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A CONTRIBUIÇÃO DE ALTHUSSER À TEORIA DA IDEOLOGIA

Alipio DeSousa Filho


Cientista Social, Doutor em Sociologia pela Sorbonne-Paris V,
professor da UFRN
alipio.sf11@gmail.com

Augusto Cesar Francisco


Sociólogo, Doutorando em sociologia na Universidade de Dresden (Alemanha)
acfrancisco@daad-alumni.de

A ideologia em Marx e Engels

O termo ideologia ganhou um sentido crítico, pela primeira vez, quando Karl Marx e
Friedrich Engels escreveram “A ideologia alemã” no século XIX, embora seja um texto que
somente tenha vindo a público em 1932, quando seus autores já não estavam vivos. Nessa obra,
Marx e Engels buscaram conceituar a ideologia em sua relação com o fenômeno da consciência no
ser humano, e a entenderam como uma consciência que corresponderia a uma visão invertida da
realidade (“em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo [...], da
mesma forma como a inversão dos objetos na retina”1), uma visão distorcida, que, como numa
ilusão de ótica, inverte inteiramente a forma da realidade. Para o assunto ao qual aplicavam suas
reflexões, isto é, o mundo humano-social, sua gênese, história, estrutura e funcionamento, os
autores destacaram que a ideologia inverte inteiramente a sua forma, seus fundamentos e seus
processos: ali onde está o histórico faz aparecer o eterno e o transcendental, onde está o humano
apresenta o divino, onde está o cultural põe o natural, onde está o contingente presume o necessário
e o inevitável, onde está o particular reconhece o universal. Uma inversão e uma ilusão que,
constituindo uma consciência distorcida, faz a realidade parecer algo autônomo relativamente à
ação humana, ao próprio social e à história. Uma autonomização que, conforme escreveram os
autores, torna a realidade uma “potência estranha” e a faz aparecer como “independente do querer
e do agir dos homens e que até mesmo dirige esse querer e esse agir”2.

1
Karl Marx e Friedrich, A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 94
2
Ibidem, p. 38
Enquanto buscavam definir os principais traços da ideologia, Marx e Engels atacam o que
entenderam ser uma concepção idealista da realidade que, para eles, o pensamento de Hegel e seus
seguidores fomentavam. Uma vez em ação, essa concepção idealista, incapaz como pensamento de
abordar a realidade com exatidão, pois, ao desconsiderar a “história real”, a “base real da história”
ou “a produção real da vida” (são expressões utilizadas pelos autores repetidas vezes em suas
obras), mereceria ser nomeada por seu verdadeiro nome: ideologia. A concepção idealista
corresponderia a uma forma da ideologia. Seria uma de suas manifestações. O idealismo em
filosofia é a ideologia como filosofia. Daí o título, algo de sarcástico, “a ideologia alemã”, um
trocadilho com “a filosofia alemã”. A filosofia que tornaram objeto de suas análises e críticas seria
uma ideologia e não uma filosofia, e “em especial a alemã”, como escrevem no subtítulo de uma
das seções do livro. Em outro de seus textos, “Contribuição à crítica da economia política”, Marx
vai referir-se à “concepção ideológica da filosofia alemã”3.
Para os autores, o conhecimento da realidade, o conhecimento da história, exigia outra
concepção, oposta ao idealismo, uma concepção materialista, capaz de partir da materialidade dos
processos e relações que produzem, reproduzem e transformam a realidade. Única condição do
pensamento humano superar a concepção idealista e ideológica, quase sinônimos, como visão
distorcida e invertida da realidade. Uma concepção da realidade (e da história) que consistiria em
partir da produção material e do intercâmbio material como base real da existência humana e dos
demais produtos da ação humana: produção material da existência entendida como produção das
condições materiais para a vida humana em grupo, em sociedade – do alimento ao abrigo, passando
pelo transporte, ideias de organização, divisão do trabalho, reprodução etc. Compreender uma
sociedade e sua época é possível filosoficamente não no caso de se "desce[r] do céu à terra”, como
no idealismo, e sim, como dizem os autores, agindo como na concepção materialista que “ascende
da terra ao céu”. Isto é, na concepção materialista “não se parte daquilo que os homens dizem,
imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a
partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de
seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos
desse processo de vida. [...] Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência”4.
Na concepção de Marx e Engels, esse processo de vida real – processo real de produção da
vida em sua dimensão material, produção material da vida imediata – está inteiramente situado no
modo de produção econômico (forças produtivas, relações de produção, formas de propriedade dos
meios de produção, intercâmbio econômico), em seus diferentes estágios, e é por essa razão que os

3
Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977, p. 26
4
Karl Marx, Friedrich Engels, A ideologia alemã, p. 94
dois autores o concebem “como fundamento de toda a história, tanto a apresentando em sua ação
como Estado como explicando a partir dela o conjunto das diferentes criações teóricas e formas de
consciência – religião, filosofia, moral etc”5. Uma concepção que corresponderia a uma justa visão
da realidade porque partiria do “solo da história real; não de explicar a práxis partindo da ideia,
mas de explicar as formações ideais a partir da práxis material”6.
Para os fundadores da concepção materialista da história, é a práxis material, entendida
como o conjunto das ações para a produção da existência humana na sua dimensão material
(comida, moradia, locomoção, trocas, sexo etc.), que engendra as relações sociais. Mas, entre essas
relações, haveria aquelas que seriam fundantes do modo de produção que lhes corresponde, as
“relações de produção” (na realidade, relações entre classes sociais, pois relações entre proprietários
de meios de produção e proprietários de força de trabalho, mas despossuídos de meios de
produção), a partir das quais as demais relações sociais, estruturas sociais, leis, moral etc. são
determinadas. O modo de produção (com suas relações de produção e forças produtivas em um
certo estágio de desenvolvimento) torna-se, assim, para a concepção materialista da história, uma
espécie de infraestrutura sobre a qual se ergueria uma superestrutura de instâncias jurídicas,
políticas e ideológicas, que seria funcional por contribuir para a sua reprodução e para a reprodução
das relações sociais que lhe dão suporte. Como escreveram: “a observação empírica tem de provar,
em cada caso particular, empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou especulação, a
conexão entre a estrutura social e política e a produção”7.
Aplicando essa “concepção materialista” de “A ideologia alemã” à análise de toda história
precedente ao surgimento da sociedade capitalista, os autores buscaram apontar que a ideologia
seria essencialmente constituída das ideias que ocultam essa determinação do modo de produção
econômico sobre a superestrutura. Nesse sentido, todos os produtos das superestruturas, em cada
época, como o direito, a moral, a religião, o pensamento em geral etc. aparecerem como sem
vínculos com o modo de produção e sem vínculos com as classes que participam (ou se enfrentam)
nas relações de produção nele dominantes. Simulando a superestrutura como autônoma, a ideologia
não apenas ocultaria a determinação do modo de produção, mas principalmente o fato de que toda
superestrutura se constitui apoiada no modo de produção.
Para contestar a concepção idealista, que, como a ideologia, negaria esse processo e esses
fatos históricos, Marx e Engels puseram atenção na inversão promovida pelos filósofos idealistas a
propósito da relação entre consciência (superestrutura) e história (história da “vida real”, da
produção material das condições de existência, o modo de produção específico, a infraestrutura).
Eles acusavam os idealistas de substituir os próprios movimentos da história pelos “progressos da

