicologia Clínica (PUCRS-1982), doutora em Psicologia
(Université Paris XIII-1987), especialista em Terapia familiar (Cefa-
Centre d’Études de la Famille- Paris 1986), pós-doutora em
Psicossociologia (Université Paris VII-1999), professora titular do
Departamento de Psicologia Clínica/ Instituto de Psicologia/ UnB
(1988-2014), fundadora e coordenadora do Prodequi – Programa de
Estudos e Atenção ás Dependências Químicas/PCL/IP/UnB
(1991-2014), coordenadora do Curso de Prevenção do Uso de Drogas
para Educadores de Escolas Públicas/Senad/MJ e SEB/MEC
(2004-2014), presidente da Abramd (2013-2015) e do V Congresso
Internacional da Abramd (2015), pesquisadora sobre drogadição de
adolescentes, socioeducação, intervenções sistêmicas com famílias,
instituições e comunidades em contextos de pobreza e
vulnerabilidades. Psicóloga clínica e terapeuta de famílias, casais e
adolescentes. E-mail mfosudbrack@gmail.com

Maria Inês Gandolfo Conceição: psicóloga, mestre e doutora em


Psicologia (UnB), professora visitante na University of Toronto (2012),
professora associada do Departamento de Psicologia
Clínica/PCL/IP/UnB, coordenadora do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia Clínica e Cultura- PPGPsiCC/UnB. Coordenadora do
Programa de Estudos e Atenção às Dependências Químicas –
Prodequi/PCL/IP/UnB. E-mail: inesgandolfo@gmail.com

Maria Lizabete Pinheiro de Souza: psicóloga, mestre em Educação


pela Universidade Católica de Brasília, mestre e doutora em Psicologia
Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília. Pesquisadora e
docente nas áreas de Psicologia da Educação e Psicologia do
Desenvolvimento Humano. Email: marializabetedesouza@gmail.com.

xxvi
Sobre autoras e autores

Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni: biomédica, mestre,


doutora e professora Livre-Docente pela Escola Paulista de Medicina
da Unifesp, pró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa, chefe do
Departamento de Psicobiologia e Coordenadora do Programa de
Pós-Graduação em Psicobiologia (Unifesp), Coordena a Unidade de
Dependência de Drogas (Uded) e o curso Supera, que desenvolveu em
parceria com a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad,
2006-2017). E-mail: mlosformigoni@unifesp.br

Marília Mendes de Almeida: psicóloga, doutora em psicologia pela


UnB, assessora de políticas públicas do Conselho Federal de
Psicologia. Atua principalmente nos seguintes temas: ensino na saúde,
políticas públicas de atenção ao usuário de drogas, prevenção ao uso
de drogas, redes sociais, análise de redes sociais, contextos de risco e de
proteção na adolescência, socioeducação. E-mail:
marilia.mendes.almeida@ gmail.com

Marisa Feffermann: mestre e doutora em Psicologia Escolar e do


Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo.
Atualmente é pesquisadora do Instituto de Saúde da SES/SP, da
Flacso - Brasil (Faculdade Latino Americana de Sociologia), professora
do Centro Universitário Estácio de São Paulo e da SEE/SP. Tem
experiência na área de Pesquisa em Psicologia, com ênfase em
Psicologia Educacional e Social, atuando principalmente nos seguintes
temas: saúde mental, juventude, violência, tráfico de drogas, Primeiro
Comando da Capital - PCC, gangues, educação, violência na escola.
Pós-doutora em Investigación en Ciencias Sociales, Niñez y Juventud
(Clacso). Coordenadora do Grupo de Trabalho - Infancia y Juventud:
Políticas, Culturas e Instituciones Sociales da Clacso. Autora do livro
“Vidas Arriscadas: o cotidiano de jovens trabalhadores do tráfico de
drogas”. E-mail: mfeffermann@gmail.com

xxvii
Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

Miriam Senghi Soares: terapeuta ocupacional, especialista em Terapia


Funcional (Fundação das Pioneiras Sociais), mestre em Psicologia
Clínica e Cultura (PPGPsiCC-UnB). Atua como supervisora
clínico-institucional em Redes de Atenção Psicossocial (Raps). É docente
do curso de Especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da
Faculdade Laboro, integra a equipe de pesquisa de Avaliação dos Caps
do Norte e Centro-Oeste. E-mail: senghisoares@gmail.com

Mónica Lourdes Franch Gutiérrez: doutora em Antropologia pela


Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ), com
pós-doutorado na Universitat Rovira i Virgili. Professora Associada no
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da
Paraíba, onde é também membro dos Programas de Pós-Graduação
em Antropologia e em Sociologia. Líder do Grupo de Pesquisa em
Saúde, Sociedade e Cultura (UFPB). Trabalha com antropologia da
saúde, gênero e sexualidade, bem como com questões ligadas às
juventudes. E-mail: monicafranchg@gmail.com

Olga Maria Pimentel Jacobina: psicóloga, mestre e doutora em


Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC-UnB), pós-doutora na área
de drogas (Centre of Addiction and Mental Healthy/University of
Toronto- Canadá). Especialista em Assistência Social na Secretaria de
Desenvolvimento Humano e Social/Governo do Distrito Federal.
E-mail: olgampj@gmail.com

Raphaela da Cunha Bacellar Veiga Garcia: socióloga e tecnóloga


em Saúde. Atualmente é analista de pesquisa em empresa privada.
Possui formação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Campinas, e em Informática em Saúde pela Universidade Federal de
São Paulo. Atua nas áreas de avaliação de tecnologias em saúde (ATS),
farmacoeconomia, pesquisa clínica e tecnologias de informação e
comunicação (TICs). E-mail: raphaela.bacellar@gmail.com

xxviii
Regina de Paula Medeiros: doutora em Antropologia Social e cultural
(Universitat Rovira i Virgili – Tarragona – Espanha). Professora
Adjunto IV da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC Minas) do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais;
Professora dos Cursos de Graduação de Ciências Sociais e Relações
Internacionais. Integrante dos grupos de pesquisa Cultura Urbana,
Modos de Vida e Identidade e de Cultura e Cidades. Membro da
diretoria da Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de
Psicoativas (Abesup). Desenvolve pesquisas na área da saúde; corpo;
álcool e drogas; antropologia urbana com enfoque na identidade,
cultura, cidades e diversidade cultural: grupos juvenis; prostituição;
violência; participação política; redes sociais, grupos vulneráveis;
espaços urbanos marginais; socioantropologia das drogas. E-mail:
repameca@pucminas.br

Renata Barreto Fernandes de Almeida: fonoaudióloga e psicóloga,


mestre em Psicologia Clínica/Universidade Católica de Pernambuco,
Doutora em Saúde Coletiva/Unifesp, membro do Grupo de Estudos
em Álcool e outras Drogas – Gead/UFPE. E-mail:
renatabfa@hotmail.com

Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque: psicóloga do Instituto Federal de


Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco – IFPE; pesquisadora do
Grupo de Estudos em Álcool e outras Drogas da Universidade Federal de
Pernambuco (Gead/UFPE); supervisora Clínico-Institucional em Redes de
Atenção Psicossocial (Raps); mestre em Saúde Coletiva (Fiocruz/CPqAM),
doutora em Medicina Preventiva (Unifesp); docente da Faculdade
Pernambucana de Saúde (FPS). E-mail: rorameh@gmail.com

xxix
Rubens de Camargo Ferreira Adorno: cientista social (Universidade
Estadual de Campinas -1977), especialista em Saúde Pública
(Faculdade de Saúde Pública da USP), mestre em Saúde Pública
(USP-1989), doutor em Saúde Pública (USP-1992), professor Livre
Docente (USP-1997), professor senior da USP, presidente Abramd
(2015-2017) Vice-presidente da Abramd (2017-2019). Pesquisador no
campo das drogas lícitas e ilícitas como uma esfera do consumo das
sociedades contemporâneas, a partir do desafio de propor uma
abordagem mais complexa do que o tratamento técnico a que esses
fenômenos são relegados. E-mail: rubens.adorno@gmail.com

Rubens Mota: graduação em Teologia pelo Ifiteg (Faculdade de Filosofia


e Teologia de Goiás); graduação em Psicologia pela PUC de Goiás;
especialização em Terapia de casal e Família pela PUC-GO; mestrado
em psicologia pela Universidade Católica de Brasília; assessorias a
nível nacional para casais, famílias, jovens e comunidades. Trabalho
junto aos indígenas (povo Terena). Email: freirubens@hotmail.com

Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira: psicóloga, mestre e doutora


em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília.
Pesquisadora e docente nas áreas de Psicologia Jurídica e Psicologia
Social Comunitária. Utiliza como referenciais teóricos de base a
Escola de Psicossociologia Francesa e a Teoria Sistêmica. E-mail:
sandraeni@hotmail.com

Saúl Ignacio Fuks: psicólogo, doutor em Psicologia Clínica. Especialista


em Psicologia Comunitária. Facilitador Sistémico de Processos
Coletivos. Diretor do Mestrado em Pensamento Sistêmico na
Universidade Nacional de Rosario, Argentina - Professor convidado de
universidades europeias e latino-americanas. Consultor e membro da
rede « MDSL Mouvement pour le Développement Social Local » -
Paris, França. Consultor do « Institut Renaudot de Santé

xxx
Communautaire ». Paris. França. Professor Titular da Universidade
Nacional de Rosário, Argentina. Formador de terapeutas sistêmicos e
de facilitadores de processos coletivos. E-mail: cocofuks@gmail.com

Selma Lima da Silva: cientista social (Fundação Escola de Sociologia e


Política de São Paulo-1991), especialista em Saúde Pública (Programa de
Pós-Graduação da Faculdade de Saúde Pública/USP- 1992), mestrado
(USP-2000) e doutorado (USP-2017), pesquisadora do Grupo de
Estudos Drogas e Sociedade (Geds) e do Laboratório Interdisciplinar de
Estudos e Pesquisas Sociais em Saúde Pública (Liesp) da Faculdade de
Saúde Pública/USP. Membro da diretoria da Abramd. Atua em estudos
na área da saúde com ênfase nas práticas desenvolvidas por grupos em
situação de vulnerabilidade social, pesquisando os temas de uso de
drogas, prostituição, população em situação de rua, jovens em conflito
com a lei, violência doméstica e sexual, doenças sexualmente
transmissíveis e HIV/Aids. E-mail: selmals@usp.br

Silvia Chwartzmann Halpern: assistente social (PUC-RS), mestre em


Educação (UNC - Chapel Hill, EUA), doutoranda do Programa de
Pós-graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento
(UFRGS). Coordenadora da área de Reinserção Social da Unidade
Álvaro Alvim do HCPA. Membro da Comissão Coordenadora e
docente do Mestrado Profissional em Álcool e outras Drogas
(HCPA/UFRGS). E-mail: shalpern@hcpa.edu.br

Silvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos: graduação em


Pedagogia, pela Universidade de Brasília – UnB (1990), graduação em
Psicologia (UnB, 1995), mestrado em Psicologia (UnB, 1997) e
doutorado em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC-UnB, 2013).
Atualmente é professora adjunta do Departamento de Psicologia
Clínica da Universidade de Brasília e integra a equipe do Programa de
Pós Graduação em Psicologia Clínica e Cultura na Universidade de

xxxi
Brasília. Tem experiência na área de Psicologia Familiar, atuando
principalmente nos seguintes temas: juventude, adolescência, saúde mental,
saúde e desenvolvimento psicológico. É membro do GT Juventude, Resiliência
e Vulnerabilidade. da Anpepp. Atualmente, é coordenadora do Centro de
Atendimento e Estudos Psicológicos (Caep), serviço-escola da UnB e também
coordena o Laboratório de Família, Grupo e Comunidade na UnB E-mail:
srlordello@gmail.com

Solange Aparecida Nappo: farmacêutica-bioquímica, mestre em Saúde


Pública, doutora em Ciências e professora adjunta da Unifesp. E-mail:
solangenappo@gmail.com

Thiago Godoi Calil: doutorando em Saúde Global e Sustentabilidade e mestre


em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo -
FSP/USP. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Tem experiência na área de Psicologia Social, com pessoas em
situação de rua e as que usam drogas. Atua desde 2004 na perspectiva da
Redução de Danos sociais e à saúde em diversos contextos de uso de drogas,
inclusive na região da Luz, conhecida como 'Cracolândia', no centro da cidade
de São Paulo, Brasil. Desenvolve pesquisas com aproximações entre a questão
das drogas e as diversas forças que incidem neste campo como as políticas
públicas, o estigma, a criminalização da pobreza, a violência estatal e as
possíveis estratégias de garantia de direitos. Atualmente desenvolve pesquisa
na  interface entre redução de danos e urbanismo em contextos
latinoamericanos de uso de drogas no espaço público em Bogotá e Medellin,
ColômbiaE-mail: thiguitto@hotmail.com)

Yone Gonçalves de Moura: psicóloga, mestre em Ciências e especialista em


Dependência de Drogas pela Universidade Federal de São Paulo-Unifesp.
E-mail ygmoura@gmail.com

xxxii
PARTE 1

TRANSIÇÃO DE PARADIGMAS EM
ÁLCOOL E DROGAS
NO CENÁRIO DAS PRÁTICAS SOCIAIS
CAPÍTULO 1.1

Un “modelo” sistémico de
comprensión-acción de dinámicas
sociales:
tres dimensiones de las prácticas
sociales transformadora
Saúl Ignacio Fuks

Introducción
Existe un cierto acuerdo en considerar que lo que se denomina como
“Practica Social” hace referencia a un modo recurrente de realizar una
cierta actividad que es compartido por todos los integrantes de una
comunidad y que son válidas y legítimas localmente; son expresión y
productoras de un determinado modo de vivir de una determinada
sociedad, aunque puedan resultar inapropiadas para otras.
Las Prácticas Sociales surgen y se transforman en el curso de la vida
social de una comunidad, sea esta una comunidad profesional o de otro
tipo. Debido a los sistemas de formación formal y no formal, “sabemos
hacer cosas” en nuestra vida cotidiana y también en los campos
técnicos/profesionales específicos. Esos “saberes” están ligados a un
conjunto de prácticas sociales que producen y contienen ese
conocimiento y que también organizan los sistemas de transmisión
regulados por las normas y creencias de esa cultura. En su mayor parte,
se trata de conocimientos de los que no somos totalmente conscientes y
esto se debe a que nacemos y crecemos dentro de una cultura y el
proceso de socialización hace que muchos de esos saberes acaben siendo
__________
1. Una versión diferente del siguiente capítulo ha sido publicado en francés.

35
Saúl Ignacio Fuks

“naturalizados”, por tanto, se trata de un patrimonio al cual no tenemos


fácil acceso y de una riqueza de la cual no podemos disponer.
Los saberes de los que hablamos son los que permiten a un miembro
de una comunidad ser “parte”, tener los códigos de cómo “actuar
correctamente” en cada situación, produciendo “encaje” y pertenencia y,
por tanto, identidad.
Los saberes “establecidos” tienden a producir estabilidad tanto en el
sistema de relaciones como en la trama comunitaria extensa, ya que el
actuar “correcto” de cada miembro confirma y legitima “la manera
adecuada de hacer las cosas” de esa comunidad. Dado que las reglas,
normas y costumbres que articulan la vida de una cultura aseguran su
estabilidad en el tiempo, los intentos de inaugurar nuevas prácticas
suponen una ruptura con “lo que siempre se hizo” y una transgresión. No
todos los saberes nos permiten transformar nuestra realidad, ya que una
gran mayoría de ellos funcionan como “la manera adecuada de hacer las
cosas” y perpetúan las tradiciones y costumbres que están en la base de
nuestra manera de vivir. Es posible sostener, entonces, que las prácticas
sociales contienen toda la tensión entre las fuerzas estabilizadoras de las
tradiciones y las fuerzas destructivas de la transformación.
La dinámica del cambio y transformación social, contiene la tensión
entre aquellos “modos de hacer” conocidos - y considerados como
correctos - y aquellos otros que innovan e intentan instalar “otro modo de
hacer las cosas”, es decir, adoptamos formas de actuar que son constantes
y estables hasta que nuevas formas las reemplazan. Las prácticas sociales,
en este sentido, no son inmutables ya que responden tanto a la “época”
como a las tensiones internas y del entorno, algunas se modifican
mediante un lento y complejo proceso de transformación y co-evolución,
mientras que otras lo hacen de manera disruptiva y destructora (parcial o
totalmente) del orden establecido; no obstante, estos “haceres” no
determinan todas las acciones que se realizarán dentro de ellos, sino que lo
que los definen es la estructura de las acciones posibles (deseables,
esperadas, prohibidas, etc.).

36
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

En este sentido, una Práctica Social es un diseño de posibilidades (e


imposibilidades) de acción y estos procesos suceden en el dominio del
lenguaje; es en el curso de las conversaciones donde se formulan,
reformulan, perturban, negocian y legitiman.
Los procesos colectivos, cuando intentan ser participativos (o
ascendentes) tienen como particularidad que - esa característica - produce
complejos flujos de alta turbulencia.
Cuando se intenta reducir esa complejidad para construir estrategias
de intervención, producen modelos ilusoriamente simples que dejan fuera
de esos esquemas aspectos de gran importancia: la capacidad de
autoorganización de los procesos colectivos; la impredictibilidad de esos
procesos y su multidimensionalidad.
Todo “modelo” (o esquema) es una fotografía que intenta captar, en
un aspecto de una secuencia, el fluir de dinámicas que se encuentran en
permanente estado de transformación. Aun así, la mente humana necesita
poder visualizar esquemas, formas, diseños para poder capturar un
instante de ese fluir que permitan intuir la totalidad.
Por tanto, lo que estamos presentando acá necesita ser considerado
como un fotograma de un film, más que un panorama de la totalidad del
proceso.

Contexto: palabra clave en la compresión de procesos


participativos
Uno de los notables aportes de Gregory Bateson (1998) fue señalar
que la comprensión que tenemos de un hecho o el significado que le
atribuimos, está condicionado por su contexto. La noción de “contexto” es
más que un concepto teórico ya que se aproxima más a la idea de un
proceso: un proceso comunicacional/conversacional en el que los marcos
de referencia y de significación emergen en las interacciones que los crean,
recrean y transforman.

37
Saúl Ignacio Fuks

Bateson intentó expandir las perspectivas desde las cuales se pensaba


a un contexto; su propuesta (que anticipa en varias décadas la tarea del
sociólogo francés Edgar Morin) es la de hacer varias descripciones
diferentes sobre las mismas circunstancias (“dos descripciones son mejor
que una”) lo que –necesariamente - trae como consecuencia la
relativización de las certezas o de la ilusión de encontrar una mirada única
y verdadera.
La propuesta batesoniana permitió desarrollar la capacidad de
describir contextos en función de las condiciones/características que los
distinguían y dentro de esta tradición, el enfoque situacional propuso que
en todo contexto podemos reconocer: a) un evento o situación; b) los
elementos distintivos de esa situación; c) las relaciones que se tejen dentro de
esa situación; d) el ámbito en que ocurre la situación y e) lo que produce (los
efectos) esa situación, (cambios de actitudes, acciones, forma y contenido de
los mensajes, surgimiento de efectos deseados o no-deseados,
significaciones y re-significaciones, etc.).
La acción de contextualizar supone, entonces, poner “en contexto” una situación
que aparece de manera aislada y separada de todos aquellos elementos que la rodean, que
influyeron e influyen sobre ella y que son influenciados por ella.
La comprensión de las singularidades contextuales - aquello que es
único y diferencia a una situación de la otra - hizo necesario poder crear la
noción de “marcadores de contextos” que permitan referirse a las pistas,
rastros o vestigios que permitirán identificar, delimitar o circunscribir las
características de un contexto; estos marcadores son los que permitirán
“leer” los significados atribuidos a los acontecimientos que tengan lugar en
su interior o en sus fronteras.
Parafraseando a Bateson (1998), podríamos decir que los marcadores
son “mensajes claves” que sirven como “señales” y cuya función es ofrecer
un modo de clasificar los contextos. Señales que guiarán nuestra
observación, lectura y comprensión de una situación y que nos permitirán
entender el contexto como tejido por un conjunto de situaciones, eventos y

38
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

circunstancias que se combinan en un momento/lugar específico y que afectan los sucesos


que acontecen dentro de sus límites espacio-temporales.

Las “tres dimensiones” entendidas como la construcción de


contextos

Asumimos que el observador es quién, con las distinciones que


produce, construye/inventa/produce ciertos recortes en los eventos a los
que dota de significados y sentidos. En virtud de esta salvedad,
proponemos como un “modelo” para la facilitar la comprensión y la
producción de estrategias de intervención; todo “modelo” es una
construcción imaginaria que intenta diseñar –grafica o textualmente-
descripciones que habiliten alguna forma de acción eficaz. Podemos
imaginar tres descripciones de “contextos” para comprender/intervenir en
un sistema y, también, para la evaluación del recorrido de un proyecto con
sus obstáculos, desafíos y logros.
Estas tres dimensiones, que denominamos “relacional/afectiva”,
“pragmática/racional” y “simbólica/reflexiva”, pueden ser consideradas

39
Saúl Ignacio Fuks

como perspectivas o como recortes desde la cual es posible analizar y


operar en la complejidad de un proceso.
Cuando “describimos” las tres dimensiones lo que estamos haciendo
es distinguir tres diferentes tipos de señales o “marcadores de contextos”
que permiten reconocer la especificidad de cómo se enmarcan y significan
los hechos en el interior de cada uno, es decir, como se ve la realidad desde
el interior de cada una de esas dimensiones.
A fin de hacer más comprensible tomaremos como ejemplo la
dimensión relacional afectiva que funciona como un contexto dentro del
cual los hechos se significan y comprenden a partir de signos emocionales
ligados a las relaciones afectivas. Desde la perspectiva de quién se
encuentra dentro de esta dimensión, lo que se vuelve prioritario son las
relaciones con los otros, la interdependencia, el reconocimiento mutuo, las
tensiones y los conflictos, las lealtades emocionales, el “clima” afectivo, las
tristezas y alegrías.
Ante un escenario en el que se pusieran en cuestión los objetivos de una
tarea o etapa de un proyecto2, en el marco de la dimensión
relacional/afectiva, esto se interpretará como producto de las tensiones
emocionales en las relaciones del grupo y, coherentemente, se intentara dar
respuestas mediante reuniones en los que los conflictos interpersonales
puedan ser hablados.
Si se tratara, en cambio, de una situación en la que se manifiestan
conflictos de tipo relacional en torno de la distribución de
responsabilidades por la realización de una tarea, y se pretendiera
responder a esto revisando la planificación y la administración de
tiempos/ recursos partiendo de la suposición de que lo necesario es un
análisis de la administración y gestión de los recursos. Este enfoque podría

__________
2. Una situación habitual en el proceso de un proyecto donde se pierden de vista el sentido
originario compartido y se plantean diferencias acerca de cuáles son las prioridades y urgencias.
En la dimensión pragmática estas dificultades serán comprendidas como parte de las diferencias de
modos de planificación (x ejemplo, las diferencias entre una planificación por objetivos y una
planificación estratégica) y el tipo de respuesta que se intentará será la reformulación de los
objetivos en función de lo realizado, de los recursos existentes y del cronograma propuesto.

40
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

ser eficaz en tanto el contexto predominante sea el “pragmático” pero, si


la dimensión relacional es la que está prevaleciendo, la propuesta será
considerada extraña e incomprensible en la experiencia de los
participantes y, por lo tanto, ineficaz. Si el enfoque de la situación tomara
en cuenta las características de la dimensión afectivo/relacional y se
abordara mediante un círculo de dialogo en el que puedan hablarse los
conflictos y tensiones personales revitalizando la conciencia de la
interdependencia en el grupo, esto podría destrabar la situación
permitiendo un aprendizaje importante.

En estos ejemplos se ilustran cómo, las formas de abordar las cuestiones


que hacen a la cotidianeidad de la marcha de un proyecto, serán diferentes
dependiendo del contexto de significación predominante. Es decir, que la lectura
que se realice del contexto prevalente condicionara la lectura de la situación, el
tipo de intervención que se considere y los instrumentos que se utilicen para
afrontarlos.

41
Saúl Ignacio Fuks

Instrumentos, herramientas y entrenamiento.

Al hablar de “herramientas” hacemos referencia a instrumentos


multidimensionales diseñados para transformar sueños y utopías en
“realidades”. Hablamos tanto de aquellos instrumentos necesarios para
concretar metas y objetivos por medio de acciones sistematizadas, como
de las herramientas imprescindibles para construir sistemas relacionales
colaborativos o, aquellos otros medios necesarios para la

42
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

construcción/deconstrucción/reconstrucción del tejido simbólico y de


sentido que sustenta toda empresa colectiva. Estos “instrumentos” están
alejados de los supuestos de la “tecnología” modernista (de las recetas y
protocolos) ya que, los que estamos sugiriendo, suponen e implican el
desarrollo de un “saber/hacer” reflexivo y una capacidad de lectura
contextual por parte de quién intervenga en una situación.
El diseño de una “caja de herramientas” de estas características,
contendrá instrumentos de diferentes niveles de complejidad y
sofisticación, desde aquellos ligados a un “saber-hacer” específico u otros
que requieren conocimientos del operador acerca de sí-mismo-en-acción y
de sus habilidades hasta aquellos saberes acerca de las “condiciones de
posibilidad” de cada herramienta que permita que su “uso” sea útil para
lo que se espera.
Esta manera de entender los instrumentos y técnicas plantea un
desafío importante ya que, desde esta perspectiva, ya no se trata de
herramientas que puedan ser “aprendidas” a través de un “manual de
uso”, sino que su transmisión y aprendizaje necesitan ser parte de un
proceso dialógico en el que las prácticas sean intermediadas por
meta-reflexiones y sistematizaciones complejas: una verdadera
“capacitación-en-acción”.

Del “estratega” de la intervención al facilitador reflexivo.


Los posicionamientos de los operadores sociales, profesionales y
facilitadores que acompañan proyectos (especialmente si estos pretenden la
participación de los involucrados) no se construyen en base a “creencias
teóricas” desligadas de las prácticas e instrumentos de que se dispongan.
Este tipo de “posicionamientos” responden a un complejo proceso de
(re)construcción de la identidad profesional y de una posición ética acerca
a las relaciones de poder presentes en las prácticas de “ayuda” profesional.
Basado en este presupuesto es que sostenemos que prestar atención –
solamente- a la “ideología” o a las “intenciones” de los actores sociales
restringirá el foco a lo más visible y evidente, desconociendo la fuerza de

43
Saúl Ignacio Fuks

las “teorías en acto” (Schön, 1983) que son las que guían las acciones. En
los años 1980, Donald Schön, en The Reflective Practitioner (Schön, 1983),
confrontó con el supuesto de que la “racionalidad técnica” era la base
para la construcción del saber profesional. Esta “racionalidad” encarnaba
el (fracasado) intento del paradigma positivista dominante por resolver el
dilema entre el rigor y la relevancia con la que se encuentran los
profesionales en sus prácticas cotidianas.
Las nociones de reflexión-en-acción y reflexión-en-la-acción fueron centrales
en los trabajos de Donald Schön y llegaron a ser conocidas como “pensar
con/en nuestros pies”; estos tipos de reflexión suponen el proceso de
recuperación de nuestras experiencias, la conexión con nuestros
sentimientos y la atención a nuestras teorías-en-uso, de modo que – de este
proceso - puedan surgir nuevas comprensiones que aporten a nuestros
actos coherencia y sintonía con el contexto.
Para poder describir estas complejas articulaciones entre situación,
saberes, experiencias, valores, ética y visión de mundo, propusimos la
noción de “artesanía de contextos” (Fuks, 2004).
Esta noción señalaba la importancia que tiene el modo como se
diseñan los contextos, ya que serán los marcos contextuales los que darán
fluidez, encaje con la situación y coherencia a las prácticas. Dentro de
estos diseños contextuales es donde las prácticas construirán su sentido,
encajarán con la “cultura local” y obtendrán legitimidad, al tiempo que
serán vividas en sintonía con el tipo de relaciones que se organicen, todo
lo cual contribuirá a su eficacia pragmática.
Realizaremos a continuación una descripción panorámica de las
características más relevantes de estas dimensiones/contextos, destacando
tanto su pertinencia como los desafíos con los que se enfrentan cada una
de ellas.

44
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

Dimensión reflexiva/simbólica
Los seres humanos transitamos nuestras vidas haciendo sentido sobre
ellas; estamos en el mundo dando sentido a lo que sucede en él y, en
simultáneo, no dejamos de preguntarnos por el sentido de nosotros
mismos, por el sentido de nuestras vidas.

La producción de sentido, entonces, no es solo un aspecto central de


la existencia sino que es, incluso, una condición de ella; cuando la
existencia pierde sentido, la vida misma pierde su razón de ser.
Necesitamos del sentido para ser capaces de vivir y el sentido es algo que
producimos a partir de nuestras competencias
lingüístico/comunicacionales y nuestras capacidades para narrar historias.
Sin embargo, en la vida cotidiana, hay momentos en los que no todo
lo que hacemos parece tener sentido, hacemos muchas cosas dejándonos
llevar por las circunstancias, otras las hacemos forzados por el contexto y
otras las seguimos haciendo, aunque ya hace tiempo que dejaron de tener
sentido para nosotros. Cuando algo “no tiene sentido” nuestro hacer se
vuelve mecánico, forzado y carente de pasión y energía y, esto, hace que la
falta de entusiasmo se convierta en acciones poco comprometidas y poco
creativas.
El “hacer sentido” a las cosas, es un complejo tejido de conexiones
entre nuestra trayectoria de vida (y las experiencias que nos marcaron),
nuestra visión del mundo, los sistemas de creencias, nuestros valores y
nuestra manera de concebir el futuro (con sus sueños y utopías, pero

45
Saúl Ignacio Fuks

también con sus fantasmas y temores) y todo eso sucede en la


comunicación con los otros y consigo mismo.

Las cosas no tienen sentido por sí mismas, el “dar sentido” es algo que
es propio de los seres humanos, algo que estos producen con su capacidad
de preguntarse por el significado de las cosas y por su capacidad de
narrarse historias. Todo sentido es – por lo tanto - siempre un sentido
dado, una creación que los seres humanos realizamos gracias a nuestra
capacidad de lenguaje.
Sin embargo, este proceso es algo que trasciende a la razón y a la
forma en que construimos habitualmente nuestras ideas, ya que no es –
solamente - una cuestión conceptual u cognitiva; la emergencia del
“sentido de las cosas” es producto de los relatos que construimos (y que
nos construyen) acerca de nuestra historia, nuestros sistemas de creencias,
nuestras trayectorias de vida y nuestra manera de mirar el futuro.
En consecuencia, modificar el “sentido de las cosas” no es incorporar
o producir nuevas teorías o argumentos ya que, una modificación de tal
trascendencia, se produce luego de la fisura y/o ruptura de los antiguos

46
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

“sentidos” y, esto, conduce a una profunda revisión de nuestra identidad y


del mundo de relaciones en el que vivimos. Esta turbulencia se asemeja al
tipo de procesos críticos en que los significados previos pierden su
capacidad de hacer el mundo estable y seguro y, sin embargo, aún no se
vislumbran nuevos “sentidos” que puedan aportar una visión renovada de
la realidad.
A nivel subjetivo ese proceso con frecuencia va acompañado de
sentimientos dolorosos (angustia, desorientación, inestabilidad) y, las
primeras reacciones desatadas por esos sentimientos intentan el
fortalecimiento de las creencias amenazadas y su protección de los
cuestionamientos. A nivel colectivo, las reacciones defensivas ante esas
turbulencias pueden desatar tanto respuestas fundamentalistas y
fanatismos como promover visiones escépticas o desalentadoras;
generando fuertes tendencias a las polarizaciones y rigideces de todo tipo.
En consecuencia, cuando se intenta acompañar esta dimensión de un
proyecto es una tarea que requiere cuidado, paciencia y empatía ya que,
todo intento por producir cambios que no respeten los tiempos internos
del proceso, solo dará como resultado un cierre defensivo o una
intelectualización inoperante.
Si bien el “sentido de las cosas” se construye en las conversaciones
con nosotros mismos y con los otros, las intervenciones que tocan esta
dimensión no pueden ser directas ni basadas en la racionalidad o lógica.
Cuestionar el “sentido de las cosas” de alguien es cuestionar los
basamentos de su vida; las confrontaciones directas y destructivas solo
consiguen alimentar respuestas defensivas, lo cual es comprensible, ya que
se defiende la coherencia en el modo de actuar y la razón de vivir.
En función de lo anterior, las intervenciones más productivas parecen
ser aquellas que acompañan un proceso de transformación “desde dentro”
y se valen de los recursos simbólicos y reflexivos colectivos: las formas
respetuosas de intervenir o explorar la dimensión simbólica incluyen
necesariamente el pasaje por momentos de conexión reflexiva.

47
Saúl Ignacio Fuks

Las prácticas reflexivas posibilitan la revisión crítica de nuestras


actitudes, creencias, valores y prácticas y permiten identificar aquellos
aspectos que necesitan ser revisados, reformulados, mejorados o
innovados. La reflexividad entendida como esa capacidad de verse a sí
mismo con la distancia suficiente como para sentirse un “otro”, no es una
competencia racional como el pensar; la reflexividad implica un
compromiso de lo emocional y de lo corporal que asumen la forma de una
interrogación acerca del sentido de uno mismo y de nuestro mundo de
relaciones.
La utilización de metáforas, de analogías, de dinámicas en las que el
cuerpo habla su lenguaje, los dibujos, collages, esculturas y recursos
no-textuales condensan la potencia de la producción simbólica y el anclaje
reflexivo: permiten hablar de lo que es difícil hablar, y transformar lo que
no parece consciente. (Fuks, 2008).
Ejemplos de abordaje de esta dimensión podemos encontrarlo en la
etapa utópica de L’Atelier del Avenir3 en la fase de “Sueño”, en el enfoque de
Appreciative Inquiry4 o en los diálogos en la “pecera” (Duruz, 2014), las
conversaciones transformadoras, la utilización de recursos gráficos en el
Art of Hosting5, la construcción de “mapas simbólicos”, etc.

Dimensión afectivo/relacional
La dimensión relacional es un aspecto siempre presente en la vida
social pero la racionalidad imperante en las instituciones, así como en los
modelos dominantes de planificación, gestión y evaluación, la han
considerado más como un obstáculo o un inconveniente que necesita ser
controlado, que como un motor esencial de los procesos sociales.

__________
3. http://www.mdsl-developpement-solidaire.com/doc/ateliers_avenir_mdsl.pdf
4. https://appreciativeinquiry.champlain.edu/learn/appreciative-inquiry-introduction/5-d-cycle-appreciative-inquiry/
5. http://www.artofhosting.org/es/

48
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

En el campo de las ciencias sociales y en el de la salud, la distribución


disciplinaria ha colocado el aspecto de “lo relacional” del lado de los
psicólogos y (en menor medida) de antropólogos y trabajadores sociales.
Esto ha quedado instalado a punto tal que, cuando (en las formaciones) se
realizan dinámicas o juegos reflexivos es habitual escuchar que
“estamoshaciendo cosas de psicólogos”. No obstante, a pesar del rechazo a
reconocer la importancia de la vida emocional y relacional en la s

intervenciones sociales de los “modelos” oficiales, para los “trabajadores


en terreno” (no profesionales) este aspecto de la vida cotidiana de un
proyecto ocupa un lugar central. Estos “facilitadores locales” (voluntarios,
líderes comunitarios o de redes) logran desarrollar, a partir de sus
experiencias de vida, un saber intuitivo que les permiten manejar
conflictos de modo creativo, impulsar la cooperación, abordar las
tensiones relacionales sin hacer alianzas, etc. saberes que, para los
profesionales formados “teóricamente” son difíciles de incorporar sin la
inmersión en terreno. Tanto por desconocimiento como por cuestiones de
poder, con frecuencia los profesionales que llegan al campo de trabajo
desde “afuera” (la universidad, las instituciones del Estado, etc.) no solo
tienden a desconocer estas competencias o saberes locales, sino que con
frecuencia los descalifican.

49
Saúl Ignacio Fuks

En aquellas excepciones en que los modelos de planificación


pragmáticos y racionalistas incluyen este aspecto motor de la vida de los
emprendimientos sociales, la mayor parte de las veces lo hacen tomando
en consideración a la emocionalidad de “los otros”: la de los beneficiarios
de programa, los líderes comunitarios, etc. y muy rara vez tienen los
elementos como para poder incluirse a sí mismos en las problemáticas
relacionales y emocionales que impregnan la relación ayudador/ayudado.
Por causa de esta ceguera, estas tramas relacionales se les vuelven
invisibles y terminan impregnadas e impregnando los juegos de poder, las
alianzas no explicitas, los conflictos de personalidades, etc. en lugar de
asumir su lugar de motor central de los procesos colectivos.
Hay situaciones en que la forma en que se configura la relación
pareciera ser un misterio, no comprendemos por qué no logramos
entendernos bien y – a pesar de las buenas intenciones- los malos
entendidos surgen a cada momento. Uno de los problemas con que nos
encontramos es que no sabemos evaluar la calidad de esas conversaciones,
no tenemos los medios para poder distinguir que aspectos en ella no
funcionan bien o producen desencuentros y, en consecuencia, construimos
explicaciones rebuscadas o culpabilizantes.
El secreto de la calidad de toda relación está en la calidad de las
conversaciones que la configuran; si las conversaciones que se organizan
son limitadas, defensivas, competitivas, la relación tendrá esas
características también, lo que implica que, si cambiamos la forma de
comunicarnos, mejorará también la relación que construyamos.
El lenguaje es uno de los aspectos centrales en la construcción de
nuestras relaciones, es parte de la experiencia cotidiana que, como
individuos, construimos nuestras relaciones a partir del lenguaje: tenemos
conversaciones con otros y organizamos espacios conversacionales con
ellos más o menos estables. Nuestras relaciones personales se sustentan –
entonces - en la capacidad de lenguaje que, como sujetos, tengamos y esas
competencias son producto de nuestras experiencias de vida; la cultura
familiar de dónde venimos, por ejemplo, normaliza acerca de lo que

50
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

puede ser hablado y de qué forma es posible hacerlo y aquello que debe
ser silenciado o invisibilizado. Mientras nuestra vida se va desarrollando,
otras culturas contribuyen a construir nuestro perfil comunicacional y
dejan su marco de referencia y, en algunos casos, refuerzan la cultura
familiar, mientras que en otros entran en conflicto.
Las culturas profesionales o técnicas juegan un papel importante en el
tema que estamos tratando ya que muchas disciplinas socializan a los
futuros profesionales entrenando la “distancia emocional” como un rasgo
profesional muy valorado. Estos rasgos promovidos como ideales se
vuelven parte de la “identidad profesional” de tal modo que cualquier
transgresión a esos límites pasa a ser vivido como una pérdida de
identidad, convirtiendo al transgresor en un paria, alguien que no tiene
tribu propia ni territorio demarcado. Es necesario comprender la fuerza
de estas regulaciones, ya que promueven modos de actuar no conscientes
-que dejan de ser consideradas como decisiones que se toman entre varias
alternativas- y se convierten en la “manera correcta de hacer las cosas”, es
decir que, al ser naturalizadas no soportan el juicio crítico y limitan las
opciones.
Tomando en cuenta que nuestras competencias -e incompetencias- en
el dominio del lenguaje nos conducen a construir tanto como a destruir las
relaciones que mantenemos con los demás, el interrogante que surge
entonces es ¿porque este aspecto es tan poco cuidado en las formaciones y
entrenamiento?

El papel del lenguaje en la construcción de mundos sociales


Haremos acá un breve repaso de los aspectos en los que el lenguaje y
las competencias comunicacionales se evidencian como el basamento
sobre el que se construyen las relaciones y lo que determina la calidad de
las mismas.
El lenguaje genera compromisos. Los Antropólogos han explicado
como el Homo Sapiens ganó su batalla con los otros “Homos” con
quienes convivió durante mucho tiempo: fue porque el Sapiens desarrolló

51
Saúl Ignacio Fuks

un modo de cooperar en la supervivencia y esa cooperación se la debemos


al desarrollo de un lenguaje. (Harari, 2014) Es a través del lenguaje que
conseguimos coordinar acciones con otros y, de esa manera, podemos
lograr lo que posiblemente nos sería imposible de alcanzar aisladamente:
el lenguaje es creado y crea la vida social.
El lenguaje nos permite acoplar mutuamente nuestras acciones, de la
misma manera como nos permite acoplar nuestras vidas. Somos seres
sociales, nuestra sociabilidad depende de nuestra capacidad de lenguaje,
dado que dependemos de las promesas que otros nos hacen, de la misma
manera en que otros dependen de nuestras promesas y todo ello
condiciona nuestra forma de vida y el tipo de sociabilidad que
desarrollamos.
El lenguaje genera posibilidades. Las posibilidades y alternativas a
una situación no existen como algo independiente de nosotros mismos y
las riquezas de nuestras relaciones. Las posibilidades impregnan las
interpretaciones que producimos en nuestros intentos por comprender lo
que acontece y, por lo tanto, son generadas en conversaciones con otros o
con nosotros mismos. Ante una situación desconocida o en la que no
sabemos qué hacer, lo que hacemos habitualmente es iniciar
conversaciones que nos lleven a revisar el sentido que le estamos dando a
lo que pasa, esas conversaciones pueden ser “con otros internalizados
¿“Que diría XXX ante esta situación? ¿Como lo explicaría?” o
conversaciones que buscamos con aquellos que podrían aportarnos otra
mirada y otras interpretaciones. De ese proceso surgirán las posibilidades,
las distintas interpretaciones para la situación y – por lo tanto - los
diferentes rumbos de acción. Las posibilidades remiten siempre al lenguaje
y su capacidad de generar sentido para las cosas.
En suma, nuestro mundo de relaciones determina las posibilidades
que podremos crear en cada situación y los grados de libertad que
tendremos; las personas aisladas solo conocen una manera de hacer las
cosas y no pueden abandonarla… no tienen opciones, alternativas ni
posibilidades.

52
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

Dimensión racional/pragmático
Esta dimensión es la del “hacer”; la de centrar el foco en llegar a
concretar metas y objetivos y, esta característica de estar centrada en los
resultados hace que esté fuertemente impregnada de racionalidad y de una
perspectiva muy estructurada y poco flexible ante lo imprevisto. A pesar de
confluir con las dos dimensiones anteriores en la construcción de un sistema
dinámico y complejo, se diferencia de las otras en el modo en que analiza y
planifica las intervenciones en el campo de los procesos colectivos. Su lógica de
construcción del “problema” y de los pasos para su solución, frecuentemente
invisibiliza la dimensión simbólica y tiende a considerar a las relaciones
afectivas como obstáculos, o como aspectos de las estrategias para una mayor
eficacia.

Los programas y proyectos que provienen de las agencias


(gubernamentales, internacionales o no-gubernamentales) habitualmente
están orientados por diagnósticos consensuados acerca de cuáles son las
problemáticas relevantes y prioritarias. A partir de estos “diagnósticos”
provenientes de centros globales o regionales (OPS, OMS, etc.) y, ya sea
como parte de una amplia estrategia para evitar algún problema
(preventivas) o para abordar un tema acuciante, estos puntos de partida

53
Saúl Ignacio Fuks

condicionan todas las etapas posteriores6. Cuando se trata de las agencias de


un gobierno democrático se las denominan “Políticas Públicas” (PP) y se las
considera como la lógica racional, expresada en un esquema
político-administrativo y social (Velásquez Gavilanes, 2009).
Son consideradas como el resultado de un intento de definir y dar
estructura a los lineamientos para actuar, o no actuar, por parte de un
gobierno. Esto es pensado como parte de acciones conjuntas con otros
actores, tales como las de la sociedad civil, asociaciones privadas, grupos
singulares (migrantes, discapacitados, mujeres, jóvenes, personas mayores,
niños, indígenas, desempleados, etc.) que se encuentran interrelacionados en
un territorio y en un momento histórico y que se consideran involucrados en
la problematica.
Las áreas principales de análisis de las políticas públicas son:
• La economía, la infraestructura y expansión de las vías generales de
comunicación, de las telecomunicaciones, del desarrollo social, de la
salud y de la seguridad pública, entre otras.
• Los planes de desarrollos anuales, quinquenales, etc.
• Los presupuestos anuales de los estados y las administraciones
autonómicas y municipales.
• La administración pública o sistema burocrático y sus planificaciones.
• Los tratados internacionales y las declaraciones de principios de los
estados individuales o unidos en agrupaciones regionales: Naciones
Unidas, América Latina, Unión Europea, etc., con énfasis en la
cohesión social y la gobernabilidad para desarrollos integrales o totales.

En los Estados democráticos el proceso por el cual se definen las PP es


un juego complejo en el que intervienen múltiples circunstancias y actores
y, el producto final, con mucha frecuencia refleja mucho más el resultado
de esas negociaciones que el objetivo original. El proceso por el cual una
__________
6. A diferencia de los “diagnósticos locales” producidos a partir de la detección de problemáticas por
parte de los propios miembros del colectivo.

54
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

necesidad social7 se transformará en una Política Pública que se concretará


en programas y proyectos no es un proceso ni simple ni lineal.
Las diferentes fases de ese proceso contemplan: la construcción del
problema público; la definición de la agenda pública; el diseño del programa; la
implementación y la evaluación. La manera en que se estructurará esto (tanto
en el proceso de toma de decisiones como de su implementación)
organizará también el modo en que los funcionarios públicos (encargados
de la ejecución o monitoreo) se relacionarán con el “problema” y cuanto
margen de movimiento tendrán para realizar modificaciones a lo
planificado.
Las paradojas8 en las que se encuentran atrapados los funcionarios
fuerzan “estrategias de supervivencia” de autoprotección en un medio
hostil. Una estrategia frecuente del funcionario ante estas paradojas – con
frecuencia - es la de ajustarse al “pie de la letra”, es decir seguir los
lineamientos políticos y técnicos sin apartarse de ellos a fin de no ser
considerados responsables por el fracaso de la implementación, lo que
conlleva una extrema rigidez y la imposibilidad de ajustes en la
implementación.

__________
7. Las necesidades sociales pueden hacerse visibles a los poderes políticos, administrativos tanto por
la detección de las organizaciones de la sociedad civil (formales o informales) aunque también
esas necesidades pueden haber sido detectadas por equipos técnicos y recuperadas por el poder
políticos en función de necesidades de marketing e imagen política y condicionadas por el
contexto (antes de elecciones, final de mandato, reacomodaciones internas de los equipos
gobernantes, etc.).
8. No podemos entrar en detalle acerca de este aspecto central, pero baste decir que los funcionarios
que están comprometidos con la misión institucional (y no aquellos que se refugian en la lógica
burocrática de obedecer órdenes) están permanentemente sujetos a paradojas imposibles de
resolver. Por ejemplo, un proyecto que se lanza para acallar la presión de la población ante un
tema relevante, pero que afectaría los juegos políticos del territorio donde los decisores tienen
sus alianzas. Se le pide al funcionario que el proyecto siga los lineamientos establecidos en las
metas, pero se les retacea recursos para evitar el efecto en los aliados. Entonces si el proyecto no
funciona ante la falta de apoyo o de recursos el funcionario es culpado, pero si el proyecto
avanza y los costos políticos son importantes, el funcionario es culpabilizado. Con frecuencia
encontramos funcionarios “quemados” por estos juegos que terminan refugiándose en un
cinismo ácido o un escepticismo desolador.

55
Saúl Ignacio Fuks

El desencuentro frecuente entre funcionarios y “trabajadores de


terreno” puede tener su origen en estas “situaciones sin salida” y, el fracaso
de los proyectos encuentra una causa de peso en estos dilemas, los
“operadores locales” son los que tienen los elementos para poder hacer los
ajustes en las distintas fases –gracias a su conocimiento del territorio - pero
para los funcionarios estas modificaciones podría ponerlos en conflicto con
los decisores y en una situación de extrema vulnerabilidad institucional al
ser responsables por “perder el control” de la situación.
En consecuencia, el atenerse a lo “objetivo” (datos, números, etc.) a lo
racional, a los resultados, metas y objetivos se encuentra concretado en la
necesidad de “indicadores” que deberían poder medirse en términos
factibles, esta forma de construir su relación con los “problemas” ofrece a
decisores y funcionarios un sentimiento de estabilidad y una ilusión de
control, aún a riesgo de vaciar el proyecto de sentido9.
En este marco, las Políticas Públicas descendentes deberán: 1) tener
indicadores o valores cuantitativos, que reflejen los costos de operación
(materiales, sueldos, consultoría, etc. reflejados en el presupuesto), así
como extrema claridad en los impactos buscados, los éxitos y logros que se
obtendrán; 2) una eficaz articulación de: a) la definición del problema; b)
la producción y selección de opciones de solución del problema; c) la
ejecución de lo programado con todas sus dificultades; d) el seguimiento y
la evaluación de los resultados; 3) una clara coordinación entre el proceso
de diseño de la PP y su implementación.
__________
9. Lo que explica lo amenazadora que puede ser la idea de proyectos ascendentes o participativos.

56
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

Estas características fuerzan a que, estas, sean propuestas


“descendentes”, ya que quienes realizan el “diagnóstico” de la situación y
la conveniencia o necesidad de intervenir y luego “bajan” el programa;
así, serán los equipos de expertos y operadores políticos quienes diseñen el
programa de intervención en un marco en el que todos los aspectos
deberán ser decididos a priori y desde “arriba”, dejando (en el mejor de
los casos) a los actores locales la aplicación de lo decidido.
Como ejemplo de este modelo comentaremos una de las
herramientas que más expresa este tipo de perspectiva. El Enfoque de
Marco Lógico10 es una herramienta desarrollada en 1969 para la
planificación de proyectos orientada por los objetivos. Actualmente,
la gran mayoría de agencias internacionales de cooperación, entidades
públicas y privadas, han adoptado un conjunto de herramientas de diseño
y gestión de proyectos basadas en la metodología del Enfoque del Marco
Lógico (EML). El EML permite identificar y planificar proyectos en
función a los objetivos a alcanzar, donde se destaca la necesidad de la
participación de los grupos de beneficiarios, impulsando la
comunicación entre todas las partes interesadas. A nivel metodológico, el
EML permite sistematizar y ordenar de forma sencilla y coherente el
proceso que conduce desde la identificación de problemáticas concretas
hasta la formulación de propuestas específicas para solucionarlas.

Dimensiones, integración y tensiones


La primacía de la racionalidad en todas las etapas del proceso y la
mirada centrada en los objetivos son las guías centrales de la dimensión
racional/pragmática que, por esa lógica, se convierte en un complemento
ineludible para las otras dimensiones que colocan su atención en
otros aspectos de la complejidad. La estructura, organización y distancia
que aporta una mirada orientada a la eficacia y eficiencia complementa y
__________
10. http://www.fao.org/wairdocs/x5405s/x5405s1g.htm

57
Saúl Ignacio Fuks

suplementa aquellas otras miradas conectadas con afectos y relaciones, o


con aquellas otras centradas en los interrogantes acerca del “sentido” (o
falta de sentido) de las cosas.
En un diseño (ideal), que pretenda atender a las complejidades del
proceso, las diferentes dimensiones se articularán enriqueciéndose
mutuamente, ya sea a partir de relaciones de complementariedad, de la
regulación de las tensiones intrínsecas y/o flexibilizando las rigideces de
cada una de ellas. Cuando este tipo de articulación funciona, esto
producirá dinámicas llenas de tensiones, superposiciones y sinergias que
nutrirán la flexibilidad y adaptabilidad necesarias ante las cambiantes
condiciones internas y externas. El “todo” se organizará, entonces, como
un sistema complejo donde cada una de ellas puede funcionar como el
contexto organizador para las otras, creando los marcos de contención y
de amplificación necesarios para su evolución.
En ciertas circunstancias se hacen más visibles la importancia que
tienen estos funcionamientos integrados en la producción de proyectos
exitosos y sustentables. Un ejemplo de ello es el tipo de proyecto que surge
por la confluencia de los “intereses de terreno” (dinámicas ascendentes)
con la de los “intereses político-administrativos” (dinámicas descendentes).
En estos escenarios, el marco de encuentro posible de esos intereses
contrapuestos se sitúa en torno a la dimensión racional/pragmática
debido a que esa es la lógica excluyente con la que funciona la
administración del Estado y sus proyectos. A pesar de la predominancia de
la racionalidad administrativa como marco para la planificación de las
acciones, sin el aporte regulador de las otras dimensiones el proyecto se
convertirá en algo formal, vacío de sentido y sin posibilidades de
apropiación por parte de la población. Las otras dos dimensiones son
quienes pueden aportar el anclaje con la cultura local, tanto como la
necesaria conexión con las redes relacionales y los procesos de apropiación
basados en el “sentido” asignado a las acciones. En ese marco, es que estas
otras dimensiones complementarias se vuelven fundamentales tanto para
el éxito como para la sustentabilidad de la propuesta y funcionan como
soporte de toda la racionalidad de gestión pública.

58
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

Los proyectos llamados “descendentes” son aquellos sostenidos en la


racionalidad administrativa, la búsqueda de la eficiencia y eficacia
alcanzar los objetivos. Mencionábamos como sus principales desafíos se
centraban, por un lado, en la gestión de las tramas relacionales, sus
conflictos y tensiones y, por otro, en la falta de compromiso y de
apropiación por parte de los beneficiarios. Dentro la amplia gama de
posibles diseños de planificación, podemos encontrar - en el otro extremo -
a los proyectos “ascendentes” o “emergentes”, cuya principal característica
es la de su intención expresa de ser participativos e incorporar a los
involucrados en todas las etapas del proceso.
Los proyectos llamados “emergentes” o “ascendentes”, aquellos
surgidos a partir de inquietudes y necesidades de las comunidades,
presentan como característica distintiva que tienden a surgir y
concretizarse, más fácilmente, en los momentos críticos de la vida de un
territorio o en las tensiones y quiebres de los contextos socioeconómicos o
socioculturales que los contienen.
Estos esfuerzos colectivos orientados a superar una situación
insoportable o por alcanzar una utopía largamente soñada, emergen más
fluidamente cuando las regulaciones y estabilidades del sistema
burocrático, técnico y político son menos rígidas o no consiguen producir
respuestas creíbles y la presión social se hace inmanejable.
Es posible suponer, en cierto sentido, que esas turbulencias son las
circunstancias y momentos más fructíferos11 para el surgimiento de este
tipo de proceso colectivo, Sin embargo, y como sucede en general en los
procesos críticos, en esos intersticios no solo surgen las oportunidades sino
que, simultáneamente aparecen los riesgos debido tanto a la poderosa
irrupción del azar como a la presencia siempre riesgosa del descontrol.
En estos emprendimientos colectivos surgidos de la movilización de
las personas involucradas, en los que los “actores/autores” de la población
__________
11. La Teoría de Crisis elaborada inicialmente por Edgar Morin (1976), permite comprender las
complejas interacciones que se producen en las crisis y como surgen las oportunidades.

59
Saúl Ignacio Fuks

están en el centro del proceso, las dimensiones simbólica y relacional


ocupan -particularmente al inicio del proceso- un lugar vital, ya que son
las redes informales con su vitalidad y su capacidad de búsqueda de
alternativas las que aportan las energías necesarias para emprender esa
aventura. La energía y vitalidad que surgen de la vida emocional, de las
relaciones, de los sueños y utopías son las impulsan los intensos
intercambios, encuentros, la solidaridad y los aportes al bien común que
hacen posible las complejas articulaciones necesarias para poner en
marcha un proyecto de estas características. No obstante, esas mismas
energías creativas, si no son adecuadamente encauzadas a través de un
marco de racionalidad y pragmatismo que las contenga y oriente, se
agotarán en un agitar de banderas, en corazones inflamados y en la
decepción posterior al no poder concretar los objetivos.

Algunos posibles desafíos de los programas y proyectos


relacionados con el consumo de sustancias.
Las problemáticas ligadas al consumo de sustancias, como la mayoría
de las problemáticas complejas de salud pública, implica atravesar
decisiones epistemológicas, éticas, políticas, estratégicas tanto como
técnicas, respecto al tipo de enfoque que se adoptará. El Estado y los
equipos profesionales, cuando se encuentran con estas problemáticas, se
encuentran permanentemente confrontados con cuestiones claves que
desafían los modos habituales de hacer las cosas.

Los objetivos y estrategias del programa serán definidos en qué nivel


de la estructura?; Cuanto control, cuanta responsabilidad, cuanto
protagonismo y cuanta presencia ofrecerán (aceptarán?) a los involucrados
en la problemática?; Quienes, cuándo y cómo se evaluaran los resultados y
que capacidad de corrección tendrán los participantes?; Que tipos de
desafíos de considerarán prioritarios y cómo se responderá?; Que tipos y
diseños de capacitación/entrenamiento se considerará imprescindible
para los equipos de trabajo?; De que modos se pretende asegurar la

60
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

sustentabilidad del proyecto?; Que destino tendrán los “productos” del


proyecto?... entre otros.
El tipo de complejidad que proponen los proyectos de Salud Pública,
cuando pretenden incluir la participación de los involucrados, es descrito
por María Fátima Oliver-Sudbrack:
É preciso desenvolver no ambiente escolar um projeto pedagógico
que abranja direitos, deveres e virtudes. Nesse projeto, as regras da
vivência em grupo devem ser compartilhadas no exercício pleno da
cidadania escolar, que prevê contratos de convivência entre os
professores e os alunos, nas suas diferentes posições, papéis e
competências. No modelo da educação para a saúde, o resgate da
autoridade dos pais e dos professores constitui uma estratégia de
prevenção do uso de drogas, pois a criança e o adolescente estarão
mais preparados para resolver as diferentes situações com uma
postura reflexiva e de busca de apoio junto aos adultos nos momentos
em que sentirem necessidade. (Sudbrack, Conceição, & Costa, 2012,
p. 235)

La transición desde perspectivas que consideraban a las temáticas del


consumo de sustancias como producto de problemáticas exclusivamente
individuales hasta llegar a considerarlas -tomando en cuenta toda su
complejidad- como emergentes de procesos intersubjetivos construidos
socialmente, supuso un cambio epistemológico que puso en cuestión los
fundamentos con los que se han abordado estas problemáticas.
Este giro implicó considerar a las familias y las Instituciones de la
sociedad como importante parte de la problemática y también de las
soluciones. En consecuencia, un salto cualitativo que también afectó
radicalmente el modo de construir el “perfil” de los operadores que
trabajarán en el campo, en tanto supuso de dejar de considerar –a quien
interviene- como un “curador de enfermedades” y comenzar a
considerarlo como un “facilitador de procesos de cambio”. Esta transición
ha sido crítica para los operadores ya que, estos cambios, implicaron la

61
Saúl Ignacio Fuks

redefinición de la posición asumida ante la problemática a abordar tanto


como ante su identidad profesional, los “juegos” institucionales y –
especialmente- ante el “sentido” de la tarea.
Un aspecto de las estrategias por medio de las cuales los equipos
mantienen vivo su compromiso y evitan el bourn-out, es la investigación de
nuevas formas de trabajo y nuevas alternativas para el mejoramiento de su
desempeño profesional. Sin embargo, estamos haciendo referencia a un
tipo de cambio de perspectiva que -a diferencia de los cambios producidos
mediante la introducción de nuevas estrategias terapéuticas, nuevas
técnicas o nuevo abordajes- no soporta –simplemente- “sumar técnicas”
sino que exige cambios en la manera de ver las cosas, comenzando por su
propio rol y el sentido de la tarea.
La tan repetida fórmula de “cuidar al cuidador” –en este nuevo
cuadro de situación- ya no supone los habituales modos de atender al
stress de la tarea, sino que demanda diseños de actividades de
capacitación en los que el operador pueda transitar el camino necesario
para transformarse a sí mismo en su mejor herramienta. En este tipo de
diseños, la facilitación sistémica de procesos colectivos podrá aportar su
reconocida capacidad de acceder, alumbrar y potenciar la inteligencia
colectiva y los saberes reflexivos.

A modo de cierre (provisorio)


La propuesta del “modelo”12 que presentamos en este escrito dista
mucho de intentar proponer “una receta” o un esquema a seguir. Creemos
que la intención se encuentra más cercana a un esbozo de modelización
sistémica que trata de describir algunos aspectos de las
complejasrelaciones que se tejen en las dinámicas sociales y en los procesos
de cambio.

__________
12. Hemos usado la palabra “modelo” en este escrito, alejándonos de la noción de “ideal” y –en
cambio- haciendo referencia a tradición sistémica de “modelizar” problemáticas complejas.

62
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

En este trabajo, la propuesta se aproxima más - como metáfora - a un


GPS13 que a un “mapa”14. Este GPS (idealmente) es algo que permitiría
correlacionar el punto en el que se encuentre el “observador”15 con la
lectura de indicadores que permitan construir “versiones” de las
dinámicas sociales que sean “viables” y encajen tanto con los recursos
disponibles como con los desafíos presentes en los territorios.
Para concluir con esta somera descripción de las características y
funcionamiento del modelo de las “tres dimensiones”, quisiéramos hacer
referencia a modos de trabajo que podrían tener algún tipo de coherencia
con lo que estamos proponiendo, ya que no todos los “haceres”
armonizan con las lógicas y dinámicas participativas.
La FSPC (Facilitación Sistémica de Procesos Colectivos) (Fuks et al,
2014) es una perspectiva que intenta abordar la complejidad de los
procesos colectivos desde un enfoque apreciativo basado en la
recuperación, validación y legitimación de los saberes y experiencias
locales. Este tipo de enfoque intenta producir diseños de trabajo
(capacitación/acción) que tomen en cuenta tanto las racionalidades
pragmáticas como los tejidos relacionales y su riqueza afectiva,
conectándolos con las vicisitudes de los complejos significados que
impregnan las acciones.
Uno de los “nudos” más desafiantes y donde se evidencian las
dificultades que surgen de este tipo de enfoque, se organiza debido a que
los “saberes” no son abstracciones o tecnologías asépticas y no están
desconectados de la forma en que se construyan los objetivos y metas de
la propuesta, de los medios técnicos que se propongan y de los perfiles de
los operadores (sean estos profesionales o de “terreno”).

__________
13. Que organiza el mapeo a partir de la detección de la ubicación del observador.
14. Que tiene prefijada una demarcación y pretende ser un reflejo de la “realidad” y es construido de
un modo tal que el lector del mapa queda por fuera de la “representación” del territorio.
15. O quien pretende intervenir en o describir las complejidades de una situación.

63
Saúl Ignacio Fuks

Un sistema excesivamente protocolizado (como en la mayoría de los


programas “descendentes”) tiende a proponer un operador “obediente”,
(que siga bajo cualquier circunstancia las indicaciones) lo cual acaba
produciendo un escenario altamente paradojal: se pretende conectar con
la población con quien se trabaja y con sus particularidades, pero se fuerza
el seguimiento de caminos trazados previamente en la planificación y
desestimando así la co-construcción del proceso.
Este panorama que describimos insinúa uno de los interrogantes
centrales en este proceso: ¿qué tipo de formación podría dar cuenta de
tanta complejidad?

Referencias
Bateson, G. (1998). Pasos hacia una Ecología de la Mente. Buenos Aires:
Lumen.
Davies, B. & Harré R. (1990). “Positioning: The Discursive Production of
Selves”. Journal for the Theory of Social Behaviour, 20(1), 43-63.
Duruz, L. (2014, novembro).  Les cercles de conversation : un processus de
délibération réflexive par résonance.  8es, Rencontres de l’Institut Renaudot
de Santé Communautaire. Paris, 21/22 novembre.
Fuks, S. I. (2004). Craftsmanship of Contexts an as unfinished story of my
connection with CMM. KCC. Human Systems, 15, 101-114
Fuks, S. I., & Vidal Rosas, E. (2008). “La Facilitación Sistémica de
Procesos Colectivos”. Sistemas Familiares, 25(2), 21-34
Harari, Y. N. (2014) Sapiens. De animales a dioses: Una breve historia de la
humanidad. Buenos Aires: Debate.
Morin, E. (1976). Pour une Crisiologie. Communications, 25, 149-163.

64
Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

Schön, D. A. (1983). The reflective practitioner: how professionals think in action.


New York: Basic Books.
Sudbrack, M. F., Conceição, M. I. G., & Costa, L. F. (Eds.) (2012). Curso de
Prevenção do uso de Drogas para Educadores de Escolas Públicas (5a ed).
Brasília: Atual.
Velásquez Gavilanes R. (2009). Hacia una nueva definición del concepto
política pública”. Desafíos, 20, 149-187.

65
66
CAPÍTULO 1.2

Un antropólogo con sus drogas


entrevista a Oriol Romaní

Mónica Franch y Regina Medeiros

A Oriol Romaní le sobran las presentaciones. Doctor (Ph.D) en


Historia (Antropología Cultural) por la Universidad de Barcelona en 1982,
y catedrático de Antropología Social en el Departamento de Antropología,
Filosofía y Trabajo Social de la Universidad Rovira i Virgili (URV), en
Tarragona, su nombre es internacionalmente reconocido gracias a su
pionera labor en la antropología de las drogas en el Estado Español. Pero,
como él mismo nos cuenta en la entrevista que aquí transcribimos, la suya
no es una carrera estrictamente o, mejor dicho, únicamente académica.
Oriol Romaní se ha destacado, también, por su participación en el
movimiento de usuarios de cannabis, y por su contribución en las políticas
de reducción de daños en ámbito local e internacional, sobretodo en
América Latina. La historia del Grup IGIA, que recuperamos en esta
entrevista, es testigo de la manera como la antropología de las drogas fue
abriéndose camino, siempre a caballo entre las investigaciones “puras” y
“aplicadas”.
Al margen de su aporte académico a los estudios sobre drogas, Oriol
Romaní figura entre los precursores de las investigaciones sobre juventud
en España y ha sido una figura clave en el campo de la antropología
médica o de la salud realizada en Cataluña. Forma parte, junto a Josep

67
Mónica Franch y Regina Medeiros

Comelles y varios otros antropólogos, del grupo que creó el Máster


Interuniversitario en Antropología Médica y Salud Global
(URV-UB-CSIC). Es, además, miembro del Consejo Directivo del Máster
Interuniversitario Juventud y Sociedad. También se le reconoce por su
aporte metodológico, siendo uno de los pioneros en el uso de las historias
de vida en la antropología realizada en el Estado Español. Su obra refleja
esta diversidad temática con un considerable número de libros, capítulos y
artículos publicados, entre los que destacamos: A tumba abierta.
Autobiografia de un grifota1; Las drogas. Sueños y razones2; Jóvenes y
riesgos ¿Unas relaciones ineludibles?3; Etnografía, metodologías
cualitativas y investigación en salud: un debate abierto (coordinador) y
Jóvenes, desigualdades y salud. Vulnerabilidad y políticas públicas
(coordinador, con Lina Casadó4).
La idea de recuperar su trayectoria en el campo de las drogas en una
entrevista es resultado de algunas felices coincidencias que han llevado al
cruce de caminos entre los tres personajes de este relato. La colaboración
entre Regina y Oriol tiene larga historia, remontándose a los tiempos en
que Regina hizo sus estudios de doctorado, bajo la supervisión de Oriol,
en la URV. Fue en esa época, igualmente, en la que las dos antropólogas se
conocieron: Regina trabajaba en Sida Studi y estaba instalada con su
familia en Barcelona, y Mónica se preparaba para viajar a Brasil, en lo
que imaginaba sería una corta estancia realizando voluntariado en una
organización no gubernamental de Recife. Cuenta la leyenda que los tres
coincidieron en una cena en casa de Regina, en Barcelona, de la que
guardan, cómo no, recuerdos distintos y no coincidentes. Regina volvería
a Brasil al término de su tesis, reintegrándose a su puesto en la
PUC-Minas y Mónica terminaría, entre idas y vueltas, sumándose al
__________
1. Publicada por Anagrama, Barcelona, con dos ediciones (1983 y 1986) y por Los libros de Itaca,
Madrid, 2015. Traducido al portugués con el título De peito aberto – Puxando fumo, levando a vida (São
Paulo, ed. Brasiliense, 1985).
2. Barcelona: Editora Ariel, 2 ed., 1999 y 2004.
3. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2010.
4. Tarragona: Publicacions URV, Col.lecció Antropologia Mèdica, n. 13, 2013.

68
Un antropólogo con sus drogas, entrevista a Oriol Romaní

cuadro docente de la Universidade Federal de Paraíba. El reencuentro


presencial de los tres antropólogos ocurrió en septiembre de 2016, en la
ocasión del II Congreso Internacional de Antropología de la AIBR
(Antropólogos Iberoamericanos en Red), momento en el que la idea de
hacer esta entrevista ganó forma.
El texto que presentamos aquí es la edición de una de las partes de la
entrevista, que tuvo lugar el día 12 de diciembre de 2016, en el elegante
despacho de Oriol Romaní, situado en la Avenida de la Gran Vía de
Barcelona. Fue realizada por Mónica Franch, que disfrutaba de los
últimos días de su año sabático5, siguiendo una guía de preguntas
elaborada con Regina Medeiros. Otros aspectos también discutidos en la
entrevista, relacionados a la institucionalización del campo de la
Antropología Médica en la URV de Tarragona, serán objeto de posterior
publicación.

La entrevista
Queríamos saber, en primer lugar, cómo la antropología y el tema drogas
aparecieron en tu trayectoria intelectual.
A la antropología llegué cuando estudiaba en los años setenta. Inicié
la carrera de Filosofía y Letras, que así se llamaba entonces, en la
Universidad de Barcelona. En aquel momento, en los años 73, 74, se
puede decir que las drogas estaban en el ambiente. La cannabis formaba
parte de la cultura de una cierta juventud, muchos universitarios, y los
fumetas andábamos todos por ahí. Yo, además, estaba haciendo la
práctica en el Centro de Estudios Etnológicos, en el Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, y allí tenían una colección de cronistas de
Indias muy interesante. Entonces, como tesis de final de carrera, se me
ocurrió juntar esas dos experiencias. Por un lado, hice una investigación
__________
5. Estancia post-doctoral en la Universitat Rovira i Virgili (URV/Tarragona), bajo supervisión de
Oriol Romaní, y con el apoyo financiero de Capes – Comissão de Aperfeiçoamento e Pesquisa de
Ensino Superior.

69
Mónica Franch y Regina Medeiros

más vivencial de la cannabis, básicamente el hachís, en Barcelona, con


los amigos y conocidos; ahí hice mis primeras historias de vida. Y luego,
como contraste, hice algo completamente distinto: una visión etnohistórica
de la coca en Perú, utilizando los fondos del Centro de Etnología
Peninsular. O sea, fueron dos tipos de acercamiento al tema drogas, a
partir de dos drogas y de dos contextos distintos6.
Después de terminar la tesina, no quería continuar trabajando con el
mismo tema. Lo que pasa es que justo en aquel momento (yo hice la tesina
en el 1978, por lo tanto, ya nos situamos en inicios de los ochenta) la
cuestión de las drogas se fue complicando y, de un punto de vista
sociológico y cultural, pasó a tener muchísimo interés. Además, conseguí
una plaza de profesor ayudante – que era lo equivalente a las becas de
tesis hoy en día –, así que decidí concentrarme en lo que ya había
empezado. Después, claro, la cosa se fue ampliando.
Llama la atención el hecho de que empezaras haciendo trabajo de
campo con una realidad muy próxima, lo que después se llamó
antropología “at home”.
Hacer antropología “at home” (que nosotros, en aquel momento, no
llamábamos así) fue interesante para mí principalmente por dos motivos.
Por un lado, me permitió desarrollar los conceptos teóricos en un campo
próximo, por otro lado, me permitía continuar algo que llevaba haciendo
desde las comisiones de estudiantes en el bachillerato, que era el activismo.
O sea, juntar la obligación con la devoción. Esto porque el tema drogas se
fue convirtiendo en un problema social de primer orden, algo que no
había previsto cuando empecé. Mi tesis de doctorado era un estudio de
un grupo cultural, los hippies catalanes, por así decirlo, que nadie había
estudiado todavía. Era el final del franquismo. Ya se había hecho estudios
del movimiento obrero, de los estudiantes, de muchos grupos, pero no

__________
6. Un resumen de la tesina se publicó posteriormente en la revista del Departamento de
Antropología de la UB por aquel entonces: Romaní, Oriol. Droga i “consensus social”,
Comentaris d'antropologia cultural, nº 1: 20-40 Barcelona: D.A.C., 1979.

70
Un antropólogo con sus drogas, entrevista a Oriol Romaní

había ninguno de contracultura, que era lo que a mí me interesaba7. Más


tarde, cuando la cosa se fue complicando, me pareció que el tema drogas
era interesante porque funcionaba como una lente para entender lo que
estaba pasando en la sociedad. Las complicaciones que iba adquiriendo el
asunto estaban relacionadas con las transformaciones sociales más
generales. Es un enfoque que siempre me ha parecido muy útil: las drogas
como el fenómeno social total de Marcel Mauss, que permite explicarte
muchos aspectos de la sociedad e incluso pensar cosas a nivel teórico más
general. Desde las drogas, por ejemplo, podemos discutir lo que antes
llamábamos las relaciones entre la naturaleza y la cultura, que ahora ya no
están tan claras. Hay aportaciones desde los estudios de las drogas que
problematizan, precisamente, grandes temas de la antropología.
A mediados de los años ochenta, realizaste un estudio piloto en el
Barrio Chino de Barcelona, con las poblaciones más marginales que
usaban heroína, los “yonkis”.

¿Cómo fue el diseño de esa investigación?


En esa época, a mediados de los ochenta, en Barcelona había muertos
debido a lo que entonces se llamaba sobredosis de heroína. Tanto el
Ayuntamiento como la Generalitat – eso ocurrió en pleno contexto de
institucionalización democrática – estaban preocupados con la situación y
habían empezado a tomar algunas medidas. Por aquel entonces, nosotros
ya teníamos una cierta experiencia, habíamos fundado el Grup IGIA en
1984. Nos llamaron desde el Ayuntamiento y nos dijeron: “Tenemos un
problema. Tenemos tantos muertos al año. Desde la Generalitat se han
puesto las medidas adecuadas. Hay tantas camas nuevas para el primer
tratamiento, todo según los estándares internacionales y aquí no viene
nadie. La gente continúa muriéndose en la calle. ¿Qué está pasando?”
Querían que les diera una respuesta en un mes, pero cualquiera que

__________
7. Romaní Oriol. Droga i subcultura. Una història cultural del “haix” a Barcelona, 1960-1980.
Barcelona, Edicions Universitat de Barcelona, 1983.

71
Mónica Franch y Regina Medeiros

conociera este mundo y la metodología antropológica sabría que eso era


imposible. Teníamos que hacer un estudio antropológico previo.

¿Hasta aquel momento nunca habías trabajado con heroína? ¿Sólo con hachís?
Bueno, de hecho fue el primer trabajo que hice con la heroína, fue mi
entrada, digamos que a fondo, en este mundo. Antes había hecho un
pequeño trabajo sobre el tratamiento a jóvenes drogadictos en París, por
encargo del IRES8, una proto ONG de Barcelona, en el que ya había
entrado en contacto con jóvenes que no eran fumetas. También
habíaescrito, en coautoría con Jaime Funes, “Dejar la heroína9”, que era
una serie de historias de vida con personas que habían parado de usar
heroína. Pero sin duda aquel proyecto fue mi primer trabajo en
profundidad sobre el terreno. En vez de un mes, les propuse un estudio de
un año: los primeros siete meses haciendo una etnografía básica,
conociendo el terreno, y los últimos cinco meses para pensar un
instrumento que pudiese llegar a la gente. El resultado fue “Las andanzas
del tío Elvis”, que hicimos con Miguel Gallardo, uno de los dibujantes del
Víbora10, gente del ambiente en el momento. Partiendo de las historias que
había conocido en el terreno, creamos un personaje, el tío Elvis, que se iba
enfrentando a diversas situaciones. Al final de la historia, incluíamos una serie
de direcciones y teléfonos que podrían ser útiles en situaciones como una
sobredosis o quedarse colgado en la calle. Fue un trabajo en el que
propusimos por primera vez recomendaciones de reducción de daños para
este colectivo específico.

Ya se hablaba de reducción de daño internacionalmente y aquí, en España?


En otros países sí pero aquí casi no se hablaba. Después me enteré
__________
8. El Instituto de Reinserción Social de Barcelona, que todavía existe transformado en Fundación:
www.fundacioires.org
9. Funes, Jaime; Romaní, Oriol. Dejar la heroína. Madrid: Dirección General de Acción Social –
Cruz Roja Española, 1986.
10. El Víbora fue una revista de historietas española que circuló entre los años 1979 y 2005 y que
hizo parte de lo que se denominó el boom del cómic adulto español. Aglutinó, en sus orígenes,
artistas que provenían de las publicaciones underground de los año setenta.

72
Un antropólogo con sus drogas, entrevista a Oriol Romaní

que, en la misma época, hubo una experiencia en Bilbao, con un


dispositivo más permanente, que tardó lo suyo en materializarse en otros
sitios. Este trabajo nuestro tuvo una secuela después, que fue cuando
recomendamos que se abriera lo que entonces se llamaba un centro de
baja exigencia. Este fue un elemento, junto con otros, que ayudó al
surgimiento del SAPS – Servicio de Atención Psicológica y Social de la
Cruz Roja Española, refugio que funcionaba, aproximadamente, de las 7
de la tarde a las 3 de la madrugada. Un sitio donde la gente que estaba en
la calle podía ir, comer algo caliente, lavarse, hablar. En el SAPS también
había servicios médicos, un asistente social, un abogado. El modelo lo
sacamos de la literatura internacional, pero pensamos que aquí también
podría funcionar. En aquel momento aprendí una cosa, que cuando
haces investigación aplicada, haces política con la ¿ investigación. O
sea, que además de hacer la investigación, hay que pensar estrategias para
que las recomendaciones no se queden en el papel. Por ejemplo, en aquel
momento había un psicólogo que estaba trabajando también con
prostitución en el Barrio Chino y, a la hora de hacer nuestras
recomendaciones, nos pusimos de acuerdo en algunas cuestiones. Lo que
quiero decir es que hay que pensar en estrategias políticas para hacer
viable lo que uno ha visto en la investigación a pesar de que quien decide,
desde luego, es la instancia política.

¿Qué destino tuvo el SAPS?


El SAPS fue una institución que se consolidó. Precisamente ahora
que ha cumplido los 25 años entrará a formar parte, como dispositivo de
reducción de daños, de un centro de atención y de seguimiento para el
tratamiento de drogas. La última directora del SAPS durante los últimos
ocho años, más o menos, ha sido Olga Díaz, una trabajadora social y
antropóloga, que fue una alumna mía, una discípula de la URV en
Tarragona. Y el primer director fue Miguel de Andrés, un médico que en
seguida entró en el Grup IGIA, y que había hecho su tesis sobre unos
dispositivos de reducción de daños en Ginebra.

73
Mónica Franch y Regina Medeiros

Muy bien. Pues vamos a hablar un poco del Grup IGIA. ¿Cuándo surge y con qué
intención?
El Grup IGIA se formó a mediados de los ochenta. La conferencia
inaugural la hicimos en octubre del 1984, con el entonces Fiscal
Anti-Drogas Jiménez Villarejo, en Els Quatre Gats, un bar modernista de
Barcelona. A lo largo de los años, se fueron juntando al grupo médicos,
psicólogos, trabajadores sociales, algún jurista y algún sociólogo o
antropólogo como yo. Al principio debíamos ser 15 o 20, en épocas
álgidas llegamos a ser 60 socios, y luego fuimos disminuyendo hasta el
2012, cuando decidimos cerrarlo, aunque algunas investigaciones y
programas finalizaron en 2014. En su origen, IGIA fue el fruto de
encuentros de gente con las mismas preocupaciones, con las mismas
críticas a lo que se venía haciendo en el tema drogas. Lo más interesante
era que unos éramos más de la academia y otros venían de la asistencia
directa. Llegó un momento que en IGIA se planteó convertirse en una
empresa de servicios. Algunas personas salieron del grupo y formaron
Àmbit Prevenció11, que llegó a ser una empresa muy importante del
tercer sector. La mayoría de nosotros, sin embargo, teníamos una visión
más crítica acerca de este cambio, no queríamos caminar en esa dirección.
Es lo que, a grande rasgos, explica Nikolas Rose, al hablar de las políticas
del neoliberalismo y de las nuevas formas de gestionar las crisis en él. Rose
viene a decir que esas crisis convierten a los críticos en prestadores de
servicios y, desde ese nuevo lugar, te sometes a una serie de reglas y
condiciones que, teóricamente, no nos afectan tanto en la academia
(otra cosa es que ahí también haya gente que se deja comprar...). Claro
que también nosotros dependemos de subvenciones para hacer
proyectos, pero podemos mantener nuestra visión crítica de una forma
más libre. A la larga, por unas cosas y otras, no supimos o no pudimos
hacer la transformación de mantenernos como asociación independiente,
pero profesionalizarnos como entidad.
__________
11. La Fundació Àmbit Prevenció fue fundada en 1993. Trabaja junto a poblaciones en riesgo de
exclusión social y adopta la perspectiva de reducción de daños en todas sus acciones.
http://fambitprevencio.org/

74
Un antropólogo con sus drogas, entrevista a Oriol Romaní

¿Qué formato teníais? ¿ Era un grupo? ¿Qué era?


El formato era de grupo, con una junta directiva. Trabajábamos
siempre por proyectos12. El grupo se dividía para participar en las
reuniones y en los proyectos.

¿Proyectos de investigación?
De investigación o de investigación con una parte de intervención.
Por ejemplo, uno de los últimos proyectos fue en relación a adolescentes,
emigrantes y alcohol. Hacíamos una investigación, siempre de tipo
etnográfico, y luego de ahí sacábamos algún tipo de producto, un folleto
para trabajar con los padres, con los profesionales, o algo igualmente
práctico.
También hacíamos evaluaciones de programas que se estaban
desarrollando en el SAPS o en otros servicios. A parte de los proyectos,
periódicamente hacíamos sesiones de discusión en torno a temas
distintos. La gente aportaba conocimiento teórico, conocimiento
bibliográfico, conocimiento de investigación y de la práctica clínica. Juntar
experiencias distintas estaba muy bien, y nos permitió ciertas
intervenciones indirectas. Recuerdo que a finales de los ochenta, en Nou
Barris13, explotó el problema de la heroína. En las asociaciones de
vecinos se creó una comisión de drogas y, gracias a las discusiones
que realizamos allí, pudimos influir para que los vecinos acabaran
pidiendo un centro de atención de drogas allí mismo. En general, la gente
no quiere ese tipo de centro en sus barrios, no quiere saber nada del
problema, hay una reacción social en contra. Pero en aquel momento, los
__________
12. Para más informaciones sobre el Grup IGIA, ver: Romaní, Oriol. La experiencia del Grup Igia:
Etnografía, educación para la salud, comunicación (1984-2014). In: Josep M. Comelles,
/Enrique Perdiguero-Gil, (coords.). Educación, comunicación y salud. Perspectivas desde las
Ciencias Humanas y Sociales. Tarragona: Publicaciones URV, 2017, pp. 139-158.
13. Distrito de Barcelona, situado en el extremo norte de la ciudad. Conocido, sobre todo en las
décadas de ochenta y noventa, por sus problemas sociales pero también por la existencia de un
activo movimiento de vecinos y por su efervescencia cultural.

75
Mónica Franch y Regina Medeiros

vecinos entendieron que el sitio más adecuado para que hubiera el centro
era donde estaba el problema. En el barrio.
La primera directora de ese centro durante muchos años fue Núria
Magrí, una médico de IGIA. De hecho, a finales de los noventa, de los
diez directores o directoras de los centros de atención y tratamiento en
Barcelona, seis o siete eran de IGIA. Eso se notaba en un cambio de
enfoque en los programas que estaban aplicando. De alguna manera,
IGIA forma parte de la influencia en lo que se llamó el modelo Barcelona
de intervención en el campo de las drogas. Planes de drogas que bastante
pronto se pusieron en sintonía con lo que sería la reducción de daños.
Aunque al principio había esa visión más rígida, que consideraba la droga
como un mal moral, y después como una dolencia psico-física, en seguida
se desarrolló una línea de trabajos epidemiológicos y, juntando con la
experiencia más etnográfica que IGIA traía, se pudo ir orientando hacia
un plan de drogas bastante sensato.

Entonces se pudo conseguir un nivel influencia local.


Bastante notable, sí

¿Y fuera del nivel local?


Al nivel de Cataluña, yo creo que también. A nivel estatal, hubo una
época en que nos llamaban de muchos sitios de España para hacer
charlas, incluso hicimos investigaciones en Madrid, sobretodo a mediados
de los noventa, que es cuando se empezó a desarrollar la política de
reducción de daños a nivel nacional. Porque en España, por problemas
puramente políticos, las políticas de reducción de daños fueron bastante
tardías con respecto a las necesidades que había. Curiosamente, datan de
mediados de los noventa, casi bajo el gobierno del PP14. ¿Por qué no las
__________
14. El Partido Popular (PP), antigua Alianza Popular, es el principal partido de derecha en el Estado
Español. Desde la transición democrática, ha alternado gobierno con el Partido Socialista Obrero
Español (PSOE).

76
Un antropólogo con sus drogas, entrevista a Oriol Romaní

iniciaron los socialistas? Yo creo que ahí pasó un poco lo que se puede
observar con la reconversión industrial o el servicio militar obligatorio.
¿Quién hizo la reconversión industrial? Los socialistas, porque si lo
intentan en aquel momento los de derecha, se habría quemado España.
Con los socialistas, quemó una parte de España pero nos hicieron tragar la
reconversión industrial. ¿Qué pasó con la supresión del servicio militar
obligatorio? Lo quitó el PP porque si lo intenta hacer el PSOE, los otros le
hunden el país. En el tema de la reducción de daños, en las primeras
medidas que se intentaron implementar, la derecha armó un escándalo.
Pero más tarde, sobretodo cuando vino el Sida, vieron que algo había que
hacer. Como eran ellos los que estaban en el poder, ya no les pareció tan
malo. Es una perversión, por así decirlo, del bipartidismo.

Has hablado del Sida y justamente te quería preguntar, ya que tú tenías todo este
contacto de campo con el mundo de la heroína, cómo se vivió la irrupción del
Sida aquí.
El Sida afectó varios espacios pero yo me acuerdo, básicamente, de dos: el
del trabajo de campo, cuando vas viendo que la gente empieza a estar
mal
y se oye hablar de una epidemia; y en el ámbito de los amigos y
conocidos. Como fue una cosa transversal, no sólo ligada al tema de la
heroína sino que también tenía mucho que ver con el mundo de las
relaciones homosexuales, no sólo los “yonkis”, sino también los amigos
que estaban en ese otro mundo fueron los primeros a tener problemas.
Nuestro sentimiento de base, después de tantos años no sé si lo
recordaré bien, fue una cierta sensación de desconcierto, y luego
de abatimiento. Posteriormente, por suerte, el desconcierto se reorientó
hacia un tipo de propuestas mas pragmáticas. Creo que, en ese sentido,
se puede aplicar aquello de que “no hay mal que por bien no venga”.
Estoy convencido de que la aparición del Sida sirvió para desarrollar todas
las políticas de reducción de daños de manera más intensa y sistemática.
Siempre hubo un problema, sin embargo, en todo este ámbito, porque no
fueron políticas llevadas a cabo directamente por el Estado. Se hicieron a

77
Mónica Franch y Regina Medeiros

través de ONG, o sea, que había la posibilidad de lavarse las manos si las
cosas no salían bien: “la culpa es de este grupo que hemos contratado…”
A la larga, este tipo de acción intermediada siempre por las ONG ha
servido para no desarrollar un sector profesional público, sino para
mantener siempre profesionales marginales para sectores marginales. En
todos los otros aspectos relacionados con las políticas de drogas se ha
desarrollado un sector profesional, pero en todo lo que tiene que ver con
reducción de daños, éste ha sido mucho menor. Han sido profesionales
más sujetos a contrato temporales, que hoy son comunes a todos, pero que
hace 20 años no lo eran.

El Grup IGIA fue una propuesta innovadora y tiene una historia interesante que
incluía investigadores latinoamericanos y la realización de las CLAT –
Conferencias Latinas de Reducción de Daños en Drogas. ¿Nos puedes contar
algo de esa historia?
A mediados de los noventa, ganamos un proyecto europeo de
formación de formadores de reducción de daños en el Cono Sur de
Latinoamérica. Durante varios meses, hicimos una formación por donde
pasó mucha gente que influyó posteriormente en la renovación de las
políticas en sus países, entre ellos profesionales de Chile, Uruguay y de
Argentina, y menos de Paraguay. Este fue el primer paso. Luego se hizo un
programa de visitas a centros de reducción de daños por toda Europa con
la gente de Latinoamérica que formó parte de esta formación. Fue
espectacular, porque ponías en contacto personas con experiencias
completamente diferentes.
A partir de estos contactos, se abrieron las Conferencias Latinas de
Reducción de Daños en Drogas (CLAT). Se hicieron cinco a lo largo de
diez años, una cada dos años. Eran latinas porque de Europa venía
básicamente gente de España, de Portugal, de Italia, Francia, Suiza,
minoritariamente algunos holandeses, alemanes también, además de los
compañeros de Latinoamérica. En las últimas, también pasaron a
participar países del Norte de África y del Este Europeo. Las CLAT eran

78
Un antropólogo con sus drogas, entrevista a Oriol Romaní

realmente un núcleo de irradiación de estos planteamientos. Todas las


conferencias reunían de setecientas a mil personas de estas zonas, con
representaciones institucionales dependiendo de los casos. Además,
siempre intentamos cuidar las presentaciones de teóricos sólidos, como
Robert Castel, Loïc Wacquant, por ejemplo.
Hay que señalar que en el origen de la CLAT estaba también una
cierta necesidad de diferenciarse del IHRA15, una organización de origen
y carácter anglosajón muy “del Norte”, tanto por la adaptación de los
problemas de la reducción de daños a los contextos latinos, más “del Sur”,
como por la orientación un tanto liberal que nos parecía que
predominaba allí, en contraste con la orientación más comunitaria, de
vocación pública, que pretendíamos difundir con la CLAT.
La primera Conferencia se realizó en Barcelona, la segunda en
Perpiñán, la tercera en L’Hospitalet de Llobregat, la cuarta en Milán y la
quinta en Oporto. Nos quedamos en el momento de saltar a Latinoamérica,
porque después de Oporto, que fue en 2009, había la intención de que la
CLAT la asumieran los brasileños, en 2011. Eso no llegó a pasar, imagino
que en parte por las dificultades de organizar un evento de ese calibre, pero
también porque aquí en Europa estábamos en plena crisis y todo se puso
más difícil.
Agregar a los latinoamericanos desde Europa era, como mínimo,
osado. Siendo un campo tan complicado como el de las drogas,
frecuentemente se está a merced de las presiones y de los juegos políticos,
algo que has mencionado anteriormente en el plano nacional. Pero en la
práctica, en el cotidiano del Grup IGIA, ¿cómo sustentar una idea tan
atrevida? ¿Qué ajustes o encajes son necesarios, entre condiciones de
realización e ideales? ¿Qué pasó, a fin de cuentas, con el proyecto?
Nosotros, por un lado, morimos de éxito, en el sentido de que la
reducción de daños pasó a ser patrimonio común, base de políticas oficiales.
__________
15. International Harm Reduction Association, organización internacional de promoción de la
reducción de daños: http://www.worldcoalition.org/International-Harm-Reduction-Association-
IHRA.html

79
Mónica Franch y Regina Medeiros

De hecho, a mí me habría gustado continuar con IGIA para la fase


siguiente, enfocando cambios de políticas más macro, no sólo
socio-sanitarias, sino culturales. Yo creo que IGIA jugó un importante
papel en la puesta en marcha de políticas de reducción de daños, con una
capacidad de influencia en Europa del Sur y Latinoamérica. Por otro lado,
no conseguimos sobrevivir, y en parte tampoco quisimos hacerlo a
cualquier precio. Desde el principio, en la administración nos llamaron los
Pepitos Grillos, aquella incómoda voz disonante. O sea, que si quieres
tener una postura crítica, o eres capaz de auto-financiarte o llega cierto
momento que no te dan más bola. Y, claro, cuando llegó la crisis, esto les
vino muy bien. Pasaron a priorizar aquellos grupos que hacían
intervención directa.
La Generalitat y el Ayuntamiento aún nos fueron apoyando, no el
Estado central porque el PP estaba en el poder de nuevo. Uno de nuestros
últimos proyectos fue con la gente que se pincha y la relación de esta
práctica con la hepatitis C. Hicimos una investigación durante seis meses,
siguiendo a la gente y conociendo sus prácticas. A partir de esa
investigación, sacaron unos folletos con recomendaciones para usuarios y
para profesionales. Otro de los últimos proyectos fue el que mencioné
antes, sobre uso de alcohol en la adolescencia entre los emigrantes,
básicamente latinos. En ese programa, entrevistamos a los adolescentes y a
las familias. Lo que nos interesaba saber era lo que pasaba entre las
familias antes de que pidieran ayuda. Este espacio, el de las prácticas
familiares y/o comunitarias, que siempre quedaba escondido, era nuestra
especialidad. Allí era donde IGIA aportaba un conocimiento sistemático a
través de la mirada antropológica y con la metodología etnográfica.
¿Cómo se lo montaba la gente en este espacio que llamaríamos de
automedicación, de autogestión del malestar, antes de llegar a las
instituciones y de buscar ayuda profesional? A partir de la investigación, se
hizo unos folletos tanto para profesionales como para familiares, para
transmitir este conocimiento para que la gente lo pudiera utilizar. Como
veis, eran investigaciones concretas, que acabaron influyendo en
intervenciones prácticas, pero no suponían el mantenimiento de los

80
Un antropólogo con sus drogas, entrevista a Oriol Romaní

servicios día a día, que es en realidad lo que acabó llevándose el dinero en


la época de la crisis. Y si encima les metíamos el dedo en el ojo, en el
sentido de que manteníamos nuestra visión más crítica, pues no lo
teníamos nada fácil.
Volviendo al tema de las redes con América Latina, a finales del 2012
inauguramos el grupo IGIA-LAT (Latinoamérica), en Santiago de Chile,
con la intención de empezar a funcionar básicamente con los uruguayos y
los chilenos, y a partir de ahí llegar a otros países de la región. Lo que pasa
es que, al margen de la web y de algunos proyectos, es una propuesta que
cuesta desarrollar por como están las condiciones, sobretodo en Chile,
donde el neoliberalismo está en alza total. Pero, como mínimo, se
mantiene la red, se puede tener acceso a las publicaciones, que también
son un legado de todo lo que hicimos que vale la pena.

IGIA funcionó también como un centro de información y de formación. Alumnos de


antropología deben haber pasado por ahí…
Sí, mucha gente, alumnos de antropología, y de enfermería, trabajo
social o psicología, en sus prácticas. Cuando hicimos las primeras
formaciones en reducción de daños, vino la gente que después fundó el
Energy Control16, que luego se ha convertido en una potencia en este
campo. Es una asociación que trabaja con los jóvenes en el tema de
drogas, dentro del enfoque de reducción de daños o de gestión de
placeres y riesgos, como lo llaman ahora. El pilar básico de IGIA fue
la for mación, el otro quepodríamos llamar de “agitación y
propaganda”, en verdad, influencia política. Y, claro, la investigación
aplicada.

__________
16. Proyecto de reducción de riesgos de la ABD – Asociación de Bienestar y Desarrollo. Más
informaciones en https://energycontrol.org/

81
Mónica Franch y Regina Medeiros

Otro aspecto de tu trayectoria que nos parece muy interesante es el activismo en


relación al cannabis. Nos interesa porque tanto se refiere a tu forma de hacer
antropología de las drogas como también es un retrato de cómo es posible hacer
avanzar el tema drogas a partir de iniciativas innovadoras y creativas. ¿Podrías
hablarnos un poco sobre esto?
A principios de los noventa, yo me junté a la recién creada ARSEC -
Asociación Ramón Santos de Estudios del Cannabis, que fue, de hecho, la
primera asociación de usuarios de cannabis que hubo en España. En
aquellos tiempos, para legalizar un colectivo de ese tipo no dejaban poner
el nombre de usuarios y por eso se llamó estudios del cannabis, pero
estaba subentendido que era una asociación de usuarios. Se le puso el
nombre Ramón Santos en homenaje a un abogado que se había dedicado
a defender a consumidores de drogas y que acababa de morir. Fue un
proceso muy interesante porque fue la primera experiencia de hacer una
plantación, un cultivo compartido de cannabis, comunicarlo al
fiscal-jefe de Cataluña y esperar a ver qué pasaba. Y lo que pasó fue un
guardia civil que arrasó con la plantación. A raíz de esto, se hizo un juicio,
en el que los dirigentes de la ARSEC fueron absueltos. Finalmente, el
fiscal apeló al Tribunal Supremo y se les condenó a pagar una multa por
“peligro abstracto”, que es una figura legal un poco rara. Aún y así, fue un
paso importante porque, a partir de ahí, se repitió la experiencia en el País
Vasco y ellos sí que lograron la cosecha. En aquellos años, básicamente
desde mediados de los noventa hasta hace poco, hubo la posibilidad de
desarrollar un activismo cannábico que fue muy potente. Ahora ese
mundo está divido porque está el negocio puro y duro por el medio.

¿Cuál es la situación legal en España?


Hasta las ultimas sentencias del Tribunal Supremo había un
reconocimiento de facto de los clubes sociales de cannabis: se reconocía el
cultivo compartido para uso personal y había tolerancia social y jurídica.
Para quien no lo sabe, en España el uso personal de cualquier droga
nunca ha estado penalizado, incluso en época de Franco. Esto siempre te

82
Un antropólogo con sus drogas, entrevista a Oriol Romaní

da una ventaja. A partir de los noventa, empezó un movimiento de


usuarios, fueron cuajando las asociaciones, que luego devinieron clubes y,
aprovechando estos resquicios legales, fue surgiendo un movimiento
potente de clubes. Lo que pasa es que, como es lo único que había, ha
empezado a entrar en los clubes el capital internacional, empresas de
semillas holandesas, básicamente, y de otros orígenes más dudosos.
Actualmente, en España hay clubes de ocho mil personas, que son, en
realidad, empresas disfrazadas de clubes. Por eso la gente del movimiento
está muy interesada en una regulación de los clubes para delimitar
claramente lo que es una empresa y lo que es un club social de cannabis.
Últimamente ha habido unas sentencias del Tribunal Supremo que, por
un lado, han cerrado la puerta a la tolerancia, pero por otro lado han
puesto sobre la mesa la necesidad de cambiar la ley. Son sentencias que
hacen una interpretación restrictiva de la ley existente pero al mismo
tiempo reconocen la existencia de una red de asociados y demandan que
la ley esté adecuada a esta realidad social.
Para terminar en este tema, querría hablaros de un grupo que se
formó hace un par de años en España, el Grupo de Estudio de
Políticas del Cannabis (GEPCA) juntando el sector más militante del
movimiento del cannabis y la gente preocupada con la intervención en
drogas, desde la perspectiva de la reducción de daños. En este grupo
hay gente próxima a la FAD – Fundación de Ayuda a la Drogadicción,
como Eusebio Mejías; está Domingo Comas, que es el presidente de la
Fundación Atenea; Josep Rovira, que fue el fundador de Energy
Control; hay la gente de Enlace, que es una federación de personas
que trabajan con drogas en Andalucía; de ICEERS, que serían una
nueva generación con alternativas políticas a las drogas, muy centradas
en la psicodelia; y también estoy yo, como representando la línea del
Grup IGIA. La propuesta de este grupo es muy sensata. Se trata de
desarrollar, en el campo del cannabis, un primer modelo de regulación
con el criterio de salud pública y de derechos humanos. Este modelo
tiene que ser viable para que sea posible presentarlo en el parlamento y

83
Mónica Franch y Regina Medeiros

que convenza a un amplio espectro, para hacerlo factible de manera


más o menos inmediata. Estamos a punto de editar los materiales que
hemos terminado, y veremos si tenemos capacidad de influenciar17.
Entendemos que el cannabis es la primera droga que hay que legalizar,
pero nuestra perspectiva es que se empiece a pensar todas las demás.
Esta ruta ya la planteábamos en el libro “Repensar las drogas18”,
publicado en 1989, y que funcionaba en IGIA como nuestra
declaración de principios. En aquel momento, ya decíamos que la
legalización de todas las drogas era imprescindible, entre otras cosas,
para posibilitar la intervención en los casos en los que hay realmente
que intervenir socialmente. Un campo regularizado te permite
intervenir mejor ante necesidades reales que el campo salvaje del
prohibicionismo, que es lo que hay ahora.

Latinoamérica es una región inmensa y Brasil tal vez no sea el país que más
conoces, pero nos gustaría oírte. ¿Qué podrías decirnos, como últimas palabras,
sobre las políticas y programas de drogas en Brasil?
Yo Brasil lo conozco desde año 2000. En seguida me di cuenta de
que allí había experiencias de reducción de daños interesantísimas en
Bahía, en Porto Alegre, Belo Horizonte, cosas francamente interesantes,
experiencias bien continuadas en el tiempo. Por otro lado, es evidente
que si en algún lugar habría que empezar legalizando las drogas
sería en Brasil y en México, por la imbricación de la violencia social
con ese tema. Estos dos países son los dos casos contemporáneos más
clamorosos en ese sentido. Se está produciendo un daño tan terrible con
esta situación que legalizar y regularizar las drogas debería ser, en Brasil,
una emergencia nacional.
Barcelona, Belo Horizonte, João Pessoa, 31 de agosto de 2017
__________
17. En estos momentos, ya está publicada la propuesta, que se puede ver en: https://gepca.es/
González, Carlos; Funes, Jaume; González, Sergi; Mayol, Inma; Romaní, Oriol. Repensar las
drogas. Barcelona: Grup IGIA, 1989. Disponible en:
http://hemerotecadrogues.cat/docs/repensar_las_drogas.pdf

84
CAPÍTULO 1.3

Violência e Juvenicídio,
encarceramento:
das políticas de segurança à defesa dos
direitos humanos e do direito à vida

Marisa Feffermann

Introdução
As transformações da estrutura social e das relações sociais,
econômicas e culturais que ocorrem nos grandes centros urbanos têm
implicações na mudança do perfil epidemiológico brasileiro assim como
nos efeitos sobre a produção da violência, e causam intensa influência na
morbimortalidade das populações, pelo número de mortes, em especial,
de adolescentes e jovens negros pertencentes às classes subalternas.
Em 1996, a 49ª Assembleia Mundial da Saúde declara a violência
como importante problema de saúde pública e convoca a OMS para
desenvolver uma tipologia da violência que caracterizasse “os diferentes
tipos de violência e os elos que os conectariam” (WHO, 1996). Nessa
perspectiva, a saúde pública parte do princípio da necessidade da
compreensão da gênese e das formas de manifestação da violência e
especificamente dos comportamentos violentos para refletir sobre as
possibilidades de preveni-los, buscando, desta forma, compreender os
possíveis fatores que permitem a emergência de ocorrências desse tipo
de causas externas. Algumas hipóteses foram produzidas, desde a
questão de comportamentos geradores de risco, o consumo abusivo de
drogas lícitas e ilícitas e o envolvimento com o comércio ilegal de drogas

85
Marisa Feffermann

têm sido apontados como os principais fatores de risco para a utilização de


armas de fogo e, consequentemente, responsáveis por homicídios. Falbo e
col (2001) e Gawryszewski (2002) demonstram que o registro de
antecedentes policiais pode, igualmente, ser apontado como fator de risco,
tanto para a morte precoce quanto para a ocorrência de deficiências
físicas em jovens no começo da idade produtiva.
A mortalidade representa a violência no grau extremo e é uma das
formas mais utilizadas pelo campo da saúde para identificar a sua
magnitude. Bobadilla J. L. et al. (1995) reafirmam a mortalidade por
homicídio como resultante de complexo processo de determinação, no
qual atua uma série de fatores sociais, econômicos, culturais, familiares e
psicológicos.
O contingente de jovens existentes na América Latina vivendo em
situação de vulnerabilidade, aliada às turbulentas condições
socioeconômicas de muitos países dessa região provoca grande tensão
entre os jovens que agrava diretamente os processos de integração social e,
em algumas situações, fomenta o aumento da violência e da
criminalidade. Esta ordem dominante tem ampliado condições de
precariedade e de vulnerabilidade dos jovens, a partir de perspectivas
classistas, racistas, homofóbicas e de ordem proibicionista, que com o
pretexto de combater o crime organizado, têm funcionado como
estratégia de limitação dos espaços sociais de liberdade.
Nesse contexto, pesquisadores da América Latina (Valenzuela, 2015)
têm buscado compreender o processo que implica em condições
precarizadas e persistentes que têm custado a vida de centenas de milhares
de jovens não só na América como, também, na Europa, com base no
conceito de Juvenicídio.
O conceito de Juvenicídio amplia a ideia da morte real ou do simples
registro da morte de jovens para um complexo processo de criminalização
dos jovens, construída a partir do campo político e das indústrias culturais
que estereotipam e estigmatizam as condutas e estilos juvenis, criando
predisposições que desqualificam o mundo juvenil e os identifica como

86
Violência e Juvenicídio, encarceramento

violentos, perigosos e criminosos. A criminalização dos jovens reforça o


preconceito, estereótipo e estigma inscritos em processos estruturantes de
racialização que constituem as condições de possibilidade de que
produzam relações de produção e de reprodução das desigualdades
sociais.
No Brasil, o tema do Juvenicídio está intimamente relacionado com o
que podemos denominar como genocídio da Juventude Negra. O
fenômeno do genocídio da juventude tem como fonte um conjunto de
fatores que vão desde a explícita segregação social ao racismo velado. São
condições que inferiorizam o negro, submetendo-os, por exemplo, às
piores condições empregatícias e aos piores salários. O principal propulsor
da construção desses estigmas, produzidos e reforçados pelos meios de
comunicação, está alicerçado no processo histórico das discriminações e
racismo no Brasil. Os indícios desses estigmas se expressam no número de
mortes de jovens negros, na violência legitimada do Estado, nas chacinas e
no encarceramento em massa, que tira de circulação inúmeros jovens,
preferencialmente negros.

