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10.37885/200901517
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo refletir sobre algumas categorias conceituais (gênero
e raça) e como elas podem se apresentar nas políticas públicas, mas especificamente,
na área da educação. Ou seja, como raça e gênero são articulados nas políticas públicas
educacionais? Essa análise irá partir sobre a lei que implementou a Educação de Jovens
e Adultos (EJA), e como isso se apresenta na política estatal. Trata-se de uma pesquisa
qualitativa reflexiva onde através da análise de conteúdo pretende-se analisar a lei por
uma perspectiva interseccional. Duas abordagens importantes nesse processo são, a
questão do poder e interseccionalidade. O poder pode se apresentar de várias formas
e maneiras, mas especificamente, quando abordamos a questão da raça, o poder da
colonialidade é o mais emergente, esse poder que exclui principalmente as mulheres
negras de acessar os centros de ascensão social e de prestígio. Como um direito que
deveria a princípio ser de acesso universal – o direito à educação. Sobre gênero e raça
parte-se da perspectiva de Bell Hooks e Grada Kilomba, e sobre raça, estudos de Achille
Mbembe. Em resultados é possível identificar que as normativas da lei, acaba por partir
de uma ideia de universal das noções sobre pessoa, humano e individual.
METODOLOGIA
Este trabalho trata-se de uma pesquisa qualitativa reflexiva onde através da análise
de conteúdo pretende-se analisar a lei que implementou a EJA por uma perspectiva inter-
seccional com o objetivo de refletir sobre algumas categorias conceituais (gênero e raça)
e como elas podem se apresentar nas políticas públicas, mas especificamente, na área da
educação. Duas abordagens importantes nesse processo são: a questão do poder e intersec-
cionalidade. O poder pode se apresentar de várias formas e maneiras, mas especificamente,
quando abordamos a questão da raça, o poder da colonialidade1 é o mais emergente, esse
poder que exclui principalmente as mulheres negras de acessar os centros de ascensão
social e de prestígio. Como um direito que deveria a princípio ser de acesso universal – o
direito à educação.
Sobre gênero e raça parte-se prioritariamente da perspectiva de Bell Hooks e Grada
Kilomba no que concerne a posição da mulher negra na sociedade em comparativo à mulher
branca, ao homem negro e ao homem branco, reforçando a relação desigual e contraditória à
qual as mulheres negras estão submetidas. Compreender essa configuração é fundamental
1 Isto quer dizer que a colonialidade do poder baseada na imposição da ideia de raça como instrumento de dominação foi sempre um
fator limitante destes processos de construção do Estado-nação baseados no modelo eurocêntrico, seja em menor medida como no
caso estadunidense ou de modo decisivo como na América Latina. O grau atual de limitação depende, como foi demonstrado, da
proporção das raças colonizadas dentro da população total e da densidade de suas instituições sociais e culturais. Por tudo isso, a
colonialidade do poder estabelecida sobre a ideia de raça deve ser admitida como um fator básico na questão nacional e do Estado-
-nação. O problema é, contudo, que na América Latina a perspectiva eurocêntrica foi adotada pelos grupos dominantes como própria
e levou-os a impor o modelo europeu de formação do Estado-nação para estruturas de poder organizadas em torno de relações
DIMENSÕES DA RAÇA
Pois aquilo que fez fermentar o delírio são, entre outras coisas, as raças. Ao
reduzir o corpo e o ser vivo a uma questão de aparência, de pele ou de cor,
outorgando a pele e a cor o estatuto de uma ficção de cariz biológico, os mun-
dos euro-americanos em particular fizeram do negro e da raça duas versões de
uma única e mesma figura – a da loucura codificada” (MBEMBE, 2014, p. 11).
2 Azevedo, ao longo do texto, trata a educação como uma política social e, nesta perspectiva, assevera ser necessário interpretá-la
dentro de um espaço teórico reservado às políticas públicas, para que se possa vislumbrar as interferências advindas do contexto
social em que são elaboradas, conforme a autora descreve a seguir: as estruturas de poder e de dominação, de conformidade com
Poulantzas (1936-1979); as representações sociais expressas em uma dada realidade; os fenômenos relacionados com a ‘hipertrofia’
e ‘complexificação’ do Estado, em função da sua intervenção na sociedade, por meio da implementação de políticas públicas (OLI-
3 Cf. <https://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2019/09/evasao-escolar-e-maior-entre-jovens-negros-e-a-violencia-do-racismo/>
4 A mulher negra, em todos os índices, seja na área de educação, trabalho, saúde, é sempre a base, afirma a diretora executiva do
Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), Cida Bento. E isso tem a ver com essa combinação, essa
intersecção, de gênero e raça, que complica mais a situação. A discriminação que já incide sobre as mulheres de forma geral, incide
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Mulheres negras vêm historicamente pensando a categoria mulher de forma não uni-
versal e crítica, apontando sempre para a necessidade de se perceber outras possibili-
dades de ser mulher. Sojourner Truth, ex escrava que se tornou oradora, fez, em 1851,
seu famoso discurso intitulado “E eu não sou uma mulher?” na Direitos das Mulheres em
Akron, Ohio, em 1851:
(RIBEIRO, 2017, p. 100) . Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mu-
lheres a subir numa carruagem, que é preciso carregá-las quando atravessam
um lamaçal que elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca nin-
guém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me
cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para
meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum
conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer
tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e também aguentei
as chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi
vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a
não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?”5
Truth já anunciava ali que a situação da mulher negra era radicalmente diferente da
situação da mulher branca. Enquanto naquela época mulheres brancas lutavam pelo direito
ao voto e ao trabalho, mulheres negras lutavam para serem consideradas pessoas. E essa
diferença radical fazia toda a desigualdade.
