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ENTREVISTA COM GILBERTO FREYRE

Entrevista concedida a Arnon de Mello e publicada no


Diário de Pernambuco de 12 de janeiro de 1942.

Através dos Diários Associados, o autor de Casa-Grande & Senazala responde aos
críticos de sua obra e analysa problemas da mais alta importancia para o Brasil.

Verdadeira Revolução

Com Gilberto Freyre operou-se uma verdadeira revolução. Quebram-se padrões


antigos. Seus methodos de investigação social eram novos. Elle ia buscar os elementos
que nos explicassem nas proprias fontes, alheio ao zabumba do modernismo, fez-se
centro de um movimento que não era, nem do apologia nem de ataque. Situava-se no
plano dos que estudam seriamente as coisas para defini-las e esclarece-las. Destacou
valores. Ganhou autoridade. Mas quando apparece com o seu primeiro livro, é para
"limitar-se a procurar certos aspectos da formação patriarchal da familia brasileira, às
vezes aventurando-se a interpretações". E estreava com "Casa-Grande & Senzala",
livro que enche o decennio que findou. Não se pode conhecer melhor o Brasil sem ler
Gilberto Freyre, e é difficil dizer qualquer coisa de novo sobre a nossa formação, sem
repeti-lo.

Influencias

Luiz Jardim fala, no prefacio de "Artigos de Jornal", da formidavel influencia


exercida por Gilberto Freyre sobre um grupo de escriptores e artistas de Pernambuco,
incluindo-se elle proprio entre estes. E José Lins do Rego é ainda mais positivo: "A elle
devo os meus romances, ao seu constante e benefico convivio o animo para não parar,
não desistir. Foi assim com seus grandes amigos Olivio Montenegro, Cicero Dias, M.
Bandeira, Luiz Jardim, Sylvio Rabello, Luiz Cedro". "Escrevo sobre elle e quasi falo de
mim mesmo, tanto me sinto obra sua, tanta influencia exerceu sobre a minha pobre
natureza, tão sujeita aos ventos e aos tormentos das tempestades".

Essa influencia ganhou extensão, e mesmo os que, vencidos pelo seu


apparecimento, viram revogado um passado de largos annos, ja sentem a sua
presença e perdem a liberdade de insistir nos erros.

Curso de Sociologia

Em 1936, fui assistente do curso de sociologia que elle deu na Universidade do Rio
de Janeiro, depois de ensinar na Universidade de Stanford, e antes de dar cursos nas
Universidades de Columbia, Michigan, Western Reserve. Suas aulas despertam o mais
vivo interesse em todos nós. Não havia entre elles e seus discipulos essa separação
que deshumaniza o mestre. Ouviamo-lo como se tratasse de um companheiro de curso
que se houvesse agigantado no estudo. Elle nos falava simplesmente, dizendo-nos
grandes coisas num fraco tom de voz, com uma modestia que era um pedido de
perdão da sua sabedoria á nossa ignorancia. E nos communicava um extraordinario
enthusiasmo pelos estudos de sua predilecção. Terminadas as aulas, seus alumnos,
entre os quaes muitas moças, cercavam-no para tratar de assumptos sociologicos,
como se quizessem prolongar a lição.
No anno passado, Portugal e a Africa destacariam melhor para mim a poderosa
irradiação de Gilberto Freyre. Tive a impressão de já conhecer as regiões por onde
andei, de tal fórma de ajustam á realidade as observações do autor de "O Mundo que o
portuguez creou" Guardadas as differenças ecologicas, seus estudos sobre o Brasil são,
em geral, estudos sobre quasi todas as zonas de formação lusa. Principalmente Cabo
Verde. Ali encontrei seus livros bem annotados, considerando-o os intellectuaes da
terra um sociologo tão nosso como delles. Não fiz, emfim, a viagem sózinho. Gilberto
Freyre foi um excellente companheiro de todos os dias, indicando-me os aspectos que
tanto me interessariam como brasileiro e luso-descendente.

Autoridade

Entrevistado pela segunda vez Gilberto Freyre. Elle tem sempre alguma coisa de
novo a dizer, mesmo publicando seis livros num anno, como fez em 1940, e
escrevendo semanalmente para jornaes. Sua recente viagem ao Rio Grande do Sul,
deu-lhe margem a observações da mais alta importancia para o destino do Brasil.