1. O Juvenicídio no Brasil – genocídio da juventude negra


No Brasil, o grupo que vem historicamente sendo exterminado e
encarcerado são os jovens negros e pobres que vivem nas periferias, em
especial aqueles que são responsabilizados por uma crescente economia de
drogas ilícitas. Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo
assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra.
Segundo Cerqueira et al. (2017), no Atlas da violência (2017), de cada
100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras.
Como uma das consequências dessa violência, observa-se um
crescimento de homicídios de jovens no Brasil. A análise de causas de
mortalidade de jovens nos anos de 2015, permite delinear um quadro que
é, a um só tempo, complexo e preocupante. Essa situação aqui é
apresentada a partir de dados constantes do “Mapa da Violência 2015”,
com base no IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e

87
Marisa Feffermann

Estatística) e no Ministério da Saúde, chegando-se a conclusões


alarmantes: o Brasil atingiu a marca recorde de 59.627 homicídios em
2014. Foram 3.749 jovens entre 16 e 17 anos vítimas de homicídios, 46%
do total de 8.153 óbitos. A média é de 10,3 jovens assassinados por dia no
país. O Brasil é o terceiro país no ranking de homicídios de jovens. Além
da violência física, os jovens enfrentam vários tipos de preconceitos, o que
significa que são vítimas não somente de uma violência física como
também de uma violência que não mata mas, muitas vezes, fere e muito
profundamente, que é a simbólica e a moral. O que se denomina
juventude perdida é uma complexidade de fatores, desde a perda de vidas
humanas até as ínfimas ou nenhuma oportunidade educacional e de
trabalho, que condenam os jovens a uma vida destituída de todos os seus
direitos.
Esses dados explicitam o que podemos definir como o genocídio da
Juventude Negra. Ao longo dessa década, morreram ao todo 556 mil
pessoas vítimas de homicídio, número que excede ao número de mortes da
maioria dos conflitos armados registrados no mundo. Comparando 100
países que registraram taxa de homicídios para cada grupo de 100 mil
habitantes, entre 2008 e 2012, o estudo conclui que o Brasil ocupa o
sétimo lugar no ranking dos analisados. O executor mais contundente é o
agente do Estado.
Segundo o Atlas da Violência 2017, entre 2005 e 2015 mais de 318
mil jovens foram assassinados no Brasil. No ano de 2015, foram 31.264
homicídios de pessoas com idade entre 15 e 29 anos, uma redução de
3,3% na taxa em relação a 2014. Os jovens do sexo masculino são as
principais vítimas: mais de 92% dos homicídios acometem essa parcela da
população. A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. De
acordo com informações do Atlas, os negros possuem chances 23,5%
maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças, já
descontado o efeito da idade, escolaridade, sexo, estado civil e bairro de
residência.
Os últimos dados disponíveis do Ministério da Saúde nos mostram
um recrudescimento do problema, uma vez que, entre 2005 e 2015,

88
Violência e Juvenicídio, encarceramento

observou-se um aumento de 17,2% na taxa de homicídio de indivíduos


entre 15 e 29 anos, mais de 318 mil jovens foram assassinados no período
considerado.
Em 2014 a violência foi responsável por uma perda de US$ 75.895
milhões para o país, num cenário conservador, representando 53% do
custo total do crime na América Latina e Caribe e 78% no Cone Sul. Esse
alto valor pode ser parcialmente explicado pelas dimensões continentais
do país, já que cerca de metade da população da região vive no Brasil e o
país responde por 43% do PIB e por 39,5% dos homicídios da região. Em
termos relativos, a criminalidade custa uma quantia equivalente a 3,14%
do PIB brasileiro, taxa ligeiramente acima da média da ALC (3,0%) e
muito mais alta do que a média do Cone Sul (2,5%) (BID, 2017).
Trata-se de uma situação de extermínio dessa parcela da população
causada por dois tipos de racismo arraigados na nossa cultura:
institucional e estrutural.
É fácil concluir que se gasta muito e ineficientemente com o sistema
carcerário vigente. O custo médio mensal de um preso em instituições
estaduais é de R$ 1.800. Considerando o tempo de pena atribuída ao
crime de tráfico, tem-se que ao final do tempo mínimo da prisão o Estado
terá desembolsado R$ 108.000. Esses números são o resultado da “política
de tolerância zero” que adotou o combate total a todo tipo de crime e a
política de guerra às drogas. O resultado mais visível dessas políticas é a
criminalização e encarceramento dos jovens negros pobres e
marginalizados (Feffermann, 2006).

2. Letalidade policial/ Violência do Estado legitimada


Os dados sobre mortes decorrentes de intervenção policial
apresentam um alto grau de subnotificação, como confirmam os números
da segurança pública: “as analisadas por números do SIM na categoria
“intervenções legais e operações de guerra” (942) e os números reunidos
pelo FBSP (3.320) em todo o país” (Lima et al., 2017).

89
Marisa Feffermann

A criminalização da juventude negra e pobre no Brasil tem como


principal executor a polícia militar1, herança da ditadura civil/militar, que
foi criada com o objetivo de defender o Estado de seus inimigos (políticos).
O papel das Polícias Militares (em todo o território brasileiro) era na
ocasião da sua criação, o de atuar no campo civil com o intuito de
investigar e silenciar possíveis adversários políticos contrários à ditadura
militar, de forma a zelar pelo regime instaurado, sob a alegação de
defender a abstrata “segurança pública”. O obscurantismo por que passou
o Estado brasileiro forjou um modelo de polícia alicerçado no arbítrio e na
violência. Depois da ditadura, a polícia militar consolidou sua posição de
responsável pela completa extensão do policiamento urbano à política de
segurança interna, uma lógica militar. O controle social dos excluídos pela
força é uma tradição secular no Brasil, tradição oriunda da escravidão e
dos conflitos armados, e que foi reeditado durante a ditadura militar. A
identificação do inimigo por questões biológicas (Goes, 2015) – os negros
e/ou sociais – o pobre como potenciais delinquentes gera o estereótipo do
jovem, negro e pobre que aparece como a figura atual da ameaça. O
recorte é feito para os crimes que atentam contra o patrimônio e que se
referem ao varejo das drogas, criminalizando as populações que vivem em
territórios periféricos, favelas ou morros das grandes cidades. A
modernidade exige cidades limpas, onde a miséria, que não pode ser
administrada e/ou escondida deve ser eliminada. Reforçando a lógica da
Doutrina de Segurança Nacional.
No Brasil, a sua tradição autoritária, elitista e desigual é reforçada
pelo período da ditadura civil/militar (1964-1985), que deixou um legado
para a sociedade brasileira: a corrupção, a impunidade, torturas,
desrespeito aos direitos civis, cadeia para os pobres, o rebaixamento do
padrão de vida do povo, a entrega da economia nacional para o capital
estrangeiro, a Dívida Externa e a Interna e, mas sobretudo, a violência e
tortura policial contra o povo. O regime suspendeu direitos e garantias
__________
1. A Polícia Militar no Brasil surge depois do golpe civil-militar de 64, o decreto nº 1.072 de 30 de
dezembro de 1.969.

90
Violência e Juvenicídio, encarceramento

institucionais, através de práticas autoritárias, utilizava-se do monopólio


da violência legítima, que lhe garante a possibilidade de construção de
aparatos do Estado para garantir a ordem pública no território nacional.
Assim, atuava na supressão das liberdades individuais, permitindo que o
exército e a polícia militar pudessem prender e encarcerar pessoas
consideradas suspeitas, promovendo a violência instititucionalizada, e
ampliando o nosso acúmulo social da violência. O autoritarismo que se
expressa na ditadura tem sua gênese no colonialismo expresso como
conservadorismo, patrimonialismo, nepotismo, mandonismo (Leal, 2012).
A Constituição do Brasil (Brasil, 1988), conseguiu incorporar muitos
dos direitos individuais que foram violados sistematicamente no período
da ditadura militar. Os direitos à vida, à liberdade e à integridade pessoal
foram reconhecidos, e a tortura e a discriminação racial são consideradas
crimes. No entanto, apesar do reconhecimento formal desses direitos, a
violência oficial continua. Este novo período não significou o rompimento
com práticas de controle social advindos das Leis de Segurança Nacional e
da lógica do “inimigo interno”. O jogo entre o poder Executivo e o
Legislativo não foi alterado, o processo de democratização restringiu-se
aos direitos políticos e ao sistema eleitoral.
Os processos de redemocratização do Estado Brasileiro ocorrem em
meio à crise do petróleo, o crescimento da dívida externa e o fracasso do
nacional-desenvolvimentismo diante da incapacidade de o país
acompanhar a denominada terceira revolução industrial. Com a gradativa
implantação de medidas neoliberais, ou seja, a consolidação do Estado
Mínimo, flexibilização do trabalho, desestatização da economia,
competitividade, livre comércio, privatização, precarização das relações de
trabalho e aumento de desemprego.
Os veículos de comunicação anunciam o aumento da violência e a
necessidade o recrudescimento das políticas de segurança nas principais
metrópoles brasileiras. O discurso do medo é construído no espaço social e
as relações sociais passam a ser pautadas pela desconfiança e pela disputa
entre iguais. Este é um campo propício para a busca de um culpado para
esta situação, um bode expiatório. A classes empobrecidas passam a ser

91
Marisa Feffermann

alvo das políticas repressivas de controle social e da segurança: os jovens


negros e pobres moradores das regiões periféricas das cidades.
Obscurecem-se os problemas de desigualdade e da falta de condições
econômicas a partir da lógica da criminalização dos pobres,
estigmatizando as suas ações, cultura e lugar de moradia.
A estrutura violenta do capitalismo insurge e se configura como um
Estado Punitivo e controlado que prioriza os mecanismos repressivos,
acirrando as formas de vigilância social das populações empobrecidas. As
políticas do Estado para os jovens que vivem nas periferias e morros das
grandes cidades são o encarceramento e a execução sumária,
realizada na maioria das vezes por agentes de Segurança Pública do
Estado, consideradas ameaça à ordem instituída da sociedade burguesa. O
modelo da guerra aplicado à Segurança Pública significa uma
verdadeira ditadura contra os pobres, que cotidianamente sofrem a
militarização na sua vida social com uma permanente suspensão de todas
as garantias constitucionais. A ordem pública passa a se confundir com o
controle da criminalidade, àqueles que estão fora do lugar normativo do
trabalho e transformá-los em símbolo da violência (Reishoffer & Bicalho,
2009). É o que Wacquant (2001, p. 7) denominou como “a remediação de
um ‘mais Estado’ policial e penal a um ‘menos Estado’ econômico e
social”, e ainda completou que tal penalidade neoliberal é ainda mais
funesta em países atingidos por fortes desigualdades de condições de vida e
desprovidos de tradição democrática. É quando as questões sociais se
tornam questões de polícia. Os “inimigos” da ordem são estes que ousam
transpor a ordem do mercado e estão continuadamente expostos à
violência policial.
São processos já presentes nos tempos ditatoriais que legitimam os
procedimentos de exclusão, de não reconhecimento dos direitos, da
ameaça da diferença, da construção dos não-humanos e não-cidadãos. Os
inimigos passam a ser os “despossuídos” de forma indiscriminada ou,
prioritariamente, aqueles que por algum motivo específico representam
ameaças reais ou simbólicas ao acúmulo de riqueza das classes
dominantes. Alguns dados demonstram que estas marcas ainda estão

92
Violência e Juvenicídio, encarceramento

presentes no regime democrático vigente no Brasil: 61.619 mortes


violentas em 2016, o maior número de homicídios da história, terceiro
país que mais encarcera no mundo (Lima et al., 2017).
As Forças Armadas, durante a história do país, sempre foram
utilizadas como um mecanismo de intervenção. Neste sentido, no Brasil
existe lado a lado uma atuação policial e um sistema jurídico que
operam dentro do “legalismo” em direção às classes dominantes, que em
princípio se baseiam na cidadania; e com práticas de controle social
horrendas, marcadas pelo discurso da “lei e ordem” e pela militarização
das práticas policiais. Essas práticas são dirigidas a um público
específico, os pobres, negros e moradores de territórios periféricos,
aqueles que estão excluídos de uma cidadania a cada dia mais vinculada
à capacidade de consumir, alvos de arbitrariedades que se contrapõem
aos direitos fundamentais. As polícias militarizadas mantêm a concepção
original de uma instituição organizada com fins bélicos – a mesma
hierarquia vertical e a ausência de autonomia, que implica em uma
obediência a comandos.
Segundo Wacquant (2001), a ação dessa violência policial
garante a posição de que “[...] a manutenção da ordem de classe e
a manutenção da ordem pública se confundem” (p. 9). Exemplares
são o caso das Policias Militares dos Estados do Rio de Janeiro e de
São Paulo, os modos de atuação das corporações Rota (Ronda
Ostensiva Tobias de Aguiar) e Bope (Batalhão de Operações
Policiais Especiais) que apontam para uma confusão deliberada
entre a criminalidade violenta e o terrorismo. O paradigma
militarista da segurança pública e que tem no Bope a sua expressão
mais acabada, considera que a manutenção da ordem urbana
decorre do emprego da força guiada por uma lógica do confronto
bélico. Podemos medir a intensificação desse aparato com o
crescimento do número de autos de resistência ao longo dos anos,
ou seja, dos mortos pela polícia. Recentemente uma matéria
jornalística evidenciou outro canto de guerra. Os policiais entoam:
– É o Bope preparando a incursão / E na incursão / Não tem negociação / O

93
Marisa Feffermann

tiro é na cabeça / E o agressor no chão. / E volta pro quartel / pra


comemoração 2. O “Caveirão” é como foi batizado o veículo blindado do
Bope utilizado em incursões nas favelas e espaços populares se
transformou no símbolo da militarização da segurança pública.
Apesar de a Constituição Federal (1988) brasileira proibir a pena de
morte3, pode-se afirmar que ela tem sido aplicada ilegalmente. São
chacinas e execuções sumárias praticadas por forças policiais, em serviço e
fora de serviço, e mortes de pessoas que se encontram sob custódia e
responsabilidade do Estado. Falamos de mortes que estão diretamente
relacionadas com torturas, maus tratos e condições degradantes a que são
submetidos(as) os(as) detentos(as). A polícia e o Estado utilizam a violência
letal como uma forma de controle social. Nos grandes centros brasileiros a
altíssima letalidade4 da ação policial é recorrente na política de segurança
pública adotada no país, mesmo no período pós-democrático. Quer sob o
forjado “confronto” que se expressa pela categoria extrajurídica
“resistência seguida de morte”, quer por manifestações mais deliberadas
de execução de civis por grupos de extermínio e, mais recentemente, por
atos de “encapuzados”. O uso direito para matar é justificado pela
alegação comumente dada quando um jovem é exterminado pelas mãos
da polícia - é o auto de resistência5. Desde o início da década de 1990, nas
favelas e regiões mais pobres, agentes das forças policiais utilizam deste
registro do auto de resistência – morte em confronto com a polícia –
com o objetivo de mascarar homicídios cometidos por policiais civis e
militares, alegando suposta resistência.
__________
2. Disponível em:
http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2013/05/tropa-do-bope-canta-grito-de-guerraque-faz-
apologia-violencia.html. Acesso em: 15 de agosto 2017.
3. artigo 5º, inciso XLVII.
4. A letalidade policial é destacada no documento como uma das violações mais preocupantes no
país. Em 2012, morreram 1.890 pessoas nessas circunstâncias, conforme dados do Fórum de
Segurança Pública. Human Rights Watch (HRW).
5. O auto de resistência, que surgiu na atividade policial logo após o AI-5, em 1968, é o
dispositivo que serve para legitimar e impedir a investigação das execuções sumárias realizadas por
policiais.https://jus.com.br/artigos/24119/o-debate-em-torno-do-auto-de-resistencia-morte-decorr
ente-de-intervencao-policial.

94
Violência e Juvenicídio, encarceramento

Em 2011, no Rio de Janeiro e em São Paulo, 42% das mortes foram


consideradas como autos de resistência. São exemplos disso os casos
Amarildo, Rio Janeiro (2014), Davi Fiúza, Salvador (2014), ambos
sumidos misteriosamente por policias, fora outros milhares de casos
parecidos que ocorrem corriqueiramente. Assim, o auto de resistência
tornou-se um procedimento padrão.
Desta forma, os estudos apontam a necessidade de uma mudança nas
políticas de segurança pública e a urgência de políticas de garantia à
defesa dos direitos humanos e do direito à vida.

Considerações finais
A exacerbação da violência contemporânea está relacionada com a
dominação exercida pela implementação das políticas econômicas, que ao
promover o desemprego estrutural nega a uma parte significativa da
população os direitos sociais e políticos, tornando-os supérfluos e impondo
uma política para conter e disciplinar esta população e assim justificar a
omissão do Estado. A adesão à ordem estabelecida ocorre por intermédio
do medo e da insegurança, assim a sociedade reforça uma dinâmica de
contenção e disciplina. Uma parte da população é criminalizada,
segregada e transformada, com auxílio da indústria cultural, em inimigos
do Estado, que devem ser enfrentados para garantir e manter o poder
estabelecido. No Brasil, o grupo a ser exterminado e encarcerado são os
jovens negros, empobrecidos, que vivem nas periferias, em especial aqueles
que são responsabilizados pela crescente economia de drogas ilícitas – os
pequenos traficantes. Jovens, imprescindíveis e ao mesmo tempo
descartáveis, que denunciam a barbárie civilizada que se vive hoje.

95
Marisa Feffermann

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Violência e Juvenicídio, encarceramento

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97
98
PARTE 2

TRANSIÇÃO DE PARADIGMA NA CLÍNICA


DAS DEPENDÊNCIAS
CAPÍTULO 2.1

A clínica da drogadição no paradigma


da complexidade:
as dependências e seus paradoxos

Maria Fátima Olivier Sudbrack

Introdução

Durante muito tempo, considerou-se que todos os dependentes de


drogas viviam alienados da família e da sociedade, em um universo à parte
que lhes era próprio e peculiar. A literatura clássica lhes confere uma
identidade marginal e uma estrutura toxicônoma. Pela legislação, sofrem
criminalização, pela visão medicalizada são doentes e pela religião são
considerados distantes de Deus. Neste paradigma, tudo converge para
abordagens individuais: o infrator, o doente, o pecador.
A clínica de famílias nos revelou o quanto é preciso repensar este
paradigma, na medida em que passamos a compreender a complexidade
do fenômeno da drogadição numa perspectiva sistêmica e relacional que
nos conduz à abordagem transdisciplinar. A compreensão se amplia para
uma leitura mais ampla situada no significado dos contextos de uso e nos
contextos relacionais.
Ao longo de nossa trajetória de pesquisadora sobre a temática da
drogadição na adolescência e como terapeuta de famílias, vimos trazendo
construções que permitem aprofundar a compreensão do processo clínico
das dependências, a partir desta nova concepção da drogadição no

101
Maria Fátima Olivier Sudbrack

paradigma sistêmico e da complexidade. Trata-se de uma perspectiva que


se constrói, articulando contribuições da terapia familiar sistêmica
europeia (Neuburger, 1986; Segond, 2008; Ausloos, 1995) e argentina
(Fuks, 2015), da psicanálise de famílias (Eiguer, 1985), da psicossociologia
clínica francesa (Selosse, 1998), da leitura sistêmica da drogadição na
adolescência (Stanton,1988) e dos sistemas aditivos ( Colle, 2001), da
prática de redes (Pakman, 1995; Dabas, 1995) tendo como grade
epistemológica a teoria do pensamento complexo (Morin, 1991).
Entendemos que, para avançarmos neste novo paradigma, é preciso
reconhecer que muitos preconceitos e estereótipos encobriram a
complexidade dos aspectos relacionais, associados à problemática das
toxicomanias:
[...] a aplicação da epistemologia sistêmica às adicções favorece um
outro olhar. As terapias familiares nos permitiram sair do
maniqueísmo entre famílias inocentes ou culpadas. Elas representam
um recurso precioso para mudar de ótica e para ajudar os sistemas
familiares...”. As dependências relacionais no contexto socioafetivo
destes sujeitos impedem a emergência da autonomia necessária.
Introduzimos, assim, a perspectiva relacional das toxicomanias. [...] É
importante descrever os esquemas relacionais entre as pessoas
designadas dependentes e seu meio, pois precisamos entender como
os sistemas vivos regulam trocas internas e externas sob bases
adictivas. (Colle, 2001, p. 191)

A família é um espaço de pertencimento e de referência identitária,


de funções múltiplas que constitui sistema complexo em constante
evolução e aponta a crise em sua dimensão transformadora. A crise
desequilibra o sistema, promovendo um salto qualitativo com relação à
estrutura anterior. Assim, numa intervenção sistêmica, resgata-se o
paradoxo inerente ao sintoma, dando-se visibilidade à sua dimensão
reveladora da necessidade de mudanças. O abuso de drogas é entendido
como sintoma-comunicação que encontrará seu sentido na vida relacional

102
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

familiar. O trabalho terapêutico consiste em decodificar esta mensagem


expressa na passagem ao ato de drogar-se para que possa ser integrada
com sentido no contexto relacional familiar. A partir desta leitura, o
usuário de drogas é redefinido como membro portador do sintoma da
família, pois, por meio de seu comportamento sintomático, expressa o
sofrimento coletivo do grupo familiar.
O termo Adicção, enquanto conceito sistêmico, permite descentralizar
as observações focadas apenas no intrapsíquico, ampliando-as a um
conjunto de relações e de comportamentos situados na rede socioafetiva
do usuário. Por sua definição etimológica, este conceito nos coloca na pista
das normas adictivas: relações particulares de submissão do corpo de uma
pessoa a outras pessoas e, simultaneamente, designação da pessoa
submissa. As condutas adictivas caracterizam-se pelo aspecto parcialmente
consciente e voluntário do sujeito addictus, na medida em que ele se
submete a diferentes pessoas de seu meio e, ao mesmo tempo, ignora o
sentido desta atitude. O addictus, segundo a etimologia do termo, é
portador de um sinal sobre si do qual a pessoa não conhece o significado,
e estaria assumindo uma missão inconscientemente transmitida. A
perspectiva sistêmica da drogadicção busca decodificar estas premissas
relacionais ignoradas pelas pessoas assim marcadas. Os efeitos dos
produtos utilizados variam segundo os indivíduos, mas também de acordo
com os contextos de uso. O saber sobre as toxicomanias não pode jamais
ser reduzido às modalidades farmacológicas e psicológicas ou
psiquiátricas, sendo inerente a esta problemática a dimensão relacional e
contextual. (Colle, 2001)
No contexto da adolescência, a drogadição exige uma intervenção
para reconhecer e resgatar a competência das famílias (Ausloos, 1995) e
devolver aos pais o comando das situações quando eles próprios já se
colocam como demissionários impotentes e desqualificados. Nesta fase do
ciclo da vida, a terapia familiar vem sendo reconhecida como indicação
terapêutica que promove um novo olhar sobre a problemática e sobre o
sujeito portador do sintoma. Por esta razão, mister se faz partirmos da
conceituação sistêmica da adolescência, definida como uma fase do ciclo

103
Maria Fátima Olivier Sudbrack

de vida da família que implica importantes transformações relacionais, em


especial entre pais e filhos.
A conquista da autonomia do jovem perante sua família implica um
processo de separação que requer importantes adaptações. Os problemas
apresentados pelos adolescentes dificilmente são reconhecidos como tais
pelo próprio adolescente, sendo, prioritariamente, terceiros que formulam
uma demanda de intervenção: os pais, os professores, o médico, a escola, o
juiz. O adolescente se coloca na interseção das interações entre os sistemas
familiares, os sistemas educativos e os sistemas de tratamento. A crise
adolescente não é um processo unicamente individual, mas concerne ao
sistema familiar como um todo no qual o jovem deve ser resgatado em seu
papel transformador. Cabe ao terapeuta descobrir, com a família, as
possibilidades de uns e de outros de viverem estas transformações, a partir
do seguinte questionamento: - A crise adolescente está induzindo novas interações
no sistema ou está perpetuando interações redundantes? Qual o papel das drogas na
denúncia daquilo que deve mudar?
Com frequência nos defrontamos com verdadeiras famílias adolescentes:
os indivíduos se mostram pouco diferenciados, todos parecem jovens,
fisicamente, manifestando um desejo de pertencimento a uma única e
mesma geração; esta sensação confusional é reforçada pelas atitudes,
linguagem e vestimentas típicas da cultura adolescente, enquanto norma
dominante que rege o conjunto das interações. Tudo se passa como se
fosse uma irmandade, sem hierarquias, sem a presença de pais. Temos
encontrado esta mesma atmosfera também em estabelecimentos
educativos de adolescentes. Em tais contextos, a violência, o abuso de
drogas, as condutas destrutivas, os comportamentos antissociais são
tentativas de diferenciação que clamam por mudanças funcionais, por
limites e por regras que possam estabelecer referências de autoridade e de
continência à instabilidade própria da fase adolescente.
Esta dimensão dos limites, da lei e da transgressão adquire
importância fundamental, na medida em que o adolescente precisa
c o n t e s t a r a a u t o r i d a d e d o s p a i s p a r a fir m a r s u a
diferenciação/individuação do sistema rumo à sua autonomia. Por outro

104
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

lado, a crise adolescente remete o casal parental a um questionamento a


propósito da relação conjugal e de suas competências na função parental.
A temática da autoridade e da função paterna permeia a dinâmica
encontrada nestas famílias, entendendo que uma leitura do significado do
ato de transgressão do adolescente revela sua demanda paradoxal por
referências e limites que denominamos “da falta do pai à busca da lei”
(Sudbrack, 1987, 1992)
A adição às drogas na adolescência implica na abordagem do
processo de pseudo-individuação (Stanton,1988), pois os conflitos
relacionais subjacentes colocam em risco a questão da individuação do
adolescente e de sua autonomia implicam sua separação da família —
processo afetivo a ser trabalhado em diversos níveis.
A partir do referencial teórico acima esboçado, apresentamos, no
presente capítulo, nossas construções teóricas sobre o que estamos
denominando a clínica da complexidade na drogadição de adolescentes,
acompanhado de vinhetas clínicas de atendimentos em curso junto às
famílias com filhos adolescentes. Estas construções são resultado de prática
clínica e de pesquisas com famílias desenvolvidas no percurso profissional
e docente, numa postura de desconstrução da leitura linear, simplista e
redutora do fenômeno da drogadição e das intervenções. A mudança de
paradigma na drogadição de adolescentes, em nossa trajetória clínica e de
pesquisadora, coloca-se como especial desafio na atuação com
adolescentes em conflito com a lei, em contexto de vulnerabilidade social,
resultando em décadas de pesquisa sobre a abordagem da drogadição no
contexto da socioeducação do que resultou obra síntese da produção de
uma equipe de mestrandos e doutorandos: Adolescentes, Drogas e Justiça
(Sudbrack, 2015).
O tratamento da demanda é o primeiro momento desta clínica
da complexidade na medida em que, reunindo os elementos da demanda
dispersos no contexto sociofamiliar, permite a desconstrução da crença de
falta de demanda para o tratamento. Contextualizada como questão da
adolescência, torna-se fundamental a abordagem das dependências e

105
Maria Fátima Olivier Sudbrack

seus paradoxos, reconhecendo os riscos do processo de


pseudo-individuação, na busca da autonomia pelo adolescente.

1- O tratamento da demanda – desconstruindo a falta de


demanda de tratamento
Denominamos tratamento da demanda o processo inicial da intervenção
clínica na área da drogadição, visando reunir os elementos da demanda
que se encontram dispersos no contexto sociofamiliar. Este processo
permite a desconstrução da crença muito difundida de que não existe
demanda de tratamento para drogadição. Isto ocorre porque a noção de
demanda é, frequentemente, limitada ao pedido de ajuda ou de
tratamento pelo sujeito que apresenta o problema.
Os profissionais que atendem usuários de drogas deparam-se no seu
cotidiano com este desafio, que é exatamente a especificidade da clínica
das dependências: a ausência de um pedido próprio ou pessoal de
tratamento. A procura pelo tratamento é, geralmente, feita por um
terceiro: familiar, instituição ou outros. Esta resistência ao tratamento pelo
paciente tende a prolongar-se, configurando total falta de adesão ao
mesmo. Por esta razão, entendemos que é indicada uma consulta familiar,
pois é recorrente que os elementos da demanda estejam dispersos no
contexto das relações afetivas do paciente.
Fazemos aqui referência ao conceito sistêmico de demanda
apresentado por nosso professor e formador, Dr. Robert Neuburger,
estudioso da demanda em psicanálise e em terapia de famílias, e autor do
livro “L’autre demande” (Neuburger, 1986). Para este autor, quando falamos
de demanda, devemos considerar as três dimensões que a compõe: (1) o
sintoma, (2) o sofrimento e (3) a alegação (pedido). A demanda torna-se
relacional quando o sintoma é interpretado e vivido pela família como um
sofrimento coletivo, pois ser identificado com o sintoma é o mesmo que ser
identificado com a sua função para o grupo familiar. Prevalece a lógica
imaginária do grupo sobre a lógica simbólica individual. Esta noção é
fundamental na terapia familiar, pois o sintoma é considerado como sendo

106
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

a metáfora da situação familiar. Coloca-se, aqui, a questão-chave entre ter


ou ser o sintoma.
A demanda mostra-se na sua condição ideal quando temos um sujeito
que apresenta um problema do qual ele sofre e para o qual ele pede ajuda.
Se, por um lado, demanda implica desejo, é preciso considerar que se trata
de um desejo que pode evoluir. Este aspecto dinâmico da demanda é
reconhecido tanto pelos psicanalistas (Eiguer,1985) quanto pelos sistêmicos
(Colle, 2001). A partir desta premissa, apostamos no desenvolvimento de
uma expressão própria do sujeito para a ajuda profissional, inicialmente
em uma etapa preliminar da intervenção clínica. Segundo Lacan, a
demanda existe quando o desejo se torna necessidade.
A demanda define-se, assim, como um processo dinâmico e
permeável a influências, no sentido de que seus elementos dispersos
possam ser reunidos na melhor condição para que o sujeito que porta o
sintoma possa expressar por si próprio seu sofrimento e assumir seu
pedido de ajuda. O que nos interessa, nesta leitura sistêmica, é que o uso
de drogas apresenta-se como elemento mobilizador da crise e revelador do
funcionamento intrafamiliar rumo às transformações da vida relacional do
grupo. Trata-se de um sintoma cujo sofrimento se registra
primordialmente no social, ou seja, na relação com o outro. Por esta
razão, temos situações complexas que exigem abordar o que se passa entre
as pessoas envolvidas, antes de adentrarmos nos significados individuais e
numa compreensão do nível intrapsíquico do sujeito. Amplia-se, assim, a
perspectiva clássica trazida pela literatura do tratamento de dependentes
conhecida como abordagem motivacional quando esta é focada apenas no
indivíduo.
Nestes casos, aprendemos com Neuburger (1986) a importância de
intervir junto à família para identificarmos no sistema ou na rede
relacional do paciente, as pessoas que apresentam cada um dos diferentes
elementos da demanda: o sintoma, o sofrimento, o pedido/alegação. A
identificação dos diferentes elementos da demanda pode ser feita através
das questões: para identificar o sintoma: - Quem apresenta o problema? para
identificar o sofrimento: - Quem mais sofre? para identificar o

107
Maria Fátima Olivier Sudbrack

pedido/alegação - Quem pede ajuda? e qual é o pedido? para quem o uso de drogas é
problema?
Vemos que o ponto de partida é o próprio sintoma que constitui um
elemento de demanda, ou seja, revela uma comunicação do adolescente
que podemos interpretar como sua denúncia pela necessidade de
mudanças. Se entendemos que a demanda é um desejo que pode evoluir
(Eiguer, 1985), mister se faz construir este percurso, que se coloca como
uma etapa importante da intervenção. Não é apenas uma etapa
preliminar, mas se constitui a especificidade da clínica das dependências.
Através de consultas familiares proporcionamos espaço de expressão para
os diferentes membros, buscamos uma ressignificação do próprio sintoma
ou ato de drogar-se no contexto relacional sociofamiliar. Este espaço
inaugura-se com o acolhimento do adolescente em família, num processo
que denominamos de tratamento da demanda (Sudbrack, 2003a).
Cabe destacar que não se trata apenas de convencer o paciente de
que ele precisa de ajuda ou motivá-lo para o tratamento porque é
doente... Este discurso não é recomendado para o paciente adolescente
pois, além de gerar mais resistências, resulta em uma patologização
pessoal, fechando o espaço para uma leitura das dificuldades relacionais
atreladas e, assim, reveladas pela drogadição.
A perspectiva do tratamento da demanda nos remete, pois, a uma
especificidade em torno das questões profundas do processo clínico e
relacional. O novo paradigma se coloca quando, em vez de considerarmos
a falta do pedido de ajuda pelo paciente simplesmente como uma
resistência, negação do problema, ou um impeditivo pessoal para uma
relação terapêutica, nos propomos a investigar a natureza desta trama
relacional que está impedindo reunir os diferentes elementos da demanda
para que cada um consiga assumir seu sofrimento e expressá-lo com
autonomia na família. Para tanto, precisamos adentrar em processos
relacionais complexos que constituem a trama que sustenta os sistemas
aditivos (Colle, 2001). Como resultado desta trama que encobre o próprio
movimento do sujeito para buscar ajuda, as equipes vivem uma
impotência e, desestimuladas podem adotar duas posturas extremas: ou

108
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

desistem da intervenção ou encaminham intervenções compulsórias, em


geral, internações fracassadas.
O desafio é constante, pois jamais saberemos, a priori, quem é,
verdadeiramente, o cliente. É preciso indagar constantemente: do que se
trata ou de quem se trata ou quem trata quem? A experiência clínica com
dependentes nos revela que aquele "que adoece pelo uso de drogas é a
pessoa mais sensível ao sofrimento do outro e, por vezes, está assumindo a
função paradoxal de ser, ao mesmo tempo, o sintoma e o terapeuta da
família" (Colle, 2001).
O que propomos como um novo paradigma da drogadição amplia a
definição da própria clientela-alvo da intervenção que vai sendo
descoberta, na medida em que conhecemos a trama relacional subjacente
e que sustenta o sintoma. Um dos paradoxos impressionantes do sintoma
de drogar-se é que, ao mesmo tempo em que se presta para dizer o que
não seria possível dizer sem drogas, trata-se de um impeditivo para que a
verdade das relações seja desvelada. Concentrado no indivíduo que porta
o sintoma, os conteúdos desta trama trazem vivências fortes de
sofrimentos de traumas não resolvidos, em geral sobre separações não
resolvidas e que se mantém ou como rupturas ou como dependências
relacionais.
Ilustramos, na vinheta clínica, a seguir, nossa proposta de intervenção
no tratamento da demanda.

109
Maria Fátima Olivier Sudbrack

Vinheta clínica (1) da desconstrução do poder da droga ao resgate dos vínculos com os pais

Jovem de 17 anos (P), filho de pais divorciados que se desentendem na forma de lidar com o
filho ao descobrirem que ele usa drogas. O pai quer sua internação urgente e a mãe discorda,
mas encontra-se muito abalada e assustada, sem saber o que fazer. Na última discussão, houve
confronto familiar, resultando em enfrentamento físico do pai com o filho que, partir de então,
cortaram a comunicação. Após dois meses deste evento, a mãe procura sozinha um serviço de
dependentes químicos da Universidade, que a remete ao contexto de atendimento familiar.
Apresentamos como vinheta clínica um recorte das duas primeiras consultas familiares, no
processo de acolhimento da família, sendo a primeira com a mãe e o filho, e a segunda com mãe,
pai e filho.
Na primeira consulta, as narrativas e imagens da mãe e do filho se mostram dissonantes:
enquanto para o adolescente, o consumo de drogas se dá no contexto das festas Rave, pura
descontração e diversão, a mãe se mostra muito preocupada e imagina o filho perdido,
desprotegido e desvitalizado. Solicitados a representar as drogas com as almofadas, enquanto a
mãe escolhe uma almofada marrom, o filho escolhe almofada colorida. Fica claro o quanto a
visão da mãe contrasta com a visão do filho, que representa as drogas como sua fonte de alegria
e descontração de que precisa face ao tédio do cotidiano. Propusemos troca de papéis, utilizando
técnicas psicodramáticas: o filho, colocando-se no lugar da mãe (Como você imagina que sua
mãe está lhe vendo agora?): o adolescente se coloca deitado no chão, em posição fetal, com as
mãos na cabeça, expressando horror e sofrimento. A mãe, mostrando como o filho a percebe,
produz a seguinte imagem corporal: coloca-se de pé, andando em círculos, de braços estendidos
e chamando-o para perto, com expressão aflita, desesperada. Enquanto isso, o filho é visto pela
mãe dançando e se divertindo.
As imagens trazidas na cena psicodramática de ambos são fortes e reveladoras da trama
relacional. Se, por um lado, a percepção da mãe e do filho são antagônicas, ficou claro o que se
passa entre eles: ambos estão atribuindo imensa força e poder à droga que está gerando grande
conflito e distanciamento entre eles. Para a mãe a droga teria a força de levar seu filho ou de
destruí-lo, e para o filho a droga seria capaz de lhe proporcionar toda a felicidade e liberdade
desejada, longe da família, apenas compartilhada com os amigos. Pontuamos para o adolescente
os riscos de uma tal situação, caso se prolongasse e agravasse: a mãe com tanto sofrimento e
insegurança, pelos cuidados que inspira com o abuso de drogas, passaria a tratá-lo de forma
infantilizada, justamente quando precisa conquistar sua confiança para adquirir sua liberdade e
autonomia. O adolescente ouviu atento e se mostrou reflexivo, compreendendo esta devolutiva
provocativa de que a relação poderá regredir para uma condição infantilizada. Neste momento,
a mãe se reconhece como totalmente despreparada para cuidar o filho adolescente, com muitos
medos e inseguranças que a estão deixando doente, sem dormir, com palpitações, perdida no seu
papel ...
Introduzimos, assim, o que denominamos a ressignificação do sintoma: o tema da confiança e
do cuidado se coloca no lugar do uso de drogas e ambos se reaproximam, estimulados a
conversar sobre a reconstrução da relação mãe-filho neste novo momento do ciclo de vida da
família. O adolescente reconhece o sofrimento da mãe que foi o motivo dele ter aceito este
atendimento psicológico. Pontuamos positivamente seu desejo de cuidar da mãe, que passa a
destacar as qualidades do filho. Um novo diálogo entre ambos se inicia, compartilhando sobre a
vida de família, sobre as dificuldades na escola e com os amigos. Como o adolescente está sem
diálogo com o pai, com quem se confrontou fisicamente pela reação deste lhe proibindo o uso de
drogas, propusemos a participação do pai para a próxima sessão, aceito pelo filho e pela mãe.
(continua)

110
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

Vinheta clínica (1) da desconstrução do poder da droga ao resgate dos vínculos com os pais (fim)

Na segunda consulta familiar, com a presença do pai, cuja comunicação estava rompida há
dois meses, foi possível avançar na compreensão sistêmica e relacional do sintoma. O depoimento
do pai foi pesado, mostrando-se inicialmente muito bravo e decepcionado com o filho, considerando
que ele jogou fora a educação e o amor dos pais, optando em tornar-se um “bandido”. Explicou
sua reação de denunciar o filho para todos: na escola, no prédio, e também entre os amigos, pois
acredita que ele está, inclusive, vendendo drogas, o que justifica pelo fato de que encontraram até
uma balança de precisão em sua mochila. Por este motivo, argumenta que o filho deve ser
internado e fazer um tratamento urgente. Neste momento, a mãe chora muito e o filho também.
Procuramos qualificar o pai como figura de autoridade importante, mas que também estaria muito
perdido e sofrido. Pedimos ao filho que revele ao pai seu projeto de vida e de consumo ...
promovemos uma desconstrução de condição de dependência, sem minimizar os riscos presentes.
Introduzimos que seria preciso ver melhor o papel do uso da maconha no alívio de sofrimento, além
do prazer nas festas, e que esta avaliação dependeria de uma conversa individual com P. O
adolescente esclarece sobre suas vivências nas festas e no consumo de drogas. A mãe ajuda a
lembrar que ele sofreu decepção amorosa, que pode ter contribuído ... O pai se emociona e se
identifica com o filho, dizendo que ele usa a bebida como alívio ... e gosta de acompanhar o filho
nas festas, como já fizeram no Rock in Rio. Pontuamos a importância da presença do filho para o
pai. Seu discurso muda de tom e passa a falar entre lágrimas sobre o amor que tem pelo filho que
até então só trouxe alegrias para ele: “... meu menino carinhoso e companheiro ... como pode
acontecer isto? “ estou com muita saudade, você não aparece mais em minha casa ... O filho
explica que tem vergonha da família, depois que o pai o denunciou como um “maconheiro”...
Instaurado um clima de diálogo, com possibilidades de desabafo, muitas questões podem ser
vistas, destacando-se o baixo aproveitamento escolar que inquieta sobremaneira os pais. O filho
promete que vai deixar de usar drogas para recuperar suas notas. O pai pede para o filho visitá-lo
com maior frequência e conviver com sua nova irmãzinha, filha de seu novo casamento. A mãe
revela que, nesta confusão, acabou conhecendo a menina que já tem um ano.
A sessão finaliza com a pergunta do terapeuta: o que cada um tem como pedido para o outro?
O pai pede para o filho deixar dos amigos da droga e cuidar da mãe, que está cansada e
adoecida. A mãe pede para o pai prosseguir acompanhando o filho com ela. O filho pede
confiança aos pais e crédito nas suas opções, pois não é mais criança. Pontuamos como desafio
para o filho: como reconquistar a confiança dos pais? E para os pais: como cuidar do filho
adolescente, sem impedir sua autonomia? A sessão foi finalizada colocando-se como temática a
relação com os amigos: o adolescente informa que todos os seus amigos fumam maconha
diariamente. O pai diz que ele precisa deixar de viver com estes “vagabundos”. Pontuamos que a
desqualificação dos amigos do filho como “bandidos e vagabundos” não era favorável à
reaproximação necessária entre pai-filho. Foram agendadas para a semana seguinte: sessão
pai-filho, uma sessão de atendimento individual de apoio para a mãe e uma nova consulta familiar
em quinze dias.

111
Maria Fátima Olivier Sudbrack

A partir desta vinheta clínica, ilustramos importantes movimentos


promovidos do que propomos como o processo de tratamento da
demanda, cujos elementos aparecem dispersos na família: o filho
apresenta o problema (uso de drogas – que para ele não é problema, está
sendo diversão e alivio!); a mãe sofre (ansiosa, deprimida, somatizando,
desesperada entra em conflito com o ex-marido); o pai quer internar o
filho (visto como dependente e delinquente, e desaponta a ex-mulher com
seu autoritarismo e repressão ao filho).
A mãe se disputava com filho para que ele parasse de usar drogas e
com o ex-marido para que não o internasse. O filho se disputava com o
pai para não ser internado, o pai disputava poder com a ex-mulher na
condução do tipo de tratamento para o filho.
No decorrer de duas sessões, foi possível reunir os elementos da
demanda através de pedidos reconhecidos como ajuda para todos: o filho
aceitou refletir sobre a consequência do consumo na sua vida e no baixo
rendimento escolar; o pai retoma o diálogo para ajudar o filho em acordo
com a mãe e esta conscientiza-se de sua extrema ansiedade e fragilização
com a situação, que decide compartilhar com o marido e ajuda
profissional.
Coloca-se, aqui, uma importante dimensão metodológica da
intervenção na clínica das dependências, propondo-se um acolhimento
como processo diferenciado e efetivo no qual a demanda possa ser tratada
até que reencontremos o sujeito demandante, ou seja, que o paciente
possa reconhecer a dimensão do sofrimento atrelada ao sintoma e
expressar seu desejo/pedido de ajuda, na medida em que todos os
implicados possam rever suas vinculações com o problema e com o
portador do sintoma.

2- A(s) dependência(s) e seus paradoxos: autonomia,


pertencimento e o risco da pseudo-individuação
As questões da drogadição na adolescência raramente se referem a
diagnósticos de dependência química propriamente dita. No entanto,

112
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

podemos observar comportamentos de uso frequente ou abusivo se


estruturando nesta fase, que são reveladores de riscos e tendências para
um processo aditivo e que, se adequadamente abordados, podem ser
prevenidos ou minimizados.
Por outro lado, sabemos que é na fase adolescente que os principais
diagnósticos de doenças mentais se revelam e, por vezes, eles aparecem
confundidos com a problemática do consumo de drogas que pode agir em
dois sentidos: ou precipitando a eclosão da crise psicótica ou camuflando e
“ retardando” a eclosão da mesma. Temos ainda uma terceira situação,
que é a precipitação de quadros de desequilíbrios emocionais em
decorrência do exagerado uso de spa na adolescência. Mesmo sem a
precipitação de quadros mais graves ou definitivos, chamamos a atenção
para os riscos do uso frequente e precoce que pode resultar em sequelas
cognitivas e de socialização comprometedoras.
As condutas de adicção às drogas, de forma contrária ao que
frequentemente é dito, não são apenas comportamentos de protesto e de
revolta “adolescentes”. A dependência de substâncias psicoativas encobre,
na maior parte das vezes, dependências ou rupturas relacionais e, em
certos casos, mascara distúrbios severos de natureza psiquiátrica. Por outro
lado, em psiquiatria o aspecto visível das condutas aditivas atrai a atenção
para a dimensão farmacológica. As tentativas de mudar o nível lógico,
quer dizer, avançar da questão dos produtos para uma definição das
questões relacionais, provoca resistências que estão na origem da ausência
de demanda para uma psicoterapia.
Na perspectiva sistêmica e da complexidade da drogadição de
adolescentes, a análise extrapola em muito a dimensão da relação com o
produto, pois temos a oportunidade de perceber a natureza das estruturas
relacionais que serão risco para que uma dependência se instale, através
do reforço de comportamentos aditivos que podem estar presentes na
família ou no contexto mais amplo de influencias do adolescente. Nos
colocamos, desta forma, em uma posição de tratarmos o que
consideramos o contraponto da dependência que é a conquista da
autonomia e o exercício da liberdade. Nos referimos, aqui, a uma noção

113
Maria Fátima Olivier Sudbrack

mais ampla de dependências que inclui a possibilidade de fazer


separações.
É importante destacar que o conceito de dependência, na perspectiva
sistêmica, adquire uma conotação e significado diversos de sua concepção
mais conhecida, originada na teoria psicanalítica. Em vez de associar-se a
dependência aos estados necessariamente patológicos ou regressivos,
próprios de etapas infantis do desenvolvimento humano, entende-se a
dependência enquanto um mecanismo natural de adaptação (Bateson,
2008). Esta concepção da dependência em sua dimensão positiva
adaptativa nos remete a uma nova epistemologia da drogadicção e das
dependências, compreendidas, então, como busca de solução a questões
que exigem do sujeito uma resposta adaptada ao contexto.
Um sistema aberto é um sistema que pode alimentar sua autonomia,
mas através da dependência face ao meio externo. A noção de autonomia
só pode ser concebida em relação à ideia de dependência. Quanto mais
um sistema desenvolver sua complexidade, mais ele desenvolverá sua
autonomia e mais ele terá dependências múltiplas. No paradigma da
complexidade, toda vida humana autônoma é um tecido de dependências,
pois construímos nossa autonomia psicológica através das dependências
em contextos diversos, dentre os quais destacam-se a família e a escola.
Sendo assim, tanto o conceito de autonomia como o de dependência são
conceitos relacionais. Como síntese deste paradoxo, trazemos uma frase
do fundador da teoria da complexidade: “A autonomia é o resultado
de muitas dependências” (Morin, 1991). Portanto, os vínculos de
dependência podem apresentar tanto aspectos positivos quanto negativos,
tudo depende das condições apresentadas e construídas no contexto. Ora,
na cultura ocidental nós somos condicionados a pensar a dependência
como uma doença a partir de uma supervalorização da autonomia na
sociedade moderna. Como nos ensina Bateson (2008), é preciso lembrar
que a dependência é um mecanismo indispensável à sobrevivência da
espécie humana.
Na prática clínica, os clientes e seus familiares tendem a centrar seus
discursos e suas demandas no nível dos efeitos dos produtos, sem fazer

114
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

referências aos seus conflitos relacionais, que se revelam na medida em


que soubermos fazer a leitura sistêmica das situações trazidas como
motivo da consulta. Nesta condição, para contemplar a complexidade do
tema precisamos ser capazes de fazer saltos lógicos entre os diferentes
níveis de dependência (Colle,1995), pontuando que a dependência deve
ser avaliada em seus diferentes níveis qualitativos, os quais podem ser
situados em, pelo menos, três categorias, a saber: (1) a dependência de
substâncias (2) a dependência de pessoas e (3) a dependência do contexto.
Apresentamos, a seguir, uma descrição destes diferentes níveis e tipos
de dependências a considerar na compreensão sistêmica da drogadição.
(1) Dependências dos efeitos da droga: o consumo pode ser de
uma única substância ou efeito da combinação de várias substâncias
consumidas simultaneamente. Além do produto em si, é importante
conhecer as diferentes formas de consumo. Além das diferentes
espécies adulteradas dentre as spa naturais, temos como atual
desafio as “novas drogas”, em especial as anfetaminas e anestésicos,
trazendo desafios especiais pelos efeitos desastrosos decorrentes em
função do desconhecimento e da “glamourização” do consumo sem
consciência dos riscos e sem maturidade para assumir as
consequências.
(2) Dependências relacionais afetivas: referem-se às relações do
casal e da família. Existe, sempre, em torno do dependente de
drogas, pelo menos uma pessoa codependente. Esta ou estas pessoas
podem ser ou ter sido igualmente dependentes de drogas.
(3) Dependências do fornecedor da droga: incluem-se nesta
categoria a relação com os revendedores ou os passadores da droga,
no caso das substância ilícitas, a relação com médicos ou
farmacêuticos para os medicamentos e a relação com os outros
tantos intermediários, fornecedores dos diferentes produtos.
(4) Dependências do financiador da droga: relações com aquelas
pessoas que asseguram a possibilidade de adquirir a droga, do
ponto de vista financeiro, podendo ser tanto os pais que sustentam o

115
Maria Fátima Olivier Sudbrack

filho, como um traficante que fornece a droga em troca de serviços


prestados ao tráfico pelo cliente.
(5) Dependências dos pares de consumo da droga: trata-se da
rede de parceiros envolvidos na troca de informações e de
endereços, no compartilhamento do uso, nas eventuais ajudas,
enfim, toda a cultura ligada aos rituais de consumo da droga. Esta
categoria é especialmente importante no caso de adolescentes para
os quais, muitas vezes, o grupo da droga constitui o único grupo de
referência e a dependência relacional do grupo pode ser, inclusive,
mais importante e, frequentemente, anterior à dependência de
substâncias.
(6) Dependências de crenças sobre o consumo de drogas: o
usuário busca restabelecer suas dificuldades pessoais e relacionais.
O efeito subjetivo dos diferentes produtos está intrinsecamente
ligado às representações que o sujeito usuário possui sobre os efeitos
das drogas que consome.

Conforme descrito acima, no enfoque sistêmico relacional buscamos


visualizar a cristalização das relações de dependência em seus diferentes
níveis, identificando e agindo sobre as estruturas disfuncionais que
denominamos sistemas aditivos. Neste sentido, as questões que se colocam e
que cada participante, desde a primeira entrevista, pode ser convidado a
responder, são as seguintes:
• Qual a natureza dos vínculos que predomina nesta família?
• Quem é dependente? De quem? E em quê?
• Como se revelam e como se caracterizam as dependências relacionais na família?
• Quem ganha e quem perde com as dependências?
• Qual o preço, para si e para os outros, de permanecer na condição de dependência
nesta família?
• Ou qual seria o preço de tornar-se autônomo nesta família?
• Como cuidar das dependências sem impedir a autonomia?

116
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

• Como se vive (ou não) as separações?


• Existe uma história de rupturas relacionais?

Esta ampliação do conceito de dependência do produto, incluindo


outros níveis de dependências nos diferentes contextos, onde a relação
com as drogas se articula e adquire significados e também revela situações
de riscos diferenciadas, tem se mostrado extremamente rica na nossa
experiência na clínica de adolescentes e jovens.
O primeiro nível das dependências relacionais afetivas nos remete à
temática da crise identitária e da conquista da autonomia do adolescente
em relação à família que, por sua vez, está vinculada ao movimento de
busca de vínculos externos ao núcleo afetivo primitivo.
A psicologia da adolescência destaca o valor das vivências grupais na
resolução da crise de identidade, mostrando que a identificação com os
pares é necessária para que o adolescente recupere a confiança em si
mesmo, a qual fica abalada a partir das tantas transformações que vive
nesta fase na qual ele nos surpreende a todo momento e, inclusive,
surpreende-se a si próprio. Em face dessa estranheza vivenciada pelo
adolescente, ele busca constantemente alguém que possa compreendê-lo
como tal. Sente-se compreendido na medida em que encontra outras
pessoas com os mesmos problemas com os quais se identifica e passa a
confiar suas angústias, seus medos, seus desejos, e mesmo suas experiências
mais íntimas relacionadas à sua vida amorosa e à sua sexualidade. Esta
intimidade e confiança depositada nos amigos fazem com que eles se
tornem um canal de forte influência na vida do jovem, superando, por
vezes, a influência dos próprios pais e educadores. Por essa característica
de busca constante de seus pares, os amigos constituem seu grupo de
maior importância e de referência. A rede de amigos é um contexto que
deve ser reconhecido no processo educativo e de socialização do jovem. O
grupo na adolescência adquire o valor de objeto transicional, no sentido
winnicotiano, necessário para que o adolescente possa viver seu processo
de separação da família, projetando-se na sociedade no papel de adulto.

117
Maria Fátima Olivier Sudbrack

Esta inserção em grupos de pares constitui, por sua vez, uma


dimensão fundamental que faz parte da complexidade da clínica da
drogadição na adolescência, trazendo como desafio a possibilidade de que
os grupos de amigos se tornem grupos com práticas delinquentes,
facilitadas pelo contexto de consumo de drogas. Nos referimos, aqui, não
apenas ao contexto de ilegalidade das drogas ilícitas mas, também, à
facilitação de condutas de violência ou transgressão associadas ao
exagerado consumo de bebida alcóolica, por exemplo. Por esta razão,
além das questões relacionais familiares, cabe avaliar-se, desde o
acolhimento, os riscos presentes em relação às dependências de contexto,
relacionadas às vinculações feitas pelo adolescente no recebimento, no
pagamento e no consumo do produto, acima citadas como dependências
do fornecedor da droga, dependências do financiador da droga e as
dependências dos pares de consumo da droga.
De acordo com o nível social e o produto de consumo os riscos se
colocam de forma diferente, mas cabe abordar com clareza os
compromissos do adolescente e suas vivências com contextos de risco aos
quais se expõe, por vezes ingenuamente, ou de forma onipotente,
considerando-se fora dos riscos ou das traições ou das estratégias
montadas pelos traficantes no caso das drogas ilícitas, assim como do
mercado e da publicidade no caso das drogas lícitas.
Esta leitura sistêmica da drogadição na adolescência nos conduz a
uma ampliação da análise da dinâmica familiar, em si mesma, incluindo as
relações com os amigos, dimensão sempre presente no discurso dos pais e
que são de vital importância no mundo afetivo do adolescente.
A rede de amigos e a natureza da sua participação grupal faz parte da
compreensão do processo da pseudo-individuação do adolescente
envolvido com drogas. Quando o grupo tem como único objetivo o acesso
e consumo de drogas, torna-se um fim em si mesmo e deixa de ser um
espaço transicional que promove a autonomização do jovem, pois as
relações que se desenvolvem passam a ter conotação de dependência,
fragilizando seus membros, na medida em que eles se comprometem mais
e mais com as drogas. Neste caso, o grupo pode vir a excluir o adolescente
ou algum evento externo pode tornar insustentável sua permanência no

118
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

mesmo. O adolescente fragilizado e fracassado precisa retornar à família


como seu único suporte, submetendo-se à obediência dos pais em uma
condição de dependência tácita e inevitável dos mesmos.
Este ciclo pode durar períodos diferentes e se repetir num processo de
recuperação da homeostase estabelecida entre a vida de família e a vida
grupal que impede a autonomia e sustenta o processo de
pseudo-individuação do adolescente (Stanton, 1988).
O caso J., relatado a seguir na vinheta clinica, oferece ilustração
clínica da importância de pertencimento ao grupo de pares como
alternativa de afirmação adolescente que se torna de extremo risco, na
medida em que o adolescente se vincula a um contexto de consumo e
distribuição de drogas ilícitas. Podemos também visualizar o difícil
processo de resgate da referência familiar que impede a inserção desviante
do filho, permeado de momentos críticos de um controle dos pais vividos
como infantilização pelo filho ao suportar a submissão e obediência aos
pais.
A seguir, ilustramos o risco da pseudo-individuação, através de um
caso clínico

119
Maria Fátima Olivier Sudbrack

Vinheta clínica (2): do poder e fama no grupo delinquente ao retorno para a família
J. é uma adolescente de 15 anos, tornou-se famoso com divulgação nas suas redes sociais de
festas Rave que anunciava em sua página, via Instagram. Estas festas eram espaços de oferta de
diversas drogas, mas do LSD em especial. Reconhece que oferecia sua colaboração para o
sucesso dos eventos que bombavam, graças a sua mobilização e liderança que tinha junto à sua
galera. Com esta função, conseguiu um impressionante número de seguidores nas redes sociais,
sente-se muito prestigiado e poderoso. “... Antes eles me ignoravam. Agora eu saí da estatística,
só faço coisa diferente. A lei não existe para mim, eu enfrento a autoridade. Sigo só a lei de
Deus! Vender drogas, para mim, não é crime, é comércio. Sei que faço a diferença saindo das
regras e eles me admiram pela minha coragem. Eu sou conhecido e respeitado pela galera! Isso é
muito importante para mim – agora saí do anonimato...”
Confrontado pela família, nega que estivesse trabalhando para o tráfico, minimizando a
consequência de sua atividade na divulgação dos eventos. No entanto, percebe-se que,
paralelamente, passou a ter reconhecimento dos traficantes que lhe distribuem uma cota para uso
pessoal. A mãe encontrou uma caixa de LSD escondida em gaveta de seu armário.
Além da gratificação pela popularidade nas redes sociais gerada pela sua colaboração nas
festas, J. conquista a admiração dos colegas da escola pelo descumprimento de regras,
enfrentamento de autoridades: costumava discutir com professores, usar drogas na sala de aula ...
Seu comportamento resultou em expulsão da escola, pela segunda vez, com pedido para que os
pais providenciassem urgentemente a sua internação pois estava dependente de drogas.
Questionado sobre seu consumo, nega ser dependente, embora relate experiências diversas e
familiaridade com muitos produtos: iniciou fumando maconha aos 13 anos, que ainda consome
alternando com LSD e ecstasy nas festas Rave. Já experimentou cocaína mas não se deu bem ...
Além da expulsão da escola, a crise se agravou com a ocorrência de evento de violência
entre J. e um amigo, surpreendidos pelo seu pai, brigando, no prédio de sua residência, ambos
sob efeito de LSD. Ocorreu que o pai de J. entrou na briga para defender o filho, provocando
entrada de outro adolescente para defender o colega, com agravamento das agressões,
interrompidas pelo porteiro do prédio. Não houve registro policial do evento, a pedido da família
de J.
O evento gerou ruptura de J. com o grupo e o amigo com quem se disputou, protegido pelo
pai. Assim, seu melhor amigo tornou-se seu rival, ameaçando sua imagem, liderança e
popularidade. A perda da liderança e de poder no grupo é o aspecto de maior sofrimento de J.,
que é invadido por fortes sentimentos de vingança e de ódio. Confessa desejo em recuperar seu
espaço no grupo, fazendo justiça com as próprias mãos: “eu tenho meus meios para acabar com
ele ”. Meu grupo é tudo para mim... eles sabem que eu não sou otário...”
A intervenção com J. e a família iniciou justamente após a crise do grupo, com violência física
entre J. e seu melhor amigo H., envolvendo o pai de J.
(continua)

120
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

Vinheta clínica (2): do poder e fama no grupo delinquente ao retorno para a família
(cont.)
Os pais, muito desorientados, procuravam uma comunidade terapêutica, vista como única
forma de proteger o filho e a família, ainda sob ameaças do grupo, consultam serviço
universitário especializado em dependentes químicos que os remete à nossa equipe de terapia de
família. Com a participação de J., seus pais e seu irmão menor (11anos), a equipe e a família
acordam em construir, como alternativa à internação, uma rede protetiva para J. sem afastá-lo,
mas submetendo-o a limites, permanecendo em casa. Com medo do grupo e reconhecendo as
ameaças para a família, o adolescente recuou de seus ímpetos de vingança e aceitou os limites
impostos pelos seus pais: proibido de sair de casa, de encontrar com os amigos, sem celular, J.
mostra-se infeliz e inconformado com sua falta de liberdade. As sessões em família, permeadas
por atendimentos individuais diários, permitiram uma continência da revolta e raiva vividas pelo
adolescente, controlando seus ímpetos de revidar com violência a humilhação que sofrera. O
tema da liberdade e da autonomia foi trabalhado em sessões de família, sendo criado espaço
intermediário de expressão para todos. Os pais se mostraram chocados e puderam expressar
suas angústias e medos pela situação gerada. Até então, a mãe assumira todo controle do filho,
numa postura protetiva e controladora. O pai se revela decepcionado consigo mesmo e solicita
ajuda para cuidar melhor do filho, pois não percebera os perigos que este vivia.
O exercício da autoridade do pai com o filho adolescente foi trabalhado em sessões pontuais
do subsistema pai-filho. O pai se culpabiliza por ter ficado tão distante do filho, com viagens
frequentes de trabalho. Avalia que o afastamento do filho foi agravado nos dois últimos anos por
ter priorizado cuidar da esposa diagnosticada com câncer, que exigiu prolongado tratamento. Este
momento foi o fator desencadeante das fugas do adolescente para a rua, sem controle dos pais,
com apenas 13 anos, envolvendo-se com drogas e delinquência. J. revelou que, neste período,
sentia uma grande tristeza porque se via abandonado e não entendia este distanciamento dos pais,
que esconderam a doença da mãe para proteger os filhos. “Então, sem meus pais no meu pé, eu
podia fazer tudo”. Mas sentia uma tristeza, porque eles nem ligavam mais...”
Uma reaproximação e fortalecimento do vínculo de confiança pai-filho foi possível como
resultado da intervenção. O pai busca atividades para fazer com o filho e descobrem afinidades:
futebol, aviação, filmes ... Na medida em que o adolescente se sente acolhido pela família,
aceitou os limites colocados, estes sempre vistos como transitórios. Nas sessões individuais,
trabalhava-se a importância de que reconquistasse a confiança perdida de seus pais. Aos poucos,
J. inicia uma reflexão rumo ao seu amadurecimento com postura crítica de sua conduta,
reconhecendo os riscos e gravidade dos fatos e dos atos cometidos. J. escolhe um novo colégio,
que passa a frequentar, embora sem qualquer motivação para estudar.
Foi importante vislumbrar a recuperação de sua imagem e confiança na família, como base
do processo. Mas a convivência no grupo de pares lhe faz falta e se constitui o próximo desafio
dentre as negociações com os pais. Mesmo adaptado em nova escola, fazendo esforço para
passar de ano, considera os colegas atuais “uns babacas” que não são do seu nível, pois são
muito infantis ... Passa a ficar com meninas, pois tem facilidade em conquistar as garotas ... refere
que deixou de usar drogas e pensa que não precisa disso para ser feliz ... Nunca assumiu ser
dependente de drogas. Considera que usava apenas para “fazer bagunça”.
(continua)

121
Maria Fátima Olivier Sudbrack

Vinheta clínica (2): do poder e fama no grupo delinquente ao retorno para a família
(fim)
Após dois meses com diversos atendimentos, permeando-se sessões de família, com
atendimentos individuais e com subsistemas (pai-filho e mãe –filho) percebe-se que o período de
“obediência” atinge seu limite para J. e ele começa a apresentar novos comportamentos de
rebeldia em casa e na escola. Em vez de estudar, escreve páginas e páginas de RAP que a mãe
critica como sendo uma cultura de bandidagem... J. diz que vai ganhar dinheiro com estas
poesias... seu projeto profissional é ser músico. Ao mesmo tempo em que temos a impressão que
tudo vai recomeçar, pontuamos no que está fazendo a diferença, destacando que, agora, J. pode
compartilhar falando para os seus pais, inclusive sobre esta necessidade de ser rebelde, o que foi
pontuado como busca de criatividade para suportar tantas restrições na sua vida. J. desabafa na
sessão de família o quanto ele está infeliz, vivendo uma rotina de vida imposta que detesta,
vendo-se obrigado a estudar e fazer sempre as mesmas coisas ... os pais mostram-se
inconformados, expressam sua decepção com o filho que não se mostra envolvido com os estudos
e pedem que ele aproveite a escola de sua própria escolha e que estão pagando com sacrifício. J.
desabafa que se surpreendeu com o nível de exigência desta escola e não sabe se será aprovado.
Os pais pedem que se dedique mais aos estudos.
Em sessão individual, J. confessa que decidiu voltar à sua vida: preciso retornar a viver com
meus amigos, não dá para ficar assim isolado. Sua maior reivindicação é recuperar seu celular, no
qual tinha acesso a toda sua rede social ... Questionado sobre como se sente para este retorno e
o que aprendeu da experiência sofrida? responde: - Descobri que lá, nada mudou, eu é que
mudei. Percebi que queria ser o melhor de todos, mas não é assim ... A gente quando erra tem
que saber pedir desculpas, sei que a galera ainda me aceita ... Trabalhamos sua crise identitária:
sua identidade depende do que você pensa de si mesmo, do que os outros pensam de você e do
que você pensa que eles pensam ... Questionamos se ele sabe o que quer para si mesmo, como
projeto de vida: - Quem é você? - Quem deseja ser? Um trabalho pessoal, em processo, se revela
com suas palavras sinceras e emocionadas: sei que estou mais fortalecido, mas ainda perdido...
O momento é precioso, com importantes questões: como reconstruir um novo espaço de
reconhecimento e gratificação positivos de que J. necessita, além da família? Como mediar seus
conflitos ainda presentes nas relações com o grupo? Quais riscos ainda apresenta de novos
envolvimentos delinquentes? Como promover novos pertencimentos de que necessita para superar
sua posição atual de isolamento, desmotivação e sentimentos de fracasso na vida social? Como se
divertir sem se colocar em risco pelo envolvimento com drogas?

A criatividade do terapeuta é ingrediente fundamental na clínica da


complexidade com adolescentes. Uma possibilidade de expressão é a
redação de RAP, iniciativa do próprio adolescente que será explorada em
seus potencial terapêutico, pois a arte se coloca como objeto
intermediário, bem conhecido para estes casos.

122
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

Esta vinheta, embora relatando apenas uma etapa inicial (dois meses)
do processo de intervenção sistêmica que apresentamos como uma clínica
da complexidade na drogadição de adolescentes, ilustra que o maior foco
não se coloca na relação com o produto, mas nos riscos atrelados pelos
vínculos com os pares, numa análise que se amplia para as dependências
de contexto. Entendemos que o resgate das referências familiares faz toda
a diferença, neste momento. A natureza do vínculo que o adolescente
constrói junto aos grupos de pares vai definir se as transgressões serão atos
adolescentes apenas de passagem ou se vai ter uma inserção marginal mais
definitiva, como alternativa compensatória da falta de referências
familiares estruturantes.

3 - Drogadição e (a) filiações nos grupos de pares:


transgressão, margem e desvio
Se, por um lado, o vínculo grupal com os pares, na adolescência,
representa fonte importante de referência, de pertencimento e, portanto,
de influência estruturante no seu processo de autonomização da família, o
envolvimento com drogas pode contribuir para uma cumplicidade grupal
que não seja estruturante, na medida em que promove comportamentos
delinquentes que conduzem o adolescente a uma identidade desviante
(Selosse, 1997).
O contraponto da vivência grupal construtiva e necessária à
socialização é a inserção em gangues com fins destrutivos, nas quais o
adolescente satisfaz sua necessidade gregária mas corre riscos de se
envolver com a cultura marginal e riscos atrelados. Os jovens que não têm
oportunidade de viver experiências em grupos sadios tenderão a fazê-lo
em ambientes marginais, onde o grupo não sustentará sua finalidade
estruturante de transição da família para o papel de adulto na sociedade.
A inserção nos grupos juvenis poderá se tornar um contexto de risco se,
em vez de uma ampliação das vivências afetivas e de socialização vividas
no seio da família, representar um espaço de inclusão substitutivo à
família. O grupo, nesse caso, não se coloca em benefício do

123
Maria Fátima Olivier Sudbrack

amadurecimento de seus membros, mas torna-se um fim em si mesmo,


com uma função de pertencimento identitário e não transitório. Neste
caso, os vínculos de afiliação com os pares dão lugar a uma filiação, ou
seja, preenchem uma função substitutiva da família.
Uma das dimensões da complexidade da clínica das dependências
com adolescentes é que precisamos avançar do espaço restrito da família
para uma compreensão dos comportamentos marginais como ampliação
das experiências afiliativas próprias do processo de socialização. No
entanto, devemos ficar atentos ao tipo de inserção e aos destinos dos
grupos de pertencimento. É fundamental a distinção entre filiação e
afiliação e também entre comportamentos à margem na adolescência e
opção pelo desvio ou pela identidade marginal.
Um dos maiores desafios que o adolescente enfrenta quando se
propõe a deixar ou diminuir o consumo de drogas, mesmo consciente de
seus riscos e prejuízos, é o afastamento dos amigos, ou seja, sua
dependência dos pares de consumo. Muitas dimensões da vida do jovem
entram em jogo quando precisa se afastar daquele que, por vezes, é seu
único espaço de acolhida e de pertencimento. A vinculação com os pares
no contexto do uso de drogas ilícitas gera cumplicidades e também
possibilidades em relação às demais dependências de contexto:
dependência do provedor e dependência do fornecedor. Cabe aqui
reconhecer a proteção do grupo e também a segurança relacionada à
compra e ao pagamento da droga. Na clandestinidade do comércio ilegal,
embora cada vez mais tolerado e facilitado pelas próprias redes sociais, os
laços de confiança e de lealdade se constroem e se fortalecem. A união do
grupo, por vezes, sobrepõe o interesse e a vontade individual.
Os atrativos pela transgressão, que são próprios da adolescência,
encontram uma funcionalidade que se torna praticamente irresistível para
o adolescente que se encontra fragilizado em sua imagem e autoestima, ou
em conflito na família. O mercado de distribuição de drogas explora ao
máximo esta condição que é, paradoxalmente, própria da condição
adolescente, e de forma impiedosa lhes oferece oportunidades irresistíveis.

124
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

A qualidade dos vínculos com a família determina o destino da


participação grupal. Enquanto para os adolescentes marginais as
atividades transicionais têm algo a ver com o interdito de criação, para os
desviantes destaca-se o interdito de participação, quer dizer, uma recusa de
toda identificação social e uma busca de gratificação pela exploração do
outro. A natureza da participação grupal e do que buscam nos grupos é
diferente: enquanto os adolescentes na condição de condutas “à margem”
conseguem se expressar por meio de uma diversidade de pertencimentos
grupais, aqueles que enveredam para o “desvio” se refugiam em situações
que necessitam para se afirmarem no grupo e na sociedade, voltados
apenas para suas necessidades primitivas de afirmação a qualquer custo e
de inclusão desesperada. Assim, nada mais conseguem do que se deixar
conduzir por um cego caminho, sem rumo claro, perdendo-se em
reivindicações que podem acabar por compulsivos atos de destruição.
A literatura aponta esta problemática da separação afetiva como uma
característica presente nas famílias dos jovens dependentes de drogas que,
em geral, só conseguem sair em ruptura com os pais, o que
metaforicamente se coloca com “sair pela janela ...”, pois um dia deverá
ainda retornar para buscar suas coisas e sair pela porta da frente (Ausloos,
1983). Nos períodos de ruptura dos vínculos familiares podem encontrar
substitutivo nos grupos de pares nos quais estabelecem filiações, pois se
vinculam de forma substitutiva à família, em vez de construírem afiliações
entre pares que ampliam seu mundo familiar para novos espaços afetivos.
Sendo a delinquência juvenil um fenômeno essencialmente gregário,
os atos de transgressão cometidos por adolescentes em grupo e
determinadas experiências na cultura marginal merecem sempre uma
consideração destes aspectos da pressão grupal sobre o jovem, por um
lado e, por outro, de seu fascínio por experiências de cunho “marginal”.
Estes comportamentos marginais precisam ser compreendidos em sua
natureza transitória e, paradoxalmente, estruturante na adolescência.
Como nos ensina Jacques Selosse (1997)

125
Maria Fátima Olivier Sudbrack

a margem é, ao mesmo tempo, o campo da ilusão e o espaço de


tensão que permite descobrir e testar a elasticidade, a diversidade e a
finalidade das mudanças da adolescência (...). Nesta dupla
perspectiva, as marginalidades juvenis podem ser consideradas como
condutas de explorações, de tentativas e erros que utilizam um espaço
de transição e de negociação para efetuar as ligações e re-ligações
próprias à adolescência, a fim de estabelecer novas relações consigo
mesmo e com novas pessoas significativas, através de diversas
tentativas de trocas emocionais e corporais. O espaço adjacente à
margem constitui, de certa forma, o acesso a uma outra cena, por
uma outra representação de si. A margem é a zona de ilusão propícia
às experiências, à criatividade e à efervescência sexual. O tempo da
margem na adolescência pode ser considerado como o de uma nova
gestação, de um renascimento. A margem é um tempo público,
propício às identificações múltiplas e efêmeras, facilitando a tentativa
de estilos de sociabilidade e de solidariedades. Mas, a margem é
também, um tempo privado, no decorrer do qual o jovem tem como
companheiro de viagem seu próprio corpo. Para a maioria dos
adolescentes, a viagem da margem responde a um rito de passagem
no decorrer do qual, separação gestação e reintegração vão marcar as
etapas significativas. Permitindo a afirmação, a originalidade e a
diferenciação, a saída do adolescente da margem poderá ser bem
sucedida quando ele conseguir elaborar a angústia face à sua
problemática identitária.

Seguindo esta fantástica contribuição em psicossociologia clínica, que


aporta, a nosso ver, uma fundamental compreensão da complexidade do e
dos paradoxos vividos pelos adolescentes, entendemos que a utilização do
espaço da margem no curso da adolescência permite transpor para um
espaço externo e tentar enfrentar as transformações não controladas da
puberdade. Trata-se, para o adolescente, de redefinir novas fronteiras com
o seu ambiente, entre seu espaço psíquico interno e o mundo externo, de

126
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

descobrir os significados simbólicos da troca, de redistribuir valores aos


objetos e de negociar novas relações com as normas e com os poderes.
O processo de afiliação e a continência encontrada no grupo de pares
é estruturante na construção identitária. O grupo funciona como objeto
transicional, rumo à autonomia e separação necessária da família. O
grupo de adolescentes adquire coesão pela comunidade de interesses e de
necessidades: praticam as mesmas atividades, padecem dos mesmos
problemas. Esta identificação e aliança com o grupo que consome drogas
confere aos adolescentes a segurança de que necessitam, permite
protegerem-se do abandono, da repressão e, por vezes, das precariedades
econômicas em que vivem. Articulam-se, aqui, muitas necessidades e o uso
de drogas torna-se um ato inerente à subcultura do grupo de pares,
adquirindo um efeito socializador.
A capacidade antidepressiva das substâncias psicotrópicas utilizadas,
seus efeitos desinibidores que facilitam a comunicação e o sentimento de
comunidade, criado pela cumplicidade de usar drogas, aliados ao contexto
de transgressão, produzem um bem-estar artificial que se converte em
antídoto frente à depressão que vivem os jovens em condições familiares e
sociais adversas.
As imagens associadas à margem são as da curiosidade e da exploração,
da diferença e da semelhança. A saída da adolescência pode, no entanto,
fracassar se o jovem se mantiver prisioneiro da difusão de seu eu na
multiplicidade de seus personagens. A margem é a borda do compromisso
entre identidade social e pessoal.
A prática de transgressão pode gerar conflitos com relação a uma
identidade delinquente:- Quem eu sou? - Sou mau?- Como pude fazer essa
maldade? - O que está acontecendo comigo?- Como posso ser tão diferente em momentos
diferentes? - Qual é o meu verdadeiro EU? - Como saber quem sou eu verdadeiramente?-
Quem pode me dizer?- O que pensam sobre mim? - Como eles me veem? - Eu vou ser o
que eu quero ser ou o que eles querem que eu seja?
É preciso distinguir, pois, os comportamentos à margem dos
comportamentos desviantes dos adolescentes. Enquanto os

127
Maria Fátima Olivier Sudbrack

comportamentos à margem representam movimentos transitórios de


curiosidade, experimentação e de descobertas, inclusive de viver a
transgressão passageira, ligada à busca de exploração e criação, os desvios
consistem em dinamismos de condutas que derivam da trajetória da busca
de referências espaciais que perdem sua orientação, que se chocam por
falta de referências.
Os desvios remetem a processos de ruptura e de falta de referências,
com imagens associadas à queda, à ruptura, ao afrontamento e ao fracasso. A
queda evoca o desequilíbrio, o transbordamento, o desmoronamento por
falta de envolvimento ou por falta de limite. A queda engendra a fratura;
aqueles que caem são aqueles que tombam e que repetem os cenários do
abandono. Os desviantes são aqueles que não possuem vínculos para
retê-los ou cujos vínculos são muito rijos/arraigados/sem elasticidade ou
muito sufocantes para que eles possam utilizá-los para desenvolver suas
condições de controle dos impulsos para que se tornem mais donos de si
mesmos. Mais do que os marginais, os desviantes reagem à privação de
figuras afetivas. Não podendo representá-las, eles não podem antecipar as
expectativas do outro e só encontram satisfação através da excitação
gerada pela provocação social. Privados de ancoragem, de linhagem e de
legados transgeracionais, os jovens desviantes utilizam a ruptura, a
derrapagem social.
Além de uma carência primitiva e de uma falta fundamental, é a
partir de um fantasma de dívida e de submissão a uma injustiça que a
maioria dos desviantes age, por desafio, por reivindicação e por
transgressão, em benefício único de sua afirmação, como se a vida lhes
devesse satisfação e lhes autorizasse a serem sujeitos de exceção: fora da
norma, fora da lei. Observemos igualmente que, para determinados
desviantes, acrescentam-se ao sentimento de dívida os sentimentos de
perseguição, com uma projeção do conflito para o exterior o que os coloca
fora de si mesmos e fora da norma (Selosse, 1997).
Finalizamos apostando na possibilidade de avançarmos para uma
clínica da complexidade da drogadição na adolescência, a qual resulta em
uma intervenção com as famílias, contextualizada nos demais imperativos

128
A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

da socialização desta fase de vida que se prolonga junto aos grupos de


pares. Estes, por sua, vez, nem sempre garantem o processo socializador,
podendo, ao contrário, favorecer uma inserção desviante ou uma
identidade delinquente. Para tanto, o desafio para uma intervenção
complexa implica a ampliação dos atores envolvidos no processo
terapêutico, através de intervenções sistêmicas que extrapolam a família,
propriamente dita, incluindo-se atendimentos grupais e comunitários.
Nesta perspectiva, vimos seguindo metodologia da prática de redes, na
qual concebemos a rede como linguagem dos vínculos (Dabas e
Najnamovich, 1995) e da terapia de redes (Saidon, 1995; Pakman, 1995).

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A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

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132
CAPÍTULO 2.2

O paradigma da toxicomania para além


da droga:
a clínica das adições generalizadas

Giovana Quaglia

Hipermodernidade e satisfação
O dogma produtivista do alto conhecimento a qualquer preço, do
consumo exagerado e da “rainha” economia não encontra mais eco
entre os jovens que se interrogam sobre seu futuro, apontam a
destruição ambiental, as humilhações escolares e as mortes por
excesso de trabalho. Entretanto, quando a sociedade dominante não
conhece outros deuses além do índice Nikkei e considera a abertura
das lojas aos domingos um avanço social, em direção a que valores
podem (os jovens) voltar-se? (Barral, 2001, p. 21)

A hipermodernidade define a situação paradoxal que a sociedade


contemporânea se encontra entre a cultura dos excessos e o elogio da
moderação. É preciso ser mais que o outro, ser o mais fashion, o mais
descolado, mais bonito e, ao mesmo tempo, valorizar a natureza, o
equilíbrio, a paz. Como nos indica Lipovetsky (2004):
No cerne do novo arranjo do tempo social, temos: a passagem do
capitalismo de produção para uma economia de consumo e de
comunicação de massa; e a substituição de uma sociedade
rigorístico-disciplinar por uma sociedade-moda completamente

133
Giovana Quaglia

reestruturada pelas técnicas do efêmero, da renovação e da sedução


permanentes. (p. 60).

A temporalidade passa por um deslocamento do futuro para o


presente. Observa-se a consagração do agora. A hipermodernidade
revela-se em um excesso de velocidade. O tempo de espera, mistério,
enigma, que jogava ao futuro uma interrogação, é substituído por uma
procura desenfreada por respostas. Toda dúvida que ocorra pode ser
subsumida ao acesso instantâneo de soluções oferecidas pelo consumo,
tecnologia e conectividade. Se existe um mal-estar, se algo está fora do
feliz, saudável, produtivo, eis uma razão para ir ao google e inferir rapidamente
uma localização ao que antes era inexplicável, e assim buscar no mercado
a solução mágica!
Estamos nos tempos do Wi-Fi, carregando no bolso aplicativos e
soluções em softwares que me conectam ao mundo. Vivemos em fotos selfies,
em que compulsivamente clico-posto minha pseudo-felicidade. Na imagem
tudo posso! O tempo que não vivo é eternizado na exposição das imagens
pelo Snapchat e Instagram. Os amigos que não tenho e não encontro falam
comigo pelo Facebook e Whatsapp. As ideias que não desenvolvo são jogadas
em frases no Twitter. Os heróis que não existem podem ser seguidos no
Youtube. Para que esperar o próximo episódio de uma série se posso
assisti-la inteira, de uma só vez, no domingo pelo Netflix?
Online é a tendência!
Na apresentação do livro A Era do Vazio, Silva (2005) sinaliza: “Não
queremos a ilusão do futuro nem a coerção do passado. Postulamos a
intensidade do aqui e do agora como necessidades vitais” (p. XIII). A
satisfação imediata dos prazeres estimula a urgência do consumo, enaltece
a imagem de um paraíso artificial do bem-estar, conforto e lazer. Para que
esperar para amanhã a satisfação que posso ter hoje? “I can get now
satisfaction”. Surge toda uma cultura hedonista e psicologista que estimula a
urgência dos prazeres, incita à satisfação imediata das necessidades.

134
O paradigma da toxicomania para além da droga: a clínica das adições generalizadas

Consumir sem aguardar. Postar a imagem sem saber exatamente quem


viveu aquela cena.
Os tempos são de mostração (dizer as coisas que estão na aparência)
e, distanciando da preocupação com a demonstração (dizer as coisas como
são na essência).

Esvaziamento pelo excesso


O hiperinvestimento online na satisfação exibicionista trouxe, por sua
vez, um voyeurismo invejoso promovido pelo ideal especular do discurso
do capitalismo e seus avatares de prazer. Sempre parece ter alguém mais
feliz, mais bonito, mais rico, mais saudável, viajando mais... indo a mais
festas... com mais amigos.... mais... mais....
No mercado do consumo não cessam de ser lançados produtos.
Ocorre uma desatualização constante dos objetos adquiridos, que passam
a ser descartáveis e devem ser substituídos por outros mais novos, pois são
ultrapassados.
Do mais ao menos. Como no Mito dos Carregadores de Água, os
tonéis furados do Górgias (Platão), quanto mais tenho menos estou perto
de ter! Vivemos para a encher a imagem e nos esvaziamos na existência,
em uma precariedade de satisfação, efeito de uma falta que, forçosamente,
exige ser suprida.
Lipovetsky (2005) sustenta:
quanto mais se desenvolvem as possibilidades de encontro, mais os
indivíduos se sentem sós; quanto mais as relações se tornam livres,
emancipadas das antigas restrições, mais rara se torna a possibilidade
de conhecer uma relação intensa. Por todo lado há solidão, vazio,
dificuldade de sentir, de ser transportado para fora de si mesmo (p.
57).

Na hipermodernidade, para além da presença do esvaziamento pela


mais-valia, poderíamos falar também de uma “solidão conectada”, que seria

135
Giovana Quaglia

esse contraditório de estar só acompanhado, seja dos outros, seja dos


dispositivos eletrônicos. Estar conectado 24 horas não é garantia de ter
conexão afetiva. Esse é o paradoxo!
Solitário e esvaziado de um lado e, de outro, conectado a uma
felicidade prometida da imagem. Vivência de insatisfação e isolamento
fazem com que as pessoas se deparem cada vez mais com uma dor
invasiva, sensação de abandono, falta de propósito, uma agonia
incompreensível, um existir sem sentido.
Um mal-estar que se localiza em formações sintomáticas no corpo, ou
em atos impulsivos, vazios de sentidos e inexplicáveis. Hoje recebemos
pacientes com queixas sobre o inevitável, o incontrolável, um mal-estar
que invade, salta e envolve o corpo.
Contudo, na hipermodernidade não existe muito tempo a perder
com as desmedidas das emoções. Já não é mais possível ficar triste,
angustiado; mas também não se pode ficar muito alegre, cantar sozinho
ou falar com as paredes. Não é possível chorar e depois rir sem parecer
estranho. Parece ser necessário estar sempre estabilizado. Quem não se
encaixa no padrão equilibrado deve procurar um tratamento, pois o
discurso social aponta que algo não está correto, não está normal!

A mercadoria simbólica da normalidade


Presentificamos uma patologização dos sentimentos cotidianos,
qualquer emoção fora de uma normativa social é submetida ao anormal.
Vivemos uma psicopatologia classificatória, com significantes mestres da
medicina e das estatísticas. Se no olhar da psicanálise o significado do
sintoma pode variar na singularidade de cada um, o significante
promovido pelos manuais psicopalogiza as vicissitudes do viver. DSM e
CID são sistemas de diagnóstico que transformam sintomas particulares
em classes universalizantes de transtornos mentais. Exclui-se a
subjetividade em prol da objetividade científica. Percebe-se a
racionalização da dor (subjetiva) em transtornos classificáveis e curáveis, a
partir do advento da vertente científica do pharmakon.

136
O paradigma da toxicomania para além da droga: a clínica das adições generalizadas

A nomeação médica de um transtorno passa a ser um “alivio”, pois é


um ato de sentido para o que não fazia sentido. O diagnóstico fornece um
ganho rápido aplacando a angústia, a falta de significação para a dor,
ancorando o sujeito numa formação imaginária de significado, mesmo
que nessa rotulação ele se torne um “anormal”.
Essa explosão de categorias tem sempre seu reflexo na dinâmica dos
grupos sociais. “Microgrupos, micrototalidades” que alojam uma pertinência
possível vinculada a um modo de nomear como se sofre e se tem prazer
(Sinatra, 2013). Nessa pretensão de pertencimento se vê uma tentativa de
tamponar um vazio ineliminável singular, a cada um, em seu existir.
As condutas patologizantes estão no lugar comum e os diagnósticos
são simplificados. Visando à objetividade apagou-se a fala, pergunta-se
apenas por comportamentos, humores, por sintomas visíveis, e dessas
informações se extrai um transtorno e um pharmakon prêt-à-porter.
Caímos no clichê. Eu sou... bipolar, alcoólatra, anoréxico, deprimido,
hiperativo, traz um lugar comum e seguro para as diferenças. No eu sou,
instala-se, pelo discurso da ciência, um saber sobre o mal-estar e uma
fórmula de pertencimento.
Diante de tantos transtornos acompanhamos a revolução da
farmacologia e seu arsenal de químicos, que passaram a ser os
responsáveis pelo domínio da loucura fora dos manicômios. Tudo que foge
do normal merece a aplicação da norma, e a química instrumentaliza a
norma; passando a ser item indispensável para uma pseudoconvivência
em uma sociedade feliz.
Em Fedro, Platão (1975) nos indicava que a linguagem é um
pharmakon e, como tal, possui diferentes efeitos de sentido: poção mágica,
cosmético, remédio, veneno. Se tomarmos o sentido de remédio,
percebemos que no discurso da ciência o pharmakon, na cápsula química da
indústria farmacêutica, passa a ocupar um lugar central na sociedade de
capitalista. A medicação adquiriu um significado cultural de símbolo de
saúde mental, bem como objeto de direito dentro do mercado de
consumo.

137
Giovana Quaglia

É alarmante, mas é quase impraticável alguém ir ao médico hoje,


relatar um mal-estar na “alma” e não sair com a prescrição de algum
medicamento. Ansiolítico, antidepressivos, estimulantes, estabilizadores do
humor... poções mágicas dos xamãs da ciência na sociedade de consumo.
A droga prescrita é a droga do bem! Intoxicar-se passa a ser
mercadoria de prateleira para a sobrevivência da cultura. “A farmácia da
vida cotidiana abre sua maleta como modo de responder aos impasses do
novo mundo” (Beneti, 2012).
Na medicalização dos sintomas ocorre a supressão química do sujeito
do inconsciente. O medicamento torna o insight dispensável, reduzindo o
mal-estar a um cérebro problemático, com um déficit químico. A equação
da saúde mental é tratamento=supressão de sintomas. Com tanto
mal-estar, tantos sintomas, caímos na ironia do “todos medicados!”.
Percebe-se, por um lado “uma sociedade de consumo que é
caracterizada por ser uma sociedade de excessos e extravagâncias, de uma
multiplicidade de objetos de desejo e, portanto, da redundância e de largo
desperdício.” (Bauman, 2008, p. 126). Por outro, a explosão das
classificações e seus espectros, que tentam descrever as mais variadas
formas de sofrimento e tratá-las com um mercado de pharmakons
produzidos em nível global e cada vez mais ao alcance de todos, com
vistas a eliminar qualquer sintomatologia desestabilizadora do bem-estar
social.
E é aqui que tempo, tecnologia, imagem, mercado e pharmakon se
unem em um bem comum de normalidade, criando um paradigma sobre a
toxicomania hoje.

Toxicomania ontem & Adições hoje


Eu diria que hoje vivemos uma toxicomania às avessas. A
toxicomania hiper-moderna não é a de Cristiane F, Tomaz de Quincey,
William Burroughs. Esses são nomes de toxicômanos de outros tempos.
Junks. Eram toxicômanos rebeldes, cínicos ao capitalista, insubmissos ao
mercado consumista, na contracultura, entregues a um prazer localizado.

138
O paradigma da toxicomania para além da droga: a clínica das adições generalizadas

O toxicômano hoje está dentro do discurso capitalista e sua produção


infindável de objetos de consumo. Sua solução de pharmakon está em
participar da competição social, ser produtivo, não manifestar oscilações
de humor, não se irritar, não comer muito, não dormir muito, fazer
exercícios, trabalhar, fazer shopping, seguir uma carreira, fazer crédito, ter
uma família, ficar online, ser yuppie.
Isso se reflete no aumento do consumo de algumas drogas para
aumentar a produtividade de trabalho e intelectual – drogas para manter
o foco e humor estável. O sujeito é fabricado para estar em vigília, em um
gozo homem-máquina que precisa estar concentrado, conectado e ser
invencível 24 horas por dia, imerso na temporalidade urgente do relógio
da consciência.
Sim, ainda observamos seres que usam drogas andando pelas ruas.
Mas cabe refletir que embora usem drogas, não são obrigatoriamente
toxicômanos. Aquilo que chamamos de cracolândia não é um lugar
obrigatório de toxicômanos. Acima de tudo, é um local de excluídos do
discurso capitalista, pessoas sem acesso aos bens de consumo e à inclusão
via capital. Pessoas que podem usar drogas, mas que também são
depositárias do racismo, violência, seres que passam fome, e sobrevivem
na ausência do Estado de Direito. Essas regiões nas grandes cidades são
locais que apontam para a complexidade das questões sociais no mundo
contemporâneo e merecem um estudo mais despreconceituoso. Creio que
é preciso ficar atento para não usarmos a imagem da exclusão e da
segregação como imagem e nomeação da toxicomania.
Observamos que muito da confusão que existe advém do fato de que
uma das principais questões conceituais na área das toxicomanias está no
fato de que a ciência concebe o fenômeno das toxicomanias a partir de
uma visão normativa, centrada no objeto droga. Um discurso que ao falar
das drogas, situa o destino pharmakon como um veneno que intoxica e
degrada a alma. A droga das ruas é a droga do mal!
Assim, tanto do ponto de vista jurídico como médico, encontramos
uma concepção policialesca e repressora na relação de um sujeito com a

139
Giovana Quaglia

substância, que tende a reduzir o usuário de drogas a um dejeto e


confundi-lo com a sombra de um objeto persecutório, maligno, capaz de o
deteriorar por inteiro.
Sem dúvida, na clínica enfrentamos situações que podem, por vezes,
nos confundir a respeito do que seria o sujeito e o que é a toxidade da
substância. Porém em um olhar mais atento, é necessário perceber que a
toxidade, do ponto de vista psicanalítico, se coloca mais no sentido
significante que o objeto toma na formação subjetiva de cada sujeito, do
que diante de suas propriedades químicas inerentes.
Existe um divisor teórico e de abordagem entre a psicanálise e o
ponto de vista médico ou jurídico. De um lado, temos uma nomenclatura
para situar uma maneira subjetiva de um sujeito se ligar a um objeto em
um determinado momento de sua vida, de outro, temos o nome dado a
um quadro sindrômico ou normativo que estabelece a relação a partir da
quantidade e da qualidade da substância. No primeiro, o destaque está no
sujeito e, no segundo, importa-se com a substância, o que destaca o objeto
e não o sujeito, produzindo um deslocamento que revela as políticas atuais
de redução da subjetividade.
A ciência das dependências ou dos transtornos decorrentes do uso de drogas vem
tentando classificar esse inclassificável do sentido subjetivo que uma
substância pode ter para alguém, generalizando em veneno seu valor
pharmakon. O esforço de tratamento, nesse sentido, é o de introduzir uma
terapêutica da medida, da contabilidade, de um comportamento
mensurável e modificável. Um discurso ideológico, justificado por
estatísticas, que atribui uma natureza unicamente tóxica sobre a
substância e seus efeitos patológicos.
Diante desse posicionamento, a substância torna-se central e é
colocada como causa de uma espécie de “peste” que se alastra pelo mundo
e, por isso, deve ser combatida e seu uso proibido. Porém, a cada
momento surge uma nova substância e, a lista de drogas vai sendo
ampliada. Um enxame de drogas na rua, uma infinidade de substâncias
que deveriam ser controladas, reguladas, proibidas, evitadas.

140
O paradigma da toxicomania para além da droga: a clínica das adições generalizadas

Como consequência desta hipervalorização da substância criou-se


uma cultura de guerra às drogas e aos usuários, o que justifica políticas
repressivas e de tratamento compulsórios, invasões de privacidade,
aprisionamento indevido, imposições de condições desumanas e
degradantes. A guerra também alimenta um imaginário social que reforça
atitudes preconceituosas e segregacionistas em direção aos seres que
consideram “amaldiçoados das drogas”, entre eles: negros, moradores de
rua, desempregados, abandonados. A grande confusão imaginária faz até
hoje estereótipo dos usuários de drogas com os excluídos sociais,
dificultando ações mais humanitárias e cidadãs.
Porém, também é observável, na atualidade, uma crescente tendência
de queda da política repressiva e sua abissal lista de drogas malignas. O
debate sobre a possibilidade de legalizar o consumo de drogas está em
pauta. A política de redução de danos vem se confirmando como uma
maneira mais humana de lidar com a questão. Não há dúvida, em um
amplo espectro político e social, de que a guerra às drogas falhou. Se antes
o sistema classificatório pretendia localizar o mal da desmedida e
controlá-lo, hoje, como apontei no inicio, com as mudanças da
hipermodernidade e a ascensão do hiperconsumismo, temos uma
onipresença do direito ao descomedimento, tornando praticamente
impossível tentar regular a via de satisfação que uma pessoa pretende
obter. A possibilidade de obtenção de prazer deixa de estar localizada em
uma substância e passa a estar por toda parte.
O paradigma que se coloca na contemporaneidade é o de que ao
situarmos uma patologia em um objeto, não observamos exatamente a
capacidade de deslizamento do desejo para além da necessidade. A
velocidade de produção de pseudonecessidades e o consumismo
desenfreado promovido pelo capitalismo, conjugados à oferta dos mais
variados tipos e combinações de pharmakons, nos faz refletir se não
estaríamos passando da era das toxicomanias para a das adições
generalizadas?
Hoje, não vemos na clínica mais tantos casos clássicos de
toxicomanias. O que percebemos é um mal-estar causado a partir da

141
Giovana Quaglia

relação das pessoas com os objetos de consumo cuja aquisição e falta


norteiam o cotidiano. O que seria direito torna-se dever. O imperativo é
“você tem que ter!” O direito acabou tornando-se obrigação. Os objetos
se impõem e a busca por eles causa um empuxo aditivo decorrente da
promoção incessante de mercadorias para consumo.
Com isso, podemos afirmar que o que chamamos de tóxico mudou.
Se antes o tóxico era uma droga, hoje as listas infindáveis de objetos do
desejo nos apontam que o tóxico pode ser qualquer coisa: drogas, sexo,
comida, internet, bebida, dinheiro, amor, roupas, trabalho... O discurso
atual impulsiona para a plasticidade infinita da produção das
possibilidades de escolha no universo do consumo. A cultura do consumo
fomenta uma busca ativa de objetos descartáveis, na tentativa de obtenção
da tal satisfação plena e generalizada.
Ao falar adições, o que se pretende é uma provocação via esse plural.
Adições nos convoca a refletir que não existe uma única forma de um
sujeito intoxicar-se. Fazer da droga o mal e com ela guerrilhar chega a ser
uma piada. Constatamos que na atualidade tudo ou qualquer coisa pode
tornar-se “droga”, num escorregar metonímico: facebook, relacionamentos,
celular, jogos, séries de TV, roupas, música, comida, jogo, sexo, fotos,
viagens.
“Todos adictos ao consumo de massa” (Sinatra, 2010, p. 13). Nesse
sentido, a discussão acerca das toxicomanias pode ser ampliada a partir da
abordagem desta não somente enquanto uma configuração sintomática
atual relacionada ao abuso de drogas, mas também enquanto o próprio
caráter adictivo da civilização hipermoderna, ancorado num modelo
capitalista.
O paradigma do sujeito dos nossos tempos é o do consumidor voraz, seja
de pharmakons ou da infinitude de objetos lançados no mercado de consumo.
Ao falar de adições generalizadas, situamos um sujeito que tem um modo
constante de busca por prazeres e sua face sem-limite. Uma maneira
incansável de ser insatisfeito. Seria pensar as adições nos termos do que se
repete sem parar de repetir. Assim, embora seja um modo de prazer, ele

142
O paradigma da toxicomania para além da droga: a clínica das adições generalizadas

nunca se sacia, “o gozo é o tonel das Danaídes, e que uma vez que ali se
entra não se sabe aonde isso vai dar. Começa com as cócegas e termina
com a labareda de gasolina" (Lacan, 1992, p. 68).
O paradigma da toxicomania está nesse mais além das drogas que se
impõem na atualidade, essa busca do prazer que vai das “cócegas a
labaredas”. Se Freud nos indicava que uma das saídas para o mal-estar era
a intoxicação, hoje observamos uma intoxicação generalizada. Não há
nada mais atual do que ser adicto!

Referências
Bauman, Z. (2008). Vida para o Consumo – A transformação das pessoas em
mercadorias.. Rio de Janeiro: Zahar.
Barral, E. (2001). Otaku – Os filhos do Virtual. São Paulo: Senac.
Beneti, A. (2012). A farmácia sinthomática da vida cotidiana
c o n t e m p o r â n e a . B o l e t i m @ D D i t o 1 5 . Re t r i e v e d f r o m
http://jornadaebpmg.blogspot.com.br/2012/09/ddito-15.html
Lacan, J. (1992). O Seminário: livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar.
Lipovetsky, G. (2005). A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo.
Barueri: Manole.
Lipovetsky, G., & Charles, S. (2004). Resenha: Os tempos Hipermodernos,
de Gilles Lipovetsky. Revista de Ciências Sociais, 25(2), 135-138.
Platão (1975). Diálogos. Volume V. “Fedro”. (Trad. C. A. Nunes). Pará:
Universidade Federal do Pará.
Silva, J. M. (2005). Vazio e comunicação na era “pós-tudo”. In G.
Lipovetsky, A Era do Vazio Barueri, SP: Manole.

143
Giovana Quaglia

Sinatra, E. (2013). L@s nuev@s adit@s: la implosión del género em la feminización


del mundo. Buenos Aires: Tres Haches.
Sinatra, E. (2010). Todo sobre las drogas?. Buenos Aires: Grama.

144
CAPÍTULO 2.3

Toxicomania e adições:
a clínica viva de Olievenstein

Diva Reale
Marcelo Soares da Cruz
Fabio Carezzato

Um Quilt para Olievenstein


Somos todos caudatários dos ensinamentos de Olievesntein: a
geração dos pioneiros de forma direta, criadores dos primeiros grupos de
estudo e serviços de atendimento que reproduziam seu pensamento
clínico. Este foi o meu caso. Quando ainda residente de Psiquiatria do
Instituto de Psiquiatria, durante o preparo de uma aula sobre
farmacodependências para alunos do 5º ano da Faculdade Medicina da
USP, encontrei e li o “Não há drogados felizes”, de Claude Olievenstein. Se
havia alguma dúvida se esta clínica poderia vir a me interessar, essa leitura
produziu um encantamento imediato.
O apaixonamento por esta clínica motivou – a mim e a dois colegas,
todos nós residentes de psiquiatria – a fundar, em 1983, o primeiro grupo de
estudos sobre drogas e dependência, e no ano seguinte, iniciar o
atendimento de pacientes dependentes de drogas ilícitas e outras substâncias
psicoativas. O Gref/HC-IPQ/FMUSP, Grupo de Estudos de Drogas e
Farmacopendência, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, teve vida solo por
quatro anos, vindo a ser incorporado ao Grea desse mesmo instituto, que à
época era um grupo que cuidava exclusivamente de alcoolistas.

145
Diva Reale, Marcelo Soares Cruz e Fabio Carezzato

Em 1984, conheci pessoalmente Olievenstein, por ocasião de sua


primeira vinda a São Paulo, em evento organizado por nós, grupo
formado por estudiosos do assunto, universitários, médicos, educadores e
psicanalistas, reunidos pelo Padre Charboneau, do Colégio Santa Cruz.
Assim foi que São Paulo durante os dez anos seguintes passou a ser
incluída no circuito de viagens de Olieve visitando, fomentando,
supervisionando os recém-fundados e principais centros de referência de
drogas brasileiros. Até o ano de 2001, quando de sua aposentadoria,
Olieve havia recebido centenas de brasileiros como estagiários no Hospital
Marmottan, deste namoro de Olieve com o Brasil.
Nestes tempos difíceis em nosso país, verificamos os efeitos nefastos do
retrocesso político sobre os mais vulneráveis, dentre ele, os usuários de
drogas – aqueles em situação de rua, da conhecida Cracolândia. A
publicação deste livro dedicado ao pensamento clínico de Olievenstein é
uma contribuição ao enfrentamento.

1971: nascimento de Marmottan


O estigma: Olievenstein contava que na inauguração da Clínica
Marmottan houve queixas de alguns vizinhos, que reclamavam de
pequenos roubos nas lojas do bairro. As queixas chegaram à policia. O
detalhe é saboroso: as portas de Marmottan ainda não tinham sido
abertas, e, portanto, não tinha recebido pacientes!!
Não nos esqueçamos que Marmottan foi “l’enfant terrible” de maio de
1968….
O que almeja: Marmottan é um lugar de vida, tal como foi
proposto por J. Oury1, um lugar onde viver com a loucura. A instituição
seria, então, o quadro que contém o contrato, o local, a repetição, o
projeto de uma lei na maneira de falar, garantindo a liberdade da palavra,
com o compromisso de renunciar a toda crítica a ela.
__________
1. La Borde ou le Droit à la Folie, documentário disponível no site l’Institut National d’Audiovisuel (INA):
http://www.ina.fr/sciences-et-techniques/medecine-sante/video/CPA77052152/la-borde-ou-le-d
roit-a-la-folie.fr.html, 24/08/2017.

146
Toxicomania e adições: a clínica viva de Olievenstein

Foto da capa: Edwin Kats

147
Diva Reale, Marcelo Soares Cruz e Fabio Carezzato

Marmottan foi a resposta política de saúde pública para um sistema


sanitário no qual os drogadictos não encontravam seu lugar, porque não
eram tratados como pessoas que mereciam ser atendidos antes de ser
julgados, discriminados, estigmatizados.

Da acolhida e tratamento dos pacientes


A arte da negociação, com a finalidade de criar uma aliança
terapêutica, é a arte da paciência e do respeito. O paciente que entra
em Marmottan deve ter presente “o contrato”. Prévia explicação,
repetida e detalhada com os argumentos que respondem a suas questões,
ele as aceita e se compromete a respeitar: a violência verbal ou física, o uso
de drogas ou outro medicamento não prescrito, assim como o não respeito
às regras da vida em grupo podem provocar uma “ruptura de contrato” a
qualquer momento do dia ou da noite, dependendo da gravidade do fato.
O objetivo, o projeto terapêutico, está marcado pela demanda – e
a ilusão – de terminar com o consumo da droga, da parte do paciente. A
equipe está consciente que sua função é fazer que este momento,
particularmente delicado, doloroso, de questionamento intenso, seja o
menos traumático possível.
O trabalho da equipe exige muita coerência no manejo de situações
críticas que podem levar à expulsão do paciente. São momentos de grande
tensão; o cuidado com esta situação visava a tentar evitar prejudicar tanto
o conjunto de pacientes, como o paciente que transgrediu.

Marmottan: relações humanas no trabalho


Lembro-me da acolhida de Olive: “esqueça tudo que aprendeu.
Escute, fale, questione, equivoque-se, mas sobretudo, não se feche em
nenhum saber teórico que se aplique como uma receita. A porta do meu
escritório está sempre aberta, se tiver necessidade.”

148
Toxicomania e adições: a clínica viva de Olievenstein

Não é possível trabalhar sem solidariedade honesta e sem deixar de


contribuir para controlar um comportamento fraco, imparcial ou
autoritário de parte de algum membro da equipe.
A necessidade de reuniões, seminários que permitissem debater temas
de interesse eram regulares. Uma ou duas vezes por ano partia-se para um
castelo afastado de Paris, para o grande debate de dois ou três dias, para
compartilhar trabalho e convivência sem que faltem boa comida e bebida
nas prolongadas “noitadas” festivas. Olive se retirava para seu quarto e
deixava que seus colaboradores se divertissem por sua conta.

Ressonâncias do pensamento clínico de Olieve


...a inclusão do termo transicional [...] se refere à articulação das
modalidades terapêuticas – internação hospitalar curta, alojamento em
serviço de pós-cura e psicoterapia específica. A ideia de transicional aqui
busca explicitar um cuidado na forma de fazer a indicação e condução da
passagem do paciente de uma etapa a outra. Implica um rigor em
envolver e acompanhar algo que possa traduzir uma demanda do
paciente, oferecendo ou apresentando aos pacientes uma condução
cautelosa da tradução de suas necessidades em ofertas que possam
guardar afinidades eletivas. Aprendemos na prática marmoteana que
indicação de um lugar/ambiente para a etapa de pós-cura leva em conta
não apenas características psíquicas e dinâmicas, como também
existenciais, culturais e relacionais. Esta condução corresponde, na prática,
ao cuidado que se considera apropriado à natureza do ser toxicômano, tal
como encontramos presente na sua teoria sobre a construção identitária
do toxicômano.

Olievenstein: amarrado ao mastro


Este clima de disputas acirradas entre as diferentes e recém-formadas
escolas psicanalíticas podem ter contribuído para Olievenstein se manter
independente, evitando afiliar-se; talvez tenha sido uma forma de poupar
energia para travar a luta que de fato ele quis abraçar: a luta pela garantia

149
Diva Reale, Marcelo Soares Cruz e Fabio Carezzato

dos direitos humanos dos usuários de drogas. Seu esforço era lhes
assegurar a melhor qualidade possível no atendimento a sua saúde, através
da implantação e aprimoramento da cadeia terapêutica que constitui o
ponto central do modelo de cura francês.
Sua relação com a psicanálise sempre intrigou aqueles que não
eram tão próximos a ele. Bebe de sua fonte com a liberdade abusada de
quem nunca se afiliou. Também nunca se entregou ao divã alheio.
Entregar-se à análise parece carregar algo tão perigoso quanto teria sido
para Ulisses ceder ao canto da sereia, correndo o risco de não cumprir
sua jornada, destino e vida.
Bebendo de fontes psicanalíticas, e adaptando-as às necessidades que
seus pacientes traziam, Olieve manteve-se livre para criar as práticas que
melhor respondessem a elas. E de fato, uma cuidadosa reconstrução de
leituras, contatos, trocas e ressonâncias mútuas entre Lacan e Winnicott
pôde enriquecer nosso entendimento das relações explícitas, implícitas, e
mesmo inconscientes deste encontro refletido no pensamento clínico de
Olieve. Isto não quer dizer que lhe faltasse rigor na sua forma de construir.

