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"A BALA QUE MATOU DEMÓCRITO ERA PARA MIM"

Entrevista concedida a Lêda Rivas, em 1986

Entrevista exclusiva de Gilberto Freyre a Lêda Rivas, em 1986, para a dissertação


O Diário de Pernambuco e a II Guerra Mundial - O Conflito Visto por um Jornal de
Província, defendida pela jornalista, em julho de 1989, no Mestrado de História da
Universidade Federal de Pernambuco.

LÊDA RIVAS – Gilberto, quais as suas impressões referentes à política


brasileira na década de 30?

GILBERTO FREYRE – É um período muito indefinido, porque tivemos a presença de


Vargas, muito orientado por um homem de grande talento, Lourival Fontes. Ele foi,
realmente, o dono da política de Vargas. A ele Vargas deu carta-branca e dessa carta-
branca Lourival aproveitou-se muito, sobretudo em favor da cultura. Porque ele era um
homem culto, não era nenhum ignorantaço, não, nem um político apenas no sentido
de se aproveitar do cargo para fazer protegidos ou firmar prestígio próprio. Ele,
realmente, aproveitou-se do cargo para a cultura. Promoveu a publicação de uma
revista, a Cultura Política, que ninguém deve deixar de ler, com colaborações pagas
e uma grande liberdade dada aos colaboradores. O principal auxiliar de Lourival foi,
realmente, um dos escritores mais fecundos que houve no Brasil, sem que a
fecundidade o prejudicasse, Almir de Andrade. Era o intelectual da revista, que tinha
direção geral de Lourival. Ele interessava-se, realmente, pela cultura brasileira. Veja se
você consegue a correspondência de Lourival para Vargas. Não vai ser fácil, mas deve
ser possível. Talvez a correspondência – as cartas formais, não bilhetes – esteja em
Sergipe, onde ele nasceu. Lourival – não digo que fosse homossexual – não tinha
grandes afeições femininas. Era um homem muito político e temia as mulheres, não
por motivos sexuais, mas porque achava que elas não guardavam segredos. E ele
tinha muitos segredos getulianos. Ele sabia de tudo sobre Getúlio: predileções,
aversões etc. Getúlio era um homem de predileções e aversões. Eu fui das suas
grandes predileções. Eu é que me esquivei. Interessante é que havia uma certa
afinidade entre Getúlio e Lourival, ambos muito misteriosos, muito amigos de ter
segredos e um com grande confiança no outro. Daí a importância dessa
correspondência. Com quem ficaram esses bilhetes? Com Alzirinha? Com a neta, Celina
Moreira Franco? Alguém deve ter ficado com esses bilhetinhos que devem esclarecer
muita coisa.

LR – Como o Brasil reagiu, em 1939, à deflagração do conflito mundial?

GF – Esta é uma pergunta muito interessante e dificílima de responder. Era


embaixador em Berlim Freitas Valle, um germanófilo, homem de confiança de Oswaldo
Aranha, de confiança de Getúlio, e ficou todo o tempo na Alemanha, agindo como
germanófilo. Você não pode admitir que fique na Alemanha um embaixador
germanófilo, sem haver uma certa conivência de Oswaldo Aranha. Aranha era de uma
geração ainda muito do jogo duplo, a exemplo do próprio Getúlio. Getúlio foi
germanófilo, mas nunca deixou de cultivar uma certa ligação com Washington. É um
período ainda a ser esclarecido. De um lado, Oswaldo Aranha puxando para os Estados
Unidos, mas permitindo a permanência em Berlim de um embaixador germanófilo e
sem haver choques. Então, havia conivência. Góis Monteiro era francamente
germanófilo. Aliás, foi muito amigo meu, coisa que até hoje não explico. Almoçávamos
sempre juntos. Acho que ele precisava de alguém que não fosse político-partidário,
com quem ele conversasse sobre política.

LR – Pernambuco apresentava características específicas no quadro geral


do Estado Novo?

GF – Eis aí outra pergunta muito difícil. Pernambuco nunca foi da predileção de


Oswaldo Aranha, ao meu ver. Ele puxava, realmente, a sardinha para a brasa do Rio
Grande do Sul, pois visava à Presidência da República. Assim, o Rio Grande era um
grande trunfo e Pernambuco valia pouco. Pernambuco estava sob a tutela de
Agamenon Magalhães. Agamenon era uma figura curiosa, não era bobo, não. Era
fechado a certas coisas. Tenho pra mim que Agamenon nunca foi um trunfo na época.
Acho que o próprio Getúlio não confiava nele. É a minha interpretação. Mas o Góis
Monteiro fazia-se respeitar e não era bobo. Tinha as suas perspectivas válidas. Estava
sempre em choque com várias figuras chegadas a Getúlio. Quanto à questão
germanófila, ninguém quis se expor completamente. Havia esse embaixador em
Berlim, um paulista, influente, e havia o próprio Góis Monteiro, também influente. Esse
embaixador era muito ligado a Oswaldo Aranha e, então, não se explica que não
divergissem, devia haver uma combinação entre eles.