Mas a autoridade não decorre apenas do seu saber. Origina-se tambem da sua
independencia moral, da sua dignidade, da sua elevação. Vive ainda hoje dos seus
livros. Não tem empregos. Não pede nada.

Nesta entrevista toca Gilberto Freyre em assumptos palpitantes, aprofundando-se


algumas vezes em materia sobre a qual eu já antevejo futuros e grandes ensaios seus.

Iniciei a conversa pedindo-lhe informações sobre os trabalhos a que no momento


se dedica.

- Estou com um livro ha pouco saido: O mundo que o portuguez creou – disse-me.
E ainda este mez deve apparecer o Região e tradição, com prefacio de José Lins do
Rego e illustrações de Cicero Dias. Acaba de ser publicado a Introdução ás Memórias
de um Cavalcanti.

- E em preparo.

- Em preparo a Introdução á Sociologia, escripta de ponto de vista antropologico,


com algumas idéias proprias sobre principios e methodos sociologicos e antropologicos
que espero não sejam confundidas de todo com idéias de escolas sociologicas
americanas ou européias e assim utilizadas ou descriptas em livros didacticos e de
divulgação.

- E além da Introdução á Sociologia ?

- Além desse trabalho, me dedico neste momento a tres outros estudos de carater
antropologico ou historico-social. Um é Ordem e progresso. O segundo, uma
introdução ao estudo da historia do Brasil. O outro, Aspectos da influencia ingleza no
Brasil.

"Ordem e Progresso"

Peço a Gilberto Freyre algumas informações sobre Ordem e progresso.


- "É a conclusão – responde-me – da serie iniciada com Casa-Grande & Senzala e
continuada com Sobrados e Mucambos. No terceiro e ultimo volume – Ordem e
Progresso – procurou estudar a desintegração da sociedade patriarcal escravocrata e
as tentativas que houve para reorganiza-la segundo novos moldes e sob a influencia
de theorias, doutrinas e systemas novos. O principal dos systemas parece que foi o
Positivismo: por intermedio de Benjamin Constant agiu paradoxalmente, como nos
lembrava outro dia o illustre general Góes Monteiro, no proprio sentido anti-militar.
Tambem houve a influencia de suggestões anglo-americanas, que começaram então a
agir sobre bôa parte de brasileiros cultos: sobre sua cultura no sentido sociologico da
palavra.

Para ter um apoio novo, em documentação de valor ao mesmo tempo historico-


social e psychologico, qualitativo e quantitativo, venho reunindo ha dois annos auto-
biographias de brasileiros representativos, maiores de cincoenta annos, que
participaram do periodo mais agudo de desintegração da sociedade escravocrata e
patriarchal ou soffreram as primeiras influencias novas, na meninice ou na mocidade. É
claro que, sociologicamente, o periodo agudo de desintegração não parou em 1888 ou
em 1889 mas veiu aos ultimos annos do seculo dezenove, aos primeiros do vinte.
Reunir tal material tem sido um trabalho enorme. Mas asseguro-lhe que valeu a pena
tentar coisa tão difficil. Já tenho commigo respostas interessantissimas, de brasileiros
de varias origens, profissões e regiões. Já tenho umas cento e cincoenta respostas.
Quero chegar a duzentas, para fazer então uma selecção no sentido do material mais
typico ou do mais representativo, dentro dos propositos do livro. É uma tentativa que
visa tirar o maximo de proveito historico-social e sociologico de material biographico e
psychologico. Teechnica esboçada aliás no Um engenheiro francez no Brasil que
publiquei ha pouco. E é claro que não abandonarei o uso sociologico e historico-social
dos annuncios de jornaes, tão bons para tornar visivel, através do tempo, a
continuidade do geral no particular, do impessoal, no pessoal.

Criticos

Fico um ponto serio:

- Alguns criticos o accusam de estar fazendo obra literaria, de arte historica ou


simples e não de sciencia social ...

