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Se é certo que romances, contos e peças de teatro registram algo da psicologia dos povos, nós,

brasileiros, deveríamos atentar seriamente para o seguinte fato: nenhuma literatura no mundo é tão
abundante de tipos insinceros e fingidos como a nossa. Praticamente a galeria inteira dos personagens
de Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Arthur Azevedo, Marques Rebelo, Nelson
Rodrigues e tantos outros é constituída de pequenos farsantes, fracos e sem caráter, nos quais a mentira
existencial se tornou como que uma segunda natureza.

Não se trata de mentirosos conscientes, maquiavélicos, demoníacos. Não temos um Iago nem um
Verkhovenski Jr. (o maligno revolucionário de “Os demônios” de Dostoiévski). São antes personalidades
de pés de barro, erigidas em cima de uma falsa consciência, de um desvio do foco de atenção. Deslizam
instintivamente para fora da realidade, como que por medo de se conhecer, de topar de repente com a
imagem da sua própria miséria interior. Tímidas e esquivas, revestem-se incessantemente de máscaras
verbais cujo comércio preenche nove décimos da sua vida de vigília. O décimo restante – quando chega
à consciência – é angústia secreta, reprimida, que não ousa dizer seu nome.

Na tipologia de Lukács, que distingue entre os personagens que sofrem porque sua consciência é mais
ampla que a do meio em que vivem e os que não conseguem abarcar a complexidade do meio, a
literatura brasileira criou um terceiro tipo: aquele cuja consciência não está nem acima nem abaixo da
realidade, mas ao lado dela, num mundo à parte todo feito de ficções retóricas e afetação histriônica.
Em qualquer outra sociedade conhecida, um tipo assim estaria condenado ao isolamento. Seria um
excêntrico. No Brasil, ao contrário, ele é o tipo dominante: o fingimento é geral, a fuga da realidade
tornou-se instrumento de adaptação social. Mas adaptação, no caso, não significa eficiência, e sim
acomodação e cumplicidade com o engano geral, produtor da geral ineficiência e do fracasso crônico, do
qual em seguida se busca alívio em novas encenações, seja de revolta, seja de otimismo. Na medida em
que se amolda à sociedade brasileira, a alma se afasta da realidade – e vice-versa. Ter a cabeça no
mundo da lua, dar às coisas sistematicamente nomes falsos, viver num estado de permanente
desconexão entre as percepções e o pensamento é o estado normal do brasileiro. O homem realista,
sincero consigo próprio, direto e eficaz nas palavras e ações, é que se torna um tipo isolado, esquisito,
alguém que se deve evitar a todo preço e a propósito do qual circulam cochichos à distância.

Meu amigo Andrei Pleshu, filósofo romeno, resumia: “No Brasil, ninguém tem a obrigação de ser
normal.” Se fosse só isso, estaria bem. Esse é o Brasil tolerante, bonachão, que prefere o desleixo moral
ao risco da severidade injusta. Mas há no fundo dele um Brasil temível, o Brasil do caos obrigatório, que
rejeita a ordem, a clareza e a verdade como se fossem pecados capitais. O Brasil onde ser normal não é
só desnecessário: é proibido. O Brasil onde você pode dizer que dois mais dois são cinco, sete ou nove e
meio, mas, se diz que são quatro, sente nos olhares em torno o fogo do rancor ou o gelo do desprezo.
Sobretudo se insiste que pode provar.

Sem ter em conta esses dados, ninguém entende uma só discussão pública no Brasil. Porque, quando
um brasileiro reclama de alguma coisa, não é que ela o incomode de fato. Não é nem mesmo que ela
exista. É apenas que ele gostaria de que ela existisse e fosse má, para pôr em evidência a bondade
daquele que a condena. Tudo o que ele quer é dar uma impressão que, no fundo, tem pouco a ver com a
coisa da qual fala. Tem a ver apenas com ele próprio, com sua necessidade de afeto, de aplauso, de
aprovação. O assunto é mero pretexto para ele lançar, de maneira sutil e elegante, um apelo que em
linguagem direta e franca o exporia ao ridículo.

Esse ardil psicológico funda-se em convenções provisórias, criadas de improviso pela mídia e pelo diz-
que-diz, que apontam à execração do público umas tantas coisas das quais é bom falar mal. Pouco
importa o que sejam. O que importa é que sua condenação forma um “topos”, um lugar-comum: um
lugar no qual as pessoas se reúnem para sentir-se bem mediante discursos contra o mal.

O sujeito não sabe, por exemplo, o que são transgênicos. Mas ele viu de relance, num jornal, que é coisa
ruim. Melhor que coisa ruim: é coisa de má reputação. Falando contra ela, o cidadão sente-se igual a
todo mundo, rompe por instantes o isolamento que o humilha.

Essa solidariedade no fingimento é a base do convívio brasileiro, o pilar de geléia sobre o qual se
constroem uma cultura e milhões de vidas. Em outros lugares as pessoas em geral discutem coisas que
existem, e só as discutem porque perceberam que existem. Aqui as discussões partem de simples nomes
e sinais, imediatamente associados a valores, ao ruim e ao bom, a despeito da completa ausência das
coisas consideradas.

Não se lê, por exemplo, um só livro de história que não condene a “história oficial” – a história que
celebra as grandezas da pátria e omite as misérias da luta de classes, do racismo, da opressão dos índios
e da vil exploração machista. Em vão buscamos um exemplar da dita cuja. Não há cursos, nem livros,
nem institutos de história oficial. Por toda parte, nas obras escritas, nas escolas de crianças e nas
academias de gente velha, só se fala da miséria da luta de classes, do racismo, de índios oprimidos e da
vil exploração machista. Há quatro décadas a história militante que se opunha à história oficial já se
tornou hegemônica e ocupou o espaço todo. Se há alguma história oficial, é ela própria. Mas, sem uma
história oficial para combater, ela perderia todo o encanto da rebeldia convencional, pondo à mostra os
cabelos brancos que assinalam sua identidade de neo-oficialismo consagrado — balofo, repetitivo e
caquético como qualquer academismo.

Direi então que ela açoita um cavalo morto? Não é bem isso. Ela própria é um cavalo morto. Um cavalo
morto que, para não admitir que está morto, escoiceia outro cavalo morto. Todo o “debate brasileiro” é
uma troca de coices num cemitério de cavalos.

O Globo, 17 de fevereiro de 2001

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