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A ESQUIZOANÁLISE

INTRODUÇÃO ÀS IDÉIAS DE GILES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI

Patrícia Ayer de Noronha

A intenção deste texto é a de que ele possa vir a funcionar, para cada
leitor, como uma peça que entre em ligação com suas experiências, práticas e
conhecimentos, compondo novas engrenagens que coloquem em movimento
o que está estabelecido. Que esta introdução possa funcionar como abertura à
(re)invenção das práticas sócio-profissionais; a questionamentos
teóricos/políticos; à montagem de planos de consistência vários que permitam
a ampliação e uso de tais idéias; a novos modos de pensar, enfim, a n fluxos de
produção.
Vale assinalar que as contribuições de Deleuze e Guattari são amplas,
complexas, ricas e jamais totalizáveis, posto que a Esquizoanálise contém
propostas de redefinição de várias categorias filosóficas presentes no
pensamento dominante no Ocidente, a começar pela categoria do Todo, se
estendendo pelas categorias de Ser, Verdade, Teoria, Essência, Representação
e Sujeito.
A Esquizoanálise toma qualquer conhecimento como resultante das
atividades do homem enquanto produtor de si mesmo e da realidade, a qual,
por sua vez, em qualquer de seus aspectos, é infinita, mutante, constituindo
um processo de diferenciação permanente, um eterno vir-a-ser, portanto,
jamais apreensível em sua totalidade e suas essências verdadeiras.
Posto que a realidade é infinita, móvel, um campo de forças em
montagens/desmontagens, qualquer conhecimento é uma das montagens
possíveis da realidade, o que coloca em questão a concepção científica de
teoria, tanto em sua pretensão de ser capaz de representar e apreender as
essências verdadeiras dos fenômenos, quanto de estabelecer verdades
universais acerca dos mesmos.
Assim, todo conhecimento é a apreensão de uma parte da realidade
que se acopla a outras partes, é sempre uma produção provisória, uma
invenção, que não está isento de valores acerca do mundo (do homem, da
natureza, da sociedade).
A Esquizoanálise não é, portanto, um saber específico, uma nova
disciplina (que, como o próprio nome indica, ordena a realidade e a submete a
modelos universais explicativos), podendo ser melhor pensada como uma
concepção de mundo que contempla várias questões, dentre as quais uma é

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chave: - para a Esquizoanálise, tudo que existe, as formas naturais, culturais,
sociais, institucionais, organizacionais, subjetivas, são produzidas; são
montagens possíveis de um campo virtual de forças-intensidades em
permanente movimento. Não existem, portanto, essências universais e
eternas dos fenômenos (de qualquer ordem), mas formas sociais e subjetivas
majoritárias de realização desse campo virtual em cada momento histórico.
Portanto, a Esquizoanálise coloca-se como um conjunto jamais
totalizável de idéias-conceitos, implicada com a mudança social que envolve
necessariamente a transformação no âmbito do desejo e da subjetividade
humana.
As contribuições de Deleuze e Guattari são extensas e contemplam uma
variedade de temas interpenetrados:
 a análise dos investimentos do desejo no campo social;
 a análise das transformações históricas da organização social e da
subjetividade;
 a análise do capitalismo e sua forma própria de produção de
subjetividade;
 as relações entre as lutas macropolíticas (políticas sindicais,
partidárias, institucionais, do Estado) e as lutas micropolíticas (por
novos modos de ser e viver nas relações de gênero, de raça, de
vizinhança, na família);
 a construção de uma visão ecosófica de mundo que junte as
problemáticas ambientais (ecologia ambiental), sociais (ecologia
social) e mentais (ecologia mental).
Porque, com efeito, tudo está em tudo e tudo está em causa: - a
economia, o meio ambiente, as estruturas sociais, o espaço urbano, o
consumo, a política, os sujeitos, o desejo.
Tomando o homem e a realidade (natural e social) como autopoiéticos
(autoproduzidos) a Esquizoanálise busca conceitos para um pensar
nômade/em movimento, que contemple a realidade do mundo enquanto
devir (pura mutação). Não constituindo um sistema teórico, a Esquizoanálise
está mais próxima de um caleidoscópio inventivo, uma “bricolage” de
elementos teóricos das ciências formais, humanas e naturais, de elementos
das artes e de várias correntes filosóficas.

