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Diário do Comércio, 06 de agosto de 2007

Não conheço hoje em dia um único esquerdista que consiga ler uma página inteira de Hegel, mas na
prática a conduta política e até pessoal de todos eles reflete a lógica do filósofo de Jena com uma
exatidão quase literal. O modo dialético de pensar se impregnou tão profundamente na cultura do
movimento revolucionário, que se transmite aos militantes, simpatizantes e “companheiros de viagem”
por impregnação passiva de hábitos, de símbolos, de reações emocionais, de giros de linguagem, sem
necessidade de aprendizado consciente nem possibilidade de filtragem crítica.

Os adversários do esquerdismo, por sua vez, estão de tal modo habituados a esquemas de
pensamento lógico-formais, absorvidos seja das ciências naturais, seja da economia austríaca, seja
mesmo da formação escolástica no caso dos católicos, que tendem incoercivelmente a explicar a
conduta esquerdista em termos da coerência linear entre doutrina e prática, ou entre fins e meios, e
assim perdem de vista o que há de mais característico no movimento revolucionário, que é justamente o
aproveitamento sistemático das contradições. Só isso pode explicar que seus repetidos sucessos no
campo econômico e tecnológico sejam acompanhados de derrotas cada vez mais espetaculares na
cultura e na política.

Não posso aqui dar um resumo da filosofia de Hegel, mas há alguns pontos mínimos sem os quais
nenhuma compreensão da mente esquerdista é possível. Quem não tiver a paciência de aprendê-los
deve portanto conformar-se em ser vítima inerme e cega do processo revolucionário, sem direito a
sentir-se perplexo quando este o conduzir a um campo de trabalhos forçados ou à vala comum dos
“inimigos de classe”.

Desde que Platão enfatizou a separação entre o mundo dos entes corpóreos e o mundo das “idéias” (ou
mais propriamente “formas”), a distinção entre o absoluto e o relativo, entre o Ser e os entes, entre o
permanente e o transitório, entre estrutura e processo, se incorporou às raízes do pensamento filosófico
e científico no Ocidente ao ponto de que não é exagero resumir todo o esforço intelectual de dois
milênios e meio na busca dos fatores estáveis por trás dos fenômenos em mudança. A idéia mesma de
“leis científicas” é isso e nada mais.

O empreendimento de Hegel consistiu em introduzir nesse sistema de distinções uma confusão


profunda, geral e aparentemente insanável. Partindo da observação milenar de que o mundo dos
fenômenos é uma aparência ou manifestação do fundamento absoluto, ele dá um giro de cento e
oitenta graus na relação entre os dois mundos e reduz o absoluto ao conjunto das suas manifestações
relativas. Diz ele que o Ser, considerado em si mesmo, é idêntico ao nada; só a sucessão das suas
manifestações temporais lhe dá alguma consistência; logo, o tempo é a substância da eternidade, o devir
é a única realidade do ser. Já expliquei em outro lugar por que essas teses são absurdas e por que não
acredito que Hegel as tenha emitido por mero engano, e sim por vigarice consciente (v. O Jardim das
Aflições , São Paulo, É Realizações, 2004, pp. 168-169 e 176-179). Mas o que interessa aqui é mostrar as
conseqüências metodológicas que ele tirou delas, pois foram essas conseqüências que acabaram por
moldar a mentalidade do movimento revolucionário.

Se o devir é o Ser e se o único processo autoconsciente no conjunto do devir é a história humana, esta se
torna automaticamente o campo por excelência da auto-realização do Ser. O Espírito, o Absoluto ou
Deus é uma potencialidade inconsciente de si, que só se conhece e se realiza no processo histórico tal
como Hegel o compreende (o que implica, naturalmente, que Hegel em pessoa seja o ponto mais alto da
autoconsciência divina, modéstia à parte). Como no curso do processo todos os momentos altos e baixos
são igualmente necessários, todos eles são igualmente portadores da verdade. A diferença entre a
aparência e a realidade, que para o pensamento antigo coincidia com a fronteira entre o transitório e o
permanente, é assim sutilmente deslocada para dentro do terreno do próprio transitório: a única
verdade de cada fenômeno é o lugar que ele ocupa no conjunto do processo (tal como Hegel entende o
processo). O falso, o ilusório, é apenas o que está isolado do processo, mas, como nada está isolado do
processo, o falso não existe, é apenas uma aparência de falsidade. A verdade, por sua vez, consiste
apenas em estar inserido no fluxo total, isto é, em ir para onde Hegel acha que as coisas vão.