5
Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, p. 42
6
Ibidem, p. 43
7
Ibidem, p. 93
consciência” como os responsáveis pelas mudanças históricas dos processos de produção, trabalho,
relação do ser humano com a natureza etc. Cabia às suas críticas inverter a inversão produzida pelo
entendimento idealista. Como escreveram: “os indivíduos não mais subsumidos à divisão do
trabalho foram representados pelos filósofos como um ideal sob o nome “o homem”, e todo este
processo que acabamos de expor foi concebido como sendo o processo de desenvolvimento “do
homem”, de tal modo que, em cada fase histórica, “o homem” foi introduzido sorrateiramente por
sob os indivíduos anteriores e apresentado como a força motriz da história. [...] Graças a esta
inversão, que desde o início faz abstração das condições reais, foi possível transformar toda a
história num processo de desenvolvimento da consciência”8.
O ocultamento ideológico, todavia, não se refere apenas à negação do modo de produção
como origem de todas as demais relações sociais e ideias sociais nas sociedades e na história, mas
refere-se, e talvez principalmente, à negação do caráter histórico e social de toda realidade fundada
pela práxis humana. No ocultamento ideológico, a realidade do mundo humano-social aparece sem
história, como produto de um “desenvolvimento natural” da própria realidade, quando desaparecem
todos os vestígios da ação e das lutas para sua construção e institucionalização, uma espécie de
“história” sem o histórico, sem a efetiva historicidade da realidade. Assim escreveram os autores de
A ideologia alemã: “Quanto à história dos homens, será preciso examiná-la, pois quase toda a
ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou a uma abstração total dela”9.
Os autores também destacaram uma relação intrínseca entre ideologia e as ideias da classe
que na sociedade detém a posse dos meios que garantem a produção material/econômica e o
controle do aparelho político do Estado, a “classe dominante”. Para eles, a ideologia corresponde às
“ideias dominantes” e, como escreveram, “as ideias da classe dominante são, em cada época, as
ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo
tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção
material dispõe também dos meios de produção espiritual”10. Dessa maneira, para os autores, a
ideologia corresponde às ideias dominantes e estas correspondem sempre às ideias da classe
econômica e politicamente dominante em uma sociedade. Mas, por que essas ideias são, por Marx e
Engels, concebidas como “ideologia” ou “ideológicas”? Porque são ideias negadoras das relações
sociais que imperam na sociedade, por serem a expressão mascarada das relações que tornam
possível à classe detentora do poder econômico a dominação de classe. Como assinalaram: “as
ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes,
são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das

8
Ibidem, p. 107
9
Ibidem, p. 87
10
Ibidem, p.47
relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação”11. Os
autores aplicaram suas teses especialmente ao caso e história da sociedade burguesa moderna, a
sociedade capitalista.
O destaque para a tese da “determinação, em última instância, pelo modo de produção”, para
o caráter ideológico das “ideias das classes dominantes” e sua aplicação à análise da sociedade
capitalista, como base para a análise de ideologia, ensejou todo um conjunto de análises e obras que
seguiram e seguem até hoje a tese central dos fundadores da concepção materialista da história, com
poucas modificações.

O conceito de ideologia em Althusser

Com Louis Althusser, na segunda metade do século XX, o conceito de ideologia ganhou
novas formulações e um novo impulso. Quando o autor procurou entender como as relações de
produção na sociedade capitalista se reproduziam e, para isso, retornava ao tema de Marx e Engels
sobre a relação entre infraestrutura e superestrutura, inovou, e essa inovação perdura ainda nos
debates do campo marxista. Em seu livro “Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado”, Althusser
parte das ideias básicas do materialismo histórico, segundo as quais há, na sociedade capitalista,
duas classes sociais, a dominante e a dominada, respectivamente a burguesia, proprietária dos meios
de produção, e o proletariado, detentor da força de trabalho. O seu objetivo não é mais a produção, e
sim a reprodução, e especificamente da força de trabalho. Como o foco do autor é a reprodução da
força de trabalho, que deve ser qualificada e diversificada, a reprodução dos meios de produção não
são, aqui, objeto do seu debate. O autor questiona: “Ora, como é que esta reprodução da
qualificação (diversificada) da força de trabalho é assegurada no regime capitalista?”12. A resposta
a esta questão dará suporte à tese inovadora de Althusser em torno do problema da ideologia na
sociedade capitalista.
A sociedade capitalista funciona fundamentalmente com o suporte do Estado, através dos
seus aparelhos repressivos e ideológicos, para garantir a dominação de sua classe dominante. Entre
os aparelhos repressivos, encontram-se a polícia, o exército, a justiça penal, as prisões, etc. Os
aparelhos repressivos funcionam unificadamente em torno da manutenção repressiva com o
objetivo de estabilidade e reprodução do sistema capitalista. Por outro lado, essa reprodução conta
com a justificação da dominação do sistema sobre toda a sociedade e, particularmente, da
dominação da classe econômica e politicamente dominante. Tal justificação é realizada pela
ideologia. E como isso ocorre?

11
Ibidem, p. 47
12
Louis Althusser, Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença; São Paulo: Martins Fontes,
1974, p. 20
Para Althusser, ocorre no processo de qualificação da força de trabalho e de sua reprodução.
Diferentemente do que se passava nas sociedades anteriores, nas quais a qualificação da força de
trabalho ocorria na própria produção (“em cima das coisas”), na moderna sociedade capitalista a
qualificação ocorre sempre mais fora da produção: “através do sistema escolar capitalista e outras
instâncias e instituições”13. Mas, nesse processo, o sistema escolar não apenas ensina as técnicas e
os conhecimentos necessários ao processo de produção, ensina igualmente “o comportamento que
todo o agente da divisão do trabalho deve observar”14. Ou, em outras palavras: “a reprodução da
força de trabalho exige não só uma reprodução da qualificação desta, mas, ao mesmo tempo, uma
reprodução da submissão desta às regras da ordem estabelecida, isto é, uma reprodução da
submissão desta à ideologia dominante para os operários e uma reprodução da capacidade para
manejar bem a ideologia dominante para os agentes da exploração e da repressão”15. Nesse
sentido, na sociedade capitalista, destaca o autor, o lugar privilegiado da ideologia é a escola. O
papel da educação equivale a uma divisão escalonada do trabalho daqueles que desempenham desde
as funções de trabalho operário, passando pelas ocupações do pequeno funcionalismo até chegar aos
lugares de mando. A escola faz parte das ocupações de Estado, em seu papel de assegurar a
estabilidade e a reprodução da sociedade, sua ordem social, e o domínio particular de sua classe
dominante.
O Estado e a ideologia pertencem, na teoria desenvolvida por Marx e Engels e
continuadores, como vimos, à superestrutura, que se sustenta sobre uma infraestrutura, base
material da sociedade, de acordo com uma tópica descritiva. Mas, para Althusser, que elabora um
outro conceito de modo de produção no marxismo, embora a infraestrutura seja determinante, há
um domínio mais ou menos autônomo da superestrutura. É assim que o Estado e a ideologia,
fazendo parte desta (superestrutura), assumem uma autonomia relativa em relação àquela
(infraestrutura), tendo sobre esta uma “ação em retorno”16, responsável, em grande medida, pela
reprodução do modo de produção enquanto uma estrutura global.
Na tese de Althusser, o modo de produção é um todo complexo, uma combinação específica
de estruturas e práticas sociais, que o autor chama de “níveis ou instâncias”, com autonomia e
dinâmicas próprias, e (em cada modo de produção específico) uma dessas instâncias domina as
demais. Se em todos os modos de produção na história a infraestrutura econômica é sempre
determinante “em última instância”, nem sempre é a instância econômica que exerce o papel
dominante para o asseguramento da reprodução das relações de produção dominantes e para a
manutenção da dominação do sistema de sociedade vigente. Althusser propõe que, em cada modo

