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HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA

Entrevista ao Jornal O GLOBO - 14/12/2012


Entrevista apresenta a trajetória
de Heloisa Buarque de Hollanda
'Além do saber predominante, é preciso reconhecer outros saberes
para compreender o mundo de hoje', afirma
Por José Roberto Pinto de GóesRio de Janeiro

Heloisa Buarque de Hollanda é professora da Escola de Comunicação da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ocupa um lugar de destaque na
intelectualidade brasileira, sobretudo entre aquela ligada ao estudo da cultura
contemporânea. Além de observadora, Heloisa é uma protagonista ativa da nossa
cultura, de uma forma como as pessoas comuns não são. Segundo contou o
jornalista Zuenir Ventura, no livro 1968, o ano que não terminou, ela promoveu o
mais badalado réveillon que marcou o fim daquele ano, e daquela época, no Rio
de Janeiro. Aos 29 anos, era então “mito e ícone da intelectualidade carioca”.
Atropelada com toda a sua geração pela ditadura militar, não buscou o exílio, nem
foi presa. Ficou a “juntar os cacos” da vitalidade dos anos 1960, na “ressaca ruim
de 1968”, e encontrou coisas “maravilhosas”. Como não deixou de nos estudar,
conforme o tempo foi passando, continuou a encontrar coisas boas.

Heloisa Buarque de Hollanda relembrou sua formação política, marcada


pelos anos 1960(Foto: Kiko Cabral)
Globo Universidade – A sua trajetória acadêmica e profissional a
levou a um lugar de destaque na universidade brasileira. Como foi
esse caminho?

Heloisa Buarque de Hollanda – Eu sempre tive uma relação de amor e


ódio com a universidade. Meu pai era professor universitário e sonhava que
eu seria também. Como toda filha faz o que o pai gosta, pois é apaixonada,
ingressei na universidade. Mas sempre mantive um pé fora. Dava aula, mas
fazia programa na TVE, não aguentava muito ficar ali. Porque eu acho que
a coisa acadêmica é muito legal, mas não é o meu perfil. Tenho uma
formação muito política, muito marcada pelos anos 1960. Eu vivi aquilo
muito intensamente para segurar a onda de ficar fazendo uma produção
muito acadêmica, só pesquisando, só escrevendo. A década de 60 me
inoculou um vírus qualquer de procurar atuar. Isso gerou conflitos em
muitos lugares. Na universidade, criei vários centros de pesquisa, como o
Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos (CIEC), voltado para o
estudo das demandas de mulheres, negros e judeus. Mas todo mundo
achava que era inútil e impróprio para uma escola de Comunicação. Não
deu muito certo. Em 1993, criei o Programa Avançado de Cultura
Contemporânea, onde me dedico mais à reflexão sobre a periferia e o
mundo digital. Também não encontro eco dentro da academia. A academia
quer um outro tipo de produção, mais autorreferente, mais autocentrada
nela mesma, e eu não tenho nem atenção para fazer isso. Porque eu me
apaixono e saio voando com esses assuntos, que me mobilizam muito.

GU – Essa inclinação pela política veio da família?

HBH – Não, veio daquele momento, dos anos 1960, que eram muito
apaixonantes. Eu me formei em grego, quer dizer: nada a ver com nada.
Casei muito cedo, fui para os Estados Unidos e comecei a trabalhar como
assistente de pesquisa no Centro de Estudos Latinoamericano, em Harvard.
Foi na época do assassinato de Kennedy, imagine como fervia aquele lugar,
naquele momento tão tumultuado. Larguei o grego e comecei a me
interessar muito pela América Latina e pela cultura brasileira. Quando
voltei, em 1964, era um tempo quente na política. Mergulhei de cabeça na
universidade e vivi quatro anos de uma forma muito incrível, pois era uma
universidade aberta, de debates, de crescimento. Tudo acontecia lá dentro,
era um foco gerador. As passeatas saíam de lá. Eu dava aula de Literatura e
Cinema. O cinema tinha uma presença muito forte, tanto no meu cotidiano,
quanto naquela geração que assistiu ao surgimento do Cinema Novo. Eram
aulas que não acabavam, pois entravam, no meio da aula, Zé Celso, Glauber
Rocha – era um lugar de troca mesmo, uma arena muito importante. A
universidade ficou na minha cabeça como um lugar em que se pode fazer
isso. Depois ela retroagiu.