Abstinência: a qualquer custo?


O tema da abstinência costuma dividir opiniões de profissionais que
se mantêm restritos a um único modelo de atenção (seja o modelo médico,
seja o modelo cognitivo-comportamental). Sua descrição do sentido e
função que a droga pode adquirir para os grandes toxicômanos é um
alerta para respeitar o tempo do paciente na eleição de metas muito
ambiciosas ou apressadas para atingir a abstinência:
Estamos diante de uma verdadeira guerra civil interior, entre o desejo
de normalidade e o sentimento íntimo profundo, visceral de que esta
normalidade não é acessível, e que tomar este caminho é correr o
risco de fazer o sujeito perder.... todos os benefícios que ele adquiriu
no campo imaginário, simbólico e cor poral g raças ao
produto”...“hoje, a morte está no jardim: Alexandre, rapaz magnífico
de transparência, se matou: ‘curado’. (Olievenstein, p. 126

150
Toxicomania e adições: a clínica viva de Olievenstein

Uma Clínica Transicional


Ao invés de desvelamentos, ordenações, desembaraçamentos de
sentido, esta clínica se desdobra no campo da opinião. Opinião
compreendida como aquilo que se opõe ao científico, no sentido estrito, e
pode ser encontrado. Olievenstein oferece pistas de que a noção de
opinião apresentada no texto se aproxima das referências de construção e
criação. A opinião é e não é, assim como o objeto transicional de
Winnicott, primeira posse não-eu, inauguração da alteridade. Nesse
sentido, a opinião comparece a serviço da simbolização.
Não se trata de psicopedagogia, na qual pudesse supor a supressão do
sofrimento pelo saber cognitivo, mas opinião como um material
intersubjetivo capaz de enriquecer e alimentar figurações em um
psiquismo impedido de construir mediações da linguagem, da imagem
para conter as intensidades. Portanto, Olievenstein apresenta uma oferta
clínica ativa, próxima do que Green expôs para os pacientes fronteiriços
que carregam a marca de uma mãe morta. Este autor sugere que a atitude
clássica do terapeuta corre o risco de repetir, por meio do silêncio, a frieza
e o vazio da relação que tiveram com a mãe morta. Ele propõe, ao
contrário, que o analista funcione como um objeto vivo e interessado,
acordado e testemunhando sua vitalidade por meio dos laços associativos
que comunica ao analisando. É a experiência viva, sentir-se vivo e real,
atuante no mundo com sua singularidade, que possibilita à dupla
paciente-analista viver uma experiência criativa. Em contraposição à
mãe morta, ao espelho quebrado e ao objeto inerte, um terapeuta
vivo pode gerar, em algum nível, uma experiência de onipotência que,
na concepção winnicottianna, corresponde à ilusão do bebê de encontrar
aquilo que criou.
Nesta relação perversa, por ser muito íntima, muito próxima, quase
fusional, no início, há uma necessidade de imunização contra a
intensidade do afeto bruto, brutalmente doloroso. Frente a esta delicadeza,
os compromissos instáveis, as seduções e desseduções comparecem como
recursos ativos capazes de incrementar um caminho consoante com
objetivo da independência psíquica do sujeito.

151
Diva Reale, Marcelo Soares Cruz e Fabio Carezzato

Finalizando...
Esta crônica foi escrita reunindo alguns trechos3 escolhidos de autores
do livro Toxicomania e Adições: A Clínica Viva de Olievenstein, que
esteve em pré-lançamento no 6º Congresso da Abramd, novembro 2017.

Referência
Olievenstein, C. (1989). O não-dito. In C. Olivenstein, A clínica do
toxicômano. A falta da falta.Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

__________
3. Foram seleccionados os trechos a seguir e respectivos autores: “1971: nascimento de Marmottan”,
“Da acolhida e tratamento dos pacientes”, “Marmottan: relações humanas no trabalho”, de Zorka
Domic; “Ressonâncias do pensamento clinico de Olieve”, “Olievenstein: Amarrado Ao Mastro”,
de Diva Reale; “Uma Clínica Transicional”, de Marcelo Soares da Cruz.

152
CAPÍTULO 2.4

A terapia de família diante do uso de


drogas na adolescência

Amanda Guedes Bueno


Isabela Machado da Silva

Neste capítulo, discutiremos como a terapia de família pode ser


utilizada como um importante recurso no contexto de uso de drogas na
adolescência. Com esse intuito, apresentaremos uma revisão narrativa da
literatura que englobará: (a) a adolescência como fase do desenvolvimento;
(b) o uso de drogas na adolescência, incluindo os fatores de risco e
proteção potencialmente envolvidos; (c) a família como fator de proteção e
risco quanto ao uso de drogas na adolescência; (d) as especificidades da
terapia de família com adolescentes; e (e) a terapia de família com
adolescentes que usam drogas, incluindo recomendações gerais para os
profissionais que atuam nesse contexto e as evidências apresentadas na
literatura quanto a sua efetividade.

A adolescência
A adolescência é considerada em nossa sociedade como a passagem
da infância para a vida adulta. É reconhecida por suas transições – físicas,
psicológicas e sociais – e marcada por rupturas e novas ligações (Vitale,
2014; Zappe & Dias, 2012). A adolescência tem sido relacionada a
questões como independência e busca por uma identidade social;
preocupação em ser parte de um grupo; interesse em parceiros românticos

153
Amanda Guedes Bueno e Isabela Machado da Silva

(ficar, namorar, iniciar a vida sexual etc.); pensamento idealista e


egocêntrico; e possível envolvimento em comportamentos de risco
(Cerqueira-Santos, Melo Neto, & Koller, 2014; Morais, Lima, &
Fernandes, 2014).
Autoras como Lordello (2015), Senna e Dessen (2012) destacam que a
adolescência tem sido, tradicionalmente, retratada de forma generalista e
negativa, sendo caracterizada por conflitos e dificuldades. Estudos mais
recentes, porém, descrevem a adolescência como um período marcado
pela inter-relação de fatores de ordem individual, histórica e cultural.
Nesse sentido, propõe-se uma perspectiva integradora, segundo a qual se
deve contextualizar o adolescente. Assim, é possível destacar duas
principais ideias: (a) não há uma única forma de vivenciar a adolescência;
e (b) esse período não deve ser definido apenas por suas dificuldades;
deve-se também evidenciar as potencialidades dos jovens (Lordello, 2015;
Morais et al., 2014; Senna & Dessen, 2012; Vitale, 2014). Assim, embora
se devam reconhecer os aspectos normativos dessa fase, o adolescente deve
ser visto como um sujeito ativo e situado em contextos específicos, em um
processo em que é influenciado por eles assim como os influencia
(Lordello, 2015).
Um importante contexto a ser considerado quando se aborda a
adolescência é a família, que afeta de modo significativo o
desenvolvimento do adolescente. A família é o primeiro ambiente social no
qual a pessoa se desenvolve, em que tende a estabelecer suas primeiras
relações interpessoais e em que vivencia algumas de suas experiências
mais significativas (Fishman, 1988). Na adolescência, as interações da vida
familiar mantêm-se relevantes, mesmo diante da proeminência dos grupos
de amigos. Os pais e outros membros da família constituem importantes
recursos para o adolescente, representando um sistema de apoio social ao
qual pode recorrer (Cerveny & Berthoud, 1997; Morais et al., 2014;
Schenker & Minayo, 2003; Senna & Dessen, 2012).
Questões características da adolescência também trazem repercussões
para a vida familiar. De forma geral, a adolescência exige renegociação de
papéis e mudanças na estrutura e nos padrões de relacionamento das

154
A terapia de família diante do uso de drogas na adolescência

famílias. A família, que antes protegia e nutria os filhos pequenos, agora


deve ajudar a preparar o jovem para a entrada na vida adulta, com maior
autonomia e independência. Para tal, é necessário que haja flexibilidade –
para modificar estruturas, regras e relações, em resposta a diferentes
situações – e modulação da autoridade parental – necessária para a
negociação de mudanças nas relações entre pais e filhos (Morais et al.,
2014; Preto, 1995).
Cabe destacar que o processo de adolescer representa um desafio
para todos os membros do sistema familiar adolescente (Cerveny &
Berthoud, 1997). Porém, dependendo da forma como esses desafios são
manejados, grandes possibilidades podem se desvelar diante do
adolescente e de sua família.

O uso de drogas na adolescência


O consumo de drogas representa um problema de saúde pública,
especialmente entre os adolescentes. Possui tanto repercussões individuais
– perda de empregos, rupturas familiares, instabilidade financeira –
quanto coletivas – crimes e acidentes relacionados às drogas, alto custo de
encarceramento e tratamento (Fuentes, Alarcón, García, & Gracia, 2015;
Schenker & Minayo, 2003). Assim, diversos estudos têm procurado
analisar e descrever os fatores que influenciam o uso de drogas entre os
jovens (Álvarez, Martín, Vergeles, & Martín, 2003; Calleja,
García-Señorán, & González, 1996; Cerutti, Ramos, & Argimon, 2015;
Fuentes et al., 2015; Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2003,
2005).
A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar-2015 (PeNSE-2015;
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2016), que estudou
o consumo de álcool, cigarro e drogas ilícitas entre escolares do 9º ano do
ensino fundamental em todo Brasil, aponta para o início precoce do
consumo de drogas entre adolescentes. A PeNSE-2015 mostrou que a
experimentação do cigarro foi de 18,4%, entre os participantes. Já em
relação ao álcool, 55,5% dos adolescentes responderam positivamente

155
Amanda Guedes Bueno e Isabela Machado da Silva

quando perguntados se alguma vez já haviam ingerido bebida alcoólica, e


21,4% informaram já ter sofrido algum episódio de embriaguez. Por fim,
os dados mostraram que 9,0% dos entrevistados já haviam utilizado
drogas ilícitas (IBGE, 2016).
O uso de drogas tende a apresentar significados diversos para o
adolescente e para o grupo do qual faz parte. Pode representar uma forma
de buscar refúgio frente as transformações necessárias à vida adulta; de
repudiar normas e valores convencionais (Cerveny & Berthoud, 1997;
Schenker & Minayo, 2005); de socialização, visando à aceitação e ao
respeito dos pares; e de lidar com a ansiedade e a frustração (Schenker &
Minayo, 2003, 2005). Schenker e Minayo (2005) argumentam que as
drogas – sem que haja abuso – podem cumprir funções pessoais e sociais
importantes para os adolescentes. Assim, devem ser consideradas um
possível elemento do desenvolvimento psicossocial do jovem e não um
comportamento perverso ou patológico.
O consumo de substâncias é um fenômeno complexo e múltiplo
(Calleja et al., 1996). Schenker e Minayo (2005) destacam que os variados
fatores envolvidos no consumo de drogas entre adolescentes não devem ser
analisados de forma isolada e fragmentada, sendo necessária uma
perspectiva integrativa e contextual da situação. Os fatores de risco são
aqueles que aumentam as chances de o adolescente se envolver com
drogas, enquanto os fatores de proteção diminuem essa chance (Hogue,
Dauber, Faw, & Liddle, 2005):
Fatores de risco e proteção atuam juntos para determinar o nível de
risco do adolescente em um dado ponto de sua vida. (...) Ao se
preparar para tratar um adolescente que usa drogas, é importante
acessar não apenas as variáveis que colocam o adolescente em risco,
mas também as forças do adolescente e de seu ambiente. (p. 379)

Há diversas variáveis que podem ser citadas como fatores de risco.


Entre os individuais, podemos citar: (a) a idade em que se inicia o uso de
substâncias psicoativas, sendo o início precoce considerado um preditor

156
A terapia de família diante do uso de drogas na adolescência

para a dependência e o posterior abuso de drogas (Álvarez et al., 2003;


Calleja et al., 1996; Cerutti et al., 2015); (b) traços de personalidade, como
baixa autoestima e sintomas depressivos (Schenker & Minayo, 2003).
Já entre os fatores sociais, incluem-se: (a) falta de motivação para os
estudos e mau desempenho escolar; (b) a escola como um local que
proporciona condições para o uso de substâncias (Schenker & Minayo,
2005); (c) comunidades inseguras, com presença e disponibilidade de
drogas (Fuentes et al., 2015; Schenker & Minayo, 2005); (d) grupos de
amigos que consomem drogas ou que incentivam seu uso (Calleja et al.,
1996; Pereya & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2003, 2005); e (e) meios
de comunicação que atuam como fonte de imagens favoráveis e de
normalização do uso de drogas, principalmente lícitas (Calleja et al., 1996;
Fuentes et al., 2015; Schenker & Minayo, 2005).
Tanto fatores extrafamiliares – questões sociais, econômicas e
demográficas –, quanto intrafamiliares, são associados ao consumo de
drogas na adolescência (Álvarez et al., 2003; Calleja et al., 1996; Cerutti et
al., 2015; Fuentes et al., 2015; Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo,
2003, 2005). Na próxima seção, abordaremos a influência que a família
desempenha nesse contexto.

A família e o uso de drogas por adolescentes


A família é considerada um sistema complexo e seu funcionamento
tende a representar uma importante influência para o desenvolvimento e
os comportamentos do adolescente. Nesse sentido, pode tanto contribuir
para protegê-lo, diminuindo a probabilidade de seu envolvimento em
comportamentos de risco, quanto pode aumentar sua vulnerabilidade
(Calleja et al., 1996; Morais et al., 2014; Schenker & Minayo, 2003, 2005).
Diversos são os estudos que descrevem e analisam os fatores familiares
que podem influenciar o consumo de drogas por jovens (Álvarez et al.,
2003; Bertrand et al., 2013; Calleja et al., 1996; Cerutti et al., 2015;
Fuentes et al., 2015; Le Poire, 2004; Morais et al., 2014; Pereyra & Bean,
2017; Schenker & Minayo, 2003, 2005). Entre esses estudos, os fatores de

157
Amanda Guedes Bueno e Isabela Machado da Silva

risco e proteção que mais se destacam são: (a) estilos parentais; (b)
monitoramento/supervisão parental; (c) afeto/apoio; (d) aprovação e uso
de drogas pelos pais; (e) saúde mental dos pais; (f) participação dos pais no
tratamento do filho. É importante destacar, como afirmam Morais et al.
(2014), que os fatores familiares de risco e proteção, ambos, devem ser
vistos como processos. É necessário contextualizar e analisar esses fatores e
suas relações, não considerando de forma linear a relação entre sua
presença e o comportamento adolescente.
O estilo parental tem sido abordado em diversas pesquisas como um
fator de proteção e risco para adolescentes em contexto de uso de
substâncias (Calleja et al., 1996; Cerutti et al., 2015; Fuentes et al., 2015;
Morais et al., 2014; Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2003). O
estilo parental é definido e associado às práticas educativas, ou seja, às
estratégias e técnicas utilizadas pelos pais para orientar o comportamento
de seus filhos. As principais dimensões para definir o estilo parental são o
controle e o afeto. Assim, podemos citá-los como sendo: (a) autoritário:
com alto controle parental – comportamento restritivo e impositivo sobre
a conduta dos filhos – e pouco envolvimento afetivo; (b) permissivo: com
pouco controle parental e alta afetividade – marcada por receptividade e
comunicação; (c) democrático: equilíbrio entre afeto e controle, no qual os
pais reconhecem e respeitam a individualidade dos filhos, mas deixam
claras as normas e os limites (Bem & Wagner, 2006).
De forma geral, autores têm apontado que estilos parentais que
encorajam independência, mas que colocam limites, estão mais associados
com um desenvolvimento positivo (Morais et al., 2014; Schenker &
Minayo, 2003), enquanto estilos caracterizados por excessiva
permissividade ou rigidez são relacionados ao aumento do uso de
substâncias (Calleja et al., 1996; Pereyra & Bean, 2017; Schenker &
Minayo, 2003). Nesse sentido, Cerutti et al. (2015), em sua pesquisa,
analisaram que o controle parental é um fator protetivo em relação ao uso
de drogas. Esse controle é apenas visto como protetivo, no entanto,
quando é percebido pelos adolescentes em um contexto afetivo. Fuentes et
al. (2015) corroboram essa ideia ao descreverem que o estilo parental

158
A terapia de família diante do uso de drogas na adolescência

caracterizado pelo afeto e a aceitação é percebido como fator de proteção,


mesmo em comunidades inseguras com presença e disponibilidade de
drogas – consideradas um fator de risco nesse contexto.
O monitoramento/supervisão parental são comportamentos que
permitem que os pais tenham conhecimento das atividades cotidianas,
associações e locais que seu filho frequenta, para assegurar sua segurança e
seu desenvolvimento (Álvarez et al., 2003; Bertrand et al., 2013; Pereyra &
Bean, 2017). Segundo Bertrand et al. (2013), existem diversas formas pelas
quais os responsáveis podem obter essas informações, tais como a
solicitação parental – fazer perguntas diretamente ao adolescente – e a
auto-revelação – o próprio jovem falar sobre suas atividades.
Diferentes estudos relacionam o monitoramento parental com a
diminuição de uso de substâncias psicoativas, tanto em situações em que o
abuso já ocorre quanto como forma de prevenção (Álvarez et al., 2003;
Bertrand et al., 2013; Cerutti et al., 2015; Pereyra & Bean, 2017). Nesse
sentido, Pereyra e Bean (2017) observaram que a supervisão materna de
jovens latinos norte-americanos mostrou-se associada com menor uso de
drogas, mesmo em contextos nos quais havia influência de grupos de
amigos usuários – considerado um fator de risco. No entanto, Álvarez et
al. (2003), assim como Bertrand et al. (2013), ressaltam que o
monitoramento parental citado não é coercitivo ou controlador, podendo
ser considerado um fator de risco quando exercido dessa forma.
Autores como Pereyra e Bean (2017) relacionam o afeto/apoio dos
pais com a percepção que os adolescentes têm dos comportamentos
parentais que transmitem amor, aceitação e proximidade. Estudos
mostram que essa variável pode ser considerada tanto um fator de risco
como um fator protetivo, no qual jovens que percebem maior afeto/apoio
parental têm menor chance de consumir drogas, tanto em situações nas
quais o abuso já ocorre como em situações de prevenção (Álvarez et al.,
2003; Bertrand et al., 2013; Cerutti et al., 2015; Pereyra & Bean, 2017;
Schenker & Minayo, 2005). Destaca-se, também, como a presença dessa
variável pode influenciar como é percebido o monitoramento/supervisão
dos pais, o qual é considerado protetivo em contextos de afeto e apoio,

159
Amanda Guedes Bueno e Isabela Machado da Silva

mas não em situações de coerção e controle (Álvarez et al., 2003; Bertrand


et al., 2013).
De forma geral, afirma-se que jovens que fazem parte de famílias com
atitudes favoráveis ou tolerantes em relação ao uso de drogas têm maior
chance de consumir tais substâncias (Calleja et al., 1996; Cerutti et al.,
2015; Schenker & Minayo, 2005). Da mesma forma, o uso de drogas pelos
próprios pais, ou mesmo em suas famílias de origem (Krestan & Bepko,
1995) é considerado um fator de risco para o adolescente. O jovem, nesse
contexto, pode apresentar um maior risco de vir a consumir, ele mesmo,
tais substâncias (Cerutti et al., 2015; Le Poire, 2004) como também de vir,
futuramente, a se envolver com parceiros que as utilizam (Le Poire, 2004).
A saúde mental dos pais foi apontada por Bertrand et al. (2013) como
um fator a ser considerado em contextos de uso de drogas pelo
adolescente, destacando situações em que o abuso já ocorre. Na sua
pesquisa, eles demonstraram que a saúde mental dos pais influenciou as
práticas parentais adotadas que, por sua vez, tendem a representar um
fator de risco ou de proteção quanto ao uso de substâncias. Assim, os
autores destacam a necessidade de os centros de tratamento investigarem e
tratarem a saúde mental dos pais, o que se relaciona à melhora das
práticas parentais e à consequente diminuição do consumo de drogas
(Bertrand et al., 2013). Argumenta-se que o resultado da intervenção
tende a ser mais positivo quando os pais se envolvem, favorecendo a
diminuição do uso de drogas (Bertrand et al., 2013; Le Poire, 2004).
Bertrand et al. (2013) especificam, ainda, que essa relação é indireta,
sendo mediada por práticas parentais. Dessa forma, ao se envolverem e
participarem no tratamento de seus filhos, os pais passam a adotar práticas
parentais baseadas em comunicação e confiança, o que contribui para a
diminuição do consumo pelo jovem.
A influência parental no consumo de álcool, cigarro e outras drogas é
complexa e deve ser analisada e considerada de forma combinada com
outras questões (Krestan & Bepko, 1995; Schenker & Minayo, 2005). A
família representa um importante recurso no atendimento a adolescentes

160
A terapia de família diante do uso de drogas na adolescência

que usam drogas, o demonstra o potencial da terapia familiar em


contextos de uso de drogas por adolescentes.

A terapia familiar na adolescência


A terapia familiar é fruto da ideia de que “as vidas das pessoas são
inextricavelmente entrelaçadas e que o comportamento dos membros da
família é, em grande medida, uma função da forma como uns interagem
com os outros” (Minuchin, Nichols, & Lee, 2009, p. 15). Ela tem como
objetivo, portanto, a transformação de padrões de interação que se
mostram disfuncionais (Fishman, 1988), ou seja, que limitam as
possibilidades de atuação dos membros do sistema familiar diante da
realidade cotidiana, gerando conflitos e sofrimento. Essa transformação
pode ser vista tanto como decorrente de um processo de reorganização do
sistema familiar, em que são redefinidas as fronteiras que delimitam os
subsistemas, bem como de um processo de ampliação dos significados que
seus membros atribuem a si mesmos, a seus comportamentos e aos eventos
que marcam sua história (Minuchin et al., 2009). Assim, o terapeuta
familiar trabalhará com a forma como os membros de uma família
organizam suas relações e estabelecem limites entre si, bem como com a
forma como essas pessoas veem a si mesmas e como interpretam aquilo
que lhes acontece, para que possam transformar a forma de se
relacionarem entre si e com o mundo que as rodeia. Embora haja
diferentes modelos de terapia familiar, ideias como a de que se deve
atentar à história da família (P. Minuchin, 1985) e ao contexto do qual ela
faz parte (Nichols & Schwartz, 2007) atravessam a maior parte deles:
“alguns objetivos são praticamente universais – esclarecer as
comunicações, resolver problemas, promover autonomia individual”
(Nichols & Schwartz, 2007, p. 391).
Fishman (1988), em uma obra clássica sobre terapia familiar com
adolescentes, destaca os benefícios dessa abordagem. Seguindo os
princípios básicos da terapia de família, esse autor defende que os
adolescentes são influenciados por sua família, ao mesmo tempo em que a

161
Amanda Guedes Bueno e Isabela Machado da Silva

influenciam. Dificuldades vivenciadas pelo adolescente são vistas como um


sinal de alerta para possíveis dificuldades vivenciadas pela família, assim
como possível fonte de sofrimento para os demais membros (Fishman,
1988). É possível, por exemplo, que dificuldades no relacionamento
conjugal dos pais repercutam no comportamento dos filhos, assim como é
provável que dificuldades apresentadas pelo adolescente afetem seus pais e
irmãos, influenciando seus relacionamentos. Dessa forma, Fishman (1988)
considera que o atendimento à família pode ser considerado um
compromisso ético, além de um recurso que potencializa o atendimento
do adolescente. O terapeuta, ao unir os membros de uma família em
terapia, tem a possibilidade de presenciar, em primeira mão, seus padrões
interacionais e de intervir nas suas relações. Ao trabalhar com vários
membros, as possibilidades de mudança multiplicam-se: as mudanças de
um são reforçadas pelas mudanças dos demais, em um círculo virtuoso,
que beneficia não só o adolescente, mas a família como um todo. O autor
destaca, ainda, que a forma como a terapia familiar compreende o ser
humano se mostra em consonância com a visão mais positiva e contextual
do adolescente: modificando-se as relações e o contexto, o adolescente –
assim como os demais membros de sua família – tem condições de
desenvolver seu potencial e superar suas dificuldades.
Essa visão também se mostra especialmente relevante ao
considerarmos que muitas das famílias que buscam a terapia familiar
apresentam um de seus membros como “o problema”, ou seja, o chamado
paciente identificado (Nichols & Schwartz, 2002). Essa rotulação de um dos
membros é especialmente delicada no caso de crianças e adolescentes, pois
pode fomentar uma profecia auto-realizadora. Assim, eles passam a acreditar
cada vez menos em suas próprias habilidades, que passam também a ser
menos reconhecidas pela família, pela escola e por outros sistemas em que
se inserem (Selekman, 2017).
Esse processo de rotulação se insere no que Micucci (2009) denomina
de ciclo sintomático. Conforme falham as tentativas da família para eliminar
o “comportamento problema” do adolescente, crescem sua frustração e
desesperança. O foco da família no “comportamento problema” tende a

162
A terapia de família diante do uso de drogas na adolescência

ser cada vez maior, de forma que ficam em segundo plano as qualidades e
demais características do adolescente, assim como outras dimensões do
relacionamento familiar. O adolescente, por sua vez, tende a se sentir cada
vez mais inadequado e isolado, o que contribui para o aumento do
“comportamento problema”, reforçando a atitude familiar de, cada vez
mais, focar-se no mesmo e dando continuidade ao ciclo.
Selekman (2017) destaca que os terapeutas devem compreender que
esses comportamentos apresentados pelo adolescente podem representar
sua forma de lidar com uma situação difícil com a qual se depara em sua
vida e para a qual não encontra outras alternativas:
Tenho observado que existe uma dimensão lógica em
comportamentos provocativos, intimidantes, perturbadoramente
auto-destrutivos e destrutivos. Para muitos adolescentes, esses
comportamentos de alto-risco têm servido como recompensas,
recursos e tentativas de solução para ajudá-los a manejar estressores
individuais, familiares e sociais em suas vidas. Não é surpresa que
gravitem ao redor de comportamentos particulares que têm
funcionado para eles. (...) Isso não quer dizer que esses
comportamentos sejam benignos ou que devam ser encorajados.
Quanto mais o adolescente se engaja em comportamentos de
alto-risco, mais tende a utilizá-lo e menos medo tende a apresentar.
(Selekman, 2017, p. 04)

Cabe ao terapeuta ajudar o adolescente a desenvolver novas


estratégias de enfrentamento e a família a conseguir ver além do
“comportamento problema” e a desenvolver novos padrões interacionais.
De forma geral, a terapia de família com adolescentes tende a envolver: (a)
a reorganização da família e de seus limites; (b) a compreensão das
especificidades da adolescência; (c) o desenvolvimento ou aprimoramento
de habilidades parentais que se mostrem adequadas a essa fase do ciclo
vital; (d) a reflexão dos pais – e de outros membros da família – sobre
como suas próprias atitudes podem influenciar o adolescente; (e) a

163
Amanda Guedes Bueno e Isabela Machado da Silva

consolidação de canais de comunicação entre o adolescente e a família; (f)


a ampliação da forma como os membros da família veem uns aos outros; e
(g) a criação de um espaço em que o adolescente possa refletir sobre suas
próprias questões (Taibbi, 2010; Selekman, 2017).
O estabelecimento de limites claros, que sejam adequados ao
desenvolvimento do adolescente e que sejam compreendidos por ele, é
uma meta importante da terapia de família junto a essa população. Para
que isso seja possível, no entanto, é importante que os pais compreendam
que é necessário ir além das estratégias utilizadas quando seus filhos eram
crianças (Taibbi, 2010). A capacidade de compreensão do adolescente,
suas relações e seus objetivos são outros, assim como o papel a ser
desempenhado pelos pais. Na adolescência, além de proteger, os pais têm
a função de ajudar o filho a desenvolver sua autonomia e a tornar-se
responsável por suas próprias escolhas, o que não é possível apenas com
proibições ou castigos (Preto, 1995, Taibbi, 2010). O lugar de autoridade
dos pais – que, por vezes, encontra-se abalado diante de um adolescente
que não aceita os limites impostos – deve ser reforçado na terapia, mas a
forma como essa autoridade será exercida e seus objetivos devem ser
revistos (Taibbi, 2010). Alguns pais foram criados com tapas e castigos,
não enxergando outras possibilidades na criação dos filhos. Mostra-se
necessário, assim, que o terapeuta auxilie os pais a desenvolver novas
formas de impor limites ao adolescente (Taibbi, 2010).
O terapeuta, para que possa colaborar com essas famílias, deve
conhecer as estratégias que são, ou que já foram, utilizadas (Selekman,
2017). Quais não deram certo? Quais se mostraram bem-sucedidas,
mesmo que não tenham sido mantidas com o passar do tempo? Além
disso, pode-se mostrar útil a reflexão sobre o papel desempenhado pela
história dos pais na forma como se relacionam com o filho adolescente
(Taibbi, 2010). Como sua história influencia os objetivos e medos que
apresentam quanto ao futuro dos filhos? Quais estratégias parentais foram
utilizadas por seus próprios pais quando eles eram adolescentes e que
efeito exerceram sobre eles?

164
A terapia de família diante do uso de drogas na adolescência

É importante que todos os membros da família percebam que


deverão se envolver no processo de mudança. Taibbi (2010) destaca que
não se trata de culpabilizar os pais pela situação do adolescente, mas de
ajudá-los a aceitar sua responsabilidade sobre a qualidade das relações
familiares. Quando as diferentes partes se percebem como corresponsáveis
por suas relações, minimiza-se o risco de que o adolescente continue sendo
visto como “o problema” e de que siga rotulado como tal. Nesse processo,
também se mostra essencial a realização de intervenções voltadas ao
reconhecimento das habilidades e potencialidades do adolescente, tanto
junto à família, como um todo, como em sessões individuais com ele
(Selekman, 2017).
O terapeuta deve estar sensível às especificidades de cada membro
para que todos se sintam parte do processo terapêutico. Em uma família, é
pouco provável que todos tenham a mesma visão quanto à necessidade de
mudanças. Selekman (2017) destaca que o terapeuta deve usar estratégias
diferentes se a pessoa está vindo “obrigada” à terapia e não está certa de
que precisa se envolver ou mudar. No caso, antes de propor intervenções
voltadas à mudança, é necessário propiciar uma reflexão sobre as
repercussões do próprio comportamento.
Para que as diferentes necessidades dos membros de uma família
possam ser adequadamente contempladas, o uso de sessões separadas com
os diferentes subsistemas pode se mostrar útil. A realização de sessões
exclusivas com os pais pode contribuir para favorecer sua reflexão quanto
ao papel que desempenham no comportamento tido como problemático,
permitindo que sejam escutados quanto às suas histórias, seus receios e
suas dificuldades (Taibbi, 2010; Selekman, 2017). Em relação aos
adolescentes, sessões individuais propiciam o espaço na terapia para
refletirem acerca de suas próprias questões e a forma como se relacionam
e se comunicam com os seus pais e demais membros da família (Taibbi,
2010). Outro recurso de que o terapeuta dispõe é o trabalho junto a outros
sistemas significativos do adolescente, tal como a escola (Selekman, 2017).
Percebe-se, assim, que a terapia de famílias com adolescentes requer
algum “malabarismo – entre adolescentes e pais, passado e presente,

165
Amanda Guedes Bueno e Isabela Machado da Silva

trabalho individual e trabalho em família (...) requer caminhar sobre uma


linha delicada, cuidadosamente equilibrar as necessidades dos
adolescentes com aquelas das famílias” (Taibbi, 2010, p. 146). É necessário
para o terapeuta “estabelecer fortes vínculos com cada membro da
família, manter a segurança emocional nas sessões e propiciar um senso de
propósito comum com a família” (Selekman, 2017, p. 18). Desse modo, o
terapeuta deve manter-se em sintonia com o sistema, estabelecendo, em
conjunto, as metas do atendimento, respeitando seus valores e percepções,
além de dar a mesma atenção a todos os seus níveis (Selekman, 2017).
Em um estudo que investigou o impacto de intervenções sistêmicas
junto a famílias de crianças e adolescentes com dificuldades diversas, Carr
(2014) procedeu a uma ampla revisão de pesquisas que enfocaram a
efetividade da terapia familiar e de intervenções como o treinamento
parental junto a essa população. As intervenções sistêmicas apresentaram
evidências de efetividade para questões como problemas de conduta,
depressão, ansiedade, luto, automutilação, transtornos alimentares e uso
de drogas, entre outras. O autor destaca, ainda, que dados americanos
demonstram que os benefícios trazidos pela terapia de família tendem a
superar os custos de sua oferta para os sistemas de saúde (Carr, 2014).
Embora esses resultados sejam animadores, deve-se destacar que algumas
dessas evidências de efetividade restringem-se a modelos particulares de
intervenções sistêmicas, não podendo ser generalizadas para a ampla
diversidade de modelos existente. Muitas das intervenções investigadas
referem-se a modelos manualizados, ou seja, modelos em que os
terapeutas devem seguir um roteiro pré-definido pelos pesquisadores que o
desenvolveram e que teve sua efetividade validada em pesquisa.
Reconhecendo a dificuldade de implementar modelos manualizados
na prática clínica, Hogue et al. (2015) desenvolveram um estudo em que
investigaram a efetividade da terapia familiar tal como usualmente
aplicada – ou seja, sem seguir um modelo manualizado – para o
tratamento de adolescentes. Os autores constataram que a terapia familiar
contribuiu para a redução de sintomas externalizantes e internalizantes,
de comportamentos delinquentes e do uso de substâncias em adolescentes.

166
A terapia de família diante do uso de drogas na adolescência

Deve-se destacar, porém, que tanto o estudo de Hogue et al. (2015) como
o de Carr (2014) são estudos internacionais, de forma que não é possível
assegurar se os mesmos resultados seriam obtidos na realidade brasileira.
Na próxima seção, serão destacadas as particularidades da terapia
com família de adolescentes que usam drogas. Serão abordadas
recomendações gerais apresentadas aos terapeutas de família que atendem
essa população e os modelos manualizados de terapia familiar propostos
para uso nesse contexto.

A terapia familiar com adolescentes diante do uso de drogas


A terapia de família com adolescentes que usam drogas alia
características gerais da terapia de família com adolescentes, tais como
vistas na seção passada, e especificidades próprias do contexto. A seguir,
discutiremos algumas orientações voltadas ao atendimento dessa
população, conforme propostas na literatura.
O início da terapia. Carr (2006) destaca a importância de que seja
envolvido o maior número de pessoas da família, com o propósito de que
o adolescente também se engaje no atendimento. Esse autor destaca que é
comum que aqueles que buscam a terapia tenham receios quanto à vinda
dos demais membros. Cabe, portanto, ao terapeuta compreender esses
medos e agir no sentido de reassegurar os clientes de que os mesmos não
se concretizarão.
No que se refere ao processo de avaliação, Carr (2006) sugere a
necessidade de compreender o uso que o adolescente faz das drogas, ou
seja, se é um uso experimental ou se é um padrão já estabelecido. O
terapeuta deve conhecer tanto os recursos – pessoais e sociais – de que o
adolescente e sua família dispõem como os fatores que influenciam o
consumo de drogas; compreendendo, assim, os “gatilhos” que favorecem o
uso (Carr, 2006; Downs, Seedall, Taylor, & Downs, 2015). Downs et al.
(2015) destacam, ainda, que o terapeuta deve buscar compreender como
diferentes membros da família veem o uso de drogas e como as mesmas
estiveram presentes ao longo de sua história. Nesse sentido, podem se

167
Amanda Guedes Bueno e Isabela Machado da Silva

mostrar úteis informações sobre “a dinâmica familiar, tais como


proximidade relacional, poder, controle, crenças sobre a terapia, crenças
sobre o uso de substâncias e comportamentos
permissivos/codependentes” (Downs et al. 2015, p. 30). Informações sobre
o uso de drogas na família e sobre como os pais manejaram essa questão
anteriormente também se mostram relevantes (Downs et al., 2015).
O estabelecimento de metas junto à família será construído a partir
das informações levantadas durante essa avaliação inicial (Carr, 2006). É
importante que o terapeuta se mostre sensível às expectativas da família,
para que a esperança coexista com o reconhecimento de que se trata de
um processo desafiador, que exigirá esforço e envolvimento de todos
(Downs et al., 2015).
O andamento da terapia. A reorganização dos padrões familiares
constitui uma meta importante, como em todos os demais tipos de terapia
familiar. Nesse caso, porém, o terapeuta e a família devem estar atentos
aos padrões que se mostram relacionados ao uso de drogas. Conforme
assinala Carr (2006):
A tarefa central na reorganização familiar é ajudar a família a alterar
os padrões que evoluíram ao redor dos comportamentos relacionados
ao uso de drogas pelo adolescente. Esses comportamentos incluem a
obtenção de dinheiro e recursos para conseguir a droga; prática de
ações antissociais quando sob influência da droga; e problemas de
conduta, tais como desobediência às regras sobre o horário de voltar
para casa, faltar aula, não fazer as tarefas de casa, roubo, destruição
de propriedade e assim por diante. Para alterar padrões interacionais
relacionados ao uso de drogas e aos comportamentos associados, os
membros da família devem ser ajudados a estabelecer metas claras,
observáveis e realistas tanto com relação ao comportamento do
adolescente como em relação ao próprio comportamento parental.
(pp. 399-400)

168
A terapia de família diante do uso de drogas na adolescência

Por outro lado, é também necessário atentar aos padrões interacionais


que constituem potenciais fatores de risco para o adolescente, tais como a
presença de conflitos ou de um estilo parental predominante controlador e
com espaço reduzido para a afetividade (Bem & Wagner, 2006; Robbins et
al., 2008). O terapeuta deve evitar que o adolescente se torne o único foco
de suas intervenções. Todos os membros da família devem compreender
que fazem parte de um “ciclo interacional” (Downs et al., 2015, p. 33).
Nesse sentido, o uso que os outros membros da família fazem de drogas
lícitas e ilícitas é um tema que precisa ser conversado entre a família. Que
efeito esse uso exerce sobre o adolescente? Que limites precisarão ser
estabelecidos para que esse uso não sirva de “gatilho” para o adolescente?
(Downs et al., 2015). No entanto, é importante que o terapeuta busque
fomentar um clima não culpabilizador na terapia (Carr, 2006; Downs et
al., 2015). Por vezes, os pais já buscam a terapia com o sentimento de que
são “os culpados” pela dificuldade do filho. Embora os pais devam
reconhecer o papel desempenhado pelos padrões interacionais presentes
na família, não é produtivo reforçar sentimentos de culpa. O importante é
que eles passem a se ver como como meio para a solução das questões que
os levaram à terapia (Carr, 2006).
É necessário também se mostrar atento aos subsistemas conjugal e
parental, uma vez que a aliança entre os pais, ou seja, sua sintonia em
relação às metas familiares e o apoio que prestarão um ao outro para
alcançá-las, constitui um importante recurso familiar diante de momentos
de crise como esse (Carr, 2006). Sessões específicas com os pais podem ser
utilizadas com esse objetivo.
Outros recursos passíveis de utilização, nesse momento da terapia, são
a psicoeducação, que pode se mostrar útil para que a família compreenda
a complexidade envolvida no uso de drogas (Downs et al., 2015); treinos
de comunicação e de solução de problemas; bem como o
acompanhamento multidisciplinar do adolescente e de outros membros da
família (Carr, 2006).
Nessa fase, o terapeuta deve mostrar-se sensível ao fato de que tanto o
adolescente como seus pais vivenciam uma situação de perda e luto. O

169
Amanda Guedes Bueno e Isabela Machado da Silva

adolescente está abrindo mão das drogas, enquanto os pais estão lidando
com a perda da imagem que tinham de sua família (Downs et al., 2015).
O encerramento da terapia. O terapeuta costuma abordar a
chamada prevenção da recaída, em que se busca identificar os fatores de
risco – tais como exposição à droga, situações de alto estresse etc. –, bem
como os recursos de que o adolescente e a família dispõem para
enfrentá-los (Carr, 2006). No entanto, a possibilidade de que uma recaída
venha realmente a acontecer precisa ser abordada de forma explícita. É
importante que a família compreenda a importância de manter os esforços
e as habilidades desenvolvidas na terapia. Mesmo que o adolescente tenha
uma recaída, isso não significa o fracasso de todo o processo (Carr, 2006;
Downs et al., 2015).
Em um estudo conduzido com famílias atendidas em terapia familiar
sem o uso de modelos manualizados, Hogue et al. (2015) argumentam que
essa modalidade de terapia representa um recurso efetivo diante do uso de
drogas por adolescentes. Ao avaliarem os adolescentes que participaram
de terapia familiar um ano após os atendimentos, constataram que 40%
deles não usavam drogas há três meses ou mais. Entre os adolescentes que
realizaram terapias de outro tipo, essa taxa foi de 26%. Os autores
destacam, no entanto, a importância de que a prática seja baseada nas
evidências disponíveis sobre o tema e que se invista na supervisão dos
casos e no monitoramento dos resultados.
Alguns modelos manualizados de terapia familiar tiveram
corroborada sua efetividade no tratamento de adolescentes que usam
drogas. Entre eles, destacam-se a Terapia Familiar Estratégica Breve
(TFEB), a Terapia Familiar Funcional (TFF) e a Terapia Familiar
Multissistêmica (TFM; Carr, 2014, 2016). Pesquisas também evidenciam a
potencialidade desses modelos para a melhora de problemas de
comportamentos e do desempenho escolar do adolescente, bem como dos
relacionamentos familiares, como um todo (Carr, 2014). Embora a
descrição detalhada desses modelos ultrapasse o escopo deste capítulo,
abordaremos seus pontos comuns, bem como suas principais contribuições
para o atendimento de famílias com adolescentes que usam drogas. Carr

170
A terapia de família diante do uso de drogas na adolescência

(2016) destaca que, de forma geral, esses modelos têm em comum uma
abordagem focal, que prioriza a atuação sobre os fatores de risco
relacionados ao uso de drogas na adolescência: estratégias parentais, nível
de estresse familiar, participação em grupos de risco e baixo apoio social.
Resumindo-se, o terapeuta deve preocupar-se em “aumentar os fatores de
proteção e reduzir os fatores de risco” (Hogue et al., 2005, p. 384).
Somando-se as contribuições de cada um desses modelos, temos como
importantes características da terapia familiar nesse contexto:
(a) Identificação de padrões disfuncionais que possam estar
relacionados ao uso de drogas e o uso das sessões terapêuticas como
um espaço para questioná-las e reformulá-las (TFEB; Carr, 2014,
2016). “Espera-se que os terapeutas encorajem os membros da família
a interagirem para que possam identificar interações não adaptativas
e, quando esses padrões forem revelados, tentar mudá-los no decorrer
da sessão” (Robbins, Bachrach, & Szapoczinik, 2002, p. 125). Os
padrões comumente abordados referem-se às estratégias parentais
utilizadas, à comunicação entre pais e filhos e aos conflitos existentes
entre eles (Robbins et al., 2008);
(b) Desenvolvimento de novas habilidades relacionais e de solução de
problemas, que possam ser generalizadas para diversas situações além
da terapia (TFF; Carr, 2016);
(c) Identificação das potencialidades da família e redução da
negatividade em suas relações, ao fomentar-se uma nova perspectiva
sobre o problema (TFF; Carr, 2016);
(d) Atuação junto a outros sistemas dos quais o adolescente faz parte,
de forma que seja possível uma reflexão conjunta quanto aos fatores de
risco para esse adolescente e sobre como todos podem se envolver em
sua superação. Nesse sentido, podem ser realizados encontros com
membros da escola, do grupo de amigos do adolescente, dos serviços
de justiça etc. (TFM; Carr, 2014, 2016; Robbins et al., 2008).

171
Amanda Guedes Bueno e Isabela Machado da Silva

Considerações finais
A literatura revisada neste capítulo demonstra a importância de
compreender o adolescente de forma contextualizada, reconhecendo a
família como um de seus principais contextos de desenvolvimento (Lordello,
2015; Morais et al., 2014; Senna & Dessen, 2012; Vitale, 2014). Nesse
sentido, tornam-se necessárias medidas que busquem fomentar os fatores de
proteção que podem ser identificados no ambiente familiar, principalmente
no que se refere a um estilo parental caracterizado por afetividade,
confiança e limites claros (Álvarez et al., 2003; Bertrand et al., 2013; Calleja
et al., 1996; Cerutti et al., 2015; Fuentes et al., 2015; Morais et al., 2014;
Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2003). O papel desempenhado
pela saúde-mental dos pais (Bertrand et al., 2013) e pelo uso de drogas destes
(Cerutti et al., 2015; Krestan & Bepko, 1995; Le Poire, 2004) na
vulnerabilidade do adolescente diante das drogas reforça a importância de
um olhar sensível às necessidades de todos os membros da família.
A terapia com famílias de adolescentes que usam drogas deve seguir os
preceitos gerais da terapia familiar com adolescentes, considerando-se as
especificidades desse contexto. Assim, o terapeuta deve estar atento às
seguintes questões: (a) Engajamento de diferentes membros da família e de
outros sistemas significativos para o adolescente (Carr, 2014, 2016; Robbins
et al., 2008; Selekman, 2017; Taibbi, 2009); (b) Necessidade de contemplar
as demandas dos diferentes membros da família e de estabelecer uma boa
aliança terapêutica com todos eles (Carr, 2006; Selekman, 2017); (c)
Reconhecimento do papel desempenhado pelos padrões interacionais
presentes na família e superação de rótulos que estabeleçam um único
“culpado” ou “problema” (Carr, 2006, 2014, 2016; Downs et al., 2015;
Micucci, 2009; Robbins et al., 2002); (d) Estilos parentais predominantes e
sua possível atuação como fator de risco ou de proteção quanto ao uso de
drogas pelo adolescente (Carr, 2014; Robbins et al., 2008); (e) Dinâmica de
uso de drogas pelo adolescente e histórico de uso de drogas pela família
(Carr, 2006; Downs et al., 2015); (f) Compreensão dos comportamentos que
se desenvolveram ao redor do uso de drogas (Carr, 2006); (g)
Desenvolvimento ou aprimoramento de habilidades relacionais e/ou de

172
A terapia de família diante do uso de drogas na adolescência

solução de problemas, tanto por parte do adolescente como de sua família


(Carr, 2016; Selekman, 2017; Taibbi, 2009). Embora a terapia familiar
enfoque as relações entre os membros da família, sessões exclusivas com
determinados membros podem se mostrar um recurso útil (Carr, 2006,
2014, 2016; Selekman, 2017; Taubbi, 2009). No mesmo sentido, podem ser
necessários encaminhamentos multidisciplinares para o adolescente ou
outros membros (Carr, 2006; 2014, 2016).
Deve-se destacar que reconhecer a importância da família para o
atendimento ao adolescente não é o mesmo que dizer que ela seja a
culpada pelo uso de drogas (Carr, 2006; Downs et al., 2015). O uso de
drogas é um fenômeno complexo, atravessado por fatores presentes na
família e fora dela (Álvarez et al., 2003; Calleja et al., 1996; Cerutti et al.,
2015; Fuentes et al., 2015; Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo,
2003, 2005). Como assinala Carr (2006), o que realmente importa é que a
família se veja como parte da solução e esteja disposta a agir nesse sentido.
A partir da revisão da literatura sobre o tema, sugere-se a realização
de mais estudos nacionais que investiguem as potencialidades da terapia
de família para o atendimento a essa população, bem como para a
prevenção ao uso de drogas e a outros comportamentos de risco na
adolescência. Estudos que apresentem técnicas e processos a serem
seguidos no atendimento a essa população, contemplando as
especificidades de nossa cultura, mostram-se especialmente relevantes.

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177
178
CAPÍTULO 2.5

Dicotomias na atenção integral e no


cuidado das pessoas que usam de crack:
a acessibilidade em foco
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque
Anna Carolina Vidal Matos
Renata Barreto Fernandes de Almeida
Joselaine Ida da Cruz
Solange Aparecida Nappo

Introdução
Dentro da complexidade que é a atenção à saúde, com suas
dimensões - biológica, social, cultural, econômica, política etc. –, um
aspecto que passa muitas vezes despercebido, e é de fundamental
importância para entendermos esse fenômeno, trata-se da acessibilidade.
Somado a tal conceito, pensar no acesso à saúde por parte das pessoas que
usam drogas, singularmente as que têm problemas decorrentes do abuso
do crack, traz para a discussão vários pontos que extrapolam a relação
dicotômica do processo saúde-doença.
Para tanto, precisamos definir o que estamos tomando por
acessibilidade. Travassos e Martins (2004) apontam a complexidade da
definição do termo e sua variância entre autores, enfoque, contexto e
tempo. A acessibilidade define-se, então, como um conjunto de aspectos
que influenciam na relação de prestação de um determinado serviço para
atender demandas de saúde, que passa pelas dimensões do usuário, dos
profissionais do serviço, da organização do serviço, e ainda as dimensões
sociais, política, econômica e simbólica (Assis & Jesus, 2012, Donabidean,

179
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque et al

1988; Travassos & Martins, 2004). O alcance da complexidade dessa


definição é importante porque supera limitações de conceitualizações
sobre o tema, que costumam reduzir a acessibilidade ao alcance físico ou
somente ao acesso a um serviço de saúde específico.
Nessa concepção, pensar a acessibilidade para as pessoas que fazem
uso prejudicial de drogas passa também por entender quais são e como
operam os serviços oferecidos a estas. É na direção de aprofundar essa
discussão que o presente texto se insere.
Em recente publicação, que traz uma revisão crítica acerca dos
estudos acadêmicos sobre as Redes de Atenção aos Usuários de Drogas
(RedesUD), Costa, Mota, Paiva e Ronzani (2015) revelam que existe uma
forte contradição entre o que é prescrito pelas leis e normativas brasileiras
referente a essas redes e o que é real: o Estado vem transferindo a
responsabilidade em cuidar das pessoas que fazem uso prejudicial de
drogas para a sociedade civil.
Nessa revisão, para refletir sobre as RedesUD, os autores também
consideraram o atual conceito de Redes de Atenção à Saúde (RAS), do
Ministério da Saúde (MS), que são entendidas como “arranjos
organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades
tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico,
logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado” (Brasil,
2010). Deste modo, as RedesUD são redes específicas, voltadas para a
atenção às pessoas que fazem uso prejudicial de drogas.
Costa et al. (2015) destacam que:
1) De modo prioritário, as RedesUD ainda se alicerçam em modelos
pulverizados, com cobertura e qualidade de serviços exíguos às
necessidades de cuidado e tratamento;
2) A concepção sobre Drogas está ampliada apenas teoricamente, ou
seja; ampliada no discurso político, mas ainda com práticas
d e s i n t e g r a d a s, f o r mu l a d a s e r e a l i z a d a s s e t o r i a l m e n t e,
consequentemente, as práticas acabam por não atingir as diferentes
realidades existentes junto aos atores que compõem as RAS;

180
Dicotomias na atenção integral e no cuidado das pessoas que usam de crack

3) O modelo hospitalocêntrico ainda prevalece acima do modelo


psicossocial, apesar de sua aparente indisposição ou inaptidão de
trabalhar com a temática. Questão observada a partir da baixa adesão
dos hospitais gerais (HG) à oferta de leitos;
4) Grande parte dos investimentos continuam focados nas internações
hospitalares psiquiátricas, e;
5) Apresenta-se uma incipiente participação do Estado na distribuição
dos serviços e na implementação das políticas sobre Drogas:
prevalecendo a composição das RedesUD por serviços de natureza
não governamental.

Destarte, quanto a participação das comunidades terapêuticas (CT)


na composição das RedesUD, podemos observar a ratificação dos achados
de Costa et al. (2015) na realidade nacional, apresentado por meio do
relatório do “Mapeamento das Instituições governamentais e não governamentais de
atenção às questões relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas no Brasil”
(Carvalho, 2007) de que, das 1.256 instituições de tratamento mapeadas,
apenas 389 eram de natureza governamental, obrigando-nos à reflexão
sobre a necessidade de uma rede complementar ter sido invertida, pois
esta tem se apresentado como majoritária à rede pública.
Pitta (2011) trará justamente que é no vazio de ofertas e possibilidades
de serviços nas RedesUD que os dispositivos de natureza não estatal
encontram o terreno fértil para se fixarem como alternativas e respostas
viáveis ao tratamento e acesso das pessoas que usam drogas. Observa-se
inclusive o protagonismo político desses atores na construção das políticas
de drogas, apesar de ser o país um Estado laico e democrático (Siqueira,
2006), o que é refletido por Machado e Miranda (2007) quando destacam
que as instituições religiosas conseguiram exercer pressão política junto aos
órgãos governamentais, estabelecendo-se como opções prioritárias como
modelo de tratamento.
Haja vista a recente Portaria nº 1.482, publicada no Diário Oficial da
União em 27 de outubro de 2016, que “inclui na Tabela de Tipos de

181
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque et al

Estabelecimentos de Saúde do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de


Saúde – CNES, o tipo 83 – Polo de Prevenção de Doenças e Agravos de
Promoção da Saúde”, colocando as CT no patamar de um serviço de
saúde, inclusive, possibilitando, a partir desta publicação, que os gestores
locais de saúde possam proceder regularmente ao cadastramento e
convênio das entidades, considerando, prioritariamente, as que respondam
para fins de Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social
(Cebas).
Nesse sentido, a discussão sobre a necessidade de um “marco
regulatório” para a inserção das CT nas RedesUD ganha outro contorno,
mesmo com a discussão preocupada em diversos territórios brasileiros, a
exemplo do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de Pernambuco
(Ceoad/PE) que publicou uma nota técnica a fim de discutir as “inúmeras
contradições e lacunas teóricas, metodológicas e textuais” trazidos pelo Conselho
Nacional de Política sobre Drogas (Conad). Haja vista, também, o
levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) que observou que
em um edital de cadastramento e convênio das CT, na seleção destas
as fragilidades do edital permitiram que 55% das comunidades
apoiadas financeiramente pelo Governo Federal sequer possuíssem
licença sanitária, segundo informações fornecidas pela Anvisa,
colocando em risco a qualidade dos serviços a serem prestados aos
dependentes de álcool e outras drogas dirigidos a essas comunidades
terapêuticas” (Brasil, 2012, p. 66).

É justamente no último item trazido por Costa et al. (2015), sobre a


composição das RedesUD por serviços de natureza não governamental,
que complementaremos a discussão, trazendo outros aspectos observados
em nossa pesquisa que não foram aprofundados na revisão crítica dos
autores, visto que o foco dos mesmos, apesar de trazer todas essas questões
que envolvem as CT, foi a análise das RedesUD a partir do papel dos
Centros de Atenção Psicossociais para pessoas que usam drogas
(Caps-AD), da articulação das RAS entre o Sistema Único de Saúde

182
Dicotomias na atenção integral e no cuidado das pessoas que usam de crack

(SUS) e o Sistema Único da Assistência Social (Suas) e ainda nas


dificuldades das interlocuções entre a Reforma Psiquiátrica (RP) e a
construção das políticas de drogas no Brasil.
Sabe-se que os municípios comprometidos com as diretrizes
organizativas e os princípios do SUS (Borges & Batista, 2008) passam por
mudanças significativas no planejamento e ordenamento dos serviços de
saúde, com reflexões, discussões e possibilidades de reorganização do
acesso nas Unidades de Saúde (Prefeitura Municipal de Curitiba, s/d).
Cada vez mais o processo de trabalho busca estar fundamentado nas
necessidades de saúde da população, no fortalecimento do vínculo e da
continuidade do cuidado. Oferecer um acesso com qualidade a toda rede
de serviços e resolver a maior parte dos problemas e necessidades de saúde
da população, no ponto mais próximo do seu local de residência ou
trabalho, é uma diretriz perseguida e compreendida como fundamental.
Investe-se em horários ampliados de atendimentos das Unidades de
Saúde e expansão da Estratégia Saúde da Família como possibilidade de
melhoria do acesso da população (Brasil, 1990). É também nesse aspecto
que observamos o distanciamento da lógica utilizada pelas CT quando
nos referimos à sua participação na oferta de cuidado e na composição das
RedesUD, pois estas não possuem nenhum tipo de articulação territorial
que as coloque em confluência com os princípios e diretrizes do SUS.
Amarante e Guljor (2005) discutem a importância do princípio da
integralidade na construção da garantia dos direitos e da participação da
população nos espaços públicos de saúde. Aspecto negligenciado pelas CT
pela sua não inserção real e concreta na articulação das RedesUD. Se a
construção dessas redes deve ser coletiva, considerando as propostas
advindas das equipes locais de saúde e com a rede de serviços e gerências
centrais e distritais, ainda mais trazendo a intersetorialidade como
premissa (Brasil, 1990), observamos que as CT de fato, não consideram
tais aspectos, pois mantêm-se isoladas por princípio, desde a concepção de
que a distância e o afastamento ajudam na busca da abstinência, quanto a
ideia de que tal retraimento seja necessário às pessoas em tratamento

183
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque et al

como medida de “fortalecimento” para a concentração e aceite da sua


condição de dependente.
Nesse sentido é importante trazer rapidamente a discussão acerca do
estigma e preconceito a que as pessoas que usam drogas estão submetidas.
Segundo Silveira, Soares, Noto e Ronzani (2013), a ideia corroborada pela
mídia de que todo usuário de droga é um “doente” ou possui um “desvio
de caráter”, parece exigir apenas dois tipos de intervenção, quais sejam: a
internação ou a prisão. Nesse sentido, criam uma relevante barreira de
acesso das pessoas que usam drogas aos serviços de saúde. O estigma se dá
de modo tão nefasto que a percepção negativa da população sobre estas
pessoas cria essa falsa necessidade de um tratamento afastado e distante da
família e da comunidade: “muitas pessoas que provavelmente se
beneficiariam de vários tratamentos disponíveis na rede pública ou na
privada de saúde escolhem não começá-los ou optam por terminá-los
prematuramente” (Silveira et al., 2013, p. 256).
Um ponto importante para ressaltar a reflexão sobre a acessibilidade
das pessoas que usam drogas aos tratamentos é a forma de olhar o
fenômeno do uso de drogas. É possível definir quatro perspectivas sobre as
drogas que, segundo Passos e Souza (2011), seriam: saúde, justiça, religião
e redução de danos (RD). Por meio da saúde, enquadra a pessoa que usa
drogas como incapacitada e doente, que necessita de um tratamento
baseado unicamente na vertente da clínica psiquiátrica, tendo como base
o tratamento medicamentoso e a abstinência. A perspectiva da justiça vê a
pessoa como uma delinquente, uma infratora, e ao invés do tratamento,
segue a linha da punição. A religião, ou moral cristã, terceira perspectiva,
vê a prática do consumo através do pecado. O sujeito escolhe seguir por
este caminho de impurezas, os desvios da “carne”, então sua única
salvação é por meio da conversão. A última perspectiva é a redução de
danos, a qual diverge das outras perspectivas ao se basear no direito de
escolha do sujeito, e vê a cidadania como um direito a ser promovido.
Nas três primeiras perspectivas observa-se uma tradicional
recorrência das ações das políticas públicas direcionadas às pessoas que
usam drogas (Nascimento, 2006). Para o autor, essas perspectivas se

184
Dicotomias na atenção integral e no cuidado das pessoas que usam de crack

fundamentam no divisor comum da punição. Dessa forma, a pessoa que


chega aos serviços oferecidos já está estigmatizada como um risco ao bom
funcionamento social e com seu “distúrbio” identificado, ou seja, sua
chegada ao serviço se dá por apresentar conduta condenada, e a causa
está no consumo de drogas. Como reflexo a esta questão, o estigma é um
fator que influencia negativamente as intervenções na busca de melhoria
da qualidade de vida das pessoas que usam drogas (Silveira et al., 2013).
Por fim, a perspectiva da RD, conceito que orienta os serviços de
atenção às pessoas que usam álcool e outras drogas, busca diferir das
abordagens estigmatizantes e punitivas, de cunho moralista, e é a principal
estratégia norteadora adotada pelo Ministério da Saúde. A iniciativa busca
uma forma de intervenção em saúde pública que ultrapasse a perspectiva
moralista e antidrogas que acompanham as estratégias até aqui
apresentadas (Machado & Boarini, 2013; Vasconcelos, 2008). Vale, então,
ressaltar a divergência das CT com a perspectiva da RD. Essas instituições
possuem viés fortemente religioso e carregam consigo a perspectiva moral
presente nessa relação. Mesmo diante dessa divergência conceitual com a
estratégia norteadora do Ministério da Saúde, hoje, as CT vêm se
apresentando como uma das principais ofertas no tratamento das pessoas
que fazem uso prejudicial de alguma droga, principalmente o crack, indo,
em vários aspectos, de encontro aos princípios e diretrizes que constituem
o SUS e a própria RD.
Acrescenta-se a estes apontamentos uma rápida nota sobre a história
do descaso dado pela Reforma Psiquiátrica brasileira em sua demora por
assumir as questões de álcool e outras drogas (AD) no âmbito do SUS.
Vasconcelos (2008) pontua que, apenas no que ele denominou de “terceira
fase da reforma”, haverá uma realocação das questões AD, que antes eram
restritas ao campo da justiça, para a saúde mental, com a criação dos
Caps AD e a referida assunção da RD como política norteadora de Estado
para esse campo. Nesse momento, percebe-se a natureza integrante da
RD no sentido de melhorar o acesso das pessoas que usam drogas aos
serviços de saúde (Marlatt, 1999).

185
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque et al

Desse modo, o objetivo deste capítulo é discutir a implantação das


RedesUD a partir da crescente participação das CT como oferta
expressiva de tratamento e acesso das pessoas que usam drogas, partindo
do conceito da acessibilidade. Para tanto, vamos utilizar os achados
secundários de nossa pesquisa.

Metodologia
O presente capítulo traz reflexões advindas a partir do relatório final
do projeto de pesquisa “Motivos apontados por usuários de crack como
desencadeadores de recaída e avaliação de fatores predisponentes que levam a esse
quadro”, financiado pelo CNPq de acordo com o processo 402776/2010-0
referente à chamada pública Edital 41/2010 – Faixa I (Nappo, 2010).
Neste, observa-se que o estudo teve por objetivo levantar os motivos
apontados por pessoas que usam crack no processo do fenômeno da
recaída.
No projeto de pesquisa foram selecionadas amostras de pessoas que
procuraram tratamento devido ao uso de crack em três domínios:
Comunidades Terapêuticas (CTs); Caps–AD; e Clínicas médicas de
internação, domínios estes que comumente compõem as RedesUD no
Brasil. Os três domínios totais de amostragem foram definidos nos Estados
de São Paulo e Pernambuco, considerando-se prioritariamente as capitais
e regiões metropolitanas. A pesquisa foi dividida em duas etapas. A
primeira etapa foi quantitativa, aplicação de questionário. E a segunda
etapa foi baseada em metodologia qualitativa, em que foi construído um
roteiro de entrevista, a partir dos dados da etapa quantitativa, e realizadas
entrevistas semiestruturadas com os participantes. Nas duas etapas da
pesquisa foram visitados 85 serviços, sendo 12 clínicas, 24 Caps–AD e 13
CTs, em São Paulo; e sete clínicas, 11 Caps–AD e 18 CTs, em
Pernambuco.
Durante toda a imersão no campo se fez uso do diário de campo.
Essas anotações foram realizadas com o intuito de registrar outros
elementos que apareciam no campo e que não estavam previstos no

186
Dicotomias na atenção integral e no cuidado das pessoas que usam de crack

recorte do objeto de pesquisa. Dessa forma, foi feita uma análise de


conteúdo baseada em Bardin (2004), a partir dos diários de campo.
O diário de campo é um instrumento metodológico de origem dos
estudos etnográficos, que permite ao pesquisador registrar observações,
comentários e reflexões sobre o campo de pesquisa. Entretanto, esse
instrumento vai além de um registro sistematizado, mas parte de uma
compreensão de pesquisa não neutra, isto é, considera que a relação entre
pesquisador e os sujeitos estudados geram novos dados que trazem
expressões diferentes do cotidiano. Nisso, tal interação traz para a pesquisa
dados que não seriam acessados se utilizado outro instrumento de coleta
(Frizzo, 2010).
Assim, para fins deste estudo, escolhemos explorar os diários de
campo. Esses registros são parte dos achados secundários da referida
pesquisa, contudo contemplam aspectos da realidade estudada que os
demais instrumentos não possibilitaram acessar, permitindo um
aprofundamento na compreensão do objeto sob investigação. Desse modo,
foi analisada a acessibilidade das pessoas que usam drogas a partir da
inserção das CTs como ofertas prioritárias para tratamento.

Resultados e discussão
Ao falarmos de acessibilidade dividimos tal categoria em duas formas:
aspectos objetivos (distância territorial, oferta de vagas, perfil de
atendimento, valores cobrados pelos serviços, descontinuidade na oferta
do tratamento pós-alta e regras e normas institucionais) e aspectos
subjetivos (modelos de tratamento, acolhimento, necessidades e demandas
das pessoas que usam drogas). Esses aspectos foram organizados dessa
maneira por questões didáticas, mas é importante destacar que em muitos
casos eles se permeiam ou se complementam. Finalmente, dizem respeito
a tudo que possa impedir ou limitar a garantia do acesso integral à saúde,
que no caso específico deste estudo, às pessoas que fazem uso prejudicial
de drogas.

187
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque et al

Dos aspectos objetivos podemos exemplificar alguns trechos dos


diários de campo:
Para chegar à CT o usuário anda dois km da estrada a pé... não tem
transporte. (Diário de Campo, nº 18 – Recife);
O tratamento custa R$ 3.500,00 por mês. Até agora o usuário não
sabe como vai pagar. (Diário de Campo, nº 21 – São Paulo);
Este usuário é originalmente de Salvador, mas está em tratamento na
CT em Pernambuco porque essa comunidade trabalha assim,
trocando de cidade os usuários. (Diário de Campo, nº 58 – Recife);
Para entrar nesse serviço tem que estar a três meses sem usar droga.
(Diário de Campo, nº 80 – São Paulo).

A distância territorial das CTs e valores cobrados pelos serviços são


questões que aparecem recorrentemente nos diários de campo. Essas
questões mostram como a promoção de saúde na rede pública é ainda
problemática, seja ela nos Caps-AD, seja nos leitos dos hospitais gerais. A
partir dos princípios do SUS, a rede deve ser pensada a partir do território
e suas necessidades, contudo a lógica das CTs não se organiza dentro da
mesma perspectiva, assim, implicando em problemas no acesso conforme
os relatos acima.
Para Lima e Rivera (2010), “a diversidade dos processos de atenção à
saúde, o seu caráter transversal e o amplo número de atores e serviços
envolvidos exigem uma estrutura em rede para dar conta da coordenação
das interdependências e, assim, garantir a integralidade” (p. 1). Nesse
contexto, pensar a rede vai além da comunicação dos serviços, e passa pela
construção dos vínculos estabelecidos entre eles, na direção de um
interesse comum, possibilitando uma relação que incorpore os diferentes
atores e interesses. Essas relações não devem ser hierarquizadas, mas sim
garantidas para que a interdependência entre as partes do sistema ocorra
de forma colaborativa. Percebemos que as CTs não fazem parte desse
processo imbricado que busca garantir uma acessibilidade horizontal e
não apenas verticalizada pelos processos de internação.

188
Dicotomias na atenção integral e no cuidado das pessoas que usam de crack

A qualificação e humanização da assistência – a inseparabilidade


entre modos de atender e de gerir os serviços é precipuamente esquecida!
O reconhecimento da necessidade em qualquer serviço de saúde de lidar
com a demanda não agendada ou espontânea de forma qualificada, e com
critérios de acesso implicados com o sofrimento das pessoas que procuram
o serviço, ainda são dificuldades que implicam diretamente no acesso das
pessoas que usam drogas aos serviços.
Também destacamos na observação das CTs o rompimento com a
lógica de perguntas necessárias e frequentes à garantia do acesso das
pessoas que usam drogas na RedeUD: são identificados os riscos e as
vulnerabilidades conjugando as necessidades das pessoas ou apenas às
necessidades do serviço? São feitos encaminhamentos responsáveis e
resolutivos para os demais serviços da RAS? São respeitadas as
especificidades de cada pessoa quanto à sua religiosidade e ou
subjetividade?
Outro ponto importante é que ao não fazerem link entre si, os serviços
ofertados, em especial as CTs, não conseguem cumprir com o princípio da
integralidade, primordial ao SUS. Ou seja, compor a RedeUD implica
prestar um atendimento com resolutividade e responsabilização,
orientando, quando for o caso, a pessoa e sua família em relação a outros
serviços de saúde para continuidade da assistência, estabelecendo
articulações com estes serviços para garantir a eficácia desses
encaminhamentos.
Além desses elementos objetivos discutidos como limitadores da
acessibilidade, também se destacam aqueles que são subjetivos. Em um
dos Diários de Campo encontramos a seguinte anotação:
Usuário encontra-se com ferida na perna relativa ao esfaqueamento
da namorada por ciúmes. A pastora responsável pela CT não quer
levar o usuário a um PSF por este ainda não ter completado seus 30
dias iniciais à adesão ao tratamento. (Diário de Campo, nº 37 –
Recife).

189
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque et al

Na anotação acima percebemos algo ainda mais grave que as


dificuldades objetivas de acessibilidade. Refere-se à negativa de acesso a
um tratamento básico de saúde, ou seja, a violação propriamente dita de
um direito básico da pessoa que está sendo atendida. Vemos nessa
anotação a dificuldade na acessibilidade em termos mais subjetivos, no
sentido de que são aspectos de ordem moral da perspectiva de tratamento
da própria CT que limitam a garantia à saúde.
Outra questão diz respeito ao fato de que nem todas as pessoas
querem ou podem se tratar apenas na perspectiva da abstinência. Nesse
sentido, todos os serviços apresentaram dificuldades no acesso, no sentido
do acolhimento e da adesão das pessoas que usam drogas, pois
hegemonicamente definem o sucesso do tratamento a partir do alcance ou
da manutenção da abstinência. Nas idas ao campo alguns pesquisadores
registraram em seus diários sobre a necessidade de estar três meses sem
usar drogas para acessar o serviço. Também no trecho abaixo vemos essa
dimensão:
Usou droga, leva alta. Este é seu 17º tratamento. (Diário de Campo,
nº 11 – Recife)

Tal perspectiva, a da abstinência de drogas para todos, vai na


contramão do que já é há muito discutido e preconizado no Brasil, a partir
da entrada da Política de Redução de Danos (Machado & Boarini, 2013).
A diretriz da Redução de Danos depende do funcionamento de uma rede
articulada por instituições e segmentos profissionais que coloquem em
prática tal modelo, em contraponto com o ainda vigente modelo punitivo
e moral da abstinência. Essa relação das CTs mostra-se contrária ao
modelo de redução de danos, reforçando a segregação social e
desconsiderando a rede de saúde mental que se articula para o suporte do
usuário (Caps–AD, Consultórios na Rua e Casas de Acolhimento
Transitório – ou Unidades de Acolhimento), assim dificultando o acesso
das pessoas que usam drogas ao cuidado em saúde.

190
Dicotomias na atenção integral e no cuidado das pessoas que usam de crack

O caráter moral desse modelo como elemento que limita a


acessibilidade pode ser vista também no registro abaixo:
Cochichando o usuário me diz que sabe que vai fugir no final do
tratamento, pois já é o terceiro que ele faz e toda vez exigem que ele
se converta – o usuário é espírita. (Diário de Campo, nº 10 – São
Paulo)

Considerando a Política Nacional de Humanização do SUS (PNH,


Brasil, 2004), um de seus objetivos é garantir os princípios constitucionais
aprovados por meio da Carta Magna de 1988. Para o setor de saúde, no
sentido de operar o trabalho e os modos da atenção e gestão em saúde
como direito de todos e dever do Estado, observa-se que as CTs não se
coadunam com tais objetivos, quando não compreendem o coletivo como
plano de produção da vida e o cotidiano das pessoas como plano de
reprodução e de experimentação/invenção de vida, pois a
indissociabilidade entre o modo como nos produzimos sujeitos e os modos
de vida das pessoas que usam drogas não são considerados, haja vista a
quase completa imposição através das abordagens de tratamento ofertadas
pelas CTs serem prioritariamente religiosas.
A exclusão e o asilamento em CTs acabam sendo as alternativas
viáveis, na contramão do que deveria ser a RedeUD, pois percebemos o
constante silenciamento das próprias pessoas em tratamento e uma
enorme dificuldade em discutirmos outras formas de cuidado, a exemplo
da RD. Esse silêncio também é reflexo do processo de estigma
internalizado vivenciado pelas pessoas que usam drogas, que está
diretamente relacionado aos menores índices de adesão ao tratamento,
pois a discriminação a que estão submetidos faz com que desejem
esconder sua problemática com a droga, acirrando a descrença no
tratamento e diminuindo a sua adesão (Silveira et al., 2015).
Segundo Machado e Miranda (2007), a participação da sociedade
civil na resolução das mazelas sociais é resultado de uma agenda
neoliberal que predomina no cenário político e econômico brasileiro desde

191
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque et al

o final da década de 1970. Deste modo, como pontua Costa et al. (2015),
“no tocante ao tratamento dos usuários de drogas, permeiam discursos
religiosos, moralizantes e jurídicos fixados em um horizonte de cura ou
abstinência” (p. 4), que parece responder como apenso a este modelo.
Não foi à toa que a Federação Brasileira de Comunidades
Terapêuticas (Febract) e as Associações Religiosas de diversas
denominações, em especial as evangélicas, espíritas e católicas,
encontraram meios de tornar as CTs financiáveis pelo SUS, rompendo
uma resistência de anos ligada à Luta Antimanicomial. A já referida
Portaria nº 1.482, que “Inclui na tabela de tipos de estabelecimentos de
saúde do cadastro nacional de estabelecimentos de saúde – CNES, o tipo
83 – Polo de prevenção de Doenças e Agravos de Promoção da Saúde”,
demonstra o quanto é difícil rompermos com a lógica asilar, os estigmas e
preconceitos ligados ao cuidado das pessoas que usam drogas. Mais do
que isso, o que os dados mostram é que esses preconceitos e estigmas são
barreiras para a própria acessibilidade para as pessoas que usam drogas.
Nesta última reflexão pinçamos outras anotações dos diários de
campo que refletem o quanto a imposição religiosa é um aspecto
discrepante com o que é preconizado pelo SUS e pelos Direitos Humanos
– o direito à liberdade de expressão religiosa ou mesmo o de não ter
nenhuma afiliação ou considerar-se ateu:
A usuária afirma que já é a terceira vez que faz esse mesmo
tratamento, mas que sempre retorna para o começo porque no 12º
passo ela precisa se converter e virar crente. Ela diz que não gosta de
ser crente porque gosta de ir à praia e tomar cerveja com os amigos,
porque ela veio se tratar do crack e não da cerveja. (Diário de Campo,
nº 91 – Recife);
Eles disseram a MCDR (iniciais do entrevistado) que sem Jesus no
coração a recaída vai ser certeira e que eles só podem aceitar que ele
continue na obra se virar exemplo para os demais. (Diário de Campo,
nº 19 – Recife);

192
Dicotomias na atenção integral e no cuidado das pessoas que usam de crack

Essa CT também trabalha com o método Minesotta, e a conversão


no final do tratamento é uma exigência. (Diário de Campo, nº 03 –
São Paulo);
P. é ex-presidiário, tendo sido preso já por três vezes. Afirmou que
estudou até o 1º ano. É flanelinha, tem 23 anos, refere que usa crack
há 10 anos. Já usou mesclado, capeta e diversas outras drogas. Nesta
CT, P. refere já ter sido coagido a ‘falar com os espíritos’ em uma
‘mesa branca’ porque disseram a ele que só assim ele vai parar de
usar o crack. (Diário de Campo, nº 22 – São Paulo).

Não há processos de comunicação e de interação social no momento


em que as pessoas que usam drogas são “sequestradas” de suas vidas, não
mais pelo uso abusivo das substâncias, mas sim pela forma imposta de
tratamento sem que seja dada outra alternativa.

Considerações finais
Apesar de, inicialmente, os objetivos da pesquisa que inspiraram este
estudo terem sido os fatores intrínsecos e extrínsecos que desencadeiam a
recaída, a partir da forma como o participante da pesquisa avalia o
fenômeno, o olhar a partir dos diários de campo aumentou a
compreensão das relações com a RedeUD, a partir da acessibilidade aos
serviços de saúde, em especial às comunidades terapêuticas (CTs).
O diário de campo mostrou-se uma ferramenta importante na
contextualização e aprofundamento da compreensão das práticas
estudadas. A partir deles foi possível ter acesso a elementos que não são
contemplados em instrumentos estruturados a priori, sejam eles de caráter
quantitativo ou qualitativo.
Assim, foi possível identificar que desde o acolhimento, que é visto
como barreira ao acesso, até a inadequação da área física e a
compatibilização entre a oferta e demanda por ações de saúde, há uma
série de aspectos que carecem de maior estudo e observação por parte dos

193
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque et al

que compõem as RedesUD. As formas de organização dos serviços de


saúde, em especial as CTs, com a baixa ou nenhuma governabilidade das
equipes e governos locais, a falta de humanização das relações dos
profissionais desses serviços, os modelos de cuidado vigentes nas CTs
(geralmente religiosos), a falta de escuta e a pouca produção de vínculo
como ação terapêutica, são problemas também identificados que merecem
a nossa atenção.
É necessária a análise e ordenação das tecnologias dos serviços que
atuam com objetivos diferentes, nem sempre complementares, pois por
vezes são excludentes, na perspectiva da discussão sobre acessibilidade.
Neste sentido, Costa et al. (2015) dizem que em relação aos usuários com
maior comprometimento e em situações de grande vulnerabilidade social,
recomenda-se uma aproximação dos serviços com essa população,
facilitando a “acessibilidade”. Nessa direção, os Programas de Redução de
Danos e os Consultórios de/na Rua apresentam-se como importantes
estratégias da Raps e da RedesUD ao focarem in loco as pessoas com
transtornos mentais e usuários de drogas em situação de rua, baseando-se
na perspectiva da RD e possibilitando a aproximação entre serviços e
comunidade, tarefa inexistente junto às CTs pesquisadas.
Alguns questionamentos precisam ser feitos para que os
trabalhadores, gestores e familiares possam continuar buscando a
construção de uma RedeUD de fato coerente com os princípios e
diretrizes do SUS:
Podem as CTs coexistir ou funcionar separadamente dos demais
serviços da RAS, seja no contexto físico ou mesmo nas abordagens
impostas por estas, sem serem díspares nessa construção?
Até que ponto a acessibilidade das pessoas que usam drogas está
garantido a partir dos princípios e diretrizes do SUS e da Constituição
Federal aqui trazidos?
De que maneira e por que as CTs têm sido a “porta de entrada”
de maior facilidade e acesso às pessoas que usam drogas por conta da
complexidade e fragilidade frente ao problema e têm lucrado de forma

194
Dicotomias na atenção integral e no cuidado das pessoas que usam de crack

assustadora com tratamentos caros, sem monitoramento e fiscalização


adequadas do SUS?
Qual o papel do Estado e do Controle Social na regulamentação
e fiscalização da participação das CTs nas RAS e RedeUD?
O que significa ao Estado Brasileiro a assunção desse modelo de
serviço como parte da RedeUD, quando este deveria ser um estado
laico e, no entanto, as CTs imprimem o modelo religioso em sua
maioria?

Por fim, observamos que a temática drogas é um dos campos em que


mais transformações de concepções e práticas no campo da saúde têm
ocorrido, demonstrando um infeliz distanciamento teórico-prático na
construção das RedesUD. Algumas ofertas de serviços que vem crescendo,
como o caso das CTs, não respondem e nem se coadunam com as
perspectivas dos movimentos da Reforma Psiquiátrica, da Redução de
Danos, da Política de Humanização e da própria Constituição Federal,
quando diz que saúde é direito de todos e dever do Estado. Dessa forma,
cabe ao Estado assumir sua função dando as condições necessárias para
que os princípios de diretrizes do SUS possam de fato constituir
dispositivos e arranjos institucionais pautados na gestão democrática e
laica dos serviços ofertados às pessoas que usam drogas, bem como no
acesso humanizado e de qualidade, sem a fragmentação ora percebida.

195
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque et al

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199
200
CAPÍTULO 2.6

Uso de maconha e adolescência

Maria Inês Gandolfo Conceição


Silvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos

A questão das drogas entre adolescentes tem sido extensivamente


estudada em muitos países e, de acordo com as pesquisas, as substâncias
mais comumente utilizadas nessa idade são o álcool, o tabaco e a
maconha (Johnston et al., 2014; Latimer & Zur, 2010; Mason, Hanson,
Fleming, Ringle, & Haggert, 2015; Moss, Chen, & Yi, 2014; UNODC,
2013).
A tendência de uso de maconha tem aumentado nos últimos anos. A
idade média de início situa-se entre os 12 e 15 anos de idade em diferentes
países e não há uma relação inversa entre a percepção de perigo que esses
adolescentes têm e seu uso (Johnston et al., 2014). Vários estudos mostram
que o início mais comum do uso de drogas ocorre durante a passagem da
infância para a adolescência, seja como mera experimentação, uso
ocasional, abuso ou mau uso (Faria Filho, 2014; Marques & Cruz, 2000;
Schenker & Minayo, 2005; Silva et al., 2014).
A razão pela qual os adolescentes começam a utilizar drogas não é
fácil de determinar. A questão é muito complexa e envolve uma série de
variáveis. Como Olievenstein (1990) apontou, o fenômeno da drogadição
deve ser estudado à luz de uma equação complexa, com pelo menos três

201
Maria Inês Galdolfo Conceição e Silvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos

aspectos a serem considerados: a substância, o indivíduo e o contexto. A


relação entre esses aspectos conduz a uma grande quantidade de
configurações possíveis, que devem ser consideradas para explicar o
significado da utilização de drogas.
A abordagem bioecológica do desenvolvimento humano pode
contribuir com um referencial teórico que permita o estudo desses
aspectos. De acordo com Bronfenbrenner (2005), a pessoa em
desenvolvimento, no caso aqui, o adolescente, possui características
biopsicológicas, determinadas pela herança e também construídas na
interação com os sistemas nos quais se insere. Esses sistemas são os
contextos dos quais o adolescente participa. Deve-se considerar todos os
contextos: desde os mais imediatos, denominados microssistemas, como
casa, escola e ambientes de lazer, até aqueles ambientes que não contam
com a presença do adolescente, mas que afetam seu desenvolvimento,
como o trabalho dos pais, denominado exossistema. Há ainda o
mesossistema, que se refere ao conjunto dos microssistemas dos quais a
pessoa participa e às interações estabelecidas entre eles, e o macrossistema,
relativo aos costumes, valores e códigos que regem o grupo social do qual
o adolescente faz parte.
Dentro dos microssistemas ocorrem os processos proximais que são
considerados motores do desenvolvimento. Os microssistemas são
ambientes que contam com padrões de atividades, papéis sociais e relações
interpessoais. Os adolescentes, com a ampliação de seu espectro social,
integram vários microssistemas nos quais os processos proximais são
ativados: a casa, a escola, os ambientes de lazer são exemplos. O uso de
drogas e as percepções que os adolescentes têm a respeito delas são
construções, que ocorrem dentro de uma progressão e que se estabelecem
a partir de algumas características do processo.
Bronfenbrenner (2005) argumenta que o processo está associado a
algumas condições: o engajamento em uma atividade, interações
regulares, através de períodos estendidos de tempo, atividades
progressivamente complexas, contando com reciprocidade nas relações
interpessoais e, por fim, objetos e símbolos presentes no ambiente

202
Uso de maconha e adolescência

imediato que estimulem a atenção, exploração, manipulação e imaginação


da pessoa. Todos esses aspectos que integram os processos proximais
podem contribuir para um melhor entendimento de como o adolescente
constrói sua relação com as drogas. Os processos proximais podem gerar
dois tipos de efeitos: o de competência e o de disfunção. Mas é importante
lembrar que essa não é uma classificação linear. Os processos variam em
função das características da pessoa, dos contextos nos quais interagiu ou
interage, da natureza dos resultados evolutivos, do período sócio-histórico
em que o adolescente se encontra.
Por isso, para investigar a relação do adolescente com a maconha, é
preciso tomar cuidado para evitar visões deterministas de causa e efeito,
que podem levar a posturas de julgamento. As adolescências devem ser
vistas de forma plural, consideradas em sua complexidade.
O uso de drogas entre os adolescentes pode estar relacionado com
uma infinidade de razões, dentre os quais sobressaem as seguintes:
estratégia de socialização; tentativa de adquirir uma identidade de grupo;
forma de ocupar o tempo livre; busca de prazer ou alívio de dor,
ansiedade, sentimentos e pensamentos ruins; necessidade de satisfazer a
busca de sensação e curiosidade; maneira de desafiar a lei atual ou o status
quo; caminho para alcançar estados psíquicos da mente que permitem
pensamento produtivo/processo criativo, estímulo para criar coragem
para executar alguma ação; fuga da realidade; caminho para experiências
transcendentais, entre outros motivos. Portanto, não se pode negar que as
pessoas (e, neste caso, adolescentes) usam drogas porque percebem (ou
ganham) benefícios nisso (Conceição & Oliveira, 2008).
Os precursores de problemas com álcool e outras drogas têm sido
denominados como fatores de risco para o abuso de drogas (Hawkins,
Catalano, & Miller, 1992). Os fatores de risco estão estatisticamente
associados com uma maior probabilidade de abuso de drogas. Além disso,
fatores de risco para o uso de drogas são características ou atributos de um
indivíduo, grupo ou ambiente de interação social que contribuem em
maior ou menor grau, para aumentar a probabilidade de sua utilização.

203
Maria Inês Galdolfo Conceição e Silvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos

Não existe um único determinante do uso de drogas entre os adolescentes


(Chakravarthy, Shah, & Lotfipour, 2013; Kliewer & Murrelle, 2007).
O padrão de uso de drogas em adolescentes pode ser compreendido
situando os possíveis fatores de risco e de proteção em diferentes domínios
da vida. Assim, para cada domínio da vida de um adolescente, pode ou
não haver fatores de risco, bem como fatores de proteção para o uso de
drogas. É importante notar que esses fatores de risco não ocorrem de uma
forma isolada ou estática. Há considerável inter-relação e variabilidade de
influência entre eles.
O uso da maconha tem sido associado a efeitos adversos substanciais,
alguns dos quais determinados por pesquisas bem delineadas (Volkow et
al., 2014). Considerando o atual debate gerado por novas regulamentações
e intenções de mudar as políticas em alguns países onde a maconha é
ilegal ou criminalizada, e a falta de informações conclusivas sobre os
benefícios e malefícios, é necessário analisar cuidadosamente as
informações disponíveis sobre o tema para subsidiar o debate acerca da
legalização da maconha.

Maconha e dependência
Apesar de algumas discussões controversas a respeito da dependência
de maconha, algumas evidências indicam que o uso da maconha a longo
prazo pode levar à dependência (Budney, Roffman, Stephens, & Walker,
2007; Volkow et al., 2014). Resultados de pesquisa mostram que
aproximadamente 9% dos que experimentam maconha, tornam-se
dependentes (Lopez-Quintero et al., 2011). Segundo a Pesquisa Nacional
de 2012 sobre uso de drogas e saúde realizada nos EUA, estima-se que 2,7
milhões de pessoas com 12 anos ou mais, reúnem os critérios para
dependência de maconha de acordo com o Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV), e que 5,1 milhão de pessoas
preenchiam os critérios para dependência de qualquer droga ilícita
(Lopez-Quintero et al., 2011). O número sobe para cerca de um em cada
seis daqueles que começaram a usar maconha na adolescência e 25 a 50%

204
Uso de maconha e adolescência

entre aqueles que fumam maconha diariamente (Hall & Degenhardt,


2009). Também se reconhece a existência de uma síndrome de abstinência
de maconha (com sintomas que incluem irritabilidade, dificuldades para
dormir, disforia, desejo incontrolável de consumir e ansiedade), que torna
difícil a cessação do uso e contribui para a recaída (Budney & Hughes,
2006; Gorelick et al., 2012). Além disso, o uso problemático e a
dependência têm sido estudados como fatores de risco e consequências de
doença mental, tornando-se necessária a realização de uma revisão
cuidadosa da literatura, a fim de analisar essa associação (Budney &
Hughes, 2006; Gorelick et al., 2012).

Maconha e Doença Mental


Em relação à doença mental, Patton, Degenhardt, Lynskey, Hall e
Wayne (2002) referem que a utilização regular de maconha está associada
a um risco aumentado de ansiedade e depressão, embora não seja
estabelecida causalidade. A maconha também está relacionada com
psicoses, especialmente entre pessoas com uma vulnerabilidade genética
pré-existente (Meier et al., 2012; Volkow et al., 2014), e agrava o curso da
doença em pacientes com esquizofrenia. O uso mais frequente de
maconha, a maior potência da droga e a exposição em idades mais
precoces, podem afetar negativamente a trajetória da doença, por
exemplo, com a antecipação do primeiro episódio psicótico em dois a seis
anos (Di Forti et al., 2013). Entretanto, é impossível estabelecer
causalidade nesses tipos de estudos, pois fatores outros, que não a
maconha, podem estar diretamente associados com o risco de doença
mental. Além disso, outros fatores podem predispor uma pessoa tanto ao
uso da maconha quanto à doença mental. Isto torna difícil atribuir o
aumento do risco de doença mental ao uso de maconha (Volkow et al.,
2014).
Volkow et al. (2014) assinalaram que a maconha tem um efeito no
desenvolvimento do cérebro. Em comparação com controles não expostos,
adultos que fumavam maconha regularmente durante a adolescência

205
Maria Inês Galdolfo Conceição e Silvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos

tinham uma conectividade neural prejudicada em regiões específicas do


cérebro que estão envolvidas em funções que exigem um alto grau de
integração (por exemplo, estado de alerta e autoconsciente consciência), e
na aprendizagem e memória (Volkow et al., 2014; Zalesky et al., 2012).
Filbey e Yezhuvath (2013) também relataram que a conectividade
funcional reduzida tem sido associada a redes pré-frontais responsáveis
pela função executiva (incluindo controle inibitório) e as redes subcorticais
que processam hábitos e rotinas. Além disso, estudos de imagem em
pessoas que usam maconha revelaram diminuição da atividade em regiões
pré-frontais e volumes reduzidos no hipocampo (Batalla et al., 2013).
Além disso, o efeito negativo do uso da maconha na conectividade
funcional do cérebro é particularmente proeminente quando a utilização
começa na adolescência ou início da idade adulta (Zalesky et al., 2012), o
que pode ajudar a explicar a associação encontrada entre o uso frequente
de maconha desde a adolescência até a idade adulta e o declínio
significativo nos escores do Quociente de Inteligência (Meier et al., 2012).
Os prejuízos na conectividade do cérebro associados com a exposição à
maconha na adolescência são consistentes com achados pré-clínicos,
indicando que o sistema canabinóide desempenha um papel de destaque
na formação de sinapses durante o desenvolvimento do cérebro (Gaffuri,
Ladarre, & Lenkei, 2012; Volkow et al., 2014).
Portanto, a relação entre o uso de maconha pelos adolescentes e o
dano psicossocial é susceptível de ser multifacetada, o que pode explicar as
inconsistências encontradas entre os estudos. Por exemplo, um estudo
sugere que déficits de longo prazo podem ser reversíveis e permanecer
sutis em lugar de produzir incapacidades, uma vez que a pessoa se
abstenha do uso (Macleod et al., 2004). Outros estudos mostram que o uso
frequente e de longo prazo de maconha pode resultar em deficiências da
memória e da atenção que persistem e pioram com os anos de uso regular
(Solowij et al., 2011), e com o início do uso durante a adolescência
(Schweinsburg, Tapert, & Brown, 2008; Volkow et al., 2014).

206
Uso de maconha e adolescência

Danos físicos do uso da maconha


O consumo de maconha também tem sido apontado como fator de
risco para o desenvolvimento de doença física. Volkow et al. (2014)
observaram que os efeitos do fumo da maconha a longo prazo sobre o
risco de câncer de pulmão não são claros. Nesse cenário, o uso de
maconha para equivalente a 30 ou mais anos consecutivos (um
ano-consumo equivale a fumar um cigarro de maconha por dia por um
ano) foi associado a um aumento da incidência de câncer de pulmão e
vários cânceres do trato aero-digestivo superior. No entanto, a associação
desapareceu após ajuste dos resultados potenciais fatores de confusão
como o uso de tabaco (Hashibe et al., 2006). Embora a possibilidade de
uma associação positiva entre fumar maconha e câncer não possa ser
descartada (Callaghan, Allebeck, & Sidorchuk, 2013), evidências sugerem
que o risco é menor com o consumo de maconha do que com o de tabaco
(Hashibe et al., 2006). No entanto, o consumo de cigarros que contêm
produtos de maconha e tabaco é um potencial fator de confusão com uma
prevalência que varia drasticamente entre os países (Volkow et al., 2014).
Na área da saúde física, Gordon, Conley e Gordon (2013)
descreveram a relação entre o consumo de maconha e o aumento do risco
de infecção associado com a alteração da resposta celular imune. Eles
também sugerem que pode haver uma provável associação com a
ocorrência de problemas respiratórios e cardiovasculares com o uso da
maconha.
Fumar maconha também está associado com inflamação das vias
aéreas maiores, aumento da resistência das vias aéreas, e hiperinflação
pulmonar, associações que são consistentes com o fato de que fumantes
regulares de maconha são mais propensos a relatar sintomas de bronquite
crônica do que os não-fumantes (Tashkin, 2013; Volkow et al., 2014). No
entanto, o efeito a longo prazo de baixos níveis de exposição a maconha
não parece ser significativo (Pletcher et al., 2012). A competência
imunológica do sistema respiratório em usuários de maconha também
pode ser comprometida, como indicado pelo aumento das taxas de
infecções respiratórias e pneumonia (Owen, Sutter, & Albertson, 2014). O

207
Maria Inês Galdolfo Conceição e Silvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos

uso da maconha também tem sido associado a problemas vasculares que


aumentam os riscos de infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e
ataques isquêmicos transitórios durante a intoxicação por maconha
(Thomas, Kloner, & Rezkalla, 2014). Os reais mecanismos subjacentes aos
efeitos da maconha nos sistemas cardiovasculares e cerebrovasculares são
complexos e não totalmente compreendidos (Volkow et al., 2014).

Efeitos do uso da maconha em adolescentes


Além da discussão sobre os benefícios e ou malefícios do uso da
maconha e as implicações políticas da legalização ou descriminalização
entre os diferentes países, os efeitos do consumo de cannabis em idades
precoces na vida têm sido estudados por muitos pesquisadores. Eles
consideram os possíveis impactos sobre a saúde física, psicológica e social
durante a adolescência e a idade adulta.
Estudos têm sido realizados para determinar os efeitos do consumo
de maconha em adolescentes. Dougherty et al. (2013) mostraram que o
uso de maconha está associada com a perda de memória a curto prazo.
Essa perda se mantém mesmo depois de seis semanas abstinência e ocorre
num período de tempo mais curto de utilização em adolescentes que
quando um adulto consome. O mesmo estudo indica que há uma maior
tendência à impulsividade em adolescentes que usam maconha, o que
poderá, a médio prazo, ter impacto sobre o desenvolvimento do uso
problemático. O mesmo efeito sobre a memória tanto em usuários
ocasionais como frequentes foi encontrado em uma revisão desenvolvida
por Crane, Schuster, Fusar-Poli e Gonzalez (2013). Essa revisão aponta
que outros efeitos neuro-cognitivos não são tão consistentes em sua
associação com a maconha e afirma que a capacidade de tomar decisões e
assumir riscos permanecem intactos durante os episódios de intoxicação
aguda, mas é alterada no consumo regular, e pode ter algum efeito sobre o
desenvolvimento do consumo problemático. Além disso, tomar a decisão
de parar de usar maconha é mais difícil, mesmo quando os riscos são
conhecidos (Crane et al., 2013).

208
Uso de maconha e adolescência

Solowij et al. (2011) encontraram memória e aprendizagem verbal


prejudicadas em adolescentes com uma média de consumo de 2,4 anos de
uso. Na mesma linha, Meier et al. (2012) demonstraram que o uso
persistente de maconha foi associado com declínio neuropsicológico,
especialmente funcionamento executivo e velocidade de processamento.
Esse estudo observou que o QI diminui na idade adulta, quando a idade
de início do uso se dá na adolescência, enquanto que quando o consumo
começa quando adultos, esse declínio de QI não ocorre. Finalmente,
quando cessa o consumo de cannabis, o funcionamento cerebral prévio não
é totalmente restaurado.
Os efeitos da maconha no cérebro do adolescente têm sido estudados
por muitos pesquisadores e alterações corticais têm sido amplamente
descritas. James, James e Thwaites (2013) encontraram alterações corticais
em adolescentes normais, associando-as com efeitos em reforçadores
primários, como o paladar e o tato, persistindo após seis meses de
abstinência. Em sua revisão, os autores observaram que quando as
demandas cognitivas são baixas, tanto o grupo controle como o de
usuários de maconha funcionam bem, mas quando as exigências são
maiores, o funcionamento de consumidores declina e há perda de
inibição. Em outro estudo, Jacobus et al. (2012) relataram mudanças no
fluxo cerebral, com diminuição de irrigação sanguínea e declínio de
perfusão, que podem ser críticos para o desenvolvimento do cérebro no
final da adolescência.
Outros sistemas orgânicos também podem ser afetados pelo consumo
de cannabis. Ditmyer et al. (2013) sugerem que existe uma associação entre
saúde bucal e uso de tabaco e maconha, pois são um fator de risco para
cáries graves na adolescência. Por sua vez, um estudo descreveu o impacto
da fumaça da maconha sobre o sistema cardiovascular, demonstrando que
a frequência da variabilidade cardíaca aumentou significativamente em
usuários jovens do sexo masculino. Em suma, a maconha não só afeta o
cérebro, mas outros sistemas relevantes no desenvolvimento do
adolescente também são por ela afetados (Schmid, Schönlebe, Drexler, &
Mueck-Weymann, 2010).

209
Maria Inês Galdolfo Conceição e Silvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos

Os pares têm forte influência no uso da maconha e são um fator de


risco importante. Ali, Amialchuk e Dwyer (2011) determinaram que
aumentando a proporção de amigos e colegas mais próximos
consumidores de maconha, o consumo aumenta em cinco pontos
percentuais, o que significa uma forte relação entre a identificação entre o
comportamento do adolescente e o comportamento de seus pares.
Asbridge, Hayden e Cartwright (2012) encontraram uma associação
entre o uso agudo de maconha e a ocorrência de acidentes, especialmente
aqueles com resultados fatais. Porém, Arterberry et al. (2013), em uma
amostra de 597 adolescentes usuários, encontraram que 35,4% relataram
dirigir depois de fumar maconha, sem expectativa de diminuir o controle
ou prejudicar a condução. Outros estudos observaram que dirigir sob os
efeitos da maconha é mais comum entre usuários frequentes (Bergeron,
Langlois, & Cheang, 2014, Fischer et al., 2014). Brady e Li (2014)
mostraram que a substância não-alcoólica mais comum detectada em
acidentes de carro com resultados fatais foi a maconha, contribuindo para
um aumento de mortalidade nos indivíduos com menos de 25 anos de
idade. Considerando o impacto de outras substâncias como o álcool,
alguns achados sobre o desenvolvimento do cérebro do adolescente
usuário relativos a impulsividade e comportamentos de risco sugerem que
existe um aumento em acidentes de carro pelo efeito adicional de uso da
maconha (Brady & Li, 2014). Assim, o uso de maconha na adolescência
tem vários efeitos sobre os diferentes aspectos da vida. Esses efeitos têm
impactos tanto de curto como de longo prazo, e podem afetar o
desenvolvimento e a vida na fase adulta.

Leis sobre a maconha


As políticas regulatórias sobre o uso da maconha têm sido discutidas
há anos no contexto das drogas ilícitas. Nesta análise, diferentes aspectos
devem ser considerados, tais como questões econômicas (mercado),
premissas morais duvidosas (os usuários precisam ser corrigidos e/ou
punidos), consequências para a saúde e justiça (Velleman, 2013). O

210
Uso de maconha e adolescência

sistema de monitoramento internacional de drogas é baseado em três


convenções principais que emanaram do sistema das Nações Unidas: a
Convenção Única de 1961 sobre Entorpecentes; a Convenção de 1971
sobre Substâncias Psicotrópicas; e a Convenção de 1988 contra o Tráfico
Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas. Nas três convenções,
a cannabis é apresentada como uma substância altamente aditiva e
“suscetível de abuso”, com propriedades particularmente perigosas, que
deve ser proibida (United Nations, 1961, 1971, 1988). No entanto, mesmo
quando obrigados pelas convenções das Nações Unidas, decisões de
legalizar a produção e o consumo de maconha para uso pessoal em dois
estados dos EUA (Colorado e Washington, embora ainda seja uma
substância ilegal de acordo com leis federais) e Uruguai levantaram novos
cenários e abriram a discussão para temas não relacionados
exclusivamente com a maconha como uma substância aditiva (Room,
2014).
Nesse cenário global, algumas declarações, tais como “a maioria das
drogas ilícitas é menos prejudicial do que o álcool e o tabaco”, “a
proibição transforma um grande número de cidadãos em criminosos” são
muito comuns no debate das mudanças de regulamentação (Velleman,
2013). A influência da proibição no preço das drogas, o impacto sobre o
crime organizado, a violência e a corrupção associadas ao problema de
drogas, e a demonstração de que a “guerra às drogas” fracassou, devem
ser considerados antes de alterar regulamentos locais ou estabelecer novas
convenções internacionais.
Nesse contexto, os conceitos de legalização, despenalização ou
descriminalização da maconha tornam-se um chavão, criando debates
acalorados e controversos. Os resultados de alguns desses debates seriam
considerados impossíveis no passado, porém legalização, despenalização
ou descriminalização já se tornou uma realidade para alguns países do
hemisfério ocidental (Joffe & Yancy, 2004). Os termos legalização,
despenalização e descriminalização são frequentemente usados como
sinônimos, no entanto eles não se referem ao mesmo conceito:

211
Maria Inês Galdolfo Conceição e Silvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos

Descriminalização inclui sanções não criminais, como multas ou


intervenções destinadas a dissuadir os usuários de continuar a
consumir drogas ilícitas. O termo despenalização é agora
amplamente utilizado na discussão de regimes jurídicos alternativos.
Refere-se a uma redução dos níveis atuais de penalidades formais de
qualquer tipo de posse de drogas para uso pessoal, enquanto que
legalização refere-se a um regime em que a produção e o consumo
são legais. Pode haver restrições legais de ambos os lados do mercado,
até mesmo com sanções penais para as violações. Legalização
significa que é possível para uma ampla classe de indivíduos obter a
droga sem penalização e a droga pode ser produzida e distribuída por
algumas entidades sem penalidade. (Organization of American States
- Cicad, 2013, p. 8)

A legalização e/ou descriminalização da maconha têm implicações


difíceis de serem previstas. A Organização dos Estados Américas (2013)
afirma que “a legalização de substâncias controladas, especialmente se
comercializadas, poderia complicar os esforços de prevenção, diminuir os
preços e, assim, expandir o uso e dependência, com todas as
consequências negativas que acompanham essas tendências. (p. 5).” No
entanto, a organização também enfatiza que as questões sociais, tais como
a criminalidade e a violência podem diminuir. Essencialmente, os países só
vão descobrir esse impacto depois de algum tempo de acompanhamento,
monitoramento e avaliação dessas alterações regulamentares.
De acordo com o modelo bioecológico, as leis e marcos regulatórios
que envolvem a temática das drogas correspondem ao macrossistema. Esse
contexto, que para Bronfenbrenner (2005) representa o mais inclusivo dos
sistemas, refere-se ao conjunto de ideologias, valores, crenças, religiões,
culturas e subculturas presentes no cotidiano da pessoa que está em
desenvolvimento. Os adolescentes elaboram suas percepções influenciados
por essas construções sociais e é muito importante oportunizar a sua
participação na discussão destes conceitos e como vigoram em sua cultura.

212
Uso de maconha e adolescência

Percepção de danos do uso da maconha entre adolescentes


Mudanças regulatórias sobre o uso da maconha em vários países
provaram ser uma luta constante para as políticas globais de saúde, com a
possibilidade de ter um impacto considerável na percepção do adolescente
sobre de danos em relação ao uso de maconha. O relatório afirma que,
para adolescentes e adultos jovens, os regulamentos mais permissivos sobre
a maconha se correlacionam com diminuição do risco percebido, e baixa
percepção de risco foi encontrado como preditivo de aumento na
utilização. O relatório também adverte que, embora o público em geral
possa perceber a maconha como a droga ilícita menos danosa, entre 2003
e 2012, a proporção do total de admissões para tratamento de
dependência de cannabis aumentou em vários países (UNODC, 2014).
O relatório afirma que o início do uso da maconha entre os
adolescentes é particularmente preocupante devido ao risco aumentado de
dano. Algumas delas incluem: o uso de outras drogas e dependência,
problemas pulmonares, perda de memória, problemas de desenvolvimento
psicossocial, problemas de saúde mental, diminuição do desempenho
cognitivo associado ao início precoce e uso persistente entre os anos do
início da adolescência e idade adulta (UNODC, 2014).
Segundo a pesquisa “Monitoring the Future” (Johnston et al., 2014), a
percepção dos riscos associados ao uso da maconha mudou e agora menos
adolescentes acreditam que as drogas são prejudiciais. Os autores
observaram que essa mudança com frequência prevê o aumento do uso
futuro de uma droga. A pesquisa constatou que apenas 41,7% dos alunos
da 8a série veem o uso ocasional da maconha como prejudicial, enquanto
66,9% consideram o uso regular como prejudicial. Além disso, os autores
afirmam que este foi o menor nível documentado nessa faixa etária desde
1991, quando o estudo começou a monitorar a percepção de risco entre os
alunos da 8a série. É de particular importância observar que a percepção
do risco associado ao uso de maconha continuou a declinar
acentuadamente nos últimos anos escolares. A desaprovação do consumo
também diminuiu um pouco em 2013. Essas alterações muitas vezes são
presságios de aumento na prevalência de maconha no futuro. A

213
Maria Inês Galdolfo Conceição e Silvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos

disponibilidade percebida manteve-se relativamente estável. O uso da


maconha no 3o ano do ensino médio foi maior do que fumar cigarros
(21,4% versus 19,2% nos últimos 30 dias).
Kilmer, Hunt, Lee e Neighbors (2007) descobriram que a percepção
de risco foi maior entre os não usuários de maconha do que entre aqueles
que relataram uso de maconha (e, por sua vez, que eram mais propensos a
ter realmente experimentado uma consequência relacionada com a
droga). Entre os usuários de maconha, a percepção de risco não foi
influenciada pela frequência de uso de maconha, nem foi influenciada
pela experiência real de uma consequência relacionada com a droga. Para
os abstêmios, o risco percebido e as possíveis consequências do uso de
maconha podem ter um papel protetor contra o início do uso da droga.
Para aqueles que usam maconha, as intervenções que utilizam enfoques
motivacionais poderiam explorar a discrepância que há entre os riscos
percebidos e as consequências reais experimentadas.
Um levantamento domiciliar australiano sobre os riscos à saúde
provocados pelo consumo de cannabis mostrou que os entrevistados
acreditavam que o uso de cannabis pode causar problemas de saúde e
sociais, podem afetar adversamente a capacidade de uma pessoa em
dirigir um carro, pode causar dependência, e pode levar ao uso de outras
drogas ilícitas (Calabria, Swift, Slade, Hall, & Copeland, 2012). Os
entrevistados tinham dúvidas quanto ao fato de se a cannabis podia ou não
causar esquizofrenia e depressão, e se a cannabis tornar-se-ia mais potente
ao longo do tempo. No mesmo contexto, os resultados de um estudo
realizado em Bogotá e em Barcelona com 865 alunos (de 15 a 18 anos de
idade) mostrou que o medo das consequências ou a percepção de risco de
danos ou lesão e as condições que favoreçam a utilização não parecem ter
uma influência óbvia sobre os diversos hábitos de consumo entre
adolescentes mais velhos (Trujillo, Fornsi-Santacana, & Pérez-Gomez,
2007).
Thornton, Baker, Johnson e Lewin (2013) encontraram que no caso
do tabaco e do álcool, o consumo foi inversamente e significativamente
relacionado com a percepção de dano. Eles concluíram que maiores

214
Uso de maconha e adolescência

percepções de risco para tabaco e maconha se associam ao sexo feminino


e à percepção da efetividade de campanhas de prevenção do consumo.
Também notam que as pessoas com alterações de saúde mental percebem
a maconha como mais prejudicial do que as pessoas sem nenhuma
alteração.
Um estudo no qual se aplicou um modelo bioecológico para predizer
a percepção de risco de consumo de maconha na adolescência encontrou
que os adolescentes tendem a perceber a si mesmos como invulneráveis ao
dano e tomam decisões relativas aos comportamentos de risco para a
saúde baseadas nessa percepção (Fleary, Heffer, McKyer, & Newman,
2010). No entanto, não há suficiente pesquisas sobre as razões para as
quais alguns adolescentes se envolvem em comportamentos de risco,
mesmo quando têm uma percepção similar aos daqueles que se abstém de
comportamentos de risco.
Muitos modelos e teorias foram desenvolvidos para explicar o uso de
drogas em diferentes populações, incluindo o modelo das crenças em
saúde, que assume que a percepção de risco está relacionada
negativamente com os comportamentos de risco, mas falha em incorporar
variáveis bioecológicas que são cruciais na tomada de decisões na
adolescência.
Conforme aponta Bronfenbrenner (2005), as variáveis de contexto,
pessoa, processo e tempo, podem ser muito úteis para a análise e o
planejamento da intervenção, sobretudo no campo da prevenção. Os
contextos dos quais o adolescente participa constituem um privilegiado
campo de interações, no interior do qual os processos proximais ocorrem.
Planejar ações que não sejam exclusivamente normativas e informativas e
investir no protagonismo adolescente, assumindo uma visão que
transcenda a ideia restritiva de culpabilização do indivíduo, pode ser uma
boa estratégia para esse trabalho.

