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M I N I C A R T I L H A

DIÁLOGOS COM A IGREJA BRASILEIRA


Cartilha elaborada pelo coletivo antirracista cristão O que
tem no Brasil.

Idealizadores da cartilha: Cainã Lima, Larissa


Florêncio, Lucas Oliveira, Luiz Santos, Maria Paula,
Matheus Teles, Naiara Ashaia e Thaínes Recila.
Uma das formas de exercer
autonomia é possuir um
discurso sobre si mesmo.
Discurso que se faz muito
mais significativo quanto
mais fundamentado no
conhecimento concreto da
realidade (SANTOS
SOUZA, 1983, p. 45).

Figura 1. Mulher em protesto


contra o racismo em São Gonçalo,
no Rio, onde o adolescente João
Pedro, de 14 anos, foi morto
baleado pela polícia.SILVIA
IZQUIERDO (AP). Fonte:
brasil.elpais.com
aPRESENTAÇÃO
Vivendo tempos em que há diversas violências direcionadas para o corpo
negro, compreendemos a importância em falar de maneira acessível
diretamente para a igreja brasileira, que é aquela que abriga diversos
desses irmãos.

Estamos situados nesse momento em Novembro, mês em que ocorrem


variadas campanhas voltadas para consciência negra. No entanto,
entendemos que a reflexão do debate racial não pode ser concentrada em
um período específico do ano apenas, pois assim se está isolando o
assunto e o mantendo sob controle. Aliás, quando se fala em controle não
podemos deixar de mencionar o controle do corpo negro e do próprio
debate racial. Apontar e denunciar esse limite que é dado a vivência desses
indivíduos é fundamental para que tenhamos uma sociedade mais
consciente e próxima da igualdade.

Por fim, entendemos que é necessário despertar. Despertar para as


mazelas que estão estampadas na nossa sociedade e ignoramos em nome
da paz interna, sustentada para que não haja a necessidade de ser vetor de
mudança, para não haver trabalho. Pois, só veremos paz verdadeiramente,
quando meninos e meninas pretos não mais morrerem por bala perdida,
quando trabalhadores que saem da periferia não forem confundidos com
“bandido”, quando mulheres pretas não forem vistas como objeto e meras
serviçais e quando ser preto não for motivo pra se sentir inferior em
nenhuma instância.
[...] Seguimos esperançando dias cada vez mais
inspiradores para as pessoas negras, que afetarão toda
pessoa pertencente a Igreja de Cristo, que também
afetarão qualquer pessoa que tiverem contato, gerando
um movimento de resgate de valorização da vida
humana e do Evangelho acolhedor, celebração da
diversidade identitária e da criatividade divina que nos
fez quem somos (Lima, 2023, p.146).
ÍNDICE
1. AGRADECER POR ESTAR........................ 6

2. A REALIDADE DA MULHER NEGRA NO


BRASIL..........................................9

3. DIGNIFICADOS NO AMOR........................11

4. PODE ALGUMA COISA BOA VIR DE


NAZARÉ?.........................................12
1. AGRADECER POR ESTAR...
MARIA PAULA NASCIMENTO
Sou nascida e criada no interior do meu estado, que é o Rio de
Janeiro. Mas de uns bons anos para cá, desde o período da faculdade,
muitos me questionam se eu sou de algum bairro da cidade do Rio.
Estou tendo a oportunidade de viver a realidade periférica de um dos
maiores complexos aqui do Rio de Janeiro que é o Chapadão,
localizado em Costa Barros na Zona Norte da cidade.

Desde o ano passado eu aprendi a amar esse lugar. Um lugar que de


longe é um cartão postal da cidade, onde todo mundo quer ir. Pelo
contrário... só de ouvir falar as pessoas já se arrepiam, acham que
somos super-heróis por estarmos indo à favela para falar às crianças
e às famílias das mesmas, que Jesus é aquele que pode mudar suas
vidas e que eles precisam ter um relacionamento com Ele.

O ambiente periférico sempre me contagiou, não é à toa que para as


crianças do projeto que eu trabalho, eu sou cria¹ assim como eles.
Com características que diversos crias têm: pintar o pelo da perna e
do braço de loiro, ter cabelo cacheado, ser negra, ir no barbeiro fazer
sobrancelha... que privilégio ser cria!