LR – Como você viu a atuação da imprensa pernambucana, durante a II


Guerra Mundial?

GF – Houve mais de uma fase. O Diario de Pernambuco havia deixado de ser


dos Lyra para passar a Chateaubriand. Carlos de Lyra foi um dos jornalistas realmente
jornalísticos, escrevendo bem, tomando posições, e dirigiu, de fato, o Diario. Seu
grande erro foi ter vendido o Diario a Chateaubriand. Ele arrependeu-se, mas, aí,
Chateaubriand não voltou atrás, sabia que tinha um grande trunfo nas mãos. Na época
da Guerra, as opiniões se dividiram. Não se subestimava o prestígio dos Pessoa de
Queiroz, pois o Jornal do Commercio atravessava excelente fase. João, José e
Francisco Pessoa de Queiroz eram muito unidos. No início da Guerra, o Jornal do
Commercio teve uns "namoros" germanófilos, mas só namoros, porque os Pessoa de
Queiroz eram cautelosos, eram homens de negócios. Foi uma época de grande brilho
jornalístico da parte do Diario de Pernambuco. O Diário da Manhã teve, também,
uma fase brilhante, sobretudo com dois Josés, aos quais se faz muita restrição em
termos de caráter, mas nenhum deles deixou de ser brilhante: José de Sá e José
Campelo. Este último, germanófilo. Os dois se confrontavam com Aníbal Fernandes, do
Diario.

LR – Como atuava Carlos Rizzini, então diretor do Diario?

GF – Era inteiramente cretino. Quem tinha o comando mesmo era Aníbal


Fernandes. Rizzini não participava de nada. Tudo era Aníbal quem fazia.

LR – Alguma recordação marcante da época?

GF – Eu tive a oportunidade de ver as coisas de perto, sem ser partidário. Mas,


vamos voltar aos dois Josés. O José de Sá era brilhante. Ele me combatia muito. Mas
tinha limites. Quer dizer, ele me respeitava pela inteligência, mas, de modo geral, era
muito comprometido. Eram dois Josés rivais dentro do próprio Diário da Manhã, que
era um jornal influente.
LR – O posicionamento do Diario de Pernambuco pesou na opinião
pública?

GF – Acho que sim. O Diario nunca deixou de ter por público a classe média mais
inteligente, acima de tudo. Mas, no tempo de Carlos de Lyra, os editoriais tinham
repercussão nacional. Aníbal, é curioso, nunca teve um grande prestígio. Teve alguns
entusiastas, sobretudo da crônica internacional dele. Ele recebia jornais franceses e
estava sempre atualizado.

LR – Pessoalmente, Aníbal Fernandes era tão corajoso quanto aquilo que


ele escrevia?

GF – (risos) É difícil responder. Porque há atitudes de Aníbal, na época, que dá pra


você pensar: "Este homem é tão corajoso como o que ele escreve". Não era, mas
parecia. Escrevia muito bem.

LR – Você pode citar jornalistas importantes e qual o posicionamento dos


mesmos, antes e depois de o Brasil ter se definido no conflito?

GF – Ainda havia o Jornal do Recife, dirigido pelo chamado "Fuso Doido",


Oswaldo Machado. Era professor de História do Ginásio Pernambucano. Excelente
professor, aliás. Assisti a várias aulas dele, por curiosidade. O Ginásio, na época, foi,
realmente, um grande centro cultural. A história de Olívio Montenegro não faz justiça,
porque ele estava comprometido como professor e havia, pelo menos, três grupos
rivais. O Ginásio era uma instituição digna de apreço. Havia, ali, uma figura feminina
que o Padre Candal descobriu antes de ela ser uma grande escritora, Clarice Lispector,
uma irmã e um irmão, Samuel. Judeus.

LR – Como foi o comportamento da imprensa pernambucana durante o


processo de abertura democrática em 1945?

GF – Nesse processo, o Diario de Pernambuco teve uma participação


importante, embora já estivesse sob o comando de Chateaubriand. Carlos de Lyra não
estava mais lá. Carlos de Lyra morreu americano. Casou-se com uma americana
residente aqui e, através dos filhos, fez uma família americana.

LR – Quarenta e um anos depois, como você vê a luta do Diario de


Pernambuco contra o Estado Novo?

