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(Publicado como Adendo em: DA SILVA, Jorge. 120 anos da Abolição: 1888
- 2008. Rio de Janeiro: Hama, 2008. (Texto-base da palestra no II Seminário
“Inserção e Realidade”, realizado em 21 - 22 de novembro de 2007 no SESC /
TIJUCA, no painel “Violência Social e Racismo”, como parte do Festival
Afro-Brasileiro))
Introdução
Sem perder de vista a proposta dos organizadores, e na esperança de que esses pontos sejam
aprofundados por meus companheiros de mesa, doutora Alba Zaluar e doutor José Moreira Pinto,
decidi, em vez de abordar os conceitos de violência social e de racismo, concentrar-me num outro,
que chamo de violência civil, o qual possui clara especificidade. Pretendo demonstrar que o drama
vivido pela população do Rio de Janeiro, em larga medida, é reflexo de um conflito social marcado
pela pedagogia da violência. Mais, que a forma concebida historicamente para “manter a ordem”
tem contribuído para configurar novas identidades étnicas, não necessariamente associadas às
idéias de raça ou cor. Dei à minha apresentação o seguinte título: Violência Civil no Rio de
Janeiro: Genocídio e Etnocídio Programados. “Violência Civil”, em oposição à “criminal”.
“Genocídio” e “etnocídio”, porque estamos falando de extermínio físico em escala, e de
aniquilamento de valores culturais e identidades. “Programados”, porque não se trata de algo
acidental, fortuito. Pretendo demonstrar também que, na defesa do status quo, há aqueles que, de
forma articulada, reagem aos avanços, tentando implantar o que Stuart Mill chamou de “tirania
da opinião”.
O Lugar do Discurso. Quem Fala, Por Que Fala, e Para Quem Fala.
Antes de entrar no tema propriamente dito, quero deixar claro (temos aqui uma platéia de
negros e brancos) que não falo apenas como brasileiro incolor e neutro. Falo como negro. Ou,
mais precisamente, do “lugar do negro”, como diria Joel Rufino dos Santos, isto é, de um lugar
ocupado por quem se identifica com um grupo humano específico, portador de fortes marcas da
ascendência africana. Julgo que esse esclarecimento é indispensável, pois uma curiosa
característica das discussões sobre as relações raciais no Brasil é que os analistas brancos
apresentam-se como se fossem neutros, incolores e arracializados. Apenas “brasileiros”. Ainda
que instados a revelar de que posição falam, jamais admitem que falam como brancos. Na manga,
a “prova” disso: uma tataravó ou tataravô com sangue índio ou negro... Já os analistas negros
(analistas negros...) seriam parciais, apaixonados, meros militantes em causa própria. Impatriotas.
Em suma, os brancos, no exercício de uma tutela auto-atribuída, falariam por todos os brasileiros.
Os negros, por e para eles próprios.
Por que considero esta preliminar importante? Este evento não é organizado por pessoas
que se consideram neutras, não-militantes, como parece ser o caso de pessoas influentes, situadas
em “agências discursivas” importantes, sobretudo nos meios de comunicação e na Academia,
aplicadas em tentar monopolizá-las para se opor à luta dos negros. Uma das vantagens de um
evento como este, portanto, é que podemos utilizar palavras como elite, racismo, negro, branco,
preto, cor, afro-brasileiro etc. sem o patrulhamento habitual.
Ora, o que dizer da tenaz oposição colocada por ninguém menos que o Diretor Executivo
de Jornalismo da Rede Globo de Televisão (e assíduo colunista do jornal O Globo), senhor Ali
Kamel, e pelos acadêmicos Peter Fry e Ivonne Maggie, da UFRJ? Se o evento tivesse sido
organizado por eles, certamente a temática teria outro sentido. Para uma das mesas talvez
propusessem o tema “Não Somos Racistas”, título de livro do primeiro. Para uma outra mesa,
“Divisões Perigosas”, título de livro organizado pelos acadêmicos citados; ou “O Negro no
Pensamento Social Brasileiro”, apresentado por eles próprios. Em ambos os casos, o velho
artifício retórico do “risco do mal maior”, denunciado por Albert Hirshman em seu A retórica da
intransigência. Para os que assim pensam, aqueles que lutam pela igualdade racial (racial, sim,
sem a patrulha) estariam produzindo divisões numa sociedade que consideram coesa, harmoniosa
e sem discriminação racial. Há ainda aqueles que se apresentam como “misturados” (para dizer
que não são brancos), por mais alvos que sejam sua pele e seus olhos, e por mais sedosos os seus
cabelos. “Ora, no Brasil, quem não tem um pouco de sangue negro?”, perguntariam. Cômodo.
