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HBH – Não, veio daquele momento, dos anos 1960, que eram muito
apaixonantes. Eu me formei em grego, quer dizer: nada a ver com nada.
Casei muito cedo, fui para os Estados Unidos e comecei a trabalhar como
assistente de pesquisa no Centro de Estudos Latinoamericano, em Harvard.
Foi na época do assassinato de Kennedy, imagine como fervia aquele lugar,
naquele momento tão tumultuado. Larguei o grego e comecei a me
interessar muito pela América Latina e pela cultura brasileira. Quando
voltei, em 1964, era um tempo quente na política. Mergulhei de cabeça na
universidade e vivi quatro anos de uma forma muito incrível, pois era uma
universidade aberta, de debates, de crescimento. Tudo acontecia lá dentro,
era um foco gerador. As passeatas saíam de lá. Eu dava aula de Literatura e
Cinema. O cinema tinha uma presença muito forte, tanto no meu cotidiano,
quanto naquela geração que assistiu ao surgimento do Cinema Novo. Eram
aulas que não acabavam, pois entravam, no meio da aula, Zé Celso, Glauber
Rocha – era um lugar de troca mesmo, uma arena muito importante. A
universidade ficou na minha cabeça como um lugar em que se pode fazer
isso. Depois ela retroagiu.
HBH – E eu não fui para fora, nem fui presa: fiquei naquela universidade
vazia, cheia de repressão, aquela ressaca ruim de 1968. Comecei a trabalhar
então as poucas vozes dissonantes. Fui trabalhar com poesia marginal, que
era uma resposta legal à ditadura. Como a poesia não era algo com o qual a
censura precisasse se preocupar, porque o impacto político é nenhum, foi
possível juntar uma massa jovem, legal, que misturava rock com poesia. Era
um momento muito vivo, muito produtivo. Mas sempre no viés
contracultural, que não era o do confronto, pois a cultura mais diretamente
política perdeu espaço com a censura. Mas a outra era borbulhante e eu
escrevi a minha tese de mestrado sobre isso. Fiz uma antologia para
divulgá-la. Fiquei muito tempo trabalhando essas respostas à ditadura.
GU – Você teve uma experiência com cinema que foi além de escrever
e ensinar sobre cinema.
HBH – Sim, logo depois, nos anos 1980, quando emergiu a onda
multiculturalista. Fui para os Estados Unidos fazer um pós-doutorado em
Política e Cultura, na Universidade de Columbia. Chegando lá, percebi que
no Brasil é muito difícil você ter maior clareza sobre o feminismo. No Brasil,
ele tem traços muito próprios, é muito diferente do feminismo
internacional. O crescimento desse debate foi nos anos 1960. Mas, então,
estávamos em plena ditadura e a Igreja era um ponto de resistência da
maior relevância. Então, aqui o feminismo não pôde acompanhar a mesma
pauta: não podia falar em aborto, corpo, amor livre, nada dos temas
internacionais. A possibilidade de se incompatibilizar com a Igreja fez com
que o nosso feminismo só falasse de salário. Depois ele agregou temas
relacionados à saúde e à violência, mas até hoje você não vê um debate
aberto do feminismo sobre o aborto, por exemplo. Além disso, é muito
difícil para a classe média brasileira perceber, no dia-a-dia, a questão da
mulher. Eu mesma achava que não existia esse problema. Eu fazia o que
queria, segundo a minha cabeça, casei e separei quando quis, então, não
tinha problema. Mas quando fui para os Estados Unidos eu tive uma
aproximação mais teórica do fenômeno, que foi muito importante para
mim. Sobretudo o feminismo anglo-saxão, muito filosófico e psicanalítico,
trouxe questões cruciais para a própria forma como vejo a vida. E eu, que
fui para estudar política e cultura, acabei me embrenhando no problema da
mulher. E, quando voltei, montei o CIEC, que procurava estudar questões
relativas às mulheres, negros e judeus, todas elas marcadas por grandes
ambiguidades.
Heloisa Buarque de Hollanda (Foto: Kiko Cabral)
GU – Como você vê certas demandas de recorte racial, hoje, no Brasil?
HBH – Eu nunca trabalhei com “raça”, nem acompanho isso de perto. Mas
acho esquisito, isso. O que a gente queria trabalhar era justamente essa
coisa da mistura que caracteriza o Brasil. Tem um livro ótimo do Ali Kamel
sobre isso (Não Somos Racistas). Tudo é muito complicado, com mulher e
com judeu também. A diferença no Brasil é um assunto muito belo, tem
uma complexidade absurda e é preciso encará-lo como algo mesmo difícil.
Não dá para fingir que somos norte-americanos e fazer igual. Não dá,
porque não somos.
HBH – Eu vou atrás do Zuenir, reparou? Ele fala em vazio cultural, eu digo:
não é, está cheio de poetas. Ele parte a cidade, eu colo. Acho que a partir de
meados dos anos 1990, ao menos no Rio de Janeiro, podem-se identificar
canais cada vez mais abertos entre periferia e centro, talvez pela própria
topografia da cidade. Comecei a analisar essas conexões e o que
significavam em transformações mútuas.
GU – Mas essas conexões são novas mesmo? Nas primeiras décadas do
século XX, o samba era coisa do morro e do asfalto. Noel Rosa, por
exemplo...
HBH – Está se educando, sim, e está sacando que sem educação a situação
social deles não melhora. Ficou claro para esta geração que ela tem que
estudar.
GU – Então você é otimista?
HBH – Eu sou. Só estão acontecendo coisas boas, desde 1960. Desde aquela
época eu só vejo grandes surpresas, maravilhosas.
REFERÊNCIA :
ENDEREÇO DO SITE:
http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2012/12/e
ntrevista-apresenta-trajetoria-de-heloisa-buarque-de-hollanda.html