Algumas referências às fontes filosóficas da Esquizoanálise

O pensamento de Deleuze e Guattari toma em consideração filosofias


de diferentes épocas; estabelece ressonâncias entre vários domínios (artes,

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literatura, ciências, etc.) com a finalidade de criar conceitos que promovam
uma espécie de “contrapensamento”, um pensar “outro”, “em movimento”,
um “pensar-devir” correlativo à própria mutação do mundo (natural, social,
humano) em seu eterno processo, seu infinito vir-a-ser. Sua utopia é a
construção de um pensamento sem modelo, sem imagem, pluralista, um
pensar por fluxos.
Sua crítica central é endereçada à filosofia platônica que perpassa todo
o pensamento e o modo de viver ocidental.
Vamos examinar brevemente a doutrina platônica e algumas das fontes
filosóficas nas quais Deleuze e Guattari se inspiraram, lembrando que os
autores “pinçam” daqui e dali elementos para um “pensamento-devir”, ou
seja, acerca do mundo enquanto pura mutação.
A temática da mutação, da emergência do novo, do diferente e da
repetição do mesmo percorre toda a história da filosofia e se coloca desde o
início. Se a natureza, os homens, são tão variáveis, qual seu princípio
ordenador? Ela é pura multiplicidade, nada se repete de forma idêntica, é
pura diferença? Ou em sua essência há algo que é sempre o mesmo, idêntico
a si próprio, que ordena e harmoniza tamanha variabilidade?
Entre os filósofos pré-socráticos (Talles, Anaximandro, Demócrito,
Heráclito) muitas serão as respostas. Deleuze e Guattari se filiam àqueles pré-
socráticos que concebem a physis (que para os gregos é natureza, incluindo o
homem) como um processo auto-gerador de diferenças, em que nada se
repete da mesma maneira.
A physis gera a si própria, se diferenciando, se transmutando; ela é
auto-fazer-se contínuo, um campo de forças-intensidades, um espaço virtual,
movimento de átomos-moléculas em encontros variáveis, caos gerador e
criador de todo o existente. Este caos criador, espaço virtual, princípio
indeterminado está, por sua vez, imanente a todas as formas e matérias
criadas, que a seu tempo se corrompem.
Logo, em cada coisa, cada forma, cada existente, reside o princípio da
própria variabilidade, o próprio devir, não sendo possível imprimir à vida, em
todas as suas manifestações, algo da ordem de uma essência verdadeira
imutável que se constituiria como modelo a ser copiado.
Como conseqüência, temos que viver e agir no mundo, lugar da
experimentação, da arregimentação de uma pluralidade de forças e dos
movimentos da invenção.
Seguem-se aos pré-socráticos, os sofistas, num novo tempo, nova forma
de organização social. O homem grego está frente à Polis (a cidade grega),
frente à lei (o que está instituído) e aquilo que ele transforma (o instituinte).