GU – Veio o AI-5 e o fechamento do regime.

HBH – E eu não fui para fora, nem fui presa: fiquei naquela universidade
vazia, cheia de repressão, aquela ressaca ruim de 1968. Comecei a trabalhar
então as poucas vozes dissonantes. Fui trabalhar com poesia marginal, que
era uma resposta legal à ditadura. Como a poesia não era algo com o qual a
censura precisasse se preocupar, porque o impacto político é nenhum, foi
possível juntar uma massa jovem, legal, que misturava rock com poesia. Era
um momento muito vivo, muito produtivo. Mas sempre no viés
contracultural, que não era o do confronto, pois a cultura mais diretamente
política perdeu espaço com a censura. Mas a outra era borbulhante e eu
escrevi a minha tese de mestrado sobre isso. Fiz uma antologia para
divulgá-la. Fiquei muito tempo trabalhando essas respostas à ditadura.

GU – Você teve uma experiência com cinema que foi além de escrever
e ensinar sobre cinema.

HBH – Fiz vários documentários. Um deles sobre Alceu Amoroso Lima, a


única pessoa que falava. Ele tinha uma relação direta com o Vaticano, então
ninguém ousava calar a boca do doutor Alceu. Era complicado para os
militares censurarem aquele cara que tinha linha direta com o Papa. A
proteção da Igreja era muito forte e, por isso, ele tinha uma liberdade única
de falar. O filme está na Fundação Alceu Amoroso Lima. Depois eu fiz um
filme chamado Xarobovalha, sobre a última apresentação da peça Trata-me
Leão, que ficou mais de um ano em cartaz no Brasil inteiro. O grupo
“Asdrúbal Trouxe o Trombone”, com Regina Casé, Luiz Fernando
Guimarães, Evandro Mesquita, etc., marcou um momento também muito
importante dos anos 1970. Mobilizava. Minha preocupação era como
aquela cultura do vazio ia conseguir se reconstituir com a força dos anos
1960. Um festival, qualquer coisa, nos anos 1960, era uma dose muito
intensa de mobilização. Então, eu fiquei catando os caquinhos nos anos
1970, para ver o que ainda tinha potência. Fiz outro sobre Joaquim Cardoso,
o calculista de Brasília, poeta e matemático. Depois passei a fazer muita
cenografia. Fiz quase todos os filmes da Ana Carolina. Fiz roteiros. Naquela
época o cinema era a mídia. E não precisava fazer bem feito, não é? Você
podia fazer qualquer porcaria que dava certo. Qualquer um podia ser
cineasta. Hoje não é mais possível fazer cinema daquele jeito.

GU – Além de trabalhar com a contracultura, você se interessou


também pelo feminismo, não foi?

HBH – Sim, logo depois, nos anos 1980, quando emergiu a onda
multiculturalista. Fui para os Estados Unidos fazer um pós-doutorado em
Política e Cultura, na Universidade de Columbia. Chegando lá, percebi que
no Brasil é muito difícil você ter maior clareza sobre o feminismo. No Brasil,
ele tem traços muito próprios, é muito diferente do feminismo
internacional. O crescimento desse debate foi nos anos 1960. Mas, então,
estávamos em plena ditadura e a Igreja era um ponto de resistência da
maior relevância. Então, aqui o feminismo não pôde acompanhar a mesma
pauta: não podia falar em aborto, corpo, amor livre, nada dos temas
internacionais. A possibilidade de se incompatibilizar com a Igreja fez com
que o nosso feminismo só falasse de salário. Depois ele agregou temas
relacionados à saúde e à violência, mas até hoje você não vê um debate
aberto do feminismo sobre o aborto, por exemplo. Além disso, é muito
difícil para a classe média brasileira perceber, no dia-a-dia, a questão da
mulher. Eu mesma achava que não existia esse problema. Eu fazia o que
queria, segundo a minha cabeça, casei e separei quando quis, então, não
tinha problema. Mas quando fui para os Estados Unidos eu tive uma
aproximação mais teórica do fenômeno, que foi muito importante para
mim. Sobretudo o feminismo anglo-saxão, muito filosófico e psicanalítico,
trouxe questões cruciais para a própria forma como vejo a vida. E eu, que
fui para estudar política e cultura, acabei me embrenhando no problema da
mulher. E, quando voltei, montei o CIEC, que procurava estudar questões
relativas às mulheres, negros e judeus, todas elas marcadas por grandes
ambiguidades.
Heloisa Buarque de Hollanda (Foto: Kiko Cabral)
GU – Como você vê certas demandas de recorte racial, hoje, no Brasil?