Ocorre que, a despeito de todo o poder de que dispõem, estão aturdidos porque não conseguem
mais falar sozinhos, como um dia conseguiram. Hoje, os negros ousam apresentar-se como
sujeitos do discurso, e não somente objetos de suas análises. Pior, resolveram analisar o
comportamento dos brancos, como sugeriu Guerreiro Ramos.
Com certeza, os estudiosos referidos e os que participam da sua militância “nacionalista”
consideram-se imparciais e neutros, a “voz da razão”; patriotas autênticos, comprometidos apenas
com o futuro do País. Não estariam defendendo interesses pessoais nem do grupo social com o
qual se identificam. A única comunidade da qual fazem parte é a nacional.
O Patrulhamento
Levantei esta preliminar porque o meu discurso destoa do legitimado pelos que defendem
uma única verdade, a deles, e é quase sempre rotulado de impertinente e desagradável. E é mesmo.
Conforto-me porque, em compensação, os negros quase sempre concordam com o que falo ou
escrevo. Por que será? Acho compreensível a discrepância. Só não compreendo por que provoco
tanta irritação naqueles que, sem explicitar o lugar de onde fazem as suas objeções, fincam pé na
defesa do estabelecido e se aplicam no patrulhamento ideológico de quem não compartilha as
suas visões.
De pouco adianta o negro aplicar-se. Ainda que se submeta aos rigores da Academia, não
estará imune às costumeiras desqualificações: “Ele(a) está falando isso porque tem idéia fixa”. E
será alvo de pena: “Coitado, deve ter problemas!” Em suma, dificilmente conseguirá ser admitido
como cientista social, em igualdade de condições. No meu caso particular, ainda há a complicação
de eu ser oriundo da PM. Ou seja, um negro e, ainda por cima, policial, escolher como linhas de
pesquisa acadêmica a violência e as relações raciais. Seria diferente se eu expressasse visões
alinhadas ao consenso perseguido pelos ditadores das opiniões “certas”. Como estou sempre na
contramão, azar o meu; ou sorte... Em suma, dentro da Academia (com as exceções de praxe),
para não serem vítimas do patrulhamento, aos negros e negras restam três saídas: escolher linhas
de pesquisa indiferentes à questão racial; assumir o “lugar do branco” se escolherem essa linha;
e fingir que compartilham o consenso.
Pessoas morrem como baratas, aos milhares. Recuso-me a aceitar que o morticínio a que se
assiste no Brasil seja manifestação da violência criminal pura e simples, assunto a ser resolvido
pela polícia. É preciso indagar sobre o que está por trás desse flagelo. Parto de uma estranheza,
que pode ser resumida na seguinte pergunta: por que, numa cidade com as características sócio-
histórico-culturais do Rio de Janeiro, os altíssimos níveis de violência costumam ser explicados
ora como sendo frutos de uma suposta incompetência ou incúria dos governos, ora de disparidades
sócio-econômicas? Explicações eruditas, abstratas, de direita e de esquerda, como diria Roberto
Da Matta, que não dão conta do drama vivido por pessoas de carne e osso. Não dão conta das
razões de a matança se concentrar, desproporcionalmente, em pessoas das camadas populares. É
como se os estudiosos estivessem falando de uma população homogênea, portadora de uma
identidade-padrão, supostamente neutra em relação à origem dos diversos grupos humanos que a
formaram. Parecem acreditar piamente na narrativa dos próceres da Nação, segundo a qual a
população brasileira constitui uma nova “raça” ou “etnia”, a “brasileira”. Falam de gente como
se estivessem falando de matérias do mundo mineral, as quais, amalgamadas, teriam sido
reduzidas a uma só. Daí, uma população com nova cor, porém, estranhamente, constituída de
indivíduos incolores. Uma espécie de arco-íris ao contrário. No cadinho em que foram misturadas,
nem resquícios das antigas cores. Teriam sumido os brancos, os pretos, os índios, os mulatos, os
cafuzos, os curibocas. Agora, só “brasileiros”.