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As reflexões filosóficas tomam o homem, a sociedade e linguagem cada vez
mais como temas.
Para os sofistas, herdeiros da visão pré-socrática do mundo enquanto
lugar da variabilidade, não é possível ao pensamento, ao conhecimento
apreender nenhuma essência real e verdadeira das coisas. Como
conseqüência, todo discurso é ele próprio agente que constitui o real, se
colocando, portanto, como uma tática, uma política no jogo das relações de
forças sociais.
Contemporâneo dos sofistas, Platão recusa suas concepções em busca
de uma episteme, ou seja, da fundação de uma teoria do conhecimento que
permita ao homem conhecer a verdadeira essência real de tantos fenômenos
variáveis e estabelecer os discursos verdadeiros sobre os seres.
A doutrina platônica inaugura, então, uma divisão de mundo, dos seres.
De um lado, o plano apreensível pela experiência sensível, mas que é variável
e enganador, pois não nos permite conhecer a verdadeira realidade. De outro
lado, o plano das idéias inteligíveis, essências puras e imutáveis dos
fenômenos. Plano apreensível pelo pensamento (parte racional da alma) o
qual permite conhecer a verdadeira realidade dos seres.
Estão aqui as raízes da filosofia da representação: - a busca de relações
lógicas entre representações e objetos representados; a busca de essências
universais e verdadeiras dos fenômenos regulados por leis inteligíveis (busca
da ciência moderna); a entronização da razão por um lado, enquanto por
outro se depara com a desqualificação das multiplicidades dos
acontecimentos, das singularidades; a importância de modelos ideais. Esta é a
matriz não somente do pensamento ocidental mas do modo de viver ocidental
que encaminha o homem em sua busca contínua de modelos ideais e
verdadeiros que estão transcendentes (fora) às situações que ele vivência e
que o afetam.
O real verdadeiro, não enganador, são as essências inteligíveis e
imutáveis das coisas, ou seja, representações-idéias às quais se chega pelo
exercício do pensamento racional, desqualificando e assujeitando o próprio
fluir da vida, a possibilidade de uma existência estética guiada pelos desejos
de beleza, de encontros de forças, de encontros de pluralidades, de
singularidades. O pensar se torna superior ao sentir, a teoria ganha eminência
sobre a prática, o que se afirmam são os modelos, as normas, a lei, as formas
ideais. Como disse Deleuze: “Nós não acreditamos mais no mundo”.
Acreditamos em modelos, poderíamos acrescentar.
Contudo, Deleuze e Guattari vão continuar “pescando” na riqueza das
correntes filosóficas “não vencedoras” no pensamento ocidental elementos
vários. Dos cínicos, megáricos, chegando aos estóicos gregos, vão privilegiar as

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concepções que enfatizam não os seres sem si, mas os seres em constantes
relações, o entre-seres, o entre-coisas, as forças em relação.
Os estóicos gregos vão conceber que tudo aquilo que existe são corpos:
- as idéias, o espírito, os sentimentos, as virtudes, as coisas, os atos, os gestos,
são corpos em permanentes encontros, em atividade de acoplamento, em
movimento, em que uns afetam aos outros continuamente.
As idéias não são modelos transcendentes à realidade das coisas e das
ações, estas últimas, por sua vez, sendo imperfeitas cópias que terão de ser
aperfeiçoadas até sua meta ideal.
Desse dinamismo de encontros de corpos resultam acontecimentos
incorpóreos que vão ser expressos na linguagem. Cada acontecimento
subsiste na linguagem enquanto valores e sentidos criados/gerados pelos
corpos em relação, e é sempre único, irrepetível, processual, não sendo
identificável às propriedades dos corpos, às essências dos indivíduos, mas
resultam das relações em jogo, são efeitos do entre-corpos, entre-forças,
entre-coisas. Na Esquizoanálise vamos reencontrar tais inspirações através do
conceito de agenciamento de forças-corpos, macro e micro (corpos-idéias,
corpos-teóricos, corpos-valores, corpos-matérias, corpos-afetos) como valor
da produção de acontecimentos, de transformações, mais que isto, de
transmutações sociais e dos modos de ser do sujeito. Agenciar, conectar,
juntar n elementos, em “armações” sui-generis é produzir e inventar a vida
material, social, cultural, subjetiva; ou então estamos condenados à
reprodução, à repetição do mesmo, à obediência aos modelos, às normas, ao
instituído, à palavras de ordem, ao espírito reformista.
Como diz Guattari (Revolução Molecular), militar é agir, é maquinar
encontros de mil elementos, no aqui-e-agora, no cotidiano, multiplicando as
formas de ser de viver, subvertendo o estabelecido em qualquer hora e lugar.
Para os estóicos, o pensar e o agir estão juntos, colados, misturados.
Tais concepções afirmam a vida, a invenção, o novo, o instituinte e encontram
parentesco nas concepções de Nietzsche e Espinoza. Nestes dois últimos
filósofos citados, reencontraremos o caos como potência subversiva de
criação, como campo de forças em contínua diferenciação, a realidade como
substância geradora de infinitos modos e atributos, sendo o organizado, o
estruturado expressões possíveis - compossíveis - dessa substância/potência.
O real é, pois, do plano das intensidades, do livre fluir de forças partículas que
se conectam ao acaso, que em seu livre movimentar produzem formas,
maneiras, modos...acontecimentos..., algo do que só se pode falar como
emergência brutal, este acontecimento, esta forma, esta maneira, todas por
sua vez gerando novos fluxos no infinito processo de produção de diferenças.