215
Maria Inês Galdolfo Conceição e Silvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos

Referências
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223
224
PARTE 3

TRANSIÇÃO DE PARADIGMA NA PREVENÇÃO


CAPÍTULO 3.1

A Escola como uma Comunidade


Educativa e Protetiva:
a experiência do Prodequi/UnB na
prevenção do uso abusivo de drogas
Maria Lizabete Pinheiro de Souza
Maria Inês Gandolfo Conceição
Maria Fátima Olivier Sudbrack

O objetivo deste texto é traçar uma retrospectiva das ações do


Prodequi/UnB na prevenção do uso de drogas em escolas, apresentar os
fatores de risco e proteção do uso de drogas, o paradigma sistêmico da
educação para a saúde e os fatores de risco e proteção da escola associados
à variável “clima escolar”, conforme pesquisa de Souza (2017).
A função da escola, como espaço de socialização e lócus da
prevenção, não pode ser negligenciada. No entanto, ainda há muito o que
realizar nesse sentido, sobretudo no que se refere à prevenção do uso
abusivo de drogas. A pesquisa PenSE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística [IBGE], 2015) revela que o contato das crianças com as drogas
inicia-se muito cedo. Essa pesquisa informou que cerca 9% dos estudantes,
na faixa etária de 13 a 15 anos, experimentaram drogas ilícitas. Já entre os
escolares de 16 a 17 anos, o nível é de aproximadamente 17%. O
consumo de drogas ilícitas aumentava com a idade, sendo de 7,2% entre
os escolares de 16 a 17 anos de idade, tendo em vista que um quarto dos
escolares alegaram ter amigos usuários. Dentre os estudantes que já
haviam experimentado bebidas alcóolicas, 73% estavam na faixa etária de
16 a 17 anos, destes pouco mais de 21% iniciaram o uso com menos de 14
anos de idade, e cerca de 60% tinham amigos usuários. O consumo de

227
Maria Lizabete Pinheiro de Souza et al

álcool cresceu 56,5%, sendo 24%, aproximadamente, na faixa etária de 13


a 15 anos, e de 38,0% entre 16 a 17 anos. “Em torno de 37% dos
escolares de 16 a 17 anos de idade já sofreram com episódios de
embriaguez e aproximadamente 12,0% deles tiveram problemas, com
família ou amigos, porque haviam bebido” (IBGE, 2015, p. 90).

O papel da escola na prevenção do uso abusivo de drogas


Prevenir, segundo a Carta de Ottawa de 1986, implica saber acolher e
possibilitar a construção identitária de educadores e alunos, o
desenvolvimento das potencialidades humanas e a inserção na cultura.
Consiste em permitir a subjetivação, ou seja, possibilitar ao estudante
tornar-se pessoa, pertencer a um espaço próprio e construir um projeto de
vida.
A ação preventiva visa à formação, capacitação e conscientização
sobre determinada situação de risco e deve ser realizada em três níveis:
primário, secundário e terciário. A prevenção primária acontece quando o
uso de drogas não está ainda instalado; na prevenção secundária, é
possível identificar um nível moderado de uso de drogas; na prevenção
terciária, por sua vez, o problema já está instalado e requer tratamento
especializado.
Os programas de prevenção são efetivados quando integram várias
abordagens, setores e instituições. Portanto, o cuidado com a vida deve ser
partilhado entre os poderes públicos, privados e comunitários, e as
intervenções preventivas devem ser feitas com planejamento, avaliação e
transparência, em comunidades pequenas e específicas (Souza, Sudbrack,
& Conceição, 2015).
O espaço escolar, como já foi dito, é potencialmente capaz de
proteger crianças e jovens de situações que envolvam risco social. Proteger,
segundo Schenker e Minayo (2005), significa oferecer condições de
crescimento, de amparo e de fortalecimento da pessoa em formação.

228
A Escola como uma comunidade Educativa e Protetiva

Os fatores de proteção e de risco da escola


Os fatores de proteção referem-se às condições que contribuem para
diminuir a probabilidade de envolvimento com drogas e outros
comportamentos de risco, bem como o aparecimento de novos casos quando
há fatores de risco, como os conflitos de ordem familiar e social. Referem-se às
influências que modificam, melhoram ou alteram respostas pessoais a
determinados riscos, evitando que os indivíduos expostos às situações de risco
tenham seu desenvolvimento prejudicado. Os fatores de risco são
circunstâncias presentes no indivíduo, na família, na escola, no grupo de pares
e na comunidade que, de forma isolada ou conjunta, aumentam a
probabilidade de o indivíduo apresentar problemas de ordem física,
emocional, social. O risco, na área da saúde, envolve o conhecimento e a
experiência acumulada sobre o perigo de alguém ou de a coletividade ser
acometida por doenças e agravos. A exposição ao perigo potencializa os riscos
de diversas formas e em vários contextos, exacerbando, por exemplo, fatores
individuais, educação infantil insatisfatória, fracassos escolares, relações sociais
problemáticas entre os pares ou com desorganização da comunidade.
O produto final da interação entre fatores de risco e de proteção
associa-se diretamente com os processos de resiliência (Libório, 2009),
entendida como a capacidade de suportar as condições adversas e crescer
apesar delas, como, por exemplo, em precárias condições socioeconômicas da
família e da comunidade. Para Yaria (2005), a escola desenvolve o capital
social e é território social que privilegia os valores humanos. O desafio dessa
instituição é suplantar a “atomização dos vínculos” e a “consequente
atomização dos seres humanos” (Yaria, 2005, p. 77). A escolarização,
portanto, contribui para a promoção da resiliência. A conclusão dos ciclos de
estudos, ainda que em situações adversas, são fatores de imunização e de
proteção.
Entre os estudiosos desse assunto, Conceição e Sudbrack (2004)
apresentaram os fatores de risco e proteção no Paradigma Sistêmico da
Educação para a Saúde em diferentes domínios da vida: o individual, o de
pares, o familiar, o comunitário e o escolar. No domínio da escola, os seguintes
fatores foram apresentados por Sudbrack e Dalbosco (2005 maio):

229
Maria Lizabete Pinheiro de Souza et al

Tabela 1– Fatores de Proteção e de Risco

Fatores de Proteção Fatores de Risco


Definição, comunicação e negociação de Indefinição ou falta de comunicação e
normas, regras e limites. negociação de normas, regras e limites.
Coerência e congruência entre agentes
Incoerência e incongruência entre os
educativos na aplicação de normas e
agentes educativos na prática de normas.
regras escolares.
Relação de respeito mútuo, compromisso e Re l a ç ã o d e s r e s p e i t o s a e f a l t a d e
cooperação entre os agentes responsabilidade e compromisso entre os
educativos. agentes educativos.
Relações amistosas e de cooperação entre Ausência da relação entre família e
a família e a escola. escola.
Estímulo às práticas escolares. Falta de estímulo às práticas escolares.
Verbalização das expectativas positivas
Ausência de expectativas positivas em
com relação ao desempenho dos
relação ao desempenho dos alunos.
alunos.
P r o m o ç ã o d e p r á t i c a s c r i a t i va s e
estimulantes, com atividades escolares e Ausência de atividades criativas e
extraescolares que concorram para a estimulantes que ajudem na criação de
criação de vínculos entre o aluno e a vínculos entre o aluno e a escola.
escola, os pais e a comunidade.
Fortes vínculos afetivos e de confiança Ausência de afetividade e confiança na
entre alunos e professores e dentro do relação professor-aluno e no ambiente
ambiente escolar. escolar.
Relações professor-aluno baseadas no
Relações professor-aluno baseadas no
autoritarismo ou no excesso de
respeito mútuo.
permissividade.
Ausência de afetividade e confiança na
Presença e afetividade e confiança no
relação professor-aluno e no ambiente
ambiente escolar.
escolar.
Estímulo e exercício dos princípios da Falta de estímulo às práticas educativas de
cooperação e da solidariedade. cooperação e solidariedade.
Controle da presença de drogas. Falta de controle quanto à presença de
drogas na escola.
Postura repressora e reflexiva quanto ao Tolerância em relação ao cigarro, álcool e
uso de drogas pelos jovens. outras drogas.

Fonte: “Escola como contexto de proteção: refletindo sobre o papel do educador na prevenção ao uso
indevido de drogas”, Sudbrack & Dalbosco, 2005, maio, p. 10.

230
A Escola como uma comunidade Educativa e Protetiva

Justino, Lima e Sudbrack (2015), em pesquisas realizadas junto aos


tutores que participaram da sexta edição do Curso de Prevenção do Uso
de Drogas para Educadores de Escolas Públicas destacaram os seguintes
fatores de proteção: “o pertencimento e valorização do educando; a
relação respeitosa entre educando e educador; a cooperação entre família
e escola; e o ambiente escolar seguro e protetor” (p. 278).
Para Schenker e Minayo (2005), os fatores de risco são circunstâncias
que, de forma isolada ou conjunta, aumentam a probabilidade de o
indivíduo apresentar problemas de ordem física, emocional, social;
implicam a manifestação ou permanência de algum comportamento de
risco – uso frequente e abusivo de drogas, atos de violência e
delinquenciais, práticas sexuais não protegidas etc. No âmbito
educacional, existem fatores específicos que predispõem os adolescentes ao
uso de drogas, como: (a) falta de motivação para os estudos, absenteísmo e
mal desempenho escolar; (b) insuficiência no aproveitamento e falta de
compromisso com o sentido da educação; (c) intensa vontade de ser
independente, combinada com pouco interesse de investir na realização
pessoal; (d) busca de novidade a qualquer preço e baixa oposição a
situações perigosas, rebeldia constante associada à dependência a
recompensas (p. 710). Para Justino et al. (2015), dentre os fatores de risco
da escola, destacam-se: “a presença do uso ou abuso de drogas lícitas e
ilícitas no ambiente familiar; relações conflituosas na família; ausência de
referência de autoridade e limites; ausência de cooperação entre família e
escola, proximidade de distribuição de drogas na escola” (pp. 278-279).

O Paradigma sistêmico da educação para a saúde


A partir do entendimento de que prevenir é impedir que algo de mal
aconteça, e dentro do paradigma da promoção da saúde, o
Prodequi/UnB, por meio do Curso de Prevenção do Uso de Drogas para
Educadores de Escolas Públicas, apresentou estratégias e abordagens
interdisciplinares e intersetoriais, propondo a integração de órgãos e de
profissionais (da saúde, da assistência social, da educação, entre outros)

231
Maria Lizabete Pinheiro de Souza et al

que compõem as redes sociais do sujeito, redes essas que integram


elementos econômicos, sociais e culturais e operam mudanças macro e
microssociais. Desse modo, destaca-se a abordagem sistêmica de educação
para a saúde, proposta por Sudbrack (2014b), que utiliza o conceito de
redes sociais de Sluzki (1997), que concebe uma teia relacional entre
pessoas e grupos sociais, propondo como estratégia o reforço dos vínculos
sociais, baseado na confiança, permitindo, assim, “[...] a circulação das
informações necessárias, troca de experiências, aprendizados recíprocos e
construção de soluções coletivas” (p. 174).
Tratando-se de prevenção, existem duas visões: a tradicional e a
sistêmica. Dentro da visão tradicional, o usuário é percebido como
delinquente ou doente, submisso ao controle da família, o que dificulta a
sua relação no contexto familiar e social. Na visão sistêmica, proposta por
Sudbrack, Conceição e Costa (2014a), o usuário é percebido como sujeito
de direitos, agente de mudança, com autonomia para tomar decisões e
negociar regras, o que facilita a sua relação com a família e a sociedade. A
perspectiva sistêmica, defendida pelo Prodequi/UnB, possibilita ter uma
compreensão do contexto vivencial do sujeito levando em conta os fatores
internos e externos que atuam na sua formação. Assim sendo, as relações
escolares podem se constituir em um fator de proteção que fortalece a
autoestima do estudante, contribuindo para que tenha um estilo de vida
saudável. Desse modo, as práticas educativas devem romper com a cultura
do medo (que não diferencia os diferentes usos) e adotar a visão sistêmica
que propõe “o fortalecimento do sujeito em busca de autonomia,
exercitada no protagonismo social para uma vivência plena de cidadania”
(Bottechia et al., 2015, p. 131).
A visão comparativa dos dois enfoques descritos por Sudbrack
(2014b, p. 172) é apresentada a seguir.

232
A Escola como uma comunidade Educativa e Protetiva

Tabela 2 – Comparativo entre dois enfoques sobre prevenção


do uso de drogas

Enfoque do medo Enfoque sistêmico

Redução da demanda: preocupação


Controle da oferta: preocupação em
em reduzir a procura por drogas, com
controlar a oferta de drogas ilícitas, com
limites para crianças e jovens no acesso
pretensão de acabar com as drogas.
às drogas lícitas e ilícitas.
Controle externo: criminalização do Autonomia: conscientização da
usuário de drogas, com abordagem população sobre o uso de drogas lícitas
policial centrada nas drogas ilícitas. e ilícitas.
Ampliação do conhecimento e
Ampliação da violência que gera
competência para ação: ênfase na
insegurança e paralisia: ênfase no
a u t o e s t i m a e n a a u t o c o n fia n ç a ,
medo e nas ameaças, promovendo
promovendo iniciativas para soluções
impotência e inércia.
criativas.
A bor dag em isolada: problema Abordagem integrada: problema
re d u z i d o à q u e s t ã o d o p ro d u t o , definido a partir do encontro de uma
atribuindo poder à substância sem pessoa com um produto em um contexto
considerar o sujeito. sociocultural.
Educação: prevenção centrada no
Repressão: prevenção centrada na
conhecimento da realidade, quebrando
fuga do problema, usando um discurso
tabus, reconhecendo situações de risco,
estereotipado e amedrontador, impondo
promovendo a opção pela saúde e pela
posturas e decisões autoritárias.
vida.
Questão individual: envolvimento Questão relacional: envolvimento com
com drogas visto como um problema drogas visto como um problema de
pessoal, tratado como um processo relações tratado como processo de
psicológico individual. mudanças no contexto familiar.
Soluções participativas e
Soluções hierarquizadas e
contextualizadas: mobilização dos
parciais: isolamento dos usuários do
recursos comunitários, construindo
convívio social, transferindo o problema
vínculos af etivos, redes sociais,
para especialistas.
integrando os diferentes saberes.

Fonte: Sudbrack (2014b, p. 172).

233
Maria Lizabete Pinheiro de Souza et al

A partir dessa perspectiva sistêmica, as formas de intervenções


pedagógicas devem mudar a visão sobre o jovem, por vezes considerado
negativo e destrutivo, que “passa a ser o protagonista das mudanças
necessárias à evolução e à melhora nas relações da família ou dos demais
sistemas nos quais interage” (Sudbrack, 2014a, p. 164). Desse modo, de
acordo com Souza, Sudbrack, et al., (2015), os educadores, enquanto
mediadores do desenvolvimento da personalidade do educando, devem
desconstruir visões preconceituosas em relação ao uso e ao usuário, e
promover uma nova compreensão da relação professor-aluno-comunidade
e da prática pedagógica na escola. Assim sendo, poderão desenvolver
ações contínuas e integradas que possibilitam que o estudante se sinta
integrado e valorizado, fortalecendo as relações escolares e construindo
redes de proteção intra e extraescolares.

O curso de Prevenção do uso de drogas para educadores de


escolas públicas
O Programa de Estudos e Atenção às Dependências Químicas –
Prodequi/UnB, dedicou-se, nos últimos dez anos, à formação de
educadores de escolas públicas no Curso de Prevenção do uso de drogas
para educadores de escolas públicas, em parceria com o Ministério da
Educação e a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) do
Ministério da Justiça.
O curso se baseia no modelo sistêmico de educação para a saúde. A
primeira publicação sobre esse modelo foi apresentada por Sudbrack
(1996). Tal modelo, que contrapõe o modelo do medo, integrou o
conteúdo pedagógico de diversos cursos, dentre eles o de Prevenção ao uso de
indevido de drogas entre crianças e adolescentes em situação de rua e o Diga Sim à Vida
(Costa, Seidl, & Sudbrack (1999). O novo modelo proposto voltado para a
educação, para a saúde e valorização da participação da comunidade, fez
parte da base teórica do Curso de Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de
Escolas Públicas (Sudbrack et al., 2014a). “O desafio da mudança
paradigmática do modelo do medo para o modelo sistêmico da educação

234
A Escola como uma comunidade Educativa e Protetiva

para a saúde foi amplamente explorado em diversas publicações


(Sudbrack, 1996, 1999, 2004a, 2006, 2014a, 2014b, 2014c; Sudbrack,
Conceição, & Costa, 2008, 2010)” (Souza, 2017, p. 18).
O curso apresenta-se em formato de Educação a Distância (EaD),
possui 180 horas/aula, foi realizado de 2004 a 2014, e resultou de uma
parceria entre a Universidade de Brasília (UnB), o Ministério da Educação
(MEC) e a Secretaria de Políticas Nacionais sobre Drogas (Senad) –
vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Foram oferecidas
mais de 195.000 mil vagas para cursistas em todo o Brasil, em seis edições,
durante dez anos de vigência do curso. Em 2012, o curso foi ofertado para
todo o Brasil como a principal ação preventiva no eixo de prevenção do
programa Federal “Crack é Possível Vencer!” (Brasil, 2011). O curso
objetivou contribuir no fortalecimento das redes de proteção da escola,
propondo a integração de órgãos e profissionais da saúde, da assistência
social, da segurança pública e da justiça, além de representantes da
comunidade (Souza, 2017).
A Tabela 3, a seguir, apresenta os dados das cinco últimas edições (a
primeira foi uma edição-piloto ofertada a 5.000 cursistas do país),
destacando o número de selecionados, de educadores certificados, de
escolas atendidas e de projetos desenvolvidos. Nos dez anos de vigência do
curso, foram certificados 94.072 cursistas, participaram 33.040 escolas,
que apresentaram 19.354 projetos de prevenção.

235
Maria Lizabete Pinheiro de Souza et al

Tabela 3 – Panorama da oferta e da Certificação no Curso de


Prevenção

Edição Selecionados Certificados Escolas Projetos


2ª (2006-2007) 20.097 13.432 2.289 1.756
3ª (2008-2009) 24.583 14.601 6.419 4.304
4ª (2010-2011) 23.297 10.170 3.357 2.201
5ª (2012-2013) 70.951 33.306 9.201 5.612
6ª (2014) 61.603 24.563 11.774 5.481
Somatório das edições do
132.554 55.975 20.975 11.093
“Plano crack”

Somatório “10 anos” 200.531 94.072 33.040 19.345

Fonte: Rodrigues e Bias, 2015, p. 95.

Durante a vigência do curso, instrumentos diagnósticos foram


desenvolvidos em várias pesquisas de mestrado e doutorado: (a) entrevista
de acolhimento do adolescente em situação de risco (Pereira, Sudbrack, &
Almeida, 2015); (b) termômetro de fatores de risco e de proteção da escola
(Borges, 2006); (c) o mapa da rede social da escola (Sudbrack &
Vasconcelos, 2014). O banco de dados do Prodequi/UnB também serviu
de base empírica para várias pesquisas de mestrado e doutorado. As teses
realizadas foram de: (a) Souza (2017) sobre os fatores de risco e proteção
da escola e a sua relação com o clima escolar; (b) Dalbosco (2012), que
trata das re presentações sociais dos educadores sobre as
situações-problema relativas uso de álcool e drogas no contexto escolar, e
Pereira (2009) sobre as redes sociais dos adolescentes em situação de
vulnerabilidade e o risco do envolvimento com o tráfico de drogas. As
dissertações realizadas foram de: (a) Marques (2011), que pesquisou as
narrativas dos educadores sobre as situações-problema relativas ao uso de
álcool e outras drogas no contexto escolar da região Centro-Oeste; (b)
Sobrinho (2014), sobre o papel do policial como parceiro da escola na
prevenção do uso de drogas; (c) Silva (2011), que pesquisou sobre a

236
A Escola como uma comunidade Educativa e Protetiva

questão das drogas e da violência na escola sob a ótica dos educadores


sociais da segurança pública; e (d) Vasconcelos (2008), que destacou a
avaliação da rede social da escola como forma de prevenção. Importa
ressaltar, também, que no biênio de 2013-2014 foram realizadas pesquisas:
uma pesquisa geral sobre o impacto do curso, desenvolvidas por Polonia,
Neiva, Justino, Totugui e Sudbrack, (2015), e oito dos polos regionais do
curso, desenvolvidas por Asinelli-Luz e Wisniewki (2015), Borloti et al.
(2015), Noto et al. (2015), Souza, Alencar, et al. (2015), Sudbrack, Millão,
Vione, Santos e Almeida Junior (2015), Teixeira e Nascimento (2015),
Viana e Vianna (2015). É importante ressaltar que, no decorrer das quatro
últimas edições, foram feitas avaliações externas sistemáticas, sendo que,
na última delas, Pereira (2015) pesquisou o impacto das 5ª e 6ª edições em
todo Brasil.
O papel do educador na prevenção do uso de drogas não é fácil.
Muitos professores abraçam a causa e o aluno, mas estão muito
sobrecarregados e adoecidos. Destacam a necessidade de envolver o aluno
na prevenção, inclusive nos cursos oferecidos sobre a temática. Para o
Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, 2002), os estudantes
podem e devem manifestar suas opiniões e interferir nas políticas e
programas educativos, porém, no protagonismo juvenil preconizado pelas
Diretrizes e Bases da Educação Brasileira em 1996, a participação juvenil
ainda é tratada como despolitizada e conformista. Muitos não se
identificam com a escola, quando o contexto escolar não se constitui um
espaço público e democrático que acolhe as culturas juvenis e oferece
condições para o aluno se socializar e construir o seu projeto de não se
subjugar às ingerências políticas, socioeconômicas e pedagógicas (Souza,
2017, p. 157).

O clima escolar como fator de proteção na escola


Na pesquisa realizada por Souza (2017) com educadores que
concluíram a 5a e a 6a edições do curso, foram destacados fatores de
proteção ao uso de drogas em escolas do DF e a sua relação com o clima

237
Maria Lizabete Pinheiro de Souza et al

escolar, definido como: “construto relativo à qualidade dos


relacionamentos e da prática pedagógica produzidos no âmbito escolar;
inclui valores, atitudes, sentimentos e sensações partilhados entre os atores
escolares (alunos, educadores, gestores e funcionários da educação) e as
famílias e a comunidade” (p. 171). Os fatores destacados pelos
participantes da pesquisa foram: (a): o respeito, o compromisso e a
cooperação, entre os agentes educativos, (b) a afetividade e confiança no
ambiente escolar, (c) a presença de normas claras e consistentes, (d) a
prática escolar com atividades diversificadas, inclusivas, criativas voltadas
para o desenvolvimento de habilidades sociais; (e) atitudes positivas e
valorativas para com as famílias, promovendo a cooperação entre
família/escola, alunos esforçados e interessados; (f) estabelecimento de
parceria com a rede social da escola, a participação ativa da comunidade
no ambiente escolar; e (g) gestores capazes de dialogar e agregar valor à
comunidade escolar. O acolhimento do aluno e de sua família foram
considerados os fatores mais protetores. A “confiança coletiva” gera
“sentimentos de pertencimento e ligação entre os atores escolares,
aumenta o senso de bem-estar e a probabilidade de resultados positivos”.
Conforme a proposição de Hoy (2012), pode-se dizer que a confiança
coletiva (confiança nos alunos, educadores e funcionários, gestores, pais e
comunidade) se constitui numa amálgama relacional que propicia a saúde
nas relações escolares.
Foram apontados pelos participantes da pesquisa os seguintes fatores
de risco: (a) a localização da escola em áreas de risco social e proximidade
da rede de distribuição de drogas; (b) a qualidade das relações escolares,
sobretudo as relações da escola com a família e com a comunidade, em
que se observa a falta de interação. Outros fatores importantes que
comprometem as relações interpessoais na escola são: (c) a ausência de
projetos e práticas que envolvam toda a comunidade escolar apostando no
protagonismo do aluno; (d) a ausência de interação positiva
mestre-aprendiz, permeada por preconceitos, cobranças e dúvidas, leva (e)
os educadores a trabalharem de forma isolada, sujeitos a uma prática
escolar fragmentada, que pode concorrer para a invisibilidade de fatores

238
A Escola como uma comunidade Educativa e Protetiva

de risco próprios da escola e visualização do clima escolar positivo como o


principal fator de prevenção do uso de drogas (Souza, 2017).
Há uma tendência em responsabilizar a família e a comunidade (o
entorno escolar) pelas mazelas existentes no interior da escola (o
envolvimento dos alunos com as drogas, por exemplo), bem como em
responsabilizar os alunos por não terem um bom desempenho escolar. A
relação professor-aluno com atitudes excludentes e punitivas, por vezes
permeadas de agressividade, também vem sendo questionada. Foram
apontadas também questões cruciais, como a falta de um espaço de escuta
dos alunos e o receio da equipe gestora em tratar de questões difíceis, tais
como a das drogas e da dificuldade na gestão. Também foram apontadas a
falta de articulação entre os professores, a ausência de trabalho coletivo e a
dificuldade de articulação com a própria secretaria e com os demais
parceiros (Souza, 2017).
O clima escolar promove a dinâmica relacional da instituição e
incrementa as ações propostas no Projeto Político-Pedagógico (PPP) das
escolas, marca identitária e única de cada escola, que resulta da parceria
entre todos os representantes da comunidade escolar (diretores,
coordenadores, orientadores, psicólogos e membros do Conselho Escolar,
professores, funcionários da escola, alunos e seus pais e familiares), para
dar sentido e qualificação ao ensino e à educação. O educador é mediador
do processo de conhecimento, que reconhece, inscreve, institui o sujeito
(estudantes) na rede de relações humanas, assim sendo, precisa também
ser formado, reconhecido e instituído no universo simbólico e relacional
da escola. Vale lembrar que, para Souza (2017),
o papel do professor se torna sólido quando confirmado por uma
equipe consolidada, reflexiva, legitimada e comprometida com a
construção do sujeito que está por traz do aluno. Desse modo, o
professor deve ser cooptado pela escola, para que possa crescer nesse
espaço institucional e relacional. (p. 171).

239
Maria Lizabete Pinheiro de Souza et al

Cabe aos educadores conquistar “a confiança das famílias e das


pessoas que compõem o entorno escolar, abrindo espaço para um diálogo
permanente que compartilhe os valores comuns que sedimentam o clima
escolar e oferece aos alunos a proteção que eles requerem” (p. 171).
Recomenda-se, portanto, “que os dirigentes das unidades escolares e das
diversas instâncias do sistema escolar avaliem o clima escolar das escolas,
utilizando métodos multivariados aplicados aos diferentes atores que
compõem a instituição escolar” (p. 171).
Uma boa relação professor-aluno, conforme Blaya (2002), deve conter
os seguintes elementos: (a) comunicação clara e honesta; (b) atividades
extracurriculares; (c) disciplina justa e coerente; (d) oportunidades para os
alunos desenvolverem a autoestima e o sentimento de pertencimento; (e)
incentivo à participação, à colaboração, ao desenvolvimento de lideranças
e desenvolvimento de uma cultura compartilhada. Para Sudbrack,
Conceição e Ramos (2014), a mobilização da rede interna e externa da
escola oferece as condições para o pertencimento e o desenvolvimento de
projetos de prevenção articulados de promoção da saúde na escola. A
criação de um clima interpessoal escolar positivo pode favorecer o
funcionamento escolar e o desenvolvimento socioemocional dos
professores (Cohen, 2006; Cohen, Mccabe, Michelli, & Pickeral, 2009;
McGiboney, 2016) e dos estudantes (Hoy, 2012). Portanto, o acolhimento
do aluno e de sua família, o investimento no aluno como um agente de
prevenção, no professor como mediador do conhecimento, e nas relações
interpessoais é essencial para a criação de um clima de “confiança
coletiva” (Hoy, 2012, p. 76). A participação efetiva e constante da rede
interna, com os seus diferentes atores (gestores, professores, alunos,
funcionários) e as instâncias educacionais (conselho escolar, grêmio,
associação de pais e mestres, etc.), e a rede externa (parceiros e
comunidade) concorrem para a proteção da escola. Essa instituição, ao se
constituir em um agente catalisador e mobilizar a rede interna e externa,
fortalece a si própria e à comunidade na qual está inserida, conquistando
os insumos disponibilizados pelas políticas públicas e adequando-os ao seu
trabalho protetivo e preventivo (Souza, 2017).

240
A Escola como uma comunidade Educativa e Protetiva

Considerações Finais
A escola se torna protetora quando estende sua ação educativa à
comunidade e inscreve-se simbolicamente como um espaço de acolhida e
de pertencimento, bem como quando aproveita o potencial de cada
parceiro para oferecer cursos e atividades que visem à formação do
cidadão. Importa lembrar que as escolas criam civilizações, projetos de
vida, assim, na formulação e no desenvolvimento do Projeto
Político-Pedagógico a participação dos estudantes, dos familiares e da
comunidade é imprescindível.
O contexto escolar liga cognição, afeto e aprendizagem, e seu clima
pode se constituir um lugar de proteção e concorrer para a diminuição de
riscos quando os educadores recebem o suporte acadêmico e emocional
para desenvolver a sua tarefa pedagógica. Portanto, a política educacional
deve ter por direcionamento a medição detalhada e constante dessa
importante variável que, por si só, é o fator de proteção mais importante
para a prevenção de comportamentos de risco como, por exemplo, o uso
de drogas.

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A Escola como uma comunidade Educativa e Protetiva

a prevenção do uso de drogas no território educativo-experiência e pesquisa do


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249
250
CAPÍTULO 3.2

Promoção da Saúde e prevenção do uso


abusivo de drogas:
caminhos e possibilidades
Larissa Polejack
Gustavo Costa
Fabiane Braga Pereira
Leandro Moreira dos Santos de Figueiredo

Prevenção e Promoção da Saúde: olhares e intervenções


Existem vários conceitos de prevenção e de promoção de saúde. Para
Czeresnia (2009), a dificuldade principal na definição desses dois conceitos
está na própria definição do que é saúde. De acordo com Sciliar (2007), o
conceito de saúde reflete uma conjuntura social, econômica, política e
cultural e depende da época, do lugar e da classe social. Diante da
dificuldade de uma compreensão comum do que seria saúde, coube a
Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgar uma carta de princípios
em 7 de abril de 1948, reconhecendo a saúde como um direito e como
obrigação do Estado na promoção e proteção da saúde. Nesta carta a
OMS apresenta a definição de saúde como “ estado do mais completo
bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade”.
Entretanto, o próprio conceito é passível de várias críticas e, em que
pese a visão ampliada (e até utópica) desse conceito, na prática o que se
observa em geral em Saúde Pública é que as ações ainda estão voltadas
para a lógica de evitar a doença e não na lógica de fortalecer o potencial
de saúde dos sujeitos e das comunidades.

251
Larissa Polejack et al

Czeresnia (2009) ressalta que a saúde pública se define como


responsável pela promoção da saúde enquanto suas práticas se organizam
em torno de conceitos de doença. Outra questão é que suas práticas
tendem a não levar em conta a distância entre conceito de doença –
construção mental – e o adoecer – experiência da vida –, produzindo-se a
“substituição” de um pelo outro. Para a autora, reside aí uma incoerência
entre conceitos e práticas que pretendemos discutir neste capítulo.
O conceito de prevenção, proposto por Caplan (citado por Abreu,
Barletta & Murta, 2015), foi dividido em três: prevenção primária,
secundária e terciária. A primeira dizia sobre ações voltadas para todas as
pessoas, com ênfase na redução de novos casos. A segunda era direcionada
ao público que já apresentava sintomas iniciais do transtorno que se
buscava evitar. Por fim, a terceira focava naqueles que apresentam a
doença diagnosticada e buscava reduzir novas ocorrências e complicações
dela (Abreu et al., 2015). Esse modelo foi revisado e uma atualização foi
proposta em que a prevenção primária foi dividida em prevenção
universal, a qual é realizada com foco em todos os membros da
população; prevenção seletiva, que tem como foco membros da população
que apresentam fatores de risco maiores que o resto da população para o
desenvolvimento do transtorno alvo; e prevenção indicada, que é prevista
para aqueles que apresentam sintomas iniciais do transtorno, mas que
ainda não satisfazem todos os critérios de diagnóstico. A prevenção
secundária foi renomeada para tratamento, que inclui identificação dos
casos e o tratamento propriamente dito, e a terciária foi renomeada para
manutenção, que consiste em serviço de reabilitação e prevenção de
recaídas (Abreu et al., 2015).
Tal modelo foi revisto novamente e chegou-se ao modelo atual, de
Weiz, Sandler, Dulak e Anton (citado por Abreu et al., 2015), em que
“ações de promoção de saúde mental e de prevenção aos transtornos
mentais como atividades de um mesmo contínuo, isto é, que têm uma
intersecção parcial ainda que mantenham metas distintas” (Abreu et al.,
2015, p. 58). Segundo esses autores, a promoção de saúde almeja o
desenvolvimento de habilidades e criação de recursos para que o indivíduo

252
Promoção da Saúde e prevenção do uso abusivo de drogas: caminhos e possibilidades

enfrente problemas pessoais e contextuais. Já a prevenção objetiva o


aumento de fatores de proteção, bem como a diminuição de fatores de
risco.
Czeresnia (2009) também se ocupa em fazer a distinção entre os dois
conceitos. A autora cita Ferreira, que afirma que o termo “prevenir” tem o
significado de “preparar; chegar antes de; dispor de maneira que evite
(dano, mal); impedir que se realize”. Neste sentido, as ações preventivas
têm como base o conhecimento epidemiológico, estão orientadas a evitar
o surgimento de doenças específicas, reduzindo sua incidência e
prevalência nas populações, e os projetos de prevenção e de educação em
saúde estruturam-se mediante a divulgação de informação científica e de
recomendações normativas de mudanças de hábitos. “Promover” tem o
significado de dar impulso a; fomentar; originar; gerar (Ferreira, citado
por Czeresnia, 2009). Nesse sentido, a promoção da saúde traz uma visão
mais ampla do que a prevenção, pois refere-se a medidas que não se
dirigem a uma determinada doença, mas servem para aumentar a saúde e
o bem-estar gerais, tendo como principais estratégias a transformação das
condições de vida e de trabalho por meio do fortalecimento da autonomia
dos sujeitos e dos coletivos.
Na abordagem da promoção da saúde parte-se do pressuposto de que
a saúde tem vários determinantes sociais, econômicos e culturais, portanto
a abordagem de fortalecimento da saúde deve considerar a complexidade
das relações envolvidas e desenhar estratégias intersetoriais e em diferentes
níveis de intervenção (individuais, familiares, comunitárias e
governamentais).
Cabe lembrar que a Carta de Otawa, de 1986 (Primeira Conferência
Internacional sobre Promoção da Saúde, 1986), define a promoção da
saúde como um processo que se consubstancia na autonomia da
comunidade para desempenhar um papel ativo na melhoria de sua
qualidade de vida, o que inclui participação e controle social em todo o
processo. Portanto, ao falarmos de promoção da saúde é importante
compreender a saúde como um direito que se efetiva com o exercício da
cidadania.

253
Larissa Polejack et al

Czeresnia (2009) destaca que a ideia de promoção envolve a de


fortalecimento da capacidade individual e coletiva para lidar com a
multiplicidade dos condicionantes da saúde, não bastando conhecer o
funcionamento das doenças ou encontrar mecanismos para seu controle.
A Promoção da Saúde diz respeito ainda ao fortalecimento da saúde por
meio da construção de capacidade de escolha, bem como a utilização do
conhecimento com o discernimento de atentar para as diferenças e
singularidades dos acontecimentos, bem como a experiência subjetiva
presente no processo saúde-doença.
A concepção de saúde como um direito proveniente do princípio da
dignidade da pessoa humana, tanto quanto outros também previstos na
Constituição Federal Brasileira (Brasil, 1988), nos leva ao entendimento de
que a sua promoção não se procede isolada desses outros direitos e nem se
desenvolve plenamente em indivíduos separados de sua coletividade.

Prevenção do uso abusivo de drogas: estratégias e desafios


Na área das drogas também vamos encontrar os desafios apontados
na seção anterior, uma vez que, apesar de buscarmos estratégias que
promovam saúde, ainda se percebe que muitas ações se desenvolvem na
lógica da prevenção de doenças e agravos, ou seja, ainda lidamos com
várias intervenções focadas no problema/doença e poucas intervenções
focadas no fortalecimento do potencial dos sujeitos e dos coletivos.
O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC)
publicou um documento intitulado “Normas Internacionais sobre a
Prevenção do uso de Drogas” (UNODC, 2015). O objetivo desse
documento é prevenir o primeiro uso e que a sua evolução se torne um
transtorno relacionado ao uso de substâncias psicoativas. A fim de atingir
esse objetivo são apresentadas características de um sistema de prevenção
eficaz, partindo de intervenções baseadas em evidências daquelas
realizadas em diversos países. As intervenções analisadas foram separadas
levando em consideração as fases de desenvolvimento, entendendo que os

254
Promoção da Saúde e prevenção do uso abusivo de drogas: caminhos e possibilidades

fatores de risco e proteção se alteram e um dos fatores que influenciam


nessa mudança é a idade.
Ainda que não trate da questão da redução de danos em situações de
abuso e dependência de álcool e outras drogas, o documento ressalta a
importância da estratégia de redução de danos em situações que fujam ao
objetivo do documento. Por fim, apresenta as seguintes características de
um sistema de prevenção eficaz: série de intervenções e políticas baseadas
em evidências; política de apoio e enquadramento regulamentar; forte
base em evidências científicas e pesquisas; diferentes setores envolvidos em
diferentes níveis; forte infraestrutura do sistema de aplicação; e
sustentabilidade. Além disso, indicam tópicos de pesquisa que necessitam
de mais estudos e evidências para, futuramente, basearem programas de
prevenção. Temas como esportes, atividades de lazer e uso não medicinal
de remédios controlados são exemplos de tópicos que necessitam de
estudos mais profundos e controlados baseados em evidências.
O Ministério da Saúde junto com o UNODC implementou três
programas baseados em evidências visando à prevenção do uso de
substâncias e tiveram resultados avaliados como bons. Os programas eram
baseados em ações intersetoriais, na medida em que se valiam de
dispositivos de educação, saúde e assistência social (Abreu et al., 2015).
Pode-se inferir que o Brasil começa a aplicar as normas internacionais
para prevenção do uso de drogas em seu território, ainda que de maneira
incipiente.
Após a publicação da Lei 11.243/2016, a redução de danos passou a
ser uma estratégia também de prevenção do uso de substâncias
psicoativas. Dessa forma, intervenções voltadas ao uso de substâncias
devem seguir essa lógica, levando em consideração que o consumo de
substâncias envolve fatores pessoais, sociais, culturais, entre outros. Cabe
ressaltar que, na nossa avaliação, a abordagem da redução de danos seria
a mais coerente com a lógica proposta da promoção da saúde, conforme
discutiremos posteriormente.

255
Larissa Polejack et al

Büchele, Coelho e Lindner (2009) realizaram um estudo com o


objetivo de descrever a promoção da saúde e prevenção do uso de
substâncias psicoativas. As autoras distinguem seis abordagens para
prevenção do uso de drogas no Brasil, quais sejam: enfoque de princípio
moral; amedrontamento; conhecimento científico; educação afetiva;
pressão positiva do grupo; e qualidade de vida. Inicialmente, as ações de
prevenção focaram nas escolas, apresentando as consequências negativas
do uso de drogas, ligado à lógica da abstinência, ao amedrontamento e ao
enfoque de princípio moral. Não foram observados bons resultados dessas
práticas, apesar de ainda existirem estratégias com essas abordagens.
Intervenções focadas em conhecimentos científicos fazem oposição ao
amedrontamento e transmitem informações objetivas para que a pessoa
decida sobre o uso ou não, favorecendo a autonomia do indivíduo na
decisão do consumo ou não. Em geral não é, porém, suficiente para que
cause diminuição do consumo (Büchele et al., 2009; Carlini-Cotrim &
Pinsky, 1989)
A educação afetiva propõe o desenvolvimento de habilidades de lidar
com tensões, frustrações, fortalecimento de fatores de proteção e
habilidades sociais, procurando prevenir o uso de drogas. Existe
dificuldade de implementação por exigir treinamentos de funcionários e
profissionais, além de necessitar de disposição interna na mudança de
comportamento (Büchele et al., 2009; Carlini-Cotrim & Pinsky, 1989).
A pressão positiva do grupo visa à mobilização de líderes de jovens,
tendo em vista que eles assumam posturas contrárias ao uso de drogas e
formem, a partir de coesão afetiva dos próprios jovens, redes de apoio e
mútua ajuda. Por fim, a abordagem de qualidade de vida procura
estimular práticas saudáveis de vida, desestimulando assim a busca pelo
uso de drogas (Büchele et al., 2009; Carlini-Cotrim & Pinsky, 1989). As
autoras citam ainda a necessidade de união entre poderes públicos,
instituições privadas e sociedade civil para efetiva construção de
compromissos de corresponsabilização em relação à qualidade de vida da
população, entendendo que todos são responsáveis pelo seu bem-estar.

256
Promoção da Saúde e prevenção do uso abusivo de drogas: caminhos e possibilidades

Uma das diversas estratégias de prevenção do uso de substâncias


psicoativas é a educação por pares, que é definida como “ensinar ou
compartilhar informações de saúde, valores e comportamentos por
membros com idades ou situações similares” (Tolli citado por Santos &
Polejack, 2015). Essa estratégia também é coerente com a lógica da
promoção da saúde e tem grande potencial para criação de redes sociais
entre os pares, fortalecimento do controle social e favorecimento da
autonomia da comunidade, uma vez que incentiva a participação de
líderes e membros comunitários. Entretanto, é preciso ter o cuidado de
não transformar os pares em apenas reprodutores de informações e
recomendações técnicas/normativas determinadas por outras pessoas,
correndo o risco de perder a essência da estratégia que é justamente o
desenvolvimento de reflexão crítica sobre a realidade, mobilização grupal
para as mudanças e fortalecimento de autonomia.
A participação de profissionais de saúde também é importante na
construção, implementação e avaliação conjunta das ações de prevenção.
Entretanto, cabe ressaltar a importância de formar tais profissionais para
saberem atuar na lógica da promoção da saúde e não de forma
verticalizada e prescritiva. Um dos aspectos a serem considerados nessa
formação é aprender a trabalhar em redes e desenvolver atividades com
grupos.
A intervenções de prevenção que visam ao fortalecimento de fatores
de proteção, como o desenvolvimento de habilidades parentais e
estratégias de enfrentamento ao uso de drogas, apresentam maior
coerência com a lógica da promoção da saúde e favorecem a autonomia
dos indivíduos em nível pessoal, familiar e comunitário, auxiliando
também no exercício da cidadania, entrando em consonância com a
PNAD e com a estratégia de redução de danos.
Apesar de existirem exemplos de programas de prevenção do uso de
drogas com base em evidências, no Brasil, eles ainda são incipientes
(Abreu, Miranda, & Murta, 2016). Faz-se necessário que se realizem testes
de mais intervenções, partindo sempre da adaptação ao contexto que vão
ser inseridas, e que sejam feitas as devidas avaliações de eficácia e

257
Larissa Polejack et al

efetividade. Além disso, é mister que os autores avaliem suas intervenções


de modo sistemático, a fim de utilizar as tecnologias já produzidas em
outras cidades e outros contextos com as devidas adaptações culturais e
contextuais, porque nem sempre uma intervenção que é bem-sucedida em
uma determinada cultura ou contexto poderá ser aplicada em outra
população ou lugar, reforçando a importância do envolvimento do Estado
e das Universidades no processo de avaliação das intervenções e no
desenvolvimento de políticas públicas coerentes com a necessidade da
população.
Mas, em termos de políticas públicas, como será que o Brasil tem se
organizado para atuar na prevenção do uso abusivo de drogas?

Drogas e políticas públicas no Brasil: um breve histórico


O paradigma vigente durante quase todo o século XX em relação às
drogas foi de combate e proibição total, conhecido como “guerra às
drogas”. Em relação ao usuário, entendia-se que este deveria estar em
completa abstinência. Neste período, o Brasil seguiu o rumo mundial e
combateu a produção, uso e venda de substâncias, salvo o álcool e o
tabaco. Como exemplo, a maconha foi proibida no Brasil em 1932 (Fiori,
2012). Assim, durante grande parte do século passado, o Brasil e boa parte
do mundo viveram a caça às drogas, e em alguns momentos, intervenções
estrangeiras em países considerados produtores de drogas, como na
Bolívia e na Colômbia (Fiori, 2012; Passos & Souza, 2011).
No fim século passado, porém, aconteceram as primeiras experiências
da chamada estratégia de redução de danos. A primeira experiência de
redução de danos no Brasil ocorreu em Santos, nos anos 1980, com a
distribuição de seringas para que usuários de drogas injetáveis não
precisassem compartilhar, visando, assim, a diminuir a transmissão de
doenças entre os usuários (Scheffer, Antunes, & Büchelle, 2011). Essa
iniciativa sofreu fortes críticas e repressão por ser confundida com
incentivo ao uso de substâncias ilícitas, mas se mostrou uma intervenção
bem-sucedida nesse contexto.

258
Promoção da Saúde e prevenção do uso abusivo de drogas: caminhos e possibilidades

Em 1998, o Conselho Federal de Entorpecentes foi transformado em


Conselho Nacional Antidrogas (Conad) e também foi criada a Secretaria
Nacional Antidrogas (Senad), ligada à Casa Militar da Presidência da
República. Posteriormente, no ano de 2002, foi criada a primeira Política
Nacional Antidrogas (Pnad). Percebendo a necessidade de reavaliar e
atualizar a política, foi instituída pelo Conad, em 2005, a nova Política
Nacional Sobre Drogas (Pnad) com participação de vários agentes de
sociedade, a partir de seis fóruns regionais e um nacional. A nova Pnad
traz os pressupostos e os objetivos da política, bem como orientações
gerais e diretrizes dos eixos: prevenção; tratamento, recuperação e
reinserção social; redução de danos sociais e à saúde; redução da oferta; e
estudos, pesquisas e avaliações (Conad, 2005). Em 2008, foi instituída a
Lei nº 11.754/2008 (2008) que alterou o nome do Conad para Conselho
Nacional de Políticas sobre Drogas e da Senad para Secretaria Nacional
de Políticas sobre Drogas. Essa mudança alinhou os nomes desses órgãos
com a mudança de perspectiva das políticas públicas sobre drogas no
Brasil. Em 2011, a Senad foi transferida da estrutura do Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência da República para o Ministério da
Justiça, visando a potencializar as ações de redução de oferta de
substâncias ilícitas.
Atualmente, no Brasil, a Lei sobre drogas, no Código Penal, é a n º
11.343/2006 (2006) e causou uma grande mudança no paradigma do uso
de substâncias no Brasil. A antiga lei de drogas (Lei n.º 6.368/1976) era
pautada sob o paradigma da abstinência e “guerra as drogas”, tendo foco
na segurança e não na saúde pública (Machado & Boarini, 2013). Os
artigos 18 a 26 da lei 11.343/2006, em especial o artigo 19, inciso VI,
trazem o embasamento legal, junto com a Pnad, para as estratégias de
redução de danos se tornarem políticas públicas. Foram, também, criadas
diferenciações penais aos usuários e aos traficantes de substâncias ilícitas.
Enquanto aqueles caracterizados como usuários de substâncias (artigo nº
28) deixaram de ter penas privativas de liberdade como sanções, os
caracterizados como traficantes (artigo nº 33) tiveram aumento de pena
mínima de prisão de três para cinco anos.

259
Larissa Polejack et al

Ainda que a lei proponha modernizações na forma de tratar a


questão das drogas no Brasil, ela não propôs questões objetivas para a
diferenciação entre usuários e traficantes, como quantidade de drogas
(Rodrigues, 2006). Ou seja, ainda fica a critério subjetivo do policial no
momento da abordagem, do delegado e do Ministério Público no
momento de caracterizar o crime, dando, assim, margem para diversas
interpretações e que pode causar diversos erros.
Em 2014 foi publicado o Levantamento Nacional de Informações
Prisionais, Infopen (Brasil, 2014), com o perfil da população carcerária
brasileira. Desde 2006, a população carcerária continuou crescendo, e
uma grande quantidade de pessoas presas ainda é proveniente de crimes
relacionados às substâncias ilícitas (28%). Uma parcela grande da
população carcerária feminina também está em prisões em virtude de
questões relacionadas à lei de drogas (64%). Alguns autores apontam que
grande parte das pessoas cumprindo pena de prisão por causa de tráfico
não portavam quantidades grandes, foram presas em flagrante, levando a
crer que eram pequenos traficantes e, em certos casos, possivelmente,
usuários (Instituto Sou da Paz, 2012; Veríssimo, 2010). A baixa
necessidade investigativa, no geral, das prisões em flagrante indica que
grande parte dos traficantes presos são aqueles que faziam a venda final
das substâncias, ou seja, não são, normalmente, os grandes traficantes
responsáveis pelo comando de organizações criminosas (Instituto Sou da
Paz, 2012).
Uma das críticas à Lei 11.343/2006 é que o critério subjetivo da
distinção entre usuário e traficantes tem causado confusões na
caracterização dos crimes (Veríssimo, 2010). O perfil das pessoas que estão
cumprindo pena privativa de liberdade no Brasil é majoritariamente
negro, jovem e com escolaridade até o ensino fundamental. Tais
informações nos chamam a atenção para a necessidade de pensar a
questão das drogas considerando o contexto social e a complexidade dos
fatores que permeiam a relação entre o tráfico e o uso de drogas.
Ademais, o aumento do tempo mínimo de prisão para os traficantes
de drogas pode ter contribuído para a superlotação das prisões, tendo em

260
Promoção da Saúde e prevenção do uso abusivo de drogas: caminhos e possibilidades

vista a quantidade de pessoas que são presas por esse tipo de infração
penal e a quantidade de vagas disponíveis pelo sistema prisional brasileiro.
Há que se ressaltar também o baixo número de vagas para regimes
abertos e semiabertos pelo sistema prisional brasileiro.
Mas será que o foco na punição é coerente com a aposta na
promoção da saúde?
Compreendemos a importância do avanço na legislação, entretanto,
conforme dissemos anteriormente, é fundamental que as políticas públicas
se ocupem de diferentes níveis de intervenção e que considerem que,
quanto mais investimentos forem feitos em estratégias de fortalecimento
comunitário e de promoção da saúde, menos terá que ser investido em
prisões, comunidades terapêuticas ou internações.

Política de Redução de Danos: uma estratégia de promoção da


saúde?
A redução de danos, segundo a Associação Internacional de Redução
de Danos,
se refere a políticas, programas e práticas que visam primeiramente
reduzir as consequências adversas para a saúde, sociais e econômicas
do uso de drogas lícitas e ilícitas, sem necessariamente reduzir o seu
consumo. Redução de Danos beneficia pessoas que usam drogas, suas
famílias e a comunidade. (Associação Internacional de Redução de
Danos, 2010, p. 1)

O descritor “Harm Reduction”, segundo o Medical Subject Headings da


United States National Library of Medicine (2002), é conceituado como “a
aplicação de métodos projetados para reduzir os riscos de danos
associados a certos comportamentos sem a redução da frequência desses
comportamentos”. Esses dois conceitos abrangem o caráter ativo do
usuário de drogas na decisão sobre o uso de substâncias, respeitando-o
como cidadão de direitos, garantindo acesso à cidadania e evitando a

261
Larissa Polejack et al

privação do convívio de sua família e de sua comunidade, com internações


involuntárias.
Apesar de a primeira estratégia de redução de danos datar da
primeira metade do século XX na Inglaterra, com o Relatório de
Rolleston (O’hare, citado por Santos, Soares & Campos, 2010), a
disseminação das ações e políticas de redução de danos são consideradas
recentes, sendo as primeiras experiências, após a tentativa inglesa,
ocorridas na Holanda no início da década de 1980, com a distribuição de
seringas para usuários de drogas injetáveis, focando diminuir a
propagação de doenças transmissão sanguínea como Hepatite B e HIV
(Scheffer et al., 2011). Vale comentar que houve grande participação dos
usuários de drogas na implementação e na forma que seria realizada essa
ação. Posteriormente, Estados Unidos, Austrália e outros países europeus
também adotaram medidas semelhantes, chegando ao Brasil no fim dessa
mesma década.
Como mencionado anteriormente, a primeira estratégia de Redução
de Danos no Brasil aconteceu na cidade de Santos, SP, em 1989, e teve
como objetivo evitar a transmissão de doenças e agravos à saúde a partir
da distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis. Santos
apresentava um índice alto de contaminação de HIV e estava muito
relacionado ao compartilhamento de seringas, justificando, assim, a
estratégia apresentada. Apesar disso, o secretário municipal de saúde e o
coordenador do programa de DST/Aids sofreram uma ação judicial e
foram acusados de incentivar o uso de substâncias (Passos & Souza, 2011).
Pode-se perceber que ainda prevalecia a ideia vigente de guerra às
drogas, marcada pelo combate à produção, ao uso sob a lógica da
proibição e da abstinência. Ainda assim, avanços foram obtidos e, em
2003, as ações de redução de danos “deixam de ser uma estratégia
exclusiva dos Programas de DST/Aids e se tornam uma estratégia
norteadora da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a
Usuários de Álcool e Outras Drogas e da política de Saúde Mental”
(Passos & Souza, 2011 p. 154). Em 2006, com a nova lei de drogas, a
redução de danos entra como parte da lei dentro das “atividades de

262
Promoção da Saúde e prevenção do uso abusivo de drogas: caminhos e possibilidades

prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e


dependentes de drogas”.
Almeida, Elias e Bastos (2011) fizeram uma revisão de literatura
referente a programas de redução de danos e interface com a saúde
pública. Os dados encontrados apontam que a grande maioria das
publicações encontradas tem pouca inter-relação com a saúde pública,
focando mais na Redução de Danos em si. Santos et al. (2010) realizaram
um estudo em que analisaram 46 publicações brasileiras sobre o tema da
Redução de Danos e classificaram-nas com base no “que estava sendo
tomado como objeto/sujeito da RD” (p. 1000). Tais autoras fazem a
ressalva de que algumas publicações se encaixavam em mais de uma
categoria a depender da situação apresentada. Dessa forma, sete
publicações ainda tinham como foco a abstinência. Vinte e duas focavam
principalmente na prevenção de doenças e agravos à saúde. Dezessete
publicações apresentavam como meta da redução de danos a produção de
estratégias de diminuição de danos e riscos em relação ao uso prejudicial.
Oito tinham como interesse o modo de viver comunitário e discutiam
ações de promoção de saúde e melhoria na qualidade de vida dos
usuários. Seis trabalhos ressaltaram a dimensão mais ampla dos riscos
individuais, chegando a esfera social, tendo em vista a redução dos danos
sociais da população. Considerando os achados dos autores, percebe-se
uma tendência geral de afastamento da lógica da abstinência e guerra às
drogas.
Machado e Boarini (2011) realizaram uma pesquisa bibliográfica e
traçaram um apanhado da história da redução de danos no Brasil,
partindo da Legislação e de publicações acadêmicas. As autoras apontam
como desafios atuais: a necessidade de estratégias voltadas para as
diferentes drogas e suas especificidades, o que impacta diretamente no
orçamento para essas ações; maior integração do tema da redução de
danos a questões sociais como violência, exclusão e preconceito; a ainda
existente resistência de alguns setores da sociedade na aceitação da
redução de danos, o que dificulta a implementação das estratégias por
apresentar confusão entre repressão e segurança de um lado, e prevenção

263
Larissa Polejack et al

e saúde de outro. As autoras alertam ainda para as mudanças nas políticas


públicas em tentar corrigir o problema de invisibilidade do usuário,
abrindo possibilidades de respeito a sua cidadania e seus direitos, mas que
ao mesmo tempo vem surgindo um grande debate voltado principalmente
ao financiamento de comunidades terapêuticas, que, em muitos casos,
ainda atuam sob a lógica da abstinência e isolamento social.
Em relação a este último aspecto, em 2016, foi publicada a Portaria
nº 1.482 (Brasil, 2016) do Ministério da Saúde que adiciona um novo tipo
de Estabelecimento de Saúde no Cadastro Nacional de Estabelecimentos
de Saúde (CNES) chamado “Polo de Prevenção de Doenças e Agravos e
Promoção da Saúde” incluindo nesse tipo as comunidades terapêuticas.
Dessa forma, torna-se possível o financiamento, via Ministério da Saúde,
das comunidades terapêuticas, deslocando a verba de outras unidades de
saúde mental, principalmente no atual momento em que foram
restringidos os gastos públicos incluindo o da Saúde por meio da Proposta
de Emenda à Constituição 55/2016 (Brasil, 2016). Além disso, existem
graves denúncias contra algumas comunidades terapêuticas (Conselho
Federal de Psicologia, 2011) nas quais ainda persistem a ideia manicomial
contrária à Lei 10.216/2001 (2001) que rege a Reforma Psiquiátrica
brasileira. Vale ressaltar que as comunidades terapêuticas não estão
reguladas pela política da assistência social ou da saúde, não havendo
políticas de implementação na sociedade brasileira. Após a publicação
dessa portaria, fica o questionamento sobre como serão as demais políticas
relacionadas ao álcool e outras drogas, uma vez que parte da verba que
antes seria enviada para os dispositivos de saúde voltados para a lógica da
redução de danos, que em sua grande maioria já sofria com a falta de
recursos, serão repassados às comunidades terapêuticas. Cabe notar que
tal portaria já havia sido suspensa pelo Poder Judiciário e foi alvo de um
Projeto de Decreto Legislativo na Câmara dos Deputados visando a
sustá-la.

264
Promoção da Saúde e prevenção do uso abusivo de drogas: caminhos e possibilidades

Educação Popular: uma possibilidade de fortalecer ações de


prevenção na lógica da promoção da saúde
A promoção à saúde efetiva-se de modo mais pleno nas ações
coletivas. A educação popular na saúde vem sendo tema de discussão
pelos órgãos que regem a saúde pública brasileira desde o início da década
passada. A trajetória de entrada nas políticas de saúde tem um marco em
2003, com a instituição da Educação Popular como área técnica do
Ministério da Saúde. Em 2005 foi alocada na Coordenação Geral de
Apoio à Educação Popular e à Mobilização Social, ficando, assim, como
um método importante de efetivação da Política Nacional de Gestão
Estratégica e Participativa no SUS (ParticipaSUS) (Correia, 2010).
Em 2013, foi aprovada a Política Nacional de Educação Popular em
Saúde (Pnep-SUS) pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A
Pnep- SUS
propõe uma prática político-pedagógica que perpassa as ações
voltadas para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a partir
do diálogo entre a diversidade de saberes valorizando os saberes
populares, a ancestralidade, o incentivo à produção individual e
coletiva de conhecimentos e a sua inserção destes no SUS. (Conselho
Nacional de Secretários de Saúde, 2013)

Além disso, propõe pressupostos para a prática da educação popular


na saúde, quais sejam: o diálogo, a amorosidade, a problematização, a
construção compartilhada do conhecimento, a emancipação e o
compromisso com a construção do projeto democrático e popular
(Conselho Nacional de Secretários de Saúde, 2013).
A educação popular vem sido utilizada em vários contextos e a área
de saúde é um campo em que ela é aplicável com diversas possibilidades e
resultados positivos. No Brasil, diversos estudos com intervenções foram
realizados principalmente no Sistema Único de Saúde (SUS). O
Ministério da Saúde publicou o II Caderno de Educação Popular em
Saúde (Brasil, 2014) e traz diretrizes e exemplos de aplicações no SUS. As

265
Larissa Polejack et al

mudanças acontecidas nas políticas públicas de saúde desde que a


Educação Popular se tornou área técnica, em 2003, até a publicação da
Pnep-SUS em 2013, trouxeram maiores possibilidades de aplicações desse
conhecimento de maneira sistematizada e de participação da população
na gestão do SUS. O caderno apresenta exemplos de intervenções
bem-sucedidas no âmbito da saúde e em consonância com os princípios
da Pnep-SUS, além de trazer relatos de agentes da saúde que
participaram dessas ações.
Um estudo de revisão integrativa foi realizado por Pinheiro e Bittar
(2016) visando às publicações sobre a temática da educação popular, os
serviços de atenção primária de saúde e se eles estão alinhados com os
princípios do SUS. Os resultados da revisão foram inseridos nas seguintes
categorias temáticas: “Caracterização das práticas e ações de Educação
Popular em Saúde na Atenção Primária”; “Estratégias e recursos adotados
no desenvolvimento das práticas”; “As práticas de Educação Popular em
Saúde e a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (Pnep-SUS)”;
“Entraves e desafios à sistematização e ampliação das propostas de
Educação Popular em Saúde”. As autoras apontam que, dentre as
intervenções estudadas, algumas delas focaram mais na mudança de
perspectiva da educação de saúde verticalizada para a troca de saberes
horizontal entre a equipe de saúde e os usuários do serviço, que vai em
direção aos pressupostos da Pnep-SUS. Destacam formas de inserir a
educação popular nos serviços de saúde a partir de estratégias adotadas
pelas equipes de saúde e também as dificuldades encontradas pelos
pesquisadores na implementação dessas práticas. Por fim, ressaltam a
importância de investimento financeiro nas instituições para que seja
possível a realização conforme as prerrogativas do Pnep-SUS e também a
necessidade de capacitação dos profissionais desde a formação nas
universidades até aqueles que já atuam no campo, principalmente
apontando para o entendimento de que o conhecimento popular pode se
aliar ao técnico.
Em um estudo sobre a concepção de saúde pela ótica de adolescentes
(Ferreira, Alvim, Teixeira & Veloso, 2007), a educação popular foi

266
Promoção da Saúde e prevenção do uso abusivo de drogas: caminhos e possibilidades

utilizada como instrumento metodológico de pesquisa em que houve


preferência pela metodologia participativa. Os adolescentes foram ouvidos
e, ainda que não fosse o foco da pesquisa, o tema de álcool e outras drogas
surgiu durante a realização dos grupos focais. É possível perceber
estratégias de redução de danos a partir da fala de alguns adolescentes
como evitar misturas de bebidas alcoólicas diferentes, evitar ingerir álcool
sem comer e prolongar o tempo de esvaziamento do copo. Essas medidas
têm como foco evitar a embriaguez e, ainda que indiretamente, evitar
comportamentos de risco derivados do uso excessivo de bebidas alcoólicas.
Ademais, as autoras destacam que o conhecimento do conceito de saúde
daquela população ajuda a elencar as prioridades de atendimentos e
programas a serem desenvolvidos na comunidade.
Levando em consideração as possibilidades de inter-relação entre a
educação popular e a saúde mental foi realizado um estudo por residentes
e profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras
Drogas (Caps-AD) (Carneiro et al., 2010). Os Caps-AD são importantes
dispositivos de rede pública de saúde e atenção a usuários de drogas. São
descentralizados para atendimento in loco a essa população. Além disso, a
partir da preservação da territorialidade, os Caps-AD buscam a integração
e participação dos usuários na comunidade em que estão inseridos e são
regidos pela lógica da redução de danos. Novamente tomada como
ferramenta metodológica, a educação popular foi utilizada como
estratégia política nesse estudo, na medida em que é uma forma de “dar
voz” àqueles que historicamente foram negados a esse direito. Os autores
mapearam a rede de saúde mental e convidaram diversos membros da
comunidade para fóruns com o propósito de discutir temas relacionados à
saúde mental. A partir das discussões foi possível perceber o
empoderamento em relação ao tema e do conhecimento da rede por parte
dos membros da comunidade. A partir dessas ações foi possível a
ocupação de espaços e o exercício da cidadania por parte de pessoas em
sofrimento mental. Além disso, foram montados stands de caráter com
informações sobre prevenção de doenças sexualmente transmissíveis,

267
Larissa Polejack et al

drogas, Caps e direitos dos usuários do SUS. Dessa forma, essa


intervenção teve caráter preventivo também.
A educação popular está alinhada aos princípios das políticas de
redução de danos no sentido de que valoriza a fala e experiência de vida
de agentes comumente marginalizados, usuários de drogas, e também
respeita suas decisões sobre usar ou não a substância. Abrindo espaço para
o exercício de cidadania, seja na ocupação de espaços antes relegados a
ele, seja no aprendizado de conhecimentos sobre seus direitos, os
princípios da Pnad e da Pnep-SUS são alcançados na reinserção social e
garantia de direitos dessa população. As ações de prevenção aliadas à
educação popular têm apresentado bons resultados, apesar de ainda
faltarem avaliações de efetividade e eficácia para intervenções com essa
estratégia. Há que se ressaltar que a educação popular é uma tecnologia
de baixo custo e pode se tornar um grande aliado em futuras intervenções
com o objetivo de prevenir o uso abusivo de substâncias psicoativas.

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272
CAPÍTULO 3.3

Acolhimento para adolescentes em


situação de risco

Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira


Maria Fátima Olivier Sudbrack
Marília Mendes Almeida

Introdução
A proposta do Curso de Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de
Escolas Públicas – oferecido entre 2004 e 2014 pelo Programa de Estudos e
Atenção às Dependências Químicas da Universidade de Brasília
(Prodequi/UnB), em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre
Drogas do Ministério da Justiça (Senad/MJ) e a Secretaria de Educação
Básica do Ministério da Educação (SEB/MEC), destacou a importância
de o educador conhecer fatores de risco e de proteção presentes na vida de
seus alunos. O que fazer quando se percebe que o aluno está vivendo uma
situação de risco? O que fazer quando um aluno procura o educador para
contar uma situação pessoal? Para ajudar o educador a lidar com
situações específicas como essas construímos um instrumento de avaliação
de redes, de aplicação individual, que possibilita ao educador visualizar
como os adolescentes estão estruturando suas relações, assim como as
funções que estas relações ocupam em sua vida. Além disso, permite o
aquecimento, a vinculação com o entrevistador e a expressão espontânea
dos adolescentes na construção das informações, tornando-se evidente a
sensibilização provocada pela sua utilização.

273
Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira et al

A partir da metodologia de avaliação de redes sociais, que aponta


para a mobilização dos potenciais e minimização dos riscos, foram
desenvolvidos instrumentos adaptados a diferentes contextos de
intervenção (jurídico, escolar e comunitário). O presente instrumento foi
um desses, desenvolvido como parte da tese de doutorado realizada no
Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Instituto
de Psicologia da Universidade de Brasília, defendida pela primeira autora,
sob orientação da segunda. A terceira autora contribuiu na redação do seu
manual de aplicação e exploração.
Sendo a prevenção na área de drogas caracterizada por ações de
promoção da saúde integral do adolescente, destacamos a importância de
posturas sempre inclusivas face ao adolescente, em especial àqueles em
condição de maior vulnerabilidade social. Dessa forma, o nosso intuito foi
desenvolver uma metodologia para ações preventivas com o adolescente a
partir do modelo de educação para a saúde, sendo este o novo paradigma
de prevenção do uso de drogas apontado pela Política Nacional sobre
Drogas (Senad).

Metodologia de mapeamento das redes sociais


Trazemos como uma das estratégias protetivas e de inclusão, o
acolhimento do adolescente em situação de risco – no contexto da
escola. “Acolher” significa evitar ao máximo seu afastamento do meio
escolar, o que constitui grave fator de risco para seu envolvimento com
drogas. Por isso, ações de acolhimento exigem uma competência do
educador, em especial no resgate dos vínculos positivos do adolescente
com sua escola.
Assim, o objetivo dessa atividade é a abordagem individual de
adolescentes em contexto de risco para o envolvimento com drogas. É
uma estratégia de ação especificamente importante para as escolas que
estão inseridas em um contexto social e comunitário de risco. Nesses casos,
há maior probabilidade de existirem alunos que já estejam em uma

274
Acolhimento para adolescentes em situação de risco

situação de envolvimento com drogas. É o caso de comunidades com fácil


acesso ao crack, por exemplo.
O mapeamento das redes sociais permite-nos compreender os níveis
gradativos de intimidade do sujeito com os elementos da rede, presentes
nos diversos contextos de pertencimento (família, amizades, relações
escolares ou de trabalho, relações comunitárias, de serviço ou de credo).
Permite ainda a avaliação das características estruturais, das funções
específicas e dos atributos dos vínculos presentes na rede e situa o
observador e o informante em um nível de análise relacional, que também
adquire um caráter terapêutico.
Esse mapeamento, portanto, mobiliza os sujeitos. Em primeiro lugar,
a exploração da rede social pessoal, por meio da aplicação do mapa, torna
essa rede “visível” tanto para quem o está aplicando quanto para quem o
está fazendo, pois o ato de nomear a rede, de falar sobre ela, é uma forma
de ter contato com ela; em segundo lugar, o traçado do mapa das redes
permite ao sujeito decidir quais delas devem ser ativadas, desativadas ou
modificadas; em terceiro lugar, a partir da exploração do mapa podem
surgir atividades recomendadas às pessoas para ativarem, mobilizarem,
desativarem e recortarem suas redes, de acordo com o que estão vivendo;
e, finalmente, o mapa formaliza o impacto da rede social sobre o sujeito
em contato com ele.

Alguns conceitos que fundamentam a metodologia


A rede social pode ser considerada uma metáfora que permite falar
das relações sociais, pensar e repensar novas formas de convivência,
vinculações, conexões e relações com os contextos. A utilização da prática
de redes sociais ganha força e evidência em trabalhos na área de saúde
mental e terapia familiar e tem como referência a abordagem sistêmica e o
modelo de psicologia comunitária. Seja em contexto de saúde, clínico ou
comunitário, a inclusão da rede de apoio social torna-se de fundamental
importância para a prática e pesquisa.

275
Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira et al

Três níveis de análise da rede social pessoal são estabelecidos: as


características estruturais da rede, que são as propriedades em seu
conjunto (tamanho, densidade, composição ou distribuição, dispersão,
homogeneidade ou heterogeneidade e atributos do vínculo); as funções
presentes na rede, que são os tipos predominantes de trocas que se
estabelecem entre o informante e os elementos da rede, ou seja,
companhia social, apoio emocional, guia cognitivo e de conselhos, ajuda
material e de serviços, acesso a novos contatos, entre outros; e os
atributos do vínculo presentes na rede social, que são as formas como
cada vínculo se comporta dentro da rede, como: função predominante,
multidimensionalidade, reciprocidade, intensidade, frequência e história
da relação.

Manual da aplicação da entrevista de acolhimento


A entrevista tem o objetivo de mapear a rede social do adolescente e
levantar fatores de risco e proteção relativos ao uso de drogas. Com base
nesse levantamento, o educador poderá refletir, com o adolescente, sobre
estratégias de prevenção que possam diminuir os fatores de risco e
fortalecer os de proteção.
Da entrevista surgem aspectos da vida do adolescente que podem
precisar de um pouco mais de atenção, mas não tem como objetivo
diagnosticar. Além disso, é importante que o educador não veja as
respostas da entrevista de forma preconceituosa. Deve procurar olhar o
adolescente sem rótulos tais como: “adolescente problema”, “drogado”,
“marginal”, “doente”. Se o educador utilizar a entrevista para colocar o
adolescente em categorias como essas, o adolescente será prejudicado e a
entrevista terá sua finalidade deslocada para um olhar preconceituoso do
educador.
Consideramos que deve ser utilizada em casos mais específicos, em
que o educador percebe que o adolescente está em uma situação de risco e
queira entender melhor quais são esses riscos. Portanto, não é uma
entrevista para ser aplicada em todos os alunos de uma escola e sim, de

276
Acolhimento para adolescentes em situação de risco

forma individual, em local reservado (a fim de preservar a privacidade) e


com o livre consentimento tanto do adolescente como de sua família.
O primeiro passo para iniciar a entrevista é encaminhar o convite aos
pais do aluno em quem se pretende aplicar a entrevista. Depois da
aceitação dos pais, é a hora de convidar o adolescente. Deve-se explicar a
ele que a escola e o educador querem conhecê-lo melhor, querem
entender como está a sua vida para ver em que podem ajudá-lo.
A entrevista é composta de duas partes: o mapeamento da rede social
e o mapeamento das funções da rede. Elas podem ser realizadas em
momentos diferentes, sendo que o período entre uma aplicação e outra
não deve exceder uma semana. O adolescente deve preencher o mapa
sozinho, a não ser que solicite auxílio ou que esteja de alguma forma
impedido de preenchê-lo. Segue então, a entrevista:

Primeira parte da entrevista: O mapa das redes sociais


Para conhecer como o adolescente percebe sua rede social pessoal, o
educador solicita que preencha o mapa com desenhos que representem
todas as pessoas que perceba como significativas em sua vida naquele
momento. Propõe-se que o adolescente mostre, por meio do mapa, com
quem se relaciona e como estão suas relações na família, no trabalho, na
escola, entre pares, no namoro e na comunidade.
Neste momento, então, é importante entregar o mapa ao adolescente
lendo o convite que se segue:
Um dos pontos que consideramos mais importantes na vida dos
jovens são suas relações na família, com os amigos, na escola, no
trabalho e também na comunidade de uma forma mais ampla. Por
isso, a primeira parte desta nossa conversa trata desse assunto e vamos
iniciá-la convidando você para fazer um mapa da sua rede de
relações. Podemos iniciar?

277
Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira et al

Mapa das redes sociais


O mapa é composto por quatro quadrantes (família,
amizades/namoro, escola/trabalho e comunidade) e três círculos
concêntricos, determinando a proximidade e o distanciamento com
os membros da rede, isto é, o grau de intimidade, a frequência e o
compromisso das relações.

Após a entrega do mapa, o educador prossegue então com a


consigna:
Quais são as pessoas mais importantes para você atualmente e que
você pode dizer que fazem parte da sua vida afetiva? Use esse
desenho para fazer um mapa que vai ajudá-lo a explicar sobre como
estão seus relacionamentos nos diferentes aspectos da sua vida, hoje.

278
Acolhimento para adolescentes em situação de risco

Depois vamos conversar sobre o mapa e você poderá explicar melhor,


combinado?
Assim, o adolescente vai representar todas as relações que ele tem,
colocando-as no mapa da seguinte forma: o adolescente está
localizado no centro do mapa. O mapa possui quatro quadrantes
representados pela família, amizades (namoro), escola/trabalho e
comunidade. Ele, então, deve colocar em cada quadrante as pessoas que
considera daquele contexto em sua vida. Caso o adolescente tenha
dúvidas sobre o que é comunidade, o educador diz a ele: "Comunidade
são as pessoas ou lugares como vizinhos, igreja, clube, quadra de esportes,
posto de saúde, posto policial, associação de moradores e outros lugares
que você frequenta."
Deve representar as mulheres por um círculo e os homens por
um quadrado. Não deve colocar nomes ou identificar pessoas, apenas
representá-las por círculos ou quadrados. O primeiro círculo é para
colocar as pessoas que são das relações mais íntimas, mais próximas,
confiáveis, de quem se gosta mais. O segundo círculo é para colocar as
pessoas consideradas importantes, mas não tão próximas. E o terceiro
círculo é o espaço das pessoas consideradas parte das relações, mas que
estão mais distantes naquele momento da sua vida.
Seguem algumas situações para exemplificar as consignas: se o
adolescente tem uma relação próxima com a mãe, ele vai representá-la no
quadrante da família e no círculo mais interno. Se o adolescente tem um
amigo na escola, ele pode ficar na dúvida se o representa no quadrante da
escola ou das amizades. É importante investigar então se essa amizade se
expande para outros níveis ou se fica restrita à escola. Se ficar restrita à
escola, o adolescente deve representá-lo no quadrante escola. Caso a
amizade vá para além da escola, ele deve representar o amigo no
quadrante das amizades. Suponha, ainda, que o adolescente tenha uma
relação de amizade com um colega da escola, mas que essa relação está
afastada, ele o colocará no quadrante da escola, mas no terceiro círculo.

279
Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira et al

Exploração do mapa das redes sociais


Após o preenchimento do mapa, o educador inicia as perguntas:
Sobre as características gerais da rede:
1. O que você achou de como ficou o mapa? Você acha que ficou
bem assim? É isso mesmo? Gostaria ainda de fazer alguma
mudança? Qual? Por que?
2. Olhando para o mapa, você acha que ele o ajuda a mostrar como
estão seus relacionamentos neste momento da sua vida?
3. O que você percebe quanto à quantidade de pessoas que você
colocou no mapa? Sempre foi assim? Aumentou ou diminuiu?
Desde quando?
4. Agora me diga: dessas pessoas que você representou no mapa,
quais se relacionam entre si? Vamos fazer um traço ligando essas
pessoas. Lembre-se de relacionar as diferentes áreas da sua vida:
família, escola/trabalho, amizades/namoro e comunidade.
5. E quanto ao lugar em que você colocou as pessoas acima? Existem
uma ou mais pessoas que você acha que estão se afastando de você
ou que você gostaria que se afastassem? Vamos fazer uma seta para
o lado externo nessas pessoas.
6. Das pessoas que você representou acima, existe uma ou mais
pessoas que você acha que estão se aproximando de você ou que
você gostaria que se aproximassem? Vamos fazer uma seta para o
lado interno nessas pessoas.
7. O que precisaria acontecer entre você e essas pessoas (marcadas
pelas setas) para que continuassem hoje no lugar que ocupam no
seu mapa ou para que, se for do seu desejo, ocupassem esse outro
lugar na sua vida?
8. Há algum lugar no seu mapa onde existem situações de risco para
você, como: uso de drogas, venda de drogas, brigas, situação de
violência? Represente com um triângulo onde existem
situações de risco no seu mapa.

280
Acolhimento para adolescentes em situação de risco

Sobre as pessoas que compõem a rede:


Agora, gostaria que você me falasse um pouco sobre essas pessoas que
você representou no mapa: onde moram, como as conheceu, onde se
encontram, com que frequência se encontram, que idade elas têm, se
elas têm a mesma condição financeira que você, o que elas fazem, o
que você acha que há de parecido entre elas, o que acha que há de
diferente, como é seu relacionamento com elas. Além disso, gostaria
também que me falasse sobre as situações de risco que representou no
mapa através do triângulo: que situações são estas?
Você não precisa apresentar todas as pessoas e situações, se não
quiser. Assim, você pode falar apenas de quem você se sentir à
vontade, ou seja, das pessoas que são mais importantes pra você neste
momento. Você pode dizer somente o que quiser sobre elas, da forma
como achar melhor. E à medida que você for apresentando as pessoas
e situações que desenhou no mapa, vá ao lado do círculo, do
quadrado ou do triângulo que as representa e coloque um número.
Em seguida, faça uma legenda ao lado do mapa, identificando essas
pessoas.
Quanto ao pertencimento:
A seguir, seguem sugestões de perguntas sobre os segmentos da rede.
O educador pode fazer apenas as perguntas que achar mais interessantes e
pode optar sobre quais segmentos da rede irá fazê-las. É importante que o
educador faça somente as perguntas que achar necessárias e se entender
que o adolescente está disposto para respondê-las. Caso contrário, a
entrevista pode ficar muito longa e cansativa. Segue a consigna:
Agora que você me falou sobre algumas pessoas que compõem sua
rede, que tal falarmos sobre sua visão sobre elas? Cada um destes
quadrantes que compõe o seu mapa é visto de forma diferente por
cada pessoa, pois o que significa a família, a escola, os amigos e a
comunidade vai depender do tipo de relacionamento que se
estabelece em cada um destes contextos, bem como da cultura e da
educação que cada um vai adquirindo ao longo da vida. Assim, o que

281
Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira et al

é família para você, por exemplo, pode não ser o mesmo para outra
pessoa. E já que estamos na escola, gostaria, então, de iniciar nossa
conversa por ela. Pode ser?
Escola/Trabalho
1. O que é a escola pra você? Para que serve?
2. O que fez você vir para esta escola?
3. Como tem sido sua vida escolar?
4. Você já mudou muito de escola? Por que? Quais as consequências
disso para você?
5. Você se sente parte desta escola? A escola faz parte da sua vida? De
que forma?
6. Como é sua relação com as pessoas desta escola? Você considera
que há alguém para apoiar você quando está na pior? Você tem
alguém para pedir conselhos quando está na dúvida de como agir?
7. A escola é um bom lugar para se fazer amigos? Que tipo de
amizade você encontrou nesta escola?
8. De que forma o adolescente é visto pela escola? O que poderia
mudar?
9. Você se sente protegido ou em risco na escola? O que pode ser
feito?
10. Quais são os pontos positivos da escola? E os negativos?
11. O que você espera dos professores, direção, funcionários e
colegas?
12. O que é o trabalho para você? Para que serve?
13. Você já trabalhou? Qual foi sua experiência?
14. O que pensa em exercer no futuro como trabalho?
15. Qual a relação entre seus estudos e o trabalho que deseja?

282
Acolhimento para adolescentes em situação de risco

Família
16. Com relação à família, você se sente parte de uma família? Sente
que tem uma família? Se sim, quem você considera da família? Por
que?
17. Eles consideram você parte da família?
18. Como é seu relacionamento com sua família?
19. Você gostaria que mudasse alguma coisa na sua relação com eles?
20. O que a sua família espera de você?
21. O que você espera da sua família?
Amigos
22. Agora, com relação aos amigos, o que significa um grupo de
amigos para você?
23. Você tem um grupo de amigos?
24. Como eles são? O que vocês costumam fazer juntos?
25. Como você se aproximou desse grupo? O que teve que fazer para
isso?
26. Como é a sua relação com eles? Do que você mais gosta neles? E
do que você não gosta?
27. Você gostaria que mudasse alguma coisa na sua relação com eles?
Comunidade
28. De que localidade você vem?
29. Onde você mora e onde reside sua família?
30. Você sente que faz parte de uma comunidade? Qual? Como?
31. Você mudaria alguma coisa na sua comunidade? O quê?
32. A escola faz parte da sua comunidade? De que forma?
33. Você frequenta alguma instituição na sua comunidade (como uma
igreja, por exemplo)?

283
Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira et al

Projeto de vida
34. Como você se vê no futuro em relação à sua família, às amizades,
à escola, ao trabalho, na sociedade?

Segunda parte da entrevista: o mapa das funções da rede social


Para a segunda parte da entrevista, o educador entrega ao
adolescente o mapa das funções da rede e inicia a conversa da seguinte
forma:
Na primeira parte da entrevista, você me apresentou às pessoas que
fazem parte da sua rede social e conversamos um pouco sobre como é
seu relacionamento com elas. Mas sabemos também que cada
relacionamento é construído de acordo com a (ou as) função (ou
funções) que um desempenha na vida do outro. Por exemplo: você
pode se lembrar de um determinado amigo quando você está com
problemas e precisa desabafar; e se lembrar de outro amigo quando
apenas quer companhia para se divertir, para ir às baladas. O
primeiro deles teria, então, a função de ‘apoio emocional’ para você,
pois o ajuda nos momentos difíceis. Já o segundo exerceria a função
de ‘companhia social’, já que você pensa nele sempre que está
sozinho e quer sair para se divertir.
Assim, nesta segunda etapa da entrevista, gostaríamos que você
retomasse o mapa das suas redes (que você preencheu anteriormente)
e pensasse sobre as funções que aquelas pessoas representadas ali
exercem em sua vida. Essa é outra questão que nos chama a atenção
na vida dos nossos alunos: que tipos de relação os jovens estão
construindo na escola, na comunidade, na família, entre amigos? São
relações afetivas, fortes, duradouras, ou são relações ameaçadoras, de
controle, de risco? O que você acha? Nós convidamos você, então, a
preencher este novo mapa, colocando nele as pessoas que exercem na
sua vida as funções nele apresentadas.

284
Acolhimento para adolescentes em situação de risco

Cada balão do mapa tem uma palavra-chave. O adolescente deve


preencher os balões colocando as pessoas que exercem a função ali escrita.
Por exemplo: no balão em que está escrito ‘segurança e proteção’, o
educador pode dizer: “Quem lhe oferece proteção e segurança?” O
adolescente pode colocar mais de uma pessoa ou instituição no mesmo
balão e pode deixar balões em branco, se existirem funções que não tenha
ninguém cumprindo. O adolescente deve colocar nomes.
O preenchimento do mapa das funções da rede consiste em retomar
as relações identificadas como significativas na vida do adolescente e já
trazidas no primeiro mapa (mapa das redes sociais) e buscar relacioná-las
às funções que desempenham (ou que ele gostaria que desempenhassem).

285
Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira et al

Por exemplo: se o adolescente desenha a namorada no mapa das redes


sociais (primeiro mapa), bem próxima a ele, dizendo que ela era a figura
mais importante de sua vida, ao olhar o mapa das funções da rede, o
adolescente pode colocá-la na função de “afeto/amor”, “diversão/lazer”,
“segurança/proteção” e explicar o motivo de tê-la colocado em cada uma
destas funções.

Exploração do mapa das funções da rede


Ao finalizar o mapeamento das funções, o educador dá continuidade
à entrevista:
Agora que você terminou de preencher este mapa, vamos conversar
um pouco a respeito dele? Apresente-me as funções que identificou
no mapa como importantes e as pessoas ou instituições que as
exercem hoje em sua vida. Fale apenas sobre as pessoas e funções que
quiser e que são importantes para você neste momento. Novamente,
você não precisa apresentar todas as pessoas, se não quiser. Fale
apenas de quem você se sentir à vontade e diga o que quiser sobre a
função que ela exerce na sua vida, da forma que achar melhor.

Se entender que o adolescente está se sentindo à vontade e disposto –


enquanto estiver falando sobre as funções identificadas na rede – o
educador pode pedir a ele que explique o motivo de cada uma dessas
pessoas ou instituições representadas no mapa ocupar a função escolhida.
A seguir há uma breve explicação e sugestões de perguntas sobre cada
uma das funções que constam no mapa, o que pode auxiliar tanto o
educador quanto o adolescente na construção das informações sobre o
assunto.

Sobre a identificação: pessoa que é um exemplo que você gostaria


de seguir. Com quais pessoas da sua vida você se identifica mais? Por
que?

286
Acolhimento para adolescentes em situação de risco

Sobre afeto/amor: pessoa de quem você recebe afeto; ambiente


onde recebe amor, carinho. Quais são as pessoas que você mais gosta?
Quais são as pessoas que você se sente bem em estar perto, em se
relacionar, que fazem você se sentir feliz?
Amizade/confiança: pessoa ou lugar em que você tenha amizade
e relação de confiança. Quem você considera seu amigo de verdade?
Em quem você realmente confia? O que já aconteceu entre vocês que
faz você considerá-lo um amigo?
Ajuda financeira: pessoa ou um lugar que lhe oferece ajuda
financeira. Quem o sustenta? Quem lhe dá dinheiro quando você
precisa ou paga as coisas pra você?
Justiça: pessoa ou lugar que representa justiça na sua vida. Quem
representa justiça na sua vida? Você já procurou ajuda de policiais ou
da própria justiça no exercício desta função? Por quê?
Segurança/proteção: pessoa ou lugar que te oferece segurança e
proteção. Existem pessoas em sua vida que lhe dão segurança?
Pessoas que fazem você se sentir protegido de alguma forma? Quem
são? Como elas protegem você?
Perigo/risco: pessoa ou lugar que representa perigo e risco na sua
vida. Existem pessoas com quem você se relaciona que o levam a
situações perigosas? Que o colocam em situações de risco? Como?
Autoridade: pessoa ou lugar que estabelece limites e regras para
você. Existem pessoas em sua vida que lhe cobram responsabilidades?
Que lhe dizem o que você pode ou não fazer? Que estipulam regras e
lhe dão limites? Quem são? Como são estabelecidos estes limites? O
que você pensa sobre isso?
Saúde: pessoa ou lugar que lhe oferece suporte nas questões relativas
à saúde. Quem cuida de você? Você já procurou ajuda profissional
alguma vez? Serviço de saúde, médico, psicólogo?
Experiências sexuais/namoro: pessoa com quem você tem
relação sexual ou de namoro. Quando você pensa em um

287
Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira et al

relacionamento amoroso, de quem você se lembra? Você já gostou ou


gosta de alguém? Já sofreu por amor? Já viveu um grande amor? E
quanto às curtições do momento? Apenas “ficar”? Como acontecem
estas situações na sua vida? Como são estas experiências para você?
Em quem você pensa quando fala sobre “experiências sexuais” ou
“namoro”?
Novas relações: pessoa ou lugar que te apresenta para novas
pessoas, que lhe oferece a oportunidade de fazer novas amizades, ter
novas relações. Existem pessoas na sua rede que o levam a conhecer
outras pessoas e fazer novas amizades? Quem são? Que tipo de
pessoas elas o levam a conhecer?
Diversão e lazer: pessoa ou lugar que representa diversão e lazer
na sua vida. Quem costuma estar com você nos momentos de lazer?
Quando você quer se divertir, quem você convida para estar com
você? Que tipo de diversão vocês gostam de ter juntos?
Controle e poder: pessoa ou lugar que representa controle e poder
sobre você. Nas suas relações, você se sente controlado de alguma
forma? Por quem? Existe alguém que o obriga a fazer coisas, a ter
determinadas atitudes? Existem pessoas que exercem poder sobre
você? Em que sentido?
Medo/ameaça: pessoa ou lugar que representa medo e
ameaça para você. Existem pessoas nos seus relacionamentos que
fazem você sentir medo? Quem? Medo de quê? Você se sente
ameaçado por alguém? Quem? De que forma?
Aventura/transgressão: pessoa ou lugar que representa aventura
e quebra de regras na sua vida. Você já participou ou participa de
situações de aventura? Vive situações que de transgressão às regras?
Gosta de situações que o colocam em perigo ou risco, mas que o
fazem sentir “adrenalina”? Que situações são essas? Com quem você
costuma viver essas aventuras?
Decisões/conselhos: pessoas ou instituições que lhe oferecem
ajuda quando você tem que tomar uma decisão. Alguém que lhe

288
Acolhimento para adolescentes em situação de risco

oferece conselhos. Quando você tem que decidir alguma coisa, você
pede conselho para alguém? Quem?
Acesso às drogas: pessoa ou lugar que lhe possibilita o
envolvimento com drogas. Você conhece alguém envolvido com
drogas? Que já usou ou usa? Que vende drogas? Você já usou drogas
com estas pessoas? Já os ajudou a vendê-las? Em relação à bebida
alcoólica, você sai com pessoas que bebem? Você se encontra com
elas para beber também? Em que ocasiões? Que pessoas são essas?
Competição/gangue: pessoa com quem você estabelece uma
relação de competição, de disputa. Existem situações de competição
em sua vida? Pessoas que competem com você por algum motivo?
Você compete com alguém? Em relação a quê? Quem são as pessoas
que travam disputas com você? Como essas situações acontecem?
Apoio/ajuda: pessoa ou lugar com que você conta quando precisa
de apoio e ajuda. Você tem alguém para procurar quando está na
pior? Alguém para desabafar? Falar sobre seus sentimentos, suas
aflições? Alguém para pedir ajuda quando precisa? Quem? É a
mesma pessoa com quem você compartilha alegrias e conquistas?

Após a entrevista
Como vimos, essa entrevista permite ao educador compreender como
o adolescente está construindo suas relações nos diferentes espaços de
socialização pelos quais circula, assim como quem exerce e como estão
sendo exercidas as funções (papéis) sociais de proteção e risco (afetivas,
educativas, impositivas) na vida do adolescente.
Por isso, é muito importante que o educador marque com o
adolescente um horário para dar a devolutiva da entrevista. A devolutiva
não deve passar de uma semana da entrevista. O educador e o adolescente
devem conversar sobre os pontos levantados, a fim de confirmar ou afastar
as suspeitas. O objetivo principal da devolutiva é pensar com o
adolescente algumas estratégias para diminuir os fatores de risco e

289
Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira et al

fortalecer os de proteção levantados na entrevista e confirmados na


devolutiva.

Referência
Pereira, S.E.F.N. Redes sociais de adolescentes em contexto de vulnerabilidade social e
sua relação com os riscos de envolvimento com o tráfico de drogas. Tese de
Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura. Instituto de Psicologia.
Brasília: Universidade de Brasília, 2009, orientada pela Professora
Dra. Maria Fátima Olivier Sudbrack.

290
PARTE 4:

DROGAS E POPULAÇÕES EM CONDIÇÃO


DE VULNERABILIDADES:

O PARADIGMA DA DIVERSIDADE
CAPÍTULO 4.1

Desafios da pesquisa epidemiológica


com populações de difícil acesso/ocultas

Lidiane Toledo
Carolina Coutinho
Francisco Inácio Bastos

O consumo de diferentes substâncias (lícitas, ilícitas e, de forma


bastante mais complexa, substâncias que por suas características
intrínsecas e/ou da dissociação entre suas aplicações básicas e derivadas –
se situam na interface entre os usos lícitos e ilícitos, como é o caso da
imensa maioria das substâncias enfeixadas sob a rubrica “solventes”)
perpassa todas as sociedades humanas, ao longo da história, ainda que
com ampla variação das substâncias consumidas, suas apresentações,
assim como dos hábitos, atitudes e valores a elas associados (Escohotado,
2016).
Pessoas que usam substâncias psicoativas (doravante denominadas
“substâncias”, em prol da concisão) regularmente e de forma
problemática, tendem a ter mais chance de apresentar problemas graves
de saúde e, eventualmente, de morrer precocemente. Segundo o último
relatório mundial sobre drogas do United Nations Office on Drugs and Crime
(UNODC, 2016b), cerca de 200 mil pessoas perdem a vida a cada ano no
mundo, devido a problemas relacionados a essas substâncias.
Ademais, o uso regular e problemático de substâncias constitui um
importante fator de risco para a transmissão de doenças infecciosas, tais
como o HIV e as Hepatites B e C, particularmente, em função da

293
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

possibilidade do compartilhamento de apetrechos para uso injetável,


fumado e/ou inalado e da troca de sexo por drogas, além da baixa adesão
ao uso de preservativos (Fiocruz, 2014; UNODC, 2016a).
No Brasil, a proporção de casos notificados de Aids pela categoria de
exposição “uso de drogas injetável” vem diminuindo, progressivamente,
nos últimos anos. Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da
Saúde, em 2015 essa categoria correspondia a 2,2% dos novos casos entre
homens e 1,3% dos novos casos entre mulheres; já a macrocategoria de
transmissão sexual (ou seja, sexo desprotegido entre parceiros hetero ou
homoafetivos) correspondeu a 95,3% dos novos casos registrados entre
homens e 97,1% dos novos casos entre mulheres (Brasil, 2016).
Além disso, dados recentes da Pesquisa Nacional sobre Uso de Crack
(PNC), que entrevistou usuários regulares de crack/similares numa amostra
probabilística de cenas abertas de uso de todo o país, evidenciou
prevalências em torno de 4,97% (IC95%:3,75-6,56) para HIV e 2,63%
(IC95%:1,69-4,07) para HCV (vírus da hepatite C) nessa população,
ambas muito mais elevadas do que a prevalência estimada para população
geral do Brasil (Fiocruz, 2014), embora nem de longe tão elevadas como
as taxas de infecção entre usuários de drogas injetáveis, nos mais diversos
contextos, inclusive o Brasil, décadas atrás (ver revisão e meta-análise
sobre taxas de incidência entre pessoas que injetam substâncias, em
Tavitian-Exley, Vickerman, Bastos, & Boily, 2015).
Na trigésima sessão especial da Assembleia Geral das Nações Unidas
sobre drogas e temas correlatos (UNODC, 2016a), do qual o Brasil
participou como pais membro, foi repactuado o compromisso com o
cumprimento das metas de desenvolvimento sustentável até o ano de
2030, o que no que diz respeito à temática de uso prejudicial/dependente
de substâncias inclui, principalmente, o fortalecimento de ações de
prevenção e de tratamento do uso/abuso de substâncias, contribuindo
desta forma para o controle e talvez mesmo a erradicação, em alguns
contextos, das epidemias de Aids e redução dos casos de tuberculose e de
novas infecções pelos vírus das hepatites B e C.

294
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

Desta forma, há a necessidade premente de se estabelecer um


compromisso político e sanitário amplo em torno da agenda global nas
áreas de vigilância, monitoramento e busca de indicadores
epidemiológicos – o mais consensuais possíveis – que permitam identificar
as prioridades, populações-alvo e programas baseados em evidências no
campo da prevenção e tratamento do uso prejudicial/dependente de
substâncias. Para tanto, se faz necessário compreender melhor os
determinantes sociais e os fatores de risco envolvidos, além dos padrões e
modos de uso/abuso dessas substâncias (WHO, 2016).
Bertoni e Bastos (2014) destacam:
Uma etapa essencial à formulação, monitoramento e avaliação destas
ações é ser capaz de proceder ao correto dimensionamento da
magnitude e das características desta população, ou seja, saber para
quem e para quantos essas políticas devem ser formuladas e
implementadas. (p. 133).

A pesquisa epidemiológica no campo de drogas tem um importante


papel de informar os gestores públicos e a sociedade de forma geral,
subsidiar a definição clara de indicadores essenciais, o que requer
estimativas de tamanho das populações-alvo, taxas de diferentes infecções
(idealmente, prevalência e incidência), padrões de uso, comportamentos
de risco para doenças transmissíveis, utilização de serviços básicos de
saúde e assistência social, dentre muitos outros. Conhecer o tamanho
dessas populações, por exemplo, se faz necessário para otimizar a alocação
dos recursos financeiros e humanos, possibilitando também a avaliação do
alcance e da cobertura dos serviços de saúde e sociais já existentes e dos
que ainda precisam ser ofertados (Wesson, Reingold, & McFarland, 2017).
Porém, a pesquisa epidemiológica na área de drogas apresenta
inúmeros desafios aos pesquisadores e talvez o principal deles seja como
acessar e entrevistar um indivíduo que compõe uma população
considerada bastante móvel (Horyniak et al., 2016), que está associada a
comportamentos estigmatizados e marginalizados, e por vezes ainda

295
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

inserida em contextos de extrema vulnerabilidade, violência e


criminalização (Wesson, Reingold et al., 2017). Esse conjunto de
características que muitas das vezes dizem respeito à população de
usuários de drogas, define-a como população difícil acesso/oculta.
Neste sentido, trataremos neste capítulo de questões metodológicas,
éticas e operacionais da pesquisa epidemiológica sobre uso de drogas, com
o intuito de sumarizar os principais desafios do trabalho de pesquisa com
esta população.

População de difícil acesso ou ocultas: conceitos


Os termos “população de difícil acesso” (do inglês hard-to-reach
populations) e “população oculta” (do inglês hidden populations), costumam ser
empregados de forma intercambiável e sem uma definição bem delimitada
e específica. Para alguns autores, populações de difícil acesso seriam
aquelas que devido à sua localização geográfica apresentam maiores
dificuldades de serem alcançadas, como pessoas que moram em locais
isolados e distantes da área urbana, como populações que vivem em locais
escarpados/montanhas, desertos, tribos indígenas; populações de alta
mobilidade geográfica, como refugiados de guerra e vítimas de desastres
naturais; populações que compartilham comportamentos/características
que levam à sua estigmatização, discriminação e criminalização, como
homens que fazem sexo com homens e usuários de droga (Shaghaghi,
Bhopal, & Sheikh, 2011; Sydor, 2013), o que não exclui a inserção
conjunta em mais de uma dessas circunstâncias/características. Já a
conceito de população oculta, segundo Sydor (2013), se aplica quando não
é possível saber, a priori, o tamanho da população sob estudo. Neste
sentido, uma vez que o pesquisador tenha dificuldade de acessar aquela
população, muito provavelmente não terá, a priori, conhecimento do seu
tamanho/magnitude. Desta forma, os conceitos são usualmente utilizados
como equivalentes na literatura.
Vasconcellos e Silva (2012) definem o conceito de população de difícil
acesso como:

296
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

Na terminologia de amostragem, uma população é considerada de


difícil acesso se tiver pelo menos um dos atributos seguintes: ser rara
(pouco frequente, geograficamente concentrada ou espalhada), ser
oculta (por comportamentos ilegais ou especiais) ou flutuante
(alteração de sua associação a pontos do espaço geográfico). Todas
têm em comum o fato de não existir um cadastro completo das suas
unidades constituintes. (p. 33).

Conforme formulado por Vasconcellos e Silva (2012), uma


dificuldade adicional no estudo das populações de difícil acesso/ocultas
diz respeito ao tamanho e/ou dispersão desses subgrupos, geralmente, de
pequena magnitude em termos populacionais (frente à população geral), e
muitas vezes dispersos por diferentes contextos e localidades. Sendo a
proporção deste subgrupo na população geral muito pequena,
metodologias clássicas de amostragem probabilística não são capazes de
captar um número suficiente de membros desta subpopulação de modo
que seja possível realizar inferência estatística (Spreen, 1992).
O National Institute on Drug Abuse (Nida, 1990) aponta que muitas vezes
essas populações de difícil acesso/ocultas são omitidas das pesquisas
representativas da população geral, como os inquéritos domiciliares
clássicos ou as pesquisas com populações ditas “cativas”, como escolares,
porque além das questões supracitadas, referente ao pequeno tamanho
populacional desses subgrupos, e sua eventual dispersão geográfica,
grande parte deles não possui endereço fixo ou raramente estão em casa,
não sendo captados, por exemplo, por inquéritos domiciliares clássicos
e/ou não tem inserção regular em instituições como escolas, serviços de
saúde etc.
Apesar da extrema importância das pesquisas com desenho de
amostra probabilística, a capacidade de um inquérito populacional
clássico acessar as populações de difícil acesso/ocultas é limitada (Caiaffa
& Bastos, 1998). Isto porque é extremamente complexo, se não impossível,
estabelecer um marco amostral de referência (sampling frame), que seja de

297
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

fato enumerável dessas populações (Magnani, Sabin, Saidel, &


Heckathorn, 2005; Semaan, Lauby, & Liebman, 2002; Spreen, 1992;
Sydor, 2013).
Considerando ainda que, na maioria das vezes, as entrevistas são
realizadas nos domicílios/ambiente escolar e universitário, os
entrevistados podem se sentir inibidos em relação a questões passíveis de
críticas ou sanções, podendo levar a uma omissão das informações,
comprometendo a qualidade e veracidade das informações. Para Magnani
et al. (2005), inquéritos domiciliares, por exemplo, são, na maioria das
vezes, inviáveis ou pouco práticos nas pesquisas realizadas com população
de difícil acesso/ocultas, embora sigam sendo essenciais na compreensão
do quadro mais abrangente da população geral.
Via de regra, em função da natureza marcadamente pessoal,
frequentemente objeto de estigma e, em diversos contextos e sociedades,
sanções, que vão de punições brandas (como multas e advertências) até um
leque de sanções penais, que incluem uma miríade de ações repressivas,
desde internações compulsórias até a detenção e o encarceramento, lida-se
aqui com uma epidemiologia sui generis, bastante afastada dos estudos
ancorados em amostragens clássicas e utilização de questionários padrão
que lidem com questões menos sensíveis.
Nas últimas décadas, observa-se uma explosão de métodos e
procedimentos de análise, que parecem fruto da necessidade crescente de
lidar com populações de difícil acesso/ocultas em nível da saúde pública
global (populações sem teto e outros segmentos em situação de rua;
pessoas deslocadas no âmbito de um dado país em função de situações
epidêmicas, desastres naturais, violência etc.; migrações em massa; guerras
civis, entre outros fenômenos), além dos rápidos progressos no âmbito da
modelagem matemática, estatística e das ciências da computação
(Loscalzo et al., 2017; Salganik, 2017). A seguir apresentaremos
brevemente alguns destes métodos, com o propósito de iniciar o debate
acerca desta temática, entre leitores interessados.

298
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

Alguns métodos de estimação e/ou amostragem de populações


de difícil acesso/ocultas
Qualquer população de difícil acesso, e especialmente aquelas que
são objeto de estigma e preconceito profundamente enraizados, é definida
tecnicamente como população não-contável ou não-enumerável. Um
termo que talvez soe sofisticado esconde uma constatação incrivelmente
simples: as populações de difícil acesso NÃO podem ser contadas por
quaisquer métodos.
A tarefa seria impossível, seja porque essas populações são de difícil
acesso/ocultas, seja porque se recusam a reconhecer que são usuários de
determinadas substâncias (especialmente ilícitas), por exemplo, no
contexto cotidiano de seus domicílios (caso tenham domicílio,
obviamente), ou não possam ser localizados nos centros de saúde, nas
escolas ou nos seus locais de moradia. Desta forma, essas populações não
podem ser contadas, embora possam (e devam) ser estimadas. Para fins
deste capítulo, estimativas podem ser definidas como o palpite (ou
inferência possível, uma vez que não referendada por nenhuma estratégia
que permita esquadrinhar de forma exaustiva o universo de referência)
mais bem informado que se pode extrair de uma realidade que não pode
ser plenamente revelada ou explorada.
Pesquisas que lidam com usuários de substâncias em seus contextos
ditos “naturais” de uso, apesar de relativamente frequentes, são quase
invariavelmente realizadas utilizando-se métodos de natureza etnográfica,
e não epidemiológica, e, deliberadamente, perdem em abrangência e
generalizibilidade o que ganham em detalhe e observação estendida no
tempo.
Até muito recentemente, os métodos e ferramentas estatísticas e
computacionais para lidar com estas populações eram bastante limitados,
quando não inexistentes, e habitualmente lançava-se mão de métodos
originalmente implementados em outras áreas do conhecimento, como os
estudos ecológicos que lidam com a estratégia de captura-recaptura
(Royle, Chandler, Sollmann, & Gardner, 2013), ou de métodos de

299
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

estimação definidos a partir de dados oriundos de múltiplas fontes de


dados, como a triangulação de informações cadastrais com base em
modelos log-lineares (Frisher et al., 1993).
Uma vez que as populações de usuários de drogas em contexto
estabelecem complexas redes de inter-relacionamento e têm
habitualmente grande mobilidade e estão sujeitas a frequentes mudanças
de hábitos e de formas de interação com a sociedade em que estão
inseridas (Friedman, Curtis, Neaigus, Jose, & Des Jarlais, 1999), a
incorporação de métodos que abordam redes sociais por exemplo, passou
a se mostrar essencial.
Neste sentindo, diferentes métodos de amostragem têm sido
introduzidos para acessar/recrutar populações de difícil acesso/ocultas.
Tais métodos de amostragem se aproximam (ou buscam se aproximar) da
amostragem probabilística, com os quais, idealmente, geram estimativas
bastante convergentes. Nesta seção apresentaremos sumariamente os
métodos de amostragem e de estimação de populações de difícil acesso
recomendados por organismos internacionais e que já foram aplicados por
pesquisadores no contexto brasileiro, a saber: Respondent Driven-Sampling −
RDS (Unaids, 2010; 2013); Time Location Sampling – TLS (recomendado
pelos Centers for Disease Control and Prevention; ver Katz et al., 1998 e Lemp et
al., 1994); Captura e Recaptura (UNODC, 2003) e o Network Scale-up
(Unaids, 2010). Este último, por ser um método indireto, não serve de
estratégia de abordagem da população em si, mas apenas de sua
estimação e caracterização.