Por essa lógica, não há por que falar em cor ou etnia quando se trata de contar os mortos.
Isto seria de mau gosto. É como se tivéssemos tomado uma injeção de esquecimento. Nada de
lembrar que o Rio de Janeiro foi capital da Colônia, do Império português e do Império do Brasil,
e que teve o seu território fatiado em sesmarias que iam até onde a vista não alcançava
(englobando os espaços das atuais favelas), doadas aos “homens bons” e a ordens religiosas. Há
mesmo os que parecem querer sublimar o fato de o Brasil ser um país sul-americano, sempre
apressados em comparar o Rio com cidades como Paris, Londres ou Nova Iorque, esquecidos de
que aquelas cidades tiveram outras raízes. A nossa, uma cidade com marcas indeléveis da sua
formação histórica, sendo uma delas a lógica herdada do longuíssimo período em que foi capital
de uma sociedade assentada no regime escravista: a lógica hierárquica contida no dito popular
“Cada macaco no seu galho”, como explicou Roberto Kant de Lima. Nada de lembrar da história
de horror dos tataravôs dos exterminados. Isto, devem pensar, é coisa do passado. Como estou
sempre lembrando essas coisas, tenho que pagar o preço.
Violência Civil
“Ônibus freqüentemente queimados à luz do dia; policiais rechaçados com paus, pedras e
xingamentos por homens, mulheres, crianças e adolescentes; vias expressas e túneis
freqüentemente fechados em razão de tiroteios ou de protestos; proliferação de condomínios
fechados, guardados por seguranças privados, parafernália eletrônica e ofendículos; expansão
geométrica da indústria de carros blindados; barricadas montadas por traficantes e moradores à
entrada de favelas; falsas blitze realizadas por “bondes” de três, cinco ou mais carros, com 10, 20
ou mais bandidos. Comércio e escolas das cercanias fechados por ordem de traficantes, e
“contribuições” exigidas por eles do comércio local; “pedágio” cobrado das empresas de ônibus
e de outros serviços que circulam no interior e nas cercanias de favelas; invasões de favelas por
facções criminosas; policiais e suas famílias expulsos de suas casas; policiais atacados e mortos
em suas viaturas, à luz do dia, com granadas e tiros de fuzil; ações revanchistas de policiais para
vingar companheiros mortos. Verdadeiras batalhas campais no centro da cidade entre camelôs e
guardas municipais. Unidades da polícia e das Forças Armadas atacadas por bandidos para
roubar-lhes armas e munição. Balas perdidas vitimizando inocentes. Crianças – meninos e
meninas, às centenas – espalhados por toda a cidade, aparecendo subitamente à frente do
motorista assustado quando o sinal luminoso fecha. Difusão dos gêneros funk e rap, com letras
de tom revolucionário contra a ordem estabelecida, entoadas em bailes que atraem milhares de
jovens de diferentes comunidades. Notórios “chefes de tráfico” sendo enterrados como heróis e
benfeitores. Grupos de sem-terra e sem-teto invadindo propriedades e praticando toda sorte de
vandalismo. Freqüentes rebeliões em presídios, com a morte de centenas de presos.”
Não quero incorrer no equívoco de fazer corresponder o conceito de etnia ao de raça ou cor,
menos ainda ao de raça biológica. Gilberto Freyre tentou resolver esse problema, defendendo o
que chamou de “raça cultural”. Não resolveu, mas pôs em relevo o aspecto cultural na constituição
étnica do povo brasileiro. De qualquer modo, parece haver consenso em que o elemento central
do conceito de etnia é o compartilhamento de valores, crenças, aspirações e angústias por parte
de uma comunidade humana, seja uma comunidade nacional, seja uma comunidade particular
dentro do território.
A incompreensão deste fato tolhe-nos a visão, e nos impede de vislumbrar caminhos mais
seguros para a solução dos nossos problemas. Em meio à violência e ao tiroteio, como subproduto
do medo, observa-se no Rio de Janeiro a formação de novas identidades étnicas, que vou chamar
de etnia dominante; etnia lúmpen, e etnia de passagem:
(a) Etnia dominante. Num extremo, o grupo populacional que detém e monopoliza o poder
econômico e luta por manter a hegemonia das grandes agências discursivas (mídia, academia,
TV, novelas, cinema, literatura etc.) a fim de impor a ditadura da opinião e manter seus
privilégios. Reúne pessoas das camadas altas e médias-altas, em maioria de identidade social
branca, boa parte das quais com dupla nacionalidade, a brasileira e a européia (ius sanguinis),
com passaporte brasileiro e de países europeus.