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Para uma visão nietzscheana do mundo, este poliverso não tem
racionalidade, ordem, lei, não é bom nem mau, justo ou injusto. São as
interpretações do homem que estabelecem valores em cada período histórico
e o próprio homem não tem essência, uma natureza, uma estrutura universal,
posto que ele é uma multidão de forças que se diferenciam
permanentemente.
Na garimpagem dessas correntes filosóficas, somando elementos das
artes, da biologia e física contemporâneas, a Esquizoanálise propõe uma nova
maneira de entender a sociedade e a questão do desejo (da subjetividade).

A questão do desejo na Esquizoanálise

Podemos dizer que o empreendimento esquizoanalítico é pós-


psicanálise; esta, por sua vez, teoria do funcionamento subjetivo inconsciente,
ou seja, dos desejos e fantasias.

A Psicanálise

No final do século passado, S. Freud iniciou uma leitura inteiramente


nova dos fenômenos subjetivos: - sua escuta dos sintomas histéricos, fóbicos e
outros, dos sonhos, dos atos falhos, das fantasias, o levou a explorar novas
regiões da mente. Com a concepção do inconsciente, a representação do
homem enquanto ser racional, senhor de si e de seus atos, ficou abalada.
Freud postulou que o homem - em seus atos, fala, escolhas, sintomas,
fantasias, manias - está determinado por impulsos e desejos que ele não
controla intencionalmente e até desconhece.
Podemos ilustrar a contribuição psicanalítica por fatos corriqueiros: -
quando, às vezes, um “falante” ao se expressar, de repente, troca uma palavra
por outra produzindo em si mesmo e no interlocutor uma surpresa, temos aí o
inconsciente em ação. A esse fenômeno se chama lapso de linguagem,
perante o qual Freud se pergunta: - o que esta nova palavra quer dizer? Como
apareceu? (Estas são perguntas do naipe das questões acerca dos sonhos e
sintomas, tipo: - como emergiu esta fobia, este sonho?).
Essa nova palavra ou lapso lingüístico, assim como os sonhos, sintomas,
chistes, são trilhas através das quais se chegam aos desejos inconscientes. E o
que são tais desejos?
- São forças que circulam por imagens e representações de situações
prazerosas passadas, buscando sua reedição no presente; não estão, portanto,
voltadas para o presente em si ou para o futuro.

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- São forças que investem objetos/imagens que se articulam
triangularmente (ao modelo da família nuclear burguesa): imagens de si
mesmo e das figuras parentais numa dinâmica de fusão/ completude e
separação/incompletude; não estão, portanto, voltadas de imediato para as
situações sociais reais. Na medida em que os desejos buscam imagens, seus
objetos não são passíveis de ser encontrados na realidade, portanto, não são
possíveis de realização.
- São representações de objetos em uma cena trágica (o Édipo), drama
universal que determina todos os sujeitos e inteligibiliza todos os fenômenos
subjetivos.

O avesso da Psicanálise

Para a Esquizoanálise os desejos não são forças que estão ocupadas em


reativar imagens de situações prazerosas passadas; nem energias que se
concentram em atores imaginários encenando proibições e impossibilidades
(a fusão, o incesto, o parricídio); nem intensidades que andam em órbitas
circulares e no seu orbitar repetem “eu, mamãe, papai”, em versões várias.
Não são potências desinteressadas da realidade social, econômica, política,
que primeiro vão se resolver em família para depois saírem de casa.
Os desejos são aqui a própria produção de algo, a invenção que aflora,
um novo modo de existir e de ser que se realiza. Estranho? Difícil?
O mundo está cheio de coisas (corpos): - pessoas, objetos técnicos,
organizações, regras, famílias, instituições, ruas, economia, idéias, espaços,
natureza, TV, shoppings, escolas, músicas, arquiteturas.... Tudo isso já tem
forma, qualidade e quantidade, conformação, limite, modo de ser. São
organizados, são molares. Mas, tais corpos estão plenos de intensidades que
fluem em todas as direções, que se cruzam, se cortam, se conectam. São
fluxos intensivos imanentes a tudo que já existe com formato e jeito
organizado. Nesse fluir de intensidades, nesse plano molecular, milhares de
fluxos se encontram, estão em relação, num movimento infinito e algo se
produz: - um novo perceber, um novo movimentar, um outro memorizar, um
emocionar, um linguajar, um desejar. Algo vem a ser de outro jeito e feitio.
Um modo de ser sujeito - uma subjetivação - se produzir. Um novo território
existencial emergiu e essa “existência” está implicada com novos valores, o
que tem amplas conseqüências sociais.
Para a Esquizoanálise, portanto, o desejo é sempre processual. São
devires, intensidades positivas, pré-sujeitos, pré-representações, pré-pessoais,
pré-formais e pré-linguísticas. São usinas fervilhantes, caos gerador de novas
maneiras de ser, de existir. Plano das potências subversivas, das significações