13
Ibidem, p. 20
14
Ibidem, p. 21
15
Ibidem, p. 21- 22
16
Ibidem, p. 27
de produção, existem coordenações específicas entre as várias instâncias que produzem relações de
domínio e subordinação de umas em relação às outras, e é isto o que configurará o fenômeno que
chamou “sobredeterminação”17: as relações que constituem as instâncias jurídico-política e
ideológica estão sempre sobredeterminadas por suas relações entre si ou por suas relações
diferenciadas com a instância econômica. É o que permite que uma delas possa exercer o papel
dominante na reprodução da dominação e, portanto, na reprodução das condições que tornam
possível a reprodução do modo de produção. A sobredeterminação torna possível que uma das
instâncias sobressaia mais em determinados períodos históricos e domine todo um período como a
instância que propriamente assegura a reprodução social e a dominação de uma classe particular e
seu sistema de sociedade.
A determinação “em última instância” pela esfera econômica não corresponde
necessariamente a um papel de dominância que poderá eventualmente assumir em um determinado
período histórico ou modo de produção. Este papel dominante no modo de produção, isto é, na
própria sociedade, enquanto uma estrutura global de infraestrutura e superestrutura, em
determinados momentos históricos pode ser da instância jurídico-política ou da instância ideológica.
A economia é determinante enquanto instância que atribui este papel dominante a esta ou aquela
instância, ao selecionar uma das instâncias e ao estabelecê-la em posição dominante. Determinação
não é, contudo, dominância. São fenômenos diferentes. Para Althusser, os “índices de eficácia” (de
determinação) da base econômica sobre os “andares” da superestrutura são “diferentes” e, ainda que
os andares da superestrutura não sejam determinantes em última instância, mas sempre
determinados pela base, o fato de os índices de determinação sobre as instâncias superestruturais
serem diferentes torna possível que, “enquanto determinada pela determinação em última instância
da base”18, uma instância passe a ser (pelo índice de eficácia de sua determinação) dominante sobre
outras e sobre a própria base, passando a agir com relativa autonomia no papel de instância central
que assegurará a reprodução das condições que garantem a reprodução do modo de produção como
tal e como um todo complexo. Dirá Althusser: “a nossa tese fundamental é que só é possível
colocar estas questões (e portanto responder-lhes) do ponto de vista da reprodução”19. Para o autor,
no modo de produção feudal, no período medieval europeu, é a instância ideológica que assume o
papel dominante, por meio do domínio da religião, principalmente o catolicismo. Na Antiguidade,
em Roma e Grécia, a instância jurídico-política é que assume o papel central na reprodução social.
É o conceito de sobredeterminação que permite a Althusser pensar de uma nova maneira o
problema da autonomia relativa na consideração marxista sobre as relações entre infraestrutura e
superestrutura, e por essa via recolocar o problema do papel do Estado e da ideologia na reprodução

17
Louis Althusser, A favor de Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1979
18
Idem, Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, p. 27
19
Ibidem, p. 29 (grifo do autor)
da sociedade enquanto um modo de produção específico. Para o autor (diferenciando-se de outras
concepções no marxismo), o modo de produção corresponde à estrutura global da sociedade e não
apenas à instância econômica desta. Uma sociedade é um modo de produção em sua totalidade, e
este não se resume à sua instância econômica. Uma nova visão do problema que trouxe embutida
uma compreensão para o problema também das relações entre as demais instâncias entre si e destas
com o imperativo da “determinação em última instância pelo econômico” no pensamento marxista.
Com suas teses, Althusser enfrenta certas tendências do pensamento marxista que tinham
esvaziado o papel do Estado e da ideologia na reprodução social. Se, no marxismo, ainda se tratava
de pensar a “revolução” e construir o “pensamento revolucionário”, não se tornava possível deixar
de abordar e refletir sobre o assunto do Estado e da ideologia. Para Althusser, negar o papel do
Estado e da ideologia na reprodução social, ou negar que a ideologia seja um entrave para a
transformação social, corresponde também a uma simplificação da história no pensamento marxista,
às vezes concebida unicamente como uma variação da instância econômica no tempo, ou que esta
variação seja concebida como a única que produz todas as verdadeiras mudanças.
Althusser, ao modificar a compreensão da relação entre infraestrutura e superestrutura (ou,
em outros termos, entre o peso do fundamento econômico e da ideologia e do Estado na reprodução
ou transformação social), introduz também uma nova concepção da transformação social – para a
qual a pesquisa e o conhecimento da ideologia interessam em primeiro lugar. É assim que escreve
sobre a ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado, concebidos como “aparelhos” pelos quais a
reprodução social passa inevitavelmente, ou toda tentativa de transformação social, se não se quiser
manter uma visão simplória da realidade ou correr o risco do malogro das mudanças sociais.
Althusser separa o Estado em aparelhos repressivos, que funcionam por meio da violência,
por meio da força, funcionando ao lado dos aparelhos ideológicos, responsáveis pela produção e
difusão da ideologia. É assim que há, no seio da sociedade capitalista, o Estado como Aparelho
Repressivo (unificado e violento) e o Estado como Aparelho Ideológico (descentralizado e sutil,
“ideológico”): este último, o “Estado dos AIE”. Enquanto o primeiro possui um caráter “público”, o
último se desenrola em instituições “privadas”. O autor reformula a ideologia segundo as ideias que,
com a mediação do Estado, circulam como reprodutoras da dominação da classe social que é a
classe dominante no modo de produção. São exemplos dos AIE os sistemas escolares, familiares e
religiosos.
Nos sistemas escolares, que, para Althusser, são o AIE privilegiado na sociedade capitalista
(“aparelho ideológico de Estado nº 1, e portanto dominante”20), na medida em que mais ocupa o
tempo dos indivíduos que vêm a ser socializados (ou qualificados como “força de trabalho”), os
conteúdos dos ensinamentos para a atividade prática do trabalho e para o modo de ser geral dos