Essa é a lei profunda que orienta e unifica o movimento revolucionário em todas as suas variantes e
modificações. Por exemplo, é notório que Marx ou Lênin jamais se preocuparam em descrever como
seria a futura sociedade socialista. Ao mesmo tempo, asseguram que todo o movimento histórico vai na
direção do socialismo. Mas como é possível saber com certeza que um certo desenlace é inevitável, se
não se sabe nem mesmo dizer que desenlace é esse? A resposta implícita é a seguinte: não é a finalidade
que determina o processo, mas o processo é que determina a finalidade. Esta não é senão o processo
mesmo considerado na sua totalidade. Isso implica, naturalmente, que a finalidade conscientemente
alegada em cada momento pode mudar de figura um número infinito de vezes sem que se perca a
unidade do processo. Por isso é que os esquerdistas tanto mais se apegam à unidade do movimento
revolucionário quanto mais os objetivos pelos quais lutam em vários lugares e momentos são inconexos
e contraditórios entre si. Os militantes seguem a liderança com igual fidelidade quando ela os manda
fomentar a economia de mercado ou substituí-la pela estatização dos meios de produção; quando ela os
manda combater todo nacionalismo como expressão da obstinação reacionária ou, ao contrário, criar
movimentos nacionalistas; quando ela apóia o nazismo ou luta contra o nazismo; quando ela condena a
liberdade sexual como sinal da decadência burguesa ou quando ela fomenta a mais extrema anarquia
erótica contra o império do “moralismo burguês”. E assim por diante. O observador alheio às sutilezas do
esquerdismo vê nisso incoerências escandalosas que, a seu ver, ameaçam a unidade do movimento
revolucionário ao ponto de torná-lo inofensivo perante os triunfos econômicos e técnicos do capitalismo.
Mas é dessas incoerências que se alimenta o processo – e o processo é tudo. Quando já no século XIX os
revolucionários adotaram o uso de designar-se a si próprios genericamente como “o movimento”, estava
claro para eles que a unidade desse movimento não estava na luta por objetivos definidos, mas na
capacidade ilimitada de comandar o processo total das transformações, pouco importando a direção
para onde estas fossem a cada momento. A ambigüidade, as manobras em zigue-zague, a incoerência
mais alucinante incorporaram-se não só à práxis do movimento revolucionário, mas à personalidade de
cada um dos seus participantes, tornando-as virtualmente incompreensíveis ao adversário que
desconheça dialética de Hegel.

Hegel acrescentou a essa concepção a idéia peculiarmente diabólica do “trabalho do negativo”. O


movimento deve reduzir ao mínimo indispensável o compromisso com objetivos definidos e concentrar-
se na destruição do existente. A destruição acabará determinando os objetivos em cada etapa, pronta a
trocá-los no instante seguinte se isto for útil à unidade do processo.

A mobilidade que esse modo de pensar confere à ação revolucionária desnorteia por completo o
adversário, que ao opor-se aos objetivos momentâneos da revolução nem imagina que pode já estar
colaborando com a próxima etapa do processo. Um dos aspectos mais perversos da mente
revolucionária é justamente que nela é impossível distinguir com clareza a ação profunda e a
camuflagem externa. O que num momento é mera camuflagem e pretexto pode se transformar em
objetivo real da ação no instante seguinte, e vice-versa. Quando o adversário imagina que desvendou o
ardil revolucionário, o ardil já se transformou no seu oposto. O governo militar brasileiro, por exemplo,
achou que perseguindo a “esquerda armada” e fazendo vista grossa às ações aparentemente inócuas da
“esquerda desarmada” estava dividindo e enfraquecendo o movimento revolucionário. Mas a ala
desarmada se aproveitou dessa mesma divisão para ir tecendo em segredo a rede da hegemonia cultural
gramsciana enquanto os soldados trocavam tiros com Marighela e Lamarca. Quando o regime caiu, a
esquerda que parecia vencida se levantou como que do nada e rapidamente dominou o país, fazendo da
derrota das guerrilhas uma vitória política espetacular.

