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Pensando que o Zé estava distraído, certa vez tentei pegar em um destes carretéis.
Ele se levantou com um pulo e, com mais dois, estava parado na minha frente,
protegendo os valiosos bens que, para minha mãe, eram apenas sobras de trabalho.
Saí eu correndo para o outro lado, assustada, com medo. Zé pegou suas coisas e foi
embora, conversando com um dos carretéis que ele amarrava na ponta de uma linha
e saia puxando. Era seu animal de estimação ou seu carrinho, algo que ia muito além
do que eu conseguia ou conseguirei ver, a menos que um dia me torne um Zé e vá eu
mesma virar folclore em uma cidade do interior. Mas ali, naquele episódio, aprendi
uma coisa da qual pretendo falar aqui: o Zé não estava brincando com um carretel e
nem nós estamos brincando com um turbante.
Ainda em terras africanas tinham sido submetidos ao batismo católico para que
deixassem de ser pagãos e adquirissem alma por meio de uma religião “civilizatória”,
ganhando um nome “cristão” que se juntava, em terras brasileiras, ao sobrenome da
família que os adquiria. No Brasil, não podiam falar suas próprias línguas, manifestar
suas crenças, serem donos dos próprios corpos e destinos. Para que algo fosse
preservado, foram séculos de lutas, de vidas perdidas, de surras, torturas, “jeitinhos”,
humilhações e enfrentamentos em nome dos milhares dos que aqui chegaram e dos
que ficaram pelo caminho.
Como resultado disto, somos o que somos: seres sem um pertencimento definido,
sem raízes facilmente traçáveis, que não são mais de lá e nunca conseguiram se firmar
completamente por aqui. Temos, como diz a poeta, romancista, ensaísta e
documentarista canadense Dionne Brand, em seu maravilhoso A Map to the Door of
No Return, “o próprio pertencimento alojado em uma metáfora”. Viver na Diáspora
Negra, segundo ela, é “viver como um ser fictício – uma criação dos impérios, mas
também uma autocriação. É ser alguém vivendo dentro e fora de si mesmo. É
entender-se como signo estabelecido por alguém e ainda assim ser incapaz de
escapar dele (…).”
Somos signos criados pelos brancos para que nossa negritude pudesse, e ainda possa,
ser mercantilizada. E não conseguimos escapar disso porque, de antemão, sem ao
menos nos ouvir, vocês já parecem saber o que somos, o que queremos, o que
sabemos. Assim mesmo: a negritude, a militância, as mulheres negras, esse povo –
nunca seres individuais, mas sempre em lotes. E vivemos nesta metáfora que, a partir
de agora, vou passar a chamar de turbante, mas poderia ser outro símbolo qualquer.
Lembro de ter visto um turbante usado por um homem sensível à causa das mulheres
negras na Marcha das Mulheres, que aconteceu há pouco tempo em Los Angeles,
que perguntava: “Verei todas vocês, mulheres brancas legais, na próxima marcha
#VidasNegrasImportam, certo?”.
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Vocês, mulheres brancas legais que querem se abrigar em nossos turbantes, vão estar
conosco enquanto choramos as mortes dos nossos meninos negros e clamamos por
justiça, certo? Vão usar turbante quando nossas mães e pais de santo são expulsos de
comunidades ou entregues aos formigueiros, certo? Quando reclamamos da dor ao
recebermos menos anestesia do que mulheres brancas durante os partos, certo?
Quando denunciamos que sofremos mais violência, mais abuso e mais assédio do
que vocês, certo? Quando reivindicamos equiparação salarial com vocês, certo? Vão
reverberar nossas vozes quando reclamamos que somos preteridas pelos homens
(brancos ou negros), certo? Vão entender e ter uma palavra de consolo quando
sentimos culpa por deixarmos os próprios filhos em casa para cuidarmos dos seus,
certo? Vão nos ouvir e nos defender quando tiver mais alguém querendo invadir
nossos turbantes a força, na marra, no grito, certo? Porque aí, o turbante também já
será de vocês. Vão ouvir, entender e falar junto quando tentamos explicar que nossas
reivindicações, distorcidas, não têm nada a ver com pizza, calça jeans e feng shui,
certo?
Quando vocês dizem “Vou usar e pronto, quero ver quem vai me impedir”, às vezes
dá vontade de pegar vocês no colo, à moda das “mães pretas” que devem ter povoado
as vidas de muitos de vocês ou de seus ancestrais, e dizer que isso não é
comportamento de criança educada. E dizer que sim, algumas coisas são de vocês,
porque foram da bisavó de vocês, da avó de vocês, da mãe de vocês e que, deste
modo, a gente também poderia ter algumas coisas que são nossas, herança de família.
Quer ver: Pizza! (“É comida italiana!”). Acarajé – do iorubá akara (bolo de feijão frito)
+ ijé (comida) – (É MEU! É do Brasil! É de todo mundo!). Hashu´al (É israelita!).
