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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica


Instituto Federal Catarinense — Campus Camboriú

Disciplina: Epistemologia e Educação


Professoras: Filomena Lucia Gossler Rodrigues da Silva e Marilândes Mól Ribeiro
de Melo
Curso Mestrado em Educação
Disciplina: Epistemologia e Educação
Mestranda: Bárbara Canziani Kristensen

Ensaio: Discutindo questões de gênero na atual educação brasileira

Historicamente falando, as primeiras escolas do Brasil, criadas pelos padres


jesuítas, já foram, por si só, um lugar de extermínio da diversidade e de
padronização. Feitos com o intuito de catequizar os indígenas da terra recém-
descoberta, esses colégios buscavam “salvar” os povos originários forçando-lhes a
aprender latim, português e a religião católica. A educação, já nos primórdios do
Brasil, não considerava os saberes dos indígenas, não respeitava as diferenças, não
tinha alunas como mulheres e, logicamente, ignorava por completo as questões de
gênero.
Não é exagero dizer que, mais de cinco séculos depois, mesmo com diversas
tentativas e dispositivos legais que tentem propor o contrário (como a Resolução nº
1 de 19 de janeiro de 2018 do MEC, por exemplo), ainda estamos longe de
alcançarmos uma educação que, realmente, considere a complexidade do assunto,
visto que a educação brasileira (e por que não dizer a sociedade) ainda está
moldada para o homem branco heterossexual católico e de classe dominante, o que
se comprova ao observar, por exemplo, que foi em 1985 que a Associação Médica
Brasileira retirou a homossexualidade da lista de distúrbios mentais e somente às
vésperas da chegada de um novo milênio, em 1999, o Conselho Federal de
Psicologia estabeleceu normas éticas em relação à questão da orientação sexual
(DINIS, 2011).
No âmbito acadêmico, o debate sobre gênero e diversidade sexual é um
pouco anterior, tendo se iniciado em meados da década de 1970 e fruto da pressão
de grupos feministas e de grupos gays e lésbicos em busca dos seus direitos, em
especial de serem representados nos programas curriculares das instituições
escolares (DINIS, 2008).
Na área da educação, o tema da diversidade sexual e de gênero foi tardio,
conforme explica Dinis (2008, p. 480-481), devido a uma “[...] persistência na
educação de proposições cristalizadas e essencialistas para pensar a identidade,
que podemos transferir também para nossa análise acerca do gênero”, visto que a
educação foi “[...] marcada por uma concepção do sujeito baseada em proposições
herdadas da Psicologia da Aprendizagem e da Psicologia do Desenvolvimento,
repletas de descrições normativas e naturalizadas, legitimadas pela Biologia”.
A complexidade do assunto, embora não seja o único problema, é,
seguramente, um dos dificultadores para que sua discussão avance, mesmo quase
meio século depois de seu surgimento no mundo acadêmico. Dinis (2011), por
exemplo, faz uma observação muito relevante ao tratar a respeito do gênero ao
lembrar que conceituá-lo é simplificar um contexto cultural, uma complexidade de
experiência com corpos, prazeres e com a vivência que tivemos com outras
pessoas. Tentando ser um pouco mais específica, por outro lado, Scott (1995) define
gênero como um elemento constitutivo de relações sociais que se fundamenta em
diferenças que se podem ser perceber entre os sexos, significando relações de
poder.
É interessante essa perspectiva que considera as relações de poder
abordada por Scott. Sob esse viés, os papéis de certa forma impostos socialmente
pelos gêneros são responsáveis por perpetuar paradigmas sociais mantidos há
séculos. Já é clássica, neste sentido, a frase de Simone de Beauvoir (1967, p. 9) a
respeito da mulher, que diz: “Ninguém nasce mulher; torna-se mulher”. Assim,
gênero seria a forma como as sociedades organizam a diferença sexual. E, nesse
panorama, sempre há quem saia perdendo.
Guacira Lopes Louro, uma das estudiosas brasileiras que trata sobre o
assunto com maior propriedade há mais de duas décadas, já sabiamente indicava a
concepção de gênero organizada sob uma lógica dicotômica gerando uma
contraposição que, necessariamente, ignora ou nega todos os sujeitos que não se
encaixam nessas formas, o que gera uma espécie de silenciamento que seria, por
sua vez, responsável por “garantir” a heteronormatividade (LOURO, 1997).
Logicamente, essa garantia é fictícia e só é conseguida à base da violência, mesmo
que tácita.
Nos últimos anos, as questões de gênero têm alcançado diversos espaços e
se tornado tema constante na mídia, incluindo as redes sociais. Certamente essa
popularização de maneira nunca vista tem forçado a escola a tratá-lo, visto que
muitas vezes são estudantes que o trazem para a sala de aula de forma espontânea
(DINIS, 2008).
É nesse contexto que o jogo de forças se configura de forma ainda mais
perigosa, visto que a escola é ambiente criador e reprodutor de conhecimento e,
cada vez mais, controlado por agentes que não deveriam ter autoridade para fazê-lo.
Há, nela, um compromisso com a “[...] heterossexualização compulsória, expresso
num conjunto de práticas, saberes e regulações que reiteram a heteronorma”
(BORTOLINI; PIMENTEL, 2018, p. 88).
Cabe aqui levantar uma reflexão feita por Dinis (2011), quando analisa o fato
de que há uma presunção assumida por professoras (es) de que a escola só deva
discutir “assuntos universais”, considerando-se a norma da heterossexualidade
como a regra natural e universal. Sob essa perspectiva, a diversidade de gênero é
excluída do currículo (até mesmo em aulas de Educação Sexual, que vêm sendo
demonizadas nos últimos anos por extremistas) por ser considerado um assunto não
