nós, mestiços By GABRIEL NASCIMENTO — 8 de setembro de 2021
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O gatilho
Foi numa conversa com minha amiga, a
antropóloga Sarah Nascimento dos Reis, lá nas tantas que, após detonar Antônio Risério, meu esporte número um naquela época, ela me provocou. “Mas nós temos que, nós mesmos, teorizar a miscigenação”.
A miscigenação no Brasil gerou uma carga
gigantesca de pressão discursiva e ontogênica. Sujeitos que até dia desses se viam como brancos, num país que desde antes do fim da escravidão vem produzindo brancos pobres, passaram de uma hora para outra a se ver como negros, erradicando heranças anteriores. Isso levou a um surto tanto na intelectualidade artística quanto no jornalismo supostamente científico, ambos imbuídos de um racialismo clássico. O racialismo clássico, diferente do acadêmico, é aquele que fez com que Nina Rodrigues escolhesse seu corpus de análise na Bahia para afirmar suas teses de degeneração do negro e, principalmente, seus descendentes mestiços. O racialismo clássico, que se traduz em coisas como Não somos racistas, prolifera no mundo atual a vantagem do acadêmico positivista, capturado pelo jornalista autor daquele livro, que é a respeito de usar os dados frios e sem corpo, isto é, sem ontologia, para desmascarar e minorizar os próprios movimentos negros, dizendo que não pode ser bicolor um país de tantos morenos, pardos, amarelos, morenos jambos e marrons bombons.
Eu não podia concordar com os dados ou a
com a discussão justamente pela ausência de corpo negro na discussão. Por outro lado, eu localizava aquela discussão no mesmo rol de um pensamento incomodado com a institucionalização dos movimentos negros organizados no país, que lutaram quase que arduamente para conquistar políticas públicas que foram concedidas quase que como golpe de misericórdia por todos os governos de alguma vertente popular até aqui.
No entanto, e Sarah tinha mesmo razão, era
preciso embarcar na teoria sobre os efeitos da miscigenação na criação de um limbo no país, visto que, uma hora ou outra, falsas polêmicas podiam ser mobilizadas para resolver antigos problemas. Uma delas logo se tornou potencializadora. Quando a cantora Fabiana Cozza foi escolhida para interpretar a eterna Dona Ivona Lara e várias críticas passaram a surgir, pelo fato dela ter cor inegavelmente clara, diferente da cantora mais velha, muitos dos meus amigos mais significativos começaram uma corrente nas redes sociais em apoio à Fabiana. O mais significativo não era a defesa insistente de Fabiana ser ou não negra, mas a pecha de que as pessoas pretas, escuras ou escurecidas, de traços e trejeitos negroides passariam a ter desde então, a de raivosas ou pigmentocráticas. A própria Fabiana, numa saída pouco honrosa, aludiu ao fato de que falar de racismo no país tinha se tornado papo de gente politicamente correta. Ela, que dormiu negra, diz que acordou “branca” por causa da polêmica.
Todas essas falam dão o gatilho para estas
palavras. O racismo no país é anti-preto e suas dimensões fenomenológicas atingem os descendentes diretos de pessoas pretas, as pessoas mestiças negras. Por não serem guardadores de um corpo-espírito negro, as pessoas mestiças se veem na necessidade de invocar teorias estrangeiras, como o colorismo, para justificar sua negritude. Isso tem se dado mais em termos culturais do que raciológicos, como se houvesse mesmo a necessidade de se dizer negro num mundo de racismo anti-preto apenas por argumentos culturais.
Fonte: FreePik
Raízes históricas
O Brasil é um país de discussão sobre
mestiços. Antes mesmo de qualquer rumor sobre colorismo, somos o país que pariu Virgínia Bicudo ou Guerreiro Ramos. Antes disso, mestiços ou pardos mais escurecidos foram responsáveis, como sujeitos já alforriados, por alianças com escravizados. Não se pode, sob a pena de nos enganarmos, esquecer o passado de alguns mestiços que não se marcavam apenas com discurso, mas que tinham corpo-espírito negro em suas lutas.
