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Através dos Diários Associados, o autor de Casa-Grande & Senazala responde aos
críticos de sua obra e analysa problemas da mais alta importancia para o Brasil.
Verdadeira Revolução
Influencias
Curso de Sociologia
Em 1936, fui assistente do curso de sociologia que elle deu na Universidade do Rio
de Janeiro, depois de ensinar na Universidade de Stanford, e antes de dar cursos nas
Universidades de Columbia, Michigan, Western Reserve. Suas aulas despertam o mais
vivo interesse em todos nós. Não havia entre elles e seus discipulos essa separação
que deshumaniza o mestre. Ouviamo-lo como se tratasse de um companheiro de curso
que se houvesse agigantado no estudo. Elle nos falava simplesmente, dizendo-nos
grandes coisas num fraco tom de voz, com uma modestia que era um pedido de
perdão da sua sabedoria á nossa ignorancia. E nos communicava um extraordinario
enthusiasmo pelos estudos de sua predilecção. Terminadas as aulas, seus alumnos,
entre os quaes muitas moças, cercavam-no para tratar de assumptos sociologicos,
como se quizessem prolongar a lição.
No anno passado, Portugal e a Africa destacariam melhor para mim a poderosa
irradiação de Gilberto Freyre. Tive a impressão de já conhecer as regiões por onde
andei, de tal fórma de ajustam á realidade as observações do autor de "O Mundo que o
portuguez creou" Guardadas as differenças ecologicas, seus estudos sobre o Brasil são,
em geral, estudos sobre quasi todas as zonas de formação lusa. Principalmente Cabo
Verde. Ali encontrei seus livros bem annotados, considerando-o os intellectuaes da
terra um sociologo tão nosso como delles. Não fiz, emfim, a viagem sózinho. Gilberto
Freyre foi um excellente companheiro de todos os dias, indicando-me os aspectos que
tanto me interessariam como brasileiro e luso-descendente.
Autoridade
Entrevistado pela segunda vez Gilberto Freyre. Elle tem sempre alguma coisa de
novo a dizer, mesmo publicando seis livros num anno, como fez em 1940, e
escrevendo semanalmente para jornaes. Sua recente viagem ao Rio Grande do Sul,
deu-lhe margem a observações da mais alta importancia para o destino do Brasil.
Mas a autoridade não decorre apenas do seu saber. Origina-se tambem da sua
independencia moral, da sua dignidade, da sua elevação. Vive ainda hoje dos seus
livros. Não tem empregos. Não pede nada.
- Estou com um livro ha pouco saido: O mundo que o portuguez creou – disse-me.
E ainda este mez deve apparecer o Região e tradição, com prefacio de José Lins do
Rego e illustrações de Cicero Dias. Acaba de ser publicado a Introdução ás Memórias
de um Cavalcanti.
- E em preparo.
- Além desse trabalho, me dedico neste momento a tres outros estudos de carater
antropologico ou historico-social. Um é Ordem e progresso. O segundo, uma
introdução ao estudo da historia do Brasil. O outro, Aspectos da influencia ingleza no
Brasil.
"Ordem e Progresso"
Criticos
- Prefiro não commentar essas criticas de resto muito bem respondidas, algumas
por antecipação, pelo illustre mestre francez e sociologo authentico que é o professor
P. Arnousse Bastide, no prefacio, ou antes, no estudo critico, com que honrou meu
ensaio Um engenheiro francez no Brasil. Limito-me a repetir aqui, em conversa, o que
já tenho escripto: que não publiquei até hoje obra na qual me sentisse obrigado a uma
impersonalidade rigorosa (se é que é possivel tal impersonalidade) de expressão
scientifica e technica, semelhante a que procuro seguir nas minhas aulas, como você
bem sabe, como sabem todos os que as tem assistido, todos os meus estudantes no
Brasil ou nos Estados Unidos. Nos livros até hoje publicados tenho procurado fazer
obra de antropologia, psychologia e historia sociaes ou de sociologia genetica, sobre
base brasileira. Obras de applicação, ou antes, de seleçcão de material dentro não só
de hypotheses como de pontos de vista novo. Portanto, obras de attitude ou de
expressão pessoal ao lado da possivelmente scientifica. É natural que em taes
trabalhos o elemento chamado artistico ou poetico, de que posso dispor, appareça
para cooperar com o outro o scientifico, por meio de um lyrismo de synthese que não
sacrifique a analyse desapaixonada e prosaica. Mas se o trabalho que estou
procurando realizar com material brasileiro fôr só de escriptor com treino sociologico
ou antropologico, ainda assim poderá ter algum interesse. Se por ser demasiadamente
subjectico, tiver apenas significação para os que se interessam sympathicamente pelo
desenvolvimento e expressão do Brasil dentro de taes ou quaes tradições ou valores
de cultura, ainda assim não terá sido em vão. Mas quando um homem como Metraux
se larga dos seus cuidados para querer ser o traductor de um livro como Casa-Grande
& Senzala para o inglez, acredite que chego a pensar que o mesmo livro talvez tenha
um interesse realmente scientifico e cultural, ao lado do brasileiro. Desculpe a vaidade
mas estou lhe falando com franqueza.