O movimento revolucionário, enfim, não obedece às leis da “ação racional segundo fins” conforme as
definia Max Weber e pelas quais o adversário procura em vão explicá-la. Na ação normal humana, a
distinção entre meios e fins é essencial ao ponto de que o predomínio dos meios serve como prova de
que os fins não foram atingidos. Quando, ao contrário, o objetivo é nebulosamente indefinido e tudo
quanto conta é a unidade profunda do movimento em si, os meios transformam-se incessantemente em
fins e os fins em meios e pretextos. Alguns estudiosos de Hegel disseram que sua Lógica não é
propriamente uma lógica, mas uma ontologia, uma teoria sobre a estrutura da realidade. Acreditei nisso
durante algum tempo, mas hoje vejo que não pode haver uma teoria do ser quando se começa por
dissolver a substância do ser na idéia do processo. A lógica de Hegel é nada mais que uma psicologia, um
estudo dos processos cognitivos que orientam (ou melhor, desorientam) o movimento da história
humana. Sob certos aspectos, é mesmo uma psicopatologia – a lógica interna do desvario
revolucionário.

É interessante, por exemplo, observar a imensa distância que há entre os critérios de veracidade do
revolucionário e os do intelectual ou homem de ação formado na tradição ocidental da lógica e da
ciência. Para estes últimos, a verdade é o pensamento confirmado pela experiência, de modo que as
verdades podem ser conhecidas uma a uma, articulando-se aos poucos em conjuntos maiores. Para o
revolucionário hegeliano, ao contrário, não existe a verdade dos fatos nem a verdade do ser: a única
verdade é a do processo histórico, isto é, a verdade da revolução. Cada idéia ou proposição que se
pretenda verdadeira deve portanto ser julgada tão somente pelo papel que desempenha no conjunto do
processo. Se ela o faz avançar ou fortalece, ela é verdadeira; caso contrário é falsa, mesmo que coincida
com os fatos. Vou lhes dar um exemplo local. Quando começaram a espoucar os movimentos de
protesto contra o governo Lula, a reação dos porta-vozes petistas foi imediatamente atribuí-los às
“elites”. Mas não era o próprio PT que, poucos meses antes das eleições de 2002 e 2006, se gabava de
ter (e tinha mesmo) o voto da classe mais culta, portanto mais rica, enquanto os demais partidos
exploravam a credulidade de uma multidão de pobres analfabetos? É inútil, diante disso, acusar o
petismo de hipocrisia. A hipocrisia subentende a distinção entre a verdade conhecida e a falsidade
alegada. Mas, na perspectiva revolucionária, verdade e falsidade factuais são intercambiáveis, já que não
existe verdade no nível dos fatos e sim apenas no processo como um todo. Fortalecer o partido
revolucionário é realizar a verdade do processo, que abarca e transcende ou anula as verdades parciais e
transforma as falsidades em verdades. Ser o partido dos pobres é uma imagem que fortalece o partido
revolucionário, mas ser o partido das pessoas cultas também o fortalece. A ênfase do discurso pode
portanto recair num ponto ou no outro conforme as circunstâncias. Fatos e pretextos são apenas a
matéria plástica com que o discurso revolucionário molda a verdade do processo, isto é, a sua própria
vitória.

Outro exemplo. O mesmo movimento revolucionário que criminaliza a religião, lutando para eliminá-la
por meios que vão da propaganda ao genocídio, busca se traduzir numa linguagem religiosa que o
apresenta como a mais pura e elevada expressão dos ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Novamente, a verdade não está nem na pregação anti-religiosa nem na parasitagem do Evangelho: está
no processo que se fortalece e se amplia pela força dessa mesma contradição, absorvendo ao mesmo
tempo a energia da crença religiosa e a do ódio anti-religioso.