Gilberto Freyre não se altera:

- Prefiro não commentar essas criticas de resto muito bem respondidas, algumas
por antecipação, pelo illustre mestre francez e sociologo authentico que é o professor
P. Arnousse Bastide, no prefacio, ou antes, no estudo critico, com que honrou meu
ensaio Um engenheiro francez no Brasil. Limito-me a repetir aqui, em conversa, o que
já tenho escripto: que não publiquei até hoje obra na qual me sentisse obrigado a uma
impersonalidade rigorosa (se é que é possivel tal impersonalidade) de expressão
scientifica e technica, semelhante a que procuro seguir nas minhas aulas, como você
bem sabe, como sabem todos os que as tem assistido, todos os meus estudantes no
Brasil ou nos Estados Unidos. Nos livros até hoje publicados tenho procurado fazer
obra de antropologia, psychologia e historia sociaes ou de sociologia genetica, sobre
base brasileira. Obras de applicação, ou antes, de seleçcão de material dentro não só
de hypotheses como de pontos de vista novo. Portanto, obras de attitude ou de
expressão pessoal ao lado da possivelmente scientifica. É natural que em taes
trabalhos o elemento chamado artistico ou poetico, de que posso dispor, appareça
para cooperar com o outro o scientifico, por meio de um lyrismo de synthese que não
sacrifique a analyse desapaixonada e prosaica. Mas se o trabalho que estou
procurando realizar com material brasileiro fôr só de escriptor com treino sociologico
ou antropologico, ainda assim poderá ter algum interesse. Se por ser demasiadamente
subjectico, tiver apenas significação para os que se interessam sympathicamente pelo
desenvolvimento e expressão do Brasil dentro de taes ou quaes tradições ou valores
de cultura, ainda assim não terá sido em vão. Mas quando um homem como Metraux
se larga dos seus cuidados para querer ser o traductor de um livro como Casa-Grande
& Senzala para o inglez, acredite que chego a pensar que o mesmo livro talvez tenha
um interesse realmente scientifico e cultural, ao lado do brasileiro. Desculpe a vaidade
mas estou lhe falando com franqueza.

Romance e Sciencia

Outra pergunta que pede resposta mais alongada:

- E a technica geral dos seus livros do typo de Casa-Grande & Senzala e de


Sobrados ?

- Permitta que lhe recorde o seguinte: esses livros por uns considerados maçudos,
têm sido descriptos por outros, ás vezes ironicamente, como "romances". No que não
vejo nada de deshonroso. Imagine que eu mesmo, na these, em inglez, que apresentei
á Universidade de Columbia e que foi o esboço remoto de Casa-Grande, lembrei, no
curto prefacio, aquellas palavras dos irmãos Goncourt: "L’histoire intime... ce roman
vrai". E isso foi acceito por professores de uma Faculdade conhecida pelos seus
especialistas em sciencias sociaes. É que "romance", como "poesia", tem seu sentido
bom e não apenas o de fantasia e de sentimentalidade para os verdadeiros estudiosos
de sciencias sociaes.

- De modo que voltando á techinica dos seus livros do typo de "Casa-Grande" e


"Sobrados"...

- Voltando á sua pergunta direi que é uma techinica que ás vezes se approxima,
com effeito, da daquelle typo de romance psychologico ou historico, a que não repugna
a disciplina scientifica na observação dos factos e no estudo da acção do tempo sobre
as pessoas. Quer que lhe confesse uma coisa – Uma das grandes inluencias sobre
minha formação foi de um romancista.

- Segundo José Lins do Rego, Pater, Water Pater...

- É facto, Pater, de quem me separam tantos antagonismos, foi uma grande


influencia sobre minha formação. Mas quero me referir a outra influencia, talvez maior,
que me approxima daquelle typo de romance: a de George Merdith. A do Meredith
para quem a "arte do romance" era obra de "historia interior do sêr humano" –
techinica que depois se aprofundou e aperfeiçoou em Proust. E essa historia "comica",
segundo a idéia de comedia de Meredith: historia "comica" que se distingue por um
sentido de "essencial humanidade". Foi Meredith quem primeiro procurou ver, através
do romance, na natureza humana, as lutas incessantes que a fazem profundamente
dramatica e, no sentido mais alto da expressão, comica. Depois, como disse, é que
Proust aperfeiçoou esse typo de romance que é também um typo de historia social e
psychologia. Ora, para os estudiosos modernos de assumptos sociaes, a natureza
humana é um resultado de vida social, de passado, de herança, de continuidade, de
elaboração, de cultura, que para ser compreendida tem de ser estudada no seu
ambiente, no seu meio, nas suas raizes sociaes e não apenas biologicas e na sua
chamada synthese dramatica: a personalidade. D’onde a importancia, para tal
compreensão, do methodo anthropologico-social, do ecologico, do historico, do
psychologico, do biographico, indirectamente seguido por alguns romancistas por
Proust, por exemplo. D’onde o facto, por outro lado, de resultarem uma especie de
romances, animados por um sopro de construcção artistica, arbitraria mas necessaria
para um livro começar e findar de alguma maneira, varios estudos scientificos sobre
grupos sociaes ou sobre manifestações mais densas da natureza humana interpretada
segundo a "attitude" – note bem, a attitude – do psychologo, do sociologo, ou do
anthropologista social que retrata taes grupos ou crises sociaes. Ora, quando ha
"attitude", ha philosophia e pode haver arte. Mas sem excluir a sciencia como
methodo, como disciplina de estudo dos factos e, em certas zonas, de estudo da
natureza humana, como meio de estender a memoria individual, de alargar a
introspecção pessoal.