Uso do Respondent-Driven Sampling (RDS) e o Time-Location


Sampling (TLS) na pesquisa epidemiológica de drogas
Diante do reconhecimento da importância de obter mais informações
sobre os comportamentos, atitudes e práticas das populações de difícil
acesso/ocultas, e tendo em vista as dificuldades em produzir estimativas
válidas a partir de estudos de base populacional, no início da 1ª década do
século XXI o Brasil realizou a transferência de metodologias alternativas

300
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

de amostragem, especificamente duas, a saber: Respondent-Driven Sampling e


o Time-Location Sampling (Barbosa Júnior, Pascom, Szwarcwald, Kendall, &
McFarland, 2011).
Tais metodologias são consideradas adequadas para estudos com
populações sob maior risco à infecção pelo HIV e foram inicialmente
aplicadas no Brasil a outras populações ditas de difícil acesso/ocultas,
como nos estudos que se valeram dos dois métodos em Fortaleza, Ceará,
com homens que fazem sexo com homens (Kendall et al., 2008).
Respondent Driven-Sampling (RDS)
O RDS é uma variante do método Snowball Sampling (bola-de-neve)
que tem sido amplamente utilizado, por décadas, como um método chave
no monitoramento da epidemia de HIV/Aids e outros agravos em
populações de difíceis de acesso/ocultas em diferentes contextos
(Malekinejad, Johnston, Kendall, Rifkin, & Rutherford, 2008; Strathdee et
al., 2008). Com o RDS, a moldura amostral é construída durante o
próprio processo de amostragem, uma vez que os membros da população
sob estudo recrutam seus pares e os padrões de recrutamento são
documentados e quantificados (Magnani et al., 2005).
Desde sua criação em 1997, por Douglas Heckathorn, o processo de
recrutamento do RDS tem sido aperfeiçoado de maneira a permitir o
cálculo das probabilidades de seleção, podendo assim ser, a princípio,
classificado entre os métodos quase-probabilísticos de amostragem,
superando muitos dos vícios dos outros tipos de amostragem por cadeia de
referência, como o método bola de neve (Semaan et al., 2009).
Na implementação do RDS, primeiramente é realizada uma pesquisa
formativa, com objetivo de coletar informações acerca das redes locais e
dos mais diversos perfis dos membros da população, por exemplo, usuários
de drogas com nível superior de educação versus sem ou com baixa
escolaridade, usuários de drogas domiciliados versus não domiciliados, e
assim por diante. Essas informações são colhidas com serviços
governamentais e não governamentais, com lideranças locais e outros

301
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

informantes chave e instituições com atuação nos contextos sob análise


(Heckathorn, 1997).
Nesta etapa são realizados grupos focais e entrevistas em
profundidade para embasar a escolha dos primeiros participantes do
estudo, as chamadas sementes, seguindo os critérios de diversidade do
perfil e tamanho da rede pessoal informado. Uma vez escolhidas as
sementes, cada uma recebe um número fixo de cupons (em geral inicia-se
com três convites), para que eles sejam distribuídos aos conhecidos da sua
rede social, que compartilhem com a semente alguma característica ou
hábito que defina o processo de recrutamento (por exemplo, ter utilizado
alguma substância ilícita nos 6 meses anteriores à entrevista) (Unaids,
2010, 2013).
O número limitado de cupons minimiza a influência eventualmente
muito heterogênea das sementes na composição final da amostra, podendo
gerar cadeias de recrutamento mais longas, e assim obter maior
diversidade das sub-redes. Com isso, aumenta a probabilidade de
representação de sujeitos mais “escondidos” da população-alvo e busca-se
minimizar o papel de eventuais “super-recrutadores” (Biernacki &
Waldorf, 1981), ou seja, pessoas com amplas redes sociais e contatos
dinâmicos, que tendem a dominar as amostras baseadas em processos de
nominação (Magnani et al., 2005; Malekinejad et al., 2008).
Os participantes que chegam ao local do estudo com um convite, e
que se enquadram nos critérios de inclusão, são considerados elegíveis, e
constituem a primeira “onda” do estudo. Estes por sua vez, recebem novos
cupons, para convidar seus conhecidos do mesmo grupo populacional
para participar do estudo. Assim, a amostra vai crescendo, por ondas
sucessivas. Esse processo se repete, até que o tamanho de amostra
previamente estabelecido seja atingido, a população-alvo se esgote ou que
o tempo/recursos alocados para a pesquisa acabem (Heckathorn, 1997;
Toledo et al., 2011). Obviamente, como discutido em Toledo et al. (2011),
é possível que o processo de recrutamento sucessivo esbarre em
dificuldades ou barreiras, algumas delas intransponíveis, geralmente
denominadas “gargalos”, quando por exemplo membros de uma

302
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

determinada facção criminal se recusam a distribuir cupons para


membros de outras facções, que conhecem, mas com quem mantêm uma
relação de conflito e rivalidade.
O número de cupons a ser distribuído para os participantes é
continuamente monitorado e pode ser aumentado ou reduzido
(“calibrado”), de acordo com a velocidade da chegada dos participantes e
o percentual de perdas, para se obter o tamanho de amostra esperado no
tempo previsto. Um código único é atribuído a cada convite, de modo a
tornar possível a identificação de quem recrutou quem (Heckathorn,
1997; Semaan et al., 2009).
A entrega dos cupons foi uma inovação na amostragem em cadeia,
constituindo uma etapa importante para a calibração da amostra, já que
permite conhecer as relações das díades recrutador-recrutado e a
elaboração da rede de conhecidos entre os participantes (Heckathorn,
1997; Semaan et al., 2009), e sua posterior visualização, por meio de
ferramentas computacionais simples, como o pacote de domínio público
Netdraw® (disponível em:
https://sites.google.com/site/netdrawsoftware/download). A
documentação da relação recrutador-recrutado permite que os possíveis
vícios de recrutamento possam ser identificados, avaliados e
eventualmente corrigidos na análise. As informações referentes à rede
pessoal de cada entrevistado também são colhidas, visando a permitir uma
análise ponderada pelo tamanho das mesmas, evitando a
super-representação daqueles com uma rede pessoal maior (Magnani et
al., 2005; Semaan et al., 2009).
Outro ponto central do RDS é que ele está baseado num sistema de
duplo incentivo: o ressarcimento pelos gastos do entrevistado com
transporte e alimentação no decorrer da sua participação na pesquisa, e o
incentivo secundário, por sujeito recrutado que seja elegível e que tenha
aceitado participar do estudo (Magnani et al., 2005, Semaan et al., 2009).
Os elementos essenciais do RDS são quatro: a obrigatoriedade do
registro das relações de recrutamento (quem recrutou quem), identificadas

303
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

por meio de um sistema de cupons numerados; a limitação do número de


recrutados, usualmente, não mais que três convites por entrevistado; o
registro do tamanho das redes sociais dos entrevistados (em termos do
número de conhecidos do grupo de interesse); e o vínculo de
conhecimento entre os recrutadores e os recrutados, isto é, o pressuposto
de que eles devem ter um relacionamento anterior ao processo de
amostragem (Barbosa Júnior et al., 2010; Magnani et al., 2005).
Alguns estudos têm evidenciado limitações nas análises de dados com
amostras obtidas pelo método RDS. Por exemplo, Baptista, Dourado,
Brignol, Andrade e Bastos (2017) analisaram os dados de um estudo
realizado em 2009, com uma população de poliusuários no município de
Salvador, Bahia, apontando uma limitação quanto à não generalização
dos resultados devido à evidência de dependência entre as observações. Já
o estudo de Toledo et al. (2011), que também trabalhou em 2009 com
uma população de poliusuários, no Município do Rio de Janeiro, mostrou
que houve barreiras estruturais quanto à distribuição geográfica dos
indivíduos recrutados pelo método RDS no município. Toledo el al. (2011)
observaram que a maioria dos recrutados se concentrou na região
centro-norte do município – local onde as sementes referiam residir,
deixando áreas inteiras da cidade sem um único recrutado, ou seja,
violando o pressuposto inicial de Heckathorn de que os segmentos de rede
tenderiam a ser unificar, a partir de um dado número de ondas
(originalmente, seis ondas), definindo o que o autor formulou como sendo
uma única rede abrangente (que denominou originalmente “a single
component”).
Embora o RDS tenha sido criticado por apresentar resultados
enviesados, devido a um recrutamento desproporcional de indivíduos mais
empobrecidos e socialmente desfavorecidos no estudo de McCreesh et al.
(2012), que trabalhou com chefes de família, integrantes de uma coorte
aberta na área rural de Uganda, África, no estudo de De Boni Bertoni,
Bastos e Bastos (2014), que recrutou indivíduos de 12 a 65 anos que
referiram beber em binge bebidas alcoólicas não registradas (ou seja, não
rastreáveis pelos métodos convencionais de rotulagem e registro), no ano

304
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

de 2010, no Munícipio do Rio de Janeiro, o método RSD serviu como


uma ferramenta eficiente no recrutamento, sendo possível abordar em um
curto período de tempo, um número razoável de indivíduos, o que teria
sido impossível com estratégias alternativas.

Time Location Sampling


O Time Location Sampling (TLS) foi desenvolvido pelo escritório central
dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), sediado em
Atlanta, Geórgia, em colaboração com departamentos estaduais e locais
de saúde dos Estados Unidos (como de São Francisco, Califórnia, que se
tornou um protagonista central do desenvolvimento e aplicação deste
método, autores do mais conhecido Manual referente ao método,
disponível em
https://globalhealthsciences.ucsf.edu/sites/globalhealthsciences.ucsf.edu/
files/tls-res-guide-2nd-edition.pdf), para compreender melhor a epidemia
de HIV na população de homens jovens homossexuais, sendo empregado
pela primeira vez na década de 1990, para estimar a prevalência da
infecção pelo HIV e comportamentos de risco nesta população (Lemp et
al., 1994, MacKellar, Valleroy, Karon, Lemp, & Janssen, 1996).
Considerando que muitas populações de difícil acesso/ocultas tendem
a se concentrar em determinados lugares (por exemplo, trabalhadoras do
sexo em casas de massagem, determinadas ruas e boates; homens que
fazem sexo com homens em bares/boates, saunas; usuários de drogas em
cenas abertas de uso), o TLS se inicia com uma fase formativa, realizando
um mapeamento (o mais exaustivo possível, ainda que, como dito antes,
uma enumeração perfeitamente abrangente e exaustiva não seja
exequível) dos locais, dias e horários de concentração da população sob
estudo, em um determinado espaço geográfico (por exemplo, um
município) (Karon & Wejnert., 2012; Magnani et al., 2005; Raymond, Ick,
Grasso, Vaudrey, & McFarland, 2007).
Este mapeamento tem por objetivo fornecer um cadastro base que
servirá como universo amostral do estudo (sampling frame), a partir do qual

305
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

os pesquisadores selecionarão aleatoriamente os locais, dias e horários que


serão visitados para obtenção da amostra efetivamente recrutada. De
posse da lista dos locais, dias e horários que deverão visitar, a equipe de
pesquisa vai a campo para iniciar a coleta de dados.
Ao chegar no local, a equipe estabelece um ponto de referência para
o recrutamento (uma linha imaginária, por exemplo), e toda pessoa que
passar pela primeira vez por este ponto será abordada e contabilizada
para verificação dos critérios de elegibilidade e convite para participação
na pesquisa dentro de um período pré-determinado de tempo de pelo
menos 4 horas (Raymond et al., 2007). Uma vez que a pessoa abordada
aceite participar da pesquisa, será encaminhada para responder ao
questionário.
No Brasil, o TLS (com modificações em relação à sua formulação
original), foi utilizado no maior inquérito epidemiológico sobre uso de
crack e similares em cenas abertas do mundo, a Pesquisa Nacional sobre
Uso de Crack, realizada entre os anos de 2011 e 2012, nas 26 capitais
brasileiras e Distrito Federal, nove regiões metropolitanas (RMs) federais
(Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São
Paulo, Curitiba, e Porto Alegre) e municípios de cinco macrorregiões (que
incluíam municípios de médio e pequeno porte, além da zona rural,
estrato este denominado “Estrato Brasil” (EB) (Fiocruz, 2014).
Em primeiro lugar, as equipes realizaram o mapeamento/cadastro
das cenas abertas de uso nos municípios pré-selecionados, coletando
informações junto a órgãos públicos (como Secretarias de Saúde e
Assistência Social, Polícia, etc.) e Organizações Não-Governamentais
(ONGs) envolvidos com a temática, sobre os locais onde se congregavam
os usuários de crack e/ou similares para uso da substância e a frequência
dos usuários nesses locais, por dia da semana e turno (manhã, tarde e
noite) (Fiocruz, 2014).
Tal cadastro foi utilizado como universo amostral conforme
recomendado. Sendo assim, a amostra foi obtida através de dois ou três
estágios de seleção. Para os estratos das capitais, houve dois estágios: (1)

306
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

combinação de cena-dia-turno; e (2) usuário. Nos demais estratos, a


amostra foi selecionada em três estágios: (1) município (nas RMs) ou
grupos de municípios (no EB); (2) cena-dia-turno; e (3) usuário.
A forma de seleção dos membros da população no último estágio de
seleção (seleção dos usuários) tem gerado controvérsias a respeito de se
tratar ou não de um método probabilístico. Vasconcellos e Silva (2012)
não consideram originalmente o TLS como um método de amostragem
probabilístico, uma vez que as tais linhas imaginárias − que estabelecem o
ponto de abordagem e recrutamento do indivíduo no último estágio de
seleção, não delimitam este último estrato de recrutamento, de forma a
que sua probabilidade seja definível e conhecida.
Porém, mais recentemente, o TLS foi aprimorado de forma a
torná-lo um método que produz amostras probabilísticas (De Boni, Silva,
Bastos, Pechansky, & Vasconcellos, 2012), através do emprego da
amostragem inversa (Haldane, 1945). Em poucas palavras, o método de
amostragem inversa pode ser definido como uma técnica de amostragem
utilizada para verificar quantas unidades amostrais precisam ser
observadas para obter um número pré-fixado de “sucessos”, neste caso,
número de pessoas recrutadas que realizaram entrevistas (Haldane, 1945;
Vasconcellos, Silva, & Szwarcwald, 2005; Vasconcellos & Silva, 2012). Na
Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack, o recrutamento dos usuários para
participação na pesquisa foi realizado por meio de um procedimento de
amostragem inversa.
Assim como no RDS, alguns autores têm registrado limitações do
método que, basicamente, podem ser resumidas em dois pontos: (1) os
locais onde os membros da população sob estudo se concentram podem
mudar com o tempo, havendo perda de alguns dos locais previamente
mapeados, o que pode gerar viés referente ao método de amostragem
empregado; (2) as estimativas geradas pelo TLS são limitadas ao subgrupo
da população que frequenta os locais mapeados, ou seja indivíduos que
não frequentam tais locais, não estarão representados na amostra, como
por exemplo no caso da PNC, usuários que fazem uso de crack e similares,
porém nunca ou raramente frequentam cenas abertas de uso, mas fazem

307
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

seu uso em casa ou em locais fechados (Karon & Wejnert, 2012; Magnani
et al., 2005; Shaghaghi et al., 2011).

Captura e Recaptura
A formulação matemática do método captura-recaptura se deu
inicialmente na França em 1783, desenvolvido originalmente por Pierre
Laplace (1749-1827) para estimar a população daquele pais (Laplace
citado por Dun & Andreoli, 1994), e desde então vem sendo utilizado no
campo da ecologia para estimar o tamanho da população de animais em
uma determinada área, mantida sua denominação original, mesmo depois
de ter “migrado” do estudo com os animais para os estudos com seres
humanos, em relação aos quais o processo de “captura” corresponde a
uma denominação simbólica, e não a uma captura efetiva.
Na área da ecologia, a metodologia acontece com a coleta de duas
amostras independentes, em dois momentos distintos. Na primeira coleta,
realiza-se a captura dos animais (amostra A), que são contados, marcados
(por exemplo, com uma anilha ou um chip) e, em seguida, libertados. Após
um certo tempo, suficientemente longo para que os animais marcados se
misturem aos animais não marcados, a segunda amostra é coletada
(amostra B). A interseção da amostra A com B define a extensão da
população de origem, no momento da recaptura, ou seja, neste segundo
momento, os animais capturados pela primeira vez e os animais
recapturados seriam identificados e contados, verificando-se se houve ou
não sobreposição (Royle et al., 2013).
Levando em consideração o pressuposto da independência entre as
amostras, poderíamos concluir que a proporção de animais recapturados
em relação ao total de capturados pela segunda amostra é igual à
proporção de animais capturados pela primeira amostra em relação ao
total da população. A partir daí, o tamanho da população seria estimado
pelo estimador de Lincoln-Petersen (LP). O estimador de LP tem sido
amplamente utilizado, inclusive em estimativas de populações humanas
ocultas. Essa estimativa pressupõe que os indivíduos apresentem

308
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

probabilidades iguais de serem observados no primeiro e segundo


momentos (Coeli, Veras, & Coutinho, 2000; Royle et al., 2013).
Nas pesquisas com seres humanos, o método de captura-recaptura
pode se iniciar de duas maneiras. Uma destas maneiras é através de um
mapeamento de todos os locais onde a população-alvo do estudo pode ser
encontrada (cenas abertas de uso, por exemplo). Após o mapeamento, a
equipe de pesquisa deverá visitar os locais mapeados para coletar a
primeira amostra e “marcar” a população encontrada no local. A
marcação pode se dar através da entrega de um cartão contendo um
código de barras único para cada membro ou um brinde da pesquisa, por
exemplo um chaveiro. Neste momento, a equipe de pesquisa realizará a
contagem dos membros da população no local visitado (Caiaffa & Bastos,
1998; Mastro et al., 1994).
Assim como na pesquisa com os animais, depois de certo tempo
retorna-se aos locais previamente visitados para coleta da segunda
amostra para uma nova contagem e marcação dos membros da
população. Neste momento, serão identificadas e contabilizadas as pessoas
que foram marcadas na primeira visita, ou seja, aqueles que possuem um
cartão com código de barras da pesquisa ou chaveiro e aqueles que estão
sendo marcados pela primeira vez (Caiaffa & Bastos, 1998; Mastro et al.,
1994; Wesson, Lechtenberg, Reingold, McFarland, & Murgai, 2017).
Quando por algum motivo não é possível realizar o mapeamento dos
locais de concentração da população de interesse, devido à falta de tempo
e recursos, por exemplo, lança-se mão de listas (o mais possível) exaustivas,
contendo os membros (potenciais) da população (enfatizando-se
novamente aqui que a exaustividade absoluta não é uma meta factível).
Essas listas podem ser de usuários de drogas que recebem um benefício
social, cadastrado nos Centros de Referência da Assistência Social (Cras) e
dos usuários em tratamento nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e
Drogas (Caps-AD), por exemplo (Wesson Lechtenberg, et al., 2017).
Como a segunda amostra deve ser independente da primeira,
idealmente deve-se obter as listas de locais diferentes na primeira e na

309
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

segunda coleta. A forma de marcação dos indivíduos também se restringe


a códigos alfanuméricos (Unaids, 2010; Wesson, Reingold et al., 2017).
Em ambos os casos (utilizando o mapeamento ou as listas cadastrais),
o número de membros da população observados em cada amostra e o
número de membros da população observados em ambas as amostras são
registrados. A partir desses números, o tamanho da população pode ser
estimado, o que consiste, de forma bastante simplificada, em multiplicar o
número de indivíduos capturados na primeira amostra pelo número de
indivíduos capturados na segunda amostra, dividido pelo número de
pessoas capturadas em ambos (recapturas) (Coeli et al., 2000; Unaids,
2010).
Na aplicação da metodologia de captura-recaptura há alguns
pressupostos importantes a serem observados. O primeiro é que a
população sobretudo deve ser fechada, ou seja, não são observados
nascimentos, mortes ou migrações (na verdade, tal pressuposto é
impossível, mas constitui uma simplificação necessária ao modelo básico)
durante o período de estudo. Este é um dos pressupostos mais facilmente
violados nos estudos com usuários de drogas marginalizados, visto que se
trata de uma população dinâmica, apresentando alta mobilidade e taxas
de mortalidade e encarceramento, diferentes de outras populações de
difícil acesso/ocultas, tais como homens que fazem sexo com outros
homens (Mastro et al., 1994, Unaids, 2010).
Na tentativa de encontrar uma população razoavelmente “estável’ nas
duas amostras durante o período do estudo, pesquisadores têm
estabelecido tempos mais curtos entre a primeira e a segunda coleta. Um
exemplo é o estudo de Mastro et al. (1994), que trabalhou com uma
população de pessoas em tratamento com metadona para dependência de
opióide, no ano de 1991, em Bangkok, e realizou a segunda coleta em
menos de seis meses. Caiaffa et al. (2003) estimaram o número de usuários
de droga injetável, clientes de um programa de troca de seringas que
estavam infectados por HIV e pelo vírus da Hepatite C em 1998, em
Porto Alegre, e realizaram a segunda coleta com apenas três meses de
intervalo da primeira coleta.

310
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

Outro princípio, que já foi citado aqui é o da independência entre as


amostras, ou seja, os indivíduos capturados na primeira amostra não
apresentam probabilidade diferencial de serem selecionados na segunda
amostra. Para lidar com este problema da dependência, pesquisadores têm
desenvolvido técnicas para detectar possíveis estruturas subjacentes de
dependência entre as amostras, como por exemplo a aplicação de modelos
log-lineares (Coeli et al., 2000).
Por fim, o último pressuposto do método assume que todos os
membros da população têm a mesma probabilidade de serem capturados,
o que pode ser um problema quando pesquisadores utilizam listas de
serviços de saúde para obter as amostras, visto que frequentemente os
usuários enfrentam problemas de acesso a tais serviços ou simplesmente
não os frequentam (Fiocruz, 2014). A violação desses pressupostos pode
produzir vícios que superestimem ou subestimem o tamanho da
população, e por este motivo devem ser cautelosamente observados
(Mastro et al., 1994).

Network Scale-up
O Network Scale-up foi utilizado pela primeira vez para estimar o
número de vítimas de um terremoto na Cidade do México, México, em
1985, pelo antropólogo Russel Bernard, em parceria com o matemático
inglês Peter Killworth, e desde então vem sendo utilizado para atender aos
mais diferentes objetivos (Bernard, Johnsen, Killworth, & Robinson, 1991).
Este método utiliza informações coletadas em pesquisas domiciliares
com a população geral para estimar o tamanho de populações de difícil
acesso/ocultas. No entanto, ao invés de perguntar ao entrevistado sobre os
seus comportamentos e hábitos, pergunta-se sobre os comportamentos e
hábitos de conhecidos da sua rede social (Bernard et al., 2010; Bertoni &
Bastos, 2014).
Durante a entrevista são feitas perguntas sobre quantas pessoas o
entrevistado conhece, pertencentes a populações enumeráveis, ou seja,
populações que possuem tamanho previamente conhecido (por exemplo,

311
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

escolares ou membros das forças armadas), e quantas pessoas o


entrevistado conhece pertencentes a populações com tamanho
desconhecido (por exemplo, usuários de crack e similares, mulheres que
fizeram aborto) (Bernard et al., 2010; Bertoni & Bastos, 2014).
Desta forma, o Network Scale-up (Nsum) é considerado um método
indireto de estimação, pois não pergunta diretamente aos indivíduos da
população geral se eles fazem ou não parte da população-alvo a ser
estimada, ou seja, se os entrevistados têm determinados hábitos ou
comportamentos que os caracterizem como usuários de drogas, por
exemplo (Abdul-Quader, Baughman, & Hladik, 2014; Unaids, 2010). O
Nsum difere dos métodos de estimação oriundos de inquéritos
domiciliares, que por perguntar diretamente à população sobre uma
prática marginalizada como o uso de drogas, tendem a subestimar tais
estimativas (Morral, McCaffrey, & Chien, 2003).
Com base na média do tamanho da rede pessoal e na média de
indivíduos pertencentes à população de difícil acesso/ocultas que os
entrevistados conhecem, o tamanho da população de difícil/ocultas acesso
é estimada.
Bertoni e Bastos (2014) elencam as vantagens dos métodos indiretos
sob os métodos diretos na estimação da prevalência de uso de drogas na
população geral: (1) redução do erro derivado do estigma associado ao uso
de drogas, pois em se tratando de um comportamento marginalizado, as
pessoas tendem a não falar abertamente sobre o tema; (2) mesmo sendo
um estudo de base domiciliar, o método consequentemente inclui na
estimativa gerada, pessoas em situação de rua, que moram em abrigos,
internadas em clínicas para tratamento da dependência química, presas,
exatamente por perguntar sobre comportamentos de terceiros e não do
respondente no domicílio pesquisado.
Porém, como em relação a todo e qualquer método, existem algumas
limitações em relação ao Network Scale-up que devem ser consideradas. O
primeiro problema se refere à estimativa do tamanho da rede pessoal, isto
porque o entrevistado pode desconhecer ou não se lembrar que alguém da

312
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

sua rede seja membro da população de interesse (conhecido como “erro


de transmissão”), ou seja porque não sabe/não lembra que alguém de sua
rede social usa substâncias psicoativas (Bernard et al., 2010).
O segundo problema é chamado de efeito de barreira, que significa
dizer que a depender de algumas barreiras sociais ou estruturais, tais como
ocupação e localização do seu domicílio (pessoas de áreas rurais, por
exemplo), a probabilidade do entrevistado conhecer alguma pessoa que
use substâncias pode variar. Pode ser que ele não conheça, não queira
informar que conheça, ou conheça menos membros do que seria
esperado, em relação ao tamanho da sua rede pessoal (Bernard et al.,
2010; Unaids 2010).
Diversos esforços têm sido empreendidos para minimizar/corrigir tais
erros. Pesquisadores brasileiros, em parceria com pesquisadores de
Princeton, Nova Jérsei, Estados Unidos implementaram uma pesquisa de
redes sociais para estimar o erro de transmissão e introduzir um fator de
ajuste no cálculo das estimativas do tamanho da população (Salganik et
al., 2011). Outro esforço tem sido realizado envolvendo modelos
matemáticos e procedimentos de simulação para investigar as
consequências dos efeitos de barreira (Bernard et al., 2010).
No Brasil, no campo da saúde pública, o método foi introduzido de
maneira pioneira através de uma parceria entre pesquisadores da Fiocruz
e da Universidade de Princeton, Nova Jérsei, EUA, com a realização de
dois estudos. O primeiro estudo estimou o número de usuários de drogas
ilícitas no município de Curitiba, Paraná, no ano de 2009 (Salganik et al.,
2011). O segundo estudo correspondeu ao componente domiciliar da
Pesquisa Nacional sobre uso de Crack, que estimou o número de usuários
de crack e/ou similares em cenas abertas de uso das capitais 26 capitais
brasileiras e Distrito Federal (Bertoni & Bastos, 2014).

313
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

Questões éticas e operacionais do campo: o Caso da Pesquisa


Nacional sobre Uso de Crack
A população de usuários de crack é altamente estigmatizada, está
frequentemente envolvida em comportamentos ilegais, sendo de extrema
importância assegurar o cumprimento dos preceitos éticos que minimizem
os riscos de danos associados a sua participação em pesquisas (Royle et al.
2013).
Sendo assim, os pesquisadores devem informar aos seus respectivos
comitês de ética em pesquisa os métodos de amostragem a serem
utilizados e a(s) justificativa(s) para execução da pesquisa de forma clara
(Greaney et al., 2012). A pesquisa epidemiológica em drogas difere das
pesquisas biomédicas tradicionais, como as pesquisas clínicas, pois
raramente envolve intervenções invasivas que podem prejudicar ou
beneficiar o voluntário diretamente, com exceção dos estudos de ensaios
clínicos randomizados referentes às terapias de substituição de metadona,
mais frequentemente empregados na América do Norte e Europa
(Ahmadi & Razeghian, 2017; Ling, Wesson, Charuvastra, & Klett, 1996),
além de estudos com a utilização de medicamentos em que haja
evidências empíricas anteriores, em populações com características
similares em alguns pontos (por exemplo, pacientes com quadros
depressivos e ansiosos) bastante consistentes, no sentido de alívio dos
sintomas. Ainda assim, são comuns as falhas, e não existe até o momento,
um único medicamento comprovadamente eficaz no tratamento da
dependência por cocaína/crack, referendado pelas agências reguladoras.
Em pesquisas em que a população de estudo apresenta
comportamentos criminalizados, passíveis de intervenções jurídicas e de
segurança pública ou em que os questionários contenham perguntas
sensíveis sobre o comportamento sexual, por exemplo, há sempre um
medo dos voluntários quanto a um possível “vazamento” de informações e
que sua identidade seja revelada.
Estudos que não protegem a privacidade e a confidencialidade das
informações fornecidas pelos participantes do estudo são suscetíveis de

314
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

produzir resultados de confiabilidade incerta e de possível risco para os


entrevistados (que poderiam vir a ser estigmatizados, presos etc.), devido
ao descrédito e confiança do usuário para com a equipe de pesquisa e, por
conseguinte, fomentar o falseamento de informações sobre o que se é
perguntado, por medo ou desconfiança de terem seus dados revelados ou
de serem identificados de alguma forma (UNODC, 2004).
Questão igualmente importante é a capacidade de consentir dos
voluntários de um estudo. Sobre este ponto, no caso de pesquisas com
usuários de droga, algumas questões importantes devem ser consideradas:
se a intoxicação aguda deve ser critério de exclusão no estudo (o que
poderia diminuir em muito o tamanho amostral a ser obtido), qual seria a
melhor forma de avaliar a capacidade de consentir (o bom senso e a
experiência clínica do pesquisador ou aplicação de escalas), e se é possível
realizar os procedimentos de pesquisa com voluntários sob efeito de
algumas substâncias, mas que se apresentem lúcidos (ao menos, no que
tange aos procedimentos a serem realizados).
No caso da Pesquisa Nacional do Crack, como o recrutamento de
voluntários era realizado nas cenas abertas de uso de drogas, e já era
sabido que a maioria dos usuários estaria sob efeito da droga no momento
do recrutamento, foram estabelecidos alguns critérios para exclusão de
voluntário do estudo, de maneira a garantir a fidedignidade das
informações coletadas. Eram excluídos do estudo indivíduos que não
conseguiam responder as questões de forma minimamente razoável ou
que apresentavam quadros de abstinência grave, com agitação,
perturbação psicomotora e/ou sonolência extrema, comum após uso
prolongado do crack que prejudicasse o bem-estar do voluntário e a coleta
de informações para pesquisa.
O componente que descreveu o perfil dos usuários, na Pesquisa
Nacional sobre Uso de Crack, utilizou o TLS como método de
amostragem. Conforme apresentamos no presente capítulo, o TLS exige
um mapeamento prévio dos locais de concentração da população alvo,
para recrutamento e participação na pesquisa (Fiocruz, 2014). Na época
em que o mapeamento foi realizado, no início do ano de 2011, havia um

315
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

clamor social por respostas rápidas frente à então (erroneamente)


denominada “epidemia de crack” do Brasil e havia também uma ampla
mobilização e cobertura da mídia sobre as ações em torno da temática.
Foi neste período que a equipe do projeto vivenciou a todo instante
questões éticas complexas, pois a pesquisa precisava “ir para rua” e ao
mesmo tempo a pressão para a divulgação da “lista de cenas de uso de
crack” eram crescentes (Zeferino, Fermo, Fialho, & Bastos, 2017).
À época, vários meios de comunicação e até mesmo entidades
públicas e autoridades policiais e de gestão solicitavam à coordenação do
projeto as informações sobre o mapeamento das cenas de uso em todo
país. Porém, em consonância com o princípio ético da beneficência e não
maleficência, a equipe de pesquisa JAMAIS cedeu a estas solicitações, o
que significaria: violação dos preceitos éticos, fim das relações baseadas na
confiança mútua entre equipe e potenciais entrevistados, além de
utilização de bases de dados oriundas da saúde para subsidiar ações de
repressão aos usuários.
Quando teve início a coleta de dados em campo, com a realização
das etapas de observação, recrutamento e entrevista, novos desafios foram
surgindo. Um dos primeiros desafios encontrados foi em relação a ações
de repressão policial nas cenas de uso versus a presença da equipe de
pesquisa nestes locais. Muitas das cenas mapeadas também se
configuravam como locais de tráfico (principalmente varejista), e na
maioria das vezes havia a presença de indivíduos armados, e para coleta
dos dados era necessário acessar esses locais, muitas vezes em horários
noturnos, o que se traduzia em risco à segurança dos pesquisadores.
As ameaças à segurança pessoal, tanto dos pesquisadores quanto dos
voluntários da pesquisa, em cenas de uso de substâncias ilícitas são
descritas em diferentes estudos epidemiológicos, mas, principalmente em
estudos etnográficos, e se apresentam não só como uma questão ética, em
função da possibilidade de colocar em risco a vida das pessoas, mas
também como um desafio operacional relacionado à necessidade do
cumprimento de determinados procedimentos em função dos métodos de

316
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

amostragem empregados (Librett & Perrone, 2010; Williams, Dunlap,


Johnson, & Hamid, 1992; Wright, Klee, & Reid, 1998).
A Pesquisa Nacional do Crack realizou coleta de dados em campo de
2011 (mapeamento) a 2012 (Inquérito epidemiológico). Durante esses três
anos, a equipe de pesquisa vivenciou e testemunhou diferentes situações,
desde ameaças (por parte de facções criminosas, milícias e esquadrões de
policiais), até expulsão da equipe do campo e impossibilidade da
conclusão do trabalho em determinados locais.
Além das ações do ponto de vista segurança pública (desde ações
policiais corriqueiras até a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora)
que interferiram na coleta de dados quase que diariamente, em diferentes
municípios de trabalho, também foram desenvolvidas ações de
recolhimento compulsório de usuários nas cenas de uso. Desta forma,
ainda durante a coleta de dados, em muitos locais ocorreu uma
reconfiguração da dinâmica das cenas, com o espalhamento e
reagrupamento dos usuários para localidades vizinhas, o que acarretava
em uma nova reconfiguração das redes de interação e a abertura de novos
espaços de uso (Bastos, 2014).
Do posto de vista metodológico e operacional, isso significa uma
redefinição de todos os parâmetros previamente estabelecidos, o que
significa muitas vezes perder voluntários em potencial (pois o método
adotado só “permite” visitar cenas previamente selecionadas a partir de
um mapeamento inicial, que por vezes já não representava mais a
realidade local, e desta forma, as novas configurações de cenas, em
localidades não mapeadas, ficavam de “fora” da pesquisa). Outro ponto a
ressaltar é a possível “perda da confiança” ou “aumento da desconfiança”
dos usuários, potenciais voluntários da pesquisa, uma vez que a ação da
pesquisa poderia ser confundida ou interpretada como parte de uma ação
policial ou de internação compulsória. Todos estes acontecimentos
dificultavam (e dificultam) a abordagem dos usuários e o recrutamento
para pesquisa (Bastos, 2014).

317
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

Em alguns municípios não foi possível realizar a coleta de dados em


algumas cenas previamente mapeadas em função dos conflitos constantes
e de ameaça à equipe de pesquisa. Nesses casos, a estratégia metodológica
utilizada foi lançar mão de reposições de unidades amostrais, pois excluir
unidades amostrais inteiras sem reposição determinaria inferências
estatísticas enviesadas.
Quando do início da pesquisa, como exigência da Presidência da
Fiocruz em função da preocupação da coordenação do projeto acerca da
segurança da equipe em campo, foi realizado um seguro de vida e
acidentes pessoais com cobertura para toda a equipe de pesquisa
envolvida no projeto (que felizmente não precisou ser utilizado em
nenhum momento). A coordenação estabeleceu também um protocolo de
segurança com orientações básicas de como entrar e se comportar nas
cenas de uso de drogas (o que fazer e principalmente o que NÃO fazer) e
como proceder no caso de uma abordagem ou confronto policial no local.
Ainda, como alternativa operacional para garantir o acesso às cenas de
uso e dar condições mínimas de segurança aos pesquisadores em campo,
além de toda a indumentária que identificava os pesquisadores em campo
(camisas com a logo da Fiocruz e crachás de identificação), a equipe
identificava “articuladores locais” (que podiam ser desde agentes de saúde
e sociais, redutores de danos, membros de ONGs, passando por lideranças
religiosas e até donos de bar), que fossem reconhecidos e respeitados pelas
comunidades locais e que tinham a função de facilitar a entrada da equipe
no território e apresentá-los à comunidade.
Além das questões estruturais de violência e confronto encontradas
em campo, outras situações sensíveis e delicadas e igualmente
preocupantes apareceram com certa frequência. Era frequente a equipe
identificar mulheres grávidas, pessoas aparentemente com complicações
de saúde e menores de idade em condições sub-humanas nas cenas, e não
havia como permanecer alheio a estas situações. O que possibilitou que a
equipe conduzisse o trabalho em campo de forma respeitosa e ética, sem
“passar por cima” de situações complexas de saúde e sociais, foi a
articulação com os serviços de assistência social e de saúde locais.

318
Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

Inúmeras vezes a equipe era acompanhada por esses profissionais, o que


possibilitava o atendimento aos casos mais graves de forma rápida. Na
maioria dos territórios onde a pesquisa esteve, foi possível articular
unidades de atenção primária e até mesmo de urgência (como as Upas,
para os casos das atividades noturnas), para realização das entrevistas e
testagens rápidas. Desta forma, a pesquisa cumpriu também o papel de ser
“a porta de entrada” dos usuários a um serviço de saúde, pois na maioria
das vezes havia a possibilidade de encaminhamento imediato a estes
serviços.

Considerações finais
O presente capítulo apresentou brevemente ao leitor alternativas
metodológicas para realização de pesquisa epidemiológica com
populações de difícil acesso/ocultas, especialmente a população de
usuários de drogas pesadas, cuja marginalização leva à discriminação e
estigmatização, dificultando a sua participação em pesquisas. Muito ainda
pode (e deve) ser aprofundando, sobre as potencialidades e limitações de
cada método apresentado, e para tanto, o capitulo dispõe de ampla
bibliografia, que pode servir como ponto de partida para estudos
aprofundados no tema.
O texto também versa sobre aspectos éticos e desafios operacionais de
pesquisa epidemiológica de campo, trazendo como contraponto alguns
pontos da experiência da Pesquisa Nacional sobre o Uso do Crack.
Como em qualquer pesquisa, além da pergunta à qual se quer
responder, para a escolha do método adequado deve-se levar em
consideração o processo logístico e operacional necessário para
implementação do método, além do tempo disponível para execução do
projeto e do orçamento disponível para tal. Cabe ao pesquisador ponderar
os recursos disponíveis para fundamentar a escolha do método de pesquisa
mais apropriado frente às solicitações do poder público e da sociedade.

319
Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

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328
CAPÍTULO 4.2

O “dispositivo do crack”:
estratégia, saber e poder

Iara Flor Richwin

A questão do crack, dos usuários e dos espaços de consumo, nos


últimos 15 anos, aproximadamente, assumiu uma posição central e
eminente no cenário social brasileiro e ganhou um foco de atenção
significativo dos meios de comunicação, da ciência, da moral, da religião,
da política e do Estado. Além do propagado aumento vertiginoso do
consumo de crack, houve uma inquestionável e acentuada ascensão dos
discursos sobre o crack (Lancetti, 2015; Rui, 2014), construídos,
predominantemente, a partir de um léxico trágico, moral, epidêmico e
bélico (Richwin & Celes, 2017).
Emerge, então, a narrativa dominante de uma grave epidemia de
crack que assola todo o país e as figuras escandalosas e espetaculares dos
usuários, pejorativamente rotulados como noias, cracudos, zumbis. Esse
destaque e clamor constituídos em torno da questão do crack produziram
efeitos, gestões e intervenções e se manifestam no acionamento e na
centralização de recursos, intervenções, políticas públicas, dispositivos
políticos e institucionais e diferentes mecanismos assistenciais, repressivos,
sanitários, urbanísticos, morais e religiosos em torno do fenômeno do crack
(Lancetti, 2015; Rui, 2014).

329
Iara Flor Richwin

Este texto tem o objetivo de tomar a noção foucaultiana de dispositivo


para identificar, analisar e discutir essa configuração de diferentes
elementos em torno do fenômeno do crack no Brasil e compreender as
relações que se estabelecem entre eles, suas funções e efeitos. A partir da
perspectiva aberta por Vargas (2001) e Tiburi e Dias (2013), que
formularam a ideia de um “dispositivo das drogas”, proponho pensar
sobre a constituição e funcionamento de um “dispositivo do crack” na
contemporaneidade brasileira. Segundo Foucault, a noção de dispositivo
demarca:
um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os
elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
estabelecer entre estes elementos. (Foucault, 2016, p. 364).

O que proponho sob a noção de “dispositivo do crack” não


corresponde, portanto, a nenhuma medida ou elemento específico, mas à
complexa e emaranhada rede que se estabelece entre diferentes elementos.
Trata-se de um “novelo ou meada” – como Deleuze (1990) define o
dispositivo –, um conjunto multilinear de agenciamentos coletivos que não
se fixam de forma exclusiva em nenhuma instância específica, mas que
perpassam o campo social através da mediação dos elementos mais
diversos (Vargas, 2001).
Sem pretender ser exaustiva em relação a todos os elementos que
compõem essa rede, foco meu olhar e análise em dois eixos principais: (1)
os discursos, representações e interpretações sobre o crack e os usuários que
circulam socialmente de forma predominante; e (2) o campo de
intervenções atravessado por paradoxos e disputas terapêuticas e políticas
que se conforma em torno do usuário de crack.

330
O “dispositivo do crack”: estratégia, saber e poder

Os discursos, imagens e representações dominantes sobre o


crack e os usuários
É notório e central o papel que os meios de comunicação
desempenham na construção e disseminação dos significados e discursos
dominantes sobre o crack e seus usuários. As narrativas midiáticas
constituem o principal agente de produção dos sentidos que circulam
socialmente sobre essa droga, influenciando as representações, as
identidades, o imaginário social, o debate e inclusive as políticas públicas
relacionadas ao crack (Borges & Borges, 2013; Cunda & Silva, 2014;
Medeiros, 2015; Rocha & Silva, 2016; Rodrigues, 2016; Romanini &
Roso, 2012).
Apesar da enorme exposição da qual o crack desfruta, há muito
desconhecimento e distorção em relação ao perfil dos usuários, aos efeitos
reais da substância e aos significados, contextos e padrões de uso (Raupp,
2011; Toffoli, 2014). Com relação às propriedades químicas, é veiculada
de forma prevalecente a ideia de uma substância suja que não passou pelo
processo de refino (Tiburi & Dias, 2013), mas extremamente poderosa,
com efeitos rápidos, intensos e “sequestradores” (Nery, Soares, Nuñez, &
MacRae, 2013), capaz de provocar fissuras incontroláveis por uma nova
tragada e dependências graves a partir de pouquíssimos usos.
Como observado em estudos que se dedicaram à análise do material
midiático sobre o crack (Borges & Borges, 2013; Cunda & Silva, 2014;
Medeiros, 2015; Rocha & Silva, 2016; Rodrigues, 2016; Romanini &
Roso, 2012; Rui, 2014), ele é situado num lugar absoluto de mal
contagioso a ser combatido e extirpado e enfatizado como o responsável
por inúmeras tragédias individuais, familiares e sociais; por trajetórias de
decadência, ruína e fracasso; por perdas materiais, afetivas e morais; pela
degradação física e psíquica e pela destruição dos laços sociais e familiares.
O crack é frequentemente associado ao flagelo, à violência, à
criminalidade, à morte, à periculosidade, à doença e à desordem urbana, e
representa a demarcação de “territórios crônicos” de precariedade, caos e
periculosidade nas cidades (Medeiros, 2010, 2015; Rodrigues, 2016; Rui,
2014). Em suma, os discursos e interpretações dominantes, sobretudo

331
Iara Flor Richwin

aqueles veiculados pelos meios de comunicação, operam uma


demonização do crack, a tal ponto que levam à construção de enunciados
como o que ouvi de um paciente de um Caps-AD, em que o crack é
concebido como uma substância “feita com a raspa do chifre do diabo”1.
Atrelada à imagem do crack como um mal poderoso, é construída a
figura espetacular dos usuários de crack – os “noias”, “noiados”,
“cracudos” ou “craqueiros”, como são pejorativamente rotulados –,
interpretados unicamente em termos de faltas, falhas ou fraquezas, sejam
físicas, morais, psíquicas ou sociais; pela perda do controle, da autonomia
individual, do caráter e da “dignidade” e pela completa sujeição aos
poderes da droga (Rui, 2014). Os usuários de crack são apresentados pelas
interpretações e discursos dominantes como zumbis, mortos-vivos,
monstros, doentes, incapazes de pensar ou desejar outra coisa que não o
crack, mas capazes de fazer qualquer coisa por ele. Como identificado por
Rui (2014) em pesquisa feita sobre o material da imprensa em torno do
crack, as notícias relatam que, por causa dele, perde-se o controle e o caráter, a
vergonha e a dignidade, até a alma perde-se um pouco (Folha de S. Paulo,
15/01/2005, Cf, Rui, 2014). O crack transforma um “sujeito-homem” em
“noia” (Biondi, 2010), em zumbis que perdem qualquer traço de
humanidade (Rui, 2014), “defecam na frente de todo mundo; fazem sexo em
qualquer lugar. E, se você reclama, atacam de forma repulsiva. Escarram em você,
abrem suas feridas, vomitam em você” (Fala de um policial militar na
cracolândia de São Paulo, segundo matéria de 26/06/2009, da Folha de
S. Paulo. Cf. Rui, 2014).
Rocha e Silva (2016) apontam que a desumanização e a animalização
dos usuários constituem as categorias fundamentais que estruturam os
discursos mais recorrentes sobre o crack; contudo, nesse processo de
animalização, lhes é poupada e preservada uma determinada
característica humana: a responsabilidade moral e exclusivamente

__________
1. Valença (2013) também identificou construção narrativa semelhante, enunciada por um pastor,
líder de uma comunidade terapêutica.

332
O “dispositivo do crack”: estratégia, saber e poder

individual pelo problema. Como destacado por Rodrigues (2016), a


cobertura midiática, salvo raríssimas exceções, vela e escamoteia a
relação do problema do crack com a precariedade e vulnerabilidade
produzidas pela desigualdade social no Brasil. O fracasso e degradação
associados aos “noias” e “cracudos” são interpretados somente em termos
de culpa individual, fraqueza, falta de vergonha, de caráter e de vontade,
associados aos “superpoderes” do crack. Os usuários de crack são ainda
concebidos e representados como seres compulsivos, sujos, perigosos,
incapazes para o mercado e para o trabalho. “Lixos e refugos-humanos”
que subtraem o espaço urbano e são responsáveis pela deterioração das
cidades, constituindo os “antagonistas da ordem social”, o avesso da
civilização (Rocha & Silva, 2016; Rodrigues, 2016).
O canal “Quebrando o Tabu”2 reuniu alguns comentários feitos na
rede social Facebook que revelam o olhar de repugnância e
desumanização lançado aos usuários de crack e ilustram bem as imagens e
representações que são construídas, veiculadas e assimiladas de forma
dominante, radicalizadas aqui ao extremo da hostilidade, do ódio e do
desejo de extermínio:
-“Não tenho paciência pro irmão cracudo, quero que ele morra”.
-“Pelo amor joga uma bomba nisso. Muito mais do que cracudos, não produzem
nada à sociedade, ainda sujam, roubam e depredam”.
-“Aproveita e dá chumbinho pra esses pestes, cambada de vagabundos!!!
ZUMBIS!!! Brasil adora alimentar o que não presta. Coitadinho cracudo? Leva
um pra casa”.
-“Dá logo 1 kg de pedra pra cada um morrer logo. Lixo humano, não produz nada
e transforma as ruas em latrinas”.
-“Você que é contra a internação de um viciado em crack, leve um noia para a sua
casa”.

__________
2. https://www.youtube.com/watch?v=810NYv9KPdk Direção e edição do vídeo de Melles & DYG
(2016)

333
Iara Flor Richwin

É certo que o crack apresenta um potencial aditivo e uma competência


de danos e desorganização física, psíquica e social consideráveis (MacRae,
2013; Nery et al., 2013). No entanto, para além dos efeitos reais da
substância química – que são generalizados e homogeneizados pelos
discursos dominantes –, é feita sobre o crack e sobre os usuários uma
valoração moral (Rui, 2014), que os aloca não apenas na pior das
possibilidades de uso de drogas, mas na pior das possibilidades de existência,
que arrisca sequer ganhar o estatuto de “existência humana”. E, como o
mostra Rui (2014), essa valoração moral parece se estender e se reproduzir
em diversos meios e contextos sociais, em que o crack e a figura do “noia” e
do “cracudo” demarcam limites identitários, morais e corporais,
estabelecem fronteiras significativas em diferentes grupos sociais e figuram
como a “alteridade radical”, marcada pela “categoria da abjeção” (p. 54).
Em alguns aspectos e com roupagens científicas, determinados
segmentos da medicina e da psiquiatria tendem a corroborar os discursos
midiáticos sobre o crack3, o que atribui força e autoridade científica às
abordagens estereotipadas, alarmistas e estigmatizantes e aos discursos
eivados de generalizações, homogeneizações e pressupostos morais. É
possível afirmar que, de modo geral, fenômeno semelhante se dá no
campo da religião, cujas concepções e discursos sobre as drogas e sobre o
crack vão endossar e conferir autoridade religiosa às narrativas e
representações que circulam de forma predominante sobre a questão.
Todas essas narrativas, discursos e representações sobre o usuário de
crack têm o efeito de produzir o pânico moral e social e a ideia de um
perigo a combater de forma emergencial. Diante desse quadro,
configura-se um “furor intervencionista-bélico” (Amarante, 2015), uma
“contrafissura”4 que, conforme destaca Lancetti (2015), operando na
__________
3. Cumpre ressaltar, contudo, que também há diversos representantes e pesquisadores do campo da
medicina e da psiquiatria que abordam a questão do crack de forma ampla e complexa, levam
realmente em consideração os aspectos subjetivos, sociais, culturais e políticos implicados e
distanciam-se de uma visão alarmista, reducionista e estigmatizante, focada apenas na
psicopatologia ou no determinismo farmacológico da substância.
4. Jogo de palavras feito por Lancetti (2015) com a ideia de que o crack causa uma fissura irrefreável.

334
O “dispositivo do crack”: estratégia, saber e poder

mídia, na política, na clínica e nas subjetividades, consiste nesse desespero,


fissura ou afã por resolver de forma imediata e simplificada um problema
de tamanha complexidade como o do crack e da vulnerabilidade social que
lhe é intrínseca.

O campo de intervenções, atenção e cuidado aos usuários de


crack: paradoxos e disputas políticas e terapêuticas
Um dos efeitos da centralidade e do grande clamor em torno do
consumo de crack no Brasil foi a aceleração da implantação e efetivação de
políticas públicas para os usuários de drogas (Rui, 2014). Diante da ampla
exposição midiática sobre o crack e da construção da ideia de uma
“urgência a ser enfrentada”, o governo Federal desenvolveu e implantou
planos de ação específicos para a área. Em 2009, o Ministério da Saúde
lançou o Plano Emergencial de Ampliação ao Acesso ao Tratamento e
Prevenção em Álcool e outras Drogas no Sistema Único de Saúde (Pead –
portaria 1.190/2009), em decorrência do cenário epidemiológico que
mostrava a expansão do consumo principalmente de álcool e de crack
(Brasil, Ministério da Saúde, 2009). De acordo com Teixeira (2015), esse
plano já revela que o crack vinha ganhando o foco dos órgãos públicos e
sendo considerado como uma droga que demandava atenção e políticas
públicas específicas.
Em 2010, por meio do Decreto 7.179/2010 da Presidência da
República, instituiu-se o “Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e
outras Drogas” e, em 2011, foi lançado o programa “Crack, é possível
vencer”. Basta atentar para os títulos desses programas e para o destaque
especial que passa a ser dado ao crack – no que antes era denominado
genericamente como “Drogas” ou “Álcool e outras Drogas” –, para
perceber que ele assume um lugar privilegiado nas pautas de políticas
públicas.
A análise do programa “Crack, é possível vencer” mostra que ele é
permeado pela polaridade repressão/cuidado, segurança pública/ saúde
pública, que historicamente atravessa as políticas públicas para usuários de

335
Iara Flor Richwin

drogas, seja na forma do conflito dicotômico ou na tentativa


aparentemente paradoxal de amálgama. A partir das diretrizes do eixo
Cuidado, o programa preconiza a ampliação e fortalecimento da rede de
apoio, atenção e cuidado para os usuários de drogas e familiares, com a
multiplicação dos serviços de assistência social e de saúde, como os
Caps-AD, os leitos hospitalares, as unidades de acolhimento, vagas em
comunidades terapêuticas, serviços da atenção básica e consultórios de
rua. Já o eixo Autoridade prevê uma frente de ações voltadas para o
combate ao narcotráfico e repressão aos traficantes, e outra frente de
policiamento ostensivo nas áreas de concentração de uso de crack e outras
drogas, com o objetivo de “recuperação” e “segurança dos espaços”
(Brasil, 2011). Sem pressupor de antemão a incompatibilidade entre a
repressão/segurança e a assistência/saúde, recorro ao exemplo da
emblemática “cracolândia” de São Paulo em que, segundo Clemente
(2014), Lancetti (2015) e Rui (2014), essas esferas têm suas relações
marcadas por acentuadas tensões, conflitos e desacordos profissionais e
políticos e não logram atuar em conjunto.
Os paradoxos e contradições relacionados à questão do uso de crack,
contudo, não se limitam a um posicionamento dicotômico entre repressão
e saúde, entre o campo jurídico-penal e o campo sanitário. Ao contrário,
esses campos parecem mesclar-se e constituir um continuum (Silva, 2014).
No Brasil, de acordo com Silva (2014), até o início do século XXI a
questão do uso de drogas restringia-se ao campo jurídico-penal, com
medidas repressivas e punitivas. Gradativamente, as estratégias de atenção
e cuidado, prevenção, tratamento, redução de danos e reinserção social
começaram a ganhar maior ênfase no âmbito das políticas públicas e a
questão das drogas passou a ser apropriada pela reforma psiquiátrica, que
estendeu o modelo fundado no paradigma psicossocial e nos princípios do
SUS e da luta antimanicomial também aos usuários de drogas (Silva,
2014).
Todavia, o deslocamento da questão do uso de drogas da esfera
jurídico-penal para a esfera sanitária não significou – e não significa –,
necessariamente, uma ruptura absoluta com o modelo repressivo e

336
O “dispositivo do crack”: estratégia, saber e poder

punitivo. Segundo Silva (2014), a partir da propagação da narrativa da


“epidemia do crack” e do consequente pânico social produzido, mesmo no
campo da saúde passaram a ser defendidas de forma mais acentuada
modalidades de tratamento repressivas, coercitivas e segregativas,
revelando um atravessamento e imiscuição entre o campo jurídico-penal e
o campo sanitário, que podem alcançar a indiferenciação. Observa-se aqui
o retorno do continuum e cumplicidade entre o tratamento médico e a
instituição judiciária já denunciados por Foucault em relação à loucura
(Silva, 2014). E cabe lembrar que, no Brasil, o discurso médico e sanitário
também esteve na base da proibição das drogas e, portanto, de sua
configuração como uma questão de segurança pública. Antes de seu
deslocamento ao campo sanitário, o uso de drogas só se tornou uma
questão pertinente ao campo jurídico-penal porque pôde ser configurado
primeiramente como um problema de saúde e contou com o apoio e
agenciamentos das corporações médicas e psiquiátricas à política
proibicionista e de guerra às drogas (Lancetti, 2015).
A seguir, analiso a configuração paradoxal do campo de atenção e
cuidado aos usuários de crack em que, concomitantemente a um processo
colocado em marcha pelo Ministério da Saúde de multiplicação dos
Caps-AD e de adoção da estratégia de redução de danos como paradigma
da política de saúde sobre drogas, também se multiplicaram as chamadas
comunidades terapêuticas, bem como as ações moralizantes e repressivas
contra os usuários de crack, como as internações involuntárias e as
violentas e humilhantes ações policiais nas cenas abertas de uso.

A estratégia de redução de danos, os Caps-AD e o modo


psicossocial de atenção e cuidado em saúde mental
A política oficial do Ministério da Saúde voltada para os usuários de
drogas orienta que a oferta de cuidados e os tratamentos devem ser feitos
em espaços extra-hospitalares de atenção psicossocial especializada, a
partir de estratégias fundamentadas na lógica ampliada de redução de
danos e de acordo com os princípios da reforma psiquiátrica (Brasil,

337
Iara Flor Richwin

Ministério da Saúde, 2004). De acordo com a estratégia da redução de


danos, os tratamentos não devem estabelecer a abstinência como única
meta possível e viável para os usuários e orientam-se pelo princípio da
baixa exigência. O trabalho de atenção e cuidado deve se realizar a partir
do reconhecimento da singularidade de cada caso, do respeito às
diferenças e escolhas individuais e da construção de estratégias conjuntas
de diminuição dos danos provocados pelo uso de drogas, mas,
principalmente, de defesa e “ampliação” da vida, ressocialização e
desenvolvimento da cidadania e da autorregulação e autonomia. Trata-se
de uma abordagem “clínico-política” que não se reduz apenas a técnicas
de “mudanças comportamentais”, mas que deve, como estratégia,
promover a multiplicação das possibilidades de cuidado e tratamento para
o uso problemático de drogas, viabilizar o acesso e acolhimento, construir
redes e agir no território de modo a aumentar a “superfície de contato” e
os pontos de referência e suporte social para os usuários e seus familiares
(Brasil, Ministério da Saúde, 2004).
A política sanitária de atenção e cuidado aos usuários de drogas
promoveu uma expansão e multiplicação dos Caps-AD, que são descritos
como os equipamentos públicos mais especializados para esse
acompanhamento e constituem o principal ponto estratégico e articulador
da rede de atenção ao usuário de drogas. Os Caps são caracterizados por
um modo específico de fazer clínico e de atenção em saúde mental: o
modo psicossocial, que surge como oposição ao modo asilar (Costa-Rosa,
2000).
De acordo com Costa-Rosa (2000), o modo psicossocial caracteriza-se
pela consideração dos fatores políticos e biopsicosocioculturais como
determinantes centrais. É atribuída uma importância decisiva ao sujeito,
investe-se fundamentalmente na sua mobilização como fator principal do
tratamento e é priorizada a consideração do seu pertencimento a um
grupo familiar e social. A desospitalização, a desmedicalização e a
implicação subjetiva constituem metas radicais do modo psicossocial de
atenção em saúde mental. O ambiente sociocultural é considerado
determinante e a instituição deve funcionar como ponto de fala e escuta.

338
O “dispositivo do crack”: estratégia, saber e poder

Ao contrário da supressão dos sintomas como meta final e principal,


busca-se promover um reposicionamento do sujeito, uma implicação
subjetiva e sociocultural. Opera-se, portanto, uma ampliação do conceito
de tratamento e do conjunto de meios a ele dedicados, no sentido de um
“verdadeiro exercício estético” em que se visa à experimentação de novas
possibilidades de ser. Há, assim, um “deslocamento do polo
técnico-cientifico para o polo ético-estético” (Lancetti, citado por Costa
Rosa, 2000, p. 145), capaz de promover novas formas de existência e
sociabilidade.

As Comunidades Terapêuticas
A questão das comunidades terapêuticas (CT) destinadas à
“recuperação” de usuários de drogas no Brasil é bastante complexa e
nuançada e toca delicadas e relevantes questões políticas que, no entanto,
extrapolam os objetivos deste texto. É impossível generalizar a
multiplicidade e heterogeneidade das comunidades terapêuticas existentes
atualmente, mas apresento algumas linhas e características gerais que
grande parte delas parece compartilhar. Fundamentadas principalmente
em pressupostos morais e religiosos, a maioria das comunidades
terapêuticas brasileiras são chácaras ou fazendas, situadas em áreas rurais
(Ipea, 2016) relativamente afastadas das cidades e lideradas por grupos
religiosos (Miranda, 2015).
De modo geral, elas funcionam em regime de vida comunitária e têm
como paradigma de cuidado o isolamento e retirada dos usuários de seu
espaço de consumo e de relações sociais (em geral, por um período que
pode variar de 6 a 12 meses), a recuperação de uma disciplina
supostamente perdida pelo consumo de drogas (Rui, 2014), a
espiritualidade e o trabalho. O tratamento foca na acentuação dos
sofrimentos e aspectos dolorosos da experiência com as drogas, no
reconhecimento da perda do controle sobre o uso e no desenvolvimento de uma
identidade de “adicto em recuperação” (Rui, 2014).

339
Iara Flor Richwin

A maior parte das CTs compartilha o postulado de que a abstinência


é o único objetivo e saída possível para a dependência química,
fundamenta-se em preceitos morais e/ou religiosos e defende a ideia de
que o uso de drogas é decorrente de uma fraqueza moral e espiritual do
indivíduo, que exige a abstinência como “purificação” (Miranda, 2015),
tratamentos corretivos e a submissão a um poder superior. De modo geral,
a terapêutica das CTs é ancorada em rotinas comunitárias disciplinadas,
no exercício do trabalho (denominado “laborterapia”) e no recurso à
espiritualidade (Ipea, 2016).
É patente, portanto, que em torno dos usuários de crack conforma-se
um campo de ambiguidades e disputas terapêuticas e políticas (Rui, 2014):
de um lado, a multiplicação dos Caps e da rede de atenção psicossocial,
fundamentados nos princípios da reforma psiquiátrica, no modelo
psicossocial de atenção e cuidado e na política ampliada de redução de
danos; de outro lado, o modelo asilar e moral, que tem a abstinência como
ideal terapêutico e que ancora sua estratégia no isolamento e na tríade
trabalho-disciplina-espiritualidade (Ipea, 2016). O que chama a atenção,
como destacado por Rui (2014), é que o governo Federal financia ambas
as propostas e modelos de atenção e cuidado, destinando maior recurso e
investimento às comunidades terapêuticas, embora sua política sanitária
seja fundamentada no modelo psicossocial e em propostas de redução de
danos.
Portanto, o alarde e o pânico social e moral em torno do crack
influenciaram certa configuração das políticas que aponta para o
privilégio do investimento nas internações e nos incentivos às CTs, no
lugar de ampliar e investir nos Caps-AD, nos centros de convivência e
cooperativas de trabalho, nos projetos culturais, nos consultórios de rua,
nas estratégias de saúde da família e de redução de danos (Amarante,
2015). A sensação de urgência e de medo causada pela narrativa
epidêmica sobre o crack e pela concepção do usuário como um perigo para
si mesmo e para a sociedade incentiva e legitima práticas segregacionistas,
poupando o discurso médico ou qualquer argumentação elaborada para
justificar a internação como base do tratamento (Costa-Rosa, 2011). O

340
O “dispositivo do crack”: estratégia, saber e poder

isolamento e as internações se apresentam então como estratégias centrais,


que respondem, a um só tempo, ao argumento da necessidade de
“tratamento” dos indivíduos e à demanda de higienização e de segregação
desse “perigo” que ronda as cidades (Silva, 2014). Como destacado por
Amarante (2015), o “furor intervencionista-bélico” que se conformou em
torno da questão do crack tem ameaçado e desrespeitado as propostas de
tratamento psicossocial destinadas aos usuários de crack. Ou, nas palavras
de Lancetti (2015): “[a reforma psiquiátrica] com mobilização social,
participação de usuários e familiares e fundada na utopia de uma
sociedade sem manicômios, hoje se vê acuada e confrontada à utopia de
uma sociedade sem drogas” (p. 31-32).

Estratégia, saber e poder no dispositivo do crack


Cabe agora analisar essa rede de discursos, representações, imagens,
políticas públicas, ações e instituições conformada em torno do crack a
partir da definição e elaborações de Foucault acerca da noção de
dispositivo. Interessa-me buscar apreender os “jogos” que se estabelecem
entre esses elementos, seus efeitos recíprocos de “ressonância” ou de
“contradição” e as “sobredeterminações funcionais” engendradas a partir
de sua configuração enquanto uma rede (Foucault, 2016).
Foucault (2016) define o dispositivo como um tipo de formação que
tem como momento essencial de sua gênese um objetivo estratégico
dominante, uma certa manipulação e intervenção racional e organizada
em determinadas relações de força. E essa função estratégica relaciona-se
com a função maior de responder a uma urgência. Na constituição de um
dispositivo, é necessário que haja “um perigo a combater, como o de uma
epidemia, de uma falta de higiene etc.” (Foucault, 2016, p. 377). Esse foi o
caso, segundo Foucault (2016), da constituição do dispositivo médico-legal,
em que para a psiquiatria fundar sua intervenção fazendo-se reconhecer
como parte da higiene pública, não bastava o fato de ela ter uma doença
(a alienação mental) a tratar, mas era necessário também que ela tivesse o
perigo da loucura a combater. E, “como demonstrar que a loucura é um

341
Iara Flor Richwin

perigo, senão mostrando que existem casos extremos em que uma loucura (...)
pode bruscamente explodir em um crime monstruoso?" (Foucault, 2016, p. 378).
Ao refletirmos sobre a construção e propagação massiva do discurso
da “epidemia do crack” na cena social brasileira, torna-se nitidamente
identificável essa dimensão estratégica do dispositivo de fazer face a uma
urgência, a um perigo. Como explicitado, tanto os meios de
comunicação, quanto as campanhas de conscientização, exploram de
forma extrema a ideia de uma epidemia incontrolável do uso de uma
substância assustadora, que não apenas destrói aquele que a consome,
mas constitui um grande risco e perigo para a sociedade como um todo.
O crack pode ser considerado como a droga mais ressaltada como
ameaça pública, como perigo à ordem social, configurando, assim, a
urgência e o pânico social e moral, o perigo a combater, o inimigo a
enfrentar, que fundamentam e condicionam a constituição das
estratégias e mecanismos que formam o “dispositivo do crack”. Essa
construção impregnou-se de forma significativa nas políticas oficiais
relacionadas ao crack, cujos títulos carregam explicitamente o
posicionamento de combate e guerra (Amarante, 2015): “Crack: é possível
vencer”; “Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack”.
Ademais de ser uma rede de elementos heterogêneos, com uma função
estratégica e concreta, é possível depreender três dimensões principais
distinguidas por Foucault em relação aos dispositivos: o saber, o poder e a
subjetivação (Deleuze, 1990). Essas três grandes instâncias não possuem
contornos definitivos, rígidos e estanques, mas constituem cadeias de variáveis
relacionadas entre si (Deleuze, 1990), que se imbricam e se interpenetram. Neste
texto, analiso de forma conjunta as dimensões do saber e do poder5 em relação
ao dispositivo do crack, pois são dimensões que se mostram bastante intrincadas.
__________
5. Ressalto que a dimensão de subjetivação do dispositivo do crack – que não foi examinada neste
texto, mas foi abordada na tese de doutorado que lhe deu origem –, também instaura um campo
fértil de reflexão e análise, assim como as dimensões do poder e do saber. Como pretendo
desenvolver em trabalhos futuros, a dimensão de subjetivação apresenta importantes ressonâncias
e grande potência para o trabalho clínico com usuários de crack, ao possibilitar uma articulação do
campo sociopolítico ao campo subjetivo e permitir compreender os efeitos e incidências do
dispositivo do crack sobre a subjetividade dos usuários.

342
O “dispositivo do crack”: estratégia, saber e poder

Segundo Foucault (2016), um dispositivo sempre se desenvolve em


campos de força e relações de poder e, como tal, resulta do cruzamento
entre relações de poder e de saber. Portanto, ele está sempre inscrito numa
relação de poder e sempre ligado a configurações de saber que dele nascem,
mas que também o condicionam. “É isto, o dispositivo: estratégias de
relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles”
(Foucault, 2016, p. 367). Esse entrecruzamento e cossustentação entre
relações de saber e poder mostra-se de forma evidente e inequívoca no
fenômeno do crack na contemporaneidade brasileira, em que determinados
saberes e “verdades” construídos sobre o crack são eleitos para regular as
concepções e comportamentos em torno dele e justificar os mecanismos,
estratégias e aparatos acionados. Os dispositivos são “máquinas de fazer ver
e de fazer falar” que determinam curvas de visibilidade e de enunciação
(Deleuze, 1990). Enquanto alçam à luz e à visibilidade determinadas forças,
características e aspectos, produzem a invisibilidade e o silenciamento de
outros, determinando regimes de verdade e de poder.
Tomemos, como exemplo, as ações contundentes e violentas como as
que ocorreram na chamada “cracolândia de São Paulo” em janeiro de
2012, em que a polícia, com a intenção de eliminar os usuários de crack
daquele território, ocupou militarmente o espaço, prendeu e coagiu
centenas de usuários a demandarem internação “voluntária”,
impingindo-lhes declaradamente dor e sofrimento e tocando-os como
gado para que andassem em “procissão” e sem rumo (Lancetti, 2015;
Rocha & Silva, 2016; Rui, 2014; Tiburi & Dias, 2013). Ou, ainda, a
enorme, truculenta e espetacularizada operação policial que tomou o
mesmo espaço em maio de 2017, demoliu imóveis ainda ocupados e
expulsou de forma violenta as pessoas do local, sem proporcionar abrigo
alternativo e coagindo-os à errância.6
Para que essas ações sejam justificáveis, bem como outras ações
violentas que se dão nos espaços públicos de consumo de crack – tentativas
de internações involuntárias e compulsórias ou, ainda, “expedientes antinoia”,
__________
6. http://coletivodar.org/cracolandia-acabou-5-perguntas-para-entender-questao/

343
Iara Flor Richwin

como os chuveiros desenvolvidos na cracolândia paulistana que, instalados


nas marquises dos prédios, molham a calçada para impedir que ali se
instalem os “craqueiros” com seus “hábitos imorais” (Rui, 2014) –, faz-se
necessária uma determinada “verdade” sobre o crack. E essa narrativa que
o configura como droga monstruosa e sequestradora, que transforma seus
usuários em zumbis e subtrai-lhes qualquer traço de humanidade serve
bem para legitimar esse tipo de ações e estratégias “não-humanas”,
relacionadas não com tentativas de tratar ou cuidar dos usuários de crack,
mas sim com posturas repressivas, moralistas e higienistas, com formas de
controle urbano, com interesses financeiros, políticos e eleitorais.
Além de justificar e fundamentar práticas repressivas e violentas, essa
verdade construída sobre o crack e os discursos alarmistas e demonizadores
parecem relacionar-se também com outras estratégias e relações de poder:
tal como aventado pelo estudo realizado pela Senad (Garcia, 2016), o
pânico social criado em torno do crack contribui também para o processo de
naturalização da desigualdade social no Brasil, ao deslocar para uma
substância química toda a complexidade da questão e escamotear os graves
problemas de natureza social, política e cultural intimamente implicados.
Além disso, cabe traçar um paralelo com a pretensa “epidemia” de
crack que atingiu os Estados Unidos da América do final da década de 1980
até meados da década de 1990. A construção e difusão de mitos sobre a
destrutividade do crack, sua demonização e os consequentes efeitos de pânico
social levaram à adoção de medidas legais e punitivas muito mais rigorosas e
severas para os usuários de crack do que para usuários de outras drogas
ilícitas (Garcia, 2016). Ocorre que o uso de crack nos Estados Unidos foi
muito maior entre negros e latinos pobres do que entre brancos, o que levou
autores como Bourgois (2013) e Hart (2014) a concluírem que a política
adotada nos EUA com relação ao crack, de fundo acentuadamente racista,
contribuiu para criminalizar a pobreza e encarcerar milhares de jovens
negros e, ainda, como apontado por Garcia (2016), agravou o preconceito
contra esse grupo, ao associá-lo com uma droga demonizada pela sociedade.
Nesse sentido e diante do contexto de proibicionismo e de uma população
carcerária brasileira majoritariamente negra (Brasil, Ministério da Justiça,
2014), cabe interrogar também em que medida a demonização do crack e o

344
O “dispositivo do crack”: estratégia, saber e poder

pânico social e moral em torno dessa droga se relacionam com a


criminalização, marginalização e encarceramento da população negra e
pobre na sociedade brasileira contemporânea.
O discurso de intolerância, combate e repressão ao crack é usado também
como legitimação da intolerância, repressão e gestão policial e judiciária da
pobreza e do segmento da população mais precariamente inserido na organização
social (moradores de rua, usuários de drogas, “pequenos ladrões”), interpretado
como lixo e refugo humano, imprestável para a sociedade (Rodrigues, 2016). E
além de se relacionar com a desigualdade social, o dispositivo das drogas, como
apontado por Tiburi e Dias (2013), se articula também com outra forma de
desigualdade, “aquela que está no íntimo da cultura, a mesma que produz o
racismo, o machismo, a homofobia, os bandidos de um modo geral” (p. 106).
É necessário lembrar e ressaltar que o “dispositivo do crack” e seus
efeitos não se relacionam apenas com medidas inequivocamente
repressivas e violentas, com mecanismos de coação ou estratégias de
higienização. Como explicitado anteriormente, a centralidade e
hipervisibilidade do crack também impulsionaram e multiplicaram as
políticas de saúde pública e as estratégias e serviços de atenção e cuidado
para os usuários de drogas e provocaram o surgimento de disputas sobre
os modelos de tratamento e intervenção, acirraram os debates sobre as
internações involuntária e compulsória e as querelas sobre os
investimentos públicos em comunidades terapêuticas (Rui, 2014). Nesse
sentido, há de se reconhecer, como sugerido por Rui (2014), que a ampla
exposição em torno do crack teve certa positividade, pois produziu política.
O que chama a atenção, portanto, é que a questão do crack está no cerne
de uma disputa sobre a verdade7, atrelada de forma imbricada a uma
disputa pelo poder, um conferindo ao outro sustentação e densidade8.
__________
7. Como também destacado por Tiburi e Dias (2013) em relação às drogas em geral.
8. Isso se revela de forma paroxística no controverso terreno da cracolândia de São Paulo, em que
coexistem, intimamente e de forma contenciosa, estratégias de repressão e vigilância e estratégias
de cuidado e assistência. Mesmo se olharmos somente para o lado do cuidado e assistência, ele
não deixa de ser conflituoso e permeado por confrontos e litígios, que alcançaram inclusive a
polarização ideológica entre dois partidos que tomaram o crack como tema importante (Rocha &
Silva, 2016). Assim, o programa estadual “Recomeço” (PSDB) disputou com o programa
municipal “De Braços Abertos” (PT), ao longo da gestão do ex-prefeito Fernando Haddad, a
verdade sobre os modelos de conceber e intervir sobre a questão do crack, cada qual fundado em
determinados paradigmas de atenção e cuidado, que divergiam entre si.

345
Iara Flor Richwin

O panorama mais amplo e contextual aberto pela noção foucaultiana


de biopolítica auxilia-nos a compreender esses complexos arranjos
relacionados ao “dispositivo do crack” e a frequente imiscuição entre
política de saúde e de assistência e ações repressivas, punitivas, higienistas
e policiais. A biopolítica pode ser definida como a “crescente implicação
da vida natural do homem nos mecanismos e nos cálculos do poder”
(Agamben, 2010, p. 116). Essa aliança entre vida e política, essa
“tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo – uma espécie
de estatização do biológico” (Foucault, 2005, p. 286) –, estabelece a
continuidade e o aprimoramento da vida, a otimização das condições de
saúde e a longevidade dos indivíduos e das populações como valores
políticos (Tiburi & Dias, 2013), objetos do saber e alvos dos mecanismos,
estratégias e técnicas do poder.
Contudo, o biopoder pode gerar tanto manifestações positivas quanto
sujeições abusivas e violentas (Bourgois, 2013). Os procedimentos
relativos à vida dos indivíduos, ao seu corpo e à sua saúde também podem
se configurar como mecanismos de higienização, repressão e controle
social. Como apontado por Bourgois (2013), se é possível construir uma
visão dos efeitos positivos do biopoder, que busca produzir cidadãos sãos,
vacinados, que se exercitam e mantêm belos corpos livres do colesterol, é
necessário enxergar também que, para um determinado segmento da
sociedade, impõe-se uma relação eminentemente negativa com o
biopoder, que é abusivo, encarcera, criminaliza, exclui e marginaliza
populações estruturalmente vulneráveis.

Considerações Finais
Para concluir, considero relevante e profícuo estabelecer uma
aproximação desse cerrado entrecruzamento e cossustentação entre as
relações de saber e de poder revelado pela noção de “dispositivo do crack”
daquilo que Butler (2016) descreve como “enquadramento”. O
enquadramento é entendido por Butler (2016) como “molduras”,
categorias perceptuais e normas que atuam para diferenciar as vidas por

346
O “dispositivo do crack”: estratégia, saber e poder

meio da maneira como as apresentam, determinando quais sujeitos são


reconhecíveis como sujeitos, quais vidas são reconhecidas como vida
legítima e valiosa, digna de luto e lamentação e, portanto, digna de
cuidado e proteção.
Destaca-se, assim, que as construções narrativas que compõem o
dispositivo do crack, ao representarem os usuários como mortos-vivos,
zumbis, refugo humano, monstros que perderam os principais traços de
humanidade, criam um enquadramento sobre esses sujeitos como vidas
não facilmente reconhecíveis como vidas legítimas e, por conseguinte,
como vidas não reconhecíveis como dignas de luto, lamentação, cuidado e
proteção, como bem o demonstram inúmeras manifestações e comentários
sobre os usuários de crack, carregados de hostilidade, ódio, repugnância,
medo e, no limite, desejos de extermínio.
A análise aqui empreendida sobre o dispositivo do crack revela que os
enquadramentos por ele produzidos, ao engendrarem um processo de
esvaziamento da dimensão humana dos usuários e de deslegitimação de
suas vidas, interferem diretamente no campo de intervenções, estratégias,
atenção e cuidado, justificando e legitimando intervenções igualmente
desumanas, mecanismos repressivos, moralistas, segregacionistas e
higienistas. Articulados a isso, os outros efeitos destacados como
resultantes desses enquadramentos construídos em torno do crack – a
contribuição com a naturalização da desigualdade social no Brasil (Garcia,
2016) e a legitimação da intolerância, da repressão, da criminalização e da
gestão policial e judiciária da população negra e pobre no Brasil
(Rodrigues, 2016) – revelam, como aponta Butler (2016), que “a
percepção e a política são apenas duas modalidades do mesmo processo
por meio do qual o estatuto ontológico de uma determinada população
vê-se comprometido e suspenso” (p. 51).
Impõe-se, portanto, uma obrigação ética e política de reformulação
das condições de visibilidade e dos enquadramentos que são feitos sobre os
usuários de crack, que possibilitem restituir sua dimensão humana, seu
reconhecimento como sujeitos e como vidas legítimas e valiosas, dignas de
cuidado, proteção e das condições sociais e políticas que tornam uma

347
Iara Flor Richwin

“vida vivível” (Butler, 2016). Impõe-se uma reformulação da maneira


como os usuários de crack são narrados e apresentados – e, portanto,
percebidos e reconhecidos – que permitam repensar o campo sociopolítico
no qual se inscrevem e, sobretudo, as políticas públicas, as estratégias e os
mecanismos acionados para lidar com a questão.

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352
CAPÍTULO 4.3

Sofrimento de famílias pela morte


violenta de adolescentes envolvidos com
o tráfico de drogas e sua trajetória no
Sistema de Garantia de Direitos
Carla Dalbosco
Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira
Olga Maria Pimentel Jacobina

Introdução
A incapacidade de controlar a circulação de drogas ilegais e o
contrabando de armas consiste em um relevante problema global na
atualidade. Identifica-se a existência de um forte aparato criminal,
montado para garantir que essas substâncias circulem em diferentes
regiões com impressionante logística e eficiência. Segundo Zaluar (2007),
em países como o Brasil, a rede do narcotráfico e seu poder econômico é
uma das principais causas relacionadas à emergência da violência que
assola os territórios urbanos.
Nessa esteira, a mortalidade de adolescentes e jovens associada à
violência do tráfico de drogas constitui um grave problema de saúde
pública e representa importante demanda para as políticas protetivas. Nas
últimas décadas, pesquisadores e a sociedade em geral têm acompanhado
de forma atônita o crescimento exponencial nos índices de mortalidade
por causas externas, principalmente, entre homens na faixa dos 15 aos 29
anos. Entre 1980 e 2014, o registro de homicídios por arma de fogo entre
jovens cresceu 699,5% no país, pulando de 3.159 em 1980, para 25.255
em 2014. Porém, a escalada da violência começa antes, aos 13 anos de
idade, quando as taxas indicam uma espiral crescente, passando de 1,1 (12

353
Carla Dalbosco et al

anos) para 4,0 (13 anos) mortes a cada 100 mil jovens. A partir daí, a
incidência da letalidade cresce de forma contínua até os 20 anos de idade
(67,4/100 mil) (Waiselfisz, 2016).
De acordo com o Mapa da Violência 2016 (Waiselfisz, 2016), neste
mesmo período temporal, 94,4% das vítimas de armas de fogo no país
eram do sexo masculino e morreram 2,6 vezes mais negros do que
brancos. Em 2014, os jovens de 15 a 29 anos representavam,
aproximadamente, 26% da população, mas essa faixa etária compôs 60%
das vítimas. Assim, quando comparados à população em geral, os dados
possibilitam afirmar que a principal vítima da violência homicida no
Brasil realmente é a juventude.
Zaluar (2007) refere que há um enigma no entendimento da violência
brutal que vitimiza homens jovens no Brasil, pois este fenômeno não tem
aumento correspondente entre mulheres em geral e homens de outra faixa
etária. Para a autora, entre os fatores associados, destaca-se a questão da
exclusão social, além do crime organizado em torno de drogas e armas.
Em segundo lugar, o país enfrenta uma inércia institucional ligada a
violações dos direitos civis, corrupção institucional e a ineficiência do
sistema de justiça, que cria “ilhas de impunidade”. Um terceiro aspecto a
ser levado em conta, são os processos microssociais que envolvem a
construção subjetiva de uma masculinidade pautada na demonstração de
força.
Devido à sua cronicidade, uma condição de violência pode ser
incorporada à cultura de tal forma que adquire contornos de
invisibilidade para os que vivem naquele contexto específico. Um alto
nível de violência constitui um aspecto habitual da vida de muitos grupos
sociais, permeando a relação entre seus membros e ditando
comportamentos e valores pelos quais se afirmam (Figueiredo, 1998;
Michaud, 2001). Isso ajuda a explicar por que na população juvenil,
sobretudo ao pensarmos em adolescentes que cumprem medida
socioeducativa, tantas vezes parece não haver uma fronteira rígida: os
mesmos jovens destacam-se tanto como vítimas, quanto como autores de
crimes violentos.

354
Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes envolvidos com o tráfico

O cenário de falta de solução para problemas estruturais e básicos,


somado à manutenção de condições e modos de vida inadequados,
enfatiza a importância de ações intersetoriais para a prevenção e a
formulação de políticas (Barreto & Carmo, 2007). Todavia, mais
importante que entender por que este fenômeno ocorre, é questionar por
que o país tem falhado tanto em políticas públicas que deem conta de
estancar o problema. Há uma culpabilização das vítimas que deveriam ser
foco das ações de proteção. A violência é naturalizada e é como se esses
jovens já tivessem seus destinos traçados. A visibilidade do problema só
fica evidente a partir da prática de algum ato infracional, em que o jovem
passa de vítima a algoz, reacendendo a discussão sobre a diminuição da
maioridade penal como solução para o enfrentamento da violência. Da
mesma forma, pouco se tem estudado sobre as ressonâncias geradas nas
famílias desses jovens em decorrência da perda, as quais, muitas vezes, são
afetadas de modo irreversível.
Este texto tem por objetivo apresentar alguns elementos relacionados
a essa discussão. Para tal, partiremos da trajetória dos adolescentes em
conflito com a lei no Sistema de Garantia de Direitos (SGD). Após, serão
apresentados aspectos do desenvolvimento desses adolescentes e da
configuração de suas redes de inserção, com destaque para a rede do
narcotráfico, que ocupa o vazio deixado pelo sistema formal de proteção e
pela família. Por fim, serão trazidas algumas reflexões sobre o impacto
gerado nas famílias pelo ciclo de sofrimento e violência.

Sistema de Garantia de Direitos


Com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA
(1990) temos a regulação de um sistema de garantia do gozo dos direitos
fundamentais da criança e do adolescente, sem prejuízo à proteção
integral, por meio de um conjunto articulado de ações governamentais e
não-governamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios. A esse preceito se dá o nome de Sistema de Garantia de

355
Carla Dalbosco et al

Direitos (SGD) que, conforme sinaliza Garcia (1999), apoia-se em três


grandes eixos:
Promoção – delibera e formula a política de atendimento de direitos,
priorizando e qualificando como direito o atendimento das
necessidades básicas da criança e do adolescente, por meio das
demais políticas públicas;
Defesa – responsabiliza o Estado, a Sociedade e a família pelo
não-atendimento, atendimento irregular ou violação dos direitos
individuais ou coletivos das crianças e adolescentes. Assegura a
exigibilidade dos direitos;
Controle Social – se reporta à vigilância do cumprimento dos preceitos
legais e constitucionais e infra-constitucionais, ao controle externo
não-institucional da ação do Poder Público (Estado-governo e
Sociedade civil organizada).

Garcia (1999) indica que o SGD se caracteriza por uma interação de


espaços, instrumentos e atores no interior de cada um dos eixos, e por uma
interação complementar e retroalimentadora entre eles, de modo a
garantir a Proteção Integral à criança e ao adolescente. Dessa forma, a
partir da Convenção da ONU sobre Direitos da Criança, em 1989,
formou-se um quadro jurídico ideal que norteia o atendimento à criança e
ao adolescente (Neto, 1999).
No entanto, os resultados de uma pesquisa sobre a trajetória no SGD
de adolescentes que cometeram atos infracionais (Jacobina, 2011)
mostram uma sistemática desarticulação desse Sistema de Proteção. Os
registros apontam que os atendimentos realizados não trazem resultados
práticos para a superação da situação de vulnerabilidade apresentada,
antes que o adolescente cometesse algum ato infracional. Via de regra, a
família tem que dar conta do adolescente sozinha. A comunicação entre
diferentes instituições pelas quais os adolescentes e familiares passam é
unilateral e morosa, comprometendo o acompanhamento e podendo
agravar a situação de vulnerabilidade da família. Quando comparadas às

356
Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes envolvidos com o tráfico

medidas socioeducativas (artigo 112), as medidas de proteção previstas no


ECA (artigo 101) recebem uma fiscalização episódica e isolada, levando o
adolescente à maior vulnerabilidade; e as medidas socioeducativas têm um
caráter mais regulatório do que propriamente socioeducativo.
Percebe-se que quando há ação e/ou intervenção no sentido de
executar as medidas, seja de proteção ou socioeducativa, estas são
fragmentadas, descoordenadas. Nesse sentido, Pakman (1999) afirma que
a prática profissional baseada nesse paradigma que fragmenta é
assistêmica, desencarnada e não-reflexiva, criando um mundo estéril,
disfarçado de pragmático. A resposta dada pelo Estado parece não ter
relação com os pedidos de ajuda realizados pelas famílias com
adolescentes em situação de vulnerabilidade e que cometeram algum ato
infracional. Isso nos leva a pensar que a resposta do Estado está longe de
ser a que as famílias precisam para se tornarem sujeitos de sua própria
história.
Dessa forma, compreendemos que, enquanto a demanda desse
adolescente e dessa família não é compreendida e apreendida de fato pelo
Sistema de Garantia de Direitos, as famílias ficam em um completo
desamparo, tendo que frequentemente ser devassadas para receber
alguma ajuda que, por via de regra, não tem desdobramento prático de
superação da situação apresentada inicialmente. E, ainda mais grave, é a
situação dos adolescentes que, quando não absorvidos pelo sistema
socioeducativo, ficam ainda mais vulneráveis ao grau extremo de exclusão,
ou seja, ao extermínio (Santos, 2010).
Waiselfisz (2015) complementa essa posição ao dizer que,
diariamente, temos acesso a notícias relacionadas a graves violações
praticadas por pessoas ou instituições que deveriam ter por missão zelar
pela vida e pela integridade de crianças e adolescentes. Isso mostra que de
nada adianta a existência de um aparato de estatutos, leis e resoluções
visando à garantia de direitos e a proteção desse público, se os mesmos
não forem implementados de forma adequada. Atualmente, o Brasil está
no rol de países que mais matam a sua juventude, ocupando um nada
honroso terceiro lugar.

357
Carla Dalbosco et al

Recorte específico sobre a mortalidade de adolescentes de 16 a 17


anos por causas violentas mostra que são eles que lideram as estatísticas,
representando quase metade das causas de mortalidade na faixa etária
(43,1% e 48,2% respectivamente). Só em 2013, foram cerca de 10,3
adolescentes assassinados a cada dia. O perfil desse grupo mostra que
93% do total de vítimas naquele ano eram do sexo masculino e a taxa de
adolescentes negros assassinados foi de 66,3 contra 24,2 de brancos (a
cada 100 mil habitantes). Isso significa que, proporcionalmente, morreram
quase três vezes mais negros que brancos. Em relação à escolaridade,
83,7% tinha até sete anos de estudo, o que mostra um desempenho
significativamente menor que o conjunto da população nessa mesma faixa
etária (Waiselfisz, 2015).
Do ponto de vista de saúde, esses dados acendem um alerta em vários
níveis. A situação de pobreza e carências em que se encontra boa parte da
população brasileira, a falta de recursos considerados imprescindíveis ao
bom desenvolvimento físico e mental, juntamente com a urbanização
acelerada sem adequada infraestrutura (saneamento, habitação,
educação), entre outros, implica em maiores custos para o sistema de
saúde. Sobretudo, é preciso atuar especificamente em prol da saúde da
população negra, que apresenta níveis de saúde abaixo dos observados na
população em geral (Barreto & Carmo, 2007).
Para agravar ainda mais o quadro, observa-se por parte da sociedade
um sentimento crescente de insegurança e medo diante da ocorrência de
crimes. Esse cenário conduz ao desejo pelo aumento de punições mais
rigorosas para a chamada delinquência juvenil. Adorno (1998) questiona
por que se deve considerar que reações punitivas seriam mais adequadas
do que respostas não punitivas para os problemas sociais:
Nas acres crônicas da insegurança e do medo do crime, nos fatos e
acontecimentos que sugerem a fragilidade do Estado em velar pela
segurança dos cidadãos e proteger-lhes os bens, materiais e
simbólicos, nos cenários e horizontes reveladores dos confrontos entre
defensores e opositores dos direitos humanos, mesmo para aqueles
encarcerados, julgados e condenados pela justiça criminal, tudo

358
Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes envolvidos com o tráfico

converge para um único e mesmo propósito: o de punir mais, com


maior eficiência e maior exemplaridade (Adorno, 1998, p. 33).

De acordo com Feffermann (2013), as ofertas do Estado para jovens


que vivem nas periferias das grandes cidades são o encarceramento e a
execução sumária. Fica evidente que, onde as redes de proteção falham, é
criado um cenário propício para o aliciamento de jovens pelo narcotráfico.

O tráfico de drogas como rede de inserção


O tráfico de drogas possui uma grande parcela de responsabilidade
no crescimento da criminalidade e violência no Brasil, à medida que
desafia autoridades, corrompe a força policial, mas principalmente,
controla a população de muitas comunidades (Carreteiro, 2002; Silva &
Urani, 2002).
Segundo Zaluar (2007), o estilo de sociedade baseada no consumo
massivo adotado pelo país estimula valores ferozmente individualistas e
também favorece a ocorrência de crimes contra a propriedade e contra a
vida. Na esteira da miragem de “fazer dinheiro fácil”, o tráfico de drogas
entrou como uma tendência que integra o desenvolvimento social e
econômico.
Ador no (1998) completa essa visão ao dizer que, na
contemporaneidade, o narcotráfico articula um conjunto diversificado de
atividades e operações, que vão desde a produção e a circulação, até a
distribuição e o consumo. Pelo seu caráter ilícito, essa atividade afeta o
tecido social e mobiliza uma “economia subterrânea”, contando com uma
ampla rede de colaboradores. Muitos jovens são recrutados na condição
de trabalhadores assalariados, rompendo com a tradicional distinção entre
trabalho e delinquência, pois o crime é visto como um negócio. Porém,
longe de criar uma rede de solidariedade, essa carreira é movida pela
competitividade, desconfiança e individualismo exacerbado. A ocorrência
de guerra entre quadrilhas faz com que esses jovens, desde cedo, sejam
socializados para lidar com a morte.

359
Carla Dalbosco et al

Nesse sentido, seria, de um lado, importante compreender que há


uma relação entre a situação de pobreza, a condição de exclusão social, a
formação de identidade e a vulnerabilidade às condutas de risco (como o
envolvimento com drogas – seja pelo consumo como pela inserção no
tráfico – e outras práticas infracionais). Por outro lado, e ao mesmo tempo,
faz-se também importante examinar a função dessas condutas de risco em
tal contexto (Sudbrack, 1998).
Vivemos hoje em uma sociedade em que os instrumentos tradicionais
de socialização e os porta-vozes privilegiados de transmissão dos valores a
serem seguidos (principalmente a família e a escola) mudaram ou tiveram
sua força e sua eficácia diminuída. E as dificuldades inerentes ao processo
de busca pela autonomia dos adolescentes são maiores quando a função
de autoridade não está sendo exercida de forma plena e não existem
adultos que possam proporcionar essa assistência.
Se os adolescentes não encontram nas redes tradicionais de
socialização (família e escola) as referências que necessitam, passam a
buscá-las em outros contextos. E essa busca de figuras alternativas de
referência sólida de autoridade pode representar fator de risco para o
envolvimento com drogas e a sua inserção no tráfico. Nesse contexto, a
transgressão pode surgir como um pedido de ajuda do jovem diante da
fragilidade dos seus vínculos. Ela remete o adolescente à busca da Lei, à
busca de uma autoridade “sólida”, firme, consistente, num movimento
denominado “da falta do pai à busca de lei” (Sudbrack, 1987).
Nesse momento de vulnerabilidade, o adolescente pode passar a
transitar por outros contextos grupais, como as gangues, onde ele acredita
conseguir enfrentar o mal-estar gerado pelas situações adversas. Mas esses
grupos não são grupos sólidos de pertença, mas “pseudo-grupos”, pois não
se firmam, representam apenas uma transição; surgem e acabam com
uma rapidez voraz, com relações bastante instáveis. Esses grupos
propiciam a internalização do ódio e do confronto como forma de lidar
com sua condição de desqualificação, marginalidade ou exclusão,
exercendo forte influência sobre sua construção identitária (Pereira, 2009).

360
Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes envolvidos com o tráfico

O adolescente luta para sobreviver aos impasses que o impossibilitam


de pertencer aos contextos formais de socialização. Tanto na família,
como na escola e entre pares, à medida que seus esforços em pertencer lhe
são negados, aumentam os sentimentos de frustração, ódio e revolta,
impulsionando-o à internalização de uma cultura de violência, destruição
do outro e de si mesmo na busca pela sobrevivência.
Diante da autoridade inconsistente e fragilizada na vida do
adolescente, e de uma afiliação social interrompida nos grupos
construtivos entre pares, podemos pensar que a inserção deste no tráfico
de drogas representa a sua luta para sobreviver ao sofrimento causado
pelas dificuldades relacionais, sociais, econômicas e políticas que
experimenta no dia a dia, além de ser a única saída encontrada por ele
para sua construção identitária – possibilitando-lhe pertencer – buscando
novas formas de filiação e afiliação social (Pereira, 2009).
No entanto, a vinculação com outros adolescentes e jovens envolvidos
com o tráfico ou com os chefes do tráfico implica uma trama relacional
paradoxal que, ao mesmo tempo em que pode vir a satisfazer as
necessidades identitárias e de pertença, é o fator de maior risco e de
exclusão, agindo perversamente contra o adolescente.
Quando se pergunta aos adolescentes por que entram para o tráfico
de drogas, é comum apontarem a questão da condição socioeconômica; o
status social e poder de sedução (mulheres, fama e ibope) que o tráfico lhes
confere; o fato de conviverem com pessoas nele já inseridas, que
influenciam outros a entrarem; a falta de segurança que sentem; a
inevitável humilhação que sofrem por parte daqueles que deveriam
exercer a função de autoridade, segurança e proteção na comunidade
(família, escola, Estado, Segurança Pública), o que os deixa frustrados e
desiludidos; e a própria questão do consumo das drogas: vendê-las para
consumi-las. Além disso, também é comum encontrarmos nos relatos dos
adolescentes que, quando encontram emprego no mercado de trabalho
formal, sentem-se explorados, tratados de forma indigna, trabalhando
mais de 12 horas por dia e ganhando muito pouco. Na verdade, eles
relatam uma sobreposição de situações de vulnerabilidade e fragilidade de

361
Carla Dalbosco et al

vinculação afetiva que vivenciam, das quais o tráfico tira proveito (Pereira,
2009).
Em outras palavras, associar-se ao tráfico traz uma segurança
adicional. No imaginário desse grupo, as armas de fogo oferecem
proteção, e o cometimento de crimes para obter mais dinheiro e mais
armas gera um status dentro do grupo, impondo respeito e admiração. Há
um culto à virilidade e à exibição violenta de poder, o que certamente
atrai o envolvimento de muitos adolescentes, que veem sua atuação como
“soldado” da facção como uma atividade sedutora. Não se pode esquecer
que esses jovens também são vulneráveis devido a outros fatores que
dificultam sua inserção na sociedade, tais como: o contexto de pobreza e
urbanização deficitária, sistema educacional ineficiente, falta de formação
profissional e diminuição de oportunidades de emprego, o que revela o
fenômeno da violência como um fenômeno multidimensional (Zaluar,
2007, 2004).
É importante ressaltar, ainda, nesse processo de inserção do
adolescente no tráfico, o desvio da função de regulação e controle social,
isto é, de autoridade de outra instituição importante no processo de
construção identitária do adolescente em contexto de vulnerabilidade
social: a polícia. Aumenta, a cada dia, a insegurança dos adolescentes na
comunidade, diante da falta do exercício de proteção e de autoridade da
polícia. Os adolescentes se tornam invisíveis aos olhos dela e percebem
que as funções de proteção e controle social, não advindas das instituições
responsáveis, como a família, a escola, o Sistema de Garantia de Direitos
(já abordadas anteriormente), e a Segurança Pública ficam a cargo deles
mesmos, pois precisam garantir sua sobrevivência. A sociedade também
reforça a invisibilidade do adolescente quando exige a violência policial
como mecanismo legítimo de intermediação das relações sociais (Pereira,
2009).
A polícia deixa de exercer sua função de segurança e proteção para
com o adolescente, para desempenhar o controle, o poder e a ameaça.
Desenvolve um olhar estigmatizante sobre o adolescente, reproduzindo a

362
Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes envolvidos com o tráfico

ideia de que a pobreza está diretamente relacionada à sua criminalidade,


inferioridade e periculosidade.
O adolescente, abandonado à própria sorte, desenvolve, por um lado,
a cultura do medo, tendo que conviver diariamente com a presença e a
força do tráfico na periferia das cidades, sem ter como se defender senão
por si mesmo. Por outro lado, soma-se à cultura do medo, a cultura do
ódio, regida pelo sentimento de injustiça. Se não encontra funções de
proteção e autoridade na família, na escola ou na Segurança Pública,
busca fazer “justiça com as próprias mãos”. Esse sentimento de ódio é
sustentado pelo tráfico, que se torna, então, o vingador da comunidade
(Pereira, 2009).

Luto Solitário
Na esteira dessas falhas em diversos níveis do sistema de proteção, a
sensação de “falta de justiça” vivida pelas famílias que perdem filhos por
situação de violência é real e está atrelada ao grau de impunidade
existente no Brasil. É sabido que uma porcentagem alta dos homicídios
que ocorrem nas periferias não está sujeita à investigação policial e seus
autores nunca são identificados (Zaluar, 2007). A violência e as mortes da
periferia são invisíveis, silenciosas, passam despercebidas em nossa
sociedade e, em sua maioria, não chegam a ganhar um espaço que
dimensione seu grau de complexidade. Soares, Bill e Athayde (2005) são
duros ao falar que “cadáveres de rapazes empilhados são o lixo a varrer
para baixo do tapete da consciência nacional: alguns traficantes a menos;
vida que segue; eugenia avança.” (p. 93).
Por outro lado, é sabido que as mudanças que incidem na dinâmica
familiar afetam o desenvolvimento de crianças e adolescentes, mas há
carência de maior produção sobre as ressonâncias geradas nas famílias
desses jovens em decorrência da perda violenta. É na família que nascem e
se desenvolvem os afetos, mas é nela também podem aparecer conflitos,
sofrimento, injustiça e mesmo violência, deixando os sujeitos mais
vulneráveis. A ocorrência da violência se dá primordialmente no

363
Carla Dalbosco et al

entrelaçamento entre os contextos familiar e social (Bucher-Maluschke,


2004).
A experiência da perda é conceituada como uma reação emocional,
comportamental e fisiológica individual de quem perdeu alguém. Já o
enlutamento é a expressão ativa dessa experiência, sendo pautado pelas
convenções sociais e costumes relacionados à morte. Até o século XIX, o
luto era vivido por meio de rituais coletivos, nos quais era valorizada a
expressão pública da vivência da perda. Na contemporaneidade, houve o
que podemos chamar de uma “privatização do sofrimento” e o luto
passou a ser visto como algo do âmbito do indivíduo e da família, com
pouca ou nenhuma inclusão das suas redes de relações sociais, que pouco
participam da elaboração deste sofrimento (Luna, 2013). A
impossibilidade de expressão pública faz com que o processo de
enlutamento seja vivido na solidão, o que pode aumentar o sentimento
individual de exclusão social; sobretudo se pensarmos em mortes que
ocorreram na esteira da realização de alguma atividade ilícita. Nesses
casos, é possível inferir que haja um constrangimento maior, inibindo as
demonstrações por parte da família.
A perspectiva sistêmico-familiar procura abordar o processo de luto a
partir das relações constituídas na família, pois a perda de um membro
influencia a sua dinâmica e provoca alterações no sistema, demandando
reorganização. A coesão dos membros, aliada à existência de espaço para
a comunicação e expressão de sentimentos, pode contribuir para o
processo de ajuste adaptativo (Delalibera, Presa, Coelho, Barbosa, &
Pereira Franco, 2015; Minuchin, 1990). Na perspectiva do ciclo de vida, é
esperado que as famílias vivenciem um roteiro até certo ponto previsível,
que vai da constituição do núcleo familiar, nascimento dos filhos, até a
meia-idade, velhice e morte. Quando essa lógica temporal é desafiada pela
morte prematura de um filho, o impacto tende a ser maior, pois as
expectativas geracionais são revertidas. Todo o sistema é afetado de forma
devastadora e traumática e as ressonâncias passam a ser sentidas por
todos: “quando seus pais morrem, você perde seu passado; quando seus
filhos morrem, você perde seu futuro” (Walsh & McGoldrick, 1998, p. 63).

364
Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes envolvidos com o tráfico

É importante que a família elabore novas respostas frente ao sofrimento


enfrentado, mas essa construção só será possível por meio do
fortalecimento dos laços comunitários.
Uma revisão sistemática sobre a dinâmica familiar no processo de
luto evidenciou que famílias disfuncionais apresentam maior
sintomatologia psicopatológica (ansiedade, depressão), pior funcionamento
social, dificuldade de acesso a recursos comunitários e apoio social, além
de menor capacidade funcional no trabalho. No caso de famílias que
enfrentam mortes súbitas, as mães tendem a apresentar pontuações
significativamente maiores no índice geral de sintomas quando
comparadas à população em geral. Já os irmãos sobreviventes, podem
sentir-se mais próximos dos seus pais após a morte; porém, se esta família
tiver um nível alto de conflito, apresentará mais dificuldade na elaboração
do luto, com maior distanciamento entre os pais e os filhos sobreviventes
(Delalibera et al., 2015).
Estudo realizado junto a famílias que enfrentaram a morte violenta
de adolescentes, e que possuíam outros filhos em cumprimento de medida
socioeducativa, aponta a sua inserção em um contexto de banalização da
violência, no qual não há espaço adequado para elaborar o luto. As mães
desenvolvem sintomas como depressão e vulnerabilidade a doenças; os
pais são ausentes e/ou violentos; os irmãos sobreviventes ficam expostos a
situações de risco, seja pelo uso de drogas ilícitas ou pelo envolvimento
direto em situações de criminalidade. A lógica perversa do tráfico de
drogas é permeada pelo código de valorização do lucro rápido e do poder.
A repetição de comportamentos violentos aparece associada a desejos de
vingança, na busca de justiça para os irmãos. Esses dados reforçam a
necessidade de investimentos em pesquisas sobre o tema, ações preventivas
e intervenções comunitárias dirigidas a esta população juvenil vulnerável e
suas famílias (Dalbosco, 2006).
Outro ponto a ser discutido é que há regras sociais estabelecidas para
estruturar o discurso das pessoas em relação à morte. Assim, define-se o
que se pode conversar socialmente sobre a perda e o tempo que se leva
para elaborar um sofrimento. Mesmo as iniciativas para ajuda psicológica

365
Carla Dalbosco et al

aos enlutados, seja por meio de grupos de apoio ou terapias específicas,


indicam que há uma construção sobre o que é considerado “normal” ou
“anormal” diante da perda. Nesse sentido, tendo em vista que a perda é
concebida como um fenômeno interno e privado, isso implica no seu
policiamento e disciplinarização. Para o enfrentamento, é necessário
desenvolver estratégias para lidar com as emoções, as memórias e
estabelecer novas formas de adaptação à vida (Luna, 2013). Segundo
Morin (1976), “(...) o luto exprime socialmente a inadaptação individual à
morte, mas, ao mesmo tempo, é o processo social de adaptação que tende
a fazer cicatrizar a ferida dos indivíduos que sobrevivem” (p. 75).
As características prévias da família afetam a sua reorganização após
a perda. Fatores como comunicação disfuncional, a posição que era
ocupada pela pessoa que morreu, os segredos familiares, irão afetar todo o
sistema. Da mesma forma, as circunstâncias em que se deu essa morte, o
momento do ciclo familiar, a falta de recursos familiares – sociais e
econômicos – e o contexto social e étnico, podem estimular o estigma. A
experiência da perda envolve uma reconstrução que implica em dar
sentido à perda, encontrar benefícios na experiência e mudança na
identidade (Luna, 2013).
Essas famílias podem se sentir fragilizadas, sem assistência e com
carência de acesso a equipamentos públicos (Dias, Arpini, & Simon,
2011). Por isso, cada vez mais, identifica-se a importância de investir em
projetos de apoio à família e ao jovem para a construção de redes mais
protetivas. Alguns estudos mostram que a criação de modelos de
intervenção no luto focado na família permite a oferta de tratamento e
suporte adequado, e alguns tipos de família podem beneficiar-se bastante
desse tipo de programa. Além disso, o uso de instrumentos de triagem
pode ser uma estratégia interessante para avaliar a dinâmica familiar,
identificando famílias com pior funcionamento e que podem ter maior
risco de desenvolver complicações no luto, demandando a necessidade de
suporte (Delalibera et al., 2015).
Diante de tantas vulnerabilidades, talvez seja interessante resgatar o
conceito de resiliência, pois ele também dialoga com a experiência da

366
Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes envolvidos com o tráfico

perda. Segundo Luna (2013), em alguns casos, a vivência de uma perda


pode levar ao crescimento interpessoal, facilitando um enfoque voltado à
saúde e não à patologia. Essa pode ser a aposta necessária que irá
contribuir para um possível rompimento do ciclo violento.