No auge do racialismo no país, quando Silvio
Romero e Nina Rodrigues divergiam sobre os rumos da nação livre com esses “degenerados”, ou quando Euclides da Cunha fazia experimentações ficcionais anti-pretas e Monteiro Lobato idealizava um país onde brancos não fossem tão oprimidos, boa parte do pensamento social brasileiro se converteu a apenas uma única religião, a do objetivismo científico europeu. Lembremos se tratar de uma época em que São Paulo rompeu com o país, nas intentonas golpistas, e produziu algo como a USP. O Varguismo, supostamente nacionalista, expandiu com sua colonialidade uma visão que nada diferia da experiência uspiana divisionista. Foi aí que se radicou o atual pensamento sudestino que comanda as bases epistemológicas e profundamente racistas do pensamento nacional. Essa “religião” a que me refiro é aquela que, ao invés de estudar as próprias marcas de resistência dos escravizados, passou a racializar o escravizado em oposição ao racialismo clássico, produzindo um culturalismo de brancos que, progressistas, urgiam em entender o que era aquele negro recém-liberto, ao invés de ouvir dele ou dela as experiências que deram a luz a aquilombamentos, guerrilhas, greves ou irmandades negras.
Aí residem as nossas maiores dificuldades.
Por termos sempre sido teorizados por brancos progressistas, temos hoje que responder a esse pensamento, ao invés de construirmos teorias mais próximas aos Brasis reais.
Uma voz em contraposição a esse
pensamento, porém, se ergue através de Guerreiro Ramos (1954), e sua impaciência com o mestiço nordestino. É precisamente aqui no Nordeste onde o mestiço ratifica a visão de que o preto é coisa do passado e oportunamente temos que pensar no futuro. É como pregava João Batista de Lacerda no Congresso Universal das Raças (SCHWARCZ, 2011) ao prever o fim dos negros e mestiços.
Não podemos dizer que a miscigenação deu
certo em sua guinada abertamente genocida, mas também não podemos afirmar que ela deu errado. Precisamente porque, como muito bem lembrou Célia Maria Marinho de Azevedo (1987), o pós-escravidão foi exaustivamente debatido por imigrantistas antes de seu acontecimento real, sendo que esses estudiosos queriam a todo custo substituir os pretos que enegreciam o país.
Interessantemente, as pessoas pretas (a
quem me refiro aqui como as de cor retinta, escura ou escurecida) ainda existem num país a cada dia menos preto. Sendo a população mais afetada diretamente com todo o horror gerado pelo sistema escravocrata, não é a que mais morre numericamente, mas a que mais morre proporcionalmente. Porém, como defendemos até aqui, o racismo antipreto atinge pardos à medida que ele não consegue esconder sua descendência num mundo branco, como o nosso.
No pós-escravidão, o ideal de branqueamento
não pode apenas ser visto como uma figura de alienação. O mundo branco, muito poderoso, não oferece direitos, mas existência em troca de se esquecer o enorme passado, que é o preto brasileiro. Por isso mesmo, a razão de ser da miscigenação não é apenas um desejo infantil pelo branco (que realmente existe como algo gerado a partir da corrosão do ser africano pelo saber ocidental), mas, ainda que não tanto atualmente, mas muito naquela época, um desejo de existência naquele mundo livre, cujos sentidos se confundiam com a brancura.
Esses são os pontos que me fazem perceber
que temos mais elementos para nos posicionarmos nessa discussão, que é como tratamos a miscigenação. Como não podemos evitar, temos que problematizar o ser e o saber que são vociferados como negros em nossa época para decidirmos para onde ir nessa encruzilhada.
O dizer-se negro e o ser negro
(politicamente)
Eu poderia neste momento invocar, ainda que
rapidamente, o linguista. Mas não preciso me alongar. Dizer normalmente está associado a poder pelo ocidente, como se a palavra, essa que exclui desmedidamente, fosse mesmo passível de ser politizada ao ponto de deixar de carregar traços sígnicos de horror para se tornar, ela própria, libertação.
Porém, muito embora eu defenda isso em
trabalho anterior (NASCIMENTO, 2019), as visões cosmogônicas africanas não viam na palavra a ocupação de um lugar de poder, este colonial que conhecemos, mas um rito dito e reproduzido por gerações como guardadores de uma memória ancestral (BÂ, 1982). Por isso, a própria leitura do griô, como alguém sábio e mitificado, é uma leitura por vezes romantizada e ocidental, para não chamar de racista.
É no ocidente, sobretudo a partir da luta pelos
direitos civis dos afroamericanos, que várias das demandas afetivas pela ocupação efetiva e representacionista dos espaços nos atingem em cheio. A palavra para nós, portanto, ganha novas colorações, que vão incorporando, nunca sem estratégias, as próprias visões de raça do colonizador e as transformando em uma razão negra.
O dizer-se negro, portanto, é um dizer-se de
ocupação do poder, mas não necessariamente ancestral. Em que pese a palavra ancestral no país esteja tão carregada de ascendência como origem, aqui estou me posicionando através da defesa de um corpo africano que a cada dia parece mais distante do saber africano. O dizer-se negro é resultado de décadas de luta do movimento negro educador, por exemplo, de onde saíram expressões insuspeitamente pretas da intelectualidade nacional que, com seus corpos africanos, em saber e ser, defenderam suas vidas em nome de uma política onde pardos negroides pudessem se enxergar e passar a lutar pelos direitos dos seus.
A realidade da população mestiça, porém, é
outra. Oprimida pela divisão racial do trabalho, ela sempre responde em direção ao mundo branco. Em que pese o dizer-se seja negro, a disputa do dizer-se com pessoas pretas, guardadoras desse passado que se quer esquecer, é um ato ilocucionário branco, produzido pela ausência de corpo-saber africano.
Obviamente, eu não estou defendendo que
mestiços não guardem descendência fenotípica. Porém, à medida que os saberes africanos passam a ser mitificados, como é o caso da amefricanidade e do pretuguês (sendo o primeiro o retrato de uma Améfrica Ladina culturalmente negra, mas clara em fenótipo, e o segundo uma língua com falares africanos em um país marcado pelo genocídio negro), o ser é dispensável.
Quando o ser é dispensável, o mestiço se
ampara num dizer sem corpo, e passa a agir num discurso ou manifesto sem provocar o caminho que o levou até ali, a miscigenação. Incólume, a miscigenação também é mitificada. Seria como dizer que ela não produziu efeitos raciológicos no seio da própria população negra.
Até aqui não falei sobre colorismo. Isso foi
proposital. O meu interesse aqui é me alongar sobre a crítica ao mestiço que, ao se assumir politicamente, não age politicamente como um negro e passa a disputar o dizer-se com pessoas que sofrem racismo direto, como é o caso das manifestações de ódio que metaforizam na pessoa preta o nome macaco.
Tampouco, como é o caso do uso geral e
irrestrito do colorismo para explicar as várias colorações de negros brasileiros, vamos advogar aqui que o mestiço é negro. Durante séculos, é preciso relembrar, a nomeação negro não tinha a importância que hoje tem, e escravizados e seus descendentes reagiam ao racismo com muita violência.
Seria muito pretensioso de minha parte, no
entanto, negar a importância dos movimentos negros ao hastearem a luta pelo reconhecimento de uma população negra autodeclarada, em tempos onde ser negro era feio. O problema central aqui colocado é que essa população negra autodeclarada a cada dia mais não desenvolve lastros ancestrais e históricos com os mais velhos pretos, que lhe pariram, quando ainda continuam a enxergar a miscigenação como maneira de melhorar, de ascender ao mundo branco. Aqui se faz necessário um parêntese: quando defendo que, no pós-escravidão, as pessoas pretas enxergavam na miscigenação uma estratégia política, não acho que ela continue a ser, ou que ela naquele momento significava apenas uma estratégia política.
Kassandra Muniz (2015) está entre o grupo
de intelectuais negros que muito apropriadamente analisam o uso do dizer-se negro politicamente porque, ao passo em que defende a identificação racial, não perde de vista o caráter de marca do racismo no país.
Porém, é preciso ir além da ideia do
preconceito de marca quando falamos de mestiços entre mestiços. Quase sempre, como minha narrativa parece delinear, os mestiços não são comprometidos com preconceito de marca, mas com parcelas do preconceito institucional que se utiliza da marca como seu referente no mundo. Em outras palavras, o racismo institucional que atinge mestiços relembra em sua indexicalização (ou na forma como indicia o mundo ao redor) a marca de seus ancestrais (para uma discussão de indexicalização, ver MILROY, 2011 e MOITA LOPES, 2013).
Isso é muito importante. Estou afirmando que
o racismo age linguisticamente por meios diretos e indiretos de significação. Quando uma pessoa preta passa por uma ofensa, ela recebe diretamente os insultos por pertencer a um passado que deveria se manter em uma época distante da nossa, apenas vista em museu. Ela, em corpo e espírito, está ultrapassada e o genocídio e o clareamento da miscigenação são provas abundantes de que ela já está no passado. O mestiço, ser do presente, mas não necessariamente do futuro, ainda relembra o passado. Isto é, guarda traços que são, eles próprios, referentes no mundo de um passado que se quer esquecer. Porém, como já presente em corpo e espírito no mundo branco, numa linha limítrofe entre a modernidade e uma imensa fronteira colonial, o mestiço se engana, se vê perdido entre o caminho para onde quer seguir e para onde deveria. As armas históricas, a oralidade, o segredo e o senso de justiça na comunicação, vão se perdendo.
O problema do manifesto político
O manifesto político do protesto negro
é inegavelmente um dos grandes alentos do Brasil. Ele produziu gerações de intelectuais engajados, de um pensamento negro contemporâneo vivo.
Entretanto, nenhum manifesto se mantém
invariavelmente sem sofrer mudanças na história. Aos poucos, com o genocídio e a miscigenação clareadora, o próprio manifesto pode vir a não fazer mais sentido daqui a poucos séculos. Essa é uma das razões para discutirmos ontoepistemicamente[1] esse fenômeno, em que a colonialidade do saber não seja lida como distante da colonialidade do ser.
Ser e saber se relacionam como Dizer
diferentemente. Quando falamos de mestiços, o saber se relaciona com o dizer, mas não necessariamente com o ser. Isto é, a miscigenação não rouba só as características fenotípicas, mas também, e isso lentamente, uma memória ancestral africana que é ativada na fronteira, na dor, em face do racismo.
O colorismo, como teorização advinda de fora
e de maneira tardia no país, não garante o jogo problemático aqui trazido. Historicamente, ele surgiu dentro de uma historicidade única, incapaz de ser reproduzida tal qual sem as garantias de condições de produção de uma dada realidade histórica. No caso dos Estados Unidos, onde a genotipia é lida a partir do branco de maneira mais direta e concisa, o colorismo é uma discussão bastante oportuna se imaginarmos que, até mais recentemente, os privilégios de cor não eram centrais entre eles. Ou seja, por terem que responder ao racismo por genotipia ou preconceito de origem, não teria se observado ainda a necessidade de analisar como o racismo sistêmico atravessava, entre elas, e como variável de cor, a vida das pessoas negras.
No caso do Brasil, a discussão sobre
miscigenação sempre levou em conta, seja entre racistas ou culturalistas, o que seria o mestiço no mundo branco. Oliveira e Oliveira (1974), ao ler o mulato como um obstáculo epistemológico, coloca melhor essa discussão, me fazendo vir até este texto porque, já naquele momento, ele estava diferenciando a discussão sobre mestiçagem no Brasil e nos Estados Unidos (Cf. MUNANGA, 2004, para uma pesquisa aprofundada).
O enorme problema social com o manifesto
político continua a ser em não provocar as bases epistêmicas em defesa do corpo preto, esse que tomba e não dá lugar a um referente