Minucias

Nova pergunta ousada, José Lins do Rego olha-me como se eu o houvesse irritado
com ella.

- Dizem tambem alguns criticos que seus estudos não são exhaustivos, emquanto
outros os accusam de minuciosos demais...

Gilberto recebe com prazer a pergunta:

- Exhaustivo não tenho procurado ser, excepto com relação a um outro ponto.
Tenho tentado principalmente "sugerir". Quanto a minucias, procuro ver, através de
alguns factos miudos e apparentemente sem importancia da historia intima do Brasil,
traços significativos, porém escondidos, do caracter da nossa gente. E tanto quanto
possivel, tenho procurado contribuir para o estudo dos processos sociaes e da natureza
humana em geral, através de estudos geneticos limitados a regiões brasileiras.

Os Jesuitas

- E os preconceitos, ou, pelo menos, a má vontade, contra os jesuitas, de que o


accusam?

- Prefiro não discutir este ponto. Apenas lhe direi, da minha posição em face da
obra jesuitica no Brasil, que, se parece de má vontade é primeiro, porque separa os
objectivos da Companhia de Jesus das tendencias do colonizador portuguez (do
particular e tambem do governo), que resultaram num Brasil plural na sua cultura e
democratico em sua estructura social; segundo, porque me afasta da corrente
fervorosamente apologetica da obra da Companhia no Brasil, a que ensaistas illustres
como Eduardo Prado e Nabuco deram tanto prestigio. Mas se ha um admirador sincero
do esforço missionario do jesuita no nosso paiz, da sua capacidade de organização, da
maneira porque os padres da S. J. contribuiram para o desenvolvimento das sciencias,
do ensino e mesmo das artes e officios entre nós, seu eu. Esta, minha attitude de
intellectual. Como homem ou particular, não tenho – desculpe a fanfarronada – a luta
em que os jesuitas estão empenhados contra mim.

Revistas
Tranquilize-se o amigo numero um de Gilberto Freyre. Minha curiosidade volta-se
agora para as revistas que elle vae dirigir.

- Uma – informa-me Gilberto Freyre – com Erico Verissimo, de literatura. O nome


será "Provincia". O programma, o de valorização das energias provincianas no nosso
paiz. Lembra-se daquellas observações de Goethe sobre a sua querida Allemanha?
Goethe, já velho, regosijava-se com o esforço no sentido da unidade allemã.
Regosijava-se com o facto de boas estradas novas estarem approximando os varios
Estados allemães. Com o facto, também, de terem desapparecido barreiras inter-
estaduaes de policia e alfandega. Mas não desejava que a unidade allemã consistisse
em fundar-se um grande imperio com uma grande capital, deixando-se a grande
capital comer as reservas de espontaneidade, de energia, de vida das provincias. O
Brasil, ao contrario de outros paizes da America e da Europa, apresenta-se com essa
vantagem enorme para o desenvolvimento de uma cultura propria e bem equilibrada:
a de ter provincias creadoras, e não apenas metropole ou metropoles absorventes. As
energias creadoras das provincias precisam apenas de melhor articulação. É o que
tentaremos conseguir.

- E a outra revista?

- Além de "Provincia", mensal, pensamos em fundar "Anthropologia", para sair


duas vezes por anno, dedicada a estudos de anthropologia no sentido mais largo da
experessão. Especialmente a estudos sobre o homem e a cultura do Brasil.

- E a expressão "eixo Porto Alegre-Recife", que está sendo usada para definir a
combinação de esforços para crear essas revistas?

- Uma expressão inexacta, pois o movimento esboçado é de "provincia" em geral e


não de "provincias" em particular. Mas isso não tem importancia. Como expressão
caricaturesca, tem a sua graça.