20
Ibidem, p. 62
indivíduos se misturam com a “sujeição à ideologia dominante”. Nessa ideologia, os indivíduos
aprendem que as relações de produção (capitalistas) são “naturais”, sendo que, nessas relações,
existe a dominação da classe proprietária dos meios de produção sobre a classe despossuída desses
meios. Portanto, a ideologia na aprendizagem escolar é garantidora de que a formação da força de
trabalho se faça simultaneamente com a assimilação da naturalização das relações capitalistas na
instância econômica e com a assimilação da naturalização da divisão da sociedade em classes e com
a dominação de uma delas.
Como entender, pois, a ideologia? Em primeiro lugar, ela “não tem história”21. Althusser
retoma Marx e Engles em “A ideologia alemã”, mas pretendendo modificar a interpretação dos
autores a propósito da célebre frase. Para Althusser, os autores apresentaram uma “tese puramente
negativa” e “positivista-historicista” sobre a ideologia como um fenômeno no qual a história estaria
fora dela ou que não tem história própria. Diferentemente, não se trata mais de dizer, como fizeram
os fundadores da concepção materialista da história, que a ideologia não tem história porque a
história real e sua própria história estão fora dela, que esta seja apenas um “pálido reflexo, vazio e
invertido” da vida real, um puro sonho, um nada. Trata-se agora de dizer uma outra coisa: a
ideologia não tem história “num sentido absolutamente positivo”. Ela é “dotada de uma estrutura e
de um funcionamento tais que fazem dela uma realidade não histórica, isto é, omni-histórica, no
sentido em que esta estrutura e este funcionamento estão, sob uma mesma forma, imutável,
presentes naquilo a que se chama a história inteira, no sentido em que o Manifesto define a história
como a história da luta de classes, isto é, história das sociedades de classes. [...] a ideologia não
tem história, pode e deve ser posta em relação direta com a proposição de Freud segundo a qual o
inconsciente é eterno, isto é, não tem história. [...] Se eterno não quer dizer transcendente a toda
história (temporal) mas omnipresente, trans-histórico, portanto imutável na sua forma ao longo da
história, retomarei, palavra por palavra, a expressão de Freud e direi: a ideologia é eterna como o
inconsciente”22 – trataremos ainda a questão do inconsciente dentro da concepção althusseriana da
ideologia. Assim, ela está presente na história inteira, por seu caráter trans-histórico, tornando-se
ainda possível afirmar que a ideologia tem uma história por sua manifestação em formas históricas
particulares, isto é, a ideologia como se manifesta em cada época e em suas diferentes
configurações: “as ideologias têm uma história particular”23.
Mas por que a ideologia é encobridora da realidade das relações de produção e da luta de
classes que estas relações geram na sociedade capitalista? Seguindo a argumentação do autor, “a
ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com as suas condições de

21
Ibidem, p. 71 e seguintes
22
Ibidem, p. 74-75
23
Ibidem, p. 74
existência”24. É uma “representação da relação imaginária” porque não é propriamente uma
representação das relações reais dos indivíduos com as condições de existência reais, mas uma
representação que surge na relação de natureza imaginária que estes indivíduos mantêm com a
realidade: “é a natureza imaginária desta relação que fundamenta toda a deformação imaginária
que se pode observar em toda a ideologia”25. E, mais adiante, o autor arremata: “a ideologia
representa, na sua deformação necessariamente imaginária, não as relações de produção existentes
(e as outras relações que delas derivam), mas antes de mais a relação (imaginária) dos indivíduos
com as relações de produção e com as relações que delas derivam”26.
Mas nada disso torna a ideologia um conjunto de ideias ou imagens ilusórias da realidade,
sem existência material e sem efeitos concretos. A ideologia corresponde a ideias-atos – elas são
atos – praticados no seio do mundo material, na existência concreta dos indivíduos, como sujeitos
da ideologia. As ideias ideológicas não são ideais externas às práticas, que vêm à consciência
posteriormente para justificar as práticas ideológicas. Elas não são um reflexo a posteriori (e
invertido) das práticas na consciência do sujeito. Não apenas elas são suas “armaduras internas”27,
elas próprias são “atos inseridos em práticas”28 do sujeito. Como escreve Althusser: elas são “atos
materiais inseridos em práticas materiais, reguladas por rituais materiais que são também
definidos pelo aparelho ideológico material de que relevam as ideias desse sujeito”29. Com isso, as
ideias ideológicas só existem como práticas, atos, ações que se sustentam sobre a materialidade dos
rituais e aparelhos ideológicos, e que somente existem através de sujeitos e para esses sujeitos:
“surge assim que o sujeito age enquanto agido pelo seguinte sistema [...]: ideologia existindo num
aparelho ideológico material, prescrevendo práticas materiais, reguladas por um ritual, as quais
(práticas) existem nos atos materiais de um sujeito agindo em consciência segundo a sua crença.
[...] só existe ideologia através do sujeito e para sujeitos”30.

Ideologia, produção do sujeito e sujeição: “a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos”

A tese central de Althusser sobre a ideologia está assentada no argumento da “interpelação”


do indivíduo como sujeito. Um indivíduo interpelado pela ideologia será seu sujeito, e este sujeito é
uma produção da ideologia. O que, para o autor, ocorre com todos os indivíduos. O argumento é o
seguinte: a interpelação – que tem na interjeição “Eh! Você” uma representação – é o que torna

24
Ibidem, p. 77 e seguintes
25
Ibidem, p. 81
26
Ibidem, p. 82
27
Como falou do assunto o antropólogo Maurice Godelier, em “A parte ideal do real”, in:
Godelier/Antropologia. São Paulo: Ática, 1981, p.196
28
Louis Althusser, Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, p. 87
29
Ibidem, p. 88-89
30
Ibidem, p. 90-91
possível que a ideologia faça o indivíduo crer que é “sujeito”: aqui, no sentido que é um sujeito
agente. A função da interpelação é produzir o reconhecimento (enganoso, errôneo) de que se trata
propriamente do indivíduo como um sujeito autônomo, e que vai se reconhecer como tal. Ao lado
dessa função, ocorre do processo da interpelação realizar-se numa “estrutura do
desconhecimento”31 que leva a que o indivíduo desconheça o que lhe funda como “sujeito”. O
indivíduo, ao ser interpelado, desconhece o processo de sua própria sujeição e de produção de uma
parte de si como sujeito (aqui, o sujeito althusseriano “assujeitado”, produzido no processo de sua
sujeição à ideologia). Emergindo nesse desconhecimento do que lhe constitui, o indivíduo, agora
como sujeito, ignora e denega que é interpelado e construído pela ideologia. No fim das contas, o
indivíduo reconhece que é sujeito, que a ideologia só pode ser verdadeira, pois realizou a passagem
de sua condição de “existência (no puro limite) biológica à existência humana (filho de homem)”32;
sujeito (que se crê agente e autônomo), mas desconhecendo o processo pelo qual a ideologia
realizou a sua transformação de indivíduo em sujeito. Como a ideologia só funciona por meio da
sujeição, já está dado, já acontece, ao indivíduo, quando vem ao mundo, de não sobrar alternativa
senão atender ao chamado da ideologia e reconhecer que ele é “ele” (o nome ou, como diz
Althusser, por influência do pensamento de Lacan, o “Nome do Pai”) e, ao mesmo tempo,
desconhecer que esse chamado esconde o processo efetivo pelo qual ele é assujeitado, transformado
em sujeito.
A novidade da argumentação de Althusser para a teoria da ideologia está na colocação do
caráter intersubjetivo da interpelação, que leva em conta não mais a “ilusão” e sim o imaginário.
Como comunicação, a intersubjetividade ocupa um lugar central para que a ideologia funcione.
Esses aspectos inovadores da teoria da ideologia são informados com o suporte da psicanálise,
sobretudo na sua vertente construída por Lacan e seus seguidores. Um “eu” na trama da ideologia
deve ser reconhecido pelo indivíduo quando ele se identifica com esse lugar ao mesmo tempo em
que desconhece o seu conteúdo de dominação, sujeição. Esse “eu” já existe no discurso da
ideologia, cabe aos indivíduos serem seu sujeito, deixarem-se interpelar por ele. Voltaremos a essa
questão. O imaginário aí é a mediação com a qual o indivíduo se faz representar nas relações reais,
que não são diretamente acessíveis. Esse real-material das relações não pode ser apreendido de
modo puro, apenas por intermédio do imaginário.
Os termos psicanalíticos da reflexão sobre ideologia aparecem também em outro texto de
Althusser, “Freud e Lacan”33, no qual contextualiza inicialmente a psicanálise como uma teoria-
técnica-prática com um objeto próprio, para, em seguida, relacionar esse objeto com a questão da
formação subjetiva da ideologia: “o sujeito humano é descentrado, constituído por uma estrutura