Nesse esquema, a mulher negra só pode ser o outro, e nunca si mesma. […]
Mulheres brancas tem um oscilante status, enquanto si mesmas e enquanto o
“outro” do homem branco, pois são brancas, mas não homens; homens negros
exercem a função de oponentes dos homens brancos, por serem possíveis
competidores na conquista das mulheres brancas, pois são homens, mas não
brancos; mulheres negras, entretanto, não são nem brancas, nem homens, e
exercem a função de o “outro” do outro (KILOMBA, 2008, p. 124).
Nesta afirmação de Kilomba (2008) é possível perceber que ela discorda da categori-
zação feita por Beauvoir. Para a filósofa francesa não há reciprocidade, a mulher sempre é
vista pelo olhar do homem num lugar de subordinação, como o outro absoluto, numa visão
absoluta de patriarcado. Além do que, essa afirmação de Beauvoir diz respeito a um modo
de ser mulher, no caso, a mulher branca. Kilomba além de sofisticar a análise, engloba a
mulher negra em seu comparativo. Para a autora, existe reciprocidade entre mulher branca
e homem branco e entre mulher branca e homem negro, existe um status oscilante que ora
pode permitir que a mulher branca se coloque como sujeito. Kilomba (2008) rejeita a fixidez
desse status porque mulheres brancas podem ser vistas como sujeitos em dados momentos,
assim como o homem negro também.
Reconhecer o status de mulheres brancas e homens negros como oscilantes nos pos-
sibilita enxergar as especificidades desses grupos e romper com a invisibilidade da realidade
das mulheres negras. Por exemplo, ainda é muito comum a afirmação de que mulheres
ganham 30% a menos que os homens no Brasil, quando a discussão é a desigualdade sa-
larial. A informação está incorreta do ponto de vista ético. Mulheres brancas ganham 30% a
menos do que homens brancos. Homens negros ganham menos do que mulheres brancas
e mulheres negras ganham menos do que todos.
De acordo com pesquisa desenvolvida pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social
em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)6, de 2016, 39,6%
das mulheres negras estão inseridas em relações precárias de trabalho, seguidas pelos
homens negros (31,6%), mulheres brancas (26,9%) e homens brancos (20,6%). Ainda
6 PINHEIRO, Luana Simões; LIMA JR, Antônio Teixeira.; FONTOURA, Natália de Oliveira; SILVA, Rosana da. Mulheres e trabalho: bre-
ve análise do período 2004-2014. Ipea, Brasília, n.24, mar., 2016. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/6524>.
Artigo 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não
tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na
idade própria. Parágrafo 1º Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente
aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular,
oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do
alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos
e exames (BRASIL, 1996).
no Parecer CNE/CEB Nº11/2000, na Resolução CNE/CEB Nº01/2000, no Plano Nacional de Educação (Lei 10.172/01), no Plano de
Desenvolvimento da Educação, nos Compromissos e acordos internacionais. Diretoria de Políticas de Educação de Jovens e Adultos
Ao logo das normativas legais, iremos perceber que palavras como gênero, mulher,
negro ou raça acabam sendo silenciadas por essa lógica de universalidade da construção
da lei. Mesmo que o debate sobre gênero seja uma questão recente no debate público, a
questão da raça na opinião pública, supostamente, já tem mais tempo, mesmo assim, ela
CONCLUSÃO
Como foi exposto ao longo desse artigo, o racismo tem como fundamento ser um siste-
ma de opressão que acaba por hierarquizar as pessoas pela raça. O gênero é um marcador
social da diferença que é atravessado pelo poder patriarcal que condiciona as mulheres a
inferioridade. Todavia, quando dimensionamos raça e gênero – as mulheres negras – iremos
perceber que elas, dentro de uma dimensão de um sistema de opressão (interseccionalidade)
estão na base da pirâmide da desigualdade social.
A EJA como uma política pública que visa justamente poder garantir o direito a educa-
ção de pessoas que não conseguiram terminar os seus estudos. Que tem em oferta a EJA
no ensino fundamental são os municípios, e no ensino médio o Estado. Eles que definem
como será ofertado. Para além desse acesso à educação, EJA tem como característica per-
mitir que os educandos tenham uma educação rápida e uma formação técnica profissional
voltada ao trabalho.
Todavia, as normativas que regulamentam o ensino de jovens e adultos parte de uma
concepção universal da noção de pessoa e ser humano. O que acaba por camuflar relações
de poder, logo, pensar por um viés da interseccionalidade nos ajuda a ampliar o olhar sobre
a EJA, mas ao mesmo tempo podermos expandir como essa política publica educacional
que visa corrigir problemas da desigualdade social no Brasil pode ser aprimorada, quando
leva a sério a condição das mulheres negras.