¹ é uma expressão utilizada nas comunidades periféricas do Brasil para se referir a alguém que nasceu e foi
criado nesse contexto.
Mas há duas semanas atrás, fui atravessada por uma frase que
muitos crias falam e até hoje ando pensando sobre o real
significado disso... Juntamente com a minha equipe, fomos realizar
um evangelismo em um baile funk, (sim, a igreja de Jesus precisa
estar nesses espaços até porque quem está lá dentro não vai tão
cedo ir para dentro de uma igreja), e vivendo toda essa experiência
de perguntar aos crias se eles desejavam uma oração ou uma
conversa, prontamente muitos falavam que sim.

Vemos então um bom cenário, um


lugar improvável, mas com
pessoas disponíveis a ouvir algo da
parte de Deus. E por que estou
falando tudo isso? É neste
momento que irei falar sobre a
frase que ainda ecoa dentro de
mim. Eram poucos crias que
tinham algo para pedir, mas
muitos tinham algo para
agradecer. Agradecer o que? Figura 2. Crianças negras brincando na rua.
AGRADECER POR ESTAR VIVO. Fonte: /averdade.org.br

Repeti essa frase várias vezes... agradecer por estar VIVO. Comecei a
pensar em quantas vezes agradeci por estar viva, mas fiquei me
perguntando qual seria a justificativa para que muitas pessoas falassem a
mesma frase. Talvez, agradecer por estar vivo porque não foi atingido
pela bala perdida ou encontrada, ou porque conseguiu o pão de cada dia
ou pelo fato de que por mais que o discurso “a favela venceu” seja lindo,
esse local ainda é um local de sobrevivência. Quantas crianças, jovens,
adultos e idosos que vivem essa realidade agradecem ao Pai pela dádiva
da vida.
Às vezes, nossa realidade eclesiástica nos anestesia de uma
realidade tão presente, tão frágil que é a vida. Enquanto os dias
passam no calendário e nos ocupamos com tantas coisas, outros vão
marcando o "x" e respirando aliviado por viver.

E agora penso no meu privilégio em ser cria, mas também de


entender que há uma luta constante em ter que me manter bem
dentro de um ambiente na qual eu preciso lutar para estar e mostrar
que é possível viver com Jesus e que Ele nos liberta da opressão
feita pelo Estado, que coopera com ações desumanas em alguns
casos, e que Ele pode dar oportunidade de um futuro melhor para
aqueles que agradecem pelo dom da vida. E você já agradeceu hoje?

Figura 3. Menina negra sorridente,


segurando um pirulito na altura do
olho. Fonte: https://br.freepik.com
2. A REALIDADE DA MULHER NEGRA NO
BRASIL
THAÍNES RECILA
Na casa, nas cozinhas, na área de serviço dos shoppings e nas
avenidas carnavalescas, ali está ela.

Nos noticiários trágicos de morte violenta, nas esquinas do


subemprego, ali está ela. Além de tudo isso, chefiando as famílias
para trazer dignidade para os filhos, também ali ela se encontra.

A mulher negra é, não apenas, a base da sociedade, ela é o próprio


Brasil.
Representa a nossa formação histórica e
social em um misto de força, violência,
coragem e negligência. Ela se impõe como a
raiz de todo o conceito de mudança
estrutural da nação. Não é à toa que Ângela
Davis (2017) afirma que “quando uma
mulher negra se movimenta, toda a
estrutura da sociedade se movimenta com
ela” e é por esta razão que faz-se necessário
um olhar de humanização para uma figura
tão mutilada de dignidade pela história.

Figura 4. Mulher negra com turbante. Crédito: Jacob


Lund - stock.adobe.com
E o primeiro passo para essa humanização é a fuga dos caminhos
previsíveis, o que significa superar o tom paternalista ao lidar com
mulheres negras no Brasil. Não somos definidas pelo essencialismo
que nos destina aos estereótipos da quem serve e da quem é
hiperssexualizada. Muito menos se pode cair nos contos que
parecem positivos daquilo que imaginam ser a figura da mulher
negra do Brasil. A mulher negra do Brasil abriga várias mulheres
em suas especificidades e individualidades, que acabam não
cabendo nos estereótipos. Ela é uma multidão com rosto e olhos.

