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Lá pelo final dos anos 1970, o poeta e ensaísta Sebastião Uchôa Leite dirigiu uma pergunta espantada ao
crítico literário Luiz Costa Lima, seu amigo: “Quem de nós, em sua idade, sabia o que esta garota sabe?”. A
garota era Flora Süssekind, então nos seus 20 e poucos anos, mas já reconhecida como um prodígio no curso
de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Nos anos seguintes, uma série
de livros estabeleceria sua reputação como uma das críticas literárias mais agudas do país, ensaísta com um
talento raro para pensar o sentido político da literatura e sua relação com outros campos culturais.
Autora de diversos livros, entre eles clássicos como "Tal Brasil, qual romance?" (1984) e "O Brasil não é
longe daqui" (1990), Flora Süssekind hoje é professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio) e pesquisadora da Casa de Rui Barbosa. Nascida no Rio de Janeiro em 1955, diz que o crítico é
aquele que “consegue dialogar com sua contemporaneidade”.
Globo Universidade – Uma das características mais impressionantes na sua produção é a precocidade.
Como foi sua primeira formação, ainda na graduação?
Flora Süssekind – Eu estudei no Colégio de Aplicação da PUC, fiz graduação, mestrado e doutorado em
Letras na PUC. Entrei na universidade em 1975. As universidades públicas tinham tido um esvaziamento
muito grande, e o curso da PUC foi muito importante para aquela geração, não só para as pessoas de Letras.
Ele acabou influenciando outras áreas também. A presença do Foucault na PUC, em 1974, foi muito forte.
Houve mesmo uma renovação de repertório. A PUC tinha o Silviano (Santiago), o (Luiz) Costa Lima, tinha a
Vilma (Areas). Como eram pessoas bem fortes e muito diferentes, havia um dado bem crítico. O Costa Lima
e o Silviano têm referências e maneiras de ver a literatura muito diferentes. Também fui muito influenciada
pela Vilma, que tinha uma visão muito política da literatura.
Flora
Süssekind: 'Você só pode pensar o passado a partir da perspectiva do presente' (Foto: Paulo Jabur)
dos anos 1970. A volta para o passado tem a ver com esse desconforto mesmo. Sempre tem uma ligação com
o contemporâneo, senão não tem graça, é tirar um osso do armário. O livro sobre literatura e técnica, o
"Cinematógrafo de letras" (1987), também tinha a ver com meu próprio espanto diante das transformações de
que eu era contemporânea, a informática.
GU – No "Literatura e vida literária" (1985) a senhora fala dessa dificuldade do contato com o
contemporâneo. Assumir esse risco é fundamental para o crítico?
FS – O crítico é aquele que consegue dialogar com a sua contemporaneidade, inclusive com negatividade.
Tem um dado de adesão evidente, mas você dialoga com nojo, também. É onde no fundo o crítico mostra
como ele funciona. Sua experiência em relação a seus contemporâneos você vive com eles, você não tem
onde se apoiar. Ao escrever um ensaio sobre Guimarães Rosa, escrever um ensaio sobre Machado, a pessoa
está a salvo – ainda que você possa fazer um ensaio péssimo e ser mais um imbecil, a milésima pessoa
escrevendo sobre aquela coisa. Mas para ser um crítico mesmo não adianta você ter como referência só o
conhecimento da tradição. Com isso você pode projetar possibilidades de leitura, descobrir referências, fazer
comentários aqui e ali. Mas o atrito com a contemporaneidade é que faz você pensar o passado de maneira
diferente. É a concepção do (Walter) Benjamin, e de muitos outros, de que a sua leitura é sempre um atrito de
tempos. Você só pode pensar o passado a partir da perspectiva do presente, e também só pode pensar o
presente a partir do que você conhece do passado, e que esse presente reativa, critica ou destrói.
GU – A senhora fala nesse livro também do dilema entre a visão ampla e a densidade analítica. Os
panoramas são recorrentes na sua trajetória. Por quê?
FS – Eu nunca me interesso só por literatura, eu sempre me interesso por outras coisas que estão
acontecendo ao mesmo tempo. E acho que isso determina um dos aspectos do panorama, sempre um campo
visto na sua relação com outros campos – a literatura com a técnica, a literatura com as artes visuais, as
ciências da comunicação, as ciências biológicas. Na verdade, nessas interações, eu acho que tem um dado de
aflição, de compreender o próprio tempo, mas eu também sinto muito desconforto das coisas que eu fiz
muitas vezes. Por isso esses anos agora eu parei de publicar. Porque eu comecei a achar que também não
fazia muito sentido, comecei a me achar sem sentido nenhum. E eu acho ainda. Acho fortemente às vezes
que não faz nenhum sentido.
Flora
Süssekind (Foto: Paulo Jabur)
FS – Muitos autores do pré-modernismo ficaram muito mais estudados depois, não só por causa desse livro.
A gente fez um seminário na Casa de Rui Barbosa na época e muitas pessoas escreveram coisas. Não tinha
edição nova de João do Rio. Eu mesma participei com a Rachel (Valença) da edição do Jacques Pedreira, e
outras pessoas foram fazendo outras. Foi uma coisa interessante, como retomada de estudos, mas não sei se
mudou muito a compreensão. Quando você pega os programas de universidade, às vezes a impressão é de
que nada aconteceu.
GU – A senhora escreveu muito em jornal também. Poderia falar um pouco sobre a importância desse
trânsito, da academia para a imprensa?
FS – Nos anos 1970, como não tinha revista literária forte, as universidades não tinham publicação, houve
uma ida das pessoas de universidade para dentro dos jornais. O Folhetim era um suplemento extraordinário,
o próprio suplemento do Estadão também. Um pouco antes tinha o do Jornal do Brasil. A produção ficou
muito boa. Depois da abertura política, curiosamente foi havendo de novo um esvaziamento dos
suplementos. É uma coisa ligada à própria maneira de pensar a imprensa, houve quase que um desconforto
com uma reflexão que possa fugir ao imediato, pegar temas contemporâneos e criar outra pauta. É um fluxo
quase que imposto comercialmente, pelos lançamentos.
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