"Provincia" e "Revista do Brasil"

Já temos, os "Diários Associados", a "Revista do Brasil". Não entrarão em conflicto


os programas das duas revistas?

Gilberto Freyre tira-me o ponto de interrogação:

- De modo nenhum. Provincia será uma revista ao lado da Revista do Brasil,


dirigida com tão elevado criterio por Octavio Tarquinio de Souza. Esperamos, porém,
que Provincia, pelo seu programma, será uma revista de acção mais ampla e de
circulação mais larga nos paizes de lingua portuguesa e de lingua hespanhola. Muito
interessantes as suggestões, nesse sentido, de uma carta que recebi ha pouco do meu
velho amigo Sylvio Rabello, que no seu canto de provincia vem realizando uma obra de
especialização de estudo de psychologia que talvez seja a mais consideravel no paiz; e
que agora mesmo entregou a José Olympio os originaes de um livro forte e honesto
sobre as idéias e a personalidade de Farias Brito. Leia este trecho da carta de Sylvio
Rabello: "Veja se será possivel tratar em cada numero de assumptos relacionados com
a vida nacional e igualmente se será possivel por meio della fazer uma approximação
com os paizes ibero-americanos – tão distantes de nós – através de algumas secções
permanentes e de estudos especiaes. Esse continentalismo, estou certo de que você e
Erico terão pensado nelle. O provincianalismo de Provincia ha de comportar toda
tentativa de ampliação e de compreensão da vida brasileira, sem prejuizo das suas
relações com o resto da America e com o mundo, como aliás você indica na
conferencia lida em Porto Alegre: "Ilha e Continente". Veja tambem esta carta de um
intellectual bahiano – e não esqueça de que na Bahia e em Sergipe existe hoje um
grupo bem interessante de escriptores jovens e de estudiosos sérios de assumptos
brasileiros – na qual se exprime a mesma sympathia pela idéia de conciliação de um
bom continentalismo, que nos approxime não só dos ibero-americanos como dos
escriptores mais novos dos Estados Unidos. E mais essa outra carta, de Santa
Catharina de um pesquisador do passado brasileiro naquella área meridional, um
jovem cheio de possibilidades, que toca no mesmo assumpto. E com effeito Provincia
pretende se estender o mais possivel á Hespanha, a Portugal, aos paízes de lingua
portugueza e hespanhola e aos Estados Unidos.

Intercambio Cultural

- Ainda a semana passada conversamos sobre o assumpto com o embaixador


Baptista Luzardo, que se mostrava enthusiasta ao programma de Provincia...

- Precisamente. E Provincia como mais tarde, Anthropologia, espera reunir as


sympathias de brasileiros eminentes em varios campos da actividade como, no da
dipomacia preoccupada como os problemas de intercambio cultural, o embaixador
Luzardo, que, nesse sentido, tão bons serviços vem prestando ao nosso paiz, e como
Roquette Pinto, scientista cujo prestigio é hoje internacional. Poderia mencionar varios
outros que, estou certo, nos prestigiarão com a sua sympathia, o seu interesse e a sua
colaboração intellectual e scientifica. E pelo que tenho conversado, sobre assumptos
geraes de estudos brasileiros e de literatura, como o presidente Getulio Vargas, -
sempre tão attento ao que se escreve e ás pesquisas de interesse cultural que se
realizam no Brasil, - com os srs. Oswaldo Aranha, Gustavo Capanema, Lourival Fontes,
- estou certo de que olharão com sympathia para iniciativas como a de Provincia e a de
Anthropologia. Sendo iniciativas particulares e independentes resultarão, entretanto,
no melhor conhecimento do Brasil pelos brasileiros e na nossa maior approximação
intellectual com os paizes americanos, com Portugal e com a Hespanha.

A Hespanha

- Com a Hespanha?