Em tempos de caixas fixas que insistem em matar aquilo que é


único, a subjetividade é um direito e um meio de humanização.

Sobretudo, a mulher negra é, antes de qualquer coisa, uma filha


amada do Pai pela qual o Cristo, que desceu do céu, morreu em um
madeiro e junto com Seu sofrimento convida todas a participarem
da sua mesa.

E em Sua mesa, todas as pretas que ocupam todos os espaços do


Brasil e, de alguma forma, teceram a história desse país, são
convidadas de honra, recebem anel no dedo, se banham de
perfumes reais, sendo tão diversas quanto únicas em quem são.

Figura 5. Ilustração de mulheres negras ocupando diferentes posições na vida. (Crédito:


Ricardo Gualberto @ricardoninenine/SAÚDE é Vital) originalmente retirada da revista VEJA,
matéria “Nosso lugar: as histórias e os desafios da mulher negra".
3. DIGNIFICADOS NO AMOR
LUIZ SANTOS
O relato da Criação é algo que sempre me encanta quando se é
tratado a respeito da nossa cor e fica melhor ainda quando se alia a
compreensão neotestamentária do amor. Deus nos cria pelo simples
fato de nos amar, nos faz da forma que somos não por uma
consequência aleatória ou mesmo uma decisão arbitrária. Ele nos
cria pensando em cada detalhe, escolhendo a dedo aquilo que irá
nos constituir: a nossa pele, os nossos traços, a família a qual vamos
nascer, a ancestralidade a qual vamos herdar. Tudo isso é pensado
detalhadamente pelo nosso criador por causa de seu grande amor.

Isso gera um sentimento de alegria e pertencimento, de


empoderamento. Afinal, foi ele que nos fez assim por amor e em
nós brota esse sentimento que revela que um Deus que cria tudo
perfeito e belo, nos faz belos e potentes para poder testificar a sua
perfeição na nossa vida, na nossa pele, na nossa cor.

A dor do racismo é algo que nos tira a identidade, nos tira a


dignificação, nos faz ser invisibilizados em muitos lugares e
contextos. Porém é sempre bom lembrar que isso é fruto do pecado
humano, do sentimento egoísta de querer ter nas mãos o poder de
controlar outras pessoas. Mas se nem mesmo nosso Deus, que rege
os céus e o comanda a terra, não tem essa pretensão.
Nós, criaturas, somos finitas e dependemos de Deus para tudo que
se relaciona a nós. Esse Deus é quem nos dignifica, nos faz iguais
em seu amor, amados por ele, vivendo nEle toda a beleza de sermos
nós. Com nossos costumes e culturas aliados à mensagem que Seu
Filho traz, de boas-novas de salvação!

Somos amados pelo nosso Criador e devemos ter orgulho de


testemunhar esse amor em nós como forma de revelar aquilo que
Ele é. A partir daquilo que somos, nós declaramos a beleza do nosso
Deus e mostramos que ele nos fez assim para vivermos em
dignidade e paz. Pois não há nada que descarte o amor dele por nós,
pois isso já existe desde o momento em que fomos criados.

Figura 6. Mulher negra em


cadeira de rodas. Fonte:
www12.senado.leg.br
4. PODE ALGUMA COISA BOA VIR DE
NAZARÉ?
PR. LUCAS OLIVEIRA
Talvez em muitos momentos da sua vida você foi questionado ou
sofreu algum tipo de brincadeira pejorativo por conta do lugar em
que você mora ou morava...Pois é, temos essa mania triste e
problemática de sempre disputar nas entrelinhas sobre quem mora
melhor ou sobre qual lugar é melhor!

O grande problema é que muitas vezes isso pode nos ofender.


Colocam estigmas em nossas mentes e corações que magoam e
trazem sentimentos que podem nos adoecer.