Pessoalmente, já fui acusado por esquerdistas de ser um pobretão fracassado e de ser um afilhado de
poderosos, beneficiado por um fluxo abundante de verbas misteriosas. Não sou tolo o bastante para
denunciar isso como contradição. Se o processo tem de avançar seja pela afirmação seja pela negação,
seu adversário tem de ser acusado e destruído per fas et per nefas , como o cordeiro da fábula. Isto pode
nos parecer o cúmulo da canalhice, mas nenhuma canalhice em particular se compara com a mãe de
todas as canalhices, que é o movimento revolucionário em si. O militante que o serve por meio de uma
conduta moralmente impecável – segundo critérios “burgueses” de julgamento – pode parecer mais
aceitável aos observadores ignorantes do que o trapaceiro compulsivo tipo José Dirceu ou Lula. Mas ele
sabe perfeitamente que sua elevada moralidade é a camuflagem com que o movimento encobre as
ações dos embusteiros e vigaristas, tão necessárias quanto as dele e unidas a elas por um nexo de
solidariedade essencial. O “esquerdista honesto”, no fundo, é o mais vigarista de todos. Onde o
verdadeiro e o falso são intercambiáveis, também têm de sê-lo o certo e o errado, o lícito e o ilícito.

Mas o abismo entre a mente revolucionária e a lógica do homem comum vai ainda mais fundo. Este
último acredita que pode conhecer verdades parciais por observação direta e inferência simples, mesmo
ignorando as verdades últimas e supremas. Não é preciso ser um sábio ou profeta iluminado para
distinguir a verdade e o erro nas situações imediatas. Qualquer que seja o sentido último da existência, e
mesmo supondo-se que jamais venhamos a conhecê-lo, os fatos são os fatos, e eles julgam a veracidade
ou falsidade das nossas idéias. Para o revolucionário, no entanto, os fatos são aparências parciais
ambíguas, cuja única veracidade está no “todo”, isto é, no conjunto do processo revolucionário. É este
que julga os fatos, sem poder ser julgado por eles. A diferença de planos entre esses dois modos de
apreensão da realidade é irredutível e imensurável. Os fatos são conhecidos por intuição direta a partir
dos sentidos. O “processo”, ao contrário, é uma construção mental complexa, uma teoria. O homem
comum, quando constrói teorias, as erige com base nos fatos e testa sua veracidade pelos fatos. O
revolucionário não pode fazer isso. Ele inverte portanto a ordem racional do “dado” e do “construído”,
do evidente e do hipotético, tomando este último como verdade imediata e aquele como sinal algébrico
cujo valor só a teoria, realizando o processo num prazo incerto e por meios imprevisíveis, poderá decidir.
Não há, pois, diálogo entre o revolucionário e o homem comum. Este não entende a lógica daquele,
aquele rejeita e destrói pela violência da teoria e da práxis os critérios de veracidade em que este
deposita toda a sua confiança.

Esse abismo cognitivo revela-se, a todo momento, nas análises e previsões que os conservadores e
liberais inexperientes em estudos revolucionários insistem em fazer de um processo cuja lógica lhes
escapa no todo e nos detalhes. Eles se escandalizam, por exemplo, de que o partido líder das campanhas
moralizantes tenha se transformado no mais corrupto de todos os partidos tão logo seu chefe chegou à
Presidência. Apelam até ao adágio “O poder corrompe”, explicando o contraste pelas más companhias,
sem notar as únicas más companhias visíveis no horizonte são os chamados “neoliberais”, isto é, eles
mesmos, que assim aparecem no fim das contas como os culpados dos crimes do partido governante,
com grande regozijo para as facções de esquerda que desejam se desvincular da imagem do PT
conservando intacto o mito da santidade esquerdista. Mas é claro, para quem conhece o assunto, que
não há contradição objetiva nenhuma entre o virulento moralismo petista dos anos 90 e o festival de
devassidão governamental da década seguinte. Ambos são momentos do processo, igualmente
necessários, igualmente úteis, igualmente meritórios do ponto de vista da moral revolucionária. Ambos
fazem parte do “trabalho do negativo”: a onda de acusações indignadas destrói a confiança pública nas
instituições, a corrupção desde cima desmantela a ordem legal para que o Partido se sobreponha ao
Estado e o neutralize.

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