pertencente à universalidade quando, na verdade, ao ser inerente aos seres
humanos – assim como a heterossexualidade – é deveras universal.
Os paradigmas da heteronormatividade, muitas vezes considerados os únicos
possíveis aparecem em materiais didáticos, práticas pedagógicas, conversas,
currículos, formas de gestão, o que gera não somente a falta de representatividade,
mas, o que é ainda mais grave, um ambiente escolar violento, discriminatório e
excludente.
Tratemos, por exemplo, a respeito da exclusão. O problema vai além do
óbvio, visto que, conforme explicam Bortolini e Pimentel (2018), não há dados
estatísticos oficiais para identificar as desigualdades de acesso ao direito à
educação de pessoas LGBTQIA+ ou informações sobre casos de violência a essas
pessoas na escola. Isto é, excluem-se esses indivíduos até mesmo no registro do
seu sofrimento. Além disso, no que se refere a outros tipos de dados, o Sistema
Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), o Exame Nacional de
Desempenho de Estudantes (Enade) e o Censo Escolar da Educação Básica e da
Educação Superior, principais instrumentos nacionais de produção de dados
educacionais, não trazem informações sobre a orientação sexual ou a identidade de
gênero dos participantes.
No referente à violência, pesquisa do Grupo Gay da Bahia (2020) aponta que
a cada 36 horas um LGBTQIA+ brasileiro é vítima de homicídio ou suicídio,
confirmando o Brasil como campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais.
Desses, quase 33% têm entre 15 e 30 anos, ou seja, alguns ainda em idade escolar.
Joca (2011) indica que várias pesquisas sobre homossexualidade
demonstram uma tríade da violência, composta por “rua-escola-família”. De acordo
com o autor, a rua, espaço em que se exerce cidadania, é negada para os
homossexuais mostrarem seu afeto; a família, onde primeiro se aprende a
afetividade, ainda está presa à heteronormatividade e a escola, que é responsável
por transmitir cultura, determinou e perpetuou a heterossexualidade como norma
universal.
Dados da Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil de 2016
indicam que 73% dos e das estudantes LGBTQIA+ já relataram terem sido
agredidos verbalmente e 36% agredidos fisicamente. Desses, 58,9% faltam às aulas
pelo menos uma vez ao mês devido às agressões constantes.
Isso acontece porque as sexualidades são vistas e tratadas baseadas em
crenças morais que se fundamentam em discursos não somente religiosos, mas
científicos, educacionais ou penais. De acordo com Castedo e Tombesi, atualmente,
em setenta países relações sexuais entre adultos do mesmo sexo são penalizadas
na prática ou são ilegais e onze países punem com a pena de morte as pessoas do
mesmo sexo que mantêm relações consensuais.
A situação, como se observa, é grave e, possivelmente, um dos caminhos
para mudar essa realidade é um debate baseado nos direitos de cidadania
(TORRES, 2011) que questione e desconstrua essa oposição binária e abra
possibilidades que se incluam os diferentes gêneros (LORO, 1997).
A problemática da imposição da heteronormatividade e do silenciamento dos
gêneros na educação acarreta problemas como o bullying e diversas outras formas
de violência (DINIS, 2011), normalmente alimentados pela própria escola e que uma
educação para a diversidade provavelmente ajudaria a combater.
No entanto, no Brasil, a recentemente aprovada BNCC (BRASIL, 2018, p. 10),
embora no seu início, indique, entre as competências gerais da educação básica,
“exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se
respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com
acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos”, não há sequer uma
menção a qualquer descritor de gênero e ou à diversidade sexual no seu texto,
ironicamente fazendo coro ao silenciamento já gritante do assunto nos documentos
oficiais.
Não é possível, no entanto, crer que não há nada que possa ser feito. São,
sim, necessárias “[...] mudanças nas formas de gestão, nas práticas pedagógicas e
nos currículos” (BORTOLINI; PIMENTEL, 2018, p. 93) que afetem o conjunto da
comunidade escolar e a sociedade em geral. As condições, contudo, parecem pouco
propícias. Não só na sociedade, onde ressurge uma onda extremista, mas também
nas escolas, onde se percebem ações pontuais, geralmente frutos de ações
individuais de alguns professores, mas sem um plano de ação específico voltado
para efetivamente concretizar uma educação preocupada com a questão da
diversidade de gênero, mesmo que, às vezes, isso até esteja contemplado em seu
Projeto Político Pedagógico.
Nesse sentido, é necessária uma educação que contemple e compreenda o
mundo heterogêneo em que vivemos a fim de formar cidadãos e cidadãs preparados
e preparadas para lidar com a pluralidade do presente. Para isso, é necessário
formar professores e professoras que tenham um olhar diferenciado nas suas
atitudes e no seu planejamento. Sob essa perspectiva, Pabis e Martins (2014)
ressaltam que é necessário que educadores e educadoras aprendam, pois muitas
vezes, embora vítimas das mesmas problemáticas, também reproduzem os mesmos
preconceitos que a sociedade apresenta.
Além disso, é imprescindível que haja uma discussão verdadeira, coerente e,
acima de tudo prática no currículo escolar de modo que a perspectiva heterocêntrica
da educação não seja mais a tônica nas escolas. Neste sentido, nas palavras de
Bortolini e Pimentel (2018), a educação tem papel estratégico e a escola deve
assumir um papel fundamental na promoção dos direitos de pessoas LGBTQIA+,
bem como no enfrentamento à discriminação, exclusão e violência.

Referências
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