Conclusão
Para finalizar, resgatamos a visão de Bauman (2003), que considera a
impossibilidade de haver comunidade quando a solidariedade é dissolvida,
a confiança mútua destruída, só restando desintegração social. É preciso
encontrar formas de passar de paralisia, impotência e isolamento social
para a mobilização dos recursos comunitários e confiança na rede. Assim,
parte-se do pressuposto de que os vínculos sociais, os laços afetivos e as
relações de solidariedade ainda são as melhores armas contra a
disseminação da violência. Nesse sentido, as reflexões aqui apresentadas
nos levam a pressupor que essas famílias falham na proteção de seus
adolescentes porque o Sistema de Garantia de Direitos também é falho
em diferentes níveis, abrindo espaço para a apropriação dos jovens pelo
tráfico de drogas.
O enfrentamento das questões contextuais que levam ao
envolvimento com a criminalidade e a perpetração da violência não é
tarefa fácil e precisa ser repensada no âmbito de diferentes políticas
públicas. Mesmo quando os jovens e suas famílias estão mergulhados em
um contexto de violência, esse fenômeno nunca poderá ser naturalizado.
Banalizado talvez, mas sempre trará dores intensas. No universo dessas
famílias é difícil atribuir explicações lineares do tipo causa-efeito e separar
categoricamente o “bem e o mal”, quem é a vítima e quem é o algoz. As
fronteiras são tênues. Esses jovens, em sua maioria, não tiveram outras
escolhas longe do tráfico e da marginalidade, a despeito de possíveis
esforços das famílias.
Acreditamos que haja uma lacuna entre as perspectivas que abordam
a relação do jovem com a criminalidade a partir da responsabilização
social (vítimas do contexto) ou responsabilização individual (escolhas

367
Carla Dalbosco et al

pessoais). É preciso também olhar para essas famílias como contexto onde
ressona a violência, reconstruindo sua trajetória, história e resgatando
sonhos e projetos comuns. Cada vez mais, é importante compreender o
significado da perda, incorporando outras dimensões além do olhar
individual sobre o sofrimento de cada família atingida.
As instituições precisam ser fortalecidas e resgatadas em sua função,
juntamente com a implementação de mais políticas públicas voltadas para
a juventude: proteção à infância, melhoria da qualidade de vida,
educação, prevenção, reconhecimento dos direitos enquanto cidadãos.
Além dessas, é preciso pensar também em políticas de acolhimento para as
famílias vítimas de crimes fatais, promovendo um espaço de expressão
para o sofrimento e para a luta pela justiça e cidadania. Muitas vezes, a
morte violenta de um dos filhos ou irmãos representa mais uma peça que
compõe um quadro de sofrimentos e vulnerabilidades mais amplo. Ou
seja, é preciso investir em uma concepção ampliada, que sustente a
pluralidade das narrativas construídas em torno da temática, buscando
recursos da comunidade que revertam o quadro, além de metodologias
específicas que possam auxiliar em um desfecho diferente, tanto no
território, quanto no âmbito dos equipamentos de saúde e assistência
social.

368
Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes envolvidos com o tráfico

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371
372
CAPÍTULO 4.4

Trajetórias familiares e sociais, crack e


situação de rua:
busca por pertencimento
Rubens Mota
Maria Aparecida Penso
Maria Eveline Cascardo Ramos

Introdução
Serão estudados neste capítulo trajetórias familiares e sociais de
jovens usuários de crack, que vivem em situação de rua e violência, a partir
da construção de suas histórias de vida. Investigar a história de vida desses
jovens justifica-se, devido ao esquema perverso instalado em nossa
sociedade, em que o jovem credenciado como sendo o “futuro” do país
perde a vida no presente. A trama é tecida da seguinte maneira: o jovem é
levado para o mundo das drogas, depois tem que ser morto, porque se
tornou um problema social.
Este estudo tem como bases teóricas a Teoria Sistêmica e a
Psicossociologia Francesa. O pensamento sistêmico tem como foco de
estudo as relações entre os membros da família e também destes com o
contexto social, considerando a família como um sistema aberto em
interação constante com o meio que a cerca. (Aun, 2005; Vasconcellos,
2002). Também considera o sistema familiar como muito importante para
a construção da identidade do sujeito (Minuchin, Wai-Yung, & Simon,
1996/2008).
A Psicossociologia Francesa, por sua vez, considera o indivíduo como
um sujeito social (Barus-Michel, Enriquez, & Lévy, 2006). Assim, é preciso

373
Rubens Mota et al

compreendê-lo para além da sua biografia, com atenção a sua história


individual e social, respeitando a sua singularidade e capacidade de
evolução e de aprendizagem. É uma perspectiva que favorece a autonomia
das pessoas e sua participação efetiva na vida de suas organizações, da
sociedade, bem como nos problemas que lhes dizem respeito
(Barus-Michel et al., 2006; Lévy, 1997/2001). Perceber a história de vida,
tendo a Psicossociologia como leitura social, é mais do que ter dados. É ter
a concepção de mudança centrada sobre o processo, mais do que sobre os
resultados, contribuindo em uma compreensão crítica do contexto social,
no qual está inserido o jovem.
A trama entre violência e uso de drogas vem sendo acompanhada
pelo aumento do consumo de crack. A estimativa nas capitais dos estados e
do Distrito Federal, para a população desses municípios que consomem
crack e/ou similares de for ma regular é na proporção de,
aproximadamente, 0,81% (Intervalo de Confiança de 95% (IC95%):
0,76-0,86), o que representaria cerca de 370 mil usuários. Nesses mesmos
municípios, temos que a estimativa para o número de usuários de drogas
ilícitas em geral (com exceção da maconha) é de 2,28% (IC95%
2,17-2,38), ou seja, aproximadamente um milhão de usuários. Sendo
assim, usuários de crack e/ou similares correspondem a 35% dos
consumidores de drogas ilícitas nas capitais do país, de acordo com a
Secretaria Nacional de Políticas sobre as Drogas (Senad, 2012).
As estimativas de proporção de usuários de crack e/ou similares não
são mais elevadas na região Sudeste, onde, entretanto, o consumo em
locais públicos é bastante mais visível devido à magnitude das suas
metrópoles e ao tamanho expressivo das grandes cenas de uso conhecidas
como “cracolândias”. Existe uma superposição dos intervalos de confiança
das estimativas referentes às regiões Sudeste e Norte, por exemplo. Isso
indica que, estatisticamente, essas proporções são similares entre as
capitais dessas duas macrorregiões (Senad, 2012).
Esses dados estatísticos tratam do aumento do uso de drogas no geral,
com agravante para a população em situação de rua. Mas é preciso ir
além dos números, buscando compreender os fatos e situações que esse

374
Trajetórias familiares e sociais, crack e situação de rua: busca por pertencimento

quadro revela. Conhecer a história de vida dessa população pode ser uma
forma de compreender melhor as complexas relações entre uso de drogas,
situação de rua e violência.
Os dados apresentados revelam um quadro preocupante que tem
levado o governo a tomar medidas como o lançamento em nível nacional
do Plano “Crack: É possível Vencer”, do Governo Federal (Decreto no.
7.426, 2010). Esse plano de enfrentamento reúne as políticas de
enfrentamento que associa saúde, assistência social, segurança pública,
bem como outras iniciativas de diversos grupos civis, como ONG’s,
formações acadêmicas e entidades religiosas, na busca de alternativas para
a problemática do uso de crack e outras drogas no Brasil. No entanto,
existe ainda uma carência de alternativas eficazes de recuperação e
ressocialização dessa população.
O uso de drogas normalmente está associado à violência,
principalmente em contextos de pobreza e exclusão social. Carreteiro
(2003) explica que existem vários tipos de violência: física e simbólica,
implícita e explícita, que fazem parte do cotidiano de todas as populações.
Contudo, mesmo fazendo parte do cotidiano da sociedade, de modo geral,
a violência explícita está ligada à vulnerabilidade social, sendo mais
notada em populações que moram em localidades consideradas perigosas e
de baixa renda.

Uso do crack e exclusão social: uma trajetória social


O surgimento do crack é datado entre os anos 1984 e 1985, nos
bairros pobres e marginalizados de Los Angeles e Miami (EUA), sendo sua
obtenção através de processos caseiros. Os cristais de crack eram fumados
em cachimbos por grupos, especialmente jovens, de forma precária, nas
casas. Ainda hoje, os Estados Unidos são o maior mercado consumidor de
cocaína e seus derivados no mundo (Ribeiro & Laranjeira, 2010).
Sobre quando e como o crack chegou ao Brasil encontramos relatos
distintos. Enquanto Ribeiro e Laranjeira (2010) afirmam, a partir de
dados epidemiológicos obtidos com a população em situação de rua, que

375
Rubens Mota et al

não é apontado uso do crack até o ano de 1989 e que as notificações sobre
as primeiras apreensões dessa droga, efetuadas pela Polícia Federal,
ocorreram somente a partir de 1990, Domanico (2006) relata que em
1988 já havia produção barata e rápida do crack em São Paulo, Para essa
autora, nessa época, em diferentes regiões do país já existiam outras
formas de preparar esse produto, sendo que esses preparados de cocaína
ou pasta-base, conhecidos como crack, passaram também a adquirir outros
nomes, como bazuko, merla, mela ou oxi.
Mesmo com o desencontro das datas sobre o surgimento e uso do
crack no Brasil, os estudos confluem na identificação do público que a
utilizou. Seu uso inicial foi feito por pessoas marginalizadas que fumavam
o crack para diminuir a fome, em função da privação de alimentação
(Oliveira & Nappo, 2008; Pereira & Sudbrack, 2008). Ribeiro e Laranjeira
(2010) relatam sobre uma das primeiras pesquisas feitas no Brasil, na
cidade de São Paulo, com um grupo de 25 usuários, composto de homens
desempregados, com menos de 30 anos de idade, ou seja, jovens, de baixa
escolaridade e sem poder aquisitivo. Portanto, desde o seu surgimento, o
crack já era consumido em ambientes de exclusão social, ou seja, por um
público que se encontrava às margens do sistema econômico e social, em
situação de rua. A trajetória do crack aponta para fatores de exclusão
sociais, capazes de produzir um esquema propício para o aumento do uso
de drogas e da violência (Oliveira & Nappo, 2008).
As motivações iniciais para o uso do crack estavam ligadas ao seu
baixo custo, sendo utilizada por uma população marginalizada, sem
recursos para aquisição de drogas mais caras. No entanto, de acordo com
Ribeiro e Laranjeira (2010), os motivos para uso do crack se alteraram ao
longo do tempo. Para estes autores em 1990, os usuários justificavam a
busca da sensação de prazer na droga. No final da mesma década, as
alegações para o consumo eram compulsão, dependência ou uma forma
de lidar com problemas familiares e carências diversas (sono, comida e
afeto).
A situação de exclusão é uma das consequências de cunho social,
sofridas pelo usuário, mas não é a única. Como já colocado

376
Trajetórias familiares e sociais, crack e situação de rua: busca por pertencimento

anteriormente, Ribeiro e Laranjeira (2010) partem dos aspectos


fisiológicos para relatar os danos sofridos com a destruição de neurônios
que provocam a degeneração dos músculos do corpo, causando aquela
aparência característica: ossos da face salientes, braços e pernas finos e
costelas aparentes. Relatam ainda que o crack inibe a fome e tira o sono.
Os usuários só se alimentam e dormem quando não estão sob seu efeito
narcótico, o que pode deixar o dependente facilmente doente. Sobre as
consequências fisiológicas, Domanico (2006) observa que é comum
aparecerem rachaduras nos lábios causadas pela falta de ingestão de água
e de salivação, cortes nos dedos das mãos causados pelo ato de quebrar as
“pedras” para uso, além de queimaduras nos dedos e no nariz causadas
pela chama usada para fumar o crack. A respeito de consequências de
ordem psíquica, a autora menciona a “paranoia” como um dos efeitos
provocados pelo uso de crack e que também aparece na maioria dos
usuários dos produtos da cocaína. Este se traduz por um sentimento de
perseguição em que os usuários desconfiam de tudo e de todos, ouvem
vozes e sons que lhes provocam medo e pavor. Muitas vezes, criam
situações onde ficam acuados e escondidos ou em conflitos grupais,
podendo levá-los à violência (Domanico, 2006).
A exclusão e violência ocorrem seguindo uma lógica social que
contém mecanismos que empurram os jovens para fora do sistema social,
expulsando-os para as ruas, através de mecanismos que os puxam para os
espaços de marginalização, atraindo-os para as ruas. O que empurra está
ligado à trajetória de vida do jovem, em suas experiências na rua e ao
frágil sistema familiar; e o que atrai está relacionado ao que é encontrado
nas ruas, que é a lógica social perversa (Sawaia, 2008; Takeuti, 2002).
Moreira, Neil e Silveira (2009) refletem sobre esse processo que leva jovens
às ruas, afirmando que é próprio do adolescente e do jovem o desejo de
descobrir prazeres variados por curiosidade, influência de grupos de pares
e traficantes, fazendo com que se tornem presas fáceis para o uso de
drogas. Contudo, existe uma iniciação legitimada socialmente, pois o
álcool e o tabaco são as drogas mais utilizadas por essa parcela da
população, podendo culminar no uso do crack.

377
Rubens Mota et al

Diante dessas reflexões é possível constatar que a configuração social


citada, além da marginalização já detectada, pode levar os jovens que se
encontram nessa situação de exclusão a uma condição pior, que atinge a
autoestima, fazendo com que se sintam desvalorizados e diminuídos,
devido aos efeitos da vergonha e da humilhação social (Carreteiro, 2003;
Gaulejac, 2003/2006).
Uma vez marginalizado, esse jovem sofre tanto com a desvalorização
quanto com as agressões sociais, sinalizadas como reação por medo ou
defesa, num contexto de pânico e fobia, criados no ambiente social
(Domanico, 2006). Essa é uma dinâmica complicada, complexa, pois a
sociedade passa a padecer dos próprios efeitos negativos, ou seja, produz
marginalização e sofre suas consequências. Esses efeitos sociais são
descritos pela autora, através das perdas dos vínculos familiares, cuja
ausência prejudica a apropriação da sua história de vida por parte desses
jovens. No entanto, é importante lembrar que o pânico moral que vem de
fatias da sociedade, contribui para esse prejuízo.
A exclusão e a marginalização são nitidamente manifestas na situação
do usuário, indo desde o uso de roupas sujas e de ausência do cuidado
com o que come, até sua realidade cotidiana nas ruas, que é dormir ao
ermo, ficar exposto ao frio, chuva e violência. Aqui há uma postura
quanto ao comportamento social e à caracterização da figura do usuário
de crack, levando em consideração somente os aspectos pejorativos,
criando uma imagem estereotipada, apoiada em interpretações que os
coloca no papel de desviante, levando-o à assimilação de regras que são
desfavoráveis à sua autonomia, enquanto sujeito de direito, que tem uma
história de vida e um valor enquanto pessoa.

Método
Esta é uma pesquisa qualitativa que, para a compreensão da trajetória
pessoal, social e familiar dos jovens, utilizou o método da história de vida
que se preocupa com o vínculo entre o pesquisador e os jovens
participantes da pesquisa, valorizando os traços históricos de cada jovem

378
Trajetórias familiares e sociais, crack e situação de rua: busca por pertencimento

dentro da narrativa e da convivência entre pesquisador e sujeito (Lévy,


2001). Pode-se garantir ainda a investigação da história de vida,
oferecendo elementos que vão além da biografia, no caso desta pesquisa,
sendo capaz de proporcionar a compreensão do percurso entre o sistema
pessoal, familiar e social, até da situação de rua em que se encontram, e o
uso de drogas (Carreteiro, 2003).

Os participantes da pesquisa
Foram participantes desta pesquisa três jovens adultos do sexo
masculino, com idades entre 20 e 25 anos que estavam numa casa de
passagem. Na casa, este público que vivia em situação de rua encontrava
abrigo, alimentação e alguns profissionais que tentavam acompanhar a sua
estadia na mesma. O critério de inclusão foi que tivessem passado por
situação de rua e que fossem usuários ou já tivessem feito uso de crack.
Cada jovem teve a oportunidade de escolher um nome fictício de seu
gosto pessoal, assim ficando: Keny, Felipe e Leôncio.

Instrumentos utilizados
Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada, sendo que as
entrevistas conduzidas, numa relação de respeito ao outro, baseada numa
escuta clinica proporcionando uma conversação geradora de
confiabilidade, ajudando a conhecer a trajetória de vida dos jovens
entrevistados.
Foram utilizados, ainda, desenhos com diferentes propósitos. No caso
de um dos jovens que teve dificuldade para relatar sua história de vida, o
desenho expressou o que foi dito verbalmente, confirmando, com o
desenho básico, o pouco desejo de relato. No caso de outro jovem que
manifestou talento artístico, o desenho ampliou o contexto familiar por ele
explicitado.
O diário de campo ajudou a captar a forma e os momentos da
pesquisa, que aconteciam nas relações entre os funcionários da instituição

379
Rubens Mota et al

e a equipe da pesquisa, bem como dos funcionários para com os jovens e o


clima institucional como um todo. Segundo González Rey (2005), grandes
acontecimentos são definidos no interior do campo, pois é o processo feito
no campo que rompe com um possível controle do esquema estabelecido a
priori. Nessa perspectiva, as decisões são constantemente revistas,
enriquecendo o modelo teórico em desenvolvimento, como aconteceu
nesta pesquisa, que precisou adaptar a sua aproximação do campo à
realidade encontrada.

Procedimento de coleta das informações


Os jovens participantes foram indicados pela direção e educadores da
instituição que frequentavam ou convidados pelos pesquisadores. Uma vez
aceita a proposta por parte dos jovens, foi realizada uma conversa
informal com cada um, explicando como seriam as entrevistas e
mostrando o roteiro, nos certificando se os mesmos concordavam em falar
sobre aqueles assuntos. Aqueles que concordaram assinaram o Termo de
Compromisso Livre e Esclarecido e também foi garantido que haveria
uma devolução para cada um da história contada. Em razão da não
autorização de gravação pela instituição, cada entrevista contou com dois
observadores que anotavam as repostas. Cada entrevista teve, em média,
duração de uma hora e meia a duas horas.
O projeto foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da
Universidade Católica de Brasília, com o número197/2011
O primeiro entrevistado foi Keny, que já havia feito parte de um
grupo terapêutico realizado pelos pesquisadores. Foram realizadas três
entrevistas com este sujeito. Na segunda entrevista foi confeccionado o
genograma, visando a obter mais informações sobre sua família. Após as
três entrevistas, o relato da história de vida foi digitado e entregue a Keny
como devolutiva, sendo apreciada e sofrendo as alterações que o mesmo
quis pontuar.
O segundo foi Laércio, com quem foram feitas duas entrevistas. Nesse
caso não foi confeccionado o genograma, devido à indisposição que o

380
Trajetórias familiares e sociais, crack e situação de rua: busca por pertencimento

jovem mostrou em falar sobre sua família de origem. Sua devolutiva foi
somente verbal, ao final da segunda entrevista, pois Laércio transferido
subitamente de instituição, antes da digitação dos relatos.
O terceiro entrevistado foi Felipe, com quem foram realizadas três
entrevistas, sendo que na segunda foi construído o genograma. Com ele,
foi feita devolutiva escrita; porém, devido à dificuldade de leitura pessoal,
foi lida sua história de vida e pedida sua apreciação. Houve
agradecimento por parte do jovem, pelo fiel relato e incentivo da equipe
de pesquisa para que ele deixasse o uso do crack e por investir em seu
projeto de vida.
Com todos os sujeitos foi solicitada, ao final de cada entrevista, a
elaboração de desenhos como uma forma alternativa para que
expressassem os sentimentos e avaliações do processo e suas conclusões
sobre a proposta apresentada pelos pesquisadores. Esse material ajudou na
composição e criatividade, e eles foram capazes de expressar situações
pessoais, traços da história de vida difíceis de serem verbalizados. O
atendimento sistêmico ajudou a estabelecer uma relação de ajuda,
entendida a partir das “relações igualitárias, fraternas e amistosas” (Prette
& Prette, 2004, p. 27), em que se evitam a indução e o direcionamento na
entrevista. Também, ao final de cada entrevista, eram realizadas pelo
pesquisador anotações no seu diário de campo sobre a sua percepção do
que tinha acontecido. É preciso salientar que, mesmo estando concluídas
as entrevistas, o contato com a instituição permaneceu aberto, implicando
em um compromisso nosso com cada jovem entrevistado.

Procedimentos de análise das informações


Foi utilizada a epistemologia construtiva-interpretativa que pressupõe
o levantamento de indicadores e a construção de zonas de sentido,
buscando atribuir significados para a realidade, numa leitura
interpretativa capaz de sintetizar a junção dos aspectos teóricos àqueles
encontrados junto à realidade pesquisada (González Rey, 1999, 2005).
Para o autor, os indicadores são os conteúdos revelados nas entrevistas e

381
Rubens Mota et al

convivência, capazes de possibilitar a ressonância com a teoria estudada,


oferecendo pistas para a compreensão da realidade encontrada com a
sistematização acadêmica.
A postura de aproximação junto aos jovens, legitimando e
valorizando suas narrativas, possibilitou o levantamento de indicadores a
partir da leitura das entrevistas e do diário de campo, enriquecidos pelos
genogramas e desenhos.
O levantamento de indicadores favoreceu a construção das zonas de
sentido, para compreender e interpretar as histórias de vida dos jovens,
favorecendo uma compreensão que tivesse coerência com a trajetória
desses jovens e, ao mesmo tempo, com as abordagens teóricas escolhidas
para esta pesquisa (González Rey, 2005). Foram construídas duas zonas de
sentido, que retratam os dois sistemas em que esses jovens buscaram
suporte para sua construção identitária: Das famílias às ruas: fragilidades que
geram buscas e Das ruas às drogas: a busca por contextos de pertencimento.

Resultados/discussão
Das famílias às ruas: fragilidades que geram buscas
Nesta primeira zona de sentido serão discutidas as relações familiares,
compreendidas como primeiro espaço de construção identitária e o
percurso feito pelos jovens desde suas vivências na família até a situação de
rua.
Sobre a influência das vivências familiares, foi possível constatar
situações de violência como parte integrante do cotidiano desses jovens,
desde sua infância. Laércio, quando criança, ficava sob a responsabilidade
de uma adolescente que o agredia: “Quando tinha quatro anos lembro
que minha prima me batia muito com chinela havaiana”. Keny apanhava
da tia com quem morava: “minha tia me batia muito”, “o marido da
minha mãe (padrasto), só sabia beber e bater na gente” (Felipe). A
violência vivenciada por esses jovens ao longo do ciclo de vida familiar
tornaram o ambiente familiar desfavorável, dificultando os movimentos de
crescimento e separação necessários para a constituição da autonomia e

382
Trajetórias familiares e sociais, crack e situação de rua: busca por pertencimento

independência. Ao contrário, a família apresentava-se como um ambiente


hostil e negativo, com papéis parentais fragilizados, ausência paterna,
acarretando prejuízos para sua construção identitária e para a
permanência dessas crianças junto à família (Penso & Sudbrack, 2009).
Observa-se que a figura paterna é ausente ou violenta, gerando raiva
em relação ao mesmo: “Meu pai não sei não, acho que ele tava no Piauí
bebendo. Fio da égua” relata Laércio. “Não gosto dele (pai)! Já puxou
cadeia, já matou gente. Não gosto de me encontrar com ele” (Felipe). Para
Keny, o pai é uma figura que o retirou da mãe e o abandonou: “meu pai é
traficante e por isso me entregou pra irmã dele, minha tia”.
Além da fragilidade dos papéis parentais, ausência dos pais ou
presença violenta destes, existem as condições sociais que levam essas
famílias a disporem de seus filhos, como relata Felipe: “Minha mãe deu
dois filhos dela ainda pequenos, porque não tinha muita condição”. “Aos
sete anos minha mãe me levou para morar com a minha avó (materna)”.
A atitude de dar os filhos ou enviá-los para morar com parentes pode ser
atribuída às muitas ausências vividas por essas famílias de: recursos
financeiros, condição social, respaldo do Estado e redes sociais de apoio
(Campos, 2005; Minuchin, Colapinto, & Minuchin, 1998/1999). Nessa
situação, crianças e adolescentes, que ainda necessitam de cuidados, são
expostos a fatores de risco que podem levá-los ao uso de drogas e à
vivência de rua. A situação dessas famílias, como de muitas outras famílias
brasileiras, totalmente vulneráveis, vivendo na rua e em condições de
pobreza, favorece a fragmentação familiar. Dar os filhos, nesse contexto,
não é um desejo, mas sim uma imposição contextual, em razão de uma
lógica social que conduz à falta de condições financeiras, reproduzindo
nos filhos, a exclusão sofrida pelos pais (Demo, 2008; Sawaia, 2008;
Takeuti, 2002).
As consequências das dificuldades e conflitos ocorridos no núcleo
familiar empurra os filhos para a rua, como relata Laércio: “Com oito
anos comecei a sair de casa. Inicialmente fugia de casa e minha mãe
sempre me buscava de volta, mas chegou um momento em que ela não
me buscava mais”. Laércio justifica sua ida para as ruas em razão da

383
Rubens Mota et al

violência e da pobreza: “Apanhava demais, da mãe e da prima, e queria


ter minhas coisas”, expressando que a exclusão e a violência sofridas o
levaram para contextos de risco, como as ruas (Neiva-Silva & Koller, 2002;
Penso, Ramos & Gusmão, 2005).
A fragilidade e a violência verificadas no sistema familiar não podem
ser uma sentença condenatória dos pais, mas um apontamento sobre as
relações estabelecidas no contexto familiar que se mostra frágil e com
dificuldades de criar vínculos (Andolfi, 2002; Minuchin, 1980/1982).
Também é preciso considerar a perversidade de um contexto social
incapaz de ajudar as famílias em seu processo de cuidado dos filhos.
Mas o fato é que todas essas vivências afastaram os jovens de suas
famílias. Com relação à mãe, Laércio afirma: “Já tem seis meses que não
vejo a mãe”; Felipe narra: “Tenho mais de quatro anos que não vou à casa
da minha família. Depois que minha avó morreu não fui mais lá”, e Keny
também relata: “Aos três anos meu pai me deixou na casa de minha tia e
nunca mais vi minha mãe”. Suas famílias também não acreditam que eles
possam mudar, como podemos constatar no desabafo de Keny: “Eles
(família) estão pensando numa coisa, que eu não sou capaz de mudar, só
que eu quero surpreender bem mais”. Assim, temos um contexto de
marginalização onde se constitui a identidade a partir de um duplo
movimento: as fragilidades dos vínculos familiares revelam uma ausência
de investimento nos jovens, empurrando-os para as ruas, associado a um
contexto social de pobreza e exclusão, onde existem atrativos que podem
puxar esse jovem para o uso das drogas (Carreteiro, 2003; Domanico,
2006).
As experiências desses jovens que em suas repetidas visitas às ruas,
somadas à situação caótica da família e às atitudes de desistência dos pais,
possibilitam a legitimação de uma nova realidade, tornando a situação de
rua um acontecimento possível e, com ele, suas consequências na vida
desses sujeitos.
No entanto, é preciso pontuar que, mesmo com os rompimentos em
relação às famílias, em um processo de transmissão geracional, os jovens

384
Trajetórias familiares e sociais, crack e situação de rua: busca por pertencimento

repetem comportamentos de seus pais, seja com relação ao uso de drogas,


seja com relação a comportamentos violentos, apontando para a
dificuldade de rompimento com a história familiar (McGoldrick &
Gerson, 1995; Penso et al., 2008). Mesmo tendo o desejo de transformar a
herança familiar, envolvem-se com drogas e são agressivos com aqueles a
quem amam, mostrando que seus projetos são frágeis diante da realidade,
como exemplificado na fala de Laércio: “Amo minha mulher e meu filho”,
mas ao usar drogas ou beber, reage de forma violenta com eles: “quando
bebo, perco a cabeça e bato na mulher e filho”.
Em resumo, nesta primeira zona de sentido, discutimos como o
sistema familiar influencia a saúde dos seus membros, pois eles não vivem
isoladamente, mas convivem, transmitindo, via relações, saúde ou doença
(Vasconcellos, 2002). Contudo, é importante destacar que a distância dos
pais e a fragilidade dos cuidados por parte das mães não caracterizam a
família como má ou responsável isoladamente pela situação dos jovens
Keny, Laércio e Felipe, pois estas famílias são somente um subsistema que
está inserido em um sistema amplo e complexo, em uma cultura e em um
meio social que influencia no desenvolvimento da família (McGoldrick,
2003; Minuchin, 1980/1982).

Das ruas às drogas: a busca por contextos de pertencimento


Nesta segunda zona de sentido discutiremos o encontro dos jovens
com as drogas, especialmente o crack, bem como a presença de outros
elementos que influenciaram este novo espaço de buscas, a rua. Mesmo
tendo a presença forte do uso de drogas nesta segunda zona de sentido,
explicitamos que seu uso não é exclusividade do espaço das ruas, visto em
que alguns relatos das entrevistas com Keny, Laércio e Felipe já notamos
casos de iniciação ao uso de drogas, ainda no seio familiar.
Apesar das semelhanças, percebemos que cada história tem suas
peculiaridades. A história de vida de Felipe é constituída já no contexto
das ruas, pois quando nasceu, sua mãe já vivia em situação de rua. Isso fez
que ele não percebesse claramente o momento exato da ruptura com o

385
Rubens Mota et al

sistema familiar e sua ida para as ruas, pois já se sentia parte do contexto
da rua: “Minha história de vida, eu acho que é a mais diferente aqui,
porque minha mãe era moradora de rua”. O momento que marca a
ruptura de Laércio com a família e sua ida para as ruas se dá
precocemente: “Com oito anos sai de casa e comecei a ficar na rodoviária
onde fumava, cheirava cola”. Keny, por sua vez, é retirado bruscamente
do seio familiar, após a separação conjugal dos pais: “Meu pai me retirou
de minha mãe com três anos de idade”.
Dois elementos estão fortemente relacionados à saída precoce desses
jovens da família para as ruas: um é a violência muito presente no
ambiente familiar, e outro é o uso de drogas expresso nos desenhos
confeccionados, bem como nos relatos das entrevistas. Essa relação aponta
a fragilidade dos dois sistemas, o familiar e o social, pois o primeiro
deveria cuidar de seus membros e o segundo dar apoio ao primeiro para
exercer seu papel. A falha de um ocasiona uma consequente ausência de
respaldo para o jovem, deixando-o à mercê da sorte, e facilitando sua
trajetória para a margem (Selosse, 1996). No caso de Keny é nítido o uso
de drogas precocemente e com uma progressão rápida para diferentes
drogas: “Aos nove anos comecei a fumar cigarros; aos 11 iniciei com a
maconha e com 12 anos veio tudo. Ele (o pai) me dava dinheiro e comecei
a usar tudo: crack, pó, maconha e merla”. Situação semelhante é descrita
por Laércio: “Com oito anos comecei a sair de casa. Depois disso saí da
escola de vez, comecei a me drogar e a morar na rua”; “minha mãe me
buscava na rua para ajudar no bar” (Laércio). Nesses relatos observamos
que a vivência de situação de rua e o uso de drogas estão relacionados
com a sua realidade sociofamiliar, na qual, uma das atrações das ruas é a
droga, atrelada à falta de condições financeiras para sustentar o vício,
somada ao contato com bebidas e seus usuários, no bar da mãe. Tais
situações são apontadas também nos estudos de Oliveira e Nappo (2008) e
Neiva-Silva e Koller (2002).
O grupo de pares também atrai os jovens, facilitando seu
deslocamento para as ruas e, consequentemente, para o uso de drogas:
“Eu comecei a me enturmar com os meninos de rua e mudou tudo.

386
Trajetórias familiares e sociais, crack e situação de rua: busca por pertencimento

Comecei a cheirar thinner, cola, fumar maconha e depois veio o crack”


(Felipe). Em resumo, a busca por suporte identitário, contextos de
pertencimento, somados à fuga das adversidades encontradas no sistema
familiar são algumas das motivações para o uso de drogas (Carreteiro,
2002; Penso & Sudbrack, 2009). Esses jovens empobrecidos e em situação
de rua necessitam de um grupo que lhes dê apoio para lidar com as
incertezas e medos impostos pela sua condição de “fregueses” da droga e
das ruas, situações às quais estão mais expostos (Minayo & Deslandes,
1998; Penso & Sudbrack, 2009).
Nas histórias dos jovens aqui entrevistados, há um itinerário que leva
às ruas e ao uso de drogas, bem como existe uma progressão quanto ao
tipo de droga utilizada na trajetória que percorrem. Nas narrativas que
ouvimos, foi comum o cigarro e a cola como porta de entrada para o uso e
a idade muito precoce para o início, como é o caso de Keny: “Aos nove anos
comecei a fumar cigarros”. Para Laércio, o álcool foi não somente a porta de
entrada, mas continua sendo o seu maior problema: “A pinga é meu maior
mal. Sempre que bebia e me metia em brigas. A cachaça veio para destruir tudo”. Esses
relatos confirmam estudos de Oliveira e Nappo (2008), em pesquisa sobre
a caracterização do crack na cidade de São Paulo, em que a maioria de
seus entrevistados iniciou o uso com drogas lícitas como álcool e tabaco.
A rua os leva ao envolvimento com drogas. O contexto gerado pelo
uso de drogas nas ruas deixa os jovens acuados e em situação de conflito,
podendo levá-los ao envolvimento em situações de violência. Porém, os
discursos sociais, incentivados pelas elaborações midiáticas, muitas vezes,
não apontam para a origem dessa problemática que está relacionada à
ausência de suportes sociais, desencadeando processos de violência de fato.
Ao contrário, fica centrado nas suas consequências, normatizando uma
lógica que não desperta o interesse para a compreensão da história de vida
e do contexto social daqueles que são usuários de drogas. Tal atitude leva
a uma postura de eliminação do jovem, que passa a ser visto como
problema social, confundindo o jovem com a droga, em que o crack e seus
usuários são a mesma coisa (Domanico, 2006).

387
Rubens Mota et al

As ruas são, neste contexto de busca por culpados, o lugar que resta
para este público excluído de oportunidades e cuidados sociais. Os
próprios jovens que vivem nesse contexto de vulnerabilidade introjetam
estes discursos, colocando as drogas como a origem de todos os problemas.
Esta passa a ser reconhecida como a principal origem da violência que
sofrem ou que comentem pelo seu envolvimento com roubos e furtos. Este
esquema perverso é exemplificado nos relatos a seguir: “Eu já vi amigo meu
morrer por causa do crack. A droga gera violência, e violência gera morte” (Felipe). “É
só beber cachaça que me envolvo em brigas, apanho e bato” (Laércio).
Além de culpabilizar as drogas pela ocorrência da violência,
socialmente, toda a responsabilidade pelo seu uso é atribuída aos jovens,
ignorando os processos sociais e econômicos que colocam parte da
população à margem da sociedade, provocando rupturas do sujeito com a
norma social em razão dos processos de marginalização (Carreteiro, 2003;
Gomes & Pereira, 2005; Minayo & Deslandes, 1998; Selosse, 1996). São
estratégias para o controle social com o objetivo de conter o que
incomoda, mantendo a “ordem social”.
Esse esquema, que faz parte do processo de exclusão, é capaz de
provocar uma desinserção desses jovens, dificultando a construção e
realização de um projeto de vida diferente dessa realidade cruel (Gaulejac,
2003/2006; Selosse, 1996).
Diante da complexidade que constitui a trajetória destes jovens, vistos
como objetos descartáveis pela lógica da exclusão/inclusão, ao estudar como
ocorre a relação entre vivência de rua e uso de drogas, é importante
conhecer sua história de vida, além da biografia. Esse conhecimento que
nos foi ofertado via relatos, desenhos e demais instrumentos utilizados na
pesquisa, pode ajudar na compreensão do percurso entre os sistemas
pessoal, familiar e social, na tentativa de ajudar esses jovens a
compreenderem e conectarem a sua trajetória e não desistirem de suas
buscas (Carreteiro, 2003; Sawaia, 2008).
Nesta segunda zona de sentido buscamos discutir como as ausências
(familiares e sociais), relatadas nas histórias de vida de Keny, Laércio e

388
Trajetórias familiares e sociais, crack e situação de rua: busca por pertencimento

Felipe, os levaram à situação de rua como possibilidade de preenchimento


desses “buracos”. Junto com o contexto das ruas e as posturas sociais
perversas veio o uso do crack e suas consequências. No entanto, nos relatos
destes jovens vimos que não houve o preenchimento da busca primeira, ao
contrário, foram geradas novas inquietações e novas experiências
desafiadoras. Porém, também foi possível constatar que apesar de todas as
adversidades, elas não desistiram dos sonhos de uma vida diferente.

Considerações finais
Ao chegar ao final deste artigo, é possível perceber que não há uma
conclusão e tampouco resultados finais que atendam de forma fechada ao
objetivo proposto. Há sim, duas dimensões que fizeram parte da trajetória
destes jovens, envolvendo equívocos e pistas: a primeira diz respeito aos
equívocos na compreensão da problemática que envolve o tema sobre as
drogas, por parte dos governos, tornando ineficazes os programas
implantados; a outra revela uma beleza percebida no caminho percorrido
com indicação de pistas concretas desta pesquisa. Tentar compreender
como foi o itinerário dos jovens Keny, Felipe e Laércio, na busca por
suportes identitários, no sistema familiar e social, em contexto das ruas e
uso de crack, foi um aprendizado espetacular, para nós, enquanto
pesquisadores.
Constatamos que as histórias de vidas destes três jovens revelam
vivências particulares de sua condição pessoal e familiar. São três situações
que têm pontos comuns, como a situação de rua e o uso do crack, mas
trazem traços próprios que dizem respeito à história de cada sujeito,
mostrando que há um tipo de juventude específica que sofre as
consequências por estar nas ruas, como exclusão, marginalização, mas são
juventudes com histórias distintas e itinerários próprios que os conduziram
até essa condição (Mota, 2011; Souza, 2010).
O estudo da história de vida dos jovens Keny, Felipe e Laércio
permitiu observar como o funcionamento familiar e social pode levar às
ruas, porém não determinar o futuro desses jovens. Essa compreensão foi

389
Rubens Mota et al

possível devido à articulação com a psicossociologia, constatando


influências dos contextos social e familiar que levaram à fragmentação da
história individual, mas não retirou os sonhos. Essa fragmentação se deu
desde a infância, quando foram retirados de suas famílias de formas
diversas, envolvendo situação social e econômica semelhantes. Mesmo
com uma história de fragmentações, os jovens conservaram o desejo por
um futuro diferente. Perguntamo-nos se essa postura de inteireza diante de
tantas adversidades foi possível devido aos vínculos criados nesses espaços
de vivências. Tal postura foi considerada na construção das zonas de
sentido que possibilitaram observar a existência de um fio condutor, em sua
história, a saber, as buscas dos jovens, capazes de se sustentar, superando
a falta de investimento e de oportunidades sofridas.
Diante desse quadro pode-se perguntar que contexto social é esse,
onde o jovem é empurrado para o mundo das drogas, da marginalidade e,
na sequência, é preso, mata ou morre. Esse quadro faz questionar o papel
da sociedade e do poder público, no que diz respeito à proteção e criação
de oportunidades para a formação de seus jovens, dando-lhes direito de
ter um projeto de vida.
É fato que as consequências do uso do crack são extremamente
prejudiciais, como constatamos nos estudos sobre os efeitos dessa droga,
mas colocar o crack como única bandeira não parece ser interessante. O foco
não pode ser o crack como está posto na maioria das campanhas, seja do
governo ou da mídia em geral. Colocar o crack na vitrine pode ser um
esquema perigoso, seja pelo pânico social que se cria, seja pelo desvio do
tema causador que leva ao uso das drogas. Dos três jovens que
participaram desta pesquisa, por já terem fumado crack, dois deixaram o
uso dessa droga, mas tinham dificuldade de deixar o álcool e a maconha.
Somente um continuou com forte desejo de fumar o crack, porém o uso
constante era do thinner. Essas trajetórias mostraram que o crack é somente
a bola da vez, e essa droga não é onipotente o bastante para detonar a
sociedade, como se prega; ao contrário, ela somente denuncia um sistema
social que mantêm relações desajustadas, bem como não consegue dar
oportunidade a todas as pessoas. O que percebemos é que as drogas como

390
Trajetórias familiares e sociais, crack e situação de rua: busca por pertencimento

um todo mostram um espaço cativo diante de uma sociedade incapaz de


articular suas forças políticas e econômicas em vista das pessoas excluídas
de oportunidades de forma eficaz.
Chegamos ao final das reflexões que a pesquisa nos possibilitou
compreendendo que, nesta busca por suporte identitário, ao longo de sua
curta vida, pois a maioria morre antes dos 25 anos, o jovem é confrontado
com as experiências vividas, carregadas de sofrimento e privações. Nesse
contexto de buscas, a rua e o uso de drogas, especialmente o crack, além de
não preencherem os vazios provocados pelas deficiências do sistema
familiar e social, inauguram novos buracos insaciáveis.

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CAPÍTULO 4.5

Crack e maternidade à “deriva”:


sem ser filha, como ser mãe?

Luisa Soares
Maria Aparecida Penso
Maria Eveline Cascardo Ramos

O tema deste capítulo é a construção do papel materno de gestantes


usuárias de crack e outras drogas, que vivem em contextos de exclusão.
Tem como referenciais teóricos a Teoria Familiar Sistêmica e a
Psicossociologia Francesa. A Teoria Familiar Sistêmica compreende a
família como um sistema aberto, uma unidade funcional, composto de
diferentes subsistemas que se relacionam entre si e com o meio externo de
forma recíproca e complementar, sendo que para entender o
funcionamento de qualquer pessoa pertencente a esta unidade, é
necessário visualizar o contexto e o funcionamento das outras pessoas que
fazem parte do seu grupo familiar (Almeida, Magalhães, &
Feres-Carneiro, 2014; Minuchin, Lee, & Simon, 2008/1996; Penso, Costa,
& Ribeiro, 2008; Sanchez, 2012). A Psicossociologia Francesa estuda a
relação entre história e historicidade e os diversos fatores que contribuem
para a constituição do indivíduo, compreendendo que este é constituído
de uma subjetividade que é diretamente atravessada pelo contexto social,
econômico e político, e também pela intersubjetividade produzida no e
pelo social, que por sua vez também é produzida/influenciada pelo
indivíduo (Gaulejac, 2014a, 2004b; Penso, Conceição, Costa & Carreteiro,
2012). Estes dois campos teóricos dialogam na busca da compreensão de
como redes relacionais produzem sentidos, e onde e como se engendram o

395
Luisa Soares et al

sujeito e o social. Também são acrescidos autores que estudam a questão


da maternidade (Badinter, 1985/1980; Hooper, Doehler, Jankowski, &
Tomek, 2012; Oliveira, Bittencourt, & Carmo, 2008; 2005; Olsen,
Banwell, & Madden, 2014; Silva, Pires, Guerreiro, & Cardoso, 2013).
O Brasil é um dos principais mercados de crack do mundo,
representando 20% do consumo mundial desta substância, o que significa
que aproximadamente dois milhões de brasileiros já utilizaram crack/merla
ou oxi (formas da cocaína fumada) pelo menos uma vez na vida (Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e
Outras Drogas [Inpad], 2012). O Decreto nº 7.179, de 2010 instituiu o
Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, que prevê,
entre outras ações, aquelas de prevenção, preparação da rede de saúde
para atendimento desta demanda, preparo dos agentes envolvidos no
processo e promoção e participação comunitária no combate e prevenção
ao consumo de crack. No entanto, esse plano não especifica ações
particulares para as mulheres gestantes usuárias de crack, um segmento que
necessita ser estudado e ganhar visibilidade nas políticas públicas, uma vez
que um terço da população diagnosticada como dependente química no
mundo, em 2008, eram mulheres em idade reprodutiva (World Health
Organization [WHO], 2008). O Ministério da Saúde lançou em 2012 o
manual técnico de gestação de alto risco, vinculado às ações da Rede
Cegonha, no qual prevê orientações para o acolhimento de gestantes
usuárias de álcool e outras drogas nos serviços de saúde (Ministério da
Saúde [Brasil], 2012). No Brasil não existe uma estimativa acurada sobre
quantas gestantes fazem uso ou são dependentes do crack e outras drogas.
A gestação é um momento único na vida de uma mulher, mas repleto
de insegurança e ambiguidade (Badinter, 1985/1980; Carter &
McGoldrick, 2001). Não é um acontecimento apenas biológico e
somático, mas também psicológico e social, que influencia diretamente a
dinâmica psíquica e relacional da mulher (Hooper et al., 2012; Olsen et
al., 2014; Piccinini, Lopes, Gomes, & De Nardi, 2008; Silva et al., 2013).
Os discursos partilhados socialmente vinculam a imagem da mulher
ao da mãe, em seu papel de cuidadora, transmitido de mãe para filha,

396
Crack e maternidade à “deriva”: sem ser filha, como ser mãe?

através das gerações e ao longo da história do mundo (Badinter,


1985/1980; Olsen et al., 2014; Silva et al., 2013). Entretanto, o papel
materno é atravessado por questões contemporâneas como o uso de
drogas, que acaba por colocar em discussão a possibilidade de que esta
mulher seja capaz de cumprir sua função de mãe-cuidadora, conforme
previsto no discurso social (Olsen et al., 2014).
Levando-se em consideração a complexidade da gestação e do uso de
drogas, tanto para a gestante quanto para toda a rede sociofamiliar e
profissional que a assiste, é importante estudar suas trajetórias familiar e
social, a história do uso de drogas e a constituição do papel materno.
Desta forma, o objetivo deste texto é compreender como a trajetória
familiar e social e a transmissão geracional influenciam no processo de
construção do papel materno de gestantes usuárias de crack e outras
drogas.

Trajetória familiar e social, transmissão geracional do papel


materno e uso de drogas
A família brasileira vem sofrendo, ao longo da história, grandes
modificações no que tange aos papéis dentro do sistema familiar. Com a
entrada da mulher no mercado de trabalho, esta assume cada vez mais o
papel de provedora financeira, além de manter seu papel materno que
inclui a transmissão de valores e crenças associadas principalmente ao
cuidado e a afetividade, que serão base estruturante para a forma como os
filhos lidarão consigo próprios e com o contexto social (Almeida et al.,
2014; Penso et al., 2008).
O papel parental é transmitido ao longo do Ciclo de Vida Familiar e
da história transgeracional em que os diversos movimentos de uma
família: casamentos, nascimento de filhos, filhos crescendo, filhos saindo
de casa e formando novas famílias, são influenciados por uma rede de
emoções que estão ligados aos relacionamentos anteriores e gerações
passadas (Carter & McGoldrick, 2001; Eliacheff & Heinich, 2004;
Oliveira et al., 2008). Esse movimento psíquico, relacional, emocional que

397
Luisa Soares et al

conecta uma geração a outra nos mais diversos níveis, interfere na


construção dos papéis filial e parental, sendo que a vivência enquanto
filhos nas famílias de origem irão influenciar a forma como se tornarão
pais em um processo de transmissão geracional, de diferenciação e
identificação (Almeida et al., 2014; Bowen, 1976; Dias & Lopes, 2003;
Eliacheff & Heinich, 2004; Hooper et al., 2012; Penso et al., 2008; Roldan
& Galera, 2005; Zornig, 2010).
A relação entre desempenho do papel materno e uso de drogas
necessita ser melhor estudada. Radcliffe (2011) observa que a maternidade
é uma carreira, uma profissão que dá sentido, nem sempre positivo, à vida
de mulheres que têm envolvimento com o uso de drogas. No entanto, este
uso não é necessariamente preditivo de uma má maternidade ou de
abuso/negligência infantil. Um estudo com mulheres dependentes
químicas na Austrália constatou que muitas optaram por assumir a
maternidade, fazendo escolhas conscientes em relação ao desejo de
tornarem-se mães bem sucedidas, sendo que aquelas que possuíam a
guarda de suas crianças buscavam ativamente por estratégias para evitar
danos aos seus filhos, modificando, diminuindo ou até mesmo cessando o
uso de drogas em resposta a fatores contextuais como pessoas e instituições
de apoio, apontando para a necessidade de validação da capacidade de
parentalidade dessas mulheres, negligenciada pelas pesquisas e pelo
contexto social.
A gravidez pode ser vista como um momento de mudança e
representar uma razão para parar de consumir drogas e começar os
tratamentos de recuperação, mesmo que ocorram recaídas durante a
gravidez ou após o nascimento da criança (Silva et al., 2013). Para esses
autores, a gravidez e a maternidade de mulheres usuárias de drogas em
Portugal é marcada por uma forte ambivalência entre o “vício” e a
parentalidade, podendo surgir sentimentos e pensamentos contraditórios,
como desespero, angústia e ansiedade, por um lado, e esperança por outro
lado, significando uma chance para que essas mães, em razão do filho,
iniciem algum tratamento, seja por iniciativa própria, seja por sugestão
dos médicos que as acompanham.

398
Crack e maternidade à “deriva”: sem ser filha, como ser mãe?

Numa perspectiva sistêmica, a dinâmica interna das famílias é


compreendida como influenciando o desenvolvimento da dependência
química em alguns de seus membros, que rompem com o núcleo familiar,
sem de fato se individuar, o que os mantêm no mesmo padrão relacional
da família de origem (Hooper et al., 2012; Roldan & Galera, 2005). No
entanto, o uso de drogas deve ser compreendido como tendo origens não
só na família, mas também no contexto social que exclui e penaliza uma
grande parte da população. A exclusão é um processo complexo,
sócio-histórico, que é vivido por meio dos sentimentos e ações; sendo um
fenômeno dialético, no qual a sociedade exclui para incluir, e aquele que
se encontra excluído acaba por perder seu direito à cidadania,
principalmente no que tange à efetividade de direitos políticos, civis e
sociais, incluindo a equidade de gênero (Gaulejac, 2014b; Sawaia, 2010).
Em contextos de exclusão, o uso de drogas surge como uma resposta
ao olhar social que posiciona o sujeito à margem, uma via de fuga da
realidade quando o indivíduo não consegue lidar com a situação, ou com
a percepção desse lugar de exclusão, e opta pelo esquecimento do
sofrimento, recaindo no uso de substâncias químicas como forma de fuga.
Tal comportamento faz, muitas vezes, com que o sujeito entre cada vez
mais fundo na condição de isolamento e exclusão social (Gaulejac, 2012,
2014b). No caso das mães-usuárias, a exclusão é tripla, pois além de
dependentes químicas, muitas são pobres e vistas como mães que
abandonam seus filhos em função da droga (Castilla & Lorenzo, 2012).
É nesse processo de exclusão que se desenvolve a identidade de
muitas mulheres usuárias de drogas, em processo compreendido a partir
do sujeito e do social (Gaulejac, 2014a); sem negar a importância da
família como a matriz de identidade, onde o sujeito desenvolve papéis e
funções específicas (Minuchin et al., 2008/1996). A vivência da exclusão
pela mulher gestante usuária de droga passa a ser geradora de uma
subjetividade singular, associando a exclusão social, cultural e política, à
inclusão no contexto das drogas e às relações de poder que se estabelecem
(muitas vezes em um contexto de rua) a partir do gênero, tudo isso

399
Luisa Soares et al

encapsulado na invisibilidade social e no alijamento dos seus diferentes


direitos (Castilla & Lorenzo, 2012; Silva et al., 2013;).
Em resumo, a maternidade é um processo complexo, que se encontra
alicerçado na vivência individual da mulher em relação a sua trajetória
social e familiar, na sua experiência no papel de filha, e no contexto
sócio-histórico, econômico e cultural em que esta se insere.

Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que privilegiou a realidade
acima do método e busca conhecer ao máximo, e de forma a mais realista
possível, a vida das participantes, sem perder de vista que todo
conhecimento é sempre parcial e incompleto, e que a história contada é
apenas um pálido reflexo daquela vivida (Demo, 2001).

Participantes da pesquisa
Três mulheres adultas gestantes e usuárias de crack e outras drogas
indicadas pela equipe de saúde da unidade onde eram acompanhadas, e
que concordaram em participar voluntariamente da pesquisa. A idade
variou entre 30 e 39 anos, com nível socioeconômico baixo, oriundas de
outros estados, mas residentes do Distrito Federal desde a infância,
desempregadas no momento da pesquisa, com escolaridade entre ensino
fundamental e nível superior incompleto, tempo de gestação entre 27 a 38
semanas de gestação.

Aspectos Éticos
Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Católica de Brasília, número 338.541 e Comitê de Ética em pesquisa da
Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal – SES/Fepecs, número
598.542-0

400
Crack e maternidade à “deriva”: sem ser filha, como ser mãe?

Instrumentos
Diário de campo para registro descritivo das atividades relativas à
pesquisa, sendo um suporte documental pessoal da pesquisadora. Roteiro
para entrevista em profundidade com foco nos seguintes temas da história
de vida das gestantes usuárias de crack e outras drogas: história de uso de
drogas pela gestante e outros membros da família, dos seus
relacionamentos amorosos e gestações; relacionamento familiar;
relacionamento mãe-filha; e genograma, diagrama esquemático da
família, no qual se inserem dados concretos dos membros e de sua história
(idade, grau de parentesco, sexo, geração), buscando visualizar aspectos
sobre o tipo de relacionamento, conflitos, alianças, triangulações e padrões
de repetição transgeracionais, auxiliando na compreensão da organização
e dinâmica familiar nos seus diferentes níveis (Carter & McGoldrick, 2001;
Penso et al., 2008). Nesta pesquisa, o genograma permitiu mapear a
estrutura relacional e a dinâmica familiar das participantes.

Procedimento de coleta dos dados


Foram realizados seis encontros individuais com cada participante da
pesquisa. O primeiro encontro ocorreu na ronda nos leitos do hospital,
para apresentação da pesquisa e vinculação com as participantes,
buscando acolher suas demandas iniciais; depois de consentida a
participação. No segundo encontro foi assinado o termo de consentimento
livre esclarecido (TCLE). No terceiro encontro foi construído o
genograma, em papel pardo com lápis e canetas coloridas, enquanto as
mulheres contavam sua história da família. No quarto encontro foi
realizada a entrevista em profundidade, gravada em áudio. Para duas
participantes, este momento ocorreu no hospital onde elas estavam
internadas, sendo que por motivo de alta hospitalar a entrevista com uma
participante foi realizada na casa de sua mãe, onde estava morando
durante o pós-parto. O quinto encontro teve por objetivo verificar como
as participantes estavam se sentindo após contarem suas histórias e, no
sexto, foi realizada a devolutiva a cada participante, ressaltando as

401
Luisa Soares et al

percepções positivas sobre as suas histórias e atitudes diante do processo


que vivenciaram e estavam vivenciando. Também foi formalizada, junto a
elas, a disponibilidade das pesquisadoras caso necessitassem de apoio
psicológico ou algum tipo de acompanhamento. Desde o início dos
contatos de aproximação do contexto e após cada encontro, as impressões
foram anotadas no diário de campo, o que permitiu a análise da sua
implicação e a ampliação da análise crítica.
Ao total foram realizados 18 encontros, sendo 15 no hospital e três
em formato de visita domiciliar na casa onde as participantes se
encontravam após alta hospitalar.

Procedimentos de análise de dados


As entrevistas transcritas, juntamente com o diário de campo e o
genograma, foram analisados a partir da “Grounded Theory” (Teoria
Fundamentada nos dados), proposta por Strauss e Corbin (2008), a qual
permite organizar, comparar, sistematizar e categorizar os dados
provenientes de diferentes instrumentos. Para auxiliar no tratamento e
análise dos dados, foi utilizado o software Atlas/ti 7.1.8, programa de
análise de dados qualitativos, ferramenta que contribui para organização
dos materiais coletados (dados), auxiliando na construção das categorias
de análise e criando relações entre os dados codificados pelo pesquisador.
Nesta pesquisa, foram codificadas as entrevistas e as anotações do diário
de campo. O genograma foi utilizado para compreender as histórias, a
estrutura e a organização familiar, auxiliando a interpretação das demais
informações codificadas. A partir do processo de codificação, foram
identificados os analisadores que posteriormente foram agrupados em
subcategorias, que formaram as categorias de análise conceitual da
pesquisa, visando a contemplar a grande complexidade da vivência da
maternidade por mulheres usuárias de crack e outras drogas.

402
Crack e maternidade à “deriva”: sem ser filha, como ser mãe?

Resultados: trajetórias das participantes


Serão apresentadas, brevemente, as trajetórias social e familiar das
participantes, buscando retratar sua vivência no papel de filhas, a história
das gestações e relacionamentos com pares, a história de suas famílias de
origem, visando a compreender a trajetória na construção do papel
materno de cada uma das participantes. Para cada uma das histórias foi
desenvolvida uma metáfora que representou a essência da trajetória
contada pelas participantes. Para garantir o anonimato das participantes,
foram empregados nomes fictícios.
“O Amor e o Tráfico” – Claudia é filha única de uma família
radicada em Brasília há mais de 30 anos, que veio para a cidade em busca
de oportunidades de trabalho. Devido à distância física em relação à
família de origem, o vínculo com a família tornou-se enfraquecido, e as
relações distantes. O excesso de trabalho dos pais fez com que a
comunicação na família se configurasse como distante. Claudia relatou a
presença de conflitos entre sua mãe e sua avó materna, e entre ela e sua
mãe, denotando uma repetição deste padrão. Para Claudia, o conflito
entre ela e sua mãe existiu desde a sua infância, sendo que a única ligação
afetiva forte era com seu pai, que fazia uso abusivo do álcool, gerando
conflitos na família, principalmente entre o casal, o que afastava Claudia
de casa. Aos 12 anos, após muitas acusações da mãe em relação a um
possível envolvimento com drogas, Claudia decidiu fazer uso de maconha
e cocaína como forma de afrontá-la. Após o contato com a droga,
envolveu-se com um traficante, de cerca de 40 anos, com quem namorou e
viajou para outros países com o objetivo de traficar drogas para o Brasil.
Tal situação ocorreu entre os 12 e 18 anos de Claudia, período em que
teve muitos atritos com a mãe, com quem não falava nem ao telefone,
informando apenas o básico ao seu pai. Após o término desse
relacionamento, Claudia retornou à casa dos pais e passou a trabalhar no
negócio da família, onde conheceu o seu esposo, que não tinha
envolvimento com drogas, e com quem permaneceu casada por 12 anos e
com quem teve dois filhos, apesar de ter engravidado três vezes, porém na
última gestação o bebê faleceu ainda em seu útero. Ela fez uso de drogas

403
Luisa Soares et al

durante a gravidez do primeiro filho e, após seu nascimento, levava-o


inclusive para “bocas de fumo”, onde permanecia por dias, o que gerou
muitos conflitos em seu casamento. Nessa ocasião, passou por um processo
intenso de depressão, que culminou na sua primeira internação para
tratamento, sendo que nesse período, sua mãe assumiu os cuidados de seu
filho ainda pequeno. Após três meses na clínica, seu pai faleceu e Claudia
evadiu do tratamento. Entretanto, devido à culpa em relação ao desejo do
pai de que ela parasse de usar drogas, resolveu voltar a se tratar e
permaneceu abstinente por dez anos, até o início do processo de
separação de seu atual marido.
Após a separação, Claudia vivenciou uma batalha judicial pela
guarda dos filhos, mudou-se para outra cidade e intensificou o uso de
drogas. Em uma das vindas para Brasília para uma audiência, conheceu
seu último companheiro, que também era traficante, e passou a usar crack.
Engravidou novamente e tentou parar o uso do crack, voltando a consumir
cocaína de forma injetável. Sem conseguir parar sozinha, em um
momento de “desespero” procurou ajuda em um posto de saúde e foi
encaminhada ao hospital, onde ficou do quinto mês da gestação até o
parto. Neste momento a mãe de Claudia reaproximou-se dela ajudando-a
financeiramente e visitando-a no hospital. Durante sua internação e nos
contatos com as pesquisadoras, Claudia demonstrou em diversos
momentos ambiguidade entre o desejo de se tratar internada e o de ir
embora. Entretanto, conseguiu permanecer com o apoio de uma tia
materna, a quem se refere como modelo de afeto. Duas semanas antes no
nascimento do bebê, seu companheiro foi assassinado em uma “boca de
fumo”, o que fez com que Claudia entrasse em “estado de desespero”. Ao
final das entrevistas, após tentar morar com sua mãe e filhos do primeiro
casamento, Claudia residia com sua tia materna na casa dos fundos de sua
mãe e manifestou o desejo de ir morar com os sogros e seu bebê, a convite
dos mesmos, em uma cidade próxima a Brasília.
“Pela Rua” - Cristiane é a última filha do primeiro casamento de
sua mãe e a quinta de seus sete filhos. Seu pai faleceu da doença de chagas
após seu nascimento e sua mãe teve mais dois filhos com outro

404
Crack e maternidade à “deriva”: sem ser filha, como ser mãe?

companheiro, apesar de nunca ter de fato vivido com ele. É proveniente


de uma família muito humilde, oriunda de um estado do Nordeste do país
e que, desde sua chegada ao Distrito Federal, residiram em áreas de
vulnerabilidade e não tiveram contato próximo com a família de origem
devido à distância e à falta de recursos financeiros para viajar, o que fez
com que a família perdesse o contato com eles. Sua avó também teve
muitos filhos e não estabeleceu vínculo forte com a mãe de Cristiane e,
com a distância, os contatos deixaram de existir.
Cristiane relatou que teve uma infância muito difícil, permeada por
dificuldades financeiras e ausência de sua mãe que trabalhava em vários
empregos para sustentar a família. Sempre se sentiu deslocada e o
“patinho feio” da família, não conseguindo interagir com seus irmãos.
Com 14 anos, por convite de amigas foi pela primeira vez ao centro de
Brasília, onde passou a participar de festas e conheceu o mundo das
drogas. Essa situação a fez se sentir livre, permanecendo cada vez mais
dias fora de casa, até que passou a viver definitivamente na rua onde
permaneceu até os 19 anos. Durante este período, teve algumas passagens
pela Vara da Infância e Juventude, foi internada em uma unidade
socioeducativa para adolescentes e em diversas instituições de acolhimento
devido a sua situação de rua, envolvimento com drogas e atos infracionais.
A família, em diversos momentos, tentou levá-la de volta para casa, mas
Cristine sempre voltava às ruas e ao consumo de drogas. Aos 19 anos
conheceu seu primeiro companheiro em um abrigo para acolhimento de
adultos em situação de rua e decidiram morar juntos. Nos 13 anos que
permaneceram juntos, Cristiane teve três filhos e conseguiu manter-se
abstinente das drogas. Porém, seu companheiro não parou de consumir
drogas quando estava fora de casa, o que fomentou um cenário de
violências, agressões físicas e traições que culminou na depressão de
Cristiane e no final do relacionamento em 2011.
Após o término do casamento, Cristiane não aguentou as pressões de
criar os filhos, pagar aluguel e voltou a fazer uso de drogas, especialmente
do crack, perdendo o emprego e a guarda dos filhos para o Estado, o que
fez com que ela retornasse mais uma vez para as ruas e intensificasse o uso

405
Luisa Soares et al

de drogas. Nesse período, que durou aproximadamente dois anos,


Cristiane conheceu seu atual companheiro e pai de seu último filho.
Ambos viviam em estacionamentos do centro da cidade, vigiando carros e
consumindo crack, até que ela engravidou e ele foi preso. Sem muitas
perspectivas, recorreu à sua família para pedir ajuda, e seus familiares lhe
propuseram um acordo em que a ajudariam caso ela aceitasse se tratar.
Ela aceitou e foi encaminhada ao hospital de referência para mulheres
grávidas usuárias de drogas, onde permaneceu por quase dois meses até o
nascimento do bebê. Na ocasião da realização da pesquisa, Cristiane
morava em um barraco alugado pelos irmãos, próximo à casa de sua mãe,
e aguardava ansiosamente parar de amamentar seu bebê para conseguir
um emprego, revelando que assim que possível queria recuperar a guarda
de seus outros três filhos e organizar sua vida com o apoio de sua mãe.
“Era uma vez” - Camila é filha única de um casal que veio jovem
para Brasília, sem o consentimento dos pais, pois estes eram contra o
relacionamento entre eles. Isto fez com que rompessem todo e qualquer
contato com a família de origem. Seu pai era militar e sua mãe secretária
e depois diarista. O pai bebia muito e sua mãe o buscava em bares e na
rua. Essa situação durou alguns anos até que um dia seu pai foi
encontrado morto com traumatismo craniano aparentando ter sido
assassinado, apesar de este fato nunca ter sido concluído em inquérito
policial. Com a morte de seu pai, quando Camila tinha sete anos, sua mãe
passou a trabalhar dois turnos e a depender de ajuda assistencial do
governo para conseguir manter a filha e a casa. Nesse período, Camila
ficou sob os cuidados de uma instituição para que a mãe pudesse
trabalhar. Aos 16 anos, teve sua primeira gravidez indesejada, e fez um
aborto por meio de medicação, sem que a mãe soubesse.
Após anos vivendo de aluguel, sua mãe ganhou um lote e começaram
a construir uma casa. Entretanto, um mês após o término da construção,
sua mãe faleceu. Camila já tinha 25 anos e, com mais esta perda, tentou
sobreviver sozinha; porém, por convite de amigas, preferiu ir a festas e
bares ao invés de trabalhar e acabou perdendo o emprego, mas se
manteve com a renda do aluguel de um dos quartos de sua casa, o que

406
Crack e maternidade à “deriva”: sem ser filha, como ser mãe?

permitiu que de alguma maneira mantivesse o uso de drogas e a


frequência a bares. A partir dessa época, Camila variou entre períodos em
casa de amigas, bares, festas, rua e conheceu dois homens que mudaram
sua vida. Um deles era um homem mais velho, separado, que oscilava
entre a figura de pai e amigo, mas que é referido por Camila como
namorado. O segundo, mais jovem, casado e com uma condição
financeira boa, com quem teve relações sexuais em alguns momentos, o
que resultou em uma gravidez.
Camila passou toda sua gestação usando drogas e em bares até o
momento que passou mal na rua e foi encaminhada para o hospital de
referência para mulheres grávidas usuárias de drogas, acreditando estar
com apenas quatro meses de gestação. Porém, ao chegar ao hospital foi
imediatamente encaminhada para a realização do parto de um bebê
prematuro de 35 semanas. Devido ao quadro grave de saúde do bebê,
Camila permaneceu internada no hospital junto ao bebê por mais de dois
meses. Nesse período, houve uma movimentação da equipe do hospital na
tentativa de auxiliá-la nesta nova fase e de buscar uma rede de proteção
para ela e o bebê. Na ocasião da pesquisa, após alta, Camila havia voltado
para sua casa, e buscava organizar sua vida com o auxílio dos avós
paternos de seu bebê.

Discussão
A categoria discutida neste artigo denomina-se maternidade à
“deriva” - se minha mãe não foi mãe, como posso ser filha?
Sem ser filha, como ser mãe? Nesta categoria é possível perceber o
movimento das participantes em recuperar as referências positivas que
possuíam em sua história sobre o que é ser mãe e o que significa o cuidado
e o afeto pelos filhos. Entretanto, essa busca é frustrada porque os
referenciais ficam minados pela inexistência dos vínculos afetivos que se
romperam entre elas e suas mães. Na construção dos genogramas das
mulheres e suas famílias observa-se uma sequência de rompimentos com a
linhagem materna pela impossibilidade de experimentar a proteção e o

407
Luisa Soares et al

afeto como filha, necessários à construção do papel de mãe. Para as


participantes, a aproximação com a mãe ocorre quando elas engravidam.
Neste momento, recebem o apoio das suas mães. Entretanto, esse apoio
parece ser motivado mais pela criança que vai nascer do que pela saúde
da gestante, apontando para uma lealdade à filha, com quem não
conseguiu se vincular, mas que pode ser recuperada com a/o neta/o.
Esta categoria é constituída por duas subcategorias, formada por
indicadores sobre: Relacionamento com a mãe e referências
maternas, em que se buscou compreender o atual relacionamento das
participantes com suas mães, como foi no passado e também a sua
influência na forma como desempenham o papel materno; e a História
da(s) gestação(ões) que teve o objetivo de resgatar a história das
gestações com foco na trajetória social e relacional.
Relacionamento com a mãe e referências maternas. Como
já descrito na literatura, a relação mãe e filha é fundamental na
estruturação do papel de mãe, que surge da identificação da filha e do
modelo disponibilizado pela mãe (Dias & Lopes, 2003; Eliacheff &
Heinich, 2004; Hooper et al., 2012; Roldan & Galera, 2005; Zornig,
2010). Para as participantes, tal identificação mostrou-se comprometida
pela dupla exclusão, primeiro pelo desamparo imposto pela mãe e, em
segundo lugar, pela relação com a droga, sendo que as duas situações a
colocam em contexto de isolamento familiar e de vulnerabilidade social.
Em termos mais específicos, cada participante relatou uma história em
que os caminhos percorridos e as trajetórias sociais são diferentes no que
diz respeito às relações familiares e à construção do papel maternal.
Claudia teve referências familiares, apesar de serem ambivalentes, e
quando necessita recorre a esses vínculos; Camila não possui referências
de família nuclear viva e nem sabe sobre sua história familiar, o que a leva
a buscar contextos de pertencimento junto a pares e à comunidade onde
mora desde criança; Cristiane, apesar de ter uma família, não se vinculou
à mesma, recorrendo à vivência nas ruas, como um contexto de
pertencimento. Ou seja, cada uma dessas mulheres buscou, nos

408
Crack e maternidade à “deriva”: sem ser filha, como ser mãe?

relacionamentos disponíveis, um caminho para lidar com as dificuldades


nas suas relações familiares e com suas mães.
Todas as participantes buscaram referências positivas em suas
histórias sobre o que é ser mãe, seja nas condutas das amigas ou, no caso
de uma das gestantes, em uma tia materna. Nessas relações, as
participantes procuraram construir um modelo significativo para o
cuidado e o afeto pelos filhos, apesar de suas histórias transgeracionais de
fragilidade no vínculo filial e a sequência de rompimentos com a família
tenham dificultado a identificação com a mãe e a construção do papel
materno a partir da vivência do papel de filha (Almeida et al., 2014;
Bowen, 1976; Dias & Lopes, 2003; Eliacheff & Heinich, 2004; Zornig,
2010).
Para Eliacheff e Heinich (2004) e Zornig (2010), o processo de
separação-individuação do núcleo familiar, quando se trata da relação
mãe-filha, fica extremamente conturbado no período da adolescência.
Entretanto, para individuar-se, a mulher necessita se identificar com a
figura materna e esses processos, tanto de identificação como de
individuação, permitem que a mulher possa criar referenciais maternos
que a habilitem a assumir a maternidade de forma tranquila e, se possível,
consciente. Esse processo diz respeito ao movimento de pertencimento e
individuação descrito por Bowen (1976) e estudado por outros autores que
discutem a transmissão geracional (Carter & McGoldrick, 2001; Eliacheff
& Heinich, 2004; Penso et al., 2008; Sanchez, 2012).
Um dado importante da pesquisa é a reaproximação com a mãe a
partir da gestação, momento em que as mães as apoiaram, apesar de as
participantes relatarem a existência de um relacionamento sem grande
vinculação e diálogo. Mesmo assim, foi a essas mães que as participantes
recorreram quando estavam em dificuldades. Também reconhecem que
suas mães são referência de mulheres trabalhadoras e esforçadas para
manter a família. Entretanto, os relatos das participantes levam à hipótese
de que este apoio é motivado mais pela criança que vai nascer do que pela
saúde da gestante, mais uma vez desqualificando as filhas em seus papéis
de mãe. Pode-se pensar, aqui, nas lealdades invisíveis que

409
Luisa Soares et al

Boszormenyi-Nagy e Spark (2001) conceitua como conteúdos que


atravessam gerações e servem como mantenedores da homeostase da
família. As lealdades estabelecem obrigações de dar e receber entre as
gerações e o equilíbrio das relações se refere aos débitos e créditos que
devem corresponder às expectativas dos familiares, repetidamente, por
gerações. No caso, tem-se que as mães que não cuidaram das filhas,
passam a cuidar dos netos, recuperando, assim, a falta de afeto e cuidado
que deixaram de ter para com suas filhas.
A maternidade é um momento de redefinição de papéis, em que a
filha, ao tornar-se mãe, valida seu modelo materno de referência, muitas
vezes rechaçado na adolescência, sendo que nesse processo é muito
importante a relação afetiva que se estabeleceu entre mãe e filha (Dias &
Lopes, 2003; Oliveira et al, 2008; Olsen et al., 2014). Nas histórias das
participantes, o modelo materno é enaltecido em seu aspecto concreto,
uma vez que as participantes, mesmo relatando as dificuldades afetivas
com as mães, reconhecem as mesmas como mulheres trabalhadoras, que
travaram uma batalha para sustentarem suas famílias. Ou seja, apesar de
as mães representarem um modelo aparentemente positivo, ele é
empobrecido de afetividade, fator de extrema importância para a
transmissão e construção do papel materno.
Quanto à história da(s) gestação(ões), as participantes relatam que
não utilizavam métodos contraceptivos, sendo as gestações não planejadas;
e, até em alguns casos, indesejadas. Os filhos foram concebidos em meio a
uma trajetória de conflitos dentro dos relacionamentos com os parceiros e
essas mulheres parecem ser “aprisionadas pelo destino” que as empurra,
mais uma vez, para esse papel tão forte na construção da identidade
feminina, que é o papel materno. Todas fizeram uso de drogas durante a
gestação de pelo menos um dos filhos e, por isso, convivem com o
constante medo de que o filho apresente algum tipo de problema.
O desejo de ter um filho é algo para além da simples vontade de ser
mãe ou de perpetuar sua linhagem familiar, havendo uma ligação
inconsciente com a elaboração da feminilidade e com o que significa ser
mãe (Eliacheff & Heinich, 2004; Zornig, 2010). A gravidez é um

410
Crack e maternidade à “deriva”: sem ser filha, como ser mãe?

momento que liga a vivência atual com o passado vivido em seu lugar de
filha e como mulher. Com o nascimento do filho, são colocadas em jogo as
relações mãe-filha e mãe-bebê para a constituição deste novo papel
(Eliacheff & Heinich, 2004; Oliveira et al., 2008).
A gestação para mulheres usuárias de drogas pode ser vista como um
momento de mudança em que acabam sendo resgatadas do uso de drogas
em função da criança que está por vir. Na pesquisa, as participantes, por
meio da concepção, buscaram, de forma subjetiva, reeditar sua história
filial e social. Elas adquiriram visibilidade social perante a família, o
companheiro e a sociedade. Contudo, essa visibilidade é carregada de um
olhar de vigilância e controle para que elas não causem dano ao bebê,
sendo que qualquer deslize as faz retornarem para o lugar de exclusão e
“monstrificação” (Castilla & Lorenzo, 2012; Sawaia, 2010). Em termos de
saúde pública, como a política relacionada à saúde da mulher tem seu
foco pautado principalmente na saúde reprodutora da mulher, as
participantes são atendidas durante a gravidez, recebendo ajuda
profissional inclusive em relação à questão da dependência química.
Entretanto, após o nascimento do bebê, elas retornam para seu contexto
original, e não há um prosseguimento de acompanhamento nem para a
questão das drogas nem para a condição da maternidade. Deste modo,
não lhes são garantidos novos contextos de pertencimento que avalizem a
construção de novas relações e nem referenciais positivos que possibilitem
a mudança efetiva.

Considerações Finais
O conhecimento das trajetórias familiar e social das participantes e de
como isso influenciou na construção do seu papel materno apontou para a
presença de fragilidades e conflitos na relação com as mães. No entanto,
isso não inviabilizou a apropriação do papel materno, apesar de ter
exigido das mulheres a busca por referenciais maternos positivos em
outras relações pessoais com os quais pudessem se identificar, tais como
tias e amigas. A relação entre as mães e as participantes da pesquisa é

411
Luisa Soares et al

retomada quando as participantes ficam grávidas e têm seus filhos, suas


mães retornam no papel de avós para cuidar do neto e não da filha. A
gravidez e o filho devolvem a visibilidade a essas mulheres, antes invisíveis
diante da família, das políticas públicas e da sociedade, e os netos passam
a ser intermediários afetivos na relação mãe – filha.
Ainda, com relação às possibilidades de identificação com o papel
materno, as histórias transgeracionais das três participantes apresentam
rompimento com as famílias de origem, ocorrida no momento em que se
mudaram de cidade em busca de melhores condições de vida. Tal situação
parece ter contribuído para a fragilidade dos laços familiares, contribuindo
para a perpetuação de situações de rompimento de relações na família
nuclear das participantes. O uso de drogas surge como uma forma de
preencher lacunas afetivas e de lidar com relacionamentos conturbados no
âmbito familiar, falta de grupos de suporte adequados, contextos sociais
saudáveis e instituições de apoio. Isso fez com que as participantes fossem
para as ruas e para contextos de pertencimento inadequados onde se
depararam com situações de vulnerabilidade inerentes a esse espaço,
como a prostituição, as drogas e o tráfico.
No entanto, são mulheres que ao serem encaminhadas para um
serviço de saúde, aderiram ao tratamento. Esta pode não ser a realidade
da maioria de mulheres na mesma situação. Provavelmente, algo ocorreu
em suas trajetórias e fez com que elas fossem capazes de se vincular e ter o
desejo de mudar suas vidas, o que, na prática, não ocorre com tanta
frequência, visto as inúmeras evasões de hospitais por outras pacientes
com perfil de dependência química e situação de rua que frequentavam o
serviço de saúde.
Importante ressaltar que o número de evasões do serviço de saúde é
muito alto e que não existem critérios bem definidos para alta. Isto
aponta para a necessidade de construção de um protocolo específico de
atuação nesses casos por parte da equipe de saúde, uma vez que essas
mulheres não se adaptam aos protocolos de um pré-natal normal. Além
disso, observa-se a necessidade de um acompanhamento individualizado
dessas mulheres que possibilite a transformação do ciclo transgeracional

412
Crack e maternidade à “deriva”: sem ser filha, como ser mãe?

de rompimentos do vínculo materno e das histórias familiares, bem como


políticas públicas que garantam espaços de atenção e inclusão dessas
mulheres em outros contextos sociais, políticos e econômicos.

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416
CAPÍTULO 4.6

A polifonia da temática das drogas em


um seminário regional
Núcleo Abramd–Sul: espaço para
problematização e controle social
Jardel Fischer Loeck
Luciane Raupp

Introdução
O estado do Rio Grande do Sul já foi reconhecido no país como
campo importante de luta, de práticas e de emergência de atores sociais
que se destacaram a partir da década de 1990 no campo da construção de
ações, debates e práticas alinhadas a paradigmas que eram então (e para
certos segmentos, ainda são) considerados “alternativos” no vasto campo
de estudos e práticas sobre usos de substâncias psicoativas. A conquista
desse espaço ocorreu devido à presença de movimentos de luta por
espaços de discussão e ação que tinham por referência o
antiproibicionismo e a redução de danos, constituída então como principal
estratégia para a construção de caminhos possíveis que não apenas o
encarceramento e a abstinência para usuários problemáticos de drogas,
indo na esteira da luta pela garantia de seus direitos (Nardi & Rigonni,
2009).
Apesar dessa história, assiste-se na atualidade à diminuição - e mesmo
à extinção em alguns cenários regionais importantes - de programas de
redução de danos, aos quais foram gradativamente sendo destinados
menores incentivos, recursos e apoio governamental (Amaral, 2013; Nardi
e Rigonni, 2009). Esse movimento reduziu o espaço de atuação concreto

417
Jardel Fischer Loeck e Luciane Raupp

da redução de danos no Estado, ao mesmo tempo em que cresceram e


institucionalizaram-se os incentivos ao financiamento público de vagas em
comunidades terapêuticas, amplamente presentes no território e à
terceirização da gestão de espaços fundamentais como os Centros de
Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD). Ações de repressão a
usuários de crack em situação de rua ocorrem amplamente no escopo de
práticas de repressão à venda de substâncias psicoativas ilícitas. Os poucos
espaços de resistência dependem de ações locais, as quais em muitas
cidades são pontuais, ou ligadas a poucos espaços de militância que ainda
resistem, apesar da crescente onda conservadora que mostra-se com cada
vez mais força no país.
Levando em consideração essa realidade regional, o presente texto
visa abordar as tensões presentes no campo das políticas públicas, das
ações e das práticas voltadas aos usos problemáticos de substâncias
psicoativas, destacando que apesar das diretrizes que regulam as práticas
de saúde serem claras em relação aos seus pressupostos ontológicos e
diretrizes, no que tange aos seus desdobramentos concretos a realidade
reflete uma polifonia de formas de compreensão e, consequentemente, de
ação, fruto de distintos campos político-ideológicos. De uma forma
sintética tais orientações refletiriam ontologias políticas mais amplas,
tendo por efeito a produção de uma dualidade no campo: ou se está ligado
ao jogo de forças que aproxima proibicionismo e patologia; ou se opera na
lógica que interliga descriminalização (legalização) e práticas que operam
na lógica da redução de danos.
Dado o desanimador cenário político-institucional atual, no qual se
assiste ao desmonte de políticas arduamente conquistadas por anos de luta
e ativismo político no Brasil, consideramos de importância estratégica da
criação e expansão nacional de espaços participativos e fóruns que
fomentem a garantia de direitos e instiguem à criação de dispositivos
sociais que tenham nas práticas de redução de danos e na crítica ao
proibicionismo o eixo de união de diferentes atores sociais. Nesse intuito,
em dezembro de 2016 foi iniciado um movimento participativo
envolvendo profissionais e pesquisadores atuantes na região metropolitana

418
A polifonia da temática das drogas em um seminário regional: Núcleo Abramd-Sul

de Porto Alegre e em distintos polos do Estado para iniciar o que veio a se


consolidar como o núcleo Abramd Sul por meio da realização do I
Seminário Abramd Sul - RS. Em um momento de esvaziamento de
políticas e espaços de fortalecimento da redução de danos compreendida
como uma ética do cuidado, para além de uma estratégia clínica (Santos,
2017), o seminário realizado aproximou pessoas e abriu novos caminhos
para a luta política e o fomento ao debate e à produção de conhecimento
alinhada a uma perspectiva mais respeitosa aos direitos e às liberdades dos
sujeitos que, dentre várias outras práticas em suas vidas, fazem uso de
substâncias psicoativas. Esse texto busca problematizar essas questões e
divulgar os principais temas debatidos no I Seminário Regional Abramd
Sul – RS.

A polifonia das políticas públicas


Em termos de legislação sobre drogas, ainda que a legislação atual no
Brasil, a Lei 11.343/2006 (Brasil, 2008), faça a distinção entre
“traficantes” e “usuários” de substâncias ilícitas, são notórios e
documentados os problemas ainda existentes na mesma. Os trabalhos de
Policarpo (2010) e Fiore (2012), dentre outros, apontam algumas dessas
tensões. Se nestes quesitos não podemos ainda dizer que avançamos muito
nos últimos anos, pensando em legislações menos punitivas, menos
estigmatizantes e que não reforcem o racismo e a exclusão social, em
relação a questões de saúde relacionadas às práticas de uso de substâncias
psicoativas talvez tenhamos avançado um pouco mais. De acordo com
Machado e Miranda (2007), a partir da década de 1980 percebe-se em
curso a tendência de inclusão dos usuários problemáticos de substâncias
psicoativas e dos dependentes químicos na rede de saúde pública, privada
e da sociedade civil, ainda em consonância com leis sobre drogas bastante
repressivas que ainda vigoravam à época.
De acordo com Alves (2009), foi apenas depois do ano de 2003, com
a publicação d’A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral
a Usuários de Álcool e outras Drogas (Brasil, 2004) que o Ministério da

419
Jardel Fischer Loeck e Luciane Raupp

Saúde assumiu o compromisso de enfrentar de maneira integral os


problemas associados ao consumo de álcool e outras substâncias
psicoativas, colocando o tema na agenda da saúde pública. A partir deste
documento a abordagem de saúde deixou de ser um acessório das políticas
públicas e foram elaboradas algumas diretrizes para a área:
Em consonância com os princípios e orientações do SUS, da reforma
psiquiátrica, e segundo uma lógica ampliada de redução de danos.
Propuseram-se como diretrizes: a alocação do uso de álcool e outras
drogas entre os problemas da saúde pública; a indicação do
paradigma da redução de danos nas ações de prevenção e de
tratamento; a desconstrução da concepção do senso comum de que
todo usuário de drogas é doente e requer internação ou prisão; e a
mobilização da sociedade civil para práticas preventivas, terapêuticas
e reabilitadoras (Machado & Miranda, 2007, p. 818).

Foi proposta, ainda segundo os mesmos autores, a criação de uma


rede de atenção territorializada dentro do SUS e a construção de uma
rede de assistência formada por Centros de Atenção Psicossocial
álcool/drogas (Caps-AD), enquanto espaços especializados, e unidades
básicas de saúde, programa de saúde familiar e hospitais no atendimento
geral. Mas antes do estabelecimento dessas redes de atenção mantidas
pelo governo brasileiro, temos há muito mais tempo outras instâncias
terapêuticas como os grupos de ajuda mútua e as comunidades
terapêuticas religiosas atuando no cuidado aos usuários de substâncias
psicoativas.
O que ocorreu é que após a implantação dessas políticas nacionais
houve a necessidade, no mínimo em termos regulatórios, da integração
das práticas governamentais com as da esfera particular e da sociedade
civil, que em alguns casos já existiam há mais tempo – os grupos de
Alcoólicos Anônimos surgem no Brasil no final da década de 1940 e os
grupos de Narcóticos Anônimos datam da metade da década de 1980
(Loeck, 2009); já as primeiras comunidades terapêuticas no Brasil datam

420
A polifonia da temática das drogas em um seminário regional: Núcleo Abramd-Sul

do final da década de 1970 (Loeck, 2014, Sabino & Cazenave, 2005). Estas
passarem a ser consideradas instituições complementares aos
equipamentos da rede pública. Explicitou-se, desde então, a existência de
uma rede de instituições e modelos terapêuticos que é maior do que os
componentes do Sistema Único de Saúde e Sistema Único de Assistência
Social e, apesar de terem de respeitar em alguns casos determinadas
diretrizes básicas para o seu funcionamento, as políticas públicas não
interferem especificamente nos conceitos e práticas que circulam nessas
instituições complementares como as comunidades terapêuticas ou os
grupos de Narcóticos Anônimos. Tampouco interfere nas idiossincrasias
morais e políticas de profissionais da rede pública de atenção atuando em
equipamentos como Caps, hospitais públicos etc.
Assim, além das instituições públicas pertencentes ao Sistema Único
de Saúde – pautadas pelos conceitos biomédicos – as políticas públicas de
atenção preveem a participação de instituições filantrópicas, religiosas e de
ajuda mútua. Fato que por si só torna a ideia de rede de atenção bastante
heterogênea. As políticas públicas de atenção aos usuários de substâncias
psicoativas no Brasil, ao atrelarem a criação, a manutenção e a atualização
da rede de atenção ao discurso, à pesquisa (avaliação) e à prática científica,
permitem a reprodução de tensões inerentes ao próprio campo técnico e
científico sobre o tema. Por mais que seja possível observar nesses
documentos um discurso que privilegia a redução de danos como
principal estratégia de saúde, as práticas que buscam a abstinência – e,
portanto, assimilam os usos de psicoativos sempre como potencialmente
problemáticos – são mais valorizadas, visíveis e preponderantes na
atualidade, o que parece acontecer é que existem duas vertentes de
abordagem da questão, a da abstinência e da redução de danos, se tocam
menos do que poderiam na prática. Parecem ocupar espaços e tocar
indivíduos de maneira colateral, não coincidente. Ou se está de um lado,
ou de outro. O que pode tornar a rede de atenção menos sistêmica na
prática do que no texto das políticas públicas. Se na teoria existe uma
espécie de circuito lógico, no qual os indivíduos que ingressam na rede de
atenção devem trilhar preferencialmente, ao atentarmos para seus

421
Jardel Fischer Loeck e Luciane Raupp

deslocamentos concretos é possível perceber que o desenrolar dos fatos


nem sempre se dá dentro da perspectiva ideal.
É possível afirmar que, em termos gerais, as políticas públicas
brasileiras preveem diferentes modelos terapêuticos e que eles não
necessariamente compartilham dos mesmos princípios ontológicos. Há
duas ontologias políticas mais amplas e não necessariamente convergentes
em ação no Brasil atual – no âmbito legal, a proibicionista de um lado e a
descriminalizadora (legalizadora) do outro; no âmbito da
saúde/terapêuticas a patologia/abstinência de um lado, e a redução de
danos de outro. Grosso modo, pode-se dizer que estão a proibição e
patologia/abstinência de um lado; descriminalização (legalização) e
redução de danos de outro.
O mais importante de ser notado aqui é que as abordagens
teórico-práticas da ciência e da técnica, tanto de um lado quanto de outro
dessa polarização conceitual, expressam enunciados políticos. Algumas
vezes explícitos e outras vezes implícitos nas próprias práticas de
categorização e intervenção direcionadas aos usuários de psicoativos. A
politização do discurso e da prática nesses dois polos fica explicitamente
perceptível se pensarmos, por exemplo, em como cada lado aborda o
indivíduo usuário de psicoativos – um cidadão pleno, na vertente da
redução de danos; um doente sem autocontrole, na vertente voltada para a
abstinência. Por este motivo é interessante a aproximação com o conceito
de ontological politics desenvolvido por Annemarie Mol:
Ontological politics é um termo composto. Ele fala de ontologia – que na
linguagem filosófica padrão define o que pertence ao real, as
condições de possibilidade com que vivemos. Se o termo ‘ontologia’ é
combinado com o de ‘política’ então isto sugere que as condições de
possibilidade não são dadas. Que a realidade não precede as práticas
mundanas com as quais interagimos, e sim que é moldada por essas
práticas. Então o termo política trabalha para destacar este modo
ativo, esse processo de moldagem, e o fato de que seu caráter é tanto
aberto quanto contestado. (Mol, 1999, p. 75)

422
A polifonia da temática das drogas em um seminário regional: Núcleo Abramd-Sul

Com isto é possível afirmar que há diferentes performances dos usos


problemáticos de drogas. Como sugere Mol (1999), quando fala de
ontological politics, não é o caso de realidades plurais, mas múltiplas. Não há
diferentes versões do uso problemático de drogas em ação, mas diferentes
usos problemáticos sendo colocados em prática em situações específicas
através da associação de atores sociais específicos – pessoas; instituições;
profissionais dentro de instituições etc. E não se trata apenas do uso de
termos e conceitos diferentes – noção de “adicção” nos grupos de
Narcóticos Anônimos; dependência química enquanto doença crônica em
alguns contextos biomédicos etc. – e sim de diferentes performatividades
tanto da noção de patologia quanto da de terapêutica.
Retomando o argumento anterior, um dos princípios mais
importantes apresentados no documento da Política do Ministério da
Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas
(Brasil, 2004) é de que a abstinência não pode ser o fim único a ser
alcançado pela rede de atenção em saúde. Assim estabelece que a redução
de danos seja a principal estratégia a nortear as diversas práticas,
independentemente de quais sejam elas. Mas o que significa definir a
redução de danos (RD) como principal estratégia da rede de atenção em
saúde para usuários de álcool e outras drogas? Que as práticas de RD não
são as únicas a serem colocadas em ação para o cuidado dessas
populações. A RD passa a ser o princípio ideal norteador das políticas
públicas como um todo, mas não se sobrepõe, enquanto prática, às ações
de tratamento baseadas em internação ou mesmo outras que são baseadas
no ideal de abstinência – praticado em comunidades terapêuticas, grupos
de ajuda mútua, e também por profissionais da saúde distribuídos em
pontos diversos da rede pública e/ou particular.
A redução de danos pode ser interpretada de diferentes maneiras:
pode ser vista como um paradigma que constitui outro olhar sobre a
questão das drogas e álcool e institui outras tecnologias de intervenção,
que respeitem a diversidade das formas de ser e estar no mundo, e
promovam saúde e cidadania; como um conjunto de estratégias para
promover saúde e cidadania, construídas para e por pessoas que usam

423
Jardel Fischer Loeck e Luciane Raupp

substâncias psicoativas ilícitas e lícitas, e que buscam minimizar eventuais


consequências negativas do uso dessas substâncias sem colocar a
abstinência como único objetivo do trabalho em saúde; também pode ser
vista como uma política pública centrada no sujeito e constituída com foco
na promoção da saúde e cidadania das pessoas.
De qualquer forma, apesar de ter sido instituída como o princípio
norteador das políticas públicas de atenção aos usuários de psicoativos, a
redução de danos enquanto estratégia e/ou prática não ocupou toda a
rede de atenção em saúde para usuários de substâncias psicoativas e
parece cada vez mais depender de militância política específica para se
fazer presente; ou de profissionais espalhados pela rede que compartilhem
desses ideais e os pratiquem em seus cotidianos de trabalho (Amaral, 2013;
Nardi & Rigoni, 2009). Algumas pesquisas demonstram que houve, nos
últimos anos, uma drástica diminuição dos programas de redução de
danos em âmbito nacional (Nardi & Rigoni, 2009; Amaral, 2013), muito
ligada à questão do financiamento que outrora vinha das políticas para
HIV/Aids.
Isto não quer dizer que não há mais programas de redução de danos ,
ou que não há profissionais atuando em seus cotidianos sob os princípios
da RD, mas como Amaral (2013), e Nardi e Rigonni (2009) demonstram,
passa a haver mais dificuldades de financiamento para os programas
específicos de RD e, ao invés destes crescerem exponencialmente com a
divulgação do texto das políticas públicas apresentado anteriormente
(Brasil, 2004), que torna a redução de danos uma estratégia primordial
para toda a rede de atenção, o movimento que percebemos recentemente
parece ser contrário.
O programa governamental “Crack, é possível vencer” abriu um
Edital de Chamamento Público para comunidades terapêuticas no fim de
2012 que previu, na época, financiamento de 10 mil vagas para
acolhimento de dependentes químicos dentro desse modelo terapêutico.
As entidades aprovadas no Edital passaram a receber mensalmente R$ 1
mil pelo acolhimento de adultos e R$ 1,5 mil para crianças, adolescentes e
mães em fase de amamentação. O financiamento de vagas em

424
A polifonia da temática das drogas em um seminário regional: Núcleo Abramd-Sul

comunidades terapêuticas via Secretaria Nacional de Políticas sobre


Drogas (Senad/Ministério da Justiça) continua em ação. Especificamente
no Rio Grande do Sul, o mais recente convênio estadual foi firmado com
a compra, pelo governo do Estado, de mil vagas em comunidades
terapêuticas, ao custo de R$ 1 milhão por mês.
Os programas de redução de danos do estado do RS se encontram,
nesse mesmo período, com menos recursos e menos apoio governamental
(Amaral, 2013; Nardi e Rigonni, 2009). Ao que parece, de acordo com
texto recente de autoria de profissionais que coordenavam a Política de
Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Secretaria Estadual de Saúde do
RS, há um movimento de retomada da redução de danos no Estado
recentemente (Simoni et al, 2015). A Portaria Nº 503/2014 institui a
Política de Redução de Danos para o cuidado em álcool e outras drogas
dentro das Políticas Estaduais de Atenção Básica, Saúde Mental e
DST/Aids e redefine as Composições de Redução de Danos. De qualquer
forma, temos vários indícios de que a redução de danos ainda depende de
iniciativas específicas, muitas vezes ligadas à questão de militância política
em alguma esfera ligada à RD, em vez de estar disseminada por toda a
rede de atenção como está previsto nos textos das políticas públicas.

I Seminário Abramd Sul - RS


Identificando demandas como a de fortalecer a redução de danos no
Estado do Rio Grande do Sul, um grupo de profissionais, pesquisadores e
militantes se uniu recentemente para formar uma extensão local da
Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd).
A proposta de criação deste núcleo regional (Abramd Sul/RS) se realiza
na constituição de um espaço permanente de educação, diálogo,
discussão, construção de estratégias e disseminação das práticas de
cuidado pautadas pela redução de danos. Em especial, a Abramd Sul/RS
se constituiu aberta a compor com outras iniciativas que se alinham à
perspectiva do trabalho pela autonomia dos sujeitos e pela liberdade de

425
Jardel Fischer Loeck e Luciane Raupp

escolhas, visando o fortalecimento e a resistência em torno dos princípios e


práticas antimanicomiais e antiproibicionistas.
Foi realizado nos dias 07 e 08 de julho de 2017 o I Seminário
Abramd Sul/RS. O evento ocorreu no auditório do Hospital Sanatório
Partenon, na cidade de Porto Alegre (RS), e teve como objetivo criar um
espaço de problematização, discussão e fomento do controle social que
englobasse o ponto de vista dos próprios usuários de álcool e outras
drogas, a perspectiva multidisciplinar na abordagem dos fenômenos
relacionados a essas práticas, os direitos humanos dos usuários de
substâncias psicoativas e as diretrizes de trabalho da redução de danos.
Durante o Seminário contamos com a intensa participação de
profissionais e ativistas do campo das políticas públicas para álcool e
outras drogas de várias áreas de trabalho e de diferentes municípios do
Estado do Rio Grande do Sul, bem como de outros estados. Nos dois dias
de evento circularam pelo auditório em torno de 120 pessoas de diversas
áreas de atuação, tais como: Nutrição, Fisioterapia, Terapia Ocupacional,
Enfermagem, Psicologia, Antropologia, Serviço Social, Medicina, Artes
Plásticas, assim como Residentes e Estagiários de Saúde Coletiva, Serviço
Social e Psicologia, e participantes de movimentos sociais. Da mesma
forma, o alcance em termos geográficos também foi satisfatório, tendo
participado pessoas oriundas dos municípios de Pelotas, Rio Grande,
Taquara, Igrejinha, Caxias do Sul, Flores da Cunha, Cachoeirinha,
Canoas e Porto Alegre, entre outros.
O Seminário contou com duas Mesas Redondas compostas por
convidados (dentre estes, o Presidente da Abramd, Prof. Rubens Adorno) e
cinco Sessões Temáticas com apresentações de trabalhos selecionados após
submissão de resumo, contemplando relatos de experiência e
comunicações sobre pesquisas acadêmicas em nível de graduação e
pós-graduação, sobre temas diversos e englobando áreas também diversas.
Houve ainda a participação de um grupo de dança de rua; um momento
de integração entre pacientes do Hospital Sanatório Partenon – os quais
apresentaram trabalhos produzidos por eles durante sua estadia
terapêutica no hospital; e ainda uma intervenção cultural que contou com

426
A polifonia da temática das drogas em um seminário regional: Núcleo Abramd-Sul

poesias e músicas. Deste modo, o evento cumpriu com sua missão de


promover e valorizar a diversidade das experiências que, de alguma
forma, promovem a saúde, a igualdade e os direitos humanos.
A partir deste Seminário surgiu, ainda, a proposta de expansão do
debate das políticas públicas sobre álcool e outras drogas para o interior
do Estado, com eventos descentralizados, bem como a ampliação de
parcerias com o estado de Santa Catarina. Dentre os temas debatidos e as
reflexões construídas durante o I Seminário Abramd Sul/RS, podem-se
destacar os seguintes pontos:
Contextualizou-se o que vem ocorrendo no campo da atenção aos
usuários de álcool e outras drogas no Estado do RS, no sentido de uma
denúncia sobre o desmantelamento das redes do SUS e do Suas, e
também dos diferentes modos públicos e gratuitos de cuidado às
pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas;
O Seminário possibilitou o fortalecimento dos laços entre
profissionais, pesquisadores, ativistas, residentes e estudantes
preocupados com as formas atuais de enfrentamento dos problemas
em torno do consumo do álcool e outras drogas, e também favoreceu
momentos de trocas construtivas entre os participantes. Da mesma
forma, favoreceu a ampliação do debate entre profissionais,
comunidade e pessoas que consomem drogas, envolvendo todos os
setores da sociedade;
Considerou-se a desigualdade social como produtora de modos
problemáticos de consumo de álcool e outras drogas, assim como
facilitadora do envolvimento com o tráfico de substâncias ilícitas e da
criminalização do consumo e da pobreza. Na mesma esteira,
chamou-se atenção para o fato de que essa realidade contribui
enormemente para a criminalização da juventude negra e pobre;
Questionou-se as internações compulsórias e involuntárias como
forma de cuidado preferencial para pessoas em situação de
vulnerabilidade social e envolvimento problemático com o uso de
substâncias psicoativas. Também se considerou a Redução de Danos

427
Jardel Fischer Loeck e Luciane Raupp

como importante paradigma de intervenção e diretriz de trabalho a


ser amplamente difundida nas práticas de atenção e cuidado aos
usuários de álcool e outras drogas;
Buscou-se priorizar o olhar para as pessoas que normalmente são
silenciadas sob o rótulo de “usuário de drogas”, na tentativa de tirar o
foco das substâncias e poder produzir deslocamentos subjetivos com
abordagens que favoreçam “possibilidades de ser no mundo”. No
mesmo sentido, foi sugerida a ampliação da participação dos usuários
nos movimentos sociais como Movimento Nacional de Pessoas em
Situação de Rua, Boca de Rua, entre outros.

Considerações finais
Um dos pontos mais marcantes e consensuais do I Seminário
Abramd Sul relacionou-se à necessidade de fomento a espaços como o do
I Seminário Abramd Sul/RS, visando transfor má-los em
‘trincheira’política, ou seja, dispositivo para marcar uma firme posição
para a sociedade e opinião pública, no sentido de não abrir mão de
políticas públicas voltadas para usuários de álcool e outras drogas que
sejam inclusivas, que respeitem os direitos humanos, que não privilegiem a
internação como primeiro recurso de cuidado (que esta seja a exceção,
não a regra) e que dialoguem com a redução de danos.
Desta forma, almejamos que tanto no âmbito regional quanto
nacionalmente aconteça uma maior mobilização de profissionais,
pesquisadores, usuários de álcool e outras drogas e comunidade no debate
sobre as políticas públicas neste campo, para que as necessidades dos
usuários sejam respeitadas e o consumo de tais substâncias em nossa
sociedade contemporânea seja problematizado por todos, coletivamente,
através do diálogo travado entre diferentes opiniões, com o objetivo de
construir propostas que sejam plurais, éticas e dignas.

428
A polifonia da temática das drogas em um seminário regional: Núcleo Abramd-Sul

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429
Jardel Fischer Loeck e Luciane Raupp

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http://dx.doi.org/10.18310%2F2446-4813.2015v1n1p57-65

430
CAPÍTULO 4.7

Uso de drogas entre adolescentes em


situação de rua no Município de São
Paulo: uma contribuição etnográfica

Yone Moura

O desenvolvimento do humano frente às situações de vulnerabilidade


vem sendo discutido por vários autores como forma de subsidiar
programas de intervenção e políticas públicas para a população em
vulnerabilidade, em especial para crianças e adolescentes em situação de
rua (Blum, 1997). Uma situação que ocorre em todos os continentes
(Auerswald e Eyre, 2002; 2016) e a literatura vem mostrando uma grande
preocupação e interesse da comunidade científica sobre um assunto tão
complexo envolvendo a geração futura do planeta.
Esses estudos mostram que não existem fatores que, isoladamente,
favoreçam a situação de rua. Embora cada país apresente suas
especificidades, alguns fatores macrossociais parecem favorecer a situação
de rua de forma global, como os problemas econômicos, a rápida
industrialização e mais recentemente o êxodo de famílias inteiras fugindo
das guerras, terrorismo e catástrofes naturais.
Essas situações reforçam questões sociais de intensa vulnerabilidade
como falta de moradia, com a rápida urbanização, principalmente nas
periferias, como o desemprego para as famílias, a falta de rede social, a
violência de forma generalizada e também a dependência de substâncias.
Diante dessa realidade, os mais diversos fatores e circunstâncias podem

431
Yone Moura

desencadear a saída de crianças e adolescentes para a rua. Outro


importante fator é o de natureza política na ausência de políticas públicas
específicas para atender a situação de rua cada vez mais presente,
atualmente não só nos grandes centros urbanos, mas incluindo também
locais mais distantes dos centros urbanos ou mesmo o desrespeito ao
mínimo de atendimento a essa população já excluída de tudo.
No Brasil, como em vários outros países, o consumo de drogas está
presente no cotidiano de crianças e adolescentes que vivem em situação de
rua (Noto et al., 1997; Noto et al., 1998; Noto et al., 2003; Moura et al.,
2010; Moura et al., 2012). Foram realizados cinco levantamentos
epidemiológicos sobre o uso de drogas entre crianças e adolescentes em
situação de rua, nos anos de 1987, 1989, 1993, 1997 e 2003. No último,
em 2003, foi realizado o primeiro levantamento nacional entre crianças e
adolescentes em situação de rua, envolvendo todas as 27 capitais
brasileiras (Noto et al., 2003).
Nesse sentido, quando se trata de criança e adolescente, torna-se
ainda mais importante conhecer e aprofundar nessa realidade para
compreender qual a complexidade desses fatores que influenciam a saída
dessa população para a rua e também o que faz com que essa saída se
torne permanente. Compreendendo essa realidade, torna-se possível
articular as redes de serviços disponíveis e rearticular as que se encontram
ausentes para acolher e trabalhar de forma integrada visando fortalecer a
rede desses indivíduos.
No entanto, a experiência tem mostrado que os serviços isolados,
ainda que específicos para atendimento de crianças e adolescentes em
situação de rua e uso de drogas, têm-se mostrado inadequados (Carvalho,
Sudbrack e Silva, 2004; Ipea/Conanda, 2004), se não considerar o local
ou locais de preferência que essas crianças e adolescentes escolhem pra
viver. Há que valorizar esse movimento de circularidade, migrando de um
ponto a outro pelas instituições da cidade, na sua movimentação pelas
ruas, circulando pelo espaço urbano e estabelecendo uma rede de relações
num determinado pedaço desse espaço urbano, onde é reconhecido pelos
seus pares (Magnani, 2002).