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dominantes. Casamento de heterogêneos (conforme citação de Mony Elkaim)
arranjos de virtualidades, irrupções nas formas hegemônicas da subjetividade.
Deleuze e Guattari afirmam, portanto, que qualquer posição desejo,
posto que é o novo, coloca em xeque o organizado, o instituído, o próprio
sistema social. Afirmam que o capitalismo é o modo de produção universal,
vencedor, posto que ”trabalha bem com o desejo”, fabrica desejos,
confecciona a subjetividade da qual necessita para que se perpetue.

Capitalismo Mundial e produção de subjetividade

Segundo J. Donzelot, a força das contribuições de Deleuze e Guattari


está precisamente em investigar a imanência entre produção social e
produção desejante, alojando o desejo na base do sistema social. “Neste
sentido, temos que examinar a coexistência dos fenômenos molares e
moleculares. Os conjuntos molares estão plenos de investimento libidinal
desejante que tanto conduz à repetição daquele corpo social que já existe,
quanto pode conduzir a um novo corpo social” (Donzelot, 1987)
Ou seja, qualquer análise social não pode prescindir da análise da
subjetividade e do desejo. Por sua vez, o exame do desejo contempla-o tanto
como fenômeno molecular/ondulatório, desprovido de fins, intenções,
produtor do novo, quanto dos mecanismos sociais de captura desse fenômeno
produtivo e revolucionário nas significações dominantes, nas formas de ser
estáticas, nas organizações, nos valores vigentes propiciadores da reprodução
social.
Segundo Félix Guattari, o modo de produção capitalista alcançou tal
grau de universalidade, colonizando o conjunto do planeta, tendendo a fazer
com que nenhum setor de produção, nenhuma atividade humana e nenhum
modo de existência fique fora de seu controle, porque atua na própria
matéria-prima homem: a subjetividade.
Guattari parte do princípio de análise de que o capitalismo mundial
opera não somente por sujeição econômico-social, por sujeição ideológica,
mas produz em escala industrial de forma serializada, um modo hegemônico
de ser sujeito - uma subjetividade capitalística (um jeito wrangler-coca-cola-
de-ser!). Esta subjetividade capitalística adere desejantemente a este modo
de vida, às relações valorizadas por este sistema, às percepções necessárias a
ele, à sensibilidade e à sociabilidade correlativas à reprodução do próprio
sistema
Portanto, para a Esquizoanálise a subjetividade, ou seja, os sistemas de
percepções, de sensibilidade, de memória, de sociabilidade, de corporalidade,
de desejos, é produzida socialmente e encarnada por indivíduos e coletivos.