(b) Etnia lúmpen. No outro extremo, um grupo populacional bem maior, cuja identidade
social é marcada pelo compartilhamento das precárias condições sócio-econômicas e pela
discriminação a que é submetido pela etnia dominante e pelo Estado. Reúne favelados em geral,
negros, nordestinos pobres migrados e brancos pobres. É desse grupo a maioria das vítimas do
extermínio. E é desse grupo também que, em maioria, saem os exterminadores. Habitam favelas,
alagados e periferias.
(c) Etnia de Passagem. No meio, num movimento pendular, uma grande massa
populacional, que reúne contingentes de camadas médias baixas, constituindo uma etnia
intermediária, dual. Ao sabor das circunstâncias e das conveniências, ora identifica-se com a etnia
dominante, ora com a etnia lúmpen, independentemente da identidade pessoal referida à raça /
cor e ao fenótipo dos seus integrantes.
O dado relevante é que, apesar de observar-se a existência de uma terceira etnia, na verdade
estamos diante de uma polarização, pois na terceira não preponderam valores próprios. Em
esmagadora maioria, os representantes da etnia dominante contrapõem-se aos programas de cotas
para pobres e negros, por exemplo, ao contrário do que ocorre com os representantes da etnia
lúmpen. Os da etnia de passagem ora pendem para cá ora para lá. O mesmo vai acontecer no que
se refere à reação à matança, como pretendo mostrar.
Genocídio e Etnocídio Programados
- No Brasil, entre 1980 e 2003, as mortes por homicídio mais que dobraram. Em 1980,
19,8% das mortes por causas externas foram provocadas por assassinatos. Em 2003, foram 40,3%.
Nesse ano, foram assassinadas 50 mil pessoas. Entre 1979 e 2003, 550 mil pessoas foram mortas
por armas de fogo. Entre 1993 e 2003, os registros de mortes por arma de fogo superam os
números de 23 conflitos armados no mundo, perdendo apenas para as guerra civis de Angola (550
mil mortos em 27 anos) e da Guatemala 400 mil em 24 anos). (Cf. Sistema de Informação sobre
Mortalidade do Ministério da Saúde; e UNESCO Brasil).
- No Estado do Rio de Janeiro, entre 1991 e 2004, foram assassinadas 97.969 pessoas (hoje,
novembro de 2007, contam-se mais de 110 mil). Em igual período, foram registrados quase 1
milhão de roubos com violência. Entre 1995 e 2004 foram mortos 1.150 policiais-militares em
serviço ou de folga. Num único ano, 2003, a polícia registrou 1.195 “autos de resistência”. (SESP
/ ISP).
- Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, entre 2000 e 2004, ocorreram (somente as
publicadas) 71 manifestações violentas de moradores de favelas. Entre 1999 e 2003 (março), mais
de 400 ônibus foram incendiados (Agência O Globo).
- Em São Paulo, na Região Metropolitana, nos 20 anos entre 1979 e 1998 foram
assassinadas 130.761 pessoas, em sua maioria adolescentes e adultos jovens, 92% dos quais do
sexo masculino. Num único ano, 1998, foram 10.898 homicídios, um aumento de 352% em
relação a 1979, num período em que a população aumentou apenas 43%.
Algo que muito me entristece são as reações extremadas às mortes. Ora, o que levaria
setores importantes da sociedade a se regozijarem com as mortes de 19 pessoas de uma só tacada,
na presunção de que todos os mortos seriam traficantes de drogas, como aconteceu no dia 27 de
junho deste ano na Vila Cruzeiro? É compreensível a revolta diante da ousadia e despotismo dos
traficantes das favelas. Mas é preciso notar que, enquanto o episódio era comemorado
efusivamente em centenas de cartas e editoriais nos jornais, os parentes e vizinhos dos mortos
(todos da etnia lúmpen) velavam e enterravam os corpos. É como se fosse irrelevante o fato de
cerca de 4 mil crianças ficarem sem aula durante meses. Não é o caso, por prematuro, de entrar
no mérito das razões, da forma e dos efeitos desses acontecimentos, porém merece reflexão a
manchete de capa da Revista Época do dia 2 de julho: “UM ATAQUE INOVADOR: Por que o
cerco aos traficantes no Rio é um marco no combate ao crime no Brasil”.