432
Uso de drogas entre adolescentes em situação de rua no município de SP

Para compreender um pouco mais essa realidade, foi realizada uma


pesquisa no período de outubro/2003 a julho/2005, por vinte e um
meses, com estudos observacionais na rua e em instituição de atendimento
às crianças e adolescentes em situação de rua. A observação foi iniciada
primeiramente nas ruas, nos diversos locais de circulação dessa jovem
população pela cidade de São Paulo. Num segundo momento, foram
visitadas instituições que os atendem, para conhecer o ambiente de
convivência, suas atividades de rotina e o atendimento recebido nesses
serviços.
Os estudos observacionais foram realizados em diversos locais de
circulação desses jovens pela cidade de São Paulo e em dez instituições de
assistência aos adolescentes em situação de rua. Este período de
observação foi fundamental pelo fato de que parte do desenvolvimento
dessas crianças e adolescentes em situação de rua acontece no período em
que estão nas ruas.
Para conhecer o contexto cultural específico dessas crianças e
adolescentes foi utilizado o referencial etnográfico, que permite a
familiarização com uma dada cultura (Atkinson et al., 2001). Para isso, o
pesquisador permanece durante um período de tempo no ambiente
natural a ser estudado, conhecendo a vida e rotina diária dos atores sociais
envolvidos, suas crenças, o que guia suas ações, a linguagem e outros
sistemas de símbolos que media todo esse contexto e atividades (Eder e
Corsaro, 1999). Esse referencial tem permitido compreender as
peculiaridades da cultura na rua, uma vez que as pessoas da rua rompem
com as regras sociais vigentes, estabelecendo uma série de regras, valores e
normas que os organizam. O espaço urbano é, então, ocupado e
identificado por uma população que buscará outros recursos de
sobrevivência e de adaptação para superar as dificuldades do contexto
urbano ao qual está exposta. Ao optar por morar ou permanecer parte do
seu dia na rua, a criança e o adolescente em situação de rua buscam novas
alternativas de vida, transformando esse lugar antes comum, em espaços
específicos que será caracterizado como seu e/ou sua casa.

433
Yone Moura

Com a contribuição etnográfica, o pesquisador precisa reconhecer


que qualquer que seja seu contexto de estudo, ele faz parte de uma rede
mais complexa. É necessário tornar o estranho familiar e o familiar
estranho, possibilitando assim perceber os vários sentidos e significados
presentes nas práticas dos diversos atores sociais envolvidos (Silva, 1999).
Assim, foi utilizado no estudo observacional a Observação
Participante (OP), que norteou os temas observados nesse período para
depois realizar as entrevistas para aprofundar no conhecimento da cultura
da rua, por meio de um roteiro semiestruturado. Esse período
observacional foi importante para perceber que as entrevistas seriam
realizadas somente com os adolescentes respeitando o critério de inclusão
para participar, de estar na rua há mais de seis meses, fazer ou ter feito uso
de substâncias, uma vez que a entrevista qualitativa realizada exigiu nível
de compreensão e discurso que, provavelmente, uma criança ainda não
teria, além de não fazer uso de substâncias, o que foi observado durante a
fase de observação inicial e no estudo piloto.
Todos esses dados observados, tanto nas instituições como nas ruas,
foram anotados no diário de campo para avaliação posterior, como os
dados de observações pessoais, informações informais e obtidas de
entrevistas e descrições dadas por informantes. Optou-se por realizar o
registro das informações, após a saída do campo, por se tratar de uma
população em uma situação já permeada por inúmeras dificuldades, entre
elas o fato de se encontrarem expostas no seu contexto diário e também
para minimizar a interferência da presença do investigador na situação.
A OP realizada permitiu uma aproximação mais direta no espaço
onde os adolescentes perambulam e realizavam atividades cotidianas e
também onde ocorria o uso de drogas, estabelecendo uma rápida
proximidade e confiança entre pesquisador e adolescentes, possibilitando
assim, vinculação com os mesmos.
Os locais observados nesse estudo, no centro da cidade, foram muito
ricos em informação, uma vez que os “pedaços geográficos” estudados
contavam com a presença constante de crianças e adolescentes em

434
Uso de drogas entre adolescentes em situação de rua no município de SP

situação de rua, assim como da população de rua em geral. Esse espaço de


convivência tinha, para os membros dessa população, a característica de
ser mais do que uma região geográfica, mas principalmente um espaço
onde as relações se construíam. Isto pareceu favorecer o uso e abuso de
substâncias psicotrópicas pelos adolescentes, que tem a característica de
agrupamento como uma estratégia de sobrevivência. Neste contexto, as
escolhas feitas pelo adolescente estavam sujeitas a inúmeros fatores
externos e internos que nortearam sua atitude diante do consumo de
drogas. Esse contexto também influenciou na forma de uso de drogas, e
levou os adolescentes a desenvolverem novas estratégias para o uso. Com
os registros da observação inicial, constatou-se que esses diversos fatores
influenciavam a dinâmica diária dos adolescentes na rua. Isso foi
observado no uso de solventes, (como a cola e o thinner), que passaram a
ser utilizados em garrafas pequenas que os adolescentes colocavam na
manga de blusas de frio, como forma de ocultar o porte da droga. Esse
comportamento foi observado em todos os diferentes grupos estudados.
Durante o período de observação desse estudo foram identificados os
seguintes grupos de adolescentes na rua: o grupo de adolescentes do
bairro da Luz ou cracolândia, como chamado pelos próprios adolescentes;
o grupo da Praça da Sé; o grupo do Vale do Anhangabaú; o grupo do
metrô Santa Cruz e o grupo do farol do Shopping Ibirapuera.
O grupo da Luz e do Vale do Anhangabaú era formado por
adolescentes mais velhos, entre 14 e 18 anos. Dormiam em locais que
chamavam de “mocós, muquifos”. A substância mais utilizada entre eles
era a cola e a maconha. No entanto, nesses locais, havia também uma
presença maior de adultos em situação de rua, sendo mais intenso o uso
de álcool e crack por esses adultos nessa região. Com isso, muitos
adolescentes passam a fazer parte desses grupos de adultos e a fazer uso
também de álcool e crack. Esse fato parece aumentar as dificuldades para o
adolescente que, além de toda a complexidade inerente à situação de rua,
o uso constante dessas substâncias deixa o adolescente por mais tempo
exposto à violência das ruas, já que passa muito tempo intoxicado,
dormindo, no geral, pelas calçadas dos prédios públicos daquela região.

435
Yone Moura

O grupo da Praça da Sé, na época do estudo, era mais diversificado,


com grande predominância também de adultos em situação de rua, mas
também com a presença de famílias. Pôde-se observar muitas crianças,
além dos adolescentes, e que tanto as crianças como os adolescentes eram
observados pelos adultos, familiares ou não, quando estabeleciam contato
com o pesquisador. Nessa região, durante o dia, o uso de cola era mais
intenso pelos adolescentes. Foi relatado o uso de maconha por alguns
deles, mas só observado o uso durante a noite no período do estudo,
quando o movimento era mais intenso nessa região. Durante a noite, tanto
o uso, como o tráfico se intensificava, havendo uma movimentação maior
com uma migração de adolescentes de outras regiões também.
O grupo do metrô Santa Cruz foi o de maior número de
participantes constantes do começo ao fim do estudo. Era um grupo de
sete adolescentes do sexo masculino e uma adulta com uma criança de um
ano e seis meses que os acompanhava. A idade variava entre treze e
dezesseis anos, com uma característica importante: todos tinham contato
com suas famílias e esporadicamente voltavam para suas casas,
permanecendo por um período máximo de uma semana. Estes
adolescentes faziam uso diário de cola e álcool e foi nesse grupo que se
observou pela primeira vez a nova estratégia do uso de solventes. Outro
comportamento peculiar nesse grupo era a solidariedade entre seus
membros, mas também a punição para o não cumprimento das regras
estabelecidas. Isso pôde ser observado quando a tia de um dos
adolescentes faleceu e decidiram em conjunto que por respeito aos dois
irmãos do grupo que perderam a tia, todos ficariam uma semana sem usar
nenhum tipo de droga, o que foi cumprido por todos. Como estavam
constantemente intoxicados, foi observado durante esse período a ausência
do uso de drogas, inclusive do tabaco, sendo relatado pelos adolescentes o
motivo de tal comportamento.
O grupo do farol do Shopping Ibirapuera era formado por
adolescentes e algumas crianças que trabalham para ajudar no sustento da
família. A característica principal é que, com exceção de um adolescente,
todos moravam com suas famílias e a maioria estava estudando, indo para

436
Uso de drogas entre adolescentes em situação de rua no município de SP

o farol depois da escola ou voltando para casa em determinado horário


todos os dias para ir para a escola. Nesse grupo, o relato do uso de drogas
é de uso esporádico, predominando o relato de uso de maconha, pois
dizem que a cola é para crianças e que ali não é admitido o uso, pois
atrapalha o trabalho. Durante o estudo observacional, não foi observado
nem mesmo o uso de maconha durante o dia e, à noite, o uso era feito por
grupos de três a quatro adolescentes, fora do local de trabalho e sem a
presença das crianças. Nesse grupo, o adolescente que não morava com
sua família, dizia ter 17 anos e não dizia seu nome, apenas um apelido
pelo qual ele mesmo se identificava e era conhecido pelos demais.
Segundo seus colegas, ele se autointitulava daquela forma para evitar ser
reconhecido pelo seu nome e para não perder alguns benefícios, como
frequentar instituições para crianças e adolescentes, que após dezoito anos
não atende mais o adolescente. Esse fato foi confirmado pelo próprio
adolescente que se dizia revoltado com essa condição de se tornar adulto e
não ter mais um local para receber ajuda. Esta situação entre os
adolescentes tem sido percebida como mais uma situação de estresse. As
instituições e profissionais da área também não estão preparados para
lidar com a situação.
Como foi notado, os estudos observacionais mostraram que
adolescentes, em situação de rua, vivem em grupos, perambulam pelas
ruas, dormem em locais abandonados, debaixo de viadutos, migram de
um local para outro continuamente, inclusive de acordo com o contexto
da cidade naquele momento. Esse contexto acaba por influenciar também
na forma de uso de drogas, levando-os a desenvolver novas estratégias
para o uso. A questão da maioridade parece influenciar no consumo de
drogas e na situação de rua, pois que o adolescente intensifica o uso antes
de completar 18 anos quando pode então ser preso e não apenas sofrer as
medidas socioeducativas, e nas ruas também seu comportamento
mostra-se mais agressivo.
Os adolescentes, durante o dia, dividiam-se em parte do dia para o
trabalho e uma grande parte para fazer uso de drogas, em especial a cola,
mas também de álcool e tabaco e outras drogas. Alguns são usuários de

437
Yone Moura

vários tipos de drogas: maconha, cola, álcool e tabaco. Há ainda um outro


grupo de adolescentes que trabalhava em faróis, convivia diariamente com
suas famílias e frequentava escola, permanecendo apenas um período do
dia nas ruas para o trabalho que consistia em: malabares, venda de doces
e limpeza de para-brisas para ajudar no sustento da família.
Uma segunda fase de observação foi realizada nas instituições, nas
dez instituições que na época do estudo atendiam adolescentes em
situação de rua. Foi realizada diariamente, durante um período
previamente combinado com os profissionais, a observação direta e um
maior envolvimento no cotidiano da instituição. Além do contato com os
adolescentes frequentadores das mesmas, também o contato direto com os
profissionais da equipe foi um período muito relevante para o trabalho. As
dificuldades observadas nas instituições são muitas e as mais diversas,
embora o histórico de experiências acumuladas no trabalho com essa
população. Esse registro reforça a realidade que a maior parte das
instituições relata sobre as mudanças ocorridas arbitrariamente, a partir de
propostas políticas elaboradas sem que diretamente envolvidos e com
experiência na área sejam ouvidos (Noto et al., 2003).
Em geral, foi observado que as instituições apresentaram dificuldade
para encaminhar o adolescente, principalmente para tratamento. Em
períodos de crise, o adolescente fica mais acessível e chega algumas vezes a
pedir ajuda na instituição, como para ser internado, numa tentativa de
parar de usar a droga. Nesse momento, os profissionais iniciam o que
chamam de “peregrinação” entre os diversos serviços de saúde. Uma
outra instituição, com internação para tratamento de adultos e
adolescentes com uso de drogas, também foi observada na época do
estudo por ter recebido vários adolescentes e até crianças em situação de
rua. Esse fato confirma a colaboração entre os serviços, sem, no entanto, a
articulação do serviço em rede. O estudo demonstrou um consenso entre
os diversos serviços de atendimento à população de rua e a fragilidade
dessa rede de assistência como um fator importante que pode contribuir
para a manutenção do consumo de drogas na situação de rua (Noto et al.,
2003).

438
Uso de drogas entre adolescentes em situação de rua no município de SP

No período das entrevistas, dez adolescentes foram entrevistados em


instituição e sete na própria rua. Apenas duas moravam com suas famílias,
voltando todos os dias para casa e trabalhando no farol durante parte do
dia. A maioria era do sexo masculino, sendo 15 adolescentes do sexo
masculino e seis do sexo feminino. Em relação à idade, os meninos
estavam entre 12-17 anos e as meninas entre 12-16 anos. Quanto a
escolaridade, 17 haviam parado de estudar em razão do uso de drogas, a
maioria entre a 4a. e a 5a. série do ensino fundamental e três estavam
estudando, sendo que duas eram meninas. Sobre os motivos que
desencadearam o início da situação de rua, a maioria dos entrevistados
referiu discussões/brigas constantes em casa, maus tratos físicos e a busca
de liberdade. Em relação ao tempo na rua, a maioria dos adolescentes
relatou estar na rua há mais de dois anos.
Para o adolescente em situação de rua, as situações de
vulnerabilidade no ambiente familiar, parecem contribuir para o uso
precoce de drogas, além de associar o uso de drogas à violência doméstica.
Observou-se idade de início precoce, tendo a maioria iniciado o uso antes
da saída para a rua, com uma sequência de drogas variada, com
predomínio do uso de solventes, mais especificamente, a cola entre os
mesmos.
Os depoimentos de entrevista, enriquecidos com as observações da
OP, revelaram associações entre os padrões de consumo de drogas e os
estilos de vida dos adolescentes. Também foi possível notar que esses
padrões mantiveram um relativo grau de homogeneidade entre os
entrevistados, o que permitiu agrupar teoricamente os padrões em três
categorias principais. Uma primeira com maior intensidade de consumo
de drogas e inserção dos adolescentes na cultura da rua; uma segunda foi
caracterizada por menor consumo e situação de maior proximidade dos
adolescentes com suas famílias; e na terceira foi observado maior
envolvimento dos adolescentes com o tráfico, prostituição e menor
proximidade da cultura da rua. Foi ainda observado que os adolescentes,
embora relatassem determinados padrões de uso e estilos de vida
predominantes, tinham histórico de oscilações entre os padrões de uso e

439
Yone Moura

entre as situações e/ou contextos de vida. Ou seja, vale ressaltar que a


categorização desenvolvida no estudo não teve por objetivo agrupar os
entrevistados em categorias estanques, mas sim explorar as diversidades de
comportamentos e suas associações.
Diante dos achados nesse estudo, observou-se que a droga e a rua são
dois fatores que se misturam e se potencializam para enfrentamento de
situações adversas (como por exemplo fome, frio, fuga da realidade). A
vida na rua não dá espaço para a fragilidade do adolescente. Outra
observação durante a OP foi que, em situação de rua, as redes sociais
ganham um papel ainda de maior importância. Os sistemas observados
foram compostos por diferentes segmentos sociais que variaram entre a
família, escola, serviços de saúde, instituições específicas para pessoas
situação de rua, polícia, comércio, tráfico e até mesmo os ambulantes,
transeuntes, motoristas (especialmente nos faróis) e os próprios “irmãos”
da rua. Esses sistemas apresentaram composições que variavam em função
de cada situação de rua em particular. Por exemplo, para os adolescentes
que se mantinham mais próximos da família e trabalhavam nos faróis, os
parentes, os vizinhos, a escola e trânsito tenderam a ter mais relevância do
que as instituições. Por outro lado, para aqueles mais inseridos na rua, as
instituições tenderam a ser mais importantes.
Em entrevistas, os adolescentes relataram buscar instituições para
alimentação, lazer, higiene e cuidados em geral. Apesar da relevância
dessas atividades, observou-se que as instituições eram instáveis, havendo
constantes mudanças de propostas de trabalho, rotatividade de
educadores, dificultando o estabelecimento de vínculos. Além disso, muitas
delas estabeleciam regras percebidas pelos adolescentes como arbitrárias e
inadequadas. A superficialidade na relação com as instituições parece ser
fator de maior permanência dos adolescentes na rua e nesse contexto o
uso de drogas é favorecido.
Nas ruas, foi observada e relatada a presença de policiais, permeada
pelo desconforto e agressividade para com os adolescentes, sendo que os
próprios adolescentes percebiam esta agressividade como parte da função
dos policiais. No entanto, os policiais são também apontados e percebidos

440
Uso de drogas entre adolescentes em situação de rua no município de SP

pelos adolescentes como fator de cuidado e proteção, que têm igualmente


a função de protegê-los também.
Em relação aos serviços de saúde, o atendimento é visto como
precário, além de se exigir condições incompatíveis com a situação de rua
(presença dos responsáveis, higiene e apresentação de documentos). No
entanto, a enorme distância entre os serviços de saúde e a situação de rua,
não é peculiaridade brasileira, já que tem sido observada também em
outros países. Várias barreiras parecem estar em questão, como a própria
descrença dos jovens em relação aos profissionais de saúde, o
desconhecimento desses serviços, bem como os preconceitos dos
profissionais em relação à situação de rua (Geber, 1997). Mas, os
profissionais se sentem pouco preparados, com poucos recursos para lidar
com a situação, refletindo na percepção do adolescente.
Esse conjunto de resultados sobre os diversos segmentos das diferentes
redes sociais, mostra as dificuldades do acesso ao atendimento a essa
população, em todas as diversas áreas, demonstrando a fragilidade da rede
de atendimento ao adolescente em situação de rua. Essa rede oscila entre
o cuidado e ao mesmo tempo, o risco para esses adolescentes. O contexto
social no qual esta população se desenvolve, parece propiciar a
manutenção de sua permanência na rua através de um serviço
desarticulado, percebido pelos próprios adolescentes, os quais muitas
vezes, se utilizam desse fato como meio de sobrevivência nos inúmeros
serviços específicos para a situação de rua. Esses dados demonstram a
relatividade entre risco e proteção. A vulnerabilidade dos diferentes
sistemas sociais (família, escola, instituição, serviços de saúde, polícia)
parece oscilar entre o cuidado e o risco, mantendo assim, o adolescente na
situação de rua.
Assim, na situação de rua, a droga figura como um importante fator
de integração para o adolescente, como uma espécie de mediador nesse
processo. Pensar nesse fenômeno sem situá-lo no contexto sociocultural
onde ocorre sua utilização implica em desconsiderar sua complexidade.
Isso possibilita perceber o “outro” nas suas dimensões sociais e culturais,
entendendo que não existem critérios universais de verdade, mas uma

441
Yone Moura

diversidade de saberes em cada grupo ou população (Lescher et al., 1998;


Gregori, 2000; Magnani, 2002; Auerswald e Eyre 2002, 2016; Rizzini et
al., 2003).

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442
Uso de drogas entre adolescentes em situação de rua no município de SP

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Magnani, J. G. C. (2002). De perto e de dentro: notas para uma etnografia
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Silva, E. R. A. (Org.) - O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos
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Silva, S. L. (1999). As mulheres da Luz: uma etnografia sobre usos e preservação.
Dissertação de Mestrado em Saúde Pública. Universidade de São
Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico.

443
444
CAPÍTULO 4.8

Ninguém falou sobre mim?


O crack, as representações midiáticas, o
sujeito e o contexto sociocultural do uso
no Rio de Janeiro e em Nova Iorque

Danielle Valim

Em abril de 2008, o jornal o Globo1 apresentou matéria intitulada


“As Cracolândias Cariocas: Consumo de crack se alastra entre moradores
de rua (...)”:
O ritual se repete e lembra a cracolândia de São Paulo. O cenário, no
entanto, é a Rua Marquês de Pombal, no centro do Rio, e os usuários
são dois meninos. Lucas, de 10 anos, e Júnior, de 12 (nomes fictícios),
fumam crack todas as noites em frente à antiga sede da Rio Luz,
vizinha à Academia de Polícia e a poucos metros do Batalhão de
Choque da PM [...]. A realidade dos dois garotos na Rua Marquês de
Pombal expõe o alarmante crescimento do consumo de crack entre
moradores de rua.

Na mesma reportagem, o jornalista ainda descreve as condições


físicas, psicológicas, familiares e sociais dos “meninos” Lucas e Júnior:
Os dois meninos perambulam pelas ruas do Centro e Cidade Nova,
sobrevivendo de esmolas e do dinheiro que ganham engraxando
__________
1. Jornal O Globo, Caderno Rio. 11/04/2008. “As Cracolândias Cariocas”. p. 14.

445
Danielle Valim

sapatos. Sujo, descalço e muito magro, Lucas tem as pontas dos dedos
das mãos queimadas pela lata quente usada como cachimbo de
crack. O menino diz ter casa e família, mas prefere viver nas ruas.
Trêmulo e ansioso, evita muita conversa. Júnior tem aparência
melhor, mas também é de pouco falar [...]. Os efeitos do crack são
devastadores.

Ao mencionar a condição física e social de Lucas – uma criança de 10


anos de idade - o jornalista expôs as vulnerabilidades vividas por ele ao
caracterizá-lo como “sujo”, “muito magro”, “descalço”, “ansioso”,
“trêmulo”, “evita muita conversa”, tem “casa e família, mas prefere viver
nas ruas” e “tem as pontas dos dedos das mãos queimadas pela lata quente
usada como cachimbo de crack”. Ao final, o jornalista pontuou que os “os
efeitos do crack eram devastadores”, colocando a condição física,
psicológica, familiar e social de Lucas como resultado dos efeitos
devastadores do crack. Lucas e Junior provavelmente se encontravam em
situação de rua, principalmente, em consequência de déficits relacionados à
miséria, à família, à falta de acesso à educação, dentre outros fatores, e o uso
do crack possivelmente surgiu como consequência, mas a a reportagem
“culpa” de “todos” os problemas vividos por eles fora atribuída à droga.
Entre 2004 e 2012, outras reportagens cariocas sobre crack
foram publicadas: “Tráfico de crack, a nova ameaça” 2; “Ocupação
policial deixa claro que Rio não tem solução para o crack” 3;
“Droga fulminante e sem controle” 4, “Falhas no combate às
drogas” 5, “Crack se espalha e já assusta o Nordeste” 6, “Secretário:
consumo de droga já virou epidemia” 7. Dentre ações e políticas
públicas, o governo Federal, em 2010, lançou a campanha: “Crack, é

__________
2. Jornal O Globo. 19/12/2004.
3. Jornal O Dia. 16/10/2012. Capa. Pg. 1
4. Jornal O Globo. 07/02/2010. Caderno O País. Pg. 3
5. Jornal O Globo. 20/04/2011. Caderno O País. Pg. 3
6. Jornal O Globo. 04/12/2008. Caderno O País. Pg. 3
7. Jornal O Globo. 10/04/2009/ Caderno Rio. Pg. 15.

446
Ninguém falou sobre mim?

possível vencer”, através do “Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e


outras Drogas”8. Percebe-se que o foco central do problema, exposto nos
títulos das matérias jornalísticas e do Programa Federal era o crack
enquanto substância, ou seja, a droga e seus efeitos sobre o indivíduo e a
sociedade. As reportagens pontuavam: “os efeitos do crack são
devastadores”; o “Rio não tem solução para o crack”; “o crack é uma
droga sem controle; o crack assusta; o tráfico de crack é uma nova ameaça
e o consumo de crack se torna uma epidemia”. A política pública federal
centrou-se no “enfrentamento ao Crack” e lançou campanha enfatizando
que o crack é uma droga “possível de vencer”.
Há uma demonização da substância como se fosse a responsável por
todas as mazelas e problemas que seu consumo poderia ocasionar nos
espaços públicos, na população que a consome e na sociedade de forma
geral. Com isto, o crack e seus usuários são representados como uma
ameaça social, desconsiderando o indivíduo que, ainda que submetido
aos efeitos do crack, possui uma multiplicidade de influências socioculturais
envolvidas na relação entre sociedade, sujeito, drogas, uso e abuso que
interferem diretamente em suas escolhas e modo de vida.
Reinerman e Levine (1997) consideram a produção de crack foi uma
maneira encontrada para se expandir a venda da cocaína que, em forma
fumada (crack), teve custos menores, podendo ser introduzida nas camadas
pobres e guetos de grandes cidades americanas, como Nova Iorque e Los
Angeles, assim como exposto por Levine (2014) em entrevista concedida a
Vallim (2015):
Free base e crack são muito intensos, rápidos. Inalar cocaína é quase tão
rápido quanto injetar! É muito rápido! Já envia a droga até o sistema
sanguíneo, e rápido, 5 minutos, 10 minutos e acaba. O que o crack faz
é que fica mais fácil vender a cocaína em menores porções, então, o
que o crack faz é que alguém pode pegar o pó da cocaína e cozinhá-lo
no microondas o que se transforma em pequenas pedras e é vendido

__________
8. Decreto nº 7.179 de 20 de maio de 2010, Presidência da República, institui o Plano Integrado.

447
Danielle Valim

por 5 dólares, 10 dólares. A cocaína em pó é cara, mas a cocaína fumada


[crack] pode ser vendida em pequenas porções e mais barato. Então, o
que o crack foi, primeiramente, uma inovação do marketing. Colocou a
cocaína cheirada em pacotes e pôde ser vendido para pessoas pobres em
grande escala, em cidades. E pôde ser consumido por pessoas pobres.
Este tipo de cocaína (crack) foi uma forma de marketing e venda
transformando uma droga relativamente cara e de classe média e alta
como a cocaína cheirada, em uma droga de rua que pôde ser consumida
pelas pessoas da “vizinhança”... Então, isso abriu a possibilidade de
negócio para todos os tipos de pessoas e fez com que a droga se tornasse
disponível para todas as pessoas na rua. (Vallim, 2015)

A disseminação do consumo atrelado à oferta e a preços acessíveis


possibilitou a chegada e o acesso da droga a guetos e, por ser uma droga de
efeitos intensos, tornou-se rapidamente utilizada por populações minoritárias,
como os negros e imigrantes latinos (Reinermam & Levine, 1997). Levine
(2014) aponta que, desde sua origem, o consumo de crack teve a função de
“pain killer”9 para atender a demandas de uma população miserável, marginal
e excluída social e economicamente da sociedade norte americana.
Foi basicamente usada de forma pesada pelas mesmas pessoas que
usavam heroína de forma pesada, o que significa: pessoas muito
pobres e muito infelizes psicologicamente; e teve que ter muita
miséria para fazer com que o uso regular de crack se tornasse uma
droga atraente. Na época, não todos, mas a maioria da população de
usuários de heroína (a população miserável da época que estava
usando heroína eram pobres e infelizes psicologicamente e estavam a
utilizando como “pain killer”. O crack foi usado pela mesma população
como uma outra forma para matar a dor, para fazer a dor diminuir…
As pessoas que usam o tempo todo são geralmente infelizes,
majoritariamente pobres e a droga os ajuda a esquecer. (Vallim, 2015)
__________
9. Define a droga como sendo utilizada para aliviar as dores consequentes de mazelas físicas,
econômicas e sociais. Termo utilizado pelos usuários, acadêmicos e profissionais que atuam com a
temática do uso de drogas no Estados Unidos.

448
Ninguém falou sobre mim?

Para Medeiros (2008), em nossa sociedade moderna, a utilização de


vários tipos de drogas como o crack, a cocaína em pó, a maconha, o álcool,
a heroína, o ecstasy, antidepressivos etc. são utilizados como uma
ferramenta para mascarar os déficits nos espaços de relações interpessoais
(familiares e afetivas) e ausências incorporadas ao estilo de vida (falhas
sociais).
Considerando a importância do cenário sociocultural, Vallim (2015)
acredita que uma das questões centrais que deve ser respondida é: o que
pode colaborar com o uso compulsivo de crack?
Como resposta, Vallim observou que as motivações pessoais
resultantes do histórico de vida e contextos socioculturais anteriores ao uso
da droga; somadas ao estado individual do sujeito no momento em que se
dá o uso – considerando as características psicológicas e pessoais,
incluindo sua estrutura de personalidade, expectativas individuais,
condições físicas e psicológicas, o SET10- foram dados como os fatores de
motivação para o uso compulsivo de crack (2015).
Exemplos sobre expectativas e motivações individuais gerados em
torno do uso são representados pelos termos utilizados pelos participantes
sobre os efeitos e sensações que o uso de crack promove, sendo
denominados “a onda” no Rio de Janeiro e “o high” em Nova Iorque,
assim como nos descrevem os relatos em duas entrevistas:
“A “onda”, porque a onda, ela te deixa assim muito arrastado,
muito!... Sem saber, se você não segurar a “onda” ela te enlouquece,
te deixa naquela adrenalina máxima querendo mais e mais!” (Vallim,
2015)
“Eu estou procurando pelo “high”, eu gosto do “high”. Eu quero a
euforia.” (Vallim, 2015)

__________
10. MacRae & Simões, 2000.

449
Danielle Valim

Durante o percurso da investigação no Rio de Janeiro e em Nova


Iorque, cidades de diferentes países com diversos aspectos culturais,
econômicos e sociais, o uso de crack foi colocado como uma forma de
fugir ou melhor lidar com fatores psicológicos, sociais e
comportamentais gerados por abalos emocionais desencadeados pelos
conflitos e ausências na constituição e organização da vida social (Vallim,
2015).
Os efeitos do crack (a substância) colocaram-se para o sujeito que a
consome abusivamente como o produto que atende à busca por formas de
satisfação não alcançadas em sua trajetória pessoal de realizações na vida.
Neste sentido, o crack se apresenta como uma alternativa de satisfação, de
modo a amenizar os “problemas da vida” e o uso abusivo se coloca como
uma maneira de preenchimento de angustias e referenciais (Albuquerque,
2010).
Ao serem perguntados sobre o porquê de usar crack, no Rio de Janeiro
foi muito recorrente ouvir respostas como: “Eu uso o crack pra esquecer os
problemas”. E em Nova Iorque: " I use drugs for do not fell the pain” (Eu uso
drogas pra não sentir a dor11).
Abaixo seguem trechos de entrevistas (Vallim, 2015, p. 263) com os
participantes em que expõem de forma clara os históricos psicológicos e
perspectivas pessoais diante do uso:
Entrevista 3
“Não é o crack que é mal. Não é a heroína que e má. Você sabe! Crack!
Você acha que crack é mal. Eu acho que várias coisas são más. As
pessoas usam drogas por várias razões: porque seus filhos foram
tirados, pessoas usam drogas porque tem uma relação abusiva, seus
pais morreram. Eles usam drogas se seus filhos morreram. Eles usam
drogas por tantas razões, você sabe! Diferentes razões do porquê de
usarem drogas.
__________
11. O sentimento de “dor” em questão se refere aos fatores psicológicos e comportamentais gerados
por abalos emocionais desencadeados pelos conflitos e ausências na constituição e organização da
vida social.

450
Ninguém falou sobre mim?

Entrevista 1
Pesquisadora: Você acha que a dependência de crack atrapalha sua
relação com sua família?
Participante: Muita coisa atrapalha a minha vida.

Entrevista 4
Pesquisadora: Você acha que o fato de você usar crack gerou
problemas na sua relação com sua família?
Participante: Eu uso drogas porque fui abandonada. Eu me
automedico com drogas porque minha família tem uma relação
abusiva comigo... A razão por eu ter uma má relação com minha
família não é porque eu uso drogas. Eu uso drogas por causa da
minha relação com minha família. Me ajuda a não ficar tão
carregada com meus sentimentos que me consomem. Eu acho que
fora das drogas, poderia me matar. Se eu não usasse drogas, eu não
estaria viva agora… Se eu não tivesse nada pra aliviar minha dor, eu
estaria consumida agora…

Entrevista 5
Participante: Eu fui criada pelo sistema. Minha mãe era doente
mental e eu fui criada em orfanato.
Pesquisadora: Porque você usa drogas?
Participante: Fui pras ruas muito cedo. Aprendi a linguagem da
rua. Eu fui estuprada. Quero esquecer que fui estuprada…
A sociedade é hipócrita. Eu gosto das “dark zones”. Eu me sinto segura
porque estas pessoas podem te entender de uma forma que outros,
não. Eles fazem o que supostamente querem fazer. Fora da “dark zone”
quando alguém te olha de banho tomado e vestida, eles te estupram.

451
Danielle Valim

Entrevista 6
Participante - Minha mãe é uma mulher perigosa.
Pesquisadora - Você tem filhos? Como é o seu relacionamento?
Participante - Sim, uma filha de 17 anos. Ela mora em Porto Rico.
Só a vi quando era bebê, depois a mãe não deixou mais eu vê-la. Ela
diz pra minha filha “seu pai usa drogas”.
Pesquisadora - Porque você não tem família?
Participante - A minha mãe usava crack e heroína e me vendeu por
$500,00 quando eu era criança.
Eu uso todas essas drogas porque eu não quero sentir a dor porque
minha mãe e meu pai me abandonaram. Por causa da minha relação
com minha filha. Eu preciso de ajuda. Tenho muita dor dentro de
mim, mas eles não me ouvem.

Entrevista 8
Participante - Meu pai veio a falecer também, eu com dez anos.
Pesquisadora: Ele faleceu quando você tinha dez anos?
Participante - Dez anos é minha mãe, eu estava com quatro.
Pesquisadora - Sua mãe, você estava com quatro anos?
Participante - E ela com vinte e três. Eu acho, assim, de lembrar-se
dela. Porque eu lembro muito devido a não aceitar a vida que nós
tínhamos, e não aceitar a que nós viemos a ter depois de ela vir a
falecer, foi muito difícil. Eu acho que começou daí tudo isso.
Pesquisadora - E ela, morreu de quê?
Participante - Ela foi assassinada.

Entrevista 9
Eu não uso drogas porque a droga é o problema, eu uso drogas
porque eu tenho problemas.

452
Ninguém falou sobre mim?

Entrevista 10
Pesquisadora - Porque você usa crack?
Participante – Porque eu fui molestado quando era criança [choro].
Eu fui molestado pelo meu treinador de baseball. Ele me pegava em
minha casa para ir aos treinos e me molestou por tantas vezes.
(Vallim, 2015, p. 263)

Percebe-se, então, que nos casos aqui analisados, tanto no Rio de


Janeiro, quanto em Nova Iorque o uso abusivo de crack apresenta-se como
uma forma alternativa de satisfação diante de fragilidades inseridas na
trajetória de vida e relacionadas ao contexto sociocultural dos indivíduos
que o consomem. E, embora a droga não seja a protagonista dos
problemas na vida destes sujeitos, as representações midiáticas, assim
como as políticas públicas inseridas nesta temática, se focam na substância
como a causa de todos as mazelas, deixando de lado a subjetividade e
contexto sociocultural inseridas na trajetória de vida destes indivíduos. O
que se percebe é que os efeitos desta representatividade são extremamente
nocivos, ao ponto que criam imagens estereotipadas e estigmatizadas dos
sujeitos que fazem uso abusivo de crack e inviabilizam a criação de
alternativas pautadas na construção de uma cadeia de conexões
socioculturais fortalecidas e bem estruturadas a esta população, que
podem se apresentar como medidas de intervenção, apoio e atenção,
reduzindo suas vulnerabilidades.

453
Danielle Valim

Referências
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históricas e antropológicas do crack na contemporaneidade (pp. 13-37).
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Vallim, D. C. (2015). Os passos dos indesejáveis. Um estudo sobre o contexto
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Iorque, Tese de Doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro-RJ.
Vallim, D. C., Zaluar, A., & Sampaio, C. (2015). Uma etnografia das cenas
de uso de crack no Rio de Janeiro e seus efeitos nos usuários. In:
Teixeira, M., & Fonseca, Z. (Orgs.), Saberes e práticas na atenção primária à
saúde: cuidado à população em situação de rua e usuários de álcool, crack e outras
drogas. São Paulo: Hucitec.

454
CAPÍTULO 4.9

Cracolândia, Blocolândia, o outro, a


imagem, as emoções e o contexto

Selma Lima da Silva


Rubens C. F. Adorno

No carnaval de 2016, fui acompanhar o Blocolândia - bloco de


carnaval composto por usuários de crack e dos serviços de saúde, e por
trabalhadores que atuam na cena de uso paulistana, conhecida como
“Cracolândia” - em companhia de um pesquisador austríaco de nome
Michael. E, por ter tido um compromisso antes, tive de ir com uma bolsa,
o que geralmente não faço quando vou para lá. Quando o bloco passava
pela esquina da rua Dino Bueno, na esquina onde começa o fluxo, um
rapaz branco que estava fumando crack reconhece Michael, chama-o e
troca algumas palavras. Quando Michael se junta novamente a mim diz:
“Ah, estranho, ele falou para eu avisar na ‘casa’ (Missão Belém), que ele
está aqui. Mas estou achando estranho porque se eu falar que ele está
aqui, ele vai ter que sair da ‘casa’ ”. Resolvemos voltar até a esquina do
fluxo e chamar o rapaz para esclarecer se era esse mesmo o recado.
Quando o chamamos, estava em meio a uma tragada, fez sinal para que
esperássemos, virou o rosto para o lado, soltou a fumaça (norma de
etiqueta, na cena de uso, para não soltar a fumaça na cara de quem não
fuma), confirmou o recado e perguntou: “Vocês estão com tempo para
conversar, vamo conversar? ” Com a nossa afirmativa, ele nos chamou
para sentarmos na praça em frente à Estação Júlio Prestes.

455
Selma Lima da Silva e Rubens C. F. Adorno

Eu e Michael nos sentamos em um banco e o rapaz, de nome Miguel,


se sentou no chão à nossa frente. Como segurávamos um papel com a
letra da marchinha do bloco, faz um movimento rápido e puxa o papel
das mãos de Michael ao que faz a seguinte observação: “Tem que ficar
esperto! ” Relata que saiu da casa do “padre” porque se envolveu em uma
discussão que terminou em agressão física, mas que gosta do lugar,
gostaria de poder voltar.
Como já conhecia Michael da casa, tenta saber qual é a nossa
relação, pedindo licença ao Michael para se dirigir a mim (uma regra dos
presídios, adotada na rua, para não se dirigir direto às mulheres que
podem ter alguma relação com o homem de quem estão acompanhadas e,
assim, desrespeitá-lo). Explicamos que somos colegas e pesquisadores.
Enquanto falamos, tenta fazer a mesma brincadeira de tirar o papel da
minha mão, mas consigo puxar o papel para junto do meu corpo e ele não
consegue tirá-lo de mim, ao que observa: “Tá esperta!”
Começa a falar de sua vida. Nos conta que é de uma cidade pequena
do Paraná, que fazia trabalhos como marceneiro e que tinha feito todo o
trabalho de revestimento de madeira nas paredes e no teto da casa do pai.
Conta que tem um irmão de quem é muito próximo e que este começou a
ser extorquido pela polícia pelo envolvimento com drogas. Em uma dessas
ocasiões, viu, pela janela de casa, que o irmão estava sendo espancado
pela polícia; então, para defender seu irmão, deu um tiro no policial, fato
que o fez sair de sua cidade.
Conta que morava junto com sua namorada, mas por problemas com
o álcool, o relacionamento terminou. Diz que já usava crack em sua cidade,
mas que “O meu problema é com o álcool”, e nos mostra a garrafa de
Corote em sua mão. Nos pergunta que idade achamos que tem porque se
acha muito acabado, insiste na pergunta. Digo que deve ter 33 anos ao
que ele responde ter 28, um pouco decepcionado por, realmente,
aparentar mais idade. Fico um pouco desconcertada. Ele continua
narrando a sua história pregressa no Paraná e de como a casa em que
vivia era boa, como montou a casa com os equipamentos eletrônicos e
eletrodomésticos e de seu trabalho com madeira.

456
Cracolândia, Blocolândia, o outro, a imagem, as emoções e o contexto

Diz que tem fotos no seu Facebook, então me pergunta: “Você tem
celular? Coloca o meu nome no Facebook para você ver as fotos.” Apesar
de pensar que poderia ficar sem meu celular, que eu ainda estava
pagando, e saber que na condição de vida dele, eu é que estava facilitando
a situação para ser roubada, não consegui responder que não tinha. Muito
embora me passasse pela cabeça que o celular, que para mim custou caro,
para ele, muito provavelmente, a depender de sua necessidade e
capacidade de negociação poderia valer de R$ 300,00 até R$ 50,00, mas
qualquer quantia poderia ser muito dinheiro para ele também. Com todos
esses pensamentos e me sentindo muito mal por estar me sentindo
vulnerável por causa de um objeto, retirei hesitante o celular da bolsa e
tentei encontrá-lo no Facebook. Como não consegui encontrar ele me diz
para passar o celular para ele. Eu digo que vou tentar novamente, mas não
consigo. Nesse momento ele está sentado a meu lado no banco. Passo o
celular para ele e penso: “Ok, perdi meu celular.” Ele pega o celular nas
mãos, olha para mim e faz um movimento com o corpo, para começar a
correr. Eu não esboço nenhuma reação, já que já havia dado o celular por
perdido. Ele sorri e começa a digitar o seu nome na busca do Facebook.
Começa me mostrar a sua página, entrar em seus álbuns, me mostra
a casa em que vivia com o pai e seu trabalho de marcenaria nas paredes e
no teto. Me mostra as suas fotos com a antiga namorada, de quem ainda
gosta. Mostra as fotos de seu pai e irmão, as suas próprias fotos, vestido no
estilo gangsta-rap, uma foto onde se lê, escrito em letras grandes com balas
de revólver, a palavra amor. Ele queria mostrar a sua vida, falar de seus
gostos, mostrar e/ou lembrar de quem era, me mostrar que era alguém,
além de usar crack. Fiquei com uma sensação muito ruim por ter de me
preocupar com objetos. A conversa durou em torno de duas horas, por fim
eu disse que precisava ir embora e pedi meu celular de volta. Ele me
devolve o celular, levantamos e então ele me abraça demoradamente e
fala: “Obrigado, você me permitiu ver pessoas que eu não vejo há muito
tempo.”
O relato acima, ocorrido na cena de uso que se tornou icônica no
Brasil, desmonta o desfecho esperado, inclusive para a pesquisadora, como

457
Selma Lima da Silva e Rubens C. F. Adorno

a única possibilidade para esse lugar, quando se envolve um objeto que é


um dos itens mais roubados na cidade de São Paulo. Nesse breve relato é
possível também desmontar as crenças mais comuns a respeito do que o
uso de crack pode fazer com uma pessoa e, principalmente, com uma que
está vivendo em uma cena de uso e de acordo com algumas das estratégias
lá utilizadas para conseguir dinheiro e garantir, minimamente, a
sobrevivência e o consumo. As crenças de que o uso de crack levará,
inevitavelmente, ao “descontrole”, perda da autonomia frente à droga
levando a habitar a cena de uso (uma consequência quase natural para
quem o fizer), também são constantemente reafirmadas.
Diversas pesquisas da área de saúde, geralmente da área da saúde
mental, e acadêmicas (Fiocruz, 2014; Horta et al, 2011; Guimarães et al,
2008) são desenvolvidas a partir do consumo problemático: usuários que
estão em tratamento ou internados ou da visibilidade dada ao uso em
contexto de rua, como no caso da cena de uso público de São Paulo, sem
que se dissocie: uso da substância e viver em situação de rua; situação que,
por si, só traz grandes prejuízos à saúde. Buscando traçar um perfil do
usuário, homogeneízam-se os usos e os usuários sem levar em
consideração os contextos e as trajetórias particulares desenvolvidas em
cada contexto de uso.
A constituição do consumo de drogas como um problema de saúde e
social, aliás, foi um esforço desenvolvido, no campo da saúde, pela
medicina e psiquiatria e que se consolidou em meados do século XX. O
uso de drogas ganhou visibilidade fora das esferas psiquiátricas e também
jurídicas com o advento da Aids, mas, ainda, dentro de uma esfera
bioquímica, isto é, quando se pensa no corpo como um referencial restrito
ao seu funcionamento biológico e à droga como agente, desqualificando
contextos e agenciamentos dos sujeitos; da área de interesse da saúde
pública, para intervir sobre os agravos à saúde da população. Com o uso
de droga sendo alçado a um problema de saúde pública se demandará,
ainda que de forma instrumental:
A introdução das ciências sociais e, mais recentemente, da etnografia
no campo sanitário, que atribui às ciências sociais um papel “técnico”

458
Cracolândia, Blocolândia, o outro, a imagem, as emoções e o contexto

ou de ferramenta para trazer os grupos de difícil acesso para os


serviços de saúde. Expressões como “populações ocultas”,
“populações de difícil acesso” ou “populações vulneráveis” fazem
parte do repertório da saúde pública contemporânea, notadamente
após a epidemia do VIH-Aids (Adorno, 2011, p. 543).

Contudo, o uso de drogas injetáveis:(...) só se tornou objeto de


preocupação das políticas de prevenção e controle da Aids em 1988,
quando foram elaboradas as primeiras propostas de intervenção junto a
este grupo específico. Além disso, até o surgimento da Aids o
desconhecimento desse assunto era quase completo, sendo tratado mais no
âmbito jurídico-penal do que como uma questão de saúde pública
(Grangeiro, 1994, p. 95).
A pesquisa sobre o uso de drogas passou a ser tema de interesse da
Antropologia, a partir dos anos 50 do século passado, quando esse uso
passa a se constituir em “problema das drogas”. No Brasil, até a década de
90 desse mesmo século, a pesquisa sobre drogas nas ciências sociais era
bastante incipiente e focavam mais na violência e criminalidade associadas
ao tema.
Quanto aos estudos etnográficos sobre uso de drogas, no Brasil, até
1994, segundo Macrae (1994), podia-se contar, apenas, com quatro
trabalhos pioneiros como os de Velho (1975); Macrae e Simões (1989);
Lima (1990) e Fernandez (1993). Epele (2010) sinaliza a mesma dinâmica
com relação aos estudos sobre o uso de drogas na Argentina: (...)
Además de un conjunto de antecedentes locales sobre el uso de drogas,
específicamente dentro del dominio de salud mental y de la epidemiologia (...) el
desarrollo del conocimiento sobre este tema estuvo forzado, principalmente, por la
emergencia instalada por la epidemia del VIH-sida (p. 35).

A autora ainda destaca que pesquisar o uso de drogas definiu novos


desafios para as ciências sociais e para a antropologia e que a noção de
populações invisíveis e de difícil acesso, na área da saúde, criaram uma

459
Selma Lima da Silva e Rubens C. F. Adorno

demanda para estudos etnográficos como possibilidade de acessar essas


populações com desafios metodológicos que também se colocavam para
pesquisas sobre o uso de drogas (Epele, 2010).
Trabajar con poblaciones de usuarios/as de drogas impone la inclusión y la
resolución de las distancias y obstáculos: el estigma, la discriminación, la
ilegalidad, las sanciones sociales y los estados subjetivos asociados al consumo de
sustancias psicoactivas. La observación participante hace posible confrontar y
neutralizar los sesgos que implica el desarrollo de entrevistas em estas poblaciones y
contextualizar em lógicas locales las características y consecuencias de
determinadas prácticas de consumo de drogas (p. 29-30).

A antropóloga Maria Epele (2010) ainda destaca que o


desenvolvimento de estudos antropológicos, que abordaram criticamente o
uso de drogas e populações marginalizadas, ocorreram em um momento
de revisão teórica e metodológica da etnografia como método, a partir da
entrada dos antropólogos em territórios cercados pela violência cotidiana,
onde intensos conflitos, enfrentamentos armados e guerras têm lugar, e
sofrimentos intensos e demandas de saúde impõem suas agendas e essas
tensões passam a fazer parte da pesquisa etnográfica.
Poder compreender os consumos de drogas pela perspectiva do
sujeito e de seu contexto de uso, e conhecer o seu entendimento acerca do
próprio uso, é um objetivo que a etnografia pode desenvolver. Esta
pesquisa teve como objetivo conhecer outros usos possíveis de crack e
buscou, também, compreender os significados atribuídos ao uso durante as
trajetórias de uso dos sujeitos, no contexto em que estão inseridos, suas
práticas de utilização e estratégias para o controle do uso e para o uso, e
verificar como essas práticas e estratégias, além de serem construídas na
sua experiência e em seus percursos de uso, estão mediadas reflexivamente
pelo imaginário do consumo problemático. Para isso, além de se valer de
etnografia realizada em São Paulo e em Lisboa, ouviu, nessas duas
cidades, usuários e ex-usuários de crack de uso não visível que não estavam
em centros de tratamento.

460
Cracolândia, Blocolândia, o outro, a imagem, as emoções e o contexto

As pesquisas desenvolvidas com usuários de drogas, em geral; e com o


crack, em particular, os acessam via centros de tratamento para consumos
problemáticos ou com essa mesma perspectiva enquadram aqueles que se
encontram em cenas de uso público. Isso acaba por enviesar as pesquisas,
pois, o fato de a pessoa estar em tratamento, já deixa claro a existência do
“uso problemático” e reforça, principalmente no caso do crack, a noção
determinista de que todo uso terá o mesmo fim. Nessa pesquisa, a
pretensão foi exatamente o contrário. Procurei criar um vínculo para que
as pessoas pudessem discorrer livremente sobre suas histórias de vida e os
usos que faziam tanto de drogas lícitas como ilícitas, tendo como
pressuposto de que haviam e/ou seguiam usando o crack entre as
preferências que tinham por esta ou aquela droga.
O meu pressuposto ou hipóteses, se se pode dizer assim, partia das
experiências anteriores com as etnografias que realizei com mulheres que
faziam programa e também usavam crack durante essa atividade e de
outros momentos em sua vida. Nessa pesquisa, verifiquei que mesmo
aquelas pessoas sobre as quais pesava o rótulo de “prostitutas”, “noinhas”,
“drogadas”, ou seja, vistas como “vulneráveis” – primeiro, pelo simples
fato de serem mulheres e de serem mulheres de comportamentos
reprováveis – tinham em seu cotidiano preocupações com seus usos,
introduzindo aquilo que poderíamos chamar de práticas de controle em
uma função de preocupações com seu corpo.
O uso de uma droga se vincula à produção de emoção, prazer e
sensações que têm como espaço de realização o seu corpo que, nesse
momento, se torna um campo de exploração sensorial. Desta forma, como
pude perceber nas densas narrativas que recolhi, o próprio uso está
intimamente relacionado com o uso do corpo, como denominei de campo
de experiências que as pessoas visam amplificar. Portanto, aquilo que
chamamos de cuidados e de controles passa a ser as ações para dar
continuidade ao fluxo de vida que, nesse caso, é intensamente celebrada
pela possibilidade de poder conter nesse espaço físico que é o corpo que
explora, até o limite, as possibilidades sensoriais e emocionais (Ingold,
2011). O que referi acima pode ser lido e interpretado pelas noções que

461
Selma Lima da Silva e Rubens C. F. Adorno

Becker (1966) e Zinberg (1984), por exemplo, elaboraram sobre as


“carreiras de usuário” e os contextos de vida das pessoas que usam drogas
e que deram origem a noções como controle de uso, usos regulados,
aprendizado de uso etc.

Voltando ao relato; o que depreendemos dele é que (a despeito da


imagem do usuário de crack, na cena de uso, ser tido como incapaz de
tomar decisões por estar tomado pela droga e pelo desejo irresistível de
continuar o uso) ele é capaz não somente de decidir qual conduta adotar
frente a uma possibilidade fácil de conseguir algum dinheiro ou manter
uma conversa que lhe trará ganhos emocionais, como também seguir
normas de conduta que regem o espaço da cena de uso: não jogar a
fumaça do crack no rosto do interlocutor que não fuma, não se dirigir
diretamente a mulher/família do interlocutor masculino, sair do fluxo
para conversar. Também evidencia como o usuário, tido como
descontrolado, é capaz de refletir sobre sua condição geral, sobre os seus
usos e identificar, entre esses, segundo sua perspectiva, qual lhe causa
problemas.

Referências
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ameaça: políticas públicas e as populações em situação de rua. In:
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462
Cracolândia, Blocolândia, o outro, a imagem, as emoções e o contexto

Fernandez, O. R. L. (1993). A epidemia Clandestina: Aids e o uso de drogas


endovenosas em São Paulo. Dissertação de mestrado, Pontifícia
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(RS). Rev. psiquiatr. R. G. [online]. 2008, vol.30, n.2, pp.101-108.
Grangeiro, A. (1994). O perfil socioeconômico dos casos de Aids na cidade
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Ingold, T. (2011). Being alive: essays on movement, knowledge and description. New York:
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Lima, J. R. C. (1990). Passageiros da Fantasia. Fundação Joaquim Nabuco.
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Perlongher, N. (1987). O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São
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463
Selma Lima da Silva e Rubens C. F. Adorno

Velho, G. (1975). Nobres e Anjos. Um Estudo de Tóxicos e Hierarquias. Tese de


doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,,
Brasil.
Zinberg, N. E. (1984). Drug, Set and Setting. New Haven, Connecticut: Yale
University Press.

464
C A P Í T U L O 4 .10

O crack: das folhas ao ‘bloco’

Thiago Godoi Calil


Rubens C. F. Adorno

Escavações recentes realizadas no Equador mostram que existe uma


relação entre a espécie humana e o arbusto de coca há pelos menos cinco
mil anos (Escohotado, 2008 p. 115). Aparentemente a origem da palavra
‘coca’ deriva da língua ‘Aymara’, significa ‘planta’ ou ‘árvore’. Depois do
tabaco, a folha de coca é a substância mais importante descoberta na
América, se levarmos em conta a quantidade de pessoas que declaram
fazer seu uso (Escohotado, 2008 p. 350). Há indícios do uso da folha de
coca por outros povos anteriores aos Incas, mas neste Império a prática de
mascar as folhas ganhou destaque e era privilégio para poucos da nobreza
(Escohotado, 2008 p. 118).
Entre muitos povos indígenas existe a crença de que a planta de coca
é um presente de Pacha Mama (mãe terra), “pois sem a planta seria
impossível suportar as dificuldades do trabalho e a desnutrição”
(Escohotado, 2008 p. 1262). Farmacologicamente, mascar a folha de coca
tem como base um efeito estimulante, capaz de diminuir a fome e
promover o vigor físico. Hoje em dia é utilizada tradicionalmente por
povos indígenas e populações campesinas que moram em altitudes
elevadas principalmente no Peru, Bolívia, Colômbia e Equador.

465
Thiago Godoi Calil e Rubens C. F. Adorno

Em 1859, o professor alemão A. Niemann isolou o princípio ativo da


cocaína. Logo, o médico francês Ch. Fauvel foi um dos primeiros a utilizar
a substância para diversas finalidades, principalmente analgésicas em
problemas de garganta de cantores, pois ele a considerava um eficiente
tensor das cordas vocais (Escohotado, 2008 p. 449). Em seguida, passou a
ser prescrita por muitos médicos como tratamento para usos
problemáticos de ópio, morfina e álcool e a publicidade divulgava o uso de
cocaína como ‘um alimento para os nervos’ e ‘uma forma inofensiva de
curar a tristeza’ (Escohotado, 2004, p. 87).
Rapidamente o emprego da cocaína ultrapassou as fronteiras da
esfera médica e farmacêutica e, em 1890, já haviam muitas bebidas que
continham extratos condensados de cocaína, como o vinho Mariani e a
Coca-Cola. No início do século XX houve divergências sobre as reais
consequências do uso da substância e gradativamente as ações restritivas e
punitivas baniram qualquer tipo de uso (Harrison Narcotics Act, 1914;
Boggs Act, 1951; Narcotics Control Act, 1956). Imediatamente surgem os
laboratórios clandestinos para manter a produção e circulação da
substância pelo fluxo do mercado ilícito. Neste processo temos uma
redução significativa da qualidade e aumento do preço da substância,
mantendo o uso principalmente entre populações marginalizadas
(Morgan, Zimmer, 1997, p. 132).
Devido ao alto preço da cocaína em pó, esta forma de uso prevaleceu
entre as classes mais altas, e na década de 1970 surgiu uma alternativa
para o uso de cocaína fumada, conhecida como freebase (Morgan, Zimmer
in Reinarman e Levine, 1997).
A principal diferença entre o crack e o freebase é que o freebase era
geralmente preparado pelas próprias pessoas que o consumiam a partir da
compra de cocaína em pó, já o crack passou a ser cozinhado pelos
traficantes e vendido já pronto para o consumo.
Farmacologicamente o uso de cocaína fumada apresenta um melhor
custo-benefício, principalmente para a população de menor poder
aquisitivo. Segundo Denis Petuco, “a pedra (crack) tornou o consumo de

466
O crack: das folhas ao ‘bloco’

cocaína acessível às classes menos favorecidas, já que diminuiu os custos de


fabricação e transporte” (Petuco, 2011 p. 24). Uma dose pequena de
cocaína em pó que seria insuficiente para proporcionar efeito quando
inalada se torna uma dose efetiva quando convertida em crack e fumada
(Morgan, Zimmer, 1997, p. 134).
Este acesso do consumo de cocaína em forma de crack pelas
populações pobres ganha sentido, pois o “efeito intenso e barato era
melhor ajustado às finanças e interesses imediatos da população pobre do
centro da cidade do que o efeito sutil e cheio de status da cocaína em pó.
(Reinarman, Levine, 1997, p. 02).
Desde a Convenção Única de Entorpecentes, em 1961, a base da
política de drogas internacional é de caráter proibicionista com o objetivo
de erradicar qualquer cadeia produtiva de substâncias ilícitas (Petuco,
2011, p. 23). Esta orientação proporcionou um conjunto de práticas que
atuam na
emergência das drogas como ‘problema social’ a partir de uma visão
catastrofista, descolada da realidade epidemiológica, que articula
práticas de estigmatização e criminalização de populações já
vulneráveis a uma retórica sanitária, em um cenário mundial em que
políticas assistenciais cedem espaço à repressão…. (Petuco, 2011, p.
24)

Petuco acrescenta que o crack surgiu como alternativa à política


proibicionista do controle de produtos químicos necessários para o refino
da cocaína e do freebase (éter ou acetona) pelo Departamento de repressão
às drogas do governo dos Estados Unidos (DEA) (Petuco, 2011 p. 24).
Sendo assim, fica evidente que o surgimento do crack não aconteceu por
acaso, mas dentro de um contexto complexo de forças políticas.
Nos anos 1990 percebeu-se uma significativa transição da via de
administração de cocaína injetável para a fumada. Não se tem dados
consistentes sobre este fenômeno, mas geralmente é associado à baixa
oferta de cocaína em pó no mercado, à crescente perda de qualidade da

467
Thiago Godoi Calil e Rubens C. F. Adorno

cocaína em pó, à grande disponibilidade de crack e às angústias


relacionadas aos riscos e mortes relacionadas à via de administração
injetável (overdoses e transmissão do HIV e Hepatites virais).
O crack surgiu no fim de 1984 e 1985 entre descendentes de africanos
e latinos em bairros pobres das regiões centrais de Nova York, Los Angeles
e Miami (Reinarman, Levine, 1997, p. 02), sendo uma versão da cocaína
possível de ser fumada. A via de administração da cocaína fumada tem
características próprias que proporcionaram mudanças nas dinâmicas em
torno do seu uso.
Na cidade de São Paulo, a primeira apreensão de crack ocorreu em
1990 no bairro de São Mateus e Cidade Tiradentes, na Zona Leste, mas
logo chegou ao centro na região da Luz. Atualmente, na cracolândia a
pedra de crack é chamada de ‘bloco’. Basta uma aproximação do ‘fluxo’
(hoje o local de uso e comércio intenso de crack) que logo será oferecido um
‘bloco’. Em uma das conversas em campo, um interlocutor local diz que
“é o partido que alimenta o crack aqui. Um quilo de crack está custando 14
mil reais. Com um quilo é possível fazer cerca de 10.000 pedras”. A venda
de uma pedra inteira pelo valor padrão de 10 reais gera um retorno de
100 mil reais, com lucro de 86 mil reais. Podemos imaginar quantos quilos
circulam por ali em um único dia...
Apesar da recente pesquisa “Perfil dos Usuários de Crack e/ou
Similares no Brasil” realizada pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) ter
apresentado dados contrários à percepção do senso comum, a ideia de
‘epidemia do crack’ permanece no imaginário social. O estudo estima que
370 mil pessoas usam crack e similares (pasta base e merla) no Brasil, sendo
menos de 1% da população total do país. Este dado é significativamente
baixo para aferir o conceito de epidemia, além de ser inferior ao uso de
outras drogas como álcool, tabaco e solventes, ou das ilícitas maconha e
cocaína (Fiocruz, 2013). Uma informação importante é o fato de que 80%
destas pessoas utilizam a droga em espaços públicos, ou seja, à vista de
todos e todas (Fiocruz, 2013).

468
O crack: das folhas ao ‘bloco’

Na década de 1990 o crack – mistura de pasta base de cocaína, água,


bicarbonato de sódio e outras substâncias difíceis de definir – chegou ao
centro. O uso e comércio desta substância foi se territorializando no bairro
da Luz, Campos Elíseos e Santa Cecília, provavelmente associado à
degradação do bairro após a saída da Rodoviária em 1982 e também
devido ao fluxo crescente de pessoas de regiões periféricas para o centro.
Com a saída da Rodoviária, ocorreu como consequência uma
inacessibilidade indesejável para o bairro, que ficou escondido em um
canto da cidade entre as grandes avenidas, Rio Branco e Duque de
Caxias, e as linhas de trem das estações Luz e Júlio Prestes. A contínua
pressão habitacional resultou no surgimento de cortiços, prostituição,
mercado informal e ilegal, como o comércio de drogas. Como apontaram
Junior e Righi (2001), “ao declínio da ferrovia no Brasil associou-se
diretamente a decadência do bairro da Luz”. Porém, a proximidade com
duas estações ferroviárias e a rodoviária (que permaneceu ali até 1982)
proporcionou o trânsito constante de muitas pessoas, migrantes e
imigrantes, que impulsionadas pela fervorosa economia marginal,
informal, e por vezes ilegal, começaram a redesenhar a identidade do
bairro.
O termo cracolândia se aproxima cada vez mais ao nome do bairro.
Atores sociais como a mídia, poder público e sociedade, incluindo as
pessoas que fazem uso de crack, assim nomeiam atualmente a região. Ruas
e praças como Protestantes, Triunfo, Gusmões, General Osório, Duque de
Caxias, Julio Prestes, Princesa Isabel, Andradas, Barão de Piracicaba,
Helvétia, Glette, Nothmann e Dino Bueno caracterizam e relacionam-se
em diferentes momentos da história com o termo cracolândia, que
acompanha o bairro desde a chegada do crack no centro da cidade.
Esta denominação social da região da Luz trouxe um forte estigma
relacionado ao bairro e às pessoas que o habitam. O entendimento de que
a região apresenta nítida degradação urbana e social devido à proliferação
do uso de drogas e um descaso do poder público pode ser questionado. O
poder público está presente. Em sua tese de doutorado a antropóloga
Taniele Rui apontou que “Ele (o poder público) está. Não há como refutar

469
Thiago Godoi Calil e Rubens C. F. Adorno

isso. Considero mais relevante saber como ele está lá? ” (Rui, 2012, p.
199). Paradoxalmente a gestão pública apresenta diferentes formas de
lidar com este espaço e seus habitantes. Por um lado, temos um espaço
sujeito à precarização, abandono e falta de estrutura básica associada a
posturas altamente repressivas por parte da segurança pública. Por outro,
ações de atenção e cuidado oferecidas pela assistência social e saúde do
Estado além de Instituições do terceiro setor e outras de caráter religioso
que também atuam no local. Adorno e Raupp (2011) apontam um
cenário de “campo de forças”, onde diversos personagens e interesses se
interlaçam em jogos de poder políticos, institucionais, corporativos e
pessoais.

Discurso, imaginário e produção do espaço


Na ‘Cracolândia’, além do uso da substância em si, existem outros
fatores históricos, sociais, ambientais e subjetivos fundamentais na
produção deste ambiente construído, espaço urbano e lugar social. Sendo
assim, quais os interesses, problemas e conflitos íntimos à produção deste
espaço?
Segundo os antropólogos Heitor Frugoli e Enrico Spaggiari (2010), “o
termo cracolândia enfatizaria certa dimensão territorial, com uma
tendência a ser fixado espacialmente do ponto de vista da representação,
como ocorreu efetivamente no bairro da Luz, que praticamente passou a
ser sinônimo de cracolândia…” (Frugoli e Spaggiari, 2010, p.16).
Diferentes entendimentos e sentidos podem ser atrelados ao termo,
afirmando que de fato a cracolândia existe. Sua espacialidade é
reconhecida socialmente e diferentes representações são percebidas e
reproduzidas no imaginário social sobre este espaço. Sendo assim, a
cracolândia é um lugar real e também um lugar imaginado. Por meio do
discurso dos meios de comunicação e da percepção da sociedade sobre o
lugar, temos a hipótese de que a reprodução destas representações, muitas
vezes imaginadas, são elementos importantes no processo de

470
O crack: das folhas ao ‘bloco’

espacialização do uso da droga neste território e sua especialização na


produção do imaginário social.
Sendo assim, explicitaremos a forma que a linguagem midiática em
relação ao tema das drogas e especificamente sobre o uso de crack no
bairro da Luz, cria as representações sociais deste espaço. Por meio deste
discurso, no imaginário social o termo ‘Cracolândia’ passa a ser signo de
perigo, doença, perda, violência e etc. Amorim destaca a construção
coletiva destas representações, e como esta construção é reflexo da
sociedade em sua época:
A significação é criação do coletivo, que opera na sociedade de forma
anônima e constante, construindo um universo de valores e crenças,
responsáveis pela sustentação da sociedade como tal. Somos
fragmentos ambulantes desses valores, que mudam naturalmente com
a sociedade e com a história. (Amorim in Vichietti, 2012, p. 95)

Podemos entender então a construção das subjetividades como


produto da sociedade. A pós-industrialização, o desenvolvimento científico
e tecnológico e o exagero da importância econômica no funcionamento
das sociedades são características de nossa época. A psicóloga Sueli
Damergian coloca que estes fatores proporcionam um atraso afetivo, ético
e espiritual. Um modo de viver individualista que ocasionou em um
esvaziamento da subjetividade, da capacidade de autorreflexão e troca
para a busca do conhecimento coletivo. Um “mundo oco, vazio de
objetos, diálogos, relações, afetos e significados. Nele, o sujeito dialoga
com seu espelho mágico, sua “auto-imagem grandiosa” (Damergian in
Vichietti, 2012, p.117). Uma sociedade em que “o outro existe apenas
como objeto de desejo, manipulação, poder, satisfação, violência, sem
direitos, sem reconhecimento, sem desejo, um não sujeito. ” (Darmegian
in Vichietti, 2012, p. 118).
A reprodução pelos meios de comunicação desta subjetividade
‘esvaziada’ retrata fielmente nosso momento atual, onde “a
sociedade-espetáculo contemporânea, marcadamente midiática, convida

471
Thiago Godoi Calil e Rubens C. F. Adorno

incessantemente ao acting-out, à exterioridade, ao esvaziamento continuo


da subjetividade.” “E assim os homens passam a vida toda ignorando a si
mesmos” (Darmegian in Vichietti, 2012, p. 123).
A antropóloga Taniele Rui, em seu artigo intitulado “Depois da
‘Operação Sufoco’ : sobre espetáculo policial, cobertura midiática e
direitos na cracolândia paulistana”, analisa o depoimento da jornalista
Laura Capriglione, do jornal Folha de São Paulo, em um evento sobre
drogas, mídia e HIV promovido na época pelo Centro de Convivência É
de Lei. Neste depoimento Laura diz que como a sede do jornal Folha de
São Paulo é próxima à cracolândia, os jornalistas saíram do escritório e
puderam acompanhar a ação da rua, próximo às pessoas que fazem uso
de crack, e foram testemunhas oculares da violência polícia e violação de
direitos humanos. Laura disse que esta prática incomum no atual
jornalismo brasileiro, a aproximação de uma realidade que ignoravam
solenemente, possibilitou entrar em contato com a realidade das pessoas
envolvidas neste contexto. Laura destacou que a percepção dos dramas
pessoais, a quebra de estereótipos, e a necessidade e importância de se
olhar a questão por diferentes ângulos fez a diferença para o
amadurecimento do discurso midiático nas semanas seguintes ao ocorrido,
que passou a denunciar a violência policial em prol da garantia dos
direitos humanos.
Nesse sentido, Taniele Rui aponta como esta significativa mudança
no olhar vislumbra uma mediação mais coerente entre as pessoas que
usam crack, a segurança pública e a sociedade:
Uma eventual via para quebrar a retroalimentação entre violência,
publicização e espetáculo. Salta aos olhos, nesse sentido, a potência
política desse tipo de narrativa (Polletta, 2006) e, a partir dela, a
probabilidade de emergência de novas configurações de produção dos
discursos mediadores das relações entre usuários de crack e imprensa,
entre imprensa e polícia, entre usuários de crack e “mundo público.
(Rui, 2013, p. 303)

472
O crack: das folhas ao ‘bloco’

Um fato isolado que evidencia abordagens rasas e a prática


inconsequentes do discurso de determinados meios de comunicação que
reproduzem e representações sociais também rasas sobre o local, e
principalmente sobre os sujeitos que fazem uso de crack. A jornalista
Laura, no artigo de Taniele, diz estar “muito ciente” de que a imprensa
pode tanto dar visibilidade ao fenômeno, quanto também reforçar
preconceitos (Rui, 2013).
Estudiosos da Escola Sociológica de Chicago apontam que
determinada área urbana possui função dominante em alguma atividade
ou na distribuição da população que a ocupa. Robert Ezra Park, da Escola
da Chicago, que define estes espaços como “meios morais” ou “regiões
morais”. Park considera que a sociedade do início do século XX possuía
caráter individualista, um mundo onde “uma pessoa é simplesmente um
indivíduo que tem, em alguma parte, em alguma sociedade, um status
social, mas o status vem a ser, finalmente, uma questão de distância –
distância social” (Park, 1925, apud Agier, 2011 p. 66).
Este status atribuído à região da Luz produz uma identidade local
atrelada às representações morais deste lugar. Uma identidade própria dos
atores urbanos que ali vivem. Neste contexto, podemos relacionar a
atribuição do termo cracolândia que faz referência à ‘terra do crack’, à
reflexão de Agier que localiza a produção destas identidades urbanas
como identidades “externas”, “no sentido de que elas emanam primeiro
de um olhar dos atores exteriores ao espaço considerado, mesmo que elas
sejam em seguida retomadas a partir de dentro…” (Agier, 2011, p. 67)
Desta forma, o processo de estigmatização é incorporado pela população
estigmatizada, como em um ciclo reproduzido socialmente.
Podemos destacar a estigmatização da área no imaginário social a
partir de um relatório de campo da pesquisa intitulada “Usuários de crack
e espaços de uso: agenciamentos e relações de trocas em territórios
urbanos” – coordenada pelo professor Rubens Ferreira Camargo Adorno
na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – onde a
pesquisadora Selma Lima ilustra a estigmatização local quando utiliza o
transporte público para se deslocar para o trabalho de campo:

473
Thiago Godoi Calil e Rubens C. F. Adorno

Pergunto ao cobrador se tem um ponto próximo à Sala São Paulo.


Ele diz que não. Pergunto novamente se não tem um ponto próximo
à Estação Júlio Prestes. Ele me diz: não tem não, só tem o ponto da
cracolândia (rua Helvetia, esquina com a Alameda Cleveland). Parece
que ele não acha que ali seja um lugar onde eu, ou qualquer outra
pessoa queira ir, portanto, não é um lugar. (Adorno et al, 2013)

Na construção deste espaço, a presença das pessoas que usam drogas


e que estão em situação de rua possuem um papel importante. Um
segmento da população que faz do consumo de crack, uma mercadoria
efêmera de grande circulação entre parte da população pobre do país. Em
estudos sobre Cultura e Consumo, Grant McCracken aponta como na
história do consumo ocidental, inicialmente os bens de consumos eram
relacionados ao status ‘comprado’ pela burguesia e nobreza da época, a
mudança da mentalidade foi a ressignificação do ato de consumir e dos
bens de consumo. Segundo o autor:
É também, como se os bens estivessem se tornando os portadores de
outros tipos de significado além do de status. É possível que a
formação de informadores de papéis sociais que os bens assumem nos
dias de hoje (Solomon, 1983) tenha começado a emergir neste
período. ... do anonimato na sociedade ocidental encorajou o uso dos
bens como uma expressão da e uma guia para a identidade social. ...
o significado cultural dos bens era cada vez mais um modo através do
qual uma sociedade de anônimos podia manter-se centrada
(McCracken, 2003 p. 40).

As pessoas em situação de rua e que usam crack são constantemente


anuladas como sujeitos sociais. Suas trajetórias e valores singulares são
diluídas no balaio do estigma e do preconceito, e a sociedade generaliza
todos como um grande grupo de ‘vagabundos’. Neste cenário, o consumo
de crack, e por vezes até o rótulo de ‘nóia’, podem proporcionar um lugar

474
O crack: das folhas ao ‘bloco’

social para quem já rompeu com os demais lugares possíveis neste


momento.
A miséria brasileira vai se tornando íntima ao crack. Segundo reflexão
ainda atual de Milton Santos sobre o modo de produção e consumo
brasileiro, temos
uma produção de massas contente de si mesma e necessitada apenas
de um mercado voluntariamente restringido. Isso garante o
não-esgotamento da revolução das esperanças – isto é, das grandes
esperanças de consumir –, e ajuda a colocar como meta, não
propriamente o indivíduo tornado cidadão, mas o indivíduo tornado
consumidor. (Santos, 1993 p. 15)

Consumidor e objeto de interesses políticos e econômicos. Ainda


segundo Santos, mais especificamente entre as pessoas que fazem uso de
drogas na região da Luz, o consumo deste espaço coloca que na produção
da sociedade brasileira, “em lugar do cidadão formou-se um consumidor,
que aceita ser chamado de usuário (Santos, 1993, p. 13).
Esta reflexão sobre o consumo deste espaço urbano evidencia a
necessidade de transformações nos modos em que o consumo se aplica a
este território, que tem como característica a concentração de dinâmicas
informais com a presença de uma grande concentração de pessoas que
fazem uso de drogas. Esta é uma realidade de uma questão social bastante
significativa para uma sociedade. É preciso se aproximar e olhar para este
fenômeno, o consumo de uma mercadoria efêmera e ilegal em larga escala
no espaço público. Segundo McCracken,
o que está faltando, principalmente, é que se dê conta de modo pleno
dos aspectos culturais dos bens e do comportamento de consumo. É
aqui que a contribuição do consumo para a transformação do
ocidente está à mão de modo mais imediato para ser descoberta
(McCracken, 2003 p. 29).

475
Thiago Godoi Calil e Rubens C. F. Adorno

Referências
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476
O crack: das folhas ao ‘bloco’

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Santos, M. (1993). O espaço do cidadão. 2ª ed. São Paulo: Nobel.

477
478
PARTE 5:

TRANSIÇÃO DE PARADIGMAS NA
FORMAÇÃO PROFISSIONAL
C A P Í T U L O 5 .1

Formação continuada de educadores de


escolas públicas:
construções metodológicas na
experiência do Prodequi/UnB

Maria Fátima Olivier Sudbrack

Resumo
O texto apresenta a proposta pedagógica construída pela equipe do
Prodequi, que fundamenta as ações de formação de educadores de escolas
públicas realizadas no Curso de Prevenção do Uso de Drogas para
Educadores de Escolas Públicas e que se denomina A ESCOLA EM REDE.
Foi resultado de uma construção coletiva entre a academia e a própria
comunidade de educadores cursistas, com a participação dos consultores
representantes dos órgão de governo que acompanharam e legitimaram a
proposta, vigente no período de uma década (2004-2014), e que marcou a
política de prevenção no âmbito da educação nacional brasileira pela sua
abrangência e territorialidade, assim como a política nacional sobre drogas,
por ser o projeto de prevenção de maior investimento da Senad/MJ para a
prevenção do uso de drogas no contexto da escola. A equipe do Prodequi-
Programa de Estudos e Atenção às Dependências Químicas/PCL/IP/UnB,
coordenada pela autora, foi responsável técnica pela elaboração da proposta
pedagógica do curso e de sua execução, desde a sua concepção (2004) até sua
consolidação na política de formação continuada de educadores como matriz
do Programa Saúde na Escola (PSE). Trata-se de uma parceria interministerial
exitosa, entre Saúde e Educação, sob mediação da Universidade de Brasília.
Esta parceria representou uma das ações prioritárias na política de prevenção
do uso de drogas no país, consolidando-se em seis edições do curso, numa
história de dez anos.

481
Maria Fátima Olivier Sudbrack

Introdução
A precocidade da experimentação de drogas aumenta
consideravelmente os riscos do uso abusivo, com os consequentes danos à
saúde de crianças e adolescentes, problemas de relacionamento e de
violência, queda no rendimento escolar e evasão escolar, entre outros.
Em consonância com a política nacional e também com as diretrizes
internacionais, entendemos que a escola é contexto privilegiado e
responsável para ações de prevenção e promoção da saúde, entre outros,
tais como a família e a comunidade.
O presente texto se refere ao Curso de Prevenção do Uso de Drogas para
Educadores de Escolas Públicas, desenvolvido e executado sob a nossa
responsabilidade técnica, coordenando uma equipe de profissionais junto
ao Prodequi/PCL/IP/UnB, apresentando a proposta A ESCOLA EM
REDE enquanto uma metodologia original, construída entre segmentos
do governo e a academia (UnB), com a participação genuína dos
educadores cursistas, na medida em que interagiram criticamente com a
proposta, em diferentes momentos da formação.
Com o objetivo de capacitar profissionais de escolas públicas para
trabalharem coletivamente na prevenção do uso abusivo de drogas, por
meio do fortalecimento da escola na promoção da saúde e da educação
integral, foi iniciada, em 2004, uma parceria entre os órgãos responsáveis
pela prevenção do uso de drogas do Governo Federal (Secretaria Nacional
de Políticas sobre Drogas-Senad/MJ e Secretaria de Educação Básica –
SEB/MEC) e a Universidade de Brasília (Programa de Estudos e Atenção
às Dependências Químicas/Prodequi/PCL/IP/UnB e Centro de
Educação a Distância/Cead/UnB), para oferta de uma capacitação de
extensão universitária na modalidade de educação a distância. A equipe
do Prodequi foi indicada pela Senad/MJ para a elaboração da proposta
pedagógica do curso, bem como pela sua execução.
A parceria interministerial com a Universidade de Brasília manteve
continuidade nas seis edições do curso, no período de dez anos,
consolidando-se como uma das ações prioritárias na política de prevenção

482
Formação de educadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas

do uso de drogas no país, contribuindo para o fortalecimento da


comunidade escolar, por meio da formação continuada e da
implementação dos projetos de prevenção construídos coletivamente e
coordenados pelos educadores-cursistas nas suas instituições de origem.
Na edição de 2010/2011, a proposta pedagógica foi ampliada,
integrando-se um módulo sobre a implementação de ações preventivas na
escola, resultando em um curso de aperfeiçoamento (180 horas). O curso
também constituiu um espaço para a realização de pesquisas que
retroalimentaram a prática preventiva, num processo dialético de
construção do conhecimento no contexto de formação-intervenção.
Diferentes pesquisas e produções científicas, entre elas, dissertações de
mestrado e teses de doutorado, foram realizadas durante a oferta do curso.
(veja quadro ao lado)
A partir da sua quinta edição (2012/2013), o curso passou a atender
os objetivos estabelecidos no eixo PREVENÇÃO do Programa do
governo federal “Crack, é possível vencer”. No âmbito do Ministério da
Educação, atendeu metas de implementação das políticas intersetoriais de
educação para a saúde do Programa Saúde na Escola/PSE, articulando-se
com outros programas da SEB, como o Mais Educação e o Escola Aberta, com
meta de oferta de mais de 210 mil vagas. Na sexta e última edição
(2014/2015), a execução do curso foi descentralizada para uma rede de
universidades públicas brasileiras, acompanhadas pelo Ministério da
Educação.

483
Maria Fátima Olivier Sudbrack

Foram as seguintes as pesquisas realizadas das quais resultaram materiais


pedagógicos inseridos no curso:
• Na segunda e terceira edições (2006 e 2009)
(1) Termômetro de risco e proteção 
Fonte do instrumento, dissertação de Mestrado: Borges, J. S. (2006). Redes Sociais e Fatores de
Risco e Proteção para o envolvimento com drogas na adolescência.  Dissertação de
Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Instituto de
Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.
(2)  Mapa da Rede da escola
Fonte do instrumento, dissertação de Mestrado: Vasconcelos, M. L. (2008). Avaliação das redes
sociais da escola: uma estratégia de prevenção do uso. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia,
Universidade de Brasília, Brasília.
(3)  Entrevista de acolhimento de adolescentes em situação de risco
Fonte do instrumento, tese de Doutorado: Pereira, S. E. F. N. (2009). Redes sociais de
adolescentes em contextos de vulnerabilidade social e sua relação com o envolvimento com
o tráfico de drogas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica
e Cultura, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.
•Na quarta edição (2011), foi construído um Banco de dados sobre situações-problema,
visando um diagnóstico da realidade vivida pelos educadores cursistas, práticas de
enfrentamento das situações-problemas e também suas demandas de formação para atuarem na
prevenção. Este banco de dados possui depoimento de mais de dois mil educadores, resultando
em três dissertações de mestrado e uma tese de doutorado:
Marques, R. H.B. (2011). Situações-problema relacionadas ao uso de álcool e outras drogas, no
contexto escolar: narrativas de educadores do ensino público da região Centro-Oeste.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura,
Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.
Dalbosco, C. (2011). Representações sociais de educadores de escolas públicas sobre
situações-problema relacionadas ao uso de álcool e outras drogas. Tese de Doutorado.
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia,
Universidade de Brasília, Brasília.
Silva, S. F. L. da. (2011). Violência e drogas na escola e imediações: ótica dos educadores
sociais de segurança pública. Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica e Cultura,
Universidade de Brasília, Brasília.
Rodrigues Sobrinho, W. (2014). O papel do policial como parceiro da escola, na prevenção do
uso de drogas: análise de intervenções junto a adolescentes envolvidos com drogas.
Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura,
Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.
•Na quinta e sexta edições ( 2012 e 2014)
Souza Pinheiro, M. L. (2016). Situações de Risco e de proteção ao uso de drogas em relação
ao clima escolar. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e
Cultura, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.
Macedo, E. O. S. (2018). A relação entre família e escola na adolescência: vínculos e afetos
como dispositivos de cuidado e proteção. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação
em Psicologia Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.

484
Formação de educadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas

1 - A formação continuada de educadores de escolas públicas:


uma parceria exitosa entre o Governo Federal e a
Universidade na política sobre drogas
Em 2004, a partir de demanda institucional da Senad-Secretaria
Nacional de Políticas sobre Drogas/MJ, desenvolvemos o Curso de
Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de Escolas
Públicas que resultou da produção de conhecimentos junto ao Prodequi
– Programa de Estudos e Atenção às Dependências Químicas –
laboratório do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e
Cultura, do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília,
coordenado pela autora do presente texto desde sua criação (1991), e que
desenvolve atividades integradas de pesquisas, ensino e extensão na
temática da drogadição, incluindo diversos professores pesquisadores e
alunos da graduação e da pós-graduação em psicologia. Por sua vez, a
oferta do curso representou espaço de pesquisas que retroalimentaram a
prática preventiva, num processo dialético de construção do conhecimento
e de formação-intervenção.
Dentre os diversos projetos de pesquisa que resultaram em
dissertações de mestrado e teses de doutorado, destaca-se o Banco de Dados
sobre Situações-Problema, com depoimentos de mais de dois mil educadores
sobre suas vivências relativas ao envolvimento de alunos com drogas no
cotidiano escolar, suas formas de enfrentamento e demandas de
capacitação na área. A cada edição foram produzidos relatórios
pedagógicos propositivos, visando o aperfeiçoamento do processo no
contexto da própria ação formadora. Em 2014, foi realizada pesquisa de
avaliação de impacto da quinta edição do curso, mobilizando-se polos
estaduais de pesquisa em dez universidades federais.
Esta experiência merece destaque, a nosso ver, pela abrangência e
consolidação da formação de educadores como ação da política nacional
de prevenção do uso de drogas no território nacional.
Resultado de ação tripartite (Prodequi-UnB/SEB-MEC e Senad-MJ),
no Plano "Crack: é possível vencer" (2012), o Curso de Prevenção do Uso
de Drogas para Educadores de Escolas Públicas constituiu o principal

485
Maria Fátima Olivier Sudbrack

projeto no Eixo Prevenção, respondendo à execução da meta do governo


federal de oferta de 210 mil vagas no triênio 2012 a 2014. No Ministério
da Educação, consolidou-se como ação de formação continuada na matriz
do PSE (Promoção de Saúde na Escola), integrada à Diretoria de
Educação Integral e Currículos/Deic da Secretaria de Educação Básica
(SEB/MEC). Cabe aqui, destacar que a ampliação da oferta não reduziu
a qualidade pedagógica do curso, com certificação em nível de
aperfeiçoamento (180 h) e com atividades interativas dos educadores com
tutores qualificados, resultando em uma construção coletiva de Projeto de
Prevenção da Escola. A gestão pedagógica e tutorial, composta por mais
de 600 tutores e supervisores, foi realizada pelo Sisap- Sistema de Apoio
Pedagógico, com supervisão presencial obrigatória de todos os tutores
para o acompanhamento das demandas emergentes pelos educadores, em
um processo dinâmico e muito rico de trocas e de aprendizados.
A gestão pedagógica fundamentava-se em relatórios sistemáticos da
coordenação de avaliação que permitiam visualizar territorialmente, o
andamento das atividades dos alunos, através de implementação da
tecnologia Webgis. As atividades interativas nos Fóruns de Discussão
revelaram sua efetividade enquanto espaços de aprendizado de conteúdos
e surpreenderam enquanto recurso pedagógico para a promoção da
mudança do paradigma da “Guerra às Drogas”, ainda muito presente nas
escolas. A proposta pedagógica do curso está centrada no desenvolvimento
da autonomia responsável dos alunos, destacando-se a escola enquanto
contexto de socialização complementar à família na formação de valores
morais das crianças, adolescentes e jovens educandos.
Nesse sentido, a prevenção não é trabalho de um educador
isoladamente. A prevenção deve fazer parte do projeto político-pedagógico
da escola, sendo integrada no currículo das diferentes séries,
contemplando o desenvolvimento da cidadania responsável, integrando o
projeto de educação para a saúde e envolvendo a rede social da qual a
escola é parte integrante.
Entendemos que a territorialização da promoção de saúde na
escola – meta fantástica do PSE, onde se inserem as ações preventivas do

486
Formação de educadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas

abuso de drogas – prima por ações políticas de mobilização nas


instituições locais na esfera da gestão estadual, municipal e direção das
escolas contempladas pelo curso, para que assumam o apoio à
implementação do projeto de prevenção da escola. A aposta nos próprios
educadores como atores da prevenção do uso de drogas revelou-se
profícua e viável como estratégia de garantia de ações preventivas nas
escolas públicas brasileiras. A principal condição desta efetividade situa-se
na continuidade desta formação, com o devido apoio político para a
consolidação do Projeto de Prevenção no Projeto Político-Pedagógico da
Escola. O grande desafio é, sem dúvida, o da territorialização das ações
preventivas, num processo de parcerias da escola com a comunidade e
com a cidade, em busca do fortalecimento de uma política mais ampla e
assertiva de promoção de saúde e de cidadania.

2 - Apostando na escola como contexto protetivo


A inclusão da temática da drogadição na formação continuada de
educadores justifica-se pelo crescimento do consumo de drogas entre
crianças e adolescentes. As pesquisas revelam uma precocidade na idade
da primeira experimentação, o que aumenta consideravelmente os riscos
do uso abusivo com os consequentes danos à saúde de crianças e
adolescentes, problemas de relacionamento e de violência, queda no
rendimento escolar e evasão escolar, entre outros. Os estudos
epidemiológicos sobre a realidade do uso de drogas pela população
brasileira apontam pois, para a necessidade de ações de prevenção e
promoção da saúde no âmbito da comunidade escolar.
A realização de ações para minimizar os fatores de risco, centrada no
desenvolvimento da autonomia responsável dos alunos, é tarefa a ser
desempenhada por diferentes instâncias da sociedade, destacando-se nesse
contexto o papel da escola, como anteriormente referido. A complexidade
das ações de prevenção do uso de drogas é contemplada no paradigma
sistêmico da prática de redes e do trabalho comunitário que sustentam a
proposta da Escola em Rede. Esta metodologia direciona uma política

487
Maria Fátima Olivier Sudbrack

intersetorial com ações integradas e territorializadas de promoção de


saúde, de defesa dos direitos humanos e da cidadania. Com essas
referências, a formação de educadores implica em uma responsabilidade
social e compartilhada entre a Universidade e a política sobre drogas pela
disseminação de conhecimentos científicos atualizados e isentos de
preconceitos, bem como pela construção coletiva de formas de abordagem
e de estratégias de trabalho pedagógico, para subsidiar os educadores no
cotidiano da prática educativa.

3 - Desconstruções e construções para um novo paradigma na


prevenção
Muito além de teorias e metodologias, a formação continuada dos
educadores inclui mudanças de representações sociais e a desconstrução
de posturas, num novo paradigma da prevenção do uso de drogas que
substitua o paradigma da guerra às drogas pelo da promoção de saúde.
No processo de desenvolvimento do curso são abordadas conteúdos
teóricos, seguidos de exercícios de fixação, são ofertados espaços
interativos, e disponibilizados instrumentos práticos para construção e a
implementação de projeto de intervenção pelo grupo de cursistas/
educadores de cada escola.
Os projetos de prevenção podem ser estruturados em referência a
cinco eixos metodológicos principais, a saber: (1) participação juvenil e a
formação de multiplicadores; (2) integração no projeto político-pedagógico
de ações pautadas na prevenção; (3) resgate da autoridade na família e na
escola; (4) fortalecimento da escola na comunidade e como comunidade; (5)
acolhimento de adolescentes em situação de risco.
Para que esses eixos sejam contemplados, busca-se uma mudança de
paradigma no que diz respeito a espaços que, por sua natureza de inserção
na sociedade, são potencialmente estratégicos na incorporação da
promoção da saúde. O empoderamento da escola para ações preventivas
de promoção de saúde acontece na medida em que ela é concebida e
valorizada como um espaço que vai além da transmissão de

488
Formação de educadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas

conhecimento. Ela é, em toda sua plenitude, formadora de opinião, de


valores, de atitudes e capaz de instigar a noção de pertencimento a um
território dado. Para o alcance dessas metas, é necessário ressignificar o
papel do educador, incluindo em seu cotidiano novos conhecimentos que,
resultando em novas práticas providas de sentido na missão desenhada
pela escola, sejam incorporadas ao seu projeto político-pedagógico.

4 - Parcerias e intersetorialidade na metodologia da Escola em


Rede
A materialização de ações de promoção de saúde firma-se nos
princípios da intersetorialidade, em especial, entre segmentos da educação
e da saúde, mas também, na articulação da rede de apoio interna e
externa à escola e na compreensão das relações de complementaridade, à
luz da teoria sistêmica e do pensamento complexo. Nesta direção, a
drogadição é concebida como um sintoma sociorrelacional com olhar
amiúde nos fatores de risco e proteção que permeiam as instituições e as
pessoas envolvidas, as vulnerabilidades sociais e pessoais, peculiares a estas
mesmas instituições e pessoas.
Há de se considerar que as ações preventivas propostas para
minimizar os comportamentos de risco ao envolvimento com drogas estão
fundamentadas no desenvolver da autonomia responsável dos educandos,
crianças e adolescentes, sendo esta uma tarefa a ser assumida e
desempenhada por diferentes instâncias da sociedade, entre as quais, a
escola, que neste contexto, ocupa lugar privilegiado.
É necessário levar em conta, também, que este não é um trabalho
isolado. A promoção à saúde e a prevenção do uso de drogas são temáticas
transversais que devem ser integradas ao currículo no conjunto de
disciplinas, como também devem estar presentes nas diferentes séries da
carreira escolar, contemplando o desenvolvimento da cidadania
responsável, integrando o projeto de educação para a saúde e envolvendo
a rede social da qual ela é parte integrante. Para que se obtenha o alcance
almejado, duas ações devem caminhar pari passu: enquanto o currículo

489
Maria Fátima Olivier Sudbrack

integra os conteúdos, a escola dá movimento a estes conteúdos, integrando


as pessoas.
Nesses dez anos de realização do curso, durante todo o processo de
aprendizagem, o educador-cursista foi instigado a realizar “atividades
colaborativas de aprendizagem”, como estratégia para facilitar a elaboração do
projeto de intervenção. Esta ação teve como objetivo a construção do
projeto a ser desenvolvido na escola. Sendo assim, a proposta
político-pedagógica desenvolvida colocou-se rumo ao que, na perspectiva
da psicossociologia, denomina-se processo de formação-intervenção. As
atividades pedagógicas integrantes do curso foram tanto de natureza
individual, como coletiva, destacando-se a realização de fóruns de
conteúdo sobre situações-problema e as atividades avaliativas
colaborativas que resultaram na elaboração processual do projeto de
prevenção do uso de drogas da escola, num contínuo processo dialético de
integração entre teoria e prática.
O primeiro passo deste percurso metodológico, notadamente, instiga
o educador-cursista a evidenciar o cenário onde acontece seu cotidiano e
que vai ser palco do projeto de intervenção. É orientado a efetuar uma
espécie de diagnóstico da situação e, a partir deste desenho, dar os
primeiros passos na proposição de uma intervenção preventiva executável
e calcada nas demandas da escola e, em especial, dos estudantes. O
cenário da intervenção é a Escola em Rede que implica nos estabelecimento
de parcerias com segmentos das demais políticas públicas (saúde, cultura,
e lazer assistência, segurança …) e também com a comunidade através das
organizações da sociedade civil de apoio institucional disponíveis no
território educativo. Parceria ímpar e genuína se configura, neste cenário:
a integração familia-escola que tem se mostrado eixo metodológico de
maior demanda nos projetos dos educadores cursistas.

5 - A escola como contexto protetivo e de promoção de saúde


No processo para solidificação dessas concepções, apostamos na
escola como contexto de promoção de saúde, com potencialidades que

490
Formação de educadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas

precisam ser fortalecidas. Como possibilidade concreta que leve ao alcance


desta meta, a integração de temas sociais que promovam o
desenvolvimento do aluno no planejamento das atividades escolares, a
inserção das ações de prevenção do uso de drogas no projeto
político-pedagógico da escola e o trabalho em rede são essenciais na
condução de um processo cujo ápice é a conquista de outro lugar para a
escola. Neste processo reflexivo são apontadas possibilidades concretas
para a mudança do paradigma vigente, com a utilização de instrumentais
conceituais e metodológicos que permitam o mapeamento das redes
sociais do aluno e também da escola.
O processo teórico-reflexivo tem seu marco na busca do
reconhecimento do educando como sujeito em desenvolvimento, com
pertencimento na família e na escola e protegido por políticas públicas.
Para que esta concepção possa ser consolidada, é fundamental
ressignificar a escola para o educador-cursista, intermediar processos para
que se possam reconhecer as potencialidades da escola e seus atores,
identificá-la como contexto de promoção da saúde e integrar temas sociais
que favoreçam o desenvolvimento do aluno no planejamento das
atividades escolares.
Ressignificada a escola, busca-se avivar uma proximidade das
representações do educador-cursista com o adolescente como sujeito
transformador, protagonista e cidadão no contexto sociofamiliar e os
papéis da escola e família enquanto formadores de valores. Nesta linha de
pensamento, é inexorável trazer à tona as concepções de risco e proteção,
em especial em situação de risco pelo envolvimento com drogas, e no que
diz respeito ao papel da escola como corresponsável nas ações protetivas e
as políticas e ações de proteção como o Estatuto da Criança e Adolescente
(ECA) e de educação para a saúde. Este processo deve ocorrer em
constante parceria com a comunidade e com a cidade, em busca do
fortalecimento de uma política de promoção de saúde e de cidadania.
A identificação dos fatores de risco e dos fatores protetivos nas redes
sociais dos educandos é viabilizada pelo oferecimento de instrumentos
específicos que são disponibilizados aos cursistas, tais como o termômetro

491
Maria Fátima Olivier Sudbrack

de risco e proteção, o mapa das funções da rede, a entrevista de


acolhimento de adolescentes em situação de risco.

6 - Destaque metodológico do curso: atividades colaborativas -


cursistas formando uma comunidade colaborativa
virtual
O curso é um importante espaço de socialização de experiências para
educadores, que refletem a formação para e na atuação profissional; todos
são convidados para uma relação compartilhada e democrática quanto ao
que fazer diante de situações de natureza inacabada e, por isso,
angustiantes; percorrem um diálogo reflexivo e dinâmico acerca das
competências do ambiente escolar, de forma geral, e das competências
profissionais, de forma singular; são mobilizados por seus próprios pares –
educadores tutores que, com sensibilidade, atenção e cuidado, incitam o
acolhimento do diferente, do que não tem solução definitiva – sempre a
partir de sua própria trajetória profissional e da realidade territorial e
comunitária de sua escola; debatem a (re)construção de saberes na
intersubjetividade das comunicações e com a comunidade maior (mais
ampla); repensam a formação de Redes nas relações, e seu papel nessa
construção.
Neste processo crítico e reflexivo, são apontadas possibilidades
concretas para a mudança do paradigma vigente na própria formação dos
educadores, com a utilização de instrumentais conceituais e metodológicos
transformadores do cotidiano docente: do trabalho individual e solitário,
ao trabalho participativo e colaborativo; da aplicação de uma “receita” à
construção de uma proposta pelos atores envolvidos; da espera por uma
“solução” pronta para resolver o problema, à problematização do processo
de onde as situações-problema emergem e das vias de abordagem das
mesmas.
Durante todo o processo de aprendizagem, o educador-cursista é
instigado a realizar “atividades colaborativas de aprendizagem”, como
estratégia para facilitar a elaboração do projeto de intervenção. Esta ação

492
Formação de educadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas

tem como objetivo a construção coletiva do projeto a ser desenvolvido na


escola.
O primeiro passo deste percurso metodológico instiga o
educador-cursista a evidenciar o cenário onde acontece seu cotidiano e
que vai ser palco do projeto de intervenção. É orientado a efetuar uma
espécie de diagnóstico da situação e, a partir deste desenho, dar os
primeiros passos na proposição de uma intervenção preventiva executável
e calcada nas demandas da escola.
Neste dez anos de convivência com educadores de escolas públicas,
pudemos constatar uma grande solidão no árduo cotidiano de trabalho.
Por esta razão, percebemos a proposta do curso como transformadora
rumo ao paradigma do trabalho colaborativo e da promoção de laços
sociais e de solidariedade na comunidade escolar, a começar pelos
educadores. Neste sentido os fóruns de debate e o espaço virtual “nossa
escola” foram ferramentas de grande potencial transformador.

7 – Dez anos do curso (2004 a 2014): abrangência,


territorialidade e capilaridade da formação continuada
de educadores
Desde a primeira edição, o curso obteve grande receptividade entre
os educadores, tornando-se necessária a organização de processo seletivo.
A demanda do curso pelos educadores manteve-se acima da oferta em
todo o período, mesmo com a ampliação significativa do número de vagas
nas últimas edições.
A primeira edição (2004) tece um caráter de "piloto" para a testagem
do material e da metodologia, realizada para apenas cinco mil educadores.
A segunda edição (2006/2007) teve oferta de 20 mil vagas. Nesta
edição, 13.426 educadores obtiveram aprovação final, o que representou
67% do total de inscritos em todo o Brasil. O curso obteve o índice de
76% de escolas participantes.
A terceira edição (2009) acolheu 24.583 educadores. O número de
aprovados foi de 14.601 cursistas. O índice de certificação da terceira

493
Maria Fátima Olivier Sudbrack

edição foi de 69% se considerado apenas os educadores – cursistas que


acessaram o ambiente virtual de aprendizagem. Foram 6.091 escolas
regulares inscritas, mais 83 instituições especiais, totalizando 6.174 escolas.
Além dos educadores foram contemplados como cursistas profissionais
inseridos em Projetos Especiais, dedicados a populações específicas, tais
como alunos do Projovem (Secretaria da Juventude), escolas de unidades
de internação (Sistema socioeducativo/Sinase), escolas vinculadas ao
Programa Nacional de Segurança e Cidadania (Pronasci), escolas de
populações indígenas e escolas de Moçambique, lançado assim o
programa para outros países de língua portuguesa no continente africano.
Nesta edição, o projeto abrigou, ainda, em caráter piloto, uma turma
especial composta por cursistas gestores de segmentos do governo federal
[MEC, Ministério da Saúde (MS, Fiocruz, UNODC)], promovendo
diferentes áreas de interface entre educação, saúde, justiça e segurança
pública.
A quarta edição (2010/2011) foi ofertada para 23.294 educadores
selecionados – entre 74.667 inscritos –, de 3.357 escolas. O quantitativo de
aprovados na 4ª edição foi de 10.170 educadores, distribuídos em todos os
estados brasileiros. O índice de certificação da quarta edição foi de 52% se
considerados apenas os cursistas que acessaram o ambiente virtual de
aprendizagem. Nessa edição parte das vagas, por definição da Senad, foi
destinada à participação de policiais do Programa Educacional de
Resistência às Drogas (Proerd), entre outros profissionais de segurança
pública, envolvidos em ações de prevenção junto às escolas e
comunidades. Devido à grande procura para realização do curso, na
quarta edição o Prodequi criou um cadastro reserva organizado por
estado e município visando subsidiar novas edições. Este banco contempla
9.462 escolas e 51.370 educadores e foi entregue em meio eletrônico ao
MEC e à Senad, como parte dos relatórios finais da edição 2010 do curso.
Na quinta edição (2012/2013) foram selecionados e participaram do
curso 71.744 educadores de 9.202 escolas, dentre os 112.925 inscritos. O
quantitativo de aprovados na 5ª edição foi de 31.448 cursistas, distribuídos
em todos os estados brasileiros. A média de certificação da quinta edição

494
Formação de educadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas

foi de 44%, se considerado o total de inscritos, e de 49% se considerados


apenas aqueles que acessaram o ambiente virtual de aprendizagem (AVA).
Cabe ressaltar que, embora sem elevação dos percentuais de certificação, a
quinta edição obteve o maior número absoluto de concluintes ou
aprovados. Destaque-se que, mesmo atendendo à meta de governo (de 70
mil vagas), a proposta pedagógica do curso prosseguiu com importantes
avanços qualitativos: ofereceu o maior tempo de formação (de quatro para
sete meses), com certificação de extensão universitária ampliada de 120
horas para 180 horas, garantindo para todos os 71.774 selecionados e
efetivado para os 31.438 educadores-cursistas concluintes.
Na sexta edição (2013/2014) foram selecionados 51.183 educadores,
de uma meta mais ampla de 140 mil vagas, com execução compartilhada
em parceria com outras universidades. Assim sendo, nesta última edição a
oferta executada pelo Prodequi ficou restrita a 12 unidades federativas,
contemplando todos os estados da Região Norte, um estado da região
Centro-Oeste (Tocantins) e o Distrito Federal, dois estados da Região
Nordeste (Bahia e Sergipe) e dois estados da Região Sudeste (São Paulo e
Espítito Santo). Dentre os selecionados pelo Prodequi/UnB, foram
certificados 18.368 educadores, representando 45% dentre aqueles que
acessaram a plataforma de aprendizado virtual. Totalizaram 10.032
escolas contempladas.

8 - Conquistas e desafios na consolidação de um novo


paradigma de prevenção do uso de drogas no território
educativo
Um curso de tamanha magnitude, tendo conseguido se manter em
continuidade por meio de profícuas trocas entre a academia e os principais
órgãos de implementação de políticas públicas do governo federal, já
deixa suas marcas no que, sem dúvida, podemos chamar de
implementação de uma política de prevenção do uso de drogas, através da
formação de educadores de escolas públicas.

495
Maria Fátima Olivier Sudbrack

Dentre as principais conquistas destacamos a própria continuidade e


os avanços na proposta político-pedagógica. A crescente demanda pelo
curso testemunha uma conquista na mobilização dos educadores como
atores conscientes de seu protagonismo na implementação da política de
prevenção do uso de drogas na escola. A qualidade da participação dos
educadores-cursistas concluintes, que investem e se comprometem com o
curso, apesar das tantas dificuldades de toda a ordem que permeiam o
sistema escolar, é o maior estímulo para a continuidade em novas edições.
A cada conquista, um novo desafio em um processo que, assim como
todo o processo educativo, exige tempo e adquire profundidade na sua
continuidade. O desafio atual é a construção de dispositivos de
comunicação que potencializem o território educativo aproveitando e
resgatando o que já foi semeado e construído no território educativo
nesses dez anos desta formação continuada.
A política educacional deve se apropriar dos resultados obtidos, da
abrangência e capilaridade atingida pelo curso nas seis edições em todo o
território nacional para adentrar na realidade das escolas atendendo suas
demandas em relação às difíceis situações vivenciadas no cotidiano. Por
sua vez, o tema da prevenção reúne todos os atores da comunidade-escola
em torno de um mesmo desafio – o da proteção dos educandos –
promovendo-se, assim, o que chamamos da rede protetiva que faz face ao
isolamento e à exclusão.
O sistema WebGis permite o mapeamento destes potenciais nos
territórios e também das fragilidades a serem enfrentadas como políticas
públicas e não apenas como ações individualizadas de “educadores
heróis” e nem de “guerra às drogas”, mas de projetos coletivos e
institucionais de promoção de saúde e de educação para autonomia.
Dentre as principais conquistas, destacamos a própria continuidade e
os avanços na proposta político-pedagógica. A crescente demanda pelo
curso testemunha uma conquista na mobilização dos educadores como
atores conscientes de seu protagonismo na implementação da política de
prevenção do uso de drogas na escola.

496
Formação de educadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas

O grande desafio que temos pela frente e que estamos propondo a


prosseguir desbravando juntos (UnB, MEC e Senad) é, sem dúvida, o da
sustentabilidade de uma política de prevenção nas escolas a partir do que
já foi implantado, na medida em que ela já atingiu considerável
territorialização e uma fantástica capilaridade, tanto da formação dos
educadores, através de universidades parceiras em diferentes estados do
Brasil, como do processo de ampliação das atividades preventivas de
promoção de saúde para a escola, no seu sentido mais amplo de território
educativo aberto.
Foi organizado um banco com todos os projetos de prevenção
elaborados, que foram sistematizados através de relatórios avaliativos dos
tutores e de posterior enquete com os educadores da sexta edição,
avaliando a implementação de práticas preventivas na escola, no decorrer
do curso, constatando-se que a formação recebida resulta em ações
preventivas mesmo durante o curso.
Na perspectiva de construção de conhecimentos sobre a eficácia do
curso, ele foi submetido à avaliação externa em todas as edições, com a
participação dos diversos atores envolvidos, e que avaliaram positivamente
tanto a proposta pedagógica como as condições da oferta na plataforma
Moodle.
Na sexta edição, houve especial investimento na avaliação da edição
anterior, quinta edição, pela sua grande abrangência. Foi desenvolvido
projeto de pesquisa-ação sobre o "Impacto do Curso de Prevenção do Uso
de Drogas para educadores de Escolas Públicas e Mobilização da Rede de
Escolas para a Prevenção nos Territórios", resultado de parceria com
pesquisadores colaboradores de dez estados, das diferentes regiões que
desenvolveram e coordenaram os Polos Estaduais de Pesquisa: (1) Polo
São Paulo: Profa. Ana Regina Noto/Unifesp; (2) Polo Espírito Santo:
Prof. Dr. Elizeu Borloti/Ufes; (3) Polo Minas Gerias: Prof. Dr.
Francesco Napoli /UFMG; (4) Polo Paraná: Profa. Dra. Aracy
A s i n e l l i / U F P R ; ( 5 ) Po l o S u l : P ro f a . D r a . A l i n e Wi n t e r
Sudbrack/UFCSPA; (6) Polo Bahia: Psic. Miriam Gracie

497
Maria Fátima Olivier Sudbrack

Plena/Cetad/UFBA; (7) Polo Paraíba: Profa. Dra. Vânia


Medeiros/IFPB; (8) Polo Goiás: Profa. Dra. Célia M. F.Teixeira e Profa.
Dra. Sandra Rocha/UFG; (9) Polo Norte: Profa. Vera Vianna/UnB
(Pará) e Profa. Sandra Viana/UnB (Tocantins); (10) Polo Distrito
Federal: Profa. Maria Lizabete S. Póvoa/UnB.