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A produção social da subjetividade envolve fatores de diferentes
naturezas postos em relação (agenciados). Fatores molares: - relações
familiares, interpessoais, sociais, econômicas, políticas, culturais - e fatores
moleculares: - denominados extra-humanos e infrapessoais, tais como os
sistemas maquínicos, o espaço urbano, arquitetônico, a música, os ritmos, a
mídia, a moda.
Todos esses vetores entrecruzados são elementos constitutivos da
subjetividade e, bem agenciados pelo sistema atual, confeccionam
coletivamente esquemas de conduta, de ação, de gestos, de pensamentos, de
emoções. Essa parafernália produz modos de relações humanas até em nível
inconsciente: as fantasias, os sonhos.
Hoje, todas as relações estão mediadas pelos ritmos impostos nos
grandes centros urbanos, pelo espaço arquitetônico das cidades, pela
automação da vida, pelo espaço doméstico regido por máquinas.
Os homens são, portanto, terminais consumidores dessa subjetividade
cuja premissa nuclear é a premissa do consumo de “objetos” que sempre lhes
faltam: consumo de bens materiais, afetivos, culturais e políticos, cada vez
mais artificiais.
Tal subjetividade capitalística se caracteriza pelo individualismo
exacerbado, pela infantilização, pela atomização das relações, pela
desqualificação da solidariedade, pelas atitudes segregativas, pela serialidade,
superficialidade, culpabilização e dependência ao poder global (a nível
econômico e a nível do saber). O capitalismo, portanto, não funciona em
cúpulas pensantes, estados maiores econômicos, mas no próprio coração dos
homens, ou seja, o lucro capitalista é basicamente produção de poder
subjetivo. Em conseqüência, os processos de transformação social passam por
todas as tentativas de produzir modos de subjetividade originais que dizem
respeito a outras sensibilidades, outras sociabilidades, outros desejos.
Guattari chama a atenção para a importância política de tais processos
de subjetivação, denominando aos processos de resistências subjetiva ou de
diferenciação/autonomização Revoluções Moleculares.

Macropolíticas e Micropolíticas ou Revoluções Moleculares

“A problemática do questionamento do sistema capitalista não é mais do


domínio exclusivo das lutas políticas e sociais em grande escala ou da
afirmação da classe operária. Ela diz respeito também àquilo que procurei
agrupar sob o nome de revolução molecular cujos antagonistas não podem se
classificados em rubricas delimitadas.”(Guattari, 1986)

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Guattari propõe a necessária articulação das lutas macropolíticas ou
lutas clássicas (sindicais, partidárias, de classe etc.) com o âmbito micropolítico
ou das lutas moleculares, âmbito de microprocessos revolucionários que se
opõem em qualquer lugar, em qualquer relação a subjetividade capitalística,
ao modo capitalístico de existir.
As estratégias micropolíticas dizem respeito à auto-análise permanente
do funcionamento do desejo no campo social, e à autogestão dos processos
de produção da subjetividade.
Trata-se, portanto, da re-apropriação (autogestão) por indivíduos e
coletivos nas escolas, na vizinhança, nas associações de bairro, nas famílias,
nos movimentos de minorias, nas favelas, de todos os instrumentos dos quais
têm sido desapropriados:
a) Re-apropriação e gestão coletiva dos instrumentos e meios de
informação e decisão;
b) Re-apropriação da música, da dança, do folclore, das culturas
regionais, dos espaços das ruas, das praças;
c) Re-apropriação do tempo, resistência e recusa dos ritmos impostos
ao trabalho no capitalismo avançado;
d) Afirmação de novas formas de sociabilidade e de sensibilidade na
vida doméstica, amorosa, profissional, na vizinhança, nas escolas;
e) Re-apropriação dos saberes formais técnicos e de n tipos de
referências teóricas e práticas;
f) Invenção de novas relações geracionais, raciais, de gênero, religiosas;
g) Re-apropriação das tecnologias;
h) Lutas por espaços de liberdade e participação nas organizações
hospitalares, escolares, empresariais, sindicais, associações, etc.;
i) Construção de centros de convivência alternativos com autonomia de
gestão.
j) (Re) invenção dos meios de expressão política e cultural.

As estratégias micropolíticas não podem prescindir da auto-análise dos


investimentos sociais do desejo, o que implica em análise coletiva
permanente:
- dos menores índices de burocratização nos grupos e movimentos;
- dos mecanismos de poder nas relações cotidianas em qualquer
espaço;
- do mito da representatividade;
- da reprodução de microfacismos em qualquer relação: familiares,
conjugais, de gênero, de etnias, geracionais, de vizinhança, de trabalho, enfim,
em qualquer âmbito de convivência;