Se você já passou por um momento desses então deixa eu te falar


algo, Jesus passou por isso também durante vários momentos da
sua vida ministerial, durante várias vezes as pessoas questionaram
seu ministério e sua autoridade por conta do lugar que ele vinha. E
isso fica claro quando olhamos para o texto de João 1.43-46:
⁴³ No dia seguinte quis Jesus ir à Galiléia, e achou a Filipe, e
disse-lhe: Segue-me.
⁴⁴ E Filipe era de Betsaida, cidade de André e de Pedro.
⁴⁵ Filipe achou Natanael, e disse-lhe: Havemos achado
aquele de quem Moisés escreveu na lei, e os profetas: Jesus
de Nazaré, filho de José.
⁴⁶ Disse-lhe Natanael: Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?
Disse-lhe Filipe: Vem, e vê.
Natanael fez a pergunta que muitos fizeram internamente e não
tiveram coragem de expor: afinal o que vinha de bom de Nazaré?
Um povoado da periferia de Séforis, que era conhecido como um
lugar que reproduzia os ensinos farisaicos dos judeus de Galileia. O
estigma da cidade só fazia com que Nazaré não tivesse nada de bom
para oferecer!

A forma pejorativa como Jesus foi tratado é semelhante a forma


pejorativa que as várias pessoas periféricas do Brasil são tratadas.
Estigmas são depositados nessa população fazendo com que nosso
olhar seja sempre o pior, o que torna problemática nossa forma de
olhar e entender a realidade desse lugar tão plural e cheio de vida.

Aqui já identificamos um problema gigante, estigmatizamos as


pessoas por vários motivos, seja pelo lugar que mora, pela
etnia/raça, e podemos citar várias outras coisas. O fato é que
sempre estamos colocando algum rótulo nas pessoas.

Rotulamos pessoas pelo que achamos, sem talvez conhecer o lugar


onde a pessoa mora, os espaços que ela frequenta, ou sem entender
a realidade em que ela vive. Somos “umbiguistas” e procuramos
dizer sobre o outro baseado nas nossas formas de olhar o mundo,
esquecendo que devemos olhar através dos olhos de Deus para o
mundo!
Sim, existe uma forma de olhar para mundo que vai além
de nossa forma de entender as coisas, porém essa forma
que constrange e precisa nos mover é como Deus nos
convida a entender as coisas e olhar o mundo!

Figura 7. Foto panorâmica de


periferia. Fonte:
habitability.com.br/
Quanto mais procuramos motivos para nos afastar mais Deus vem e nos
convida a viver uma nova lógica, olhando através de uma ótica diferente
e que faz diferença. Pare para pensar: quantas vezes que você enxergou
alguma coisa de uma forma e descobriu que não era bem daquele jeito?
Em quantas você foi alvo de alguma crítica ou acusação da qual você
sabia que era injusta? Você acha que alguém já se perguntou se poderia
vir alguma coisa boa de você?

Pois é! Somos alvos de dedos, alvos de acusações constantemente,


porém também somos alvos da graça de Deus. E por conta disso que
somos convidados a enxergar de uma nova forma às coisas, por conta
dessa graça, que somos enxergados por um outro olhar, somos
ressignificados, através da Graça, alcançando assim o nosso valor real!

Irmão e Irmã quero concluir nossa reflexão te fazendo duas


perguntas:

1. O que de bom tem saído da sua Nazaré ?


2. O que você tem enxergado ao se olhar no espelho?

Essas perguntas podem parecer bem


abrangentes, porém elas se completam
quando se entende que apesar de ser parte de
uma Nazaré é possível ser instrumento de
transformação na cidade, através do
ressignificar de seus olhos e atitudes, através
da compreensão que você não é aquilo que te
rotulam, ao contrário você é tudo aquilo que
Deus diz que você é!

Deus te abençoe,
Paz é bem!
Pr. Lucas Oliveira.

Figura 8. Foto de homem e mulher sorrindo.


Fonte: br.freepik.com e
www.vittalodontologia.com.br
REFERÊNCIAS
DE OLIVEIRA, Ronan Lima Franco. O SURGIMENTO DAS AFRO-PASTORAIS.
2021. Tese de Doutorado. PUC-Rio.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do


negro brasileiro em ascensão social. Editora Schwarcz-Companhia das Letras,
2021.

TVE Bahia. Angela Davis ao vivo: “Atravessando o tempo e construindo o futuro


da luta contra o racismo”. YouTube, 25 de julho de 2017. Acesso em 26 de
novembro de 2023. Disponível em <https://www.youtube.com/live/2vYZ4IJtgD0?
si=7ASMZdu_EKVeswzt>.
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