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Natureza
Vivemos em uma cultura, assim como os outros, porém sempre consideramos que a nossa cultura
– justamente ao separar a natureza da cultura – produz um acesso privilegiado ao mundo, às
coisas, por meio do pensamento científico. Roy Wagner chamou a isso de um jogo de dois contra
um: os outros teriam apenas cultura, e nós teríamos natureza e cultura. A universalidade da
natureza seria, nesse sentido, o argumento que permitira aos ocidentais reduzirem as outras
culturas a sistemas de representações ou de crenças, enquanto concebiam a sua própria cultura
em termos objetivos e universais. O autor chama atenção, neste caso, para o papel da
antropologia como uma espécie de Grande Inquisidor epistemológico, que nos torna incapazes
de ver algo além da nossa própria história, de uma história em que não há uma alteridade
significativa. Partindo de uma problemática diferente, associada à filosofia da ciência, Bruno
Latour usa argumentos análogos quando se refere ao papel da concepção da natureza na
expansão e a dominação promovida pelo Ocidente diante dos outros povos do mundo.
A sugestão de Lévi-Strauss abalou, mas não liquidou por completo, o que Descola e Pálsson
chamaram de paradigma dualista, modelo de interpretação da realidade social e cultural
caracterizado por uma notável resistência e durabilidade no interior da Antropologia. Por esta
razão, muito do que se produziu após as considerações teoricamente sofisticadas de Lévi-Strauss,
se tomaram as várias vias sugeridas pelo grande pensador francês quanto às formas de
conhecimento não ocidentais, não lograram, entretanto, criticar a oposição Natureza e Cultura
como um construto cultural - ocidental e, portanto, apenas passível de ser ferramenta para a
reflexão, e nunca objeto em si mesmo e, desta forma, ultrapassar a noção de uma natureza fixa e
imutável sobre a qual se constroem incontáveis visões de mundo culturalmente diferentes. Novos
caminhos, no entanto, surgiam para contornar esta limitação a partir dos anos 60; aqui, no
entanto, limitar-nos-emos, por questões de espaço, aos desenvolvimentos que alteram
substantivamente a questão da dicotomia natural/cultural dos anos de 1980 em diante.
O primeiro deles via um conjunto de pesquisas que passaram a questionar a própria objetividade
da dicotomia nas sociedades ocidentais modernas e contemporâneas, especialmente a partir de
leituras críticas da ciência, com especial atenção à biologia e à física; tais trabalhos partiram do
muito justo posicionamento de Bruno Latour (1994) quanto a "jamais fomos modernos".
Latour, assim, revê a existência de uma noção de natureza como algo objetificado, fixo e
imutável (ou seja, regido por leis gerais que poderiam ser descritas cientificamente) mesmo nas
ciências mais "duras" e avançadas, ao destrinchar os mecanismos do que chamou de máquina
purificadora, o conjunto de pressupostos ontológicos que opera, continuamente, a separação
entre seres naturais e objetos culturais no mundo ocidental, mascarando a impressionante e
sempre-presente proliferação de híbridos natural-culturais que cortam fronteiras e funcionam
indistintamente nos dois domínios que nós, ideologicamente, separamos.