- Com a Hespanha de sempre, a que, depois de Portugal, me parece a nação


européia que mais nos deve interessar do ponto de vista das raízes da nossa cultura.
Digo de sempre porque sou dos que acreditam na sobrevivencia da Hespanha como
um dos grandes valores culturaes do mundo que fez nascer a America e aqui se
prolongou, adquirindo novos aspectos e perdendo preconceitos antigos. A proposito da
Hespanha, como a proposito de Portugal, poderia lhe recordar que ambos nos
offerecem exemplos da vantagem de bom provincianismo como fonte da energia
creadora que, em intensidade, foi a tão altas obras de literatura, de sciencia, de
mystica, de architectura, de pintura, e, em extensão, espalhou-se por tantas terras,
sem o minhoto deixar de ser minhoto, nem o açoriano, açoriano, nem o andaluz,
andaluz. Minhotos e açorianos e, ao mesmo tempo, bons portuguezes, vigorosos
hispanos e christãos no sentido mais universalista da palavra. É que como já disse um
vez o sr. Francisco Campos, num dos seus discursos, a "universalidade não é uma flor
de raizes aereas, mas subterraneas e profundas". E é desse illustrado minerio uma das
advertencias mais claras que já se fizeram entre nós contra o perigo de se quebrarem
os vinculos essenciaes que prendem o homem á terra, á casa, á paysagem moral.
Poderiamos acrescentar: que prendem o brasileiro á provincia no sentido mais largo de
provincia, isto é aquele que significa maior apego da pessoa á terra commum pelo
apego particular á terra do nascimento, nunca sacrificada a nenhum metropolitanismo
ou internacionalismo absoluto ou a um patriotismo puramente politico.

Exigencias ao Neo-Brasileiro

Levo Gilberto Freyre para um assumpto de importancia fundamental para o Brasil:

- E como essa orientação affectaria o brasileiro que, nos seus livros e artigos, é
denominado neo-brasileiro, isto é, colono ou filho de colono italiano, allemão, polonez,
etc?

- Creio que do neo-brasileirismo devemos exigir, proporcionando-lhes os meios de


se juntar á nossa vida e cultura tradicional, é claro, o mais rapido abrasileiramento
possivel não só civico e politico como cultural. No Brasil não deve haver logar para
racismos e outras ideologias anti-brasileiras. E aqui repito o que disse ao voltar no
começo de 1940, da minha primeiro viagem ao Rio Grande do Sul e Santa Catharina:
nesse sentido, a obra do Exercito é efficiente e symphatica. Seria absurdo admittirmos
no neo-brasileiro, o direito de florescer, em grupos macissos ou compactos, á parte da
cultura basica e essencial do Brasil que é a luso-brasileira e a do sentimento e fórmas
christãs. Seria absurdo reconhecermos no polonez ou no allemão ou no japonez o
direito de aqui viver, em taes grupos, hostil ou simplesmente alheio á lingua
portugueza. Por lado, não me parece acertado exigir de qualquer neo-brasileiro
naquellas condições o abandono absoluto e immediato de todas as suas tradições, de
todos os seus estylos provincianos de vida (das suas provincias de origem, a grande
maioria delles sendo gente do campo), de suas comidas. Valores, tantos desses,
necessarios para conservar o moral daquelles neo-brasileiros na sua phase de
transição de mundos velhos para um mundo novo; valores, tambem, que poderão ser
incorporados com vantagem á nossa cultura e á nossa vida. Na propria conservação
dos idiomas nativos pelos colonos não vejo mal nenhum mas vantagem para o Brasil,
no caso de idiomas do rico conteudo cultural do allemão ou do italiano, uma vez – este
é ponto que é preciso tornar bem claro – que taes idiomas se conservem não como
substitutos mas como accessorios da lingua tradicional, geral e nacional do Brasil que é
a lingua portugueza. O neo-brasileiro que ignora a lingua portugueza ou a conheça e
não encontre nella o seu meio principal de expressão é um brasileiro incompleto,
necessitado de integrar-se na nossa vida e na cultura brasileira. No sentido de facilitar
essa integração é que tem sido tão symphatica a obra do interventor Nereu Ramos em
Santa Catharina".

Poder de Assimilação da Nossa Cultura

- Que lhe parece o poder de assimilação da nossa cultura e da nossa gente?

- "Notavel, por uma serie de traços que herdamos da cultura portugueza. A lingua
allemã falada por colonos allemães no sul rapidamente se enche de palavras
portuguezas. Velhas festas do catholicismo luso-brasileiro como a da laranja, em Santa
Catharina, acabam attraindo colonos allemães de formação protestante. Entretanto,
esse poder de assimilação correrá o risco de tornar-se de todo ineficiente cada vez que
o immigrante se encontre em condições economicas e hygienicas largamente
superiores ás do brasileiro velho. Foi para esse ponto que chamei a attenção dos meus
amigos do Rio Grande do Sul e de Santa Catharina, inclusive os interventores dos dois
Estados que me dão a impressão de administradores attentos aos problemas sociaes
mais sérios do governo e não apenas aos burocraticos e urbanisticos.