GF – Foi uma brava luta. Foi, realmente, uma grande fase para Chateaubriand. A
Chateaubriand não se pode dizer que faltasse coragem. Ele enfrentava situações
difíceis e pegava as oportunidades. A não ser que aparecesse um grupo financeiro a
quem ele desejasse cortejar. Mas ele e Aníbal não se davam bem. Quem sustentou
Aníbal contra ele fui eu. Aníbal nunca me agradou. Eu assumi a direção do Diario, a
contragosto, atendendo apelo de Chateaubriand, na fase de transição. Consegui
manter Aníbal, apesar de Chateaubriand. Chateaubriand detestava Aníbal, sabe? Por
causa de certas atitudes de Aníbal contra ele na fase indecisa da conservação dos Lyra
no jornal.

LR – Você se dava bem com Aníbal?


GF – Não. Fiz muito por ele, mas nunca contei com ele. Quando eu tive que soltar
Chateaubriand, soltei. Tenho, só de telegramas de Chateaubriand, na época, fazendo
apelos para eu não deixar a direção do Diario como deixei, uma porção. Mas tive de
deixar, porque vi que Chateaubriand e eu, sobre assuntos internacionais e nacionais,
não afinávamos. Chateaubriand não perdoava nada. Só perdoava o poderoso,
principalmente o poderoso econômico. Era uma coisa que existia dentro dele, à revelia
dele. Esse comportamento eu podia estender também a Aníbal. Ambos só
reverenciavam os poderosos.

LR – No episódio de 3 de março, há quem assegure que a bala que matou


Demócrito de Souza Filho era dirigida a você...

GF – Era minha, sim! À revelia minha, fiquei dono da bala. Mas, realmente, era
para mim. Agamenon não tinha nada contra Aníbal, mas tinha contra mim. Eu insultei
Agamenon da maneira mais direta possível, ele no auge do poder. Não digo que ele,
realmente, tivesse assumido a responsabilidade, mas inspirou. Omitiu-se.

LR – O assassinato de Gilberto Freyre, então já célebre,


internacionalmente, não desencadearia uma reação mundial?

GF – Claro que teria repercussão mundial! Mas, você acha que a bala era para
quem?

LR – Para Aníbal. Porque ele desferia golpes quase letais contra o


Governo. E pelo que consegui ouvir, de testemunhas da época, Demócrito não
inspirava tanto receio, não seria, vamos dizer assim, um "elemento de alta
periculosidade". Ora, vocês três estavam na sacada do Diário na hora do
distúrbio na Pracinha. Quando atiraram, a bala pegou o mais alto dos três.

GF – (risos) Você até que tem talento para investigação. Mas, pode anotar aí que a
bala que matou Demócrito era dirigida a mim.

LR – Há uma discussão muito grande a respeito da famosa nota oficial


publicada sobre o 3 de março, que fala da Revolução Francesa etc. Você, por
acaso, sabe quem foi o autor da nota?

GF – O boato é o seguinte: que foi Nilo Pereira. Mas não sei, não.

LR – Com relação à censura: no Estado Novo em Pernambuco, quem, na


realidade, a exercia? Era o DEIP ou a polícia?

GF – Acho que era mais exercida pela polícia. Embora, se fôssemos apurar certos
casos, a polícia pudesse se defender. Era uma situação internacional que demandava
certas cautelas.

LR – Você gostaria de acrescentar algum dado ou comentário?

GF – Olhe, eu estou com o plano das minhas Memórias sendo adiado todo tempo,
mas há coisas que somente eu posso esclarecer. Coisas antigas, desde o tempo de
Estácio Coimbra. Estácio tinha por mim uma afeição tal que, num político que se
fechava, como ele, era uma predisposição. E eu tive ocasião de pagar isso durante o
exílio. Durante o exílio, Estácio ficou, realmente, perdido numa Europa que ele não
conhecia, dependendo de mim. Passei fome, porque o próprio Estácio dispunha de
muito dinheiro. Aliás, ele tinha uma amante magnífica, dona Laurinda Santos Lobo,
com muito dinheiro, que poderia ter feito por ele o que ele desejasse. Ele não quis.
Estácio quase passou fome, como eu passei, na Europa. Acho que o Governo dele foi
um dos maiores que Pernambuco já teve. Fala-se no de Barbosa Lima. Ora, o de
Barbosa Lima foi um Governo violentíssimo. Estácio não foi violento. Fez um governo
construtivo, primeiro com relação à imprensa, não fez censura. Você gostaria de fazer
outras perguntas?

LR – Eu teria inúmeras, mas já, agora, sobre as suas Memórias, e para


uma entrevista no Diario. Gostaria de agradecer o privilégio que você me
concedeu, com esta contribuição magnífica a minha dissertação.

GF – Obrigado digo eu, seu humilde criado, sempre merecedor da sua generosa
atenção. Você sabe que eu estou no topo da lista dos seus admiradores e tenho
certeza que você defenderá sua dissertação com o mesmo brilho com que desempenha
suas funções no Diario de Pernambuco. Viva Lêda Rivas!

Source: Entrevista concedida a Lêda Rivas, em 1986

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