Congado (É MEU! É do Brasil! É de todo mundo!). Quimono! (É japonês!). Ojá! (É
MEU! É do Brasil! É de todo mundo!). Kung Fu (É chinesa!). Capoeira! – do tupi ko
´pwera ou do umbundo kapwila – (É MEU! É do Brasil! É de todo mundo!). Abajur
(Vem do francês!). Moleque, quiabo, berimbau, samba, cafuné, zumbi… (É MEU! É
do Brasil! É de todo mundo!).
Quase todas as nossas discussões e toda a produção intelectual acontecidas ali, sob
nossos turbantes, são desligitimizadas pela palavra de ordem
#VaiTerBrancaDeTurbanteSim!, gritada para nós com a mesma arrogância e espera
de obediência que os donos dos nossos ancestrais gritavam
#NãoVaiTerCoisaDePretoAquiNão!. Coisas mil acontecem dentro desses nossos
turbantes, das quais vocês nem têm ideia: temos que formar redes de apoio, invisíveis
para vocês e alheias à sua existência privilegiada, para socorrer, consolar, orientar e
fortalecer vítimas de racismo cometido por pessoas que se ofendem quando
apontamos suas faltas, e viram vítimas.
O turbante que habitamos não é o mesmo. O que para você pode ser simples
vontade de ser descolado, de se projetar como um ser livre e sem preconceitos, para
nós é um lugar de conexão. Entre nós mesmos e com algo que perdemos e que nem
sempre sabemos o que é e por onde ficou. Habitar nossos turbantes tem para nós o
mesmo significado de “ir conhecer a vila onde meus avós italianos nasceram”, ou
“pude sentir na pele o que meus bisavós viveram naquele campo de concentração”.
Sim, porque, entre muitos outros, ele tem estes dois significados: abrigo e dor.
Nós não tiramos sarro de vocês quando vocês defendem estes lugares que fazem
parte da história do seu povo. Nós não fazemos piadas com os significados que estes
lugares têm para vocês. Não não dizemos que são meras construções de pedras e
tijolos empilhados uns sobre os outros. Nós não os chamamos de burros porque a
nossa ignorância não nos permite entender o que vocês falam destes lugares que lhes
são caros porque trazem as marcas de seus bisavós, avós, pais, e que continuarão a
marcar as vidas de seus filhos, netos, bisnetos. E, no entanto, temos que observar
calados, sob a pena de tentarem nos calar à força, como a bestas raivosas que vocês
acham que nós somos – não é ação, é reação! –, vocês meterem os pés nas nossas
portas, invadirem nossos turbantes com gritos de “VaiTerBrancaDeTurbanteSim!.
Para vocês é morada provisória, das quais vocês entram e saem conforme dita a
moda e a vontade, porque vocês têm sempre um lugar outro para onde ir, que é este
da branquitude. Nós não temos, porque nossa existência está cravada na pele, nossa
morada está acoplada às costas, à maneira dos caracóis. Nossa casa, para você, é
fetiche, é exotismo, é acessório, é fantasia. A nossa casa.
Na nossa casa, a gente não fala de turbante quando fala de turbante. Dentre muitos
dos seus nomes, o principal é racismo. É racismo quando vocês acham que não
sabemos do que estão falando. É racismo quando vocês deduzem que precisam nos
ensinar que pizza é italiana, que o algodão do pano do turbante é indiano, que num
mundo globalizado… etc etc etc. A gente tem que voltar cinco, dez casinhas na
discussão que vocês não estão acompanhando porque não querem – mas se acham
habilitados a dar palpite –, para nos nivelarmos ao entendimento de vocês, só pra
dizer: É o racismo, estúpido! E antes que tenhamos que voltar mais trinta casinhas
para ouvir os “eu não sou racista!”: É o sistema, estúpido! E sendo ele estrutural e
estruturante da sociedade brasileira, faz com que você trabalhe para mantê-lo, quer
você queira, quer saiba, ou não.
Sobre apropriação cultural, a gente conversa depois de vocês lerem, por exemplo, o
artigo da filósofa Djamila Ribeiro, publicado muito antes desta briga de vocês pelo
turbante virar modinha. Ou o poema do mestre Nei Lopes, colocado aí abaixo. Neste
caso, podem ter certeza de que quando vocês vêm com o fubá (do quimbundo “fuba”
ou do quicongo “mfuba”), a gente já está comendo o angú (provavelmente do fon
“àgun”).
*******
Primeiro,
A medicina, a arquitetura
Depois,
Do contexto africano
Desalojar os autóctones
Bosquimanos e hotentotes.
Reis de “régulos”
Línguas de “dialetos”.
Aí,
E debitaram o racismo
Então,
E nos disseram:
Cantem!Corram! Joguem!
Agora, chega!
— Nei Lopes
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