HBH – Eu nunca trabalhei com “raça”, nem acompanho isso de perto. Mas
acho esquisito, isso. O que a gente queria trabalhar era justamente essa
coisa da mistura que caracteriza o Brasil. Tem um livro ótimo do Ali Kamel
sobre isso (Não Somos Racistas). Tudo é muito complicado, com mulher e
com judeu também. A diferença no Brasil é um assunto muito belo, tem
uma complexidade absurda e é preciso encará-lo como algo mesmo difícil.
Não dá para fingir que somos norte-americanos e fazer igual. Não dá,
porque não somos.

GU – Em 2004, escrevendo sobre o funk, você afirmou que o efeito da


“cidade partida” não caracterizava mais a cultura carioca. Frases
otimistas como esta são raras de se ler. Pode falar mais sobre ela?

HBH – Eu vou atrás do Zuenir, reparou? Ele fala em vazio cultural, eu digo:
não é, está cheio de poetas. Ele parte a cidade, eu colo. Acho que a partir de
meados dos anos 1990, ao menos no Rio de Janeiro, podem-se identificar
canais cada vez mais abertos entre periferia e centro, talvez pela própria
topografia da cidade. Comecei a analisar essas conexões e o que
significavam em transformações mútuas.
GU – Mas essas conexões são novas mesmo? Nas primeiras décadas do
século XX, o samba era coisa do morro e do asfalto. Noel Rosa, por
exemplo...

HBH – Mas é diferente. Hoje há o problema do tráfico, que envolve muito


dinheiro. É outra periferia. Ameaça. Não sei se ameaçava no tempo do Noel,
onde havia apenas uma pobreza escondida. Hoje é uma guerra, uma Faixa
de Gaza. Quando veio a abertura política, no início dos anos 1980, a
sociedade civil voltou a se articular. Mas isso coincidiu com a chegada do
tráfico e a favela não conseguiu se organizar de modo a apresentar suas
demandas. Permaneceu nas mãos do tráfico e ficou mais rica, pois o tráfico
faz circular muita grana. Então, é um lugar diferente daquele de Noel. Hoje,
as questões são mais graves, o asfalto tem medo da favela e vice-versa. Mas,
em 1993, começa a costura. Com a chacina de Vigário Geral, os intelectuais
começam a ir para lá. Zuenir Ventura, Caetano Veloso, Regina Casé, Wally
Salomão, todos foram para lá. O Viva Rio foi criado. Surgiram todos esses
movimentos culturais. Porque aquela chacina foi muito marcante, veio na
sequência imediata da chacina da Candelária. A coisa da violência começou
a assustar e a classe média quis saber o que era aquilo, o que tinha ali. Então,
começam umas conexões muito interessantes e que avançam de uma
maneira promissora.

GU – Você atua no Programa Avançado de Cultura Contemporânea,


que almeja compartilhar outros saberes que não os universitários.
Como é isso?

HBH – Além do saber predominante, é preciso reconhecer outros saberes


para compreender o mundo de hoje. De ativistas, artistas, pessoas da
periferia.

GU – Você acha que há uma geração da periferia que está se


educando?

HBH – Está se educando, sim, e está sacando que sem educação a situação
social deles não melhora. Ficou claro para esta geração que ela tem que
estudar.
GU – Então você é otimista?

HBH – Eu sou. Só estão acontecendo coisas boas, desde 1960. Desde aquela
época eu só vejo grandes surpresas, maravilhosas.

REFERÊNCIA :

ENDEREÇO DO SITE:
http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2012/12/e
ntrevista-apresenta-trajetoria-de-heloisa-buarque-de-hollanda.html

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