No Rio Grande do Sul eu observara, na minha primeira viagem, que as zonas de


neo-brasileiros, isto é, as chamadas zonas coloniaes, allemã e italiana, vinham levando
vantagens consideraveis sobre as zonas de brasileiros velhos, do littoral, da fronteira e
das "missões", pela suz alimentação melhor e mais equilibrada, com fartura de leite,
manteiga, queijo e legumes, e pelas suas melhores condições hygienicas ou antes
euthenicas. Essa observação vem sendo confirmada por inqueritos minuciosos
realizados naquella região brasileira. Os contrastes na alimentação, entre as varias
áreas do Rio Grande do Sul, são claramente demonstrados por taes inqueritos ainda
incompletos. Aliás, esses contrastes vêem sendo revelados noutras regiões brasileiras
pelo inquerito geral sobre a alimentação dos collegiaes brasileiros, de iniciativa do
Ministerio da Educação e Saude.

No Rio Grande do Sul, tornou-se claro que as populações de áreas como a fronteira
e as "missões" e as de certos trechos do litoral, nas quaes meu amigo o hygienista
Manuel Ferreira encontrou ha pouco condições sanitarias pessimas, merecem cuidados
especiaes da parte da administração nacional e estadual, no sentido de medidas que
favoreçam maior equilibrio na alimentação popular e melhor hygiene, em geral. Fiacrá
assegurado o desenvolvimento, o vigor e, por inclusão, o poder de assimilação do
velho elemento brasileiro daquella parte do Brasil, em face do neo-brasileiro".

Formidavel Obra de Construcção

- "Esse é um problema de grande importancia para o nosso paiz e regosijo-me de


ter podido contribuir para o seu esclarecimento, com as observações colhidas na
viagem que no começo de 1940 realizei ao extremo Sul, isto é, ao sul de São Paulo,
Paraná, Santa Catharina e Rio Grande do Sul. E é para o estudo scientifico e technico
de taes problemas que me parece necessaria a revista "Anthropologia", que planejo e
para a qual conto com o concurso dos que entre nós e no estrangeiro se occupam com
seriedade e competencia de assumptos relacionados com as condições de vida e de
cultura não só do homem brasileiro em particular, como do homem tropical e semi,
tropical, em geral.

Repare como é formidavel a obra brasileira de construcção de uma civilização


moderna em terra em grande parte tropical e como é pequeno o estudo scientifico e
technico dos problemas relacionados com essa obra de pioneiros. Os problemas da
alimentação, da casa, do vestuario, do "sport", adequado ás condições de vida que nos
são peculiares. Aliás, sobre o "sport" um medico intelligente, antigo assistente do
professor Alvaro Osorio, o dr. Couto e Silva vem reunindo observações interessantes.

Tambem sobre o problema da casa. E sobre o da alimentação, destacam-se


estudos como os do professor Silva Mello,orientados por um criterio nitido de
adaptação dos modernos conhecimentos scientificos ás condições de vida e do
desenvolvimento do brasileiro e pesquisas como as de Ruy Coutinho sobre a diéta dos
escolares nas varias regiões do Brasil. Impõe-se, porém, a creação de uma revista
onde essas actividades dispersas se encontrem, completando, se os estudos medicos
com os dos sociologos, as pesquisas dos especialistas em anthropologia physica com
as dos especialistas em anthropologia social ou cultural. É o que procuraremos
conseguir com "Anthropologia", a revista que projectamos fundar depois de
"Provincia", que será revista literaria, como já destaquei, emquanto a outra terá
caracter accentuadamente scientifico".

O Movimento Intellectual Brasileiro

Peço por fim a Gilberto Freyre sua impressão do momento intellectual brasileiro?

- Creio que continuamos a atravessar uma phase que ha de ficar na historia da


cultura brasileira como uma das mais intensas e significativas: como uma phase
decisiva. Phase caracterizada pela ansia de nos conhecermos com corajoso realismo
não só scientifico como literario e artistico e de nos interpretarmos para darmos então
o nosso proprio rumo á nossa vida, á nossa economia, a nossa politica, á nossa arte,
dentro das nossas tradições, das nossas necessidades e das nossas possibilidades.

Source: Entrevista concedida a Arnon de Mello e publicada no Diário de Pernambuco de 12 de janeiro de 1942.

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