Além dessas reações emocionais, compreensíveis, merecem menção especial alguns fatos
e discursos que indicam claramente o apelo incessante dos mesmos setores a que o poder público
vá às últimas conseqüências e adote políticas de arrasa-quarteirão nos locais onde habitam os
integrantes da etnia lúmpen. O que dizer dos seguintes fatos?
(a) Fatos:
Não bastassem esses apelos à truculência partidos de fora, há que registrar também os
discursos perigosos articulados até mesmo por autoridades públicas.
- Exemplo 1. “Atira primeiro e pergunta depois”. Frase que teria sido proferida em público
pelo secretário de Segurança Pública em 1995. Na gestão do referido secretário, um ato do
governador instituiu gratificações e promoções “por bravura”. A gratificação ficou popularmente
conhecida como gratificação faroeste, um incentivo ao confronto.
- Exemplo 2. 'Nosso bloco está na rua. Se tiver que ter conflito armado, que tenha. E se
alguém tiver que morrer por isso, que morra. Nós vamos partir para dentro. Não tem conversa'.
Palavras de outro secretário de Segurança Pública em 2003.
- Exemplo 3. 'Mata quem tiver que matar'. Frase atribuída ao prefeito do Rio de Janeiro,
proferida em 2004.
- Exemplo 4. 'Não se faz um omelete sem quebrar os ovos'. Secretário de Segurança Pública,
em 2007, justificando as 19 mortes, de uma só vez, na Favela da Vila Cruzeiro, as quais se
somavam às 23 outras ocorridas nos dois meses anteriores no mesmo local.
Conclusão
Penso haver demonstrado que, por trás da violência criminal que tanto nos atemoriza, é
possível identificar um tipo de violência, violência civil, que não tem sido levado em conta, pelo
menos na devida conta, nem nos estudos sobre o tema nem na concepção das políticas
governamentais. Mais, que a forma escolhida para enfrentar a violência do crime no Rio de
Janeiro, com as favelas transformadas em Teatro de Operações (T.O. no jargão militar) e os seus
moradores em suspeitos-até-prova-em-contrário tem tido duplo efeito: aumentar a violência, dos
bandidos e do Estado (digo “do Estado”, pois a escolha não é só da polícia, como vimos), e acirrar
antagonismos sociais.
Alguém já disse que a melhor maneira de não resolver um problema é fingir que ele não
existe. Se não há racismo no Brasil; se vivemos numa democracia racial; se as oportunidades são
iguais para todos, pensar em políticas para promover a igualdade racial constitui-se num disparate.
Se somos todos “misturados”, não se sabendo ao certo quem é branco e quem é negro; se todos
os grupos humanos podem, aqui, cultuar os valores dos lugares de origem dos seus avoengos sem
problemas, falar na formação de novas etnias e em etnocídio é uma temeridade. Se as mortes, aos
milhares, se devem ao acaso, e não correspondem a um padrão histórico; se as centenas de mortes
por balas perdidas de moradores de favelas são explicadas como efeito colateral do necessário
combate aos traficantes, falar em genocídio é uma irresponsabilidade.
Se, no entanto, nos dispusermos a tentar identificar os nossos reais problemas, abrir-se-á
para nós a possibilidade de construir caminhos menos traumáticos para enfrentá-los.
Precisaríamos, de início, reconhecer que temos, sim, uma questão racial não resolvida; que, no
Brasil, há brasileiros de diferentes matizes: brancos, negros, afro-brasileiros, euro-brasileiros,
índios, cafusos etc. (e que isso é muito bom); que, diferentemente daquilo em que queremos
acreditar, vivemos numa sociedade com fortes marcas do autoritarismo e da hierarquia (e que isso
é muito ruim); que o caminho que temos trilhado até aqui é o da apartação sócio-étnica. A partir
daí, com a união de todos, independentemente de raça/cor, origem, religião, local de moradia etc.,
estaríamos aptos a construir uma sociedade realmente harmoniosa, em proveito de todos. Mas de
todos mesmo. Caso contrário, a paz com que sonhamos será, como alguém já disse, a paz dos
cemitérios.