Considerações finais
A experiência de uma década de formação continuada para
educadores de escolas públicas, através da oferta de seis edições do Curso
para a Prevenção do Uso de Drogas, representou importante experiência para
uma política intersetorial, a partir da proposta metodológica "A Escola em
Rede", que propõe o desenvolvimento de ações preventivas em parceria e
articulação das diferentes políticas públicas, envolvendo os diferentes
atores da comunidade escolar articulados, por sua vez, com a comunidade
externa.
As estratégias de prevenção ao uso de drogas na escola devem ser
diversificadas, numa perspectiva de fortalecimento da autonomia e da
criticidade do educando, em consonância com os princípios da educação
nacional.
A formação dos educadores se amplia, pois, para muito além da
prevenção do uso de drogas, constituindo instrumentalização significativa
para as transformações necessárias no sentido de que a escola assuma sua
função educacional mais ampla, em especial como contexto de promoção
de saúde.
Esta experiência, em detalhe, está registrada em publicação recente
de um livro impresso: A Escola em Rede para a Prevenção do Uso de
Drogas no Território Educativo – experiência e pesquisa do
Prodequi/PCL/IP/UnB nos dez anos de formação dee ducadores de
escolas públicas para a prevenção do uso de drogas, 2004-2014
(Sudbrack, M.F.O. et al, Campinas, SP, Armazém do IP, 2015.

498
Formação de educadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas

Referências
Brasil, Ministério da Educação (2013). A escola na rede de cuidados para a
prevenção do uso de drogas. Salto para o Futuro, [S.l.], Ano 33, Boletim 23,
nov. 2013.
Brasil, Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (2001).
Curso de prevenção do uso de drogas para educadores de escolas públicas. Brasília:
Senad. 2006 (1ª. edição), 2009 (2ª, edição), 2012 (3ª. edição).
Santos, J. B.; Sudbrack, M. F. O.; Almeida, M. M. (2006). Situações de Risco e
Situações de Proteção nas Redes Sociais de Adolescentes. In Brasil.
Secretaria Nacional de Politicas sobre drogas. Curso de prevenção do uso de
drogas para educadores de escolas públicas. Brasília.
Sudbrack, M. F. O. (2006). Drogas, caos e complexidade. In Brasil. Secretaria
Nacional de Politicas sobre Drogas. Curso de prevenção do uso de drogas para
educadores de escolas públicas. Brasília: Senad.
Sudbrack, M. F. O.; Conceição, M. I. G.; Ramos, E. C. (2012a) Escola em rede:
políticas públicas integradas na prevenção do uso de drogas para crianças
e adolescentes. In Senad, Curso de prevenção do uso de drogas para educadores de
escolas públicas. Brasília: Senad.
Sudbrack, M. F. O.; Pereira, S. E. N. F. (2012b). Protagonismo dos grupos
potenciais de adolescente. In Brasil, Secretaria Nacional de Politicas sobre
Drogas. Curso de prevenção do uso de drogas para educadores de escolas públicas.
Brasília: Senad.

499
500
CAPÍTULO 5.2

Formação a distância em saúde:


potenciais e limites do curso Supera
Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni
Ana Paula Leal Carneiro
Eliane Assunção Castro
Helton Alves de Lima
Raphaela da Cunha Bacellar Veiga Garcia

Um dos grandes desafios no enfrentamento de problemas complexos


como os associados ao uso de substâncias psicoativas é a formação
adequada dos profissionais envolvidos. Embora a necessidade de
abordagens interdisciplinares nessa área já seja um consenso na
comunidade acadêmica, ainda não foi totalmente assimilada na prática
assistencial. Isso ocorre devido a múltiplas razões, destacando-se questões
ideológicas e a falta de formação adequada. A estigmatização dos usuários
de substâncias psicoativas, erroneamente vistos como pessoas com
problemas de natureza moral, tem sido uma importante barreira que
dificulta a discussão de abordagens baseadas em evidências científicas,
abrindo espaço para propostas com baixa ou nenhuma efetividade que,
mesmo quando bem intencionadas, atrasam o avanço na implantação de
intervenções e tratamentos efetivos nessa área.
É essencial em abordagens interdisciplinares que os diversos
profissionais envolvidos conheçam em profundidade a sua própria área,
mas também que tenham conhecimentos básicos sobre as demais áreas
envolvidas a fim de permitir sua atuação em rede, de forma coordenada e
integrada. Para tal, torna-se necessário o oferecimento de formações
complementares dado que, no Brasil, a maioria dos cursos de graduação

501
Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni et al

não inclui essa temática em sua grade curricular, ou quando o faz é de


maneira limitada ou superficial. Assim sendo, um profissional de saúde
precisa estar muito bem preparado para cuidar da saúde física e mental
das pessoas com problemas associados ao uso de substâncias psicoativas,
mas é essencial que conheça as redes de assistência social e do direito para
que possa desenvolver ações integradas, não limitadas a simples
encaminhamentos. Igualmente necessário é o conhecimento dos recursos e
ferramentas necessários à gestão do sistema, para que seja possível a
articulação de ações entre os Sistemas Únicos de Saúde (SUS) e de
Assistência Social (Suas) com outras áreas, adotando-se a concepção de
clínica ampliada na área de cuidado a pessoas com problemas
relacionados ao uso de álcool e outras drogas (Batista, Batista,
Goldenberg, Seiffert, & Onzogno, 2005; Brasil, 2013). Desta forma,
fortalece-se a sociabilização do conhecimento ou saber, frente às práticas
de assistência integral ao cuidado e as abordagens de redução de danos
com ações multidisciplinares e intersetoriais (Gallassi, Souza, & Silva,
2016; Silva, Souza, & Gallassi, 2016).
Além de conhecimentos teórico-práticos sobre sua área específica de
atuação e sobre as redes de assistência, é de fundamental importância que
os profissionais conheçam os princípios estabelecidos nas políticas
nacionais sobre álcool e drogas (Brasil, 2011a) para que possam planejar e
desenvolver ações a elas alinhadas, especialmente se atuarem em serviços
públicos. As intensas e rápidas mudanças socioeconômicas e culturais que
ocorreram nas últimas décadas têm exigido dos profissionais um
investimento maciço em processos de educação continuada, que
possibilitem sua constante qualificação para o trabalho (Abbad, Zerbini, &
Souza, 2010). A oferta de cursos para capacitação profissional e
qualificação do trabalho é um dispositivo essencial para desenvolver as
habilidades e competências profissionais necessárias à assistência integral
para pessoas com problemas associados ao uso de substâncias psicoativas.
Para cumprir este objetivo, diversos projetos educacionais têm sido
ofertados, incluindo cursos de formação, capacitação, qualificação e
aperfeiçoamento profissional dirigidos a profissionais de variados níveis de

502
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

escolaridade, desde a educação básica até o nível superior. A fim de


atender estas demandas, foram desenvolvidos cursos livres, de extensão,
especialização e divulgação científica, assim como criadas as universidades
abertas (Abbad et al., 2010; Brasil, 2004b).
Durante muito tempo, os processos educativos visando à capacitação
profissional eram realizados de maneira presencial. Diante da necessidade
de superar barreiras geográficas e temporais surgiu a modalidade de
Educação à Distância (EAD), que pode ser definida como: “uma
modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos
processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e
tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores
desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos”
(Brasil, 2005).
As primeiras iniciativas nessa área foram os cursos por
correspondência que deram base para o desenvolvimento de cursos por
Educação a Distância utilizando novos recursos tecnológicos (Batista et al.,
2005; Martins, 2003). O avanço da tecnologia e a disseminação ao acesso
à Internet têm sido um forte aliado para suplantar barreiras, pois
permitem que recursos antes disponíveis apenas nos principais centros
econômicos e culturais do país sejam disponibilizados a profissionais de
áreas rurais, geograficamente isoladas ou com limitados recursos
econômicos.
A EAD tornou-se, assim, uma ferramenta de ensino que tem
permitido avanços significativos na oferta de formação, incluindo
programas formais e informais de capacitação profissional e qualificação
para o trabalho (Brasil, 2005). A oferta de cursos nessa modalidade
possibilita a capacitação profissional de profissionais de diversas áreas do
conhecimento, tais como saúde, educação, assistência social, segurança
pública, justiça, conselheiros, lideranças comunitárias e religiosas, etc.
Como recurso de otimização do processo de ensino-aprendizagem a EAD
é mediada pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s) que
permitem ações educacionais focalizadas e democratizadas, ampliando o
método didático-pedagógico ofertado pelos cursos (Abbad et al., 2010).

503
Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni et al

A utilização de novas mídias de contato, incluindo fóruns de


discussão, mensagens online, comunidades de trocas online, dentre outras, é
uma inovação trazida pela EAD que cria novos desafios para as
instituições de ensino ao exigir não só investimentos em tecnologias
avançadas, mas também a capacitação de educadores que as dominem.
Consequentemente, tornam-se necessárias mudanças no padrão
tradicional de ensino baseado no modelo pedagógico presencial no qual o
professor transmitia conhecimentos e o estudante os absorvia. O processo
de EAD estimula a participação ativa e responsável dos alunos, contempla
suas diferenças culturais, socioeconômicas e respeita seu ritmo singular de
aprendizagem. Os alunos são orientados por tutores/professores online
para melhor aproveitamento do conhecimento compartilhado por meio
das TIC’s (Mugnol, 2009). Desta forma, a EAD permite o
desenvolvimento de maior autonomia dos alunos no percurso da
aprendizagem.
A EAD tornou-se um recurso de incalculável importância, que se
soma à educação presencial. Entre suas vantagens destaca-se a
possibilidade de atender simultaneamente um grande número de
profissionais, reduzindo assim as barreiras de acesso e geográficas,
permitindo a diversificação e ampliação do conhecimento. Ela também
cria oportunidades de capacitação com flexibilidade de tempo, permitindo
conciliação entre estudo e trabalho. Do ponto de vista econômico, a
educação à distância pode reduzir custos em relação à modalidade
presencial. Além disso, incentiva a participação ativa dos profissionais,
amplia a comunicação e a informação bidirecional. Desta forma, ela
viabiliza a formação de profissionais de forma dinâmica e inovadora.
Entretanto, existem alguns desafios a serem superados quanto à oferta
de cursos na modalidade a distância, pois ainda há a necessidade de
desmistificar preconceitos como: que ela impediria trocas efetivas entre
professores/tutores e alunos, assim como destes entre si, proporcionados
pelo modelo de ensino presencial (Aquino, 2007). A globalização e o
crescente desenvolvimento das TIC’s na EAD têm reduzido as limitações
em relação ao ensino presencial (Aquino, 2007).

504
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

No Brasil, na década de 2001 a 2010, ocorreram significativas


mudanças na política do governo federal sobre álcool e outras drogas. Em
2004, o Ministério da Saúde redefiniu e ampliou sua política em relação à
Atenção Integral a usuários de Álcool e Outras Drogas, por meio da
Portaria nº 2.197, estabelecendo a oferta de ações terapêuticas, educativas,
de prevenção e reabilitação de pessoas com problemas relacionados uso de
álcool e outras drogas (Brasil, 2004).
Em 2005, a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad), na
época diretamente vinculada ao gabinete da Presidência da República e
atualmente vinculada ao Ministério da Justiça, estabeleceu a Política
Nacional sobre Drogas e posteriormente, em 2007, a Política Nacional
sobre Álcool (Brasil, 2011c).
Nessas políticas destaca-se o incentivo à:
a) pesquisa: “Pesquisar, experimentar e implementar novos
programas, projetos e ações, de forma pragmática e sem preconceitos,
visando à prevenção, tratamento, reinserção psicossocial, redução da
demanda, oferta e danos com fundamento em resultados científicos
comprovados”;
b) capacitação: “Educar, informar, capacitar e formar pessoas em
todos os segmentos sociais para a ação efetiva e eficaz de redução da
demanda, da oferta e de danos, fundamentada em conhecimentos
científicos validados e experiências bem-sucedidas, adequadas à nossa
realidade”.
c) articulação entre os sistemas:
Promover e garantir a articulação e integração em rede nacional das
intervenções para tratamento, recuperação, redução de danos, reinserção
social e ocupacional (unidades básicas de saúde, ambulatórios, centros de
atenção psicossocial, centros de atenção psicossocial álcool e drogas,
comunidades terapêuticas, grupos de autoajuda e ajuda mútua, hospitais
gerais e psiquiátricos, hospital-dia, serviços de emergências, corpo de
bombeiros, clínicas especializadas, casas de apoio e convivência e
moradias assistidas) com o Sistema Único de Saúde e Sistema Único de

505
Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni et al

Assistência Social para o usuário e seus familiares, por meio de


distribuição descentralizada e fiscalizada de recursos técnicos e financeiros.

Para viabilizar a implementação dessas e de outras ações previstas


nessas políticas, a Senad convidou docentes de universidades públicas com
reconhecida atuação nessa área para desenvolver cursos de capacitação
utilizando tecnologias de Educação a Distância (Brasil, 2011a). A
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) desenvolveu três cursos:
"Prevenção ao uso indevido de drogas: Capacitação para conselheiros e
lideranças comunitárias" (Brasil, 2014); “Curso para prevenção ao uso de
álcool e outras drogas no ambiente de trabalho – Conhecer para Ajudar”
e “Curso para Integração de competências no desempenho da atividade
jurídica com usuários e dependentes de drogas” (USFC, 2016). A
Universidade de Brasília (UnB) desenvolveu um curso dirigido a
educadores: “Curso de prevenção do uso de drogas para educadores de
escolas públicas” (UnB, 2014). A Universidade Estadual Júlio de Mesquita
Filho (UNESP, campus Botucatu) desenvolveu o “Curso de capacitação em
conceitos básicos, tratamento e reinserção social para líderes, terapeutas e
gestores de comunidades terapêuticas (CTs)” (UNESP, 2017).
Ao final de 2005, a Senad estabeleceu uma parceria com a equipe da
Unidade de Dependência de Drogas (Uded) do Departamento de
Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para o
desenvolvimento de um curso de capacitação de profissionais de saúde na
modalidade de Educação a Distância (EAD), que foi denominado Supera
(Sistema para detecção do Uso abusivo e dependência de substâncias
Psicoativas: Encaminhamento, intervenção breve, Reinserção social e
Acompanhamento) (Duarte & Formigoni, 2007).
Esse curso foi ofertado pela primeira vez em novembro de 2006 e
constantemente atualizado com conteúdos ampliados visando também à
capacitação de profissionais da área de assistência social (Carneiro &
Souza-Formigoni, 2017). Embora destinado a esse público-alvo também
profissionais de outras áreas, incluindo educação, justiça, segurança

506
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

pública, conselheiros e lideranças comunitárias ou religiosas, participaram


das 12 edições do curso oferecidas entre 2006 e 2017. Com base na
demanda de lideranças comunitárias e religiosas, em 2008-2009, a mesma
equipe da Unifesp desenvolveu o curso “Prevenção do Uso de Drogas em
Instituições Religiosas e Movimentos Afins – Fé na Prevenção” (Duarte &
Formigoni, 2009).
Em dezembro de 2011, esses cursos passaram a integrar as ações do
“Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas” que tinha a
finalidade de
coordenar as ações federais de prevenção, tratamento, reinserção
social de pessoas com problemas decorrentes do uso de drogas, em
parceria com estados, municípios e sociedade civil. O Plano também
previa o fortalecimento da rede comunitária por meio de ações de
capacitação voltadas para diferentes segmentos profissionais.
(Formigoni, 2017).

O curso Supera, patrocinado pela Senad e executado pela Unifesp,


tem sido ofertado gratuitamente, no formato de curso de extensão
universitária, com o objetivo de oferecer aos profissionais de saúde e
assistência social subsídios teórico-práticos para possibilitar, aos
profissionais de diversas áreas do conhecimento, abordagens terapêuticas
efetivas no cuidado humanizado aos usuários com problemas relacionados
ao uso de álcool e outras drogas. Nele são abordados temas abrangentes
incluindo aspectos culturais e políticos, efeitos das drogas no organismo, os
d i ve r s o s m o d e l o s d e p reve n ç ã o, i n t e r ve n ç ã o, t r at a m e n t o,
encaminhamento e ações de cuidado conforme a demanda especifica dos
equipamentos da rede e seus territórios. Seu conteúdo programático foi
desenvolvido em consonância com as diretrizes da Política Nacional sobre
Drogas (Pnad) e da Política Nacional sobre o Álcool (PNA) (Carneiro &
Souza-Formigoni, 2017).
O curso por EAD Supera foi lançado em novembro de 2006, com
carga horária sugerida de 120 horas e ampliada a partir da 5ª edição para

507
Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni et al

150 horas. A coordenação geral do desenvolvimento de seu material


didático foi realizada por Paulina C. A. V. Duarte, da Senad, e por Maria
Lucia O. S. Formigon,i da Unifesp. Docentes e pesquisadores especialistas
na área vinculados às universidades federais de São Paulo (Unifesp), Juiz
de Fora (UFJF), Paraná (UFPR), Rio de Janeiro (UFRJ), Rio Grande do
Sul (UFRGS) e Bahia (UFBA) coordenaram os módulos temáticos, que
contaram ao longo de seu desenvolvimento com a participação de diversos
especialistas, dentre os quais pesquisadores de diversas universidades
brasileiras e membros das equipes técnicas da Senad, dos ministérios da
Saúde (MS), Justiça e Cidadania (MJ), Desenvolvimento Social e Combate
à Fome (MDSC), Educação (MEC) e Ciência, Tecnologia e Inovação
(MCTI).
Foi desenvolvido um material perfazendo 923 páginas (na 11a edição),
composto por sete volumes, cada um correspondendo a um módulo
temático:
1: O uso de substâncias psicoativas no Brasil: Epidemiologia,
Legislação, Políticas Públicas e Fatores Culturais;
2: Efeitos de substâncias psicoativas no organismo;
3: Detecção do uso abusivo e diagnóstico de dependência de
substâncias psicoativas;
4: Intervenção Breve para casos de uso de risco de substâncias
psicoativas;
5: Encaminhamento de pessoas dependentes de substâncias
psicoativas;
6: As redes comunitárias e de saúde no atendimento aos usuários e
dependentes de substâncias psicoativas;
7: A detecção e o atendimento a pessoas usuárias de drogas na rede
da Atenção Primária à Saúde.

O Guia do Estudante constitui o oitavo volume do material


disponibilizado aos participantes, contendo informações gerais sobre o

508
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

curso e seus autores, noções básicas sobre EAD; orientações e sugestões


sobre como utilizar os materiais e como se organizar para participar das
atividades interativas, gabarito de respostas para as atividades de avaliação
propostas em cada módulo e os principais links de universidades nacionais
e internacionais que possuem materiais relacionados à temática do curso.
Nas primeiras cinco edições, além de ser disponibilizado online, o
conteúdo foi oferecido na forma impressa, enviado gratuitamente a todos
os participantes, pelos Correios. O kit de materiais que compunha a versão
impressa incluía, além dos oito volumes, um CD-Rom com o conteúdo
dos sete módulos e do Guia do Estudante, e um CD-Rom ou DVD com
quatro vídeos ilustrativos de cerca 15 minutos cada, para exemplificar a
utilização dos procedimentos de triagem, visando à detecção precoce de
pessoas com problemas associados ao uso de álcool e outras drogas,
seguida por intervenção breve (IB). Para os participantes das versões
completamente online do curso (6ª a 12ª), o acesso ao material teórico dos
sete módulos, assim como aos vídeos ilustrativos e materiais
complementares, como artigos científicos, foi disponibilizado por meio da
plataforma Moddle. Todos os materiais didáticos não interativos da edição
mais recentemente finalizada encontram-se disponíveis, de forma aberta,
em http://www.supera.senad.gov.br/material. Assim sendo, qualquer
pessoa pode ter acesso aos conteúdos da edição anterior mais recente,
incluindo os vídeos e instrumentos de triagem (Assist – Questionário para
triagem do uso de álcool, tabaco e outras substâncias e Audit – Teste para
Identificação de Problemas Relacionados ao Uso de Álcool).
Além destes materiais didáticos estáticos, os participantes
matriculados no curso têm acesso a um conteúdo dinâmico, interativo,
disponibilizado por um período de três a quatro meses, também no
mesmo ambiente virtual de aprendizagem desenvolvido em plataforma
Moodle. Ao longo do curso, os alunos participantes são acompanhados por
uma equipe pedagógica formada por coordenadores e tutores responsáveis
por monitorar os acessos ao site, analisar as avaliações e estimular os
profissionais a participar dos fóruns de discussão temáticos. A
comunicação entre tutores e alunos era realizada por meio de mensagens,

509
Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni et al

e-mail ou pela central de atendimento com discagem gratuita (linha 0800),


estruturada e disponibilizada exclusivamente para o curso.
A aprovação do participante é vinculada à realização das sete
avaliações de conteúdo, disponibilizadas ao final de cada módulo, sendo
necessário atingir ao menos 70% de respostas certas em cada módulo para
aprovação, sendo permitido aos participantes refazer as avaliações. Nas
primeiras oito edições, além dessas avaliações, foi aplicado um teste de
conhecimento sobre noções básicas sobre os efeitos do álcool e de outras
drogas e suas consequências biológicas, psicológicas e sociais antes e após
o curso. Em relação a esse teste, havia uma única oportunidade de
preenchimento, mas seu resultado não afetava a nota. Essas avaliações
eram reformuladas em cada edição do curso. Até a 5a edição do curso, os
profissionais aprovados receberam, pelo correio, um “kit de formatura”
contendo o certificado de conclusão do curso emitido e registrado pela
Pró-Reitoria de Extensão da Unifesp, sendo, portanto reconhecido pelo
MEC, além de um conjunto com 50 cópias dos instrumentos de triagem
(Assist e Audit). Em algumas edições, foi também anexado um convite
para participar de projetos de pesquisa. A partir da 6ª edição, os
participantes passaram a obter os instrumentos de triagem e o certificado
no formato pdf, diretamente na plataforma do curso ou por e-mail,
aumentando a agilidade na disponibilização desses arquivos e reduzindo
significativamente os custos do curso. Foi a economia com serviços de
impressão e distribuição dos materiais que possibilitou a oferta de novas
edições.
Durante o período de 2006 a 2017 foram realizadas 12 edições do
curso Supera, totalizando 135.000 mil vagas ofertadas. Foram computadas
neste período inscrições provenientes de cerca de 500.000 profissionais,
indicando uma grande demanda por este tipo de capacitação. A adesão ao
curso variou ao longo dos anos, havendo edições com cerca de 60% de
aprovados e outras com cerca de 80%, porcentagens bastante significativas
considerando-se tratar de um curso a distância e gratuito. Alguns fatores
podem influenciar a adesão ao curso, dentre os quais o número de
participantes e os critérios de seleção adotados pela Senad. As turmas

510
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

iniciais foram compostas por 5.000 profissionais (1a à 4a) e entre a 5a e a


12a edições, o número de participantes variou, com 10.000 (7a, 9a e 10a),
12.500 (11a e 12a), 15.000 (5a e 8a) ou 30.000 (6a) participantes. Mesmo
ampliando o número de tutores e coordenadores surgiram dificuldades
para gerenciar turmas com mais de 15.000 participantes, dentre as quais a
limitação no número de tutores capacitados na área. Embora tenham sido
oferecidos cursos de treinamento para os tutores, era pré-requisito que
tivessem formação na área e que fossem aprovados com pelo menos 70%
de acertos em uma prova abrangendo todo o conteúdo do curso.
Além de orientar os participantes, os tutores participavam de coletas
de dados para diversos projetos de pesquisa relacionados ao curso ou a
seus participantes, abrangendo diversos aspectos, dentre os quais: o perfil
dos participantes, os fatores de adesão ao curso, o uso das ferramentas
virtuais e participação nos fóruns de discussão disponibilizados no site, a
utilização dos instrumentos de triagem, a aplicação de intervenções breves
e sua efetividade, assim como a relação custo-benefício da implantação do
curso.
Um desses estudos foi realizado por Maino (2011), a partir de uma
amostra de voluntários, profissionais que completaram o curso Supera 1ª
ou 2ª edição. O estudo indicou que, após o curso, em sua maioria, os
participantes se sentiam capacitados a aplicar instrumentos de triagem e a
realizar intervenções breves. A grande maioria dos participantes avaliou
positivamente a atuação dos tutores durante o curso e 75,5% da amostra
relatou que, após o curso, mudaram seus conceitos em relação à
dependência de substâncias psicoativas, além de terem aumentado a
confiança para a aplicação das técnicas e o tempo investido no estudo do
tema (79,5%). A grande maioria dos participantes (71,5%) relatou já atuar
na área quando ingressaram no curso Supera (Maino, 2011).
Outro estudo realizado com uma amostra de voluntários,
participantes da 1ª à 4ª edição do curso, indicou que após o curso mais de
50% dos profissionais se sentiam muito ou completamente capacitados
para avaliar o uso de substância, e que mais de 60% estavam motivados
para utilizar as técnicas de triagem e intervenção breve nos seus locais de

511
Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni et al

atuação profissional (Carneiro, 2014, 2017). No mesmo estudo, muitos


profissionais (82%) indicaram que haviam atuado como multiplicadores
dos conhecimentos adquiridos no curso. Dentre os fatores facilitadores de
sua atuação destacou-se receber apoio da chefia, que dobrou a chance
(OR=2,3 / IC=2,8-1,9 / p=0,001) de o participante atuar como
multiplicador dos conhecimentos (Carneiro, 2014, 2017).
A partir desse cenário, considerando o grande número de
profissionais que indicaram interesse em aplicar as técnicas de triagem e
intervenção breve após o término do curso, foi desenvolvido um projeto de
apoio denominado “Pós-curso Supera”, com o intuito de apoiar os
profissionais já capacitados pelo Supera a implantarem em seus locais de
trabalho as técnicas de triagem e intervenções breves, por meio de contato
direto e personalizado com tutores dedicados a esse projeto. O Pós-curso
foi implantado em 2015 com o intuito de oferecer apoio dentro das
principais temáticas associadas ao conteúdo do curso, com reflexo nas
atividades de rotina dos profissionais. Destacam-se entre essas temáticas:
a. como lidar com usuários de substâncias; como aplicar os
instrumentos de triagem;
b. como realizar uma Intervenção Breve – considerando-a um meio
de acolhimento e primeiro cuidado para usuários de risco;
c. como promover a articulação com os demais braços da rede de
atendimento em saúde, assistência social, direito e segurança;
d. como promover a divulgação dos conhecimentos adquiridos para
outros colegas no local de atuação;
e. como desenvolver projetos de pesquisa ou de avaliação dos
resultados obtidos; como facilitar a articulação com as chefias dos serviços
e coordenações.

O Pós-Curso é uma proposta formativa de construção de


conhecimento embasado teórica e metodologicamente nos referenciais da
educação permanente em saúde e do trabalho multiprofissional e

512
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

multidisciplinar. Ele visa a ampliar a reflexão sobre as práticas e


intervenções desenvolvidas na realidade de cada serviço e fomentar
estratégias de atuação prática nesses cenários. Desta forma, possibilita a
ampliação da atuação do profissional que, ao se sentir seguro de seus
conhecimentos e capacidades, torna-se apto a propor e desenvolver
projetos de implementação dos conteúdos abordados no curso Supera. O
trabalho do pós-curso também foi realizado utilizando as tecnologias de
Educação a Distância e desenvolvido por uma equipe de tutores
qualificados, com formação em diversas áreas do conhecimento, que
atuaram em equipe multidisciplinar. Eles faziam contatos personalizados
com os profissionais, oferecendo suporte, apoio, orientação, e acolhimento,
discutindo com eles as demandas de trabalho complexas e singulares de
cada território de atuação. Todo o contato com os profissionais era
realizado por e-mail ou por telefonia gratuita (linha 0800 dedicada ao
atendimento).
A equipe de tutores se organizava para assessorar e estimular a
discussão de casos nos espaços virtuais de aprendizagem (Moodle), além de
propiciar o desenvolvimento de propostas de implementação, com
acompanhamento e supervisão especializada, focadas no desenvolvimento
de medidas factíveis a serem implementadas pelos profissionais
capacitados. Foi desenvolvido um espaço aberto de divulgação para
abordar conteúdos ligados à área de álcool e outras drogas, eventos e
formações gratuitas, além de propiciar trocas e aumentar aproximação
com a equipe de tutoria Pós-curso. Foi criada uma “FanPage” utilizando a
plataforma Facebook (www.facebook.com/superead que em meados de
2017 já tinha atingido mais de 8.000 pessoas que “curtiram” e
acompanharam os conteúdos postados.
Com base na demanda trazida pelos participantes do Pós-Curso
Supera, foi desenvolvido pelos tutores um trabalho pedagógico de suporte
ancorado em conteúdos teórico-técnicos que auxiliassem na
problematização e/ou na construção de ações mais efetivas e resolutivas
na área de álcool e outras drogas. Isso levou os profissionais a refletir sobre
suas demandas e os estimulou a construir, em parceria com os tutores,

513
Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni et al

planos de ação para implementar medidas e estratégias visando a lidar


com as fragilidades e aproveitar as potencialidades da rede de atenção
integral ao cuidado nos territórios. Os profissionais mencionaram ser
muito importante receber um suporte qualificado após a conclusão das
atividades obrigatórias do curso, pois além de manterem vínculo com a
equipe do curso, estavam usufruindo de modo indireto da infraestrutura
da universidade, recebendo orientações qualificadas e materiais
adicionais/complementares aos conteúdos abordados durante o curso.
Além desses aspectos, eles perceberam a viabilidade de aproximação da
teoria com a prática, entendendo como poderiam realizar ações concretas
no local de trabalho e muitos referiram não ter esse tipo de apoio
institucional para a reflexão ou desenvolvimento de ações nesses locais.
O curso Supera é um exemplo de como é possível articular docentes,
pesquisadores e técnicos de diversas áreas para participar da construção
de um material didático abrangente, cientificamente embasado, alinhado
às Políticas Nacionais sobre Álcool e Drogas e disponibilizado
gratuitamente para milhares de profissionais carentes por capacitação e
educação permanente, utilizando ferramentas de EAD. Mais do que um
curso isolado, sua estratégia de implementação deu início à criação de
uma rede de profissionais com alto potencial para interação, de
abrangência nacional, o que é essencial para o desenvolvimento de ações
integradas. Este é um dos grandes diferenciais e potenciais do curso
Supera.
Existem diversos outros cursos utilizando as tecnologias de EAD
voltados à capacitação de profissionais para atuarem junto a pessoas com
problemas associados ao uso de substâncias psicoativas. Castro (2017)
realizou um estudo intitulado “O mapeamento de cursos por educação a
distância para formação de profissionais na área de álcool e outras drogas”
que teve por objetivo compilar as ofertas de cursos que tivessem como
temática principal “álcool e outras drogas” e que visassem qualificação,
capacitação ou formação de profissionais das áreas da saúde, assistência
social, educação, sistema judiciário, segurança pública, lideranças
comunitárias, religiosas ou outras áreas do conhecimento. Neste estudo

514
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

quantitativo, de caráter descritivo, foram localizados 107 cursos de


formação ou capacitação profissional na área de álcool e outras drogas,
oferecidos por instituições públicas ou privadas, dirigidos a profissionais de
diversas áreas de atuação. A maioria dos cursos era ofertada na
modalidade de ensino a distância (48%) ou semipresencial (11%), sendo
apenas 36% completamente presenciais, pagos (55%) e com
reconhecimento pelo MEC (71%). Foram mais frequentes as ofertas de
cursos de especialização ou aperfeiçoamento profissional.
Os conteúdos programáticos dos cursos encontrados foram
comparados com os conteúdos de ensino abordados nos sete módulos do
curso Supera e observou-se que a maioria dos cursos abordava apenas
temáticas relativas às modalidades de tratamento, encaminhamento e
efeitos das substâncias psicoativas. Pouco mais da metade abordava
aspectos epidemiológicos, fatores culturais, políticos e socioeconômicos
relacionados ao uso de álcool e outras drogas. Os demais temas foram
abordados em menos de um terço dos cursos como, por exemplo, a
técnica de intervenção breve, estratégias de redução de danos e as redes
comunitárias. Na maioria dos cursos não eram mencionados os princípios
e diretrizes da Política Nacional sobre Drogas (Pnad) e da Política
Nacional sobre o Álcool (PNA). Muitos dos cursos ofertados eram
pautados em um modelo de cuidado centrado na lógica hospitalocêntrica,
com abordagens conservadoras e fragmentadas, não considerando o
conceito de clínica ampliada nos processos de trabalho. Poucos cursos
enfatizavam a importância das ações multidisciplinares e intersetoriais
como abordagens imprescindíveis na assistência integral aos usuários de
álcool e outras drogas.
A experiência adquirida em uma década de desenvolvimento do
curso Supera reforça a importância de uma constante renovação e
atualização dos profissionais que se propõem a lidar com pessoas com
problemas associados ao uso de substâncias psicoativas, considerando não
só suas características pessoais como também o contexto cultural, social e
político em que vivem. O desafio da formação profissional nessa área
consiste em estimular o desenvolvimento de boas práticas embasadas em

515
Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni et al

sólida fundamentação teórica e metodológica, alinhadas às políticas de


saúde pública, de saúde mental e álcool e outras drogas em vigência no
país.
Nesta perspectiva, o curso Supera teve como objetivo não só facilitar
a atualização de conhecimento, mas principalmente estimular os
profissionais a refletirem em profundidade sobre esta temática tão
complexa, considerando não só os aspectos médicos, mas também os
psicossociais. Nos textos apresentados, mas principalmente nos fóruns de
discussão, são propostas ações concretas, cientificamente embasadas,
utilizando técnicas objetivas, com direta aplicação na prática profissional.
Para facilitar este processo, as discussões são alinhadas em módulos
temáticos e as práticas ilustradas com o apoio de vídeo-aulas, dando
concretude às discussões.
Segundo Stroschein e Zocche (2011), a educação permanente deve
e nv o l v e r m e t o d o l o g i a p r o b l e m a t i z a d o r a , e n f a t i z a n d o a s
situações-problema encontradas na prática cotidiana. Isto possibilitando a
emergência de reflexões críticas e soluções estratégicas coletivamente
elaboradas e articuladas. A ação e a reflexão sobre a ação, permeadas pela
escuta pedagógica, permitem o compartilhamento dos conhecimentos
teóricos e práticos na área de saúde mental envolvendo questões
associadas ao uso de álcool e outras drogas. Adotada como estratégia para
a implementação do Sistema Único de Saúde, a educação permanente
fundamenta-se na busca pela garantia da atenção integral, permitindo a
qualificação da assistência e a democratização das relações entre gestão,
cuidado, ensino e controle social na proposição e no planejamento do
sistema, fortalecendo a participação dos profissionais e a cogestão do
sistema (Brasil, 2009).
Cur sos de boa qualidade por EAD podem contribuir
significativamente para ampliar a capacitação profissional, com nítidas
vantagens quanto à comodidade e flexibilidade de horários para estudo e
promoção da autonomia. Os profissionais têm, assim, a oportunidade de
gerenciar melhor seu tempo e interagir com outros de forma virtual. A
possibilidade de oferecer treinamentos virtuais é essencial para superar

516
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

barreiras geográficas, permitindo que mesmo profissionais que se


encontram em locais isolados tenham a oportunidade de dialogar com
especialistas que se encontram muitas vezes nos grandes centros. A troca
de experiências com outros profissionais permitida por redes virtuais
enriquece o aprendizado.
O uso de ferramentas de educação a distância utilizando sólido
embasamento teórico, associado a técnicas com boa evidência de
efetividade, alinhado com a política adotada pelos sistemas de saúde,
justiça e assistência social pode ser um agente de transformação das
práticas de cuidados. À medida que o profissional entende a complexidade
das questões de saúde, educação, assistência social, segurança, direito e
cidadania associados ao uso de substâncias psicoativas ele poderá atuar de
modo mais consciente e efetivo na sua prática diária.
O curso Supera representa um passo importante na formação de uma
rede nacional de profissionais com interesse na área, essencial para o
avanço no enfrentamento dos problemas complexos, de natureza
interdisciplinar, associados ao uso de substâncias psicoativas. A perspectiva
de integração virtual de profissionais de diferentes áreas é um dos
potenciais de cursos por Educação a Distância que poderá se refletir em
ações integradas em seus ambientes de atuação. A EAD contribui para
reduzir distâncias, democratizar o conhecimento e aproximar pessoas.
Conhecendo melhor o sistema e estabelecendo conexões efetivas com
profissionais de diversas especialidades, abrem-se perspectivas mais
abrangentes de transformação e ações integradas dos diversos sistemas de
cuidado para os profissionais que atuam nesta área.

517
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522
CAPÍTULO 5.3

Mestrado profissional: uma experiência


construída a partir da Política Nacional
sobre Drogas do Brasil
Carla Dalbosco
Silvia Chwartzmann Halpern
Lisia von Diemen
Flavio Pechansky

Introdução
A consolidação dos mestrados profissionais no Brasil ocorre no
momento em que diferentes países avaliam os rumos que a educação deve
seguir neste novo milênio. Porém, essa modalidade de curso stricto sensu
ainda gera certa desconfiança em alguns segmentos acadêmicos, o que
torna necessário contextualizar a sua importância. O mestrado
profissional (MP) surgiu com o escopo específico de responder a exigências
da realidade contemporânea pois, cada vez mais, o cenário de formação
acadêmica tem demandado abordagens focadas na atuação prática. Esses
processos levam em conta necessidades locais e estabelecem mudanças no
modo de produzir ciência, implicando em transformações individuais,
institucionais e na própria prática profissional.
Observa-se nas últimas décadas um esforço das agências de fomento e
de avaliação para a redefinição da missão dos programas de
pós-graduação, visando principalmente à expansão do conhecimento, o
caráter técnico da formação de mão de obra e o surgimento de tecnologias
inovadoras em áreas estratégicas. Há um estímulo para que as instituições
de ensino superior invistam no atendimento de demandas dos setores
produtivos e de serviços, com projetos de formação de caráter mais

523
Carla Dalbosco et al

flexível. Assim, é valorizada a integração do conhecimento gerado na


universidade com as demandas provenientes do campo social e
profissional (Maciel & Nogueira, 2012; Oliveira, 2015). Segundo a
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes/MEC), o mestrado profissional visa à capacitação de profissionais
para atender de forma qualificada demandas técnico-científicas específicas
do mercado de trabalho e temas de interesse público. Os programas têm
como principal foco a gestão, a produção de pesquisa aplicada e a
proposição de inovações e aperfeiçoamentos tecnológicos em diferentes
áreas. Entre seus objetivos, destacam-se a qualificação de profissionais
para a prática avançada e transformadora, a transferência de
conhecimento para a sociedade, além de desenvolvimento local, regional
e/ou nacional (Brasil, 2009).
A partir desse contexto, torna-se importante definir o possível papel a
ser desempenhado por um MP específico para abordagem de questões
relacionadas ao tema álcool e outras drogas. Principalmente ao se levar
em conta a realidade da população brasileira, na qual a prevalência do
consumo de substâncias psicoativas, sobretudo entre os mais jovens,
aponta para a necessidade de construir medidas preventivas e/ou que
venham a contrapor condutas de risco que prejudiquem o indivíduo e a
coletividade (Duarte, Stempliuk, & Barroso, 2009).
Em anos recentes, é perceptível a carência na formação para atuação
na rede de cuidado a usuários de álcool e outras drogas, não apenas entre
profissionais da saúde mas, também, de áreas afins. Assim, a proposta de
oferta de um MP na área surgiu para atender a uma demanda reprimida,
na medida em que pode vir a fomentar a produção e a aplicação de
conhecimento em serviços que compõem as redes de saúde (SUS),
assistência social (Suas) e a área de política sobre drogas. Este quadro
também sinaliza a importância de construir uma política de formação
ampla e abrangente, pois, segundo Lima Junior, Silva, Noto, Bonadio e
Locateli (2015), há déficit no número de profissionais e necessidade de
investimento na compreensão dos pressupostos paradigmáticos que
norteiam o tema atualmente. Assim, é imprescindível adotar medidas

524
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

pragmáticas, que integrem de modo transdisciplinar e intersetorial os


avanços científicos, visando à educação permanente das equipes e a
melhoria do acesso aos serviços.
Este texto tem por objetivo apresentar a experiência de execução do
primeiro mestrado profissional em prevenção e assistência a usuários de
álcool e outras drogas do país, desenvolvido pelo Hospital de Clínicas de
Porto Alegre – HCPA/UFRGS em parceria com a Secretaria Nacional de
Políticas sobre Drogas - Senad/MJ. Para tal, partiremos da caracterização
dos MPs e da contextualização histórica do curso no âmbito da Política
Nacional sobre Drogas vigente. Após, serão apresentadas as estratégias de
formação adotadas e possíveis impactos decorrentes nos serviços a partir
dos resultados obtidos.

Caracterização dos mestrados profissionais


A legislação brasileira previa a possibilidade de criação de mestrados
profissionais desde os anos 1960. Porém, até o final dos anos 1990, a
Pós-Graduação contou apenas com mestrados e doutorados acadêmicos.
Foi a partir de 1998 que foram instituídos, por meio da Portaria
Capes/MEC nº 080 (Brasil, 1998), os primeiros cursos e somente na
última década foi estabelecida uma política de fomento à criação desse
tipo de formação stricto sensu. Nessa direção, desde 2009 a Capes passou a
publicar editais de chamamento público, incentivando a criação de
programas de mestrado nesta modalidade (Oliveira, 2015).
O objetivo passou a ser o investimento em perfis que atendam o
mercado de trabalho extra-acadêmico de acordo com as necessidades do
país, ou seja, a formação do que podemos chamar de “técnicos de alto
padrão”. Para Maciel e Nogueira (2012), a ênfase está em problemas
externos à academia e os MPs constituem uma via de mão dupla que
estabelece uma ponte de acesso no caminho entre a academia e a
sociedade.
Segundo dados do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE,
2016), as taxas gerais de crescimento dos programas de mestrado no Brasil

525
Carla Dalbosco et al

são significativas nas duas últimas décadas. Enquanto em 1996 existiam


1.187 programas, no ano de 2014 esse número aumentou para 3.620. A
partir de 1999, os dados passaram a incluir também os MPs e a política de
incentivo da Capes é refletida nos resultados apresentados, pois os
programas chegaram a 525 em 2014. Essa taxa corresponde a 14,5% do
número total de programas de mestrado existentes naquele ano,
implicando na titulação de 5.723 mestres profissionais entre os 50.206
mestres titulados no país.
A expansão da criação de cursos de MP está diretamente relacionada
ao processo de consolidação dos programas de doutorado, cujo nível de
formação tem sido exigido para exercer carreira universitária e de
pesquisador. Esse contexto reduziu a importância relativa do mestrado
acadêmico como uma formação suficiente para o exercício docente.
Aliado a esse fato, muitos mestres passaram a atuar em instituições não
vocacionadas para o ensino e a pesquisa como atividade principal,
refletindo uma crescente demanda de empresas e instituições públicas por
profissionais com nível de mestrado. Historicamente, o mestrado
acadêmico acabava atendendo de forma equivocada a essa necessidade, já
que não havia cursos voltados para a aplicação de conhecimento na práxis
dos serviços. Muitos profissionais que tinham como foco o plano de
carreira acabavam buscando a formação em mestrados acadêmicos por
absoluta falta de opção (CGEE, 2012; Neponuceno & Costa, 2012).
Esse cenário abriu espaço para as demandas de um novo perfil
profissional que não irá atuar na vida acadêmica, mas está voltado ao
mercado de trabalho. O nicho é a valorização da ciência aplicada e a
transformação crítica de práticas e rotinas instituídas. Porém, ainda
existem muitos questionamentos sobre o verdadeiro papel da
pós-graduação stricto sensu, já que o MP apresenta uma situação peculiar:
concede os mesmos direitos e prerrogativas garantidos aos oriundos do
mestrado acadêmico, porém, por definição, apresenta diferenças
marcantes em relação ao perfil dos seus participantes. Pesquisa realizada
por Nepomuceno e Costa (2012) avaliou a percepção quanto ao impacto
do MP no desempenho profissional de seus egressos. Os resultados

526
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

mostraram que é percebido um maior impacto em relação à “autoestima”


e “senso crítico” do pós-graduado. Ou seja, a formação deve ir além do
mero treinamento para o mercado de trabalho e envolver também a
formação para o pensamento crítico, intelectual e ético. Neste sentido, um
estudo junto a um mestrado na área de enfermagem também mostrou que
as experiências de aprendizagem foram integradas às atividades
desenvolvidas no ambiente profissional após a conclusão do curso,
contribuindo para a melhora na qualidade do trabalho ofertado (Aoyama
& Tatsumi, 2017).
Do ponto de vista da organização dos serviços de saúde e assistência
social, muitas pessoas com transtornos por uso de substâncias buscam
atendimento em equipamentos dessas redes, o que tem exigido uma
melhor formação de profissionais que, muitas vezes, não se sentem bem
preparados para atendê-los. O crescimento desse fenômeno exige a
construção de outros saberes e práticas para suplantar a lógica tradicional
que associa essa temática unicamente à justiça, ou ainda, apenas como um
grave problema de saúde pública. Cada vez mais, devido ao fato de
envolver vários campos, a análise do fenômeno deve incluir aspectos
legais, sociais, antropológicos, psicológicos, educativos, entre outros.
Especificamente em relação à área da saúde, é necessário repensar os
critérios que definem o desenvolvimento de competências no setor, a partir
dos diferentes cenários de trabalho e diretrizes de formação. Ressalta-se
que o campo de formação em saúde é amplo, pois incide também em
trabalhadores oriundos de outras áreas, mas que atuam de forma
complementar, incorporando em sua prática uma gama de conhecimentos
também originário da área (Ceccim, 2012). Neste sentido, ao se pensar na
demanda específica de formação na área de álcool e outras drogas, é
preciso incorporar, necessariamente, um olhar interdisciplinar e
intersetorial. Essa perspectiva está preconizada na Política Nacional sobre
Drogas (Brasil, 2011) que prevê ações de capacitação continuadas e
permanentes, fundamentadas em conhecimentos científicos validados,
numa perspectiva que engloba diferentes atores sociais com potencial para
atuar como multiplicadores de conhecimento.

527
Carla Dalbosco et al

Outro ponto a ser destacado é que uma das principais dificuldades


enfrentadas pelos MPs no contexto brasileiro é a falta de fontes de
financiamento, tanto via agências de fomento governamentais, tais como
Capes e CNPq, ou iniciativa privada. No caso específico do curso aqui
apresentado, a parceria com a Senad/MJ foi possível por coadunar-se
com a missão da própria Secretaria, que tem por atribuição fomentar a
formação de recursos humanos qualificados na área, via atividades de
capacitação e treinamento dos agentes do Sistema Nacional de Políticas
sobre Drogas (Brasil, 2016).

Histórico do curso e contextualização institucional


A fim de contextualizar a oferta do curso, é importante tecer uma
breve apresentação do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA),
instituição executora, a partir da qual foi possível a implementação do
programa. O HCPA é um hospital público, geral e universitário,
pertencente à rede de hospitais universitários do MEC, que presta
assistência a uma clientela formada, em sua quase totalidade, por
pacientes do SUS. É vinculado academicamente à Universidade Federal
do Rio Grande do Sul – UFRGS e, em sua missão institucional, assume o
compromisso com a formação de profissionais das áreas da saúde, voltados
principalmente para a atenção ao SUS, sob orientação e preceptoria dos
professores da universidade e do corpo funcional do próprio hospital. O
HCPA oferta seus espaços para cerca de 10 cursos de graduação da
UFRGS, especialmente da Faculdade de Medicina e Enfermagem. Além
disso, conta com programas de residência médica, residência integrada
multiprofissional em saúde e um programa institucional de cursos de
capacitação e aperfeiçoamento para diferentes perfis profissionais.
O histórico do projeto de MP tem como referência o Decreto nº
7.179 (Brasil, 2010a), que instituiu o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack
e Outras Drogas e previu a criação e o fortalecimento de Centros
Colaboradores no âmbito de hospitais universitários do país. O objetivo
desses Centros é o ensino, pesquisa e desenvolvimento de metodologias de

528
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

tratamento e reinserção social de dependentes de álcool e outras drogas,


com especial ênfase no crack. Assim, a partir de uma parceria firmada
entre a Senad e o HCPA, foi estruturado a partir de 2012 o primeiro Centro
Colaborador em Álcool e Outras Drogas do Brasil, fundamentado em um
modelo integrativo de atendimento a pacientes em nível ambulatorial e
internação hospitalar, associado a serviços de reinserção social de alto grau
de complexidade, totalmente incorporados a uma estrutura funcional de
formação acadêmica e pesquisa. Essa proposta permitiu adicionar
simultaneamente à estruturação física desse centro operacional, projetos
continuados de assistência, ensino e pesquisa, visando a sua disseminação
para outras regiões do país.
Redes colaborativas como essa contribuem para o desenvolvimento
de intervenções e tecnologias baseadas em modelos de boas práticas e em
evidências científicas. Além disto, permitem congregar competências e
produzir dados sobre fatores que afetam a ocorrência de diferentes
problemas relacionados ao uso de drogas, incluindo fatores psicológicos,
sociais, educacionais, ambientais, genéticos e neuroquímicos. Essa
iniciativa entra em consonância com esforços da Organização Mundial de
Saúde, tais como o Mental Health Gap Action Programme - mhGAP (World
Health Organization, 2016) que busca garantir o cuidado adequado a
portadores de diferentes transtornos, incluído aí o abuso de drogas
psicoativas, ajudando esses sujeitos a alcançarem vidas mais saudáveis.
Considerando a implantação do Centro Colaborador e a experiência
prévia desenvolvida pelo Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas (Cpad),
por meio de cursos de extensão e um curso de especialização, este último
já em parceria com a Senad, foi natural dentro do hospital a continuidade
de projetos de qualificação de gestores e profissionais. Do ponto de vista
institucional, a oferta do MP integra-se com a missão do HCPA, tendo em
vista tratar-se de um hospital universitário identificado com a tríade
pesquisa, ensino e assistência.
Assim, a partir da experiência de criação do programa de MP, o
HCPA reafirmou sua posição como um polo disseminador de
conhecimento, cumprindo o papel social de auxiliar no enfrentamento dos

529
Carla Dalbosco et al

problemas relacionados ao uso de substâncias. Assegurou também um


espaço de formação de profissionais, complementar a outras políticas
públicas setoriais já existentes no âmbito de alguns ministérios,
contribuindo para o melhor acesso ao conhecimento em nível nacional,
tendo em vista as inúmeras lacunas ainda identificadas.

Estratégia de formação adotada


A implantação do programa, a partir de março de 2014, pode ser
considerada um projeto pioneiro, pois se consistiu no primeiro curso
específico sobre o tema drogas de natureza profissional stricto sensu no
Brasil. Do ponto de vista da instituição executora, também foi uma
experiência inédita, pois foi o primeiro mestrado promovido
exclusivamente pelo hospital, sem o protagonismo direto da universidade.
A formatação da proposta nasceu atrelada ao reconhecimento de que,
investir na formação profissional especializada, destaca-se como uma
importante estratégia para o fortalecimento da rede. Com esse foco desde
o início, o público-alvo pretendido foi de gestores de políticas públicas e
profissionais oriundos de diferentes áreas, tais como medicina, psicologia,
enfermagem, serviço social, terapia ocupacional, entre outros. Ou seja,
independente da formação acadêmica de origem, priorizou-se o
investimento em profissionais que atuam em equipamentos da rede
pública, estratégicos para contribuir com a melhora do sistema integral de
cuidado aos usuários, tanto na perspectiva da gestão, quanto da
reabilitação psicossocial.
A oferta do MP justificou-se a partir da estrutura desse Centro
Colaborador HCPA/Senad, uma vez que se identifica essa carência na
formação de recursos humanos especializados no país. Diversos autores
(Costa, Colugnati, & Ronzani, 2015; Moraes, 2008;) recomendam a
construção desse espaço de treinamento como prioritária para a
valorização das equipes, pois focar apenas na ampliação da rede de
serviços não é suficiente. É preciso investir em uma formação que
incentive os profissionais a sintonizar com os princípios da atenção

530
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

psicossocial, dispondo-os a romper com as lógicas excludentes e


estigmatizadoras dos sujeitos que fazem uso de substâncias psicoativas, tão
enraizadas em diversos segmentos de nossa sociedade.
Assume-se que uma formação qualificada poderá influenciar
diretamente a qualidade dos serviços ofertados aos usuários. Da mesma
forma, os profissionais formados, independente do local em que atuam,
poderão contribuir com reflexões teórico-práticas e disseminar novas
técnicas adquiridas, contribuindo com o trabalho intersetorial e
interdisciplinar. Todavia, Costa, Colugnati, & Ronzani (2015) alertam que
programas de capacitação só trarão mudanças reais se forem articulados
com outras ações sistemáticas e constantes, que impactem na mudança de
práticas no cotidiano dos serviços.
O curso foi aprovado pela Capes/MEC dentro da área de Medicina
II, mas o conteúdo abordado guarda interface com diferentes áreas de
conhecimento, sendo esta uma das principais características da proposta.
Procurou-se contemplar diferentes aspectos que deem conta da
complexidade do fenômeno, incluindo suas dimensões políticas,
econômicas, sociais, culturais, psicológicas, biológicas, educativas,
preventivas, interventivas, dentre outras. Ao mesmo tempo, como pano de
fundo, a estrutura está alicerçada em práticas clínicas baseadas nas
melhores evidências científicas disponíveis.
A composição do corpo docente reúne um perfil plural e diferentes
expertises. Alguns professores são referência na produção acadêmica sobre o
tema do uso de substâncias, tendo vasta experiência de pesquisa na área, e
outros são profissionais de referência em abordagens de psicologia do
desenvolvimento, no atendimento direto a usuários, gestão de políticas
públicas e organização de serviços. Neste intuito, o quadro de docentes
conta com médicos psiquiatras e clínicos, psicólogos, biomédicos,
assistentes sociais, enfermeiros, entre outros.
A estruturação do curso define uma área de concentração em
prevenção e assistência a usuários de álcool e outras drogas, que engloba o conjunto
de implicações clínicas, epidemiológicas, sociais e culturais do processo

531
Carla Dalbosco et al

saúde-doença, bem como os processos de promoção, prevenção,


diagnóstico, intervenção e reabilitação psicossocial de usuários ou
dependentes de substâncias psicoativas. A partir dela, foram desenhadas
duas linhas de pesquisa: 1) Modelos de gestão e tratamento de usuários de
álcool e outras drogas aplicados à rede pública de assistência; 2)
Abordagem, avaliação e trajetória da dependência de álcool e outras
drogas na rede pública de assistência.
Como estratégia de cooperação e intercâmbio, é priorizada a
participação de profissionais com alguma ligação com os Centros
Regionais de Referência em Formação Permanente - CRRs, mantidos
estrategicamente pela Senad nas cinco regiões do país. Esses Centros,
estruturados a partir do programa do Governo Federal Crack é Possível
Vencer, visam à transferência de tecnologias e a capacitação de profissionais
das redes de saúde e de assistência social.
Seguindo a lógica de estimular a formação fora do eixo sul-sudeste, a
prioridade do MP é a oferta de vagas para profissionais oriundos dos
estados no Norte, Nordeste e Centro-oeste do país. Em três edições já
realizadas, o HCPA investiu na capacitação de uma rede interdisciplinar
nacional, com foco em gestores e técnicos que atuam na prevenção e
assistência de usuários de drogas nas redes públicas de saúde e assistência
social, estaduais e municipais, de diferentes regiões.
Esse contexto demandou uma organização logística diferenciada,
tendo em vista que esses profissionais já desenvolvem atividades em seus
locais de origem e a permanência ininterrupta em Porto Alegre poderia
ser um fator dificultador para a participação no curso. Assim, o curso foi
organizado em nove módulos presenciais intensivos de uma semana cada,
nos quais os alunos permanecem em Porto Alegre para realizar as
disciplinas teóricas e acompanhar as atividades práticas previstas. O
principal diferencial da formação é o intercâmbio para treinamento em
serviço, em caráter de imersão, nas atividades do Centro Colaborador,
com atividades desenvolvidas no ambulatório e na unidade de internação
masculina, que conta com 20 leitos.

532
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

Para concluir o curso, além de integralizar 24 créditos em disciplinas,


é necessário produzir um trabalho de conclusão desenvolvido a partir da
especificidade de atuação de cada profissional, ou seja, um projeto que
gere algum tipo de impacto em seu cotidiano de trabalho. Esse formato
está de acordo com a Portaria Normativa nº 17/2009 (Brasil, 2009), a
qual estabelece que o produto de conclusão do MP possa ser apresentado
em diferentes formatos, tais como: dissertação, revisão sistemática, artigo,
projeto técnico, desenvolvimento de material didático ou instrucional,
estudo de caso, manual, protocolo, entre outros.
Alguns aspectos trazidos pela Portaria nº17 têm gerado
questionamentos com respeito à qualidade dos cursos de MP ofertados.
Entre as preocupações, destacam-se a flexibilização das exigências
relativas ao tempo para finalização, ao tipo de trabalho de conclusão e a
possibilidade de inclusão de professores não doutores no quadro de
docentes. Autores como Oliveira (2015), questionam:
“Como assegurar que toda essa flexibilização não venha a resultar em
reducionismos curriculares e abordagens superficiais nos processos de
formação? Como assegurar que essa expansão flexível não resultará
em uma formação aligeirada e, por isso, incapaz de produzir os
efeitos esperados no mundo do trabalho?” (p. 349).

Definir parâmetros e critérios claros em relação à qualidade dos


cursos é essencial, não apenas em relação aos MPs, mas também aos
programas acadêmicos. Entende-se que a avaliação quadrienal realizada
pela Capes é o instrumento que irá balizar e assegurar essa qualidade, mas
não há como simplesmente transpor os mesmos critérios/indicadores
acadêmicos para a avaliação de programas profissionais, pois os objetivos
e perfil do egresso são diferentes. Há ainda um longo caminho a ser
trilhado.

533
Carla Dalbosco et al

Relevância e impacto da formação


Um dos aspectos que se destaca como relevante é que, nas três
edições do MP realizadas, buscou-se promover a descentralização do eixo
sul-sudeste. Historicamente, o Brasil tem concentrado o maior número de
grupos de pesquisa da área de drogas em algumas capitais dessas regiões.
Esse cenário está de acordo com a constatação de que a pós-graduação
vem crescendo fortemente no Brasil desde os anos 1970, mas a maior
parte dos cursos/programas ainda está sediada em universidades do sul e
sudeste. É nessas regiões também que se concentram os cursos mais bem
avaliados pela Capes (Oliveira, 2015).
O curso possui a vocação para o intercâmbio nacional, já que o
Centro Colaborador atua como um polo de formação. Com vistas a
diminuir possíveis assimetrias regionais, desde a primeira edição é
fomentada a participação de profissionais de regiões do país com menos
acesso a programas com foco em álcool e outras drogas. Essa estratégia, de
investir no preparo de profissionais para gerir as políticas locais, pode ser
definida como um dos indicadores de integração com a sociedade e o
mercado de trabalho.
Ceccim (2012) reforça que, no caso do trabalho em saúde, é preciso
reconhecer que há insuficiência de treinamentos formais e teóricos. O
desenvolvimento de competências envolve, entre outros fatores, a
aquisição do saber em cenários de prática, a aprendizagem em situações
reais de trabalho e a capacidade de ser afetado pelas necessidades do
cotidiano. Nesta esteira, desde a primeira edição do curso, a expectativa
em relação ao profissional formado era de uma melhor compreensão
sobre a prática baseada em evidências e o desenvolvimento de
capacidades para intervenções em seu serviço de origem. Além disso, um
dos resultados esperados é um maior protagonismo desse profissional, em
condições de atuar em posições de gestão e na organização dos serviços.
A perspectiva de retorno/reciprocidade ao mercado de trabalho está
de acordo com o papel a ser desempenhado pela pós-graduação em saúde
humana nesta década, uma vez que urge reconhecer o crescente papel que

534
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

as demandas e os atores extra-acadêmicos desempenham na agenda de


formação de recursos humanos. A pós-graduação deve atuar em sinergia
com o sistema de inovação em saúde, focando na formação tanto para o
desenvolvimento tecnológico quanto para articulação com necessidades
prioritárias do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2010b).
O programa privilegia vagas fora do eixo sul-sudeste, mas para as três
primeiras turmas houve uma procura ainda pouco expressiva dos estados
prioritários. Por isto, além da questão regional, passou-se a priorizar a
inclusão de alunos que atuam em municípios do interior (Tabela 1). Há
carência na formação de recursos humanos para além dos grandes centros
urbanos, onde se identifica menos acesso a formações especializadas,
independente do estado.

Tabela 1 – Distribuição dos alunos por estado

Turma Ingresso Nº alunos Estados


Amazonas, Tocantins, Pernambuco, Paraíba,
1ª 2014 8 Piauí, Distrito Federal, Rio de Janeiro e Rio
Grande do Sul
Bahia, Goiás, Piauí, Paraíba, Minas Gerais,
2ª 2015 10
Santa Catarina e Rio Grande do Sul
Distrito Federal, Minas Gerais, Mato Grosso,
3ª 2016 12 Bahia, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande
do Sul

Os egressos do curso são oriundos de diferentes áreas de formação:


Psicologia, Enfermagem, Serviço Social, Terapia Ocupacional, Medicina,
Biologia, entre outros. Indicadores qualitativos mostram que, além da
formação diversificada, esses profissionais atuam em variados dispositivos
de atenção psicossocial, sejam eles serviços ligados ao SUS, Suas ou
mesmo a gestão de políticas sobre drogas: ambulatórios, Caps, Caps-AD,
Conselho Municipal sobre Drogas, Diretoria de Política de Assistência
Social, Coordenação de Saúde Mental, Coordenação de Atenção à Saúde,
Centro Regional de Referência para Formação Permanente (CRR),
Estratégia Saúde da Família, Núcleo de Apoio a Saúde da Família (Nasf),

535
Carla Dalbosco et al

Unidade de Adição Hospitalar, Unidade de Acolhimento, Gestão de


Políticas sobre Drogas, entre outros.
A despeito de tratar-se de um curso novo, pode-se vislumbrar um
impacto regional em estados e municípios, o que demonstra que o
programa está alinhado com os objetivos traçados. Todos os trabalhos de
conclusão defendidos por esses alunos possuem interface direta com a sua
área de atuação profissional, e a Coordenação do MP já começou a
monitorar a trajetória profissional dos egressos. Muitos iniciaram
atividades de docência, seja em CRRs ou em cursos de graduação e
pós-graduação lato sensu de universidades; outros, ganharam posição de
destaque em cargos de gestão pública em nível municipal, estadual e
mesmo federal. Pelo menos dois ex-alunos já ingressaram em programas
de doutorado acadêmico, demonstrando que a consolidação do programa
pode vir a contribuir futuramente com a nucleação de novos programas
na área. Esses resultados apontam que, mesmo com um número reduzido
de vagas ofertadas, o conhecimento adquirido abre possibilidades de
ampliação da carreira.
Estudo realizado por Maciel e Nogueira (2012), junto a alunos de um
programa de MP, mostrou que entre as motivações para a busca do curso
destacam-se a necessidade de desenvolvimento profissional, a busca por
conhecimento aplicado e a permanência no mercado de trabalho.
Participar de um MP é uma experiência que contribui para o
desenvolvimento de habilidades e mudança da identidade social,
fortalecendo a autoestima e os ganhos pessoais e científicos.

536
Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

Conclusão
O Sistema de Avaliação da Pós-graduação segue buscando garantir o
padrão de qualidade dos cursos ofertados no Brasil, mas a política pública
“mestrado profissional” ainda está em construção e deve ser aprimorada.
Entende-se que a valorização desse formato de curso aumentará na medida
em que for percebido que seus egressos têm conhecimento a oferecer para
a sociedade.
Na área de drogas, o fato de existirem inúmeras demandas nacionais
e regionais para formação de recursos humanos reforça a importância da
continuidade de investimentos em programas voltados ao campo. Porém,
coloca-se como um desafio permanente a sua sustentabilidade financeira,
especialmente em um cenário econômico adverso como é o atual. A
experiência do HCPA é exitosa, com resultados que incidem diretamente
sobre as políticas públicas, mas não é suficiente para garantir sozinha a
consolidação da rede de cuidado.
Destacam-se como pontos fortes do programa a realização de
atividades teórico-práticas no âmbito do Centro Colaborador e a
oportunidade de intercâmbio cultural. O formato do curso, que reúne
alunos de diferentes regiões do país, propicia a troca de experiências,
evidenciando a complexidade de execução de políticas públicas em um
país de dimensões continentais e tão diverso como o Brasil.
É importante induzir a criação e consolidação de programas
profissionais em outras regiões estratégicas, a partir da identificação de
demandas locais e regionais. Assim, haverá mais possibilidade de atender
verdadeiramente os pressupostos da Política Nacional sobre Drogas
vigente, que prevê a descentralização das ações nos estados e municípios.

537
Carla Dalbosco et al

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540
CAPÍTULO 5.4

A Escola de Supervisores Clínico-


Institucionais do estado do Maranhão:
a narrativa de uma experiência
Fernanda Penkala
Miriam Senghi Soares
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque

Resumo
Este texto apresenta uma narrativa sobre a experiência das autoras
enquanto facilitadoras no curso de formação de Supervisores em Saúde
Mental da Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do
Maranhão. Para tal, optou-se por abordar inicialmente a conceituação
geral do que seja a supervisão clínico-institucional em Saúde Mental no
Brasil, bem como a sua inserção nos dispositivos de saúde mental, álcool e
outras drogas, e mais recentemente nas Redes de Atenção Psicossocial
(Raps). Faz o recorte para a experiência da Escola de Supervisores do
Maranhão, compreendendo este dispositivo como importante disparador
do processo de educação permanente em saúde e critica a atual
indisponibilidade de implementação do mesmo. No percurso da
experiência no processo formativo foram sendo percebidos, pelas
facilitadoras, os nós críticos com os quais se confrontam os trabalhadores
no cotidiano da assistência à saúde mental no contexto local – bastante
semelhantes nos serviços das diferentes regiões do pais –, especialmente
para os que participaram da referida formação de supervisores. Foram
escolhidos entre os temas emergentes, como pontos fortes para
aprofundamento, as temáticas da redução de danos e dos Processos

541
Fernanda Penkala et al

Grupais, por entendermos como pontos críticos a serem problematizados


nos processos de trabalho das equipes de saúde mental, álcool e outras
drogas, e na própria formação de futuros supervisores de Raps. Também
descrevemos, em linhas gerais, um dos momentos de dispersão, parte
integrante das atividades práticas desta formação.
Palavras-chave: escola de supervisores; supervisão clínico-institucional;
saúde mental; álcool e outras drogas; redução de danos; processos grupais

A supervisão clínico-institucional
Instituída como ferramenta de gestão do Sistema Único de Saúde
(SUS) pela Portaria GM 1174/2005, considera-se que a supervisão
clínico-institucional é:
[...] um tempo na organização do serviço dedicado à discussão e
estudos sobre os projetos terapêuticos individuais e dos serviços, da
dinâmica de equipe, das articulações com o território, dos processos
de trabalho, da gestão e da clínica na perspectiva institucional e
intersetorial. O supervisor, necessariamente externo à instituição,
desencadeia e articula as reflexões da equipe para redirecionar as suas
ações. (São Paulo, 2012)

A proposta de supervisão clínico-institucional, em implantação na


Raps desde então, tem o objetivo de fortalecer a formação de novos
quadros profissionais para atuação direta junto aos serviços de saúde
mental, álcool e outras drogas especializados e/ou da atenção básica
(Brasil, 2005).
Em que pese ser um mecanismo relativamente novo, importantes
autores da reforma psiquiátrica brasileira (Delgado, 2013; Leal, 2006;
Oliveira & Passos, 2012; Severo, Labbate, & Onocko-Campos, 2015;
Silva, Beck, Figueiredo, & Pretes, 2012; Vasconcelos, 2014) têm discutido
o escopo teórico-prático da supervisão clínico-institucional como
ferramenta para a gestão de coletivos e transformação das práticas em

542
A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão

saúde mental, no que tange à democratização das instituições, à


qualificação dos processos de trabalho e ao aumento da eficácia
terapêutica dos serviços de saúde. Para estes autores:
O trabalho, sob esta perspectiva, proporciona aos profissionais
procedimentos mais afinados de intervenção e de abordagens
terapêuticas, facilitando uma escuta que permita uma melhor
compreensão dos problemas. Compartilhar democraticamente os
níveis de conhecimento teórico e de manejo técnico faz com que se
desenvolva uma maior capacidade de tolerar a desigualdade e pode
evitar que se estabeleçam aristocracias de saberes que podem
fragmentar o grupo. (Serrano-Guerra, 2003, p. 2172).

A complexidade atual da Política Nacional de Saúde Mental tem nos


apontado transformações cada vez mais desafiadoras em nossos cotidianos
e práticas em saúde, especialmente as que se têm vivenciado na clínica
psicossocial, e por óbvio, também na supervisão clínico-institucional na
Rede de Atenção Psicossociais (Raps), como adequadamente nos apontam
Leal e Onocko-Campos (2004) quando dizem que esta ferramenta – a
supervisão clínico-institucional –, articula conceitos tradicionalmente
dicotômicos: singular x coletivo, pessoa x grupo, indivíduo x sociedade,
clínico x social. As autoras vão além, nos convidando a refletir sobre a
complexidade do campo de intervenções, que não mais se restringem à
interação usuário-técnico mas a inclui; a relação de imanência clínica x
instituição, em que as características institucionais e os processos de
trabalho das equipes definem, tanto a clínica quanto os modos de operar o
cuidado e vice-versa; além da própria dimensão pública do adoecimento,
sendo este decorrente das relações entre indivíduos e seus modos de estar
no mundo. Com essas reflexões presentes é que se fundamenta o trabalho
da supervisão clínico-institucional, tendo que se considerar
articuladamente os serviços, a rede, a política pública e a gestão para que
a tarefa seja efetivamente transformadora e qualificadora do cuidado em
Saúde Mental nas Raps.

543
Fernanda Penkala et al

A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do Maranhão


Segundo dados publicados pelo Ministério da Saúde no documento
“Saúde Mental em Dados – 11, a Raps encontra-se em franca expansão,
especialmente nos pequenos municípios do interior do Norte e do
Nordeste (Figura 1).

Figura 1 – Expansão da Raps no Brasil de 2002 – 2012


Fonte: Saúde Mental em Dados - 11 (Brasil, 2012).

Considerando que os serviços que estão sendo implantados precisam


ter acesso aos mecanismos de qualificação do SUS, entre 2005 e 2011
foram publicados editais por meio dos quais houve transferência de
recursos para o financiamento de 851 projetos (Tabela 1) visando a
fomentar ações de supervisão, qualificação e avaliação dos serviços e das
redes de atenção, que foram executados por profissionais de formação
teórica e prática diversas.

544
A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão

No entanto, há uma carência de profissionais habilitados e disponíveis


para esse trabalho e neste sentido é que surge a proposta de implantação
das Escolas de Supervisores Clínico-Institucionais. Esta teve por objetivo
formar novos profissionais, qualificar a prática daqueles que já atuam
como supervisores nas Raps e estimular o compartilhamento de
experiências entre as diferentes regiões do país. Assim, o projeto Escola de
Supervisores Clínico Institucionais foi uma estratégia da Coordenação de
Saúde Mental do Ministério da Saúde para ofertar a circulação de saberes
articulados com os princípios e diretrizes do SUS, no sentido de fortalecer
as práticas de cuidado e concretizar a Política de Atenção à Saúde Mental,
a partir dos eixos norteadores da Reforma Psiquiátrica e dos princípios
organizacionais do próprio SUS (Silva et al., 2012).

545
Fernanda Penkala et al

Tabela 1 – Total de projetos financiados pelo Ministério da


Saúde

Escola de Escola de redutores


Estado Projetos aprovados
supervisores de danos
AL 18 1 2
AM 6 0 1
AP 2 0 0
BA 25 0 2
CE 64 1 1
DF 7 0 2
ES 12 0 1
GO 13 1 5
MA 9 1 0
MG 95 2 5
MS 13 1 3
MT 13 0 1
PA 20 0 2
PB 45 0 1
PE 37 1 5
PI 9 1 0
PR 0 1
RJ 83 2 4
RN 24 1 0
RR 0 0 0
RO 0 0 0
RS 83 1 5
SC 54 1 0
SE 18 1 3
SP 144 0 11
TO 8 1 1
Total 851 16 58

Sistematizado pelas autoras. Fonte: Saúde Mental em Dados – 11 (Brasil, 2012).

546
A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão

As Escolas de Supervisores Clínico-Institucionais vinham sendo


financiadas por meio de Editais do Ministério da Saúde. Na Tabela 1
vemos a distribuição das Escolas de Supervisores Clinico-Institucionais por
Estados da Federação, sendo que o do Estado do Maranhão foi um dos
projetos aprovados no referido edital, entre os 16 selecionados.
O processo de aprendizagem proposto pelo projeto da Escola de
Supervisores do Maranhão contou com encontros presenciais e com
atividades de dispersão, desenvolvidas em territórios pré-estabelecidos pela
coordenação da Escola. Os encontros presenciais foram agrupados por
módulos temáticos com 20 horas de duração e conduzidos por
facilitadores com experiência em supervisão clinico-institucional e no
campo da Reforma Psiquiátrica, assim distribuídos: Supervisão
Clínico-Institucional: conceituações e desafios, cotidiano do Caps - O
Caps e o cuidado no território; política integral para pessoas com
transtornos decorrentes do uso de álcool e drogas; intersetorialidade;
instituição: instituído e instituinte; redução de danos e processos grupais;
política e gestão de saúde mental; intervenção na crise; urgência/
emergência; saúde mental na infância e adolescência; matriciamento em
saúde mental; a psicanálise e a supervisão.
Consideramos que a atividade de dispersão na Escola de Supervisores
Clínico-Institucionais do Maranhão foi de suma importância, uma vez que
é neste momento que os educandos são instigados a aprofundar os
conhecimentos teóricos debatidos nos momentos presenciais. Destacamos
que a Roda de Conversa Virtual, desenvolvida como ferramenta nessa
formação, se mostrou um dispositivo importante para o acompanhamento
e orientação das atividades de dispersão, bem como para estimular e
aprofundar o debate acerca do papel e missão do supervisor clínico
institucional na Raps, em consonância com a política de saúde mental,
álcool e outras drogas. A tarefa proposta foi elaborar uma estratégia de
intervenção a partir de alguns dos dispositivos da caixa de ferramentas que
os facilitadores compartilharam com os trabalhadores em formação,
baseados em sua experiência como supervisores clínico-institucionais na

547
Fernanda Penkala et al

Raps. Assim sendo, o plano de ação foi elaborado com base nos dados
coletados nos seguintes instrumentos:
1 - Pesquisa em Saúde Mental – caracterização do território e
mapeamento das redes de atenção existentes;
2 - Questionário – para conhecer o perfil dos trabalhadores e
identificar os temas de seu interesse;
3 - Roteiro de indicadores – questionário respondido coletivamente
numa roda de conversa com toda equipe do serviço (Soares, 2016). As
respostas são inseridas no aplicativo Avaliar-Ação que calcula um score
por eixo indicador com base nos valores de uma escala Likert e gera
uma representação gráfica para identificar as necessidades de
reorganização do processo de trabalho;
4 - Apreciação de abordagem em Redução de danos em cena de uso
de drogas – observação participante-prática in lócus com agente
redutor de danos do município de São Luís.

Os questionários, que foram respondidos pelas equipes técnicas


atuantes nos territórios alcançados pelo projeto, indicaram o manejo de
situações de crise e a redução de danos como temas prioritários no que diz
respeito à necessidade permanente de formação em serviço e de
preparação teórica para a operacionalização das políticas de saúde
mental, álcool e outras drogas, por esta razão elegemos o Módulo 5 –
Redução de danos e os processos g rupais na supervisão
clínico-institucional para maior detalhamento.
Cabe-nos aqui salientar que consideramos o tema atenção à crise
altamente necessário a ser problematizado e aprofundado em qualquer
espaço de formação em saúde mental, álcool e outras drogas, porém,
mesmo o tema tendo sido abordado com a adequada atenção ao longo do
curso de formação de supervisores clínico-institucionais em diferentes
momentos – sempre um debate emergente e ainda não hegemônico entre
os trabalhadores em saúde mental nos dispositivos territoriais –, optamos
por não incluí-lo como foco neste texto por entendermos que seja um

548
A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão

tema de complexidade que justificaria uma abordagem específica mais


abrangente, o que não nos permitem as limitações deste trabalho. Sem
desmerecer outros temas, o objeto de aprofundamento na discussão deste
texto é um recorte dos temas/conteúdos compreendidos como
indispensáveis para a atuação profissional de qualquer categoria que
trabalhe em serviços de saúde mental e de atenção aos usuários de álcool e
outras drogas.

A Redução de Danos e os Processos Grupais na Supervisão


Clínico Institucional
As reflexões que emergem de nosso contato com as dificuldades e
conflitos do cotidiano de trabalhadores e gestores dos serviços devido à
nossa atuação como supervisores da Raps, nos levam a reconhecer o valor
da supervisão clínico-institucional. No entanto, percebe-se o privilégio da
chamada “dimensão clínica”, extremamente voltada para as discussões
das questões psicopatológicas ou psicoterápicas, muitas vezes centradas em
práticas “prescritivas” e “medicalizantes”, em detrimento da compreensão
de uma “clínica ampliada” – a qual pressupõe sempre a participação do
usuário, da construção e articulação de redes que podem, a priori,
garantir um cuidado mais integral aos usuários. Ao focarmos nas
diferentes realidades de cada território o que se tem observado, com
preocupante frequência, é a pouca importância do cuidado e da atenção
nos diferentes pontos dessas redes, sejam estas as relações intrasetoriais,
intersetoriais ou mesmo comunitárias.
É recorrente que nos espaços de supervisão clínico-institucional os
estudos de caso ou a escolha dos temas ainda se deem a partir de questões
“ambulatoriais”, ou dos problemas que a equipe considera difíceis de
resolver. No entanto, percebe-se que essa escolha acaba por reduzir e
“driblar” o enfrentamento das dificuldades que as equipes têm em lidar
com suas fragilidades e conflitos, incluindo os jogos de poder internos e
externos, como também as constantes mudanças de gestão, que sempre
trazem a ameaça da descontinuidade das políticas públicas. Também o

549
Fernanda Penkala et al

fato de que a supervisão clínico-institucional vira um “muro de


lamentações” no qual as equipes passam a interrogar o modelo de
assistência preconizado, sem se perceberem partícipes do processo de
mudança ou mesmo refletindo sobre seu compromisso e responsabilidades
sanitárias. Neste ponto, caberia também à supervisão clínico-institucional
trazer aos profissionais a oportunidade de repensarem sua atuação como
trabalhadores da saúde mental, do SUS, bem como, seus desejos e
interesses, e ajudá-los a visualizarem a necessidade de uma gestão mais
compartilhada e participativa, convidando-os a se envolverem em projetos
mais comprometidos, passando obrigatoriamente tanto pela gestão dos
processos de trabalho em que atuam esses profissionais, como pela
problematização de seu cotidiano para além da clínica.
A questão é que nem todos os trabalhadores sentem que essa
dimensão política faz parte de seu trabalho, muito menos percebem que a
supervisão clinico-institucional é uma ferramenta que transita pelas duas
dimensões obrigatoriamente, não sendo possível separarmos clínica e
política para que a tarefa de supervisão clínico-institucional seja realmente
uma ferramenta de transformação e qualificação das práticas de cuidado
em Saúde Mental. Daí o desafio de processos de educação permanente e
humanização, que incluem a supervisão clínico-institucional como uma
estratégia clínico-política que, dentre os diversos temas emergentes,
também considera o processo coletivo de empoderamento dos
trabalhadores, o que implica, além de tudo, repensarem suas práticas e sua
participação na construção e articulação de redes como espaços de
cuidados, de circulação, de cidadania e de vida. São as redes os espaços
que potencializam, no itinerário seguido pelo usuário, ou mesmo efetivam
o princípio da integralidade, tanto para as demandas dos sujeitos, como
para o olhar dos trabalhadores sobre o cuidado oferecido.
Vários conceitos considerados “novos” na Saúde Mental, que estão
sendo definidos no decorrer da prática, refletem a necessidade premente
da supervisão clínico-institucional como espaço de formação. Dentre eles:
a atenção psicossocial, saúde mental na atenção básica, internação no
h o s p i t a l g e r a l , v i s i t a d o m i c i l i a r, e q u i p e s d e r e f e r ê n c i a ,

550
A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão

matriciamento/apoio matricial, redução de danos, clínica ampliada,


projeto terapêutico singular, consultório na rua, processos grupais
(trabalho em equipe, natureza e manejo de grupos, técnicas de dinâmica
de grupos, educação popular em saúde, rodas de conversa), entre outros.
O espaço da supervisão clínico-institucional é indiscutivelmente
necessário e valioso como instrumento de educação permanente. No
entanto, sabemos que não é o único espaço. Mas, diante das diversas
dificuldades que os gestores locais e equipes têm em realizar a política de
Educação Permanente em Saúde (EPS), este acaba sendo um foro
privilegiado para tal.
Deste modo, a partir do levantamento realizado para eleger as
prioridades de formação, foi recorrente a fala das equipes de que não
conhecem e não sabem atuar a partir dos princípios da redução de danos,
bem como de que possuem muita dificuldade no manejo dos grupos
terapêuticos, dos grupos reflexivos, ou até mesmo do acolhimento em
grupo, visto a pouca ou nenhuma formação nesta área em suas
graduações.
No decorrer da supervisão clínico-institucional, sendo
instrumentalizada como EPS, percebemos que muitos técnicos e
profissionais ainda não acreditam na perspectiva da redução de danos e
divergem não apenas teoricamente, mas atuam baseados em antigos
paradigmas que excluem mais do que acolhem, que prescrevem a
internação como medida primeira a ser tomada, ou ainda que assumem a
ideia de que todo usuário de drogas está fadado ao fracasso, a
marginalidade e a dependência definitiva, levando-os à morte. Cresce
também, de maneira avassaladora, a ideia de que as Comunidades
Terapêuticas devam fazer parte da Raps não mais como um espaço
complementar ou de exceção, mas como “porta de entrada” para o
cuidado ou ainda como se essas pudessem substituir as Unidades de
Acolhimento que pouco foram implantadas no Brasil.
Deste modo, a redução de danos foi trabalhada para ser
compreendida como o referencial norteador da Política Nacional de

551
Fernanda Penkala et al

Atenção aos Usuários de Drogas que rompe com o paradigma excludente,


muitas vezes centrado no preconceito e em dogmas morais, de atenção aos
usuários de drogas ofertando um outro modo de discutir e cuidar da
questão. Entre seus princípios está o do direito à liberdade de escolha “à
medida que os estudos e a experiência dos serviços demonstram que
muitos usuários, por vezes, não conseguem ou não querem deixar de usar
drogas e, mesmo esses, precisam ter o risco de infecção pelo HIV e
hepatites minimizados” (Brasil, 2001, p. 11)
Tal reflexão nos remeteu aos:
[...] questionamentos quanto às afirmações de que no processo de
dependência não há a liberdade de escolha, visto a compulsão
doentia instalada e a falta de capacidade de se estabelecer o limite do
uso nos remete a questões mais profundas sobre o que pode significar
liberdade de escolha e autonomia, numa sociedade capitalista voltada
ao consumo, no qual os sujeitos estão “capturados” vivendo uma
“pseudo” capacidade de gerir suas próprias vidas. No entanto, essa
discussão requer maior arcabouço teórico que incluiria a discussão,
por exemplo, do seja promoção de saúde para usuários de drogas.
(Rameh-de-Albuquerque, 2008, p. 44).

Deste modo vimos ainda que a redução de danos constitui um


conjunto de medidas que estão voltadas à minimização das consequências
adversas do uso de drogas, pois:
[...] quando se trata de cuidar de vidas humanas, temos que
necessariamente, lidar com as singularidades, com as diferentes
possibilidades e escolhas que são feitas. As práticas de saúde, em
qualquer nível de ocorrência, devem levar em conta esta diversidade.
Devem acolher, sem julgamento, o que é necessário, o que está sendo
demandado, o que pode ser ofertado, o que deve ser feito [...] (Brasil,
2003, p. 10).

552
A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão

Deve ainda sustentar a importância dos cuidados (tecnologias de


baixa densidade) nos diferentes espaços de uma rede de atenção e as
múltiplas possibilidades e recursos que essas devem oferecer. Somente
articulando os diferentes níveis de cuidado e construindo uma adequada
compreensão das redes, pode a supervisão clínico-institucional realizar
plenamente sua contribuição junto aos profissionais de saúde e, em
consequência disto, aos usuários e serviços de saúde em si. Diante do
exposto fica claro a dificuldade dos profissionais em atuarem na
perspectiva da redução de danos, pois esta irá colocar em tensão a
formação recebida por esses trabalhadores, suas crenças e seus valores.
No entanto, é justamente no deslocamento de suas certezas e
verdades que:
Neste momento, há muitos saberes, quereres, dizeres em jogo.
Embora cada protagonista vá para o encontro com alguns saberes
prévios (por exemplo, sobre o seu sofrimento, sua doença, sobre o
modo de diagnosticar, de tratar), é somente no ato do encontro que
saberemos qual será a potência do mesmo, sua capacidade de criação
e de produção de um cuidado, que pode estar centrado em uma ética
de afirmação da vida ou ter uma baixa capacidade nesta direção,
com um olhar só para a doença, reduzindo o próprio viver (Eps em
movimento, 2014, p. 10).

O grupo foi capaz de refletir que no paradigma antigo, por exemplo,


diante de uma crise a resposta era: segura, amarra, medica e interna (não
necessariamente nessa ordem). No novo paradigma essa resposta não faz
mais sentido! Viu-se o quanto precisamos criar uma outra resposta
ancorada no “novo” paradigma, o que dá muito trabalho, pois sempre
somos cobrados a utilizar o paradigma antigo, já que ele é entendido
como resolutivo, pelo menos num primeiro momento.
Trabalhar com esta oferta teórico-prática junto aos educandos da
Escola de Supervisores Clínico Institucionais do Maranhão foi um

553
Fernanda Penkala et al

processo rico de trocas entre o que propúnhamos de teoria e o que eles


conseguiam visualizar em termos práticos no seu cotidiano de trabalho.
Muitos trouxeram suas inquietações sobre a sua dificuldade
compreendida como concreta em assumirem este “novo” paradigma
diante da cobrança social, e até mesmo de outros colegas em que se
trabalhe apenas na perspectiva da abstinência. Por outro lado, acabamos
vendo como de grande valia a descoberta do grupo de que a redução de
danos não é uma política pensada por “operadores de gabinete”, mas sim
algo construído e vivenciado pelos próprios usuários, trazendo assim a sua
verdadeira potência no cuidado às pessoas que usam drogas. Além disso,
também nos foi possível pensar que a redução de danos tem muito a nos
ensinar, trabalhadores e gestores em saúde mental, mas não só, também
aos supervisores clínico-institucionais em formação, e como ainda não é
uma hegemonia nos serviços de saúde – nem mesmo nos de saúde mental,
álcool e outras drogas ou para todos os supervisores clínico-institucionais
das Raps. Com essa potente “escola” pudemos refletir e problematizar o
cuidado em saúde que oferecemos, a integralidade, a equidade, o cuidado
no território, acessibilidade, vínculo, entre outros conceitos com os quais
operamos no campo da saúde do SUS.
Em relação aos processos grupais e toda gama de conhecimento que
este tema traz, fez-se mister discutir como lidar com os conflitos
relacionais intra-equipes. Tal necessidade sugere a construção mínima de
um referencial teórico acerca de grupos e grupalidade. Dentre estes, de
modo geral as equipes de saúde mental relataram sua necessidade de
conhecerem sobre os tipos de grupos existentes, conceito de grupos e
grupalidade, o trabalho em equipe, a natureza e manejo de grupos, as
técnicas de dinâmica de grupos, e ainda outras abordagens que partem da
noção e conceito de grupos, como a educação popular em saúde, as rodas
de conversa e/ou ainda a terapia comunitária. É evidente o despreparo
das equipes em operacionalizar a condução destes, visto que em suas
formações básicas geralmente as atividades eram focadas no indivíduo, o
que acaba por reproduzir essa prática nos serviços, e também, de certa
forma, conduzir a própria organização e os processos de trabalho das

554
A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão

equipes, especialmente no que se refere à “seleção” de usuários e


diversidade de ofertas terapêuticas.
Este quadro não foi muito diferente do que encontramos na Escola de
Supervisores Clínicos-Institucionais do Maranhão. Como não fizemos um
pré-teste para levantarmos quem ou quais alunos dominavam este ou
aquele conteúdo, partimos da premissa da necessidade de um
“nivelamento básico conceitual” sobre grupos.
Lançando mão exatamente da premissa de que o trabalho em grupos
promove atividades que ampliam as oportunidades de debate, troca e
aprendizado mútuo, aumentam o autoconhecimento, o desenvolvimento
pessoal e interpessoal de professores, pais, alunos e funcionários, e
incentivam a aplicação e vivência dos valores universais e atitudes de paz
no cotidiano, pudemos desenvolver os temas de maneira lúdica,
participativa e reflexiva.
Discutimos que as dinâmicas de grupo são instrumentos, ferramentas
que estão dentro de um processo de formação e organização, que
possibilitam a criação e recriação do conhecimento e que servem para
responder a interrogações de diversas naturezas: o que pensam as pessoas,
o que sentem, o que vivem e sofrem. As dinâmicas de grupo servem
também para “desenvolver um caminho de teorização sobre esta prática
como processo sistemático, ordenado e progressivo” (Militão & Miltão,
2009, p. 22), de modo que podermos retornar à prática, transformá-la,
redimensioná-la. Através da dinâmica de grupo podemos incluir novos
elementos que permitem explicar e entender os processos vividos.
Trabalhamos a diferenciação conceitual entre “Técnicas de Dinâmica
de Grupo” e o que comumente chamamos de dinâmica de grupo,
sendo a primeira os instrumentos, ferramentas e atividades que
desenvolvemos para ajudar a ampliar, modificar ou influenciar na
“dinâmica do grupo”, ou seja, em seu movimento grupal.
Deste modo, escolhemos trabalhar na Escola de Supervisores Clínico
Institucionais do Maranhão as técnicas participativas que geram um

555
Fernanda Penkala et al

processo de aprendizagem libertador, porque segundo Militão & Miltão


(2009) estas permitem:
1. Desenvolver um processo coletivo de discussão e reflexão.
2. Ampliar o conhecimento individual, coletivo, enriquecendo seu
potencial e conhecimento.
3. Possibilita criação, formação, transformação e conhecimento, onde
os participantes são sujeitos de sua elaboração e execução.

Outro ponto trabalhado como importante ferramenta para atuação


direta com grupos foi o embasamento através da educação popular de
Paulo Freire (Freire, 2010, 2014; Freire & Schor, 2008). Para o autor, o
pensar só tem sentido na ação sobre o mundo de modo que refletimos que
nossa prática com grupos deve vir encharcada da noção clínica-política
que já nos referimos no início deste artigo.
Com a noção da educação popular em saúde pudemos vivenciar o
que chamamos de “Rodas de Conversa” como potente espaço de
desenvolvimento de práticas terapêuticas em nossos serviços de saúde
mental (Afonso & Abade, 2008; Carvalho, 2014; Sales, 2014).
Outros autores que refletem sobre grupos e processos grupais
também foram discutidos durante o processo formativo em questão de
modo a ampliar o repertório teórico/prático de seus participantes. Dentre
os autores que muito contribuíram para o desenvolvimento da nossa
compreensão sobre os processos grupais destacamos: Kurt Lewin (1989),
Jacob Levy Moreno (1999), William Schutz (1989), Frederick Pearls (1997),
Rogers (1978), Pichon-Rivière (2009), Georges Lapassade (1983).

A guisa de algumas possíveis conclusões...


É urgente que pensemos formas de garantir a supervisão
clínico-institucional junto aos serviços de saúde mental, álcool e outras
drogas, como parte da formação em serviço tanto no que diz respeito à

556
A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão

especificidade da clínica da Atenção Psicossocial quanto da dimensão


política da reforma psiquiátrica brasileira (Costa-Rosa, 2013).
Faz-se necessário garantir a governabilidade e sustentabilidade desse
ofício, visto a descontinuidade sofrida diversas vezes pelos profissionais da
ponta. Outra questão é o “uso” do supervisor como "terapeuta" de equipe,
passando longe de ser um apoiador ou um facilitador dos processos do
grupo e do trabalho em saúde. No caso, a supervisão clínico-institucional é
um dos dispositivos do Programa de Qualificação da Rede de Atenção
Psicossocial que deveria ter sido implantada nos municípios que
receberam incentivo financeiro do Ministério da Saúde por intermédio
dos editais. Na prática o que observamos é que programas de qualificação
não foram efetivamente implantados e foram descontinuados após o
término do incentivo financeiro. Ou seja, não havendo mais verba "de
fora", como daremos continuidade à essa necessidade? Como
garantiremos "o interesse" e manutenção de todos os envolvidos neste
processo? Não podemos aceitar a indisponibilidade atual da Coordenação
Nacional de Saúde Mental e dos gestores locais em conduzir esse processo.
Tanto as Escolas de Supervisores Clínico Institucionais estão paradas
quanto as experiências de intercâmbio entre os serviços. Tal questão
impõe um retrocesso na operacionalização concreta da Reforma
Psiquiátrica no que tange à reversão do modelo de atenção e ainda abre
espaço para o aumento das fragilidades encontradas nos seios das equipes.
Observamos também a premente necessidade de construirmos
coletivos que possam "desenhar" o que seja uma supervisão
clínico-institucional, bem como do perfil dos atores que executarão esse
ofício, visto que é necessário que este considere radicalmente os
pressupostos do SUS e da Reforma Psiquiátrica. Compreendemos a
supervisão clínico-institucional como um espaço de Educação Permanente
em Saúde que deve ocorrer de modo contínuo e sistemático, devido à
complexidade que são os nossos serviços de saúde mental, álcool e outras
drogas.
Apesar dos já citados e importantes autores que discorrem sobre a
supervisão clínico-institucional, em nível nacional, nosso debate ainda é

557
Fernanda Penkala et al

escasso, haja vista que existem os mais diferentes conceitos sobre a mesma,
tanto quanto existem diferentes entendimentos de sua importância para a
qualificação em serviço dos nossos dispositivos de cuidado. Aparentemente
essa diversidade pode ser compreendida como positiva, mas na prática a
urgência que temos em responder às demandas de saúde mental em nosso
país acaba por nos defrontar com muitos dos problemas que por vezes não
são entendidos como problemas por alguns atores. Por exemplo: a
ambulatorização, a clínica desvitalizada, o despreparo e cronificação da
equipe, o sucateamento dos serviços e a falta de investimento da gestão,
dentre outros, que podem estar diretamente relacionadas com a
precarizacão e clientelismo de muitos desses serviços através de suas
prefeituras e políticas locais.
Como também já refletido, muitos são os temas possíveis de serem
trabalhados em um processo de supervisão clínico-institucional em que se
compreenda este dispositivo como uma das potências da EPS. A escolha
de tratarmos, neste artigo, da redução de danos e dos processos grupais
fala de uma lacuna profunda no desenvolvimento de um bom processo de
trabalho num modelo de atenção que se deseja substitutivo ao modelo
manicomial. Ou seja, sem esses pilares (e outros também importantes), a
operacionalização num novo paradigma se mostra falho e ineficiente.
Urge que ao trabalhar com grupos, os técnicos e profissionais saibam
operar com ferramentas que facilitem os processos de trabalho. Assim
também com a redução de danos que carece de ser assumida como uma
postura que reflete uma nova visão de sujeito e de mundo, e não apenas
uma estratégia utilitária.
Para finalizar, gostaríamos de apresentar alguns aspectos que sentimos
necessários como em constante debate a partir da vivência da e na Escola
de Supervisores Clínico-Institucionais do Maranhão. São questões que
foram trabalhadas pontualmente por um ou outro facilitador que se
envolveu com a Escola, mas que certamente precisam ser sempre
revisitadas no sentido de que a nossa "rede" de dispositivos não se esqueça
de pensar no diálogo com outras alternativas e possibilidades temáticas,
estimulando elementos que as pessoas que cuidamos consideram

558
A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão

importante para suas vidas e que faz sentido para elas. Algumas dessas
questões:
Quais são os objetivos do serviço? Tem funcionado para
efetivamente substituir as internações em instituições totais?
O serviço tem diretrizes e/ou princípios definidos (específicos do
serviço) – como, por exemplo, um Projeto Terapêutico Institucional
revisto com frequência?
Como o serviço compõe a Raps local, a rede de saúde e as
políticas do município, intra e intersetoriais, se articula e se integra ao
território?
Como está organizado o processo de trabalho do serviço
(acolhimento, atenção e manejo de crise, fluxo do usuário e
participação dos mesmos nos processos do serviço, recursos
terapêuticos – individuais, grupais, comunitários)?
A organização dos processos de trabalho se apoia nos
pressupostos da EPS e da Política Nacional de Humanização (PNH)?
Como as propostas terapêuticas se integram para beneficiar os
processos dos usuários?
Quais as responsabilidades dos profissionais e trabalhadores
definidas pela equipe?
Quais são as principais dificuldades e obstáculos encontrados pela
equipe de trabalho para atingir os objetivos do serviço?
O que é necessário modificar no processo de trabalho para que as
dificuldades e obstáculos sejam minimizados?
As equipes são sabedoras de todos os processos e embates vividos
da Reforma Psiquiátrica, da Luta Antimanicomial, da Reforma
Sanitária, e da redução de danos?
Como estes processos influenciam o andamento das atividades
terapêuticas desenvolvidas no serviço?

559
Fernanda Penkala et al

Certamente outros questionamentos podem e devem ser feitos.


Ofertamos estes como um debate que não se acaba. Apostamos tanto na
supervisão clínico-institucional como dispositivo rico e disparador de
processos importantes na construção e consolidação da Raps, como
compreendemos que a Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do
Maranhão foi capaz de dar a sua contribuição nesse processo, servindo de
experiência exitosa para todo o Brasil.

Referências
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em direitos humanos. Belo Horizonte: Recimam.
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Carvalho, G. (2014). Roda de Conversa: uma proposta metodologica para
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Costa-Rora, A. (2013). Atenção Psicossocial além da Reforma Psiquiátrica:
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A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão

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Lapassade, G. (1983). Grupos, organizações e instituições. Rio de Janeiro:
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Fernanda Penkala et al

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562
P O S FÁC I O

Drogas: porque se impõe a Transição


de Paradigmas
Marcelo Santos Cruz

O modo de compreender a função do uso de drogas, para nós


humanos, e as propostas da abordagem dos problemas relacionados a esse
uso divergem de forma extrema há mais de um século no mundo todo.
Muitas podem ser as razões para essa discordância, mas uma das mais
importantes motivações para a polaridade dos modelos reside, sem dúvida,
nas diferenças de experiência de quem reflete sobre essas questões. A
lembrança da lenda indiana dos sábios cegos descrevendo um elefante é
inevitável. Não há como o sábio que toca a orelha concordar com o que
descreve a tromba, nem este com o que investiga a dorso do animal. Este
livro aborda diferentes aspectos das experiências de uso de drogas, suas
consequências e formas de abordá-las. Os autores ligados à Associação
Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas, a Abramd,
contribuem assim para ampliar o conhecimento, permitindo que novas
práticas abram caminhos mais satisfatórios. Mais do que isso, os textos
refletem práticas e experiências inovadoras que sustentam a mudança
paradigmática indispensável neste campo.
Por definição, paradigma é “qualquer campo de investigação e de
experiência que está na origem da evolução científica” (Michaelis). Como
diz Saul Fuks (2018), “las problemáticas ligadas al consumo de sustancias, como la
mayoría de las problemáticas complejas de salud pública, implica atravesar decisiones

563
Marcelo Santos Cruz

epistemológicas, éticas, políticas, estratégicas tanto como técnicas, respecto al tipo de


enfoque que se adoptará”. Neste sentido, falar de uma proposta de transição de
paradigmas é uma forma precisa de sintetizar o que propõe esta
publicação. De forma mais ampla, esta é a proposta da Abramd.
A Abramd surgiu em 2005 a partir da inquietação de pesquisadores e
profissionais do campo da atenção a pessoas com problemas com drogas
que se preocupavam em ampliar a forma de compreender e de abordar os
problemas com as substâncias psicoativas. Desde antes de sua fundação,
profissionais como Professor Elisaldo Carlini, Dartiu Xavier da Silveira,
Antônio Nery, Tarcísio Andrade, Fátima Sudbrack, Fernando Grossi,
Oscar Cirino e muitos outros espalhados por serviços universitários e
outros serviços públicos manifestavam sua preocupação em não permitir
que uma compreensão reducionista apoiada em pressupostos biologicistas
fosse apresentada como a única maneira de abordar as questões
relacionadas ao uso de drogas. Mais do que isso, era indispensável manter
aberto o leque de fontes de interlocução com os gestores e formuladores
da política sobre drogas no Brasil em consonância com as múltiplas
maneiras de compreender e de abordar os usos de drogas.
Desde o início de sua criação, ficou claro o papel da Abramd em
buscar o desenvolvimento de interlocução entre os atores deste campo,
incluindo os usuários de drogas, os estudiosos, os profissionais da atenção,
aí incluída a atenção à saúde, assistência social, educação e justiça, os
gestores e formuladores de política. Este diálogo se dá por meio dos fóruns
de discussão dos temas relevantes, incluindo os congressos, os encontros
regionais, os espaços de discussão pela internet e as publicações. Em todos
estes espaços, o incentivo à pesquisa em suas variadas vertentes e a
interlocução com os gestores da política sempre foram fundamentais.
Durante anos, a Abramd participou da formulação da política na
discussão com o Ministério da Saúde e a Secretaria Nacional de Política
sobre Drogas (Senad) em inúmeros espaços de debate e teve papel decisivo
de apoio à abordagem multidisciplinar pautada pelas estratégias de
redução de danos.

564
Posfácio – Drogas: porque se impõe a Transição de Paradigma

Os caminhos tomados pela política para as drogas nas últimas


décadas no Brasil mostram uma oscilação em direção a abordagens menos
e mais repressivas. Para quem está neste campo há mais de 30 anos, fica
claro que houve avanços. Entre os aspectos positivos, pode-se perceber a
construção de uma rede extra-hospitalar de atenção à saúde de pessoas
que usam drogas, o fato de que o uso de drogas deixou de ser, por lei,
passível de prisão, que há milhares de profissionais capacitados e que se
discute a descriminalização por toda parte. No entanto, a oscilação em
direção a uma abordagem repressiva é fácil de ser notada nos últimos anos
ao sabor das pressões de setores conservadores da sociedade.
Por estes motivos, essa publicação é extremamente oportuna. Autores
de peso discutem assuntos essenciais, como os novos desafios que nas
últimas décadas vieram se somar aos já existentes. Estes incluem o
crescimento do consumo do crack, da violência e do encarceramento por
problemas relacionados às drogas. Enormes dificuldades sociais, ausência
de perspectivas de trabalho, educação, saúde e lazer aumentam as
condições desfavoráveis de parcelas mais vulneráveis de nossa população.
A política para as drogas ainda apoiada no proibicionismo, que propõe a
repressão como solução dos problemas relacionados ao uso, contribui para
aumentar a violência. Esta se concretiza nos confrontos entre a polícia e os
traficantes e nas disputas pelos pontos de drogas. Jovens e mulheres são
especialmente afetados por estas condições. A necessidade do
desenvolvimento de modelos e práticas que constituam estratégias de
prevenção para jovens do uso abusivo de substâncias psicoativas continua
premente. O que já está claro é que as práticas de prevenção não devem
ser baseadas em uma abordagem amedrontadora. Também fica evidente a
necessidade da atenção às famílias envolvidas e que a educação popular
visando à promoção da saúde tem um potencial transformador.
Para colocar em marcha novas práticas para a atenção a pessoas que
têm problemas com drogas é indispensável um grande esforço para a
capacitação dos profissionais que vão desenvolver estas ações. Profissionais
das mais variadas áreas do saber e em diferentes níveis de formação
foram, ao longo do tempo, capacitados de forma insuficiente para lidar

565
Marcelo Santos Cruz

com os desafios desta prática. É necessário que os cursos de graduação e


pós-graduação presenciais e a distância, como aqui descritos, ampliem,
aprofundem e aperfeiçoem uma formação que tenha por base a
articulação entre a prática e a teoria atualizada.
Entre as boas notícias neste cenário, encontra-se a entrada cada vez
maior neste campo de antropólogos com sua bagagem de conhecimento e
questionamentos. Esta presença mostrou-se marcante durante o VI
Congresso Internacional da Abramd com a participação em várias das
atividades do evento. A presença do saber antropológico também se faz
notar na composição da diretoria atual da associação. Para um médico
acostumado aos trajes brancos e aos ambientes hospitalares dominados
por uma visão anátomo-clínica do homem, nada melhor que conhecer os
relatos de quem convive com as pessoas em situação de rua, os rituais
religiosos da Amazônia e das populações indígenas do México. O saber
trazido na bagagem dos antropólogos causa surpresa e curiosidade ao
mostrar, de um outro ponto de vista, a experiência de pessoas que usam
drogas. Mas, mais que tudo, causa inquietação pelos questionamentos das
verdades cristalizadas. Neste sentido, esta entrada em campo torna
concreta a proposta da Abramd de uma interlocução multidisciplinar.
A experiência daqueles que conhecem as pessoas que usam drogas
nos lugares em que vivem e usam, seja na rua, nos bares, nas festas ou nos
rituais da floresta, pode ser radicalmente diferente da experiência daqueles
que atendem pessoas nos serviços de saúde. O contraste entre o significado
das drogas nos diversos cenários é impressionante. O uso de drogas pode
significar confraternização, convivência social, prazer, transcendência, mas
também pode ser fonte de extremo sofrimento, desespero e ruína. Como,
possivelmente, concluiriam os sábios da lenda indiana, talvez esta seja uma
das razões das diferentes formas de compreender e abordar o uso de
drogas. E pode ser muito interessante que os profissionais e estudiosos que
conhecem apenas um lado destas experiências conheçam os “outros lados
da moeda”. De fato, a existência das diversas propostas para a abordagem
do uso de drogas pode ser uma consequência da multiplicidade de pontos
de partida dos que refletem sobre essas questões, suas diferentes

566
Posfácio – Drogas: porque se impõe a Transição de Paradigma

experiências, formações profissionais, inclinações teóricas, etc. Mas, mais


provavelmente, a persistência de diferentes modelos e práticas é uma
consequência não das características dos que teorizam, mas da diversidade
das pessoas que usam drogas e das suas experiências. Assim, o caminho
proposto não se trata da mera substituição de um modelo pelo outro, mas
do compartilhamento de saberes e experiências para a criação de novas
abordagens. Desta forma, o intercâmbio proposto pela Abramd e que este
livro bem traduz, incluindo profissionais e estudiosos, pode ir além de
infrutíferas polarizações e produzir novos modelos mais abrangentes e
pragmáticos.

Referências
Fuks, S. I. (2018). Un “modelo” sistémico de comprensión-acción de
dinámicas sociales: três dimensiones de las prácticas sociales
transformadoras. In M. F. O. Sudbrack, M. I. G. Conceição & R.
Adorno (Orgs.), Drogas e transição de paradigmas: construindo saberes e
compartilhando fazeres. Brasília: Technopolitik. 555 p.

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