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- análise das atitudes segregativas, do falocratismo, do etnocentrismo,
dos medos sociais, dos fenômenos de centralização de poder e de saber.
Na ausência dos processos de análise dos investimentos sociais do
desejo, ocorrerá inevitavelmente uma cisão nos movimentos e grupos. Por um
lado, em termos de programas, propostas e discursos, encontram-se pautas
revolucionárias enquanto, por outro, no nível molecular das relações grupais
depara-se com a reprodução da subjetividade capitalística com todo o seu
cortejo de micrototalitarismos, micro-autoritarismos, individualismos de toda
espécie, tecnicismo.
As análises e estratégias micropolíticas requerem n modos de
referência e de ação, a ativação de saberes locais populares contra-
hegemônicos, a articulação dos mesmos com saberes constituídos
cientificamente, e o acoplamento com as memórias locais, ou seja, o saber
histórico e experiencial das lutas e a utilização desses saberes em táticas
atuais.
O âmbito das micropolíticas está na base do questionamento e da
transformação social objetivando o movimento instituinte de novas
subjetividades fundadas em outros valores, com as decorrentes
transformações das relações econômicas e políticas.
Na perspectiva das micropolíticas podemos identificar a afinidade de
Guattari às idéias de Foucault acerca do poder. O poder não é concebido
como um bem a ser conquistado, ou uma relação de dominação de classe, ou
de um grupo sobre o outro. A concepção foucaultiana é a de uma tensão
permanente de forças que se exercem nas relações cotidianas, na família, nas
ruas, na linguagem. O poder é uma rede de relações, uma microfísica, uma
micromecânica, uma “montadora” de sujeitos que está em funcionamento nas
organizações, agentes e práticas. É uma rede que constitui os sujeitos e que
está no corpo, na linguagem, nas práticas cotidianas.
As revoluções moleculares são os movimentos resistenciais a esta rede
estendida em todo o campo social constitutiva da própria subjetividade. As
grandes formações sociais têm seu poder esmagando todas as multiplicidades.
Trata-se, portanto, de resgatar todas as espécies culturais subjetivas
existenciais no esforço de (re)invenção da própria vida. Invenção de outras
sociabilidades, outras sensibilidades, outras formas de percepção,
memorização, organização, expressão política, outras relações de gênero, de
raça, de gerações, de conhecimento.
Convém lembrar que molar e molecular estão permanentemente
imbricados. Há sempre uma miríade de micropercepções, micro-afetos,
micro-atitudes presentes nas formas molares. Por outro lado, não podemos
tomar os fenômenos moleculares por princípio como revolucionários e

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inovadores sem uma análise apurada. O próprio fascismo depende de n
microfascismos que se proliferam antes de ressoarem todos no Estado
centralizado e totalitário. São pequenos riachos de totalitarismo, medos,
posturas centralizadoras que alimentam o corpo social. Portanto, vai ficando
cada vez mais evidente que os processos de transformação social estão na
dependência da conjunção das lutas molares às moleculares.
Portanto, os fenômenos moleculares estão presentes tanto nos
processos de transformação social quanto nos mecanismos capitalistas de
reprodução social. Quanto mais o capitalismo se torna planetário, mais seu
funcionamento é miniaturizado. Segundo Gorz, citado por Guattari, “o
capitalismo mundial não tem mais como elemento de trabalho senão o
indivíduo molecularizado.” A administração de um grande aparelho de
segurança molar organizado tem por correlato todo um micro-agenciamento
de medos, de uma insegurança molecular permanente. Portanto, as ações
sociais transformadoras não podem prescindir da proliferação de movimentos
moleculares de reivindicação subjetiva diferenciadora como tática de oposição
à grande organização mundial do capital.
Mil revoluções moleculares que contemplem mil e uma inovações
estéticas, lingüísticas, econômicas, relacionais fazem estourar os códigos
vigentes impostos, inventando novos territórios existenciais, retomando a vida
como devir retomando a própria vida como devir.
Esses processos não remetem aos domínios da imaginação, do
individual ou interindividual. São processos sociais reais com extensas
repercussões que atiçam e desmontam as formas sociais estabelecidas,
fazendo ruir por dentro, como um caruncho, o sistema social.

Bibliografia

CAMPOLINA, M. Anotações de aula, Curso de Filosofia. Núcleo de Psicanálise,


Estudos e Práticas Institucionalistas. s/d.

DONZELOT, J. Uma anti-sociologia. In: CARRILHO, M.M. (Org.) Capitalismo e


esquizofrenia: dossier Anti-Édipo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1976.

GUATTTARI, F. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo, São Paulo:


Brasiliense, 1985.

GUATTARI, F. e ROLNIK, S. Micropolítica - Cartografias do Desejo, Petrópolis:


Vozes, 1986.

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