Romance e Sciencia
- Permitta que lhe recorde o seguinte: esses livros por uns considerados maçudos,
têm sido descriptos por outros, ás vezes ironicamente, como "romances". No que não
vejo nada de deshonroso. Imagine que eu mesmo, na these, em inglez, que apresentei
á Universidade de Columbia e que foi o esboço remoto de Casa-Grande, lembrei, no
curto prefacio, aquellas palavras dos irmãos Goncourt: "L’histoire intime... ce roman
vrai". E isso foi acceito por professores de uma Faculdade conhecida pelos seus
especialistas em sciencias sociaes. É que "romance", como "poesia", tem seu sentido
bom e não apenas o de fantasia e de sentimentalidade para os verdadeiros estudiosos
de sciencias sociaes.
- Voltando á sua pergunta direi que é uma techinica que ás vezes se approxima,
com effeito, da daquelle typo de romance psychologico ou historico, a que não repugna
a disciplina scientifica na observação dos factos e no estudo da acção do tempo sobre
as pessoas. Quer que lhe confesse uma coisa – Uma das grandes inluencias sobre
minha formação foi de um romancista.
Minucias
Nova pergunta ousada, José Lins do Rego olha-me como se eu o houvesse irritado
com ella.
- Dizem tambem alguns criticos que seus estudos não são exhaustivos, emquanto
outros os accusam de minuciosos demais...
- Exhaustivo não tenho procurado ser, excepto com relação a um outro ponto.
Tenho tentado principalmente "sugerir". Quanto a minucias, procuro ver, através de
alguns factos miudos e apparentemente sem importancia da historia intima do Brasil,
traços significativos, porém escondidos, do caracter da nossa gente. E tanto quanto
possivel, tenho procurado contribuir para o estudo dos processos sociaes e da natureza
humana em geral, através de estudos geneticos limitados a regiões brasileiras.
Os Jesuitas
- Prefiro não discutir este ponto. Apenas lhe direi, da minha posição em face da
obra jesuitica no Brasil, que, se parece de má vontade é primeiro, porque separa os
objectivos da Companhia de Jesus das tendencias do colonizador portuguez (do
particular e tambem do governo), que resultaram num Brasil plural na sua cultura e
democratico em sua estructura social; segundo, porque me afasta da corrente
fervorosamente apologetica da obra da Companhia no Brasil, a que ensaistas illustres
como Eduardo Prado e Nabuco deram tanto prestigio. Mas se ha um admirador sincero
do esforço missionario do jesuita no nosso paiz, da sua capacidade de organização, da
maneira porque os padres da S. J. contribuiram para o desenvolvimento das sciencias,
do ensino e mesmo das artes e officios entre nós, seu eu. Esta, minha attitude de
intellectual. Como homem ou particular, não tenho – desculpe a fanfarronada – a luta
em que os jesuitas estão empenhados contra mim.
Revistas
Tranquilize-se o amigo numero um de Gilberto Freyre. Minha curiosidade volta-se
agora para as revistas que elle vae dirigir.
- E a outra revista?
- E a expressão "eixo Porto Alegre-Recife", que está sendo usada para definir a
combinação de esforços para crear essas revistas?
Intercambio Cultural
A Hespanha
- Com a Hespanha?
Exigencias ao Neo-Brasileiro
- E como essa orientação affectaria o brasileiro que, nos seus livros e artigos, é
denominado neo-brasileiro, isto é, colono ou filho de colono italiano, allemão, polonez,
etc?
- "Notavel, por uma serie de traços que herdamos da cultura portugueza. A lingua
allemã falada por colonos allemães no sul rapidamente se enche de palavras
portuguezas. Velhas festas do catholicismo luso-brasileiro como a da laranja, em Santa
Catharina, acabam attraindo colonos allemães de formação protestante. Entretanto,
esse poder de assimilação correrá o risco de tornar-se de todo ineficiente cada vez que
o immigrante se encontre em condições economicas e hygienicas largamente
superiores ás do brasileiro velho. Foi para esse ponto que chamei a attenção dos meus
amigos do Rio Grande do Sul e de Santa Catharina, inclusive os interventores dos dois
Estados que me dão a impressão de administradores attentos aos problemas sociaes
mais sérios do governo e não apenas aos burocraticos e urbanisticos.
No Rio Grande do Sul, tornou-se claro que as populações de áreas como a fronteira
e as "missões" e as de certos trechos do litoral, nas quaes meu amigo o hygienista
Manuel Ferreira encontrou ha pouco condições sanitarias pessimas, merecem cuidados
especiaes da parte da administração nacional e estadual, no sentido de medidas que
favoreçam maior equilibrio na alimentação popular e melhor hygiene, em geral. Fiacrá
assegurado o desenvolvimento, o vigor e, por inclusão, o poder de assimilação do
velho elemento brasileiro daquella parte do Brasil, em face do neo-brasileiro".
Peço por fim a Gilberto Freyre sua impressão do momento intellectual brasileiro?
Source: Entrevista concedida a Arnon de Mello e publicada no Diário de Pernambuco de 12 de janeiro de 1942.