31
Louis Althusser, “Freud e Lacan”, in: Freud e Lacan/Marx e Freud. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 71
32
Ibidem, p. 64
33
Ibidem
que também tem um 'centro' apenas no desconhecimento imaginário do 'eu', ou seja, nas formações
ideológicas em que ele se 'reconhece'”34. De Lacan, Althusser toma a ideia de que, na trama
edipiana, o recém-nascido se identifica através do imaginário à mãe e que essa relação imaginária é
interditada pelo simbólico com a “Lei de Cultura”, lei que acompanha a linguagem, na qual está o
significante paterno.
A questão da interpelação em Althusser lembra a metáfora do espelho proposta por Lacan 35
para ilustrar a relação imaginária que a criança mantém consigo mesma. Através de um evento ou
processo que se convencionou chamar de “estádio do espelho”, a criança, como resumiu bem Terry
Eagleton, “confrontada com sua própria imagem em um espelho, tem um instante de
reconhecimento errôneo e jubiloso de seu próprio estado efetivo, fisicamente descoordenado,
imaginando seu corpo como mais unificado do que realmente é. Nessa condição imaginária, não se
estabeleceu ainda nenhuma distinção real entre sujeito e objeto; o bebê identifica sua própria
imagem, sentindo-se simultaneamente dentro e fora do espelho, de modo que sujeito e objeto fluem
incessantemente para dentro e para fora um do outro em um circuito fechado. Na esfera ideológica,
similarmente, o sujeito humano transcende seu verdadeiro estado de difusão ou descentramento e
encontra uma imagem de si mesmo, consoladoramente coerente, refletida no “espelho” de um
discurso ideológico dominante. Armado com tal eu imaginário, que, para Lacan, envolve um
alienação do sujeito, ele é então capaz de atuar de maneiras socialmente adequadas.”36 Nesse
momento, a criança, mergulhada em sua relação imaginária consigo mesma, passa a assumir um
“eu” que é, ao mesmo tempo, a coordenação de seu corpo graças à orientação do outro exterior e a
assunção de que é um sujeito. Quando o outro externo aponta ou se refere à criança como um
sujeito, esta assume esse apontamento e referência, e se torna sujeito da ordem simbólica,
inconsciente.
Essa questão da interpelação lembra também o “complexo de Édipo”, que é a mais
tradicional questão da psicanálise, tendo sua origem teórica nas descobertas de Freud sobre a
sexualidade humana. Esse conceito está diluído em toda a obra freudiana, por exemplo, nos casos
clínicos, nos textos teóricos e nas análises de literatura e socioantropológicas. O conceito se resume
ao seguinte: a criança nasce e mantém, em primeiro lugar, uma relação com sua mãe, que a protege
das intempéries do mundo. Através dessa relação, a criança acaba se ligando à mãe através de suas
pulsões. Essa ligação se torna uma relação amorosa – as pulsões ditas orais, anais e fálico-edipianas
são satisfeitas através da mãe em um processo que vai desde o nascimento até os 4 ou 5 anos de
idade. No último período do complexo de Édipo, ou fase fálico-edipiana, a criança mantém uma
relação apaixonada pela mãe, proibida, que é abalada pelo “complexo de castração”. O alimento da

34
Ibidem, p.71
35
Jacques Lacan, Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1992
36
Terry Eagleton, Ideologia. São Paulo: EdUNESP; Boitempo, 1997, p.129
paixão pela mãe e da agressão contra o pai (que surge como o agente da castração) são proibidos e a
solução à questão edipiana é a introjeção do “supereu”, que é a instância da interdição social no
psiquismo. Se é uma menina, a castração assume o ódio contra mãe e o amor pelo pai. Se um
menino, o perigo da castração libera a criança de sua relação com a mãe devido ao medo do pai. 37
Com o apoio do estruturalismo de Lévi-Strauss e Saussure, entre outras teorias, Jacques
Lacan revisou o “complexo de Édipo” da teoria freudiana, trazendo a seguinte interpretação: a
relação que a criança mantém com sua mãe vem a ser imaginária em seus primeiros tempos. Nessa
relação, a criança (menino ou menina) se imagina um todo com a mãe, satisfazendo seus prazeres,
como nas fases freudianas. Com o tempo, a criança vem a receber um corte nessa relação
imaginária por meio da intervenção da “lei paterna”, simbólica, instaurando uma relação simbólica
com a mãe e com o pai. A criança abandona os prazeres que mantinha com uma união imaginária
total com a mãe, a fim de que suas angústias se transformem em uma separação mediada
simbolicamente, abrindo para si o mundo da linguagem. A relação imaginária consigo continua, mas
agora se expande ao outro, mediada pelo simbólico, que dá sentido ao “complexo de castração”.
Seguindo uma perspectiva de crítica à biologização da existência humana ou da “natureza
humana” – "que a biologia não possa tirar partido desse objeto, certamente, esta história não é
biológica"38 –, ao “modelo da Física energética”39, aplicada por Freud à psicanálise, e ao
entendimento do inconsciente como uma “segunda inconsciência”40, Althusser parte da teorização
do estádio do espelho e do complexo de Édipo para pensar a ideologia. O estádio do espelho traz o
primeiro contato do indivíduo consigo, contato imaginário, que se dá pelo contato posterior e, então,
continuado com o complexo de Édipo, contato simbólico, inserindo-o na Lei da Cultura: "o Édipo é
a estrutura dramática, a 'máquina teatral' imposta pela Lei da Cultura a qualquer candidato a
sujeito humano"41. Althusser tenta ir à raiz psíquica, digamos assim, do problema da ideologia, que
surge já com a constituição humana primeira, a saber, o seu ambiente infantil no seio da família.
Voltando à questão de um “eu” que já existe na ideologia, cabendo ao indivíduo sujeitar-se a
ele, o que é importante para a compreensão desse “eu” é o simbólico. Ora, todo o mundo social já
está materializado quando a criança vem ao mundo. Junto deste está o simbólico responsável pela
nomeação de suas coisas, das coisas do mundo, que pode ser aglutinado sob o signo da “Lei”. É, por
exemplo, o nome da criança (“Pedro” ou “Samanta”) antes de seu nascimento, o qual será

37
Ver, a esse propósito, Sigmund Freud, “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos” (1909), in ESB, v.
10. Rio de Janeiro: Imago, 1996; _______. “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens” (1910),
in ESB, v. 11. Rio de Janeiro: Imago, 1996; _______. Totem e tabu (1913). In ESB, v. 13. Rio de Janeiro:
Imago, 1996; _______. “História de uma neurose infantil” (1918), in ESB, v. 17. Rio de Janeiro: Imago,
1996; _______. “O ego e o id” (1923), in ESB, v. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1996; _______. “A sexualidade
feminina” (1931), in ESB, v. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
38
Louis Althusser, “Freud e Lacan”, p. 62
39
Ibidem, p. 63
40
Ibidem, p. 63
41
Ibidem, p.69
forçosamente atribuído a ela. Essa não é apenas uma atribuição de um mero nome, e sim de todo o
mundo social, feito pelo simbólico. Com o nome, a criança terá um sexo, um gênero, uma família
(passará pelo “complexo de Édipo”), uma classe social; morará em uma localidade, cidade, região,
nação; terá de escutar o que prefere o pai ou a mãe em termos de gostos, usos, costumes, hábitos.
Dessa maneira, esse simples nome trará junto o “eu” que lhe será oferecido. Na fase do espelho,
quando a criança se identifica com a sua imagem refletida (o imaginário), sendo advertida pela mãe
de que a imagem não é igual a ela mesma, de que é apenas uma imagem, de que aquele reflexo é, na
verdade, a do seu “eu” (o simbólico), tendo, portanto, de assumir esse “eu”, não lhe sobrando outra
saída a não ser admitir ser interpelada.
Acontece que esse “eu” do mundo social provocado pelo simbólico já é sempre ideológico,
pois o simbólico já está desde sempre investido de ideologia. No simbólico, as nomeações já estão
associadas de modo a naturalizar que existem divisões sociais. Se a criança nasce em uma família
da classe dominante, os nomes (inclusive o seu “eu”) já estarão associados antecipadamente de um
modo tal que aquela classe seja naturalmente a dominante. O respeito pela “Lei” já está na ordem
simbólica. A sujeição já está prevista e não há outra escolha: a criança terá de ter um nome, um
“eu”. Como poderia uma criança não ter um nome, um “eu”, uma subjetividade? Ela tem de ser
alguém.
A questão é que a criança já está imersa no ambiente cultural que a força a existir segundo
os ditames desta ordem, sem haver outra saída senão a de submeter-se. Quando a criança se enxerga
no espelho, reconhecendo-se como uma imagem global, deixando para trás a descoordenação de
não ser sujeito, de não ser ninguém, assume essa imagem global com um sentido simbólico,
organizador, unificador, que a insere em um mundo dominado previamente pela ideologia. O
sucesso que garante ao indivíduo não ser mais um amontoado de movimentos desconexos tem um
preço: a sua passagem para o mundo da linguagem, com suas regras submetidas à ordem simbólica,
que dá sentido ao existente, sobretudo o sentido carregado de ideologia. A matriz da entrada do
indivíduo no mundo é a sua relação consigo como sujeito, sujeito de uma ordem simbólica à qual
terá que se submeter, o que desemboca na sua relação com o outro, o outro mais próximo possível,
o outro, sua relação parental.
Retornando ao “Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado”, além do inconsciente ser
comparado por Althusser à ideologia, porque esta apresenta um caráter de “eternidade”, a
psicanálise ainda é utilizada para teorizar o indivíduo como “abstrato”, como já existindo como um
“ser” que terá de ser incorporado à criança que nasce e cresce, que se depara com a lei paterna, que
vivencia a “patologia” estrutural do “complexo de Édipo”. De fato, Freud teoriza o inconsciente
como não tendo nem tempo nem lugar, com um tempo, então, nas palavras de Althusser, “eterno”. É
esse inconsciente desconhecido pelo indivíduo, eterno, que dará os parâmetros de comparação com
a ideologia, eterna, desconhecida, do mesmo modo, pelo indivíduo.
Após tal renovação proposta por Althusser, a teoria da ideologia seguiu ainda caminhos
conexos ao pensamento de Marx e seus seguidores, mas bifurcou também em propostas críticas à
determinação do modo de produção ou da luta de classes na produção da ideologia. E há também os
autores que, embora pensem a partir de uma crítica da dominação e do poder, não a empreendem
explicitamente segundo o conceito da ideologia. O marco de Althusser ficou, porém, destacado na
história do conceito de ideologia; quem teorizar sobre ideologia deve lembrar do avanço conceitual
proposto por ele. A título de exemplo, abstraindo as distinções entre eles, recorrem explícita ou
implicitamente à contribuição de Althusser, ou refletem sua ideia geral sobre sujeição e produção do
sujeito com ou sem o uso do termo ideologia, autores como Michel Foucault, Pierre Bourdieu,
Slavoj Zizek e Kaja Silverman.
Destacamos uma crítica realizada em um ensaio de 1997 pela filósofa estadunidense Judith
Butler, que escreveu sua interpretação do pensamento de Althusser sobre a ideologia em sua relação
com a problemática da interpelação e da sujeição. Neste ensaio, a autora faz diversas perguntas e
observações críticas às teses do filósofo francês. Entre outras, a que indaga o seguinte: como se
pode conceber como anterior a toda formação do sujeito uma prévia cumplicidade com a “lei” da
interpelação que faz com que ele aceite a interpelação que se faz a ele? Como escreve: “a
interpelação não seria um acontecimento, senão que um certo modo de encenar a chamada pela
qual esta se desliteraliza no curso de sua exposição ou representação. A chamada é também
representada como uma exigência para colocar-se do lado da lei, como uma meia volta (para
encarar a lei, para encontrar uma cara para a lei?) e um ingresso na linguagem da autoatribuição
– “estou aqui” – mediante a apropriação da culpa. Por que, segundo parece, a formação do sujeito
somente pode ter lugar mediante a aceitação de culpabilidade, de tal maneira que nenhum 'eu'
possa atribuir-se um lugar ou anunciar-se pela fala sem uma previa autoatribuição de culpa, sem
uma submissão à lei, mediante a aceitação de suas exigências de conformismo?”42.
Para Butler, o problema principal da tese de Althusser sobre a interpelação que faz do
indivíduo um sujeito é que antes que o sujeito seja formado já aparece um desejo anterior pela lei
(da interpelação, lei da ordem social, da ordem simbólica), uma cumplicidade com esta, “sem a qual
nenhum sujeito pode existir”, e um desejo que será premiado não pelo atendimento puro e simples à
interpelação que faz essa lei (interpelante), mas porque há aí “uma promessa de identidade”. Para a
autora, faltou a Althusser explicar como existiria sujeição antes que exista o sujeito, e também por
que essa “submissão fundacional” existiria como uma “disposição psíquica operante” antes de

42
Judith Bulter, “La consciência nos hace a todos sujetos”, in: Mecanismos psíquicos del poder. Madrid:
Ediciones Cátedra, 2011, p. 120 (tradução nossa)
qualquer outra motivação?43 E se, para Althusser, o indivíduo somente pode assegurar-se de sua
existência em termos de sua sujeição à ideologia (à lei de cultura, lei da ordem simbólica), e esta
exige a sujeição para a sua subjetivação, isto é, a sua produção como sujeito, e se a subjetivação é
um reconhecimento errado ou desconhecimento, uma totalização falsa e provisória, “o que é que
provoca este desejo pela lei, essa fascinação pelo reconhecimento errado que oferece a
admoestação, a qual estabelece a subordinação como o preço da subjetivação?”44.
Entendemos que, nesse ponto, parece escapar a Butler que Althusser define “um antes” do
sujeito que nada tem a ver com algo preexistente ao indivíduo; nada preexiste no ser do indivíduo
antes que chegue ao mundo. O que antes do sujeito está é o “eu” da interpelação ideológica (e ele,
como realidade que preexiste ao indivíduo, existe apenas na ideologia), que é sempre já imposto ao
indivíduo como “identidade”, “subjetividade”, que é sempre social, simbólico e, por conseguinte,
ideológico, e que fará que se inicie a subjetivação que transformará o indivíduo em sujeito. E é esse
processo que faz com que o sujeito althusseriano seja sempre sujeito assujeitado, sujeito de uma
sujeição (a que foi submetido o indivíduo na interpelação inescapável de seu ser por um “eu”
ideológico). Processo no qual “o preço da subjetivação” – não sendo por escolha do indivíduo, pois
este não está em condições de escolher, não dispõe ainda de recursos para recusar o que quer que
seja, afinal, estamos na infância –, torna-se a sua subordinação a um “eu” que lhe chega de fora,
imposto, e a partir do qual advém o sujeito, marcado pela sua própria sujeição.
Mas, num outro ponto, Judith Butler introduz uma importante questão que é aquela da
“parte” do indivíduo inacessível à interpelação ideológica, que não recebeu de Althusser nenhum
tratamento. Apoiando-se nas análises do filósofo esloveno Mladen Dolar, Butler sustenta que
Althusser, em que pese utilizar a teoria lacaniana, não valoriza adequadamente o potencial
subversivo da psicanálise, em concreto, a noção de Real, que designa tudo aquilo que nunca chega a
estar disponível para a subjetivação. Citando o autor, assinala: “para expressá-lo de maneira mais
simples, existe uma parte do indivíduo que não pode ingressar com êxito no sujeito, um elemento de
matéria prima ‘pré-ideológica’ e ‘pré-subjetiva’ que acaba habitando a subjetividade uma vez que
se constitui como tal”, e segue: “de fato, essa ‘matéria prima’ não se materializa nunca em sentido
althusseriano, não emerge nunca como prática, ritual ou relação social; desde o ponto de vista
social, a ‘matéria prima’ é radicalmente imaterial, excluída de aparecer dentro da
materialidade”45. Desse modo, a interpelação somente pode explicar a formação “de uma parte do
sujeito”, uma “formação parcial”, diz Butler, o que deixa sempre um “resíduo”. Cintando mais uma
vez Mladen Dolar, esclarece a autora: o resíduo produzido pela subjetivação é também invisível do

43
Ibidem, p. 125 e segs. (tradução nossa)
44
Ibidem, p. 126 (tradução nossa)
45
Mladen Dolar apud Judith Butler, Ibid, p. 135 (tradução nossa)
ponto de vista da interpelação [...] A interpelação é um modo de evitar [esse resíduo]”46.
Finalmente, para Judith Butler, em grande medida, parece o pensamento de Althusser
prisioneiro da ideia (ideológica) que não se pode escapar à ideologia, que ela é totalizadora, como
se não existissem pontos de fracasso, fracassos das interpelações sociais, fracassos da ideologia 47. E
como finaliza seu argumento: “as condições que limitam a alternativa a ser ou não ser ‘reclamam’
outro tipo de resposta. A partir de quais circunstâncias pode uma lei monopolizar as condições da
existência de maneira tão totalizadora? Ou se trata de uma fantasia teológica da lei? Existe a
possibilidade de se ser em outro lugar ou de outra maneira, sem negar nossa cumplicidade com a
lei a que nos opomos? Tal possibilidade requereria um modo distinto de dar-se a volta, uma volta
que, ainda que sendo habilitada pela lei, se fizesse de costas para ela, resistindo-se a seu apelo de
identidade, uma potência que rebaixasse e se opusesse às condições a não ser – uma
desubjetivação crítica – com o fim de desmascarar a lei e mostrar que é menos poderosa que
parece.”48.
Aqui, caberia todo um desenvolvimento a propósito desse assunto da “parte” do indivíduo
que “não ingressa no sujeito”, nos termos de Dolar, para pensarmos as relações entre os termos
indivíduo, eu e sujeito no enfrentamento da problemática teórica da subjetivação, produção de
sujeitos e sujeição. A questão é: se há um “eu” ideológico que participa da subjetivação do
indivíduo e do qual nasce o “sujeito” (althusseriano), o que é esta outra “parte” do indivíduo que
não se faz “sujeito”, ainda que “habitando a subjetividade”? Quanto dessa subjetividade está
constituída do “real” (lacaniano), não se fazendo subjetividade submetida? Ainda, e mais
importante, diante dessa “parte” do indivíduo, estamos diante do “eu” que emerge na prática do
“cuidado de si” socrático-platônico, epicurista, estoico e, na contemporaneidade, foucaultiano: no
qual o “eu” que age no cuidado de si tem a chance de (re)fundar-se, submetido a técnicas de si e a
asceses críticas, hermenêuticas, tal como concebeu o filósofo Michel Foucault em suas
interrogações sobre a maneira como somos produzidos como “sujeitos” e sobre como podemos
escapar ao assujeitamento?49 Todavia, esses são desenvolvimentos do assunto que não serão feitos
nesta ocasião.
Ainda podemos acrescentar, a título de um balanço crítico da contribuição de Althusser para
uma teoria da ideologia, baseando-se na tradição marxista, que o conceito de ideologia proposto por
Althusser ficou vinculado à lógica do Estado capitalista como “órgão da dominação de classe
burguesa sobre a classe operária”. Ora, se a ideologia depende do aparelho estatal instalado na
sociedade burguesa moderna para a manutenção do domínio de sua classe dominante, ou se
46
Mladen Dolar apud Judith Butler, Ibid, p. 135 (tradução nossa)
47
Assunto que é também abordado pelo filósofo Slavoj Zizek, em seu “O espectro da ideologia”, in: Um mapa
da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 7-38
48
Judith Butler, “La consciência nos hace a todos sujetos”, p. 144
49
Michel Foucault, A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes: São Paulo, 2004
depende de um outro aparelho estatal situado em quaisquer regimes econômicos, a inexistência de
Estado significaria a ausência da ideologia não importa em quais grupos sociais. Os estudos
antropológicos e sociológicos demonstraram que, em sistemas sociais nos quais não há Estado nem
classes sociais, existem práticas de sujeição e dominação e existe ideologia e por esta encobertas.
Coube à demonstração socioantropológica dizer que a dominação é capaz de funcionar sem
a existência de um aparelho de Estado, e que a ideologia é um fenômeno que ultrapassa a lógica
capitalista, estatal e de dominação de classe. Pierre Bourdieu, por exemplo, verificou a dominação
masculina entre bérberes da Cabília, independente dos motivos estatais que deveriam sustentá-la50,
e Maurice Godelier, estudando os Baruya da Nova Guiné, aportou igualmente importante
conhecimento aos estudos sobre os fenômenos da dominação e da subordinação, em seus
entrelaçamentos com as relações de gênero, parentesco, mitologias, ritos de iniciação, propiciando a
construção de práticas de subordinação e de consentimento à dominação, violência simbólica, sem
que naquela sociedade existissem classes ou Estado51.
Para considerações críticas à contribuição de Althusser na construção do conceito de
ideologia, torna-se útil recorrer às noções teóricas de real, imaginário e simbólico que lhe dão
suporte. É comum entre os materialistas históricos o entendimento de que em sua disciplina houve
uma inversão do sentido hegeliano do real, este outrora vinculado ao idealismo, enquanto o
materialismo histórico passou a ligá-lo ao desenvolvimento econômico das sociedades. Apesar do
real estar associado à concretude das relações sociais, estas não se limitam ao fenômeno econômico.
Não é menos “real” o peso cultural do protestantismo sobre a economia nos primórdios do
capitalismo, como o demonstrou Max Weber, em seu clássico “A ética protestante e o espírito do
capitalismo”. O real, pensado por Althusser, deixa de lado outras possibilidades materialistas como
a própria cultura, que na tradição do materialismo de Marx e seguidores representa um papel
coadjuvante de “superestrutura”.
O que falta, no fundo, ao conceito de ideologia de Althusser é a dimensão simbólica da
realidade e da própria ideologia, dimensão que foi bastante explorada por Bourdieu. Althusser
menciona o termo apenas uma vez, para dizer que há na ideologia um quê de repressão, sendo esta,
neste caso, “bastante atenuada, dissimulada ou até simbólica”. Simplesmente, o autor abstrai (pelo
menos em “Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado”) todo um campo de debate que vai desde
a sociologia de Durkheim até a antropologia simbólica. O imaginário, por sua vez, é o que liga, para
Althusser, o indivíduo às suas condições reais de vida, com o “real” materialista histórico. A
questão que deve ser colocada é se a ampla dimensão do imaginário não possui também, como o
50
Pierre Bourdieu, A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999
51
Maurice Godelier, “Linguagem e poder: reflexão sobre os paradigmas e paradoxos da legitimidade das
relações de poder”, In: SANTOS, M. Helena Varela; LUCAS, Antonio M. Rollo, Antropologia: paisagens, sábios e
selvagens. Porto: Porto Editora, 1982, p.315-316
simbólico, uma dinâmica autônoma em relação ao materialismo puramente econômico. Como já
vimos, um dos principais componentes da explicação freudiana do complexo de Édipo é, segundo
Lacan, imaginária, e é esse componente que Althusser utiliza para explicar como o indivíduo
abstrato se encaixa na trama familiar, primeiro aparelho da ideologia.
Com as noções de real, imaginário e simbólico, entende-se em primeiro lugar que a
realidade não pode ser sinônimo da materialidade econômica, pois esta é apenas parte da realidade
material, ao lado de outras materialidades como o simbólico e o imaginário. A própria atividade
econômica do indivíduo e dos grupos funciona dentro do quadro simbólico e imaginário de uma
sociedade historicamente situada. A consistência do imaginário unificado pelo simbólico – se se
pensar, por exemplo, no estado do espelho lacaniano aplicado à análise da ideologia – só pode
ocorrer segundo um movimento de tentar apagar, ou, na linguagem lacaniana, foracluir, o real. Para
explicar de um modo bem simples: a ideologia funciona, assim, com o imaginário para dar
“coloração” ao real, e com o simbólico para atribuir-lhe (ao real) o nome de uma “cor”; tanto a
anarquia da coloração como a dominação de uma cor correspondente são naturalizadas pela
ideologia. Troca-se, por exemplo, a palavra coloração por “sexualidade” e a palavra cor por “sexo”
e se tem a realidade naturalizada pela ideologia androcêntrica.
Todavia, há que acrescentarmos aqui que, para refletir sobre o problema da ideologia, em
sua relação com o fenômeno da dominação, do consentimento à dominação, da produção de sujeitos
e os processos de subjetivação e sujeição, torna-se necessário redimensionar o “real” para uma
infinidade de possibilidades de configurações sociais, ações, comportamentos, fazeres, práticas,
todas elas pressionando a realidade instituída, que é a responsável por deixar “passar”, por assim
dizer, apenas uma dessas possibilidades, instituindo-a como a única possível e, por sua vez,
naturalizada pela ideologia. Nesse sentido, esse “filtro” da realidade instituída acontece porque,
pressionando o real, o imaginário e o simbólico operam em favor da ideologia. E é esta que torna a
realidade instituída uma realidade natural, eterna e universal, quando é apenas construída,
provisória, particular. E pressão na qual todos os indivíduos são interpelados e constituídos como
sujeitos, mas cujo êxito não está assegurado sem fracassos pelo meio, pois sobra real, resíduo de
subjetivações e age no ser do indivíduo uma potência que escapa à sujeição, a interpelação
ideológica.
O que esperar da teoria da ideologia hoje? O desafio de teorizar sobre a ideologia está no
fato de que a própria teorização pode conter, como disse Althusser, ideologia: “o autor como o
leitor destas linhas vivem 'espontaneamente' ou 'naturalmente' na ideologia”52. Mas será que é
sempre assim? Por isso, a importância da crítica à ideologia: como e o que apreender, de mais atual,
na confrontação entre o real, como um universo de múltiplas possibilidades – (ainda) destituídas do

52
Louis Althusser, Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, p. 97
status de realidade –, e a realidade instituída no/pelo simbólico e no/pelo imaginário? E, por
conseguinte, como enxergar (na crítica à ideologia) as muitas possibilidades de realidade, para além
da realidade existente, e, com isso, enxergar e exercer as muitas possibilidades de ser, de existir dos
indivíduos?

Referências
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença; São Paulo:
Martins Fontes, 1974
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1979
ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan/Marx e Freud. Rio de Janeiro: Graal, 1985
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999
BUTLER, Judith. Mecanismos psíquicos del poder. Madrid: Ediciones Cátedra, 2011
FOUCAULT, Michel A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes: São Paulo, 2004
FREUD, Sigmund. “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos” (1909), in ESB, v. 10. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
_______. “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens” (1910), in ESB, v. 11. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
_______. Totem e tabu (1913). In ESB, v. 13. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_______. “História de uma neurose infantil” (1918), in ESB, v. 17. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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_______. “A sexualidade feminina” (1931), in ESB, v. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GODELIER, Maurice. Godelier/Antropologia. São Paulo: Ática, 1981
LACAN, Jacques. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1992
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977
SANTOS, M. Helena Varela; LUCAS, Antonio M. Rollo, Antropologia: paisagens, sábios e
selvagens. Porto: Porto Editora, 1982
ZIZEK, Slavoj. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996

Publicado em:
DeSousa Filho, Alipio; FRANCISCO, Augusto César. A contribuição de Althusser à teoria da
ideologia. In: Dantielli A. Garcia; Lucília Maria Abrahão e Sousa (Org.). Ler althusser hoje. São
Carlos - SP